Expedição Aos Martírios

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. EDIÇÃO

MARY RIOS
Francisco Marins

Expedição aos

MARTÍRIOS
20." edição

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MEU-IDRAMEI"\TDS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marins, Francisco
Expedição aos Martirios I Francisco Marins
[ilustrações Oswaldo Storni]. -- 2. ed. - ­
São Paulo : Editora Melhoramentos, 2005. - ­
(Roteiro dos Martirios)

ISBN 85·06·04614·9

1. Literatura infanto-juvenil I. Storni,


Oswaldo. II. Titulo. III. Série.

05-4257 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura infanto-juvenil 028. 5


2. Literatura juvenil 028.5

Ilustrações do miolo: Oswaldo Storni


Ilustração da capa: Renato Moriconi
Diagramação: Desenho

© 1952 Francisco Marins

Direitos de publicação
© 1952 Cia. Melhoramentos de São Paulo
© 2005 Editora Melhoramentos Ltda.

Atendimento ao consumidor:
Caixa Postal 11541 - CEP 05049-970 - São Paulo - SP - Brasil

20.' edição -julho de 2005

ISBN 85-06-04614-9

Impresso no Brasil
Sumário

A serra misteriosa, 7

Primeira Parte - De Piratininga, Itu e Porto Feliz, 13

Recordando os acontecidos, 14
Dias de tédio, 17
Vender a tropa?, 20
Surpresa na cocheira, 22
Por que eles não se interessavam , 25
. . .

Conversas sobre um roteiro perdido, 26


No paredão do Tietê, 33
Um fugitivo na noite, 35
Revelações do indiozinho, 38
Disfarce e despedida, 40
Um raio de Sol, 43

Segunda parte- De Porto Feliz a Cuiabá, 47

Pelo Rio Anhembi abaixo, 49


Proeza de Pixuíra, 51
A expedição do russo, 54
História arrepiante, 56
O tesouro perdido, 57
O preto Anastácio, 58
Terceira Parte - Araés, 63

À procura de pistas, 66
Picareta faz nascer a cidade, 67
Encontro com o Bugre, 68
Dois cavaleiros em fuga, 71
A aldeia abandonada, 73
Desavenças, 77
Arraial em ruínas, 79
Estranha aparição, 84
Uma figura misteriosa, 89
Visita na madrugada, 92
Sepultados vivos, 97
Novas surpresas, 1 02
Adeus ao Araés, 104
Terríveis dúvidas, 105
Cena de horror, 111
Finalmente, os Martírios?, 113
A serra misterio sa

É quase inacreditável, mas aconteceu- certa vez,


no sertão distante, habitado por índios bravios- quan­
do dois meninos filhos de bandeirante viram, pela pri­
meira vez, um lugar estranho onde, à beira do rio,
rolavam pepitas de ouro e que mais tarde passou a ser
chamado de Martírios.
Os dois meninos, quando cresceram, tentaram vol­
tar às matas em busca da serra misteriosa, mas sem
sucesso. E também nenhum outro aventureiro, por
muitos anos seguidos, conseguiu reencontrá-la.
Entre tantos atraídos pela ambição do ouro, que
diziam ali ser abundante, conta-se a história trágico­
aventureira de um certo Juvenal� que morava em
Piratininga, antigo nome da cidade de São Paulo. Ele
se aliou a dois indivíduos de má fama- o Bugre-do­
Chapéu-de-Anta e Elesbão- e, após planejarem uma
viagem por água, a partir do lugarejo denominado
Porto Feliz, partiram em canoas pelo Rio Tietê e de­
pois por outros rios, até o longínquo Rio Cuiabá...
Tempos !:pois, como ninguém mais soubesse do
acontecido com eles, o sobrinho de Juvenal, Tonico,
e seu fiel companheiro, Perova, também partem para
o sertão, pelo mesmo caminho dos rios, na tentativa
de encontrá-los.

7
Tonico tinha grande amizade por Juvenal, que o
tratava como se fosse um homem adulto, embora só
tivesse catorze anos. Sujeito alto, espadaúdo, com
pelotas de muque no braço, Juvenal era conhecido con­
tador de causas e aventuras. Tonico se lembrava dele
a andar de um canto para outro da sala, pisando nas
tábuas do velho casarão em que viviam, as quais ran­
giam, no silêncio da noite... E, à medida que descre­
via cenas de lutas ousadas contra onças traiçoeiras,
fazia gestos, arremedava urros, imitava o barulho do
vento assobiando entre os troncos das árvores. Che­
gava a subir no parapeito da janela, empunhando a
faca, que sempre trazia à cinta...
Tonico ficava admirado de ouvi-lo.
Juvenal era homem bom, amigo de todo mundo.
A valentia que arrotava realmente provinha mais do
seu entusiasmo de jovem e da força da imaginação.
Ele continuamente repetia:
- Algum dia você vai comigo ao sertão. Vai sim.
E dava pancadinhas nas costas do sobrinho. Este
concordava: quem sabe algum dia isso pudesse acon­
tecer.
Tonico e Perova trabalhavam fazendo viagens com
tropas de burros, ida e volta, de Piratininga, no pla­
nalto, a Cubatão, no litoral. Para baixo, carregando
toucinho, carne, açúcar; para cima, com os animais
arcados ao peso de sal, vinhos portugueses, ferragens,
vidros, e tantas coisas mais que vinham nos navios de
outro país.

8
Certa noite, de seu quarto, Tonico ouvira quando
seu tio Juvenal, na sala da casa, conversava com duas
pessoas ao redor da mesa, iluminada pelo lampião.
Suas vozes eram cochichadas. Ele, como de costume,
andava de um lado para outro na sala e sua sombra se
alongava na parede.
Tonico, que a essa altura já espiava a conversa
sem ser visto, mal entendia o que dizia um dos outros
homens. Tratava-se de um mestiço, meio índio, que
misturava palavras e atendia pelo apelido de Bugre­
do-Chapéu-de-Anta. Tinha à cabeça um chapéu en­
feitado, na parte de trás, por penas de ave.
Juvenal ia de um lado para outro com as mãos
atrás das costas, ouvindo-o dizer, de modo quase in­
compreensível:
- É a mais fabulosa mina do Brasil! Temos que
pôr as mãos naquele ouro!
- Nossas riquezas, agora, não vão mais embora
pra Portugal! - disse Juvenal.
Tonico então se recordou do que Oscar Perova
lhe havia contado. Dom Pedro, o Imperador, voltava
de Santos, pelo caminho das tropas, quando recebera
ordens muito duras vindas do distante reino português;
por isso, respondera com coragem que o Brasil não
obedeceria mais a outro país. Tomava-se indepen­
dente.
Tonico não tinha dado importância ao fato, con­
tado por seu companheiro mais velho. Mas, como seu
tio Juvenal dizia que agora o ouro do Brasil não iria

9
mais embora, então devia haver alguma razão ligando
as duas coisas.
- Uma companhia de mineração abriu uma pica­
da, partindo de Cuiabá, para chegar ao Araés, onde
rolam pepitas pelo chão- continuava a dizer o Bugre­
do-Chapéu-de-Anta, com sua voz grossa e rouca.
Quando o homem se levantou, tirou o chapéu, apa­
nhou uma caneca de água do pote e, então, Tonico pôde
ver que ele tinha uma enorme cicatriz na cabeça!
- Para ir até Cuiabá a gente precisa de bons rema­
dores. Depois, de mateiros e carregadores. Sei como
arranjar isso... por bem ou por mal- disse, acentuan­
do as últimas palavras, de modo enigmático.
Juvenal pareceu não entender seu significado e
respondeu:
- É preciso arranjar dinheiro para pagar tudo. Sem
isso, não dá pra arriscar.
Em seguida abriu a janela e olhou para a noite,
sem estrelas. Respirou fundo, também, como quem
está com saudades da natureza, do cheiro do mato, da
frescura do sereno.
Um galo cantou distante. Era noite avançada.
O Bugre-do-Chapéu-de-Anta se dirigiu para a por­
ta e disse em tom arrogante:
- Arranje o dinheiro. O resto deixa comigo e com
o Elesbão.
Este último, que até ali estivera mudo e um tanto
sonolento, murmurou:
- Araés?- Já estive por lá.. O lugar chamado de
.

Martírios fica bem perto!

10
De novo fez-se silêncio. Um galo tomou a cantar,
distante.
- O bandeirante Pires de Campos viu os Martírios
quando tinha mais ou menos a idade do Tonico, meu
sobrinho, quando acompanhava o pai dele em uma
Bandeira por aqueles sertões.
- Dizem que o Anhagüera-mirim também viu­
completou o Bugre! - E que lá eles brincaram na areia,
com pepitas de ouro correndo entre seus dedos!
Os dois homens saíram. Tonico voltou para seu
quarto, fechou a porta e foi depressa para cama, sem
ser notado.
Primeira Parte

D E P IR AT I N IN G A , I T U E P O RT O F E L I Z
Recordando o s acontecidos

Ânda hoje, tantos anos já passados, lembro-me


perfeitamente daqueles dias tão cheios de aconteci­
mentos estranhos e de aventuras quase inacreditáveis.
Não sei se minha imaginação de adolescente contri­
buía, em parte, para aumentar tudo aquilo muito além
da realidade. Mas aqueles episódios me marcaram pro­
fundamente e, ainda hoj e, sou capaz de reviver cada
momento, relembrar as palavras, as ansiedades, os ter­
ríveis perigos e também as esperanças daqueles dias,
como se tudo tivesse acontecido ontem. Talvez seja
porque eu nunca soube de alguém que tenha vivido
aventuras tão estranhas e tantos perigos nas selvas.
Mas voltemos à história.
Nos dias que se seguiram àquela noite em que ou­
vira as conversas de meu tio, e como chovesse muito,
não pude lidar com a tropa de burros. As estradas es­
tavam encharcadas e era perigoso fazer o transporte
de mercadorias, nosso trabalho habitual.
Aproveitei o descanso para, com os camaradas a
meu serviço, arrumar os arreios da tropa, costurar os
loros e barrigueiras, consertar cangalhas e emendar es­
tribos e rédeas.
Bem cedo me tomara o chefe da família, após a
morte de meu pai. Continuei o serviço dele, pois já o
acompanhava nas viagens saindo de Piratininga, serra

14
abaixo até Cubatão, e de lá subindo morros, no cami­
nho de volta. Piratininga, que mais tarde passou a se
chamar São Paulo, era uma cidade cuja população cres­
cia bastante e já chegava a mais de doze mil habitan­
tes; assim, havia bastante serviços de transporte, pelo
qual as pessoas pagavam bem.
Nossa tropa era formada de quarenta burros e mu­
las. Quando seguíamos para o litoral, levávamos açú­
car, aguardente, toucinho. O transporte rendia o sufi­
ciente para vivermos .h�.m. Meu pai trabalhara anos e
anos com a tropa. Quando morreu, mamãe não quis
vender a burrada. Assumiu em parte o trabalho dele,
em companhia de alguns homens que eram fiéis a nós
e verdadeiros amigos. Entre eles, principalmente,
Perova. Não fosse este, sempre leal e pronto para tudo,
pouco teríamos realizado.
Minha mãe achava, entretanto, que a vida que eu
levava era muito dura para um menino de doze anos.
Esperava que logo eu deixasse de viajar. Dizia que meu
pai morrera cedo porque havia sofrido muito por aque­
-
les caminhos, sob sol e chuva. Tínhamos parentes lá
'- .. - . '

pelos lados de Itu e, talvez, fôssemos viver por lá.


Naqueles dias, percebi, também, que minha mãe
andava com os olhos avermelhados. Mal podia disfar­
çar as lágrimas. Não quis me contar a razão. Mas logo
descobri o motivo: fazia bom tempo que seu irmão
partira para Cuiabá, e dele não recebera mais notícias !
- E que me diz a respeito do Bugre? - perguntei a
meu amigo Perova.

15
- Não gosto dele! - respondeu, seco.
- Por quê?
- Foi caçador de índios. Trazia os coitados para
trabalharem como escravos nas roças daqui ... Mas não
conte isso para sua mãe.
Passadas as chuvas, raiou um sol gostoso de verão
e recomeçamos as viagens a Cubatão.
Certo dia, Perova me contou, sobre tio Juvenal, algo
que eu ainda não sabia: arranj ara dinheiro para a via­
gem com o Jacó Belchior e minha mãe garantira o pa­
gamento da dívida.
Então me lembrei da madrugada de sua partida,
quando, ao me despedir, entreguei a ele um objeto mui­
to precioso para mim.
- Leve isto, tio, como lembrança minha.
Ele me abraçou, com os olhos em lágrimas. De­
pois apalpou a guampa, encastoada de prata, presente
de meu pai no dia de minha primeira viagem na serra.
- Você é um bom amiguinho, Tonico. Espero que
este chifre trabalhado me dê muita sorte. Toda vez que
eu beber água nele vou pensar em você !
Prendeu o objeto no mosquetão da cinta larga de cou­
ro, passou as mãos na aba do chapéu, de trás para dian­
te, arrumou a garganta com um pigarro, montou o cavalo,
lançou-me um último olhar e partiu para Porto Feliz.

16
Dias de tédio

Foi a última vez que vi tio Juvenal. Ele lá se fora,


Tietê abaixo, rumo aos sertões.
Voltei à vida de tropeiro, quase sem incidentes. Os
meses foram correndo.
Já havia subido e descido centenas de vezes a serra
de Cubatão, vencendo os seus 2 500 pés de altura, atra­
:v�� de péssimos caminhos, cheios de pedras e atolei­
ros, que castigavam os animais e quase os matavam
de cansaço. Nossa tropa, composta de qu�renta bes­
tas, era guiada por Perova, o tropeiro, e dividida em
cinco lotes, estes sob a direção, cada qual, de um ca­
marada. As tropas que circulavam pela serra normal­
mente obedeciam a essa maneira de trabalhar.
Quase sempre pegávamos chuvas, por dias intei­
ros. Contudo, em certas manhãs, éramos recompensa­
dos com dias magníficos, e desfrutávamos o belo pa­
norama da serra. Os precipícios, o fundo dos vales, o
cume das montanhas, onde nesgas de nuvens alvacen­
tas pareciam grudadas, tudo a nos proporcionar
espetáculos memoráveis !
Aquela vida de vaivém, entretanto, acabava por me
aborrecer. Com o aumento do trânsito, as trilhas fica­
vam cada vez mais perigosas. Em certas ocasiões, para
que os animais pudessem. caminhar, era preciso colo­
car, por onde iam passar, couros de boi curtidos, para
impedir que atolassem na lama.

17
Muitas vezes demorávamos um tempo enorme para
transpor pequenos trechos. Havia o perigo de perder
as mercadorias, pelas quais éramos responsáveis. Lem­
bro-me de um dia em que duas mulas, c arregadas de
sal, escorregaram pelo abismo. Ficamos bastante pe­
nalizados pela sorte das bestas, além de sofrermos sé­
rio s prejuízos.
Com todos esses contratempos, eu vivia pensando em
deixar aquela vida dura de tropeiro, mas não sabia como.
Minha mãe, sem outros parentes ali, e com o irmão
afundado no sertão, parecia cada vez mais triste.
Piratininga crescia e ela já sentia saudades do tem­
po em que a cidade era menor, sem tanto movimento
de tropas, carroças, carros-de-boi e de gente estranha,
chegando e partindo.
Eu temia deixar o serviço, nossa única fonte de ren­
da. Só sabia andar no lombo de burro, serra abaixo,
serra acima. Assim mesmo, ia falar com mamãe a esse
respeito. Havíamos de arranjar outro meio de vida. Se,
ao menos, o tio Juvenal estivesse na cidade ! Poderia
pedir a ele um conselho. Fazia dois anos que não rece­
bíamos notícias. Teria encontrado os Martírios?
Com essas lembranças e pensamentos, abri a can­
cela do portão e entrei em casa.

18
Vender a tropa?

S urpreendi mamãe na varanda, com os olhos ver­


melhos de tanto chorar. Abracei-a, e perguntei a ela
qual o motivo da tristeza. Enxugou as lágrimas no
avental e disfarçou, mas com a minha insistência, aca­
bou por me contar. Estávamos arruinados ! Ela havia
tomado dinheiro emprestado, assinado documentos
para financiar a viagem do irmão Juvenal. Dois anos
já tinham se passado e, como a expedição não regres­
sara, o prazo para pagamento das dívidas vencera e os
credores queriam receber.
Notei, também com tristeza, que ela parecia muito
envelhecida e talvez sofresse, calada, doenças e dores
que não me revelava.
- Então os credores exigem os pagamentos?
- Sim, filho. Estamos com atraso de meses. Mas não
me arrependo de ter ajudado meu irmão. Tenho espe­
ranças de que ele qualquer dia aparece, com o picuá
cheio de ouro. Então a gente tapa a boca de quem vive
a nos azucrinar, exigindo dinheiro.
Eu admirava minha mãe, sempre corajosa e deci­
dida, mesmo quando estava bem certa de nossas difi­
culdades, quase insuperáveis.
-A senhora fez muito bem em ajudar - eu disse a ela.
- Sim. Mas por isso você sofre por esses caminhos
de meu Deus, sob sol e chuva. E ainda podemos perder
tudo o que temos.

20
-Paciência, minha mãe. Vamos encontrar uma saída ...
- E se eu tiver que vender a tropa?
Então caí na realidade. Vender nossos burros? Eles
eram parte da minha vida. Mamãe caía em choro e me
afagava de encontro ao peito.
Naquela tarde, muito aborrecido com tal notícia,
nem quis jantar e fui falar com Perova. Encontrei-o no
galpão dos arreios cortando vagarosamente um tento,
de um couro velho esticado entre duas estacas.
Quando me viu daquele jeito, com os olhos verme­
lhos, demonstrou já saber do que se tratava e conti­
nuou a preparar o couro.
- Perova, vamos perder a burrada!
Oscar continuou a alisar o tento com o fio do cani­
vete, cuspiu entre dentes, ajeitou a aba do chapéu e
disse:
- Jacó Belchior emprestou o dinheiro, sua mãe fez
a dívida. Agora não tem remédio . . .
- Se você sabia de tudo, por que não me disse antes?
- Não adiantava! Milagre, só com Deus.
- E, então, o que fazer?
- Estou pensando, pensando... O tempo vai ajudar.
Não entendi o que ele dizia.
Duros foram os dias que se seguiram. Eu perdia o
entusiasmo pelo trabalho que, até ali, havia sido a razão
de viver. Nem tinha coragem de ir ao piquete onde, no
capim, pastavam os burros, nossos companheiros de
tantos e duros anos de sobe e desce naquelas serras.

2l
Mamãe se fechava em longos silêncios. De vez em
quando se lastimava por ter posto a perder o que o ma­
rido nos havia deixado e, ainda, por assim prejudicar
meu futuro.
- Não diga isso, mamãe - eu a consolava.- Já me
sinto um homem feito e vou me arranjar.
- Você começou a lutar desde cedo, Tonico. É um
ótimo filho e muito mais !

Surpre sa na cocheira

Na semana seguinte recebemos a visita de um


parente de papai _que há muitos anos não víamos. Vi­
nha de Itu. E nossa vida se alterou. Resolvemos ir
morar naquela cidade.
Falei com Perova sobre a nossa decisão. Ele cus­
piu de lado, guardou o canivete que sempre trazia na
mão e já tinha formulado um plano.
- Jacó Belchior fica com os burros e vocês se li­
vram da dívida!
- Concordo com tudo. Então, explique você ao
Marcelino e ao Aguileira, nossos bons camaradas. Tal­
vez eles queiram acompanhar os animais ... e ir traba­
lhar para o novo dono. Eu ... eu .... acho que nunca
mais vou descer a serra.

22
Ao dizer isso, minha voz ficou sumida. Senti uma
vontade louca de chorar.
- Coragem, Tonico ! - disse ele, segurando-me pelo
braço. - Olhe pra frente. E, na certa, tem alguma coisa
boa esperando pela gente. . .
-Alegrei-me ao ouvir ele dizer "pela gente", pois
isso significava que iria em nossa companhia.
No dia seguinte foi a entrega dos animais.
Eu nem quis ir à mangueira, para não ver nossa tro­
pa partir, levada por outro. Que tristeza! Gostava tanto
das mulas e dos burros! O Marujo, o Sapo, a Estrela, a
Pampa, o Paraguai, o Caipira. Cada qual tinha uma his­
tória e uma lembrança. Quanta mercadoria subira nos
lombos deles, de Cubatão para o planalto !
Permaneci dentro de casa, com a janela fechada,
ouvindo os gritos dos peões, os estalos dos relhos. Um
nó apertou minha garganta. Pela última vez ouvi o zurro
do Pinhão, como a se despedir, para sempre . . .
Paga a dívida, restara-nos somente nossa casa, de
pouco valor.
Quando os animais desapareceram, na curva do ca­
minho, em meio a uma nuvem de poeira, caminhei de­
vagar para a cocheira.
Perova, na cerca, com o canivete na mão, alisava
um tento de couro. Ele nem olhava para onde os ani­
mais haviam desaparecido, pois sofria também com a
perda. Então pensei na situação do amigo, que não qui­
sera ir embora, como os outros camaradas.

23
- Agora você não precisa mais cuidar de arreios e
cangalhas!
- Por que não?
- Não temos mais nenhum animal.
Perova continuava a alisar o tento. Passou a mão
pela aba do chapéu e respondeu:
- Então, olhe lá atrás do mangueirão ...
- Não compreen � o !
- Veja lá!
Saí correndo, passei em frente do galpão de arreios
e, atrás do cercado, encontrei três burros pastando.
Reconheci o Marujo, o Pachola e o Topázio, nos­
sos três animais de maior estimação.
- Como foi isso, Perova? Eles não seguiram com
os outros?
- Não. Sua mãe me pediu para eu trocar a tropa
pela dívida, tanto por tanto ...
- Sim! Foi o combinado.
- Eu trouxe o credor aqui e mostrei a tropa da man-
gueira. Ele olhou tudo, muito bem, contou, aceitou.
Então tudo foi feito, como aqui se diz, de "porteira
fechada".
- Mas você já tinha escondido os três animais?
- É isso. Negócio é negócio.
Consolei-me. Em meio à desgraça, alguma coisa
se salvava, graças à astúcia de Perova.

24
Por que eles não s e
interessavam...

Deixei a vida de tropeiro. Estava com catorze


anos e já tinha a experiência de um homem adulto,
conseguida em duros anos de muito trabalho e muitas
viagens.
Poucos dias depois fiquei sabendo, por intermédió
de um viaj ante chegado de Cuiabá, que a população
se alvoroçava com ·boatos impressionantes: uma ex­
pedição encontrara, no Rio Paracatu, índios enfeita­
dos com folhas de ouro. E, como sempre acontecia
nessas ocasiões, havia um corre-corre de aventureiros
para aquelas bandas, todos sonhando com a riqueza
das lavras.
É certo que, então, logo pensei no tio Juvenal e no
Bugre-do-Chapéu-de-Anta. Teriam eles descoberto as
sonhadas minas na região em que, certo dia no século
XVII, os meninos Bartô, de 12 anos, e Antoninho, de
14, na Bandeira de seus pais, brincando da areia à mar­
gem de um rio encontraram pepitas em abundância? E
dizem que os bandeirantes, então, nem se interessaram
pelo metal precioso. Eu não conseguia entender por quê!
Con_v ersas sobre
um roteiro perdido

Naquele ano, lembro-me bem, mudamo-nos para


a vila de ltu, levando o pouco de dinheiro que resulta­
ra da venda de nossa casa.
Em uma linda manhã de sol, depois de nos despe­
dirmos de nossos amigos e vizinhos, dissemos tam-
_,--- .. -·-- -

bém adeus a Piratininga. E, graças a Perova, tínhamos


três bons animais para a viagem.
Não é preciso dizer que meu companheiro foi
conosco. Apesar de ter outras possibilidades de ga­
nhar a vida, e quase nada poder esperar de nós, deci­
diu nos acompanhar. Tinha grande amizade por mim,
o seu patrãozinho, como dizia, e me tratava como um
irmão mais moço.
Nossos aniní�i � ganharam o caminho. Para mim a
viagem era uma distração. Mas para mamãe as dez lé­
guas 1 de distância iniciais, até Jundiaí, representavam
duro esforço. Passamos pelo ribeirão Juqueri, em cujas
areias, outrora, teriam encontrado ouro em abundân­
cia. Situada no caminho de São Paulo para Goiás, no
povoado os _!!egocia�s costumavam comprar ou alu­
gar bestas para seus longos trajetos. - -·

1 Cada légua corresponde a 6.600 metros.

26
Daí partimos em direção a Campinas, cidade já mais
desenvolvida. Ao seu redor, espalhavam-se bons en­
genhos e fazendas cultivadas. Passamos pelo Salto de
Itu e fiquei impressionado com aquele magnífico es­
petáculo da natureza. Pobre de quem rolasse por tan­
tas pedras pontiagudas, entre as quais a água espuma­
va, parecendo formar um caldeirão fervente.
Por fim, já muito cansados, chegamos a Itu, cujo
comércio parecia bem maior que o de Campinas. Suas
ruas, embora construídas sem alinhamento, ofereciam
agradável impressão aos visitantes.
Ao chegarmos, fomos muito bem recebidos pelos
nossos parentes. E mamãe, apesar do cansaço da viagem,
pareceu ganhar novo alento. Fomos morar numa casa
pequena, de tábuas, mas confortável. Perova habitava um
quarto nos fundos e sentia-se satisfeito ao nosso lado.
Em poucos dias, nós dois já havíamos percorrido
tudo por lá. E ouvimos bastante sobre antigas monções
que partiam de Itu e Porto Feliz para Cuiabá. Muita gente
ainda continuava a ir aos sertões pelo caminho dos rios.
Certa noite, Oscar veio me contar:
- Descobri a casa em que viveu um antigo ban­
deirante.
- Como se chamava?
- Não guardei o nome. Mas me disseram que. um tal
Nhô Prudência, velho morador deste lugar, sabe de tudo.
Fomos logo procurar. o homem e o encontramos
sentado em um banco, no pátio da igreja, à sombra de
uma grande figueira.

27
Era um velho de barbas ralas, face enrugada. Estava
fumando seu cachimbo, distraído, olhos fixos nas plan­
tinhas e nas flores, parecendo deixar o tempo passar.
Recebeu-nos com alegria e contamos a ele muita
coisa sobre nós.
Convidou-nos logo para irmos até sua casa, logo
em frente, tomar um cafezinho. Fomos. Ele vivia só.
Não tinha mais familiares em ltu, todos já eram fale­
cidos. Ele mesmo, dizia, vivia meio lá, meio cá, lutan­
do contra o reumatismo.
- Qualquer dia não agüento mais!
- Não diga isso- censuramos, para animá-lo.
- Então vocês querem saber sobre Pires de Cam-
pos? - perguntou, depois que nos sentamos no banco
de três pernas daquela pequena sala.
Pires de Campos? Será que eu ouvira bem? Então
se tratava de Antoninho, o menino que, na companhia
de Bartô, vira os Martírios? Sim, inacreditável, era so­
bre ele que Nhô Prudência nos contava.
E ele continuou:
- Quando cresceu, o menino Antoninho voltou aos
sertões, como homem feito, e andou à procura dos
lugares antes percorridos pela Bandeira de seu pai,
Manuel de Campos Bicudo. E também se tornou um
famoso bandeirante. Viveu alguns anos em Cuiabá e
acabou seus dias nesta vila.
- O senhor o conheceu? - perguntei, muito inte­
ressado.

28
-Não. Mas meu pai conversou com ele muitas ve­
zes, sentados nas raízes daquela figueira da praça, onde
vocês me encontraram. Depois vou mostrar a vocês a
casa onde ele morreu.
Saímos e fomos caminhando devagar pela rua de­
serta e silenciosa, porque Nhô Prudência, com sua ida­
de, mal podia dar os passos, apoiado a uma bengala.
Não havíamos andado muito e ele apontou para a
velha casa, já abalada pelos anos.
- É aquela. Ali ele viveu e o povo o chamava de
Pai-Pirá. Faleceu aos 90 anos. Homem corajoso que, em
menino, como já disse, acompanhou seu pai aos sertões.
Seu filho, do mesmo nome, lutou contra os índios caiapós.
Levou uma flechada no braço e morreu. Mas fundou vi­
las em São Paulo e Goiás.
- Ele então viu Martírios - acrescentei, lembran­
do-me das histórias de tio Juvenal.
- Sim. Pires de Campos contou a meu pai sobre
aquele lugar misterioso, onde havia muito ouro e que
ninguém mais conseguiu ·encontrar, depois deles.
-Mas as minas existem mesmo? - inquiriu Perova.

29
- Muitas expedições j á foram à procura dessas mi­
nas, inutilmente, mas isso não quer dizer que ainda
não possam ser encontradas. Eu mesmo ...
- O senhor também? - interroguei, cada vez mais
ansioso.
Nhô Prudêncio baixou a voz, tossiu um pouco, quis
disfarçar. Mas, como eu insistisse, continuou:
- Isso já faz muitos anos. Eu era jovem e sonhava
com as histórias que meu pai tinha ouvido de Pires de
Campos. Tentei organizar uma expedição para procurar
as mmas.
- E foi feliz? - perguntei.
- Não, meu filho. Não conseguimos o apoio para a
expedição. Mas não se deve perder as esperanças; al­
gum dia alguém chega lá e "de novo" descobre Martí­
rios. Pires de Campos dizia a meu pai que, no dia em
que essas minas fossem reencontradas, haveria tanto
ouro que cada família podia ter seu altar de casa en­
feitado com ele.
- Não diga!
- Sim. Naquela serra, o ouro aparecia à flor da terra,
depois das chuvas. Rolava mesmo pela encosta, até as
areias do rio. Mas depois se tomou impossível voltar lá.
- Por quê?
- Pensem comigo. O bandeirante esteve naqueles
lugares quando era um jovenzinho. Depois, muitos
anos se passaram. Os rios receberam outros nomes e
até mudaram, em alguns trechos, o curso de seus lei-

30
tos. A natureza é bruta e se altera. Ninguém mais tinha
lembrança das antigas trilhas percorridas.
- Sim, isso é certo - confirmou Perova. - A mataria
em pouco tempo encobre tudo! Ainda assim, uma coisa
me intriga: por que os bandeirantes, quando encontra­
ram o ouro de Martírios, não o levaram embora?
Nhô Prudêncio, então, explicou:
- As bandeiras iam capturar índios e não se inte­
ressaram pelo ouro que pouco valia! - E continuou: -
Pires de Campos disse, em confidência a meu pai, que
há muitos anos havia ditado a um amigo do sertão o
roteiro para se chegar aos Martírios.
- Isso é muito importante - afirmou Perova.
- Há anos andei à procura desse mapa - continuou
Nhô Prudêncio -, entregue pelo bandeirante a um tal
Vilares, que o confiou a um morador de Cuiabá. É certo
que esse roteiro existe e, portanto, sem ele nas mãos,
seria impossível chegar aos Martírios.
Nhô Prudêncio resmungou ainda algumas palavras
e, como já era tarde, nos despedimos.
- Gostei de vocês. Voltem pra falar com o velho. Nin­
guém conversa mais comigo ... Na certa, todos já sabem
as histórias que eu conto e que são sempre as mesmas!
No paredão do Tietê

Eu e Perova fomos a Porto Feliz, pequena mas


interessante vila próxima de Itu, situada à margem do
Rio Tietê, sob uma elevação. Tínhamos a expectativa
de arranj ar algum trabalho.
Logo à chegada vimos barcos que chegavam de lon­
ga viagem, pelo rio. Então ficamos sabendo que, em
um barracão próximo, muitas pessoas haviam sido con­
tratadas para lavrar troncos enormes de árvores e cons­
truir canoas. Fomos espiar e ficamos sabendo que ali
se preparava uma grande expedição para descer o Tietê
c outros rios.

- É gente de um país estrangeiro - disseram-nos.


- Será que vão procurar ouro?
- Ninguém sabe. Mas o chefe deles diz que vieram
tàzer estudos: querem conhecer nossas tribos indíge­
nas, apanhar plantas, flores, e até empalhar certos ani­
mais que não existem onde eles moram. Assim embal­
samados, eles podem ser levados para bem longe -
informou-nos um homem, de um grupo que estava ali
reunido.
- E será só por isso que eles vieram? Não será "pra
mor" do ouro? - alguém duvidava.
- Sei lá. Querem chegar ao Amazonas . . .
- Que fica no fim do mundo !
- Vão levar anos.

33
- Isso se não morrerem na viagem com as febres,
os jacarés e as onças.
Eu continuava a ouvir os comentários e ia exami­
nando os homens trabalhando no barracão. Um deles
media uma enorme canoa, dizendo em voz alta:
- Oito palmos de largura ... Cinqüenta de compri­
mento . . . Três e meio de profundidade2•
- Temos ainda muitas canoas pra fazer - comenta­
va outro.
Quando voltávamos para casa, Perova me disse:
- Precisamos saber mais sobre essa expedição que
vai descer o rio.
No momento não atinei sobre a intenção dele. Nos
dias que se seguiram, procuramos ficar mais informa­
dos. O que descobrimos nos deixava alvoroçados. Tra­
tava-se de uma grande excursão, paga pelo Governo
da Rússia, para fazer estudos científicos no interior
do Brasil. E iam precisar de trabalhadores para formar
a tripulação de muitas canoas e de um batelão.
Muito interessante aquele lugar, à beira do rio, com
um enorme paredão de cor branca-acinzentada, com
vários buracos arredondados. Contaram-nos que a pe­
dra tinha gosto de sal e, por isso, as araras vinham ali
bicar e até formar seus ninhos. Daí surgira o nome
antigo do povoado, Araritaguaba, que significava, na
língua indígena, "lugar onde as araras comem".

2 Cada palmo corresponde a 22 centímetros.

34
De novo no porto, vimos uma expedição que acabava
de chegar de Cuiabá. Era formada por umas dez canoas
pequenas, tripuladas por muitos escravos e por índios.
Quando chegavam monções como aquela, a cidade se al­
voroçava. Havia, então, gente estranha e perigosa pelas
ruas: homens vindos das minas, bem armados e se entre­
gando à bebida, promovendo arruaças nas vendo las.
Quase sempre traziam também uns pobres índios, ilu­
didos com promessas de trabalho nas cidades, onde na
verdade, iriam viver, quase sempre, como semi-escravos!

Um fugitivo na noite

Nessa noite, íamos ter uma grande surpresa.


Já estávamos em nossas camas, cansados de tanto
andar, quando ouvimos um barulho. Alguém forçava a
porta da casa, querendo entrar.
Perova se levantou, no meio da escuridão, sacou
de sua faca e caminhou para ver o que acontecia. Eu
tinha a respiração suspensa.
Pouco depois, olhando pela j anela, vimos pessoas
correndo e, à nossa porta, alguém que, em desespero,
entrou ligeiro mal a abrimos.
Acendi o lampião e, cqm grande surpresa, reconhe­
ci um indiozinho, agarrado por Perova e se debatendo

35
de medo enquanto dizia palavras que mal entendíamos.
Era evidente que fugia de perseguidores.
Logo mais, ouvimos mais barulho e vozes na rua.
Perova apagou o lampião, sem largar o intruso, que
tentava em desespero se livrar de suas mãos fortes.
Alguém gritou de fora:
- Óoooo de casa!
Ficamos em silêncio.
- Óoooo de casa!
Perova então abriu a janela da frente e viu homens
armados e com dois cachorros, que latiam furiosamente.
==-E._ntregue o fugitivo ! - alguém gritou.
Nosso gesto foi o de proteger o mais fraco, mesmo
sem sabermos de quem se tratava. E Oscar, matreira­
mente, porém com firmeza, respondeu:
- Vão embora e não perturbem o nosso sono !
Os homens, do lado de fora, não estavam conven­
cidos e insistiam.
- Se não entregam, a gente arromba a porta!
Perova não se intimidou. Colocou sua arma pela
folha da janela entreaberta e fez um disparo.
Os agressores silenciaram e, temerosos, partiram
dali, tanto que ouvimos depois, distante, o latido dos
cães.
Ficamos à frente do indiozinho, muito sujo e trê­
mulo; ele parecia querer correr para baixo de uma das
camas e ali se esconder.

36
Condoído com aquela cena, tentei explicar ao peque­
no que seus perseguidores estavam longe e dentro de casa
não o agarrariam.
Fui à cozinha e apanhei alguma coisa que sobrara
para ele comer. Devorou tudo, com apetite. Depois,
licou nos olhando, um pouco menos assustado.
- De onde você veio? - perguntamos.
Não respondeu.
Arrumamos alguns pelegos e fizemos para ele uma
cama no chão, onde se acomodou como um bichinho
c logo caiu em sono profundo.

Percebemos, horas depois, que os mesmos homens


de novo rondavam pela rua com seus cães, e nós, acor­
dados, não estávamos ainda refeitos da terrível sur­
presa e continuávamos sem saber o que acontecia.
No dia seguinte, bem cedo, Perova saiu de casa para
se informar. Voltou horas depois e me contou, à meia­
voz, que o indiozinho, que se chamava Pixuíra, havia
sido aprisionado no sertão e trazido à força pelo grupo
da última monção. Uma vez na localidade, fugira, jun­
tamente com dois outros negros, escravos. Estes já ha­
viam sido agarrados.
Perova sabia que poderíamos ser punidos por es­
conder o pequeno, mas estava decidido a enfrentar as
conseqüências.
No dia seguinte deveríamos partir e devolver a casa
em que estávamos hospedados e, então, que fazer com
o Pixuíra?

37
Revelações do indiozinho

A um canto do cômodo, de cócoras, o pequeno


índio olhava para o chão, quieto e desconfiado.
Procurei conversa, mas só respondeu por gestos e
monossílabos. Queria saber por que ele fugira.
Mostrou machucaduras no corpo indicativas de que
apanhara.
Saindo para o porto soubemos mais: Pixuíra per­
tencia a uma tribo, no sertão distante, que recebera
certo dia a visita de alguns maus sertanistas. Diziam­
se amigos e pediram ajuda para carregar bagagens e
penetrar nas matas, mas depois, quando os nativos qui­
seram regressar, foram impedidos e ameaçados de
morte.
Pixuíra, que fazia parte desse grupo de índios en­
ganados, fora levado a Cuiabá e ficara em poder do
chefe do grupo, enquanto seus companheiros toma­
ram destino diverso. Amarrado, fora depois vendido
aos homens de outra expedição que retomava para
Porto Feliz. Durante a viagem exigiram dele alguns
serviços, mas estavam atentos para que não fugisse.
Além do mais, sabiam que o indiozinho jamais se ar­
riscaria a ficar perdido à margem do rio.
Perova começava a entender o que teria ocorrido e
levantava suspeitas. Então perguntamos a Pixuíra quem
era o chefe do bando que os havia enganado.

38
Ele não sabia explicar, mas apontou para o chapéu
de Perova pendurado num prego da parede e indicou,
na própria face, com o dedo, um sinal, que entende­
mos ser uma cicatriz.
Imediatamente veio-me à lembrança a figura da­
quele mestiço, em minha casa, e cuja sombra se proje­
tara na parede, com seu enorme chapéu e a pena de
avestruz.
Perguntamos a ele sobre outro homem alto, forte, e
se ouvira o nome Juvenal.
Pixuíra abanou a cabeça e indicou ter visto, junto
com o chapeludo, um catatau com faca comprida, cara
de mau.
"Seria Elesbão? E o tio Juvenal?", pensei.
- Tudo isso está cheirando muito mal - disse meu
amigo.
- Amanhã partimos cedo daqui e ele vai também.
Perova saiu para a rua e voltou com um embrulho
que logo abri. Era uma roupa de menina, de chita ver­
melha.
- Para que isso? - perguntei, sem compreender.
- Para vestir e disfarçar a sua "priminha" Pixuíra.
Logo percebi a intenção dele, para a fuga.
Disfarce e despedida

No dia seguinte, partimos montados. Perova em


seu burro, e eu com a "prima" na garupa.
À saída encontramos dois canoeiros carrancudos,
que nos olharam atentos, mas não desconfiaram. Se­
guimos os três pela estrada afora, até chegarmos a ltu.
Uma coisa era muito preocupante. Sabermos que o
Bugre chegara à tribo de Pixuíra sem o tio Juvenal !
Oscar estava com seu plano formado. Retornaria
logo de ltu a Porto Feliz, para depois seguir até Cuiabá,
com a expedição dos russos. E ia levar o indiozinho
de volta.
Eu estava ansioso para ir com eles, mas não podia
deixar mamãe sozinha. Ela precisava de mim, e a cada
dia que passava, muito mais, pois emagrecia a olhos
vistos. Perguntei várias vezes pela sua saúde. Respon­
deu-me que tudo ia muito bem, embora estivesse sem­
pre tomando remédios de ervas.
Finalmente, chegou o dia da partida e os dois, mal
raiara a madrugada, estavam com suas montarias ar­
readas. Perova veio a meu quarto, deu-me um tapa ami­
go nas costas.
- Adeus, Tonico! Vou trazer seu tio de volta!
Pixuíra, já montado, fez-me um aceno de mão. Eles
não tinham coragem para a despedida. Era melhor as­
sim. Partiram até desaparecer na cerração.

40
Passaram-se alguns dias. Os piores, talvez, da mi­
nha vida. O isolamento me fazia infeliz. Ouvia boatos
que provocavam correrias entre a gente, atiçando a fe­
bre de aventuras e ambições: tropeiros vindos do inte­
rior comentavam sobre a descoberta de jazidas de
pedras preciosas. E continuavam outras corridas ao ser­
tão. De Itu, desde o raiar da madrugada até o escure­
cer, dezenas e dezenas de carroças, cavaleiros, gente a
pé, todos se punham em marcha, em busca de novos
Eldorados.
Nunca soube se encontraram muitas riquezas. En­
tretanto, lembro-me bem desses dias, porque passei por
um terrível desgosto. Minhas secretas suspeitas quanto
à saúde de minha mãe se confirmavam. Ela faleceu em
um domingo, ao cair da noite, sem sofrimento, estando
somente eu a seu lado.
Eu estava, então, completamente sozinho.
Um raio de S ol

Muito desconsolado, dias depois, havia sentado


ú sombra da velha figueira da praça, quando vi Nhô
Prudêncio se aproximar. Contei a ele sobre minhas tris­
tezas. Ele me disse:
- V á, amiguinho, bem ligeiro, para Araritaguaba,
quero dizer, Porto Feliz. Por motivo de algum contra­
tempo, a monção do Russo ainda não seguiu.
Mais que depressa, arrumei minhas roupas e parti
solitário para aquela cidade. Porém, ao chegar, muito
esperançoso, grande foi minha decepção. Justamente
naquela manhã a expedição havia partido. O porto es­
tava deserto.
Não me contive e lágrimas me caíram pelas faces.
Por pouco teria conseguido alcançá-los. E o que fazer,
então? Se ao menos houvesse por ali algum canoeiro
que quisesse me levar rio abaixo, talvez os alcançasse.
Mas correria também o risco de não ser aceito no grupo.
Esses pensamentos me deixavam mais amargura­
do. Eu estava realmente só. Sem meu amigo Perova,
sem minha mãe ... Debrucei-me em um muro de pe­
dras, que dava para o rio, fechei os olhos e ali fiquei
largo tempo completamente desanimado. Fui, porém,
acordado, inesperadamente, por uma senhora e sua fi­
lha, muito bem vestidas, que me tocavam amigavel­
mente no braço, perguntando-me:

43
- Que aconteceu, menino, por que tanta tristeza?
Levantei os olhos avermelhados e percebi que elas
sorriam para mim de maneira acolhedora.
- Eu . . . eu ... estou perdido, sozinho no mundo.
- Vamos, pequeno, venha conosco.
Acompanhei-as, quase automaticamente.
Tratava-se da esposa e da filha de Francisco Álva-
res Machado, homem muito importante, médico, que
morava perto do rio.
Elas voltavam da igreja aonde tinham ido rezar para
que a expedição fosse bem-sucedida. Tinham devo­
ção por Nossa Senhora Mãe dos Homens.
Na casa delas fui muito bem tratado. Todos eram
amigos dos viajantes. E muito sentiram por eu não ter

-
A-
alcançado o grupo, no qual o próprio chefe da casa
havia ido, porém só até a cidade mais próxima, para
l�tzer companhia aos viajantes.
Deram-me de comer e aceitei o quarto que me ofe­
receram para repousar. No dia seguinte, voltaria para
I I u, para então resolver sobre meu futuro.
Mal havia me recolhido, entretanto, e ouvi barulho
do lado de fora. Fiquei atento, e percebi que chega­
vam vários cavaleiros à frente da casa.
Ouvi os nomes deles. Eram os senhores Hércules,
R iedel e Adriano. Pouco depois, também, batiam à por­
ta de meu quarto e, muito alegres, as donas da casa me
comumcaram:
- Venha, meu jovem, você está realmente com sor­
te! Aqui temos alguns amigos que pertencem à expe­
dição. Despediram-se hoje de manhã de nós, mas logo
que os barcos fizeram pouso, léguas abaixo, onde te­
rão de permanecer por dois dias, arranjaram cavalos e
vieram por terra nos fazer ainda uma última visita. Já
1:11amos com eles a seu respeito. Vão levá-lo até as
canoas e assim você reencontra seus dois amigos.
Então elas me contaram: haviam rezado pedindo à
santa de sua devoção para que tudo desse certo comi­
go, um menino tão sozinho ! E a santa, que era mila­
grosa, atendera ao pedido. E me disseram, ainda, que
a imagem viera da Europa, muitos anos atrás, e deve­
ria seguir pra Cuiabá. Porém no dia da partida, quan­
do foram carregá-la para o barco, estava tão pesada

45
que não conseguiram tirá-la do chão. Daí ter ficado, para
sempre, naquela igreja!
Não poderia esperar por coisa melhor. Dei graças a
Deus pela inesperada visita e por tudo de bom que me
acontecia.
Segunda Parte
,

D E P O RTO F E L IZ A CUIAB A
Pelo Rio Anhembi abaixo

Foi graças à ajuda daquelas pessoas que consegui


alcançar por terra a expedição, que estava a uma légua
e meia da cidade e era composta de sete embarcações.
Meus amigos, ao me verem, quase não acreditaram.
Ficaram tão alegres que não me davam tempo para ex­
plicar como tudo aconte<fera. Oscar, porém, se entriste­
ceu ao saber da morte de mamãe. Já se considerava um
membro da família.
- Pobre Dona Ana! -murmurava ele, bastante sen­
tido.
Pixuíra, ao me ver, ria sem parar.
Os moços falaram com o chefe da expedição a meu
respeito, dizendo que eu p9-deria servir como menino
de serviço, para arrumar lenha, alimentar o fogo nas
paradas, limpar as caças e executar outros serviços, já
confiados ao indiozinho. Formaria parelha com ele.
Felizmente fui aceito, e indicaram-me o barco cha­
mado Timbó, onde já estavam meus dois companheiros
c que era dirigido por um moço, forte e decidido, que se

tomaria nosso bom amigo, de nome Antonio de Marins.


Atrás deste, vinham os batelões e as canoinhas, com
vários remadores, todos contratados em Porto Feliz.
Grande foi minha emoç ão ao ver a expedição des­
.
cer aquele rio, cujas águas, conforme tio Juvenal tan­
tas vezes me contara, tinham sido a estrada de serta-

49
11istas e bandeirantes, para desbravar e povoar terras
distantes.
Procurei, na medida de minhas forças, ser útil aos
n llnpanheiros, ajudando-os.

Chegamos à embocadura do Rio Piracicaba, quase


l:lo largo quanto o Tietê, onde fizemos pouso. Ali, dis­
seram-me, principiava a sesmaria de Francisco Á lva­
res. Perguntei a um dos moços o que era uma sesmaria
L' ele me explicou:

- É uma grande área de terras brutas, cedida pelo


( iovemo, a pessoas que tÍnhamcoiiillÇões de desbravá­
las e tomá-las produtivas.
Pela manhã, bem cedo, comemos farinha de milho
com rapadura. À s dez horas, almoçamos feijão com
toicinho e farinha. Esses alimentos seriam a base de
11osso sustento por quase toda a viagem.

Pro eza de Pixuíra

Ü indiozinho foi autor de uma faça11ha que cau­


sou admiração. Perova, como encarregado de abaste­
cer a todos com carne fresca, em um pouso sondou os
rastros de uma anta, que p�rseguiu e nela atirou, acer­
tando no alvo. O animal, entretanto, muito ferido, ati­
rou-se à água, na qual desapareceu. Não havíamos ain-

51
da nos recuperado do susto, quando, antes que pudés­
semos impedir, Pixuíra mergulhou na corrente escura.
Ficamos todos apreensivos e gritamos ao indiozi­
nho para que voltasse, pois havia grande perigo.
Decorreu algum tempo sem ele aparecer. Finalmen­
te sua cabeça surgiu à tona d'água, alguns metros dis­
tante. Tornamos a gritar, aflitos, mas o pequeno tor­
nou a mergulhar. Perova rapidamente tirou a roupa, e
já ia se atirar à água para socorrê-lo, quando vimos
um ponto escuro aparecer fora d'água. Mas, dessa vez,
o esperto pequeno mantinha suspensa a anta abatida
por Perova.
Atiramos a ele uma corda e a caça foi trazida.
To � �s cumprimentaram o indiozinho pela façanha,
mas Perova o repreendeu. Passara por sério perigo.
Comemos, nesse dia, churrasco de carne de anta. E
a partir daí cooperávamos nas tarefas de caça e pesca,
essenciais à alimentação de tantos remadores. Jacutin­
gas, patos do mato, socós-boi e outras aves serviam
de bons petiscos, assim como os pequenos dourados e
jaús que pescávamos. Pixuíra ainda nos ensinou a en­
contrar, nas margens dos rios, ovos de tartaruga enter­
rados na areia.

53
A expe dição do russo

Todos os dias eu procurava conversa com aque­


les moços, muito simpáticos, que haviam concordado
com minha presença na viagem. O chefe era um tal de
Langsdorff, um nome que ninguém conseguia pronun­
ciar. Por isso a expedição ficou sendo, pra nós, a Ex­
pedição do Russo.
Um dos mais simpáticos do grupo era o Sr. Hércu­
les. Ele anotava num caderno todos os acontecidos, e
me explicava sobre os costumes dos índios, a floresta,
------ ---·------- -

os bichos e, ainda, sobre os homens das cidades gran-


des, lugares que bem conhecia. Com ele aprendi mui­
tas coisas; Além de que, ao vê-lo escrever, surgiu-me
a idéia de um dia contar minhas próprias aventuras e
formar um livro. Assim, outras pessoas iriam saber
como tudo acontecera.
Também fiz boa amizade com um jovem do grupo,
chamado Adriano, que fazia umas pinturas coloridas e
bonitas. Desenhava árvores muito bem. E animais. Pre­
feria retratar tamanduás, antas, lobos guarás, tatus,
catetos, pois dizia serem bichos desconhecidos em seu
país distante.
Quando alcançamos a embocadura do Rio Quilom­
bo e a ilha do mesmo nome, fiquei sabendo que qui­
lombo é o lugar onde os negros fugidos se reúnem.

54
Contaram-me ainda que, naquele lugar, haviam se es­
condido, em outros tempos, muitos escravos vindos
das fazendas.
No pouso seguinte, Perova, Pixuíra e eu fomos
fazer tocaia num barreiro próximo. Barreiro é um lu­
gar de terra salgada onde bichos de pêlo vêm lamber
o chão.
Conseguimos, ali, abater duas capivaras, que fo­
ram carregadas para as canoas. Todos comeram car­
ne assada, com apetite e, a que sobrou, foi moquea-
. -------

da, isto é, ligeiramente exposta ao calor do fogo e à


fumaça, para ficar em condições de ser conservada,
sem estragar.
Alcançamos depois o imponente Salto do Avanhan­
dava. Nesse ponto, as canoas precisaram ser retiradas
do rio e arrastadas por terra, deslizando sobre toras
arredondadas, pelo chamado varadouro, trabalho esse
dos mais difíceis e demorados. Presenciamos ali um
espetáculo inesquecível. Que maravilha ver aquelas
águas, com mais de 300 braças3 de largura, despen­
cando para baixo e erguendo para o espaço uma nu­
vem de vapor!
Nós três ficamos admirando a enorme massa líqui­
da, com os rostos úmidos e sem dizer palavra, pois,
com o barulho, não era possível sermos ouvidos.

3 Cada braça mede 2,2 metros.

55
Históri a arrepi ante

Rosseguindo viagem, chegamos a um lugar onde


nos contaram que um curioso fato acabava de se pas­
sar. Na cabana em que estávamos, construída sobre
pedras enormes, certa monção, seguindo para Cuiabá,
encontrara uma mulher preta, que ali vivia solitária.
Assustada, ela quis fugir, mas logo a seguraram. Per­
guntaram à mulher corno conseguia sobreviver sozi­
nha naquele ermo. Ela contou que tinha sido escrava
em uma fazenda, da qual fugira, com seu marido, para
aquele lugar.
Ali viveram, os dois, por muitos anos, completa­
mente sós, alimentando-se só de peixes e frutos sil­
vestres; raramente viam seres humanos. Um dia, ain­
da para maior desgraça, seu marido morrera afogado.
E ela continuara a viver por ali, como um bicho em
seu abrigo.
Ficamos comovidos ao ouvir aquela história e
Perova sugeriu ao senhor Hércules que a levássemos
para outro local, pois ali poderia ela morrer à míngua.
Mas não foi fácil convencê-la. A mulher não confia­
va em estranhos. Estava como gato no seu borralho e
temia ir embora. Então a conduzimos até o próximo po­
voado, léguas abaixo, onde os moradores a receberam.
Fiquei longo tempo pensando na história do pobre
casal solitário, tantos anos ali, escondido, à margem

56
da cachoeira, longe de outros seres viventes. Como
puderam suportar o isolamento e sobreviver?
Daquele di� em diante, dei mais valor ao nosso con­
vívio amigável, com os companheiros da expedição,
sempre alegres e entusiasmados, embora não fosse fá­
cil o nosso dia-a-dia de viagem sob a soalheira e as
chuvas torrenciais.

O te s ouro perdido

Âcançamos o Rio Paraná e, depois, entramos pelo


Rio Pardo, em cujas margens divisávamos belas paisa­
gens. O indiozinho, que rapidamente aprendia a se co­
municar comigo, em cada pouso enveredava pela mata
ciliar e conseguia nos trazer picuás cheios de frutos sil­
vestres, que todos comíamos com satisfação: araticuns,
cajus, gabirobas etc.
Mais alguns dias e chegamos ao Salto do Cajuru.
Pensei que ali as canoas precisassem ser desviadas para
os varadouros, como se dera no Avanhandava. Mas
isso não aconteceu. Foram amarradas a grandes ca­
bos, e todos nós ajudamos a puxar. Assim consegui-

57
mos, depois de grande esforço, que elas subissem para
o outro patamar.
Atingimos as cachoeiras denominadas Três Irmãos.
Nesse lugar as águas agitadas penetravam entre as ro­
chas, espumando e fazendo grande barulho.
Um dos remadores me contou: na época da desco­
berta das ricas minas cuiabanas que atraíam milhares
de aventureiros, uma canoa desaparecera no abismo
daquelas águas. Não era uma embarcação qualquer:
estava retomando das minas e carregada com 80 arrobas
de ouro em barras, metidas em caixotes. Ao se aproxi­
mar do salto, a canoa virou por inabilidade do piloto.
Muitos aventureiros, sabendo do desastre, vieram
à procura daquele tesouro anos e anos seguidos. Mer­
gulharam e escavaram as margens, porém inutilmen­
te. Alguns até desapareceram, arrastados pela violen­
ta correnteza.

O preto Anastácio

Poucos dias depois estávamos e m Camapuã, onde


chegamos por terra, com as canoas carregadas em car­
ros de bois.
Era impressionante a viagem que íamos fazendo. O
senhor Hércules, que bem conhecia tudo, explicava aos

58
seus companheiros: de Porto Feliz a Cuiabá eram 530
léguas4, as quais deviam ser vencidas pelos rios Tiête,
Paraná, Pardo, Taquari, Paraguai, São Lourenço e
Cuiabá. Em toda essa extensão somente duas léguas
eram de varadouros, isto é, de desvios por terra.
No lugarejo conseguimos víveres em quantidade.
Dali, seguimos viagem até o Rio Taquari, onde trans­
pusemos a última cachoeira, denominada Beliago. O
acontecimento foi alegremente comemorado com sal­
vas de tiros, pela vitória sobre aquele último obstáculo.
Também nesse dia cruzamos com uma pequena ex­
pedição, que descia para Piratininga. Conversamos
com os garimpeiros. Perova procurava conhecer me­
lhor sobre o nosso roteiro, para quando deixássemos a
Expedição do Russo. Ao mais velho do grupo inquiriu
sobre os Martírios.
- Muitas expedições têm procurado aquelas minas. A
Companhia de Mineração de Cuiabá havia chegado ao
Araés, para tentar restaurar as antigas lavras do arraial de
Amaro Leite Moreira. Naquela ocasião, andaram à pro-

4 Cada légua corresponde a 6.600 metros.

59
cura de certo mapa desaparecido, contendo a rota para os
Martírios e que pertencera a um antigo bandeirante.
Ao ouvir aquelas palavras, lembrei-me do que nos
contara Nhô Prudêncio, em Itu.
- E encontram o roteiro? - perguntou Perova.
- Não - explicou o v �ajante. - Dizem estar com um
.
tal Anastácio, que o conseguTti ninguém sabe como . . .
E nem s e é verdadeiro. Eu também duvido . .. H á mui­
tas fantasias sobre a serra do ouro.
Ficamos, naquela noite, pensativos naquelas pala­
vras do viajante, que pouco esclareciam, mas que, de
certa maneira, confirmavam a existência do roteiro do
Pai-Pirá. Por essa altura da viagem íamos ter pela frente
os índios Guaicuru, muito temidos por serem hostis
aos brancos. Montados nas ancas de seus cavalos, cos­
tumavam atacar os viaj antes e fazer escravos aos que
conseguiam ap risionar, quando não os matavam. Mui­
tas monções haviam sido suas vítimas.
Ao saber disso, enchi-me de grande medo, mas
Perova, como acontecia sempre nos momentos difí­
ceis, soube me encorajar dizendo que havíamos de
enfrentar e vencer as dificuldades, sem precisarmos
ferir nem matar os índios, os quais, como sempre re­
petia, apenas tentavam se defender das maldades de
muitos aventureiros.
Enquanto avançávamos, íamos sentindo, cada vez
mais, a presença dos Guaicuru. Também a existência
de cardumes de piranhas, no rio, era para nós ameaça

60
constante. Tendo caçado um macaco, Perova o atirou
às águas, preso por uma corda. Quando o puxou, qua­
tro daqueles peixes vorazes vieram grudados ao ani­
mal. Assim, a cada vez que repetia o gesto, lá vinham
elas, grudadas. Em pouco tempo tínhamos j á uma boa
fileira, pescada. Pobre de quem tivesse a infelicidade
de cair n'água, com peixes tão famintos à espera!
Aos poucos nos aproximamos do Rio Paraguai, que
alcançamos cerca de seis dias depois. O Rio Paraguai
é muito largo e tem cerca de seiscentas léguas navegá­
veis, mas não possui cachoeiras nem corredeiras.
Temendo, a qualquer momento, algum ataque dos
Guaicuru, os chefes da expedição distribuíram espin­
gardas. Perova recusou. Já tinha a sua de caçador e
não iria atirar contra os índios.
Durante a noite, as sentinelas ficaram atentas, para
evitar qualquer surpresa. Foram momentos de apreen­
são, em que todos procuravam devassar a escuridão,
temendo que a qualquer momento surgissem, do meio
das folhas, os atacantes munidos de arcos e flechas.
Depois de vários dias de expectativa e angústia,
em que lutamos contra chuvas, nuvens de mosquitos e
enchentes alagando as margens por quilômetros e
quilômetros, chegamos finalmente à região de uma tri­
bo de índios Guató, estes porém, muito dóceis.
Em princípios do novo ano, entramos no Rio
Cuiabá, deixando o São Lourenço à direita. Então nos­
sos amigos Riedel e Taunay, que haviam seguido na

61
frente, vieram ao nosso encontro em sua canoa e, jun­
tos, atingimos o porto.
Estava terminada nossa viagem em companhia da
Expedição do Russo, a qual pretendia alcançar o Ama­
zonas. Em Cuiabá ficaram alguns remadores de Porto
Feliz, entre eles o jovem muito simpático de nome An­
tonio de Marins. Disse-nos que pretendia, em Mato
Grosso, dedicar-se à atividade boiadeira e dali condu­
zir gado para cidades do interior de São Paulo, talvez
para a serra de Botucatu.
Os expedicionários queriam que continuássemos
com eles, mas tínhamos outros objetivos. Despedimo­
nos daquelas pessoas tão amigas. Iríamos sentir sau­
dades de todos. E desejamos a eles sucesso na longa e
perigosa viagem até o rio dito por toda gente o maior
do mundo. Solitários, sem conhecer ninguém, segui­
mos, os três, pelas ruas da cidade.
Terceira Parte
" . . . o certo é entrar desde Cuiabá, procu­
rando levar rumo entre norte e poente . . . "

João Leme do Prado

"Passado o rio, andaram meia légua, que­


brando um pouco à esquerda, e esbarraram
logo com os sinais da povoação dos A raés, na
qual encontraram diversos vestígios, como
fossem paus lavrados, telhas, panelas etc. "

General Couto de Magalhães

"Os Araés e Martírios sempre estiveram


associados na tradição, localizados próximos
um do outro. Nunca foi possível separá-los. "

Manuel Rodrigues Ferreira


'

A procura de pi stas

Nossos primeiros dias em Cuiabá foram muito mo­


vimentados e logo ficamos sabendo que a expedição de
tio Juvenal partira dali tempos antes, para a selva, na
região do Rio da Casca, com mateiros aliciados na ci­
dade. Terrível, também, para nós, foi a informação de
um garimpeiro: o Bugre-do-Chapéu-de-Anta e Elesbão,
na volta, não estavam na companhia de meu tio.
Perova se lembrou, mais uma vez, do mapa e teve a
desconfiança de que o Bugre, tendo ido aos sertões, de
lá regressara à cidade, provavelmente por não ter en­
contrado o caminho e, assim, estaria à procura do rotei­
ro bandeirante.
Pixuíra, então, nos indicou a rua estreita e esburacada
que conduzia ao porto. Nela ficava a casa onde estivera
preso, por vários dias, até dali ser conduzido pelo grupo
de seus algozes até Porto Feliz, onde o encontramos.
O indiozinho, que durante toda nossa viagem se
mostrara alegre e bem disposto, ao avistar aqueles lu­
gares se sentia inseguro e temeroso de novo encontro
com o Bugre-do-Chapéu-de-Anta, de quem guardava
as piores lembranças.
A casa que nos mostrou, naquela rua, possuía duas
j anelas escuras e, do lado, uma porta estreita. Nos fim­
dos, em um quintal, dois cavalos soltos. Mas não vimos
pessoas por ali.

66
Perova franziu a testa, como quem tem uma idéia,
mas nada nos disse. Continuamos até o fim da rua,
onde perguntamos a um transeunte sobre alguma hos­
pedaria. Ele nos indicou um velho casarão, de frente a
uma praça arborizada, e para lá nos dirigimos. Ali con­
seguimos acomodação.

Picareta faz nascer a cidade


'

A noite, conversávamos com alguns homens do


lugar. Contaram-nos fatos interessantes sobre a fim­
dação de Cuiabá.
Em princípios do século XIX, um bandeirante
paulista havia chegado, com a sua Bandeira, até o Rio
Coxipó, onde pretendia aprisionar índios. Um trabalha­
dor ergueu sua picareta e começou a cavar. De repente
encontrou ouro. A notícia endoideceu a população, e
todo mundo se pôs a garimpar. Muitos nem dispunham
de instrumentos para mineração, mas fabricavam, às
pressas, rústicas pás e almocafres de madeira para fu­
rar o chão. E iam sendo recompensados, pois o ouro
surgira por toda parte.
Naquele pouso da Bandeira foi erguido um aldea­
mento. Nascia Cuiabá, e o bandeirante Pascoal Moreira

67
Cabral fora escolhido para "guarda-mor da vila", que
cresceu rapidamente, até se tomar uma cidade.

Encontro com o Bugre

No dia seguinte, ao escurecer, saímos os três e


nos encaminhamos para a rua onde ficava a casa soli­
tária, que víramos antes.
- Preciso entrar lá - disse Perova.
- Tome cuidado !
Fiquei escondido na esquina. Pixuíra, do outro lado.
Não havia uma só pessoa por ali. Pé ante pé, nosso
companheiro se dirigiu ao lugar indicado pelo indio­
zinho. Saltou uma cerca e penetrou no quintal em que
tínhamos visto os cavalos.
Passou-se algum tempo e, de repente, percebi que
dois vultos vinham em minha direção. Escondi-me
atrás de um muro em ruínas.
Dois homens passaram bem rente a mim, falando
em voz baixa. Apurei os ouvidos, mas não consegui
entender o que diziam.
Logo que se distanciaram, conforme combinado,
dei aviso por assobios. E logo ouvi resposta de Pixuíra.
Em silêncio eu esperava. Sentia o vento frio da noi­
te, mas nada acontecia. Nem Perova dava sinal de vida.

óH
E sem ele eu estava perdido ali no escuro. Rastejando
ao lado da cerca, avancei para o lado em que ficara o
indiozinho. Quando partíamos rua abaixo, ouvimos um
assobio e Perova veio ao nosso encontro pelo lado
oposto.
- Corram - falou ele.
Saímos ligeiro até encontrar um terreno baldio.
Dali, rumamos pela rua esburacada até uma praça com
árvores. Oscar nos explicou que, após ouvir nossos
assobios, se escondera e vira dois vultos passando. Re­
conhecera o Bugre e Elesbão.
- Então eram eles? - perguntei, ansioso.
- Tenho certeza . . .
- E s ó o s dois?
- Sim. E também está claro que seu tio Juvenal não
está por aqui.
A conclusão de Perova parecia acertada, para meu
desconsolo.
Baixei a cabeça, muito triste.
- Penso que nunca mais vou ver meu tio - murmurei.
- Tenha calma, menino. Quando entrei sorrateiro
naquela casa encontrei isto . . .
Apalpei n o escuro o objeto que Perova me entre­
gava e então tive outro pressentimento. Era a guampa
de chifre, incrustada de prata, que meu pai usara du­
rante tantos anos e que eu dera a tio Juvenal, no dia de
sua despedida.
- Eles então o mataram - murmurei, complctamcnlc
revoltado.

69
- Vamos pensar de maneira positiva!
- Ele é homem astuto que sabe se defender. Aposto
que está vivo. Ouvi o que diziam. Estão à procura do
Anastácio para se apoderarem do roteiro de Vilares,
que indica o caminho para o Araés.
- E que vamos fazer?
- Tenho um plano para amanhã. . .
Dois cavaleiro s em fuga

A manhã não havia raiado ainda, quando ouvi­


mos gritos na rua, em frente à casa onde estávamos
hospedados. Perova correu para a janela.
Transeuntes corriam pelas ruas e gritavam qualquer
coisa que não conseguíamos compreender. Num ins­
tante estávamos embaixo.
- Que acontece? - gritou Perova, agarrando a pri-
meua pessoa que passava.
- Bandidos mataram o tio Anastácio !
-"
Corremos para a ruazinha estreita e esburacada e
paramos na frente de um casinhola miserável, onde
pessoas entravam e saíam apressadamente. Algumas
com chapéus nas mãos, respeitando o morto, conver­
savam em voz abafada.
- Miseráveis ! O que queriam deste pobre homem?
- Mal tinha o que comer!
- Cretinos, sem coração !
- Vivia aqui há quase cem anos !
- Dizem que, em moço, andou pelo sertão ! E co-
nhecia minas de ouro!
- Sim, e possuía um roteiro para os Araés - acres­
centou outro.
- Por isso o mataram?
- Talvez.

71
- Nesse mapa tinha o caminho de Martírios!
Um velho de longas barbas, ao escutar, resmungou:
- Malditas minas ao pé da serra. Dizem que uns
índios bravos, os Guariba, guardam por lá. Quem ten­
tar ir além dos Araés é morto por eles! Tomara que o
Bugre seja castigado!
O companheiro, magro, de voz rouca, murmurou
algumas palavras que ninguém entendeu, mas se ben­
zeu duas vezes.
Saímos dali a um gesto de Perova e, à medida que
nos afastávamos, ele ia aumentando o passo. Em pou­
co tempo, só podíamos acompanhá-lo correndo.
- Ei, Perova, onde você vai?
- Temos que alcançar aqueles assassinos!
Estava convencido de que o Bugre matara o pobre
Anastácio.
A manhã já despontara de todo e um lindo sol en­
trava pela rua buraquenta, iluminando as paredes de
adobe dos velhos casarões da cidade. Nas esquinas,
revoltados, grupos de pessoas continuavam a comen­
tar sobre o triste acontecimento.
Logo alcançamos a rua da casa solitária.
Perova entrou pelo portão e, por um corredor late­
ral, chegou ao quintal. Tudo estava em silêncio. A co­
cheira aberta, mas nenhum cavalo ali dentro. Voltou e
bateu à porta, repetidamente, porém ninguém atendeu.
Deu um forte golpe de ombros ao encontro da folha da
porta, pondo-a abaixo. A sala da frente estava deserta.
- Bandidos! Fugiram! - murmurou ele, desolado.

72
A aldeia abandonada

Após a fuga do Bugre-do-Chapéu-de-Anta e de


Elesbão, Perova demonstrava desânimo. Passou um
dia sem falar. À noite se levantava, andava de um lado
para outro e resmungava coisas incompreensíveis.
Depois perguntou a Pixuíra.
- Você é capaz de nos levar até sua tribo?
O indiozinho ficou indeciso.
- Tem muitos rios pra chegar lá, um cruza no outro
até o que se chama Rio da Casca. Não sei. Também
andei por trilhas da mata . . .
Perova não se entregava e à tarde veio nos dizer
que encontrara um guia que podia nos conduzir até
onde principiava a antiga picada para os Araés. Então,
com muita dificuldade, conseguimos arranjar um con­
dutor e alguns cavalos e partimos.
Foram muitos dias de penosa caminhada até che­
garmos ao início da trilha, aberta pela Companhia
Mineradora através da floresta. Naquele ponto o
mateiro se despediu, voltando com os animais. Dali
deveríamos seguir sozinhos.
Em muitos momentos, Pixuíra parecia indeciso
quanto ao rumo a seguir. Pernoitávamos, muitas ve­
zes, amarrados em forquilhas de árvores, temerosos
do ataque de onças.
Chegamos dias depois a um rio largo, e então o

73
indiozinho se mostrou mais alegre, pois aquele parece­
ra ser o Rio da Casca, que conduzia até sua tribo.
Então improvisamos, com alguns troncos, uma peque­
na jangada amarrada com cipós e embiras, e seguimos
a corrente.
Logo em seguida, levamos um grande susto. Com a
água pelo peito, quando manobrávamos a j angada, pe­
guei no que parecia um tronco de árvore, mas senti que
aquilo era mole e se mexia. Dei um salto quando Pixuíra
gritou:
- Salta pra fora!
Meio engatinhando ganhei o barranco e vi, então,
que a água se agitava em ondas e o tronco desaparecia.
- Era uma sucuri! - disse Perova, apavorado.
Pixuíra se matinha mais calmo.
- A cobrona só deslizava por aí. .. Não estava pron­
ta para atacar.
- Pelo sim ou pelo não, fiquemos longe dela! -
exclamei, ainda sem fôlego.
A j angada escorregava sobre as águas, e Pixuíra
começava a reconhecer alguns lugares, o que nos tra­
zia esperanças.
Duros foram aqueles dias. Nossas provisões se aca­
baram e temíamos adentrar na mata para caçar. Por
isso comíamos só frutas e palmitos. Precisávamos de
muita coragem, pois à noite ouvíamos bem perto o urro
de onças a nos espreitarem e de dia tínhamos de fugir
dos jacarés famintos.

74
Finalmente alcançamos uma planície de vegetação
rala. Pixuíra nos informou que o aldeamento da sua
gente ficava atrás de um morro, ainda distante. Um
novo alento tomou conta de nós. E passamos a mane­
jar os varejões com entusiasmo até uma pequena praia,
de areia muito branca. Ali amarramos a jangada, mas
o indiozinho, ao examinar os arredores, demonstrou
muito desapontamento, pois não via nenhum sinal de
moradores. Ele gritou palavras em sua língua, porém
não ouviu resposta.
Nós o acompanhávamos e não muito longe vimos
algumas choças, que a vegetação já encobria. Esta­
vam abandonadas. Pixuíra se encheu de grande triste­
za. Que teria acontecido?
Perova fez um sinal e apontou para a cobertura de
folhas de palmeiras de uma das choças, onde aparecia
a cabeça de um índio a nos espreitar. O pequeno, pé
ante pé, avançou na direção da tapera. E logo o ouvi­
mos falar na sua língua. Pixuíra nos chamou. O outro,
de nome Tapuí, nos olhava com espanto, examinan­
do-nos com curiosidade, mas não parecia agressivo. E
nos inteiramos dos acontecidos: a tribo abandonara
aquele lugar depois da passagem, por ali, do Bugre e
seus homens, quando haviam enganado alguns e leva­
do embora o próprio Pixuíra. Temiam novas desgra­
ças acaso o Bugre voltasse.
Tapuí e um companheirq permaneceram ali, por de­
sentendimentos com o cacique, e continuavam cuidan­
do das roças e morando na velha taba.

75
Desavenças

Permanecemos descansando depois daqueles du­


ros dias de caminhada através da selva. Tapuí e seu
companheiro, meio desconfiados, dividiam conosco
os alimentos que conseguiam: frutas do mato e algum
peixe.
Nossa intenção era que Pixuíra arrancasse deles
mais algumas informações, especialmente sobre o tio
Juvenal.
Felizmente ele conseguiu saber que tio Juvenal, o
Bugre e Elesbão haviam chegado, com seus mateiros,
a uma tribo vizinha, onde foram bem recebidos. É que
aquela tribo já havia mantido relações com povos ci­
vilizados, anteriormente. Tudo corria muito bem, até
certo dia em que o Bugre notou as índias enfeitadas
com palhetas de ouro nos braços e pescoço.
Empolgado, ele imaginara estar finalmente próxi­
mo das minas com que sonhara. Começou por tentar
cativar os nativos com miçangas, pentes, canivetes,
objetos que despertavam neles a curiosidade. Toda­
via, apesar de tudo, ninguém apontava o caminho das
minas. Então o Bugre e Elesbão passaram à violência,
surrando-os.
Tio Juvenal, que estava com eles, não concordou
com a brutalidade e entrara em luta corporal com o
Bugre, da qual saíra ferido por golpes de punhal. De-

77
pois, o bandido se apoderara de alimentos da tribo e
ganhara o rio, indo então à tribo de Pixuíra. Ali, após
enganar o cacique, prometendo a ele uma recompensa
pela ajuda de remadores, conseguira levar alguns de­
les embora, inclusive o próprio indiozinho.
O que havia acontecido depois disso nós já sabía­
mos. E assim, também, ficava explicado como Pixuíra
conhecera o Bugre e seus companheiros, sem, no en­
tanto, nunca ter visto o tio Juvenal. Também ficamos
sabendo que os índios da tribo vizinha de Pixuíra tra­
taram bem de meu tio até ele se curar dos ferimentos.
Depois, o pobre índio, que ele procurara salvar das
mãos do Bugre, tornara-se seu companheiro insepará­
vel, em reconhecimento, e o levara dali.
Ao ouvir aquelas explicações, colhidas por Pixuíra,
uma nova esperança nasceu em nós: se tio Juvenal ha­
via escapado das mãos do Bugre, era provável que ti­
vesse ido à procura de Martírios.
Resolvemos então prosseguir, e os dois índios fo­
ram conosco.
Arraial em ruinas

Nem me lembro mais de quantos dias levamos


naquela penosa caminhada pela mata cheia de cipós,
espinheiros e mil outros obstáculos. Felizmente Pixuí­
ra, que se sentia à vontade, procurava nos poupar dos
maiores perigos. Em certa ocasião, à margem de um
riacho, ao me abaixar para beber água, o indiozinho
deu um salto e, num instante, agarrou-me com violên­
cia e arrastou-me para trás. Soltei um grito de espanto
e num pulo fiquei a uma braça de uma enorme cobra,
pronta a me dar seu bote mortal.
Ficamos ali paralisados, temerosos e quietos para
não assustar o réptil, que um dos índios quis abater
com um pau, mas foi impedido por Perova.
- Deixe o bicho viver! - disse ele. - Se não o agre­
dir, nada nos fará de mal.. .
Quase todos os dias, passávamos por outros sustos
e inquietações. À noite, mal dormíamos, temendo a
aproximação de feras e picadas de aranhas carangue­
jeiras, que vinham se aninhar em nossa tenda.
Finalmente, alcançamos a picada que havia sido
aberta pela Companhia de Mineração de Cuiabá, mui­
tos anos antes, em direção ao Araés. Mas as dificulda­
des não eram menores: a mata invadia a velha trilha,
anulando-a e quase impedindo a passagem.
Certa manhã, depois de muitos dias de caminhada,
ao despertar, tivemos uma grande decepção. Os dois

79
índios que nos acompanhavam e nos ajudavam a conduzir
alguns apetrechos haviam desaparecido.
Pixuíra não se abalou. Ele já desconfiara de que
não iriam mesmo muito para a frente.
- Por quê? - perguntamos nós.
- Estão com medo dos índios Guariba, que habi-
tam o território próximo de Martírios. São ferozes e
matam quem se aventurar por lá. Ouvi quando os dois
cochichavam, apavorados, principalmente quando
ouviram gritos distantes, semelhantes ao dos macacos
guaribas, também chamados de bugios.
Naquele dia ficamos desencorajados, já sem for­
ças para carregar as poucas provisões e incertos da
distância a ser percorrida.

80
Perova já não parecia o mesmo; tomara-se nervoso,
irritado, com enormes barbas pretas a lhe desfigurarem
a aparência.
- Ainda bem que os fujões não levaram as armas !
Depois, para nos animar, cuspiu de lado, tomou a
carga maior, atirou às costas e reencetou a caminhada.
Não gosto de me lembrar dos duros dias que se se­
guiram, quando as forças já nos abandonavam. Sem
ânimo para caçar, andávamos apenas algumas horas,
diariamente, só pela manhã e à tarde, pois, por volta do
meio-dia o calor e a umidade se tomavam insuportá­
veis. Eu estava prestes a gritar: "Deixem-me aqui, pre­
firo morrer a continuar andando sem rumo! ".
Em certa manhã, quando o sol ainda não desponta­
ra de todo, chegamos a uma colina de vegetação rala e
avistamos um chapadão.
Oscar atirou a carga ao solo, subiu em uma árvore
e espiou à distância.
- Corram aqui - gritou com a voz emocionada. -
Venham ver. . .
Mal tive forças para correr e caí derreado. Quando
abri os olhos, Pixuíra e Perova estavam a meu lado e
comentavam satisfeitos:
- Coragem, Tonico, avistamos o arraial!
Levantei-me com dificuldade e prosseguimos.
Finalmente tivemos momentos de emoção, ao che-
gar àquele lugar após quase perdida a esperança.
Por toda parte o mato invadia o antigo arranchamcnto
de garimpeiros. Ruínas de casebres de pau-a-pique, pa-

81
redes de madeiras podres, entulhos atravancando as pas­
sagens.
Encontramos uma enorme pedra, certamente colo­
cada ali pelo esforço de muitos homens, ao lado de
um tronco de árvore a amparar os braços de uma cruz.
Ao redor, guanxumas e flores silvestres. Perova afas­
tou uns ramos de arbustos e leu, na laje musgosa:

Amaro Leite Mareira

O nome, naquele momento, nada me dizia. Mais


tarde, porém, ao estudar a história daquela região, ava­
liei a importância do encontro. Um sertanista que fora
à procura dos Martírios, julgando ser aquele o lugar
do ouro, que de fato ali encontrou, resolveu construir,
próximo ao ribeirão Santo Antonio, um arraial que to­
mou o seu nome, acrescido da palavra Araés. O lugar
se ligava à cidade de Cuiabá por uma única picada de
muitas léguas, aberta na selva bruta.
O povoado, com muitas dezenas de aventureiros,
em pouco tempo crescera. Era intensa a faina para en­
contrar o ouro, porém difícil a chegada de abasteci­
mentos pela única trilha de ligação. E, com o passar
dos tempos, as pepitas começaram a rarear. Só eram
encontradas com grande sacrifício. Por outro lado, a
enorme distância e o isolamento tomavam tudo difícil
no arraial.

82
Na sede da Capitania já desconfiavam: seria mesmo
aquele o verdadeiro Araés, tão procurado?
Gente nova não vinha para ali, e os velhos, desa­
nimados, ou abandonavam o lugar ou morriam ali à
mmgua.
Principiou, então, o grande drama dos garimpei­
ros. Seus alviões e almocafres, instrumentos com que
mineravam, foram se consumindo com o uso constan­
te. Precisavam de outros novos, que nunca chegaram.
Por último, só podiam esbugalhar a terra com pedaços
de paus, sangrando as mãos. E, o pior de tudo: não
tinham para quem vender o pouco ouro recolhido.
Pediram socorro à Capitania de Goiás, mas os go­
vernantes não os ajudaram. No caminho, entre os rios
das Mortes e Araguaia, formara-se um terrível quilom­
bo, que representava sério perigo para os que por ali
passassem.
O governador da Capitania de Mato Grosso em cer­
ta época, compadecido da sorte dos pobres moradores,
enviou um grupo de socorro que, sem conseguir encon­
trar o arraial sepultado na selva, desistiu da busca.
Faltando ajuda e sem ter como ir embora, tenta­
vam sobreviver à espera de algum milagre. Depois veio
o golpe maior: Amaro Leite Moreira, o guia que os
trouxera até ali, faleceu e os últimos habitantes, como
fantasmas, cambaleavam pelos trilhos, morrendo de
fome e doenças ou atacados pelas feras.
Nesse lugar, de tantas desgraças, pisamos naquele dia.

83
Estranha aparição

Por toda parte víamos, com tristeza, as ruínas do


aldeamento e caminhamos até a casa maior, sobres­
saindo em meio a tanta desolação.
Ouvíamos o ruído de nossos passos, ao quebrar os
galhos secos no chão. Nem uma voz humana, apenas
alguns pios de aves assustadas com a nossa presença.
Nos batentes, que antes sustentavam portas e janelas,
arbustos se infiltravam, confundindo-se com as pare­
des. Bananeiras cresciam em touceiras e a água jorra­
va, inutilmente, pelos antigos bicames, lavadouros de
cascalho. Nem um barulho de criança. Nem um grito
de mulher. A capelinha estava desmoronando e o sino,
caído, com o badalo mergulhado na terra.
"
A casa maior, de barro e pau-a-pique, resistira. Nos
dirigimos até lá.
- Deve ser aqui onde morou o fundador do povoa­
do - disse Perova.
Atentos, íamos examinando tudo, temerosos de que,
em meio às ruínas, surgisse algum imprevisto.
E foi o que de fato aconteceu: subitamente ouvi­
mos um tiro. Perova nos empurrou para trás de uma
parede onde, trêmulos e amedrontados, procuramos
saber o que de estranho acontecia.
Perova se adiantou, rastejando entre os arbustos,
até um ponto mais alto em que poderia ver melhor o
lugar de onde viera o estouro. Ele nos fez um sinal.
Corremos para lá e ficamos ali os três, atentos, com o
receio de sermos agredidos.
Percebemos que surgia, por detrás dos batentes car­
comidos, um homem com longas barbas e compridos
cabelos em desalinho, avançando em nossa direção.
Saímos à procura de novo abrigo e então Perova
gritou:
- Não atire! A gente é de paz!
Fez-se silêncio. O estranho continuava a caminhar,
com a arma apontada em nossa direção. Tinha a face
quase encoberta pela barba.
- Pare, homem. Ninguém aqui quer lhe fazer mal!
Logo o estranho estava bem à nossa frente. Perova
afastou-se com ligeireza e, sorrateiro, indo por trás,
atracou-se com ele inesperadamente, derrubando-o.
Então tive uma das mais fortes emoções de minha vida.
Com espanto, reconhecia que aquela pessoa, vestida
com trapos imundos e desfigurada pela magreza, não
era outro senão meu tio Juvenal!
Em estado deplorável, levantou-se, os olhos esbu-

86
galhados, mas não nos reconheceu. Repetimos seu nome
e ele ficou indiferente. Depois, sentou-se sobre um
tronco caído e murmurava palavras ininteligíveis, apoi­
ando o rosto nas mãos. Dali o conduzimos para a casa
de onde saíra; ali acomodou-se em um canto.
Demos a ele algo para comer, o que aceitou com
apetite voraz.
- Tio Juvenal, eu sou o Tonico ! Você não se lembra
de mamãe, Don'Ana? E deste nosso amigo, Perova?
Ele continuava indiferente. E, ao vê-lo em tal esta­
do, fiquei profundamente amargurado.
Pixuíra, sem compreender a razão de minha triste­
za, afastou-se e foi percorrer a aldeia abandonada, che­
gando até as margens de um riacho próximo. Ia à pro­
cura do índio de sua aldeia, que viera com meu tio
Juvenal. Onde estaria ele?
Naquela noite, apesar do cansaço, depois de tantos
dias de viagem e sofrimento, mal consegui dormir na
cama improvisada de capim e ramos, naquela casa onde
habitava meu tio, cujo estado muito nos preocupava.
Depois de tantas lutas, parecíamos colher uma vitória
cruel. Eu estava estarrecido ao ver o tio Juvenal, antes
forte e valente, agora naquele estado físico deplorável
após três anos no sertão. Outra coisa nos intrigava:
não havia pela casa vestígios de fogão para o preparo
de peixe ou caça. Como ele se alimentava? Seria só
com frutas da mata?

87
Uma figura misteriosa

Vasculhando pelos arredores, encontramos em uma


trilha sinais frescos de pés descalços, nos dois sentidos.
Os rastros vinham da mata, e não do rio. Perova ficou
muito intrigado, pois as pegadas eram de tamanho mí­
nimo, pouco maiores que as de uma criança.
Estávamos à hora do sol bem alto, quietos dentro
de casa, quando ouvimos o barulho de pisadas no ca­
pim do outro lado da parede, como se uma onça viesse
sorrateira.
Quem logo se levantou para espiar foi tio Juvenal.
Em seguida, quem saiu foi Perova, que nada viu a
não ser os mesmos rastros de pés pequenos, bem pró­
ximos de nossa porta.
Tio Juvenal, muito alegre, foi ao terreiro pelos fim­
dos e logo voltou com uma cesta de taquara cheia de
frutos silvestres, uma penca de bananas, pedaços de
mandioca assada e uma porunga, espécie de cabaça,
cheia d'água. Acomodou-se a um canto e começou a
comer com naturalidade e beber da água. Nada nos
ofereceu, nem se dava conta de nossa presença.
Estávamos terrivelmente intrigados com o ser mis­
terioso que se aproximara da casa e que, desconfiado
de nossa presença, deixar� aquilo que decerto todos
os dias vinha trazer para meu tio.
No dia seguinte, pela manhã, repetia-se a visita de

89
alguém vindo pela trilha para sondar a casa; também
dessa vez não conseguimos ver quem era.
Perova imaginou que o estranho poderia ser algum
dos antigos trabalhadores do acampamento. Talvez, ao
encontrar meu tio adoentado, tratava dele todos os dias.
Mas intrigava o tamanho minúsculo dos rastros!
No terceiro dia, ficamos de tocaia pela madrugada e
vimos se aproximar da cabana a figura de um velho ín­
dio, baixinho, caminhando com muita dificuldade. En­
curvado, quase desnudo, sem cabelos, sua pele enrugada
tinha cor um tanto esverdeada.
Não saímos do abrigo, temendo que fugisse. Trou­
xera novamente alimentos e desaparecera.
Pixuíra resolveu ir à procura de alguma caça para
nossas provisões. Tentei ir também, mas ele não con­
sentiu. Tomou seu arco e partiu. Só retomou bem à
tarde, quando já estávamos preocupados com sua au­
sência. Abatera uma capivara, bem pesada, que mal
podia carregar. Ficamos alegres com a perspectiva da
carne fresca, o mesmo acontecendo com tio Juvenal,
que então murmurou algumas palavras pouco inteligí­
veis, as quais interpretei como de elogio ao trabalho
do indiozinho.
No dia seguinte, entretanto, passou o tempo todo
amuado, pois, pela manhã, o velho índio não aparecera.
E, como nos seguintes também não viesse, ele começou
a ficar em desespero e ameaçava sair para se embrenhar
na mata.
Então, certo fato iria reavivar suas lembranças. Ao

90
remexer as poucas coisas do meu picuá, apanhei a
guampa de chifre, incrustada de prata, que pertencera
a meu pai e estivera em poder do Bugre, em Cuiabá.
Enchia-a de água fresca e, quando bebia, tio Juvenal,
num gesto de surpresa, arrancou-a de minha mão, exa­
minou-a e foi imediatamente escondê-la sob a cama
rústica de capim onde dormia.
E, a partir de então, procurava se aproximar mais
de mim, embora estivesse sempre arredio e desconfia­
do quanto a Perova. Valendo-me disso, todos os dias
eu o alimentava e senti que aos poucos ele ia se recu­
perando fisicamente.
Sem decifrar o que nos parecia um enigma, tínha­
mos que tomar alguma decisão e sair daquele lugar.
Para isso começamos a reunir palmitos, frutas, e até a
defumar nacos de carne.
Então Perova anunciou:
- Logo que faça bom tempo, partimos.
Visita na madrugada

Naquela noite, uma série de pensamentos em re­


lação ao tio Juvenal perturbaram meu sono. As dúvidas
eram se ele seguiria espontaneamente conosco, e tam­
bém se teria forças para tão longa e penosa caminhada.
Não havia clareado a manhã quando, inesperadamen­
te, ouvi o barulho de passos rente à parede e conversas
em voz alta. Todos nos levantamos apavorados. Certa­
mente a solidão em que vivíamos nos fazia mal aos ner­
vos. Mas aquilo tudo era real: derrubavam nossa porta
e intrusos nos atacavam. Sem poder reagir, num instan­
te estaríamos amarrados e metidos num cubículo.
Reconhecemos de imediato o Bugre e Elesbão. Tio
Juvenal, ao ver os invasores, se viu tomado de um aces­
so de fúria e foi difícil de ser contido, até que brutal­
mente o agrediram. Os intrusos logo se apoderaram do
lugar e também de outro casebre, onde amontoaram suas
bagagens e provisões.
O Bugre e Elesbão portavam espingardas e facões
e os outros, entre eles três índios, estavam armados de
arcos e flechas.
Aprisionando-nos no cômodo de madeira, os bandi­
dos pareceram ter se esquecido de nós. Podíamos, en­
tretanto, ver pelas frestas a figura do Bugre, obcecado
em examinar, sobre um tronco cortado ao meio, um
velho mapa amarfanhado. Parecia nada entender do que

92
via. Às vezes ria, depois se enchia de cólera, dava murros
na madeira, assustando Elesbão, que procurava acalmá­
lo e concordava com suas palavras e gestos.
Só então examinei melhor aquela estranha figura de
mestiço, com uma enorme cicatriz na face, sempre com
o chapéu de couro na cabeça e a pena de avestruz espe­
tada na copa. Forte, de porte alto, pele queimada de sol,
fazia gestos bruscos, apontava para os lados. Mas, o
que dizia, talvez só Elesbão compreendesse.
Com o companheiro mal-encarado, seu verdadeiro
cão de guarda, tentava decifrar o papel amarelecido,
que tinham à frente. Tratava-se do mapa do caminho
para os Martírios.
- Deve ser o roteiro de Anastácio - cochichou
Perova.
- Os miseráveis mataram o pobre homem ! - co­
mentei.
Elesbão é que conseguia ler alguma coisa, pois o
Bugre era analfabeto. Ouvimos quando ele dizia:
- "Seguir para o nascente e, depois do morro, até o
Rio da Casca, e dali por canoas até encontrar o grande
Araguaís, descer por ele . . . E muitos rios e riachos, bem
afigurados para terem ouro. . . pois vertem de serras al­
tas e este dito Araguaís faz barra no Rio Paraupeba,
que corre quase ao norte ... "

Elesbão estropiava as palavras, que mal entendía­


mos, e o Bugre, gritando, -obrigava-o a repetir, duas,
três vezes.

93
Prosseguia o catatau:
- " ... E pouco além desta barra há grandes pedrarias,
que passam o rio de uma a outra parte, e visto de lon­
ge parece que furou a terra e vai por baixo, por canais
que dão passagem para as canoas. Seguindo depois,
pra esquerda arriba, no poente e norte se avistará mor­
rinhos azuis, que distam daqui sete ou oito dias de ser­
tanista; ali achará a tapera do Araés, onde cheguei com
meu pai, que Deus haja, e achamos várias cunhãs, com
folhetas pelo pescoço e braços; e destas folhetas man­
dou fazer meu pai um resplendor para uma imagem de
Nossa Senhora do Rosário, de nossa casa, e também
uma coroa do mesmo ouro, que pesava quarenta oita­
vas 5 , para a igreja da Vila de Itu. . . "
Eles interrompiam e repetiam nomes, comentavam
e depois prosseguiam:
- "Perguntando aos ditos índios onde tinham acha­
do tantas folhetas de ouro, respondeu o cacique: por
aqueles morros, depois de chover. E isso foi o que eu
vi, não são histórias contadas; e, na volta daquele lu­
gar, encontramos o Anhangüera, que é o pai do meni­
no Bartolomeu."
O Bugre continuava indeciso e nervoso e pedia ao
outro que continuasse a decifrar:

5 Oitava: antiga medida de peso corespondente à oitava parte da onça, ou

seja, 3,586 kg.

94
- "E por cima da barra do Araguaís achamos muita
gentilidade, e o rio com má passagem, por ter muitas
cachoeiras. E não longe vimos os Martírios, onde o rio
é afunilado com pedrarias de parte a parte: e os ditos
Martírios fica, subindo rio acima, da parte esquerda,
com aparências de galo, cruz, coroa, lança e mais coisa,
e é dificultosa esta navegação até subir a ponta da ilha
dos Carajás; na ponta de riba ficam um rio à mão direi­
ta, que é o Rio das Mortes ... "

O Bugre tomou a se levantar inquieto. Aquele em­


baralhado de nomes desconhecidos o deixava cada vez
mais confuso. Chamou dois dos índios que o acompa­
nhavam e perguntou a eles pelo Rio Paraupeba, mas
não souberam responder. O Bugre os despachou com
raiva. Depois chamou os mateiros, que bem conhe­
ciam os sertões. Falou com eles e, então, teve alguma
indicação satisfatória, tanto que mandou que todos se
preparassem para a partida.
Ficamos inquietos por não sabermos qual seria nos­
so destino de prisioneiros.
Animados com a partida, não davam mais pela nos­
sa presença. Foi preciso, várias vezes, que gritásse­
mos pedindo água e comida, para que, só então, se
lembrassem de nós.

96
S epultados vivos

Terríveis momentos nos estavam reservados.


No dia seguinte notamos, pelas frestas da parede,
que nossos algozes iriam partir e nos dirigiam ameaças.
O homem baixinho e achaparrado veio nos buscar, e
com maus modos e xingamentos nos arrastou para fora.
Nossa alegria em sentir o ar puro do mato, depois de
tantos dias no escuro, foi logo turvada quando nos obri­
garam a seguir por uma trilha que entrava pela mata.
- Que querem de nós? - perguntou Perova, paran­
do e temendo que fossem nos matar.
Elesbão não respondeu e cutucou meu amigo com
uma longa faca. Perova preferiu não revidar, pois to­
dos estávamos indefesos. Caminhamos, assim, bom
tempo, aos trancos e barrancos, até um terreno incli­
nado à beira de um riacho.
O local era de uma antiga lavra, porém com mostras
de ter sido recentemente trabalhada. No morro, ao lado,
havia uma comprida galeria pela qual os mineiros te­
riam conduzido água para lavar os cascalhos auríferos.
Perova, inquieto, voltou a interpelar Elesbão.
- Aonde está nos levando, seu imbecil? - gritou.
O outro não respondeu e reagiu, empurrando-o, enquan­
to seus companheiros nos ameaçavam com bordunas.
Fomos, todos os quatro, metidos em uma espécie de
gruta, ao fim da galeria, e então os bandidos rolaram,

97
com o auxílio de alavancas, uma enorme pedra da encos­
ta, colocada de modo a tapar a entrada. À medida que tra­
balhavam, íamos vendo que as últimas réstias de luz de­
sapareciam até ficarmos em completa escuridão.
Tomados de pavor, eu e Pixuíra gritávamos e pro­
curávamos empurrar a enorme pedra, de dentro para
fora, mas inutilmente, pois Perova estava estendido
no chão, muito machucado, e tio Juvenal, acocorado,
não se dispunha a ajudar.
De fora já não ouvíamos qualquer barulho. Certa­
mente os malvados haviam partido, deixando-nos se­
pultados vivos. Felizmente, um fiozinho de água es­
corria por entre as pedras, e com ela molhamos a testa
de Perova, tentando reanimá-lo.
- Miseráveis - bradou ele, assim que se deu conta
de nossa horrível situação. - Estamos que nem tatu
dentro do buraco !
O túnel, cavado na rocha e com a entrada bloquea­
da, não nos deixava alternativa de fuga. Dentro, infe­
lizmente, nem um só pedaço de pau, nenhuma ferra­
menta abandonada. Nosso único consolo eram aque­
les pingos de água fresca.
Tateando pelo escuro, Perova encontrou uma pe­
dra-ferro. Com outra menor, conseguiu parti-la e fa­
zer nela uma ponta aguçada, com a qual se pôs a ca­
var, na lateral. Sua atitude nos encheu de esperança.
Naquele trabalho nos revezamos todo o dia. Quan­
do um cansava, outro tomava o seu lugar. Só tio Juve-

98
nal se mostrava indiferente. A faina continuou, talvez
pela noite adentro, pois já não sabíamos medir o tem­
po. Nosso esforço foi compensado. De repente surgiu
uma pequena claridade entre as junções das rochas.
Redobramos o trabalho, que já não progredia, pois,
sem comer desde o dia anterior, éramos invadidos pelo
desânimo e perdíamos as forças.
Apesar de termos removido bastante terra, a aber­
tura feita entre a rocha e a parte superior da galeria
não permitia a passagem. Apenas nos consolava o fio­
zinho d 'água. De repente Perova exclamou:
- Ouço barulho do lado do paredão. Há alguém
tentando retirar a madeira que cobre a gruta.
Pixuíra se alegrou, mas eu mal me mantinha de pé
e não vi mais nada. Quando acordei do que parecia
um pesadelo, vi a claridade do sol. À frente, Perova
estava sentado em um tronco e Pixuíra molhava mi­
nha cabeça, borrifando água. Tio Juvenal, muito ale­
gre, comia sofregamente algumas frutas.
Julguei que se tratasse de um sonho e fechei os
olhos. Porém, ao reabri-los, verifiquei que tudo era
verdade. Perova me deu a mão, procurando me ajudar.
Levantei-me, meio zonzo.
- Onde estamos? Que aconteceu? . . .
Meu amigo não respondeu. Então v i surgir, por en­
tre os arbustos, a estranha figura do índio centenário.
Ele se aproximou e depositou o que trazia bem à nos­
sa frente. Depois colocou-se ao lado de tio Juvenal,
com o qual trocou palavras que não entendemos.

1 00
Ouvimos o nome Muiraquitã, que nos pareceu muito
esquisito. Mas a ele devíamos nossas vidas, pois nos li­
vrara da prisão. Tentara remover a grande pedra à entrada
com alavanca, o que não conseguira. Depois utilizara a
antiga bica d 'água da galeria, para com o jorro d'água
esboroar a terra colocada sobre a rocha e assim abrir a
passagem por onde saímos. Eu mal entendia o ocorrido.
Estava fraquíssimo e embaralhava as idéias.
Logo mais, o velho índio se afastou, mas Pixuíra o
s.egum.
No v as surpresas .

Ficamos naquele lugar por longo tempo, tentan­


do nos recuperar dos sofrimentos e à espera de Pixuíra,
que só apareceu à tardinha.
Trazia, então, muitas novidades pelas quais está­
vamos ansiosos e nos tiravam muitas dúvidas. Fora
até a cabana de Muiraquitã e soubera que tio Juvenal
havia chegado, tempos atrás, ao aldeamento abando­
nado, na companhia de um índio da tribo de Pixuíra.
Ao entrarem ali, desgraçadamente, aquele fora vítima
de uma picada de cobra e, não resistindo, falecera. Tio
Juvenal, solitário e com tanto sofrimento, praticamen­
te enlouquecera. Muiraquitã o encontrara prostrado,
curara-o com ervas e o alimentara até nossa chegada . . .
Pixuíra conseguiu saber, também, alguma coisa so­
bre aquele ser estranho, cujo nome significava pedra ver­
de. Vivia nos Araés, com sua tribo, quando chegaram os
brancos em busca do ouro. Os forasteiros logo entraram
em conflito com os seus, que precisaram fugir.
Muiraquitã ficara na companhia dos garimpeiros
até que estes, também, depois de largo tempo e desa­
nimados, foram embora. Era, então, o único dono de
um arraial abandonado. Perdera a memória do tempo,
falava sozinho para sentir que ainda estava vivo e ou­
vir o eco da própria voz. Chamava os pássaros com
assobios ou imitava seus cantos; arreliava com os

102
macacos, que se tomaram seus amigos e vinham visitá­
lo, permanecendo atrás das paredes das choças.
Muiraquitã perdera o aspecto de ser vivo. Parecia feito
de barro assado ao fomo, cujas trincas eram rugas.
Quando Muiraquitã já perdia a esperança de ver
algum ser humano, surgira ali o tio Juvenal e o índio
que o acompanhava, o qual logo falecera.
Acomodamo-nos naquele lugar. Pixuíra caçava. Eu
e Perova íamos à cata de frutas e vasculhávamos uma
pequena roça abandonada pelos antigos habitantes, co­
lhendo abóboras e mandiocas. Precisávamos nos refa­
zer, a fim de suportar a longa viagem prevista de volta.
O pesadelo do Bugre ficava aparentemente afastado.
Certo dia, quando falamos a Muiraquitã sobre nos­
sos inimigos, temendo que a qualquer momento retor­
nassem, o homenzinho abanou a cabeça e sorriu.
- Eles nunca mais voltarão!
- Como assim? - interrogamos, sem compreender.
Balbuciou algumas palavras incompreensíveis,
apontou num certo rumo, com as mãos encarquilha­
das, e emitiu um som alto.
Perova interpretou aquilo como sendo o grito de guer­
ra dos terríveis índios Guariba, habitantes da região.

103
Adeus ao Araés

C omeçamos os preparativos para a volta e, nesse


entretempo, víamos Pixuíra sempre junto de Muira­
quitã. Falavam em suas línguas e o indiozinho conta­
va a ele sobre as coisas que vira no mundo civilizado
e sobre as quais o outro jamais sonhara. O velho até
mostrara a ele, em um canto de sua cabana, num bura­
co coberto por uma pedra, uma vasilha de barro. O
indiozinho trouxe o objeto até nós e, então, à luz da
fogueira, soltamos uma exclamação de espanto. Ali
havia punhados de pepitas de ouro, brilhantes, como
nunca víramos antes!
Perova tomou a vasilha na mão e pediu a Pixuíra
que a repusesse no mesmo lugar.
Quando estávamos preparados para partir, come­
çou a cair uma forte chuva, por dias seguidos, o que
nos tirou o ânimo de caminhar. Notamos, também, que
Muiraquitã parecia triste com a perspectiva de ver seu
amigo Juvenal ir embora. Afinal, marcamos a partida
para a primeira estiada.
Perova, que sempre resolvia bem os problemas
complicados, mostrava-se indeciso quanto a levar ou
não Muiraquitã. Devíamos àquele homem nossas vi­
das, mas não sabíamos se seria o melhor para ele. Su­
portaria a viagem?
Pixuíra, então, sugeriu:

104
- Vamos levá-lo até a minha tribo e lá ele pode ficar
vivendo. Será bem tratado.
- Boa idéia. Então fale com ele.
Falou e, tudo acertado, ao raiar de um belo dia re­
solvemos partir, levando alimentos para nos garantir
por bom tempo.
À saída, Muiraquitã deu um último olhar para a
sua cabana, como a dizer adeus, depois entrou ali. Pen­
samos que ia desistir, mas logo voltou trazendo a va­
silha de barro, com as pepitas. Não ia se afastar de seu
guardado.
Mergulhamos nas primeiras trilhas da mata, inse­
guros do rumo a seguir, seguidos por tio Juvenal, mudo
e indiferente como antes.

Terrív e i s dúvidas

Aconteceu que, logo depois, Muiraquitã se co­


locou de maneira espantosa à frente de todos e indi­
cou o caminho a seguir. Desconhecendo os lugares,
seguíamos seus passos. E um detalhe nos causava a
mais viva estranheza: a enorme disposição do velho
para avançar por entre troncos, galhos e cipós.
A certa altura, Perova parou, pensativo, e quis ques­
tionar sobre o rumo. Estava desorientado.

1 05
Muiraquitã nos mirou com seus olhos quase desa­
parecidos, ergueu o braço e apontou com decisão para
o horizonte distante, onde montanhas azuladas quase
se confundiam com o céu. E pôs-se a andar.
Ao cabo de dois dias meu amigo, ao redor da fo­
gueira em que descansávamos, disse-me quase em co­
chicho :
- Cada vez estou com mais dúvida ...
- Diga!
- Não reconheço as trilhas de volta!
- Nem eu.
À medida que avançávamos, mais e mais notáva­
mos a mataria fechada e as trilhas desaparecerem. Cam­
baleando, nos feríamos em espinheiros, quase atolá­
vamos nos alagadiços em meio a cobras e jacarés e, à
noite, mal dormíamos por causa dos mosquitos.
Perova desconfiava que aquele não era o caminho
para Cuiabá, e rumávamos em direção oposta, mas qual
seria o rumo correto? Pixuíra também estava perdido
e disse que só iríamos nos orientar caso encontrásse­
mos um rio muito largo, que corria para o nascente.
Muiraquitã, sempre quieto, tinha um aspecto im­
penetrável. Ao raiar das madrugadas partia sem de­
monstrar cansaço, colocava-se à frente e mal conse­
guíamos acompanhá-lo.
Oscar, nervoso e inseguro, começou a temer pelo
pior. E, certa feita, varamos dois dias sem encontrar
água. Em outra ocasião dormíamos amarrados com

1 06
cipós, na forquilha de árvores, temerosos do ataque de
onças. O pior aconteceu determinada noite. Costumá­
vamos, sempre, ao redor de nosso abrigo, acender uma
fogueira, que impedia a aproximação de animais. E
Perova, de vez em quando, avivava as brasas. Entretan­
to, daquela vez notara algo de anormal com o fogo que,
inexplicavelmente, se apagara.
Não avaliei bem sua suspeita, imaginando que meu
amigo, no nervosismo em que se encontrava, decerto
se eqmvocara.
Em outro pouso, porém, algo pior aconteceu: acor­
damos com um barulho estranho e Perova, saltando
pelo escuro, fez um disparo com sua arma. Depois
notamos, bem próximos de nós, os rastros de uma onça.
Isso nos deixava ainda mais nervosos, pois a fogueira,
quando mantida acesa, representava defesa contra a
aproximação de feras.
Na noite seguinte nada de estranho aconteceu, mas
na próxima, quando descansávamos em uma colina,
acordei ao ouvir os gritos de Perova. Corri para ver o
que acontecia e o vi agarrado a Muiraquitã.
- Que houve? - perguntei.
Respondeu-me, muito agitado, que o surpreendera
apagando o fogo.
Pixuíra interrogou o velho índio, em sua língua, e
este explicou: apagava as fogueiras por temer que os
perigosos índios Guariba de longe percebessem os cla­
rões e viessem nos atacar.

1 08
Realmente, por várias vezes e aparentando muito
próximos, já tínhamos ouvido seus gritos, que eram
semelhantes aos dos grandes macacos dos quais tira­
vam o nome. Pixuíra então nos disse que Muiraquitã
encontrara rastros frescos nas trilhas de volta, os quais
supunha serem dos três índios que acompanhavam o
Bugre. Nesse caso, eles o teriam abandonado. Notara,
também, em troncos e galhos de árvores cortados, si­
nais anteriores, que seriam avisos, advertindo que nin­
guém avançasse em seu território! E, então, concluía:
alguns dos companheiros do Bugre, apavorados ao se
deparar com aqueles avisos, teriam fugido.
Aceitamos como razoáveis tais explicações e pros­
seguimos, acompanhando-o com redobrada cautela.
E, como nossa caminhada parecia não ter fim, Perova
não mais se conteve:
- Tonico - disse-me ele -, o caminho de volta não
é este. Não confio mais em Muiraquitã!
Concordei com ele. Estávamos sobre uma colina e
o terreno era em declive. Víamos, na baixada, uma
encosta de vegetação rala e, além, um vale, por onde
serpenteava um rio. O panorama era magnífico.
- Finalmente, uma clareira - comemorei.

1 10
Cena de horror

Muiraquitã à frente, com o facão que demos a


ele, aparava galhos e parecia confiante e dos mais ani­
mados. Perova, porém, muito nervoso, agarrou o velho
com violência.
- Pare, desgraçado ! Aonde vamos? Para o infer­
no? Cuiabá fica em outra direção !
Tentamos acalmar nosso companheiro que, de tão
furioso, poderia esganar o ancião. Este reagiu com uma
força inacreditável para sua idade; afastou-se e, empur­
rando os galhos da escarpa gritou, voltando-se para nós:
- Vejam!
Então não pudemos conter gritos de pavor. A pou­
cos passos de nós, pendurado em um arbusto, a balou­
çar ao vento, vimos um chapéu-de-couro, com uma
pena esgarçada!
Recuamos atemorizados ante à cena de estarrecer:
esqueletos e restos humanos estavam sendo disputa­
dos por gaviões e urubus famintos.
- Eu não disse que eles nunca mais iriam voltar? ­
exclamou.
- Miserável - berrou Perova, voltando a agarrar o
índio, dessa vez pelo pescoço.
- Você quer fazer o mesmo com a gente?
Ele o encarou. Seu rosto parecia então mais encar­
quilhado. Suas pupilas brancas faiscavam.

lll
- Os índios deram cabo deles. Queriam ver Martí­
rios? Todos os que vieram procurar as minas morre-
ram.' N"mguem ' chega 1a...
' N"mguem.
' I N"mguem
' .I . ..
Um riso estranho de desafio dominava seu rosto.
Estávamos aturdidos. Pixuíra queria saltar sobre o ín­
dio e esganá-lo. Mas o velho concluiu:
- Só Muiraquitã sabe o segredo ! Este ouro é de lá.
- E mostrou-nos a vasilha de barro. - Os morros faís-
cam depois das chuvas. É só pegar as pepitas. Tem
tantas que nem se consegue carregar!
Mal compreendíamos as palavras de Muiraquitã,
me10 possesso.
- O sonho do barbaça - e apontou para tio Juvenal
- é conhecer Martírios ! Ele vai ver o lugar. O maldito
Bugre era inimigo: pagou com a vida!
- E se os índios Guariba também nos atacam? -
perguntei, temeroso.
- Vamos por outras trilhas, pela encosta, que bem
conheço . . . depois pelo rio.
Indecisos, mas sem outra alternativa, reiniciamos
a caminhada deixando aquele lugar que nos provoca­
va arrepios e pavor. À noite não acendemos fogueira e
pouco dormimos, porque a empolgação do dia nos dei­
xara completamente alterados.
Quando raiou o dia seguinte, continuamos mais si­
lenciosos que nunca. Tio Juvenal parecia outro. Colo­
cara-se ao lado de Muiraquitã.
Fomos contornando a montanha, por perigosas tri-

1 12
lhas entre rochas, troncos enormes, e atingimos o vale e
o rio, que serpenteava na selva. Ali fizemos pousada.
Quando acordamos, no outro dia, Muiraquitã já es­
tava em uma velha piroga, quase em pedaços, à beira
do rio. Perguntamos onde a encontrara. Não respon­
deu. Subimos nela e, com um varão feito remo, desli­
zamos à jusante. A situação não era má, pois o rio nos
conduzia.

F inalmente, os Martírio s ?

A canoa deslizava e j á não podíamos ver a mar­


gem, que a mata cobria e era tão espessa a ponto de
termos a impressão de avançar por um túnel de verdu­
ra. Mudos, só ouvíamos o compasso do varejão no
fundo lodoso.
Muiraquitã parecia ignorar nossa presença. Ao fin­
dar do dia, tínhamos avançado bastante e, como escu­
recesse, fizemos pouso à margem. Inquietos por causa
da situação, novamente interrogamos o velho, que só
ergueu os braços e apontou vagamente para a direita.
Pela madrugada, partimos. O tempo estava enco­
berto e logo depois surgiram relâmpagos e veio a es­
curidão. Inesperadamente, as águas começaram a cor­
rer mais aceleradamente, e a piroga começou a tomar

113
impulso perigoso. Perova usou, também, o seu varejão,
e perguntamos a Muiraquitã se havia alguma cachoei­
ra à frente.
Ele não respondeu. E, de repente, sem que espe­
rássemos, estávamos mergulhados na completa escuri­
dão, em um túnel, cavado pelas águas, o que nos
deixava ainda mais indefesos. Ouvíamos apenas o ba­
rulho da corrente e avançávamos graças à habilidade
de Muiraquitã, manobrando o barco que, após fortes
solavancos, passou a deslizar mais devagar. Demorou
bastante para sairmos a céu aberto, com o tempo amea­
çador e as margens, cobertas pela densa vegetação,
quase a nos sufocar.
Voltou a chuva torrencial. Relâmpagos, de quando
em quando, clareavam o espaço e uma verdadeira noi­
te desceu sobre nós. Grandes enxurradas corriam das
margens para o n o .
Eu e Pixuíra ficamos agarrados um ao outro, te­
mendo cair ou que o barco afundasse. Como a corren­
te do rio, então, era mais volumosa, não dava para sa­
ber se havíamos entrado em outro rio. Pelo escuro, só
clareado, às vezes, pelos relâmpagos, pensamos em
parar e ficar à espera do tempo melhorar, mas Muira­
quitã teimava em conduzir a embarcação para o meio
da correnteza. Entretanto, em certo momento, senti­
mos que ele não mais a dominava.
Agitado, Perova manejava o varej ão, mas este não
alcançava mais o fundo do rio e o barco tomava cada
vez mais velocidade.

1 14
Nesse instante um raio caiu bem próximo de nós, e
vimos, com o clarão, uma faixa de céu ameaçador. Os
relâmpagos se sucediam e, inesperadamente, numa vi­
são descomunal, presenciamos o espetáculo mais ex­
traordinário de nossas vidas : uma montanha azulada,
com rochas nela imersas, parecendo formar constru­
ções gigantescas. As imagens se assemelhavam a si­
nos enormes, escadas, torres. . .
Naquele momento de medo, tomados por tão es­
tranha visão, ouvimos um grito vindo da popa. Era tio
Juvenal que se levantava e punha-se a bradar, com o
braço erguido e o dedo em riste:
- MART ÍRIOS ! . . . ali está! . . . Vejam! Eu disse que
existia. Olhe, Tonico ! Don 'Ana, venha cá! Onde você
está, Perova? Bugre ! Ali, ali, Martírios ! Elesbão, de­
pressa . . . Corram todos ... Vejam as minas ! O ouro está
por toda parte. Ele é nosso ! Carreguem tudo, vamos !
A seguir aconteceu o inesperado. Tio Juvenal, de
pé, desequilibrou-se e caiu na correnteza. Corremos para
salvá-lo, mas a piroga, no impulso em que estava, ba­
teu num tronco flutuante e virou. Todos mergulhamos,
em meio à grande confusão. Depois não vi mais nada.
Quando acordei, raiava o lindo sol de um dia ma­
ravilhoso e deslizávamos rio abaixo. Perova empunha­
va o varejão à minha frente. Pixuíra olhava distraído
para as margens. Levantei a cabeça, assustado, e per­
guntei por tio Juvenal e pelo velho índio.
Perova franziu a testa e repuxou os lábios, como sem­
pre fazia nos duros momentos. Nada respondeu. Nem

1 16
era preciso. Ambos haviam ficado sepultados à frente
de Martírios, onde tio Juvenal tivera seu último mo­
mento de lucidez. No naufrágio, meu amigo lutara, em
desespero, para me salvar, e muito custara também a
Pixuíra arrastar o barco para algum lugar seguro.
Nem tínhamos coragem de olhar para trás. Não sa­
bíamos mais se aquele rio era o primitivo, ou se já
entráramos em outro, no emaranhado da floresta.
A vegetação, à margem, era a dos campos gerais, e
lindas paisagens iam se rasgando aos nossos olhos.
Eu tinha vontade de chorar, de gritar, como se saísse
de algum terrível pesadelo.
Para trás ficavam, mais uma vez, os Martírios, a
ocultar suas riquezas e seus mistérios . . .
Para a frente rolava o rio, conduzindo-nos para o
futuro. Mas, onde estávamos?
Pouco importava. Distante se apagava o passado.
Só o futuro nos interessava. Aquelas duras experiên­
cias e sofrimentos comuns tinham feito de nós três
quase uma só pessoa. E qual seria o próximo destino?
Nada possuíamos, depois de tantos sofrimentos no
sertão, onde tantos, antes, tinham ido buscar riquezas
e poucos haviam regressado.
Perova pediu comida.
Pixuíra se levantou, foi à proa, onde estavam amar­
radas nossas provisões e, depois de desamarrar o cou­
ro que as cobria, soltou uma exclamação :
- Muiraquitã deixou isto pra nós !
Eu e Perova vimos, em suas mãos, a vasilha de barro.

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Perova se levantou de um ímpeto. Tomou-a entre as
mãos e fez um gesto de atirá-la às águas. Aquele tesou­
ro ia nos trazer, sempre, as mais terríveis lembranças.
Depois me olhou, indeciso. E, talvez pensando em mim,
refreou seu impulso, baixou as mãos e foi sentar-se em
seu lugar, silenciosamente.
Precisávamos recomeçar nossas vidas. Mas, onde?
O sertão e Martírios deixavam marcas fundas na
carne e em nossos espíritos. Eu pensava, e talvez
Perova concordasse, pois ele sempre fora o amigo de­
dicado ao extremo: não valia mais a pena voltar ao
mundo em que havíamos vivido, antes de começar­
mos aquela estranha aventura. O certo era ir procurar
outras terras, talvez na distante Vila Boa de Goiás.
E quanto a Pixuíra?
Ele tinha outro mundo, diferente do nosso, e deve­
ria voltar para a süa gente, no sertão bravio.
o
Francisco Marins
EscRITOR D A JuvENTUDE

Natural de Pratânia, SP, descendente de tropeiros, boiadeiros


e pequenos plantadores de café, Francisco Marins passou a in­
fãncia em contato com a vida rural e a cultura do café, da qual
colheu inspiração para suas obras. Seu penta avô participou da
Expedição Langsdorff e aparece, rapidamente, nesta narrativa.
Foi editor da Editora Melhoramentos, membro da Comissão
Estadual de Cultura e presidente da Câmara Brasileira do Livro,
tendo lutado pela divulgação e valorização do livro.
Criou, na cidade de Botucatu, o Convivium - Espaço Cultu­
ral Francisco Marins e o Clubinho Taquara-Póca, que visam pro­
mover o interesse pela vida rural, natureza e ecossistema.
Em Pratânia, onde existe uma biblioteca entre as muitas
no país com seu nome, desenvolve um amplo projeto cultural:
o Taquara-Póca de Francisco Marins.
O escritor é membro titular da Academia Paulista de Letras,
da qual foi presidente em duas gestões e é atual presidente emérito.
Recebeu diversos prêmios e distinções literárias, entre eles:
- Prêmio Carlos de Laet (Academia Brasileira de Letras);
- Prêmio Fábio Prado (União Brasileira de Escritores);
- Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do Livro);
- Medalha de Mérito Literário (Pen Club de São Paulo);
- Prêmio Lourenço Filho, de literatura infanto-juvenil;
- Hans Christian Andersen (indicação como representante
do Brasil).
Francisco Marins tem ainda seu nome incluído na coleção
européia Delfin, de clássicos da literatura para a juventude, e em
verbete da Oxford Children's Literature.

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Sucessos editoriais

O s livros do autor, destinados à juventude, foram traduzidos


em quinze línguas, sendo considerados best-sellers na Hungria.
Os livros das séries Taquara-Póca, O Homem e a Terra (Saga do
Café) e Roteiro dos Martírios atingiram, com centenas de edi­
ções, mais de três milhões de exemplares.

Taquara-Póca

Esta série infanto-juvenil mantém-se até hoje entre as mais


lidas pelos jovens em todo o país, no lar e nas escolas. Títulos
da série:
NAS TERRAS DO REI CAFÉ
Os SEGREDos DE TAQUARA-PócA
A PRAGA DOS GAFANHOTOS

o
o COLEIRA-PRETA
V ERDE ERA o CoRAÇÃO DA MoNTANHA

O Homem e a Terra

É considerada por alguns críticos o "Tempo e o Vento" de


São Paulo. Títulos da série:
CLARÃO NA SERRA
ÜROTÃO DO CAFÉ AMARELO
E A PoRTEIRA BATEU
..•

ATALHOS SEM FIM

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Roteiro dos Martírios

Títulos da série:
EXPEDIÇÃO AOS MARTÍRIOS
PRISIONEIROS DA SELVA
o BUGRE DO CHAPÉU-DE-ANTA

Outros títulos

AALDEIA SAGRADA
O MISTÉRIO Dos MoRRos DouRADos
A MONTANHA DAS DUAS CABEÇAS
EM BuscA DO DIAMANTE
o SóTÃO DA MúMIA
A GUERRA DE CANUDOS
0 CURANDEIRO DOS OLHOS EM ÜAZE (recontos)

Para saber mais sobre o autor, visite a


home page: www.franciscomarins.com.br
ou escreva para o e-mail : frmarins@laser. com.br
Não deixe de ler

Prisioneiros da Selva

A aventura não acabou. Neste segundo livro da sé­


rie Rote iro dos Martírios você poderá acompanhar
Tonico - o menino tropeiro -, o valente Perova e o in­
diozinho Pixuíra em novas e emocionantes histórias
pelos sertões brasileiros.
Depois de enfrentarem os perigos dos Martírios, nos­
sos três heróis vivem muitas outras aventuras na selva
e encontram uma misteriosa tribo de índios. Mas o que
eles não imaginam é que estão prestes a descobrir os
segredos que envolvem o velho Muiraquitã e seu vaso
cheio de ouro.

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