Dimensões Tradicionais Do Projeto Urbano em Cidades Portuguesas: Do Terramoto À República

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Editores

Paulo B. Lourenço
Carlos Maia
Arnaldo Sousa Melo
Clara Pimenta do Vale
Atas do 4º Congresso Internacional de História da
Construção Luso-Brasileira

4-7 setembro 2023, Guimarães, Portugal

Ambientes em mudança

Editores:
Paulo B. Lourenço, Carlos Maia, Arnaldo Sousa Melo, Universidade do Minho
Clara Pimenta doVale, Universidade do Porto

4CIHCLB – 4º Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira 1


4º Congresso Internacional de
História da Construção
Luso-Brasileira

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ii 4CIHCLB – 4º Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira


4º Congresso Internacional de História
da Construção Luso-Brasileira

DIMENSÕES TRADICIONAIS DO PROJETO URBANO EM


CIDADES PORTUGUESAS: DO TERRAMOTO À REPÚBLICA

Florentino, Rui1*, Gaspar, Cláudia2**, Tenreiro, José Pedro3, Palazzo, Pedro Paulo4***
1
[email protected], [email protected], [email protected],
4
[email protected]
*CIAUD-UPT, Universidade Portucalense
**ISMAT e CHAIA, Universidade de Évora
***Universidade de Brasília, Faculdade de Arquitectura e Urbanismo

Palavras-chave: Urbanismo; Cidades portuguesas; História da construção.

Resumo:

Vários autores se têm debruçado sobre o carácter e a identidade das cidades portuguesas,
se existiu um modo próprio de produção de espaços urbanos que as diferencia e torna
especiais. Neste artigo analisam-se as dimensões formais dos seus principais elementos,
os espaços públicos e as edificações, incluindo alguns dos seus indicadores quantitativos,
que permitem também comparar casos paradigmáticos, aprofundando essa discussão em
diferentes realidades urbanas, a partir da segunda metade do séc. XVIII, período que tem
início com a consolidação do saber construtivo manuelino e termina no início do séc. XX
com a implantação da República.

Como metodologia, recorre-se à análise urbanística através de desenhos e trabalho de


campo, em construções urbanas com escalas e geografias diversificadas, da capital aos
centros de génese pombalina, como Porto Covo e Vila Real de Santo António, passando
por pequenas vilas do norte de crescimento alinhado com as infraestruturas ferroviárias.
Em particular, aplicam-se os parâmetros formais em conjugação com a leitura histórica,
onde algumas dimensões quantitativas e tradicionais assinalam indiretamente o carácter
distintivo destes projetos, confrontando os seus elementos, ruas, praças, lotes e edifícios,
públicas e privadas.

Os resultados evidenciam as variáveis permanentes, distinguindo-as das circunstanciais,


afirmando assim a inovação presente em cada um dos momentos e lugares. Ao agrupar
diferentes estudos de caso na mesma perspetiva analítica, as conclusões recolhem alguns
dados com interesse de posterior divulgação no campo da história da construção urbana
em Portugal.

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Florentino, Rui; Gaspar, Cláudia; Tenreiro, José Pedro; Palazzo, Pedro

1 INTRODUÇÃO
Este artigo organiza-se em três partes, apresentando diversos casos, planeados embora
num mesmo período, entre 1755 e 1910. Começando por Lisboa, a sua urbanística revela,
como se sabe, uma grande evolução a partir da segunda metade do séc. XVIII, pelo êxito
do projeto de reconstrução da “Baixa”, depois do terramoto. Ao longo de Oitocentos faz-
se a expansão da cidade, através dos amplos eixos ortorreticulares das Avenidas, de outra
magnitude e dimensão. Verifica-se então como a urbanização se integra na topografia e
nos traçados preexistentes de espaços públicos, discutindo mais uma vez essa “identidade
urbanística” portuguesa.
Na segunda parte abordam-se os modelos urbanísticos singulares de novas vilas do sul,
com os exemplos de Manique do Intendente, Porto Covo e Vila Real de Santo António,
contribuindo para um maior conhecimento da história da construção. É feita uma leitura
a partir da arquitetura, que não se cinge aos aspetos morfológicos, pois inclui os processos
socioeconómicos e produtivos dos territórios, outrora de carácter rural e piscatório, bem
como a sua influência na estrutura urbana. Para além da análise aos conjuntos urbanos e
às tipologias do edificado, procuram-se entender os processos associados e suas métricas,
nomeadamente os que determinam uma evolução posterior.
Finalmente, com base no desenvolvimento da linha ferroviária do Norte até ao Porto,
estabeleceram-se a partir da segunda metade do séc. XIX diferentes núcleos residenciais,
que contudo empregam princípios urbanísticos semelhantes entre si. A leitura dos planos
promovidos de 1860 a 1910 compreende uma longa extensão do território litoral, que se
previa continuamente urbanizado. A análise desses primeiros modelos de estância balnear,
Praias da Granja, da Aguda e do Senhor da Pedra, permite verificar como a sua realização
parcelar contribuiu para a qualificação e o ordenamento da costa atlântica, que será mais
uma característica do urbanismo português.

2 LISBOA, DA BAIXA ÀS AVENIDAS


O sismo de grande magnitude (grau 9 na escala de Richter), o maremoto e os incêndios
que lhe sucederam, provocaram o colapso da cidade. Calcula-se que dois terços das casas
de Lisboa ficaram inabitáveis, sendo a parte central, também a mais densamente habitada,
totalmente destruída. Com o tormento generalizado pelas perdas humanas e a ausência do
Rei, naquele momento fora da capital (e onde temia regressar), o ministro Sebastião José
Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, tomou a seu cargo o projeto de reconstrução.
As suas célebres palavras, de “enterrar os mortos e cuidar dos vivos”, serviram de mote
para a edificação de uma memorável estrutura urbana, iluminada no espírito dessa época.
Para tal, contou com a ajuda do engenheiro Manuel da Maia, que organizou um concurso
de projetos para a construção da nova Baixa, logo que fossem terminados os trabalhos de
demolição, depois de afastada a hipótese de abandonar as ruinas e construir o centro mais
a oeste, em terrenos menos “sacrificados” pelo terramoto.
Seis traçados de características geométricas foram analisados, resultando vencedora a
solução de traçado ortorreticular projetada pelo arquiteto Eugénio dos Santos. De acordo
com o Professor Augusto França, “pela primeira vez no decurso de 6 séculos cristãos de
existência, Lisboa foi pensada, programada e edificada.” Retomando as mesmas palavras,
“se a primeira série de três planos implicava a localização das igrejas da Baixa nos seus
sítios tradicionais, a segunda não teve essa obrigação, fazendo a proposta de Eugénio
dos Santos parte de ela. Assim, o seu projeto moveu-se em inteira liberdade programática,
somente regulada por um princípio racionalista que inovava, não na teoria do urbanismo

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ocidental desde o Renascimento, mas na sua prática – que levava à realidade uma visão
até então utópica.” [1].
A parte central do plano situa-se entre duas novas praças regulares, que mantiveram o
mesmo nome (Terreiro do Paço e Rossio), criando-se de uma para outra o traçado de ruas
longitudinais e transversais, em ângulos retos, de importância variável, dada pela largura
da sua secção, o passeio e o saneamento, que constituía grande inovação para esse tempo.
Da praça que olhava o rio saíam três ruas nobres: Áurea, Augusta e Prata, levando as duas
primeiras ao Rossio e a terceira à fachada lateral do antigo Hospital Real, que por não se
ter reconstruído no momento deixou um espaço livre, onde se veio a instalar um mercado
popular, antes provisório e logo depois definitivo, onde é a Praça da Figueira. Mais duas
ruas paralelas têm igual longitude, mas outras três param na terceira transversal, a Rua da
Conceição, o que gera a riqueza da composição. Os quarteirões retangulares completam
o ordenamento, rodando assim a sua orientação principal a partir dessa transversal, o que
permite variar também a perspetiva da rua, entre os cruzamentos, conferindo equilíbrio e
diversidade a todo o conjunto.
Do ponto de vista administrativo, o plano da construção da Baixa Pombalina apresenta
características de grande modernidade, mesmo após dois séculos e meio. Constitui o que
se chamaria atualmente de operação de projeto urbano ou unidade de execução, suportada
por legislação especial e inovadora, da qual se deve aprender, tal como conta a Professora
Teresa Barata Salgueiro: “quando começaram os estudos, saiu uma legislação proibindo
quaisquer construções (mesmo que provisórias) na área afetada. Depois, como o traçado
era inteiramente novo, foi preciso definir normas para a avaliação dos terrenos de cada
proprietário, de modo a poder atribuir-lhes valor proporcionalmente idêntico no traçado
proposto e, então, proceder à nova delimitação da propriedade. A construção tinha que
obedecer a normas definidas no plano e deveria ser realizada num curto prazo (5 anos
para a generalidade dos edifícios), caso contrário essa propriedade seria expropriada,
ficando portanto sujeita aos efeitos do conjunto.” [2].
O “projeto urbano” integra também as fachadas arquitetónicas e respetivas normas de
construção, dando coerência formal a todo o plano, ainda que se tenha hierarquizado cada
tipo de espaço e assim se subordinou a arquitetura ao urbanismo, afinal na melhor tradição
das disciplinas. Um marco importante da composição é a fachada da rua e suas esquinas,
onde se cruzam dois sistemas diferentes: rua e praça ou rua e travessa. Em consequência,
a parcela de esquina não oferece a mesma fachada para as duas ruas, o que nos aproxima
das boas práticas de desenho e qualificação urbana que a “arquitetura portuguesa” sempre
soube conservar e explorar, através dos seus melhores exemplos. Este mesmo sentido de
hierarquia urbana comprova-se ainda nas Igrejas da Baixa, que apresentam uma fachada
principal distinta, mas respeitam a modulação do plano e têm nas suas laterais a fachada
arquitetónica das ruas em que se situam.
O desenvolvimento da cidade em direção a Norte, definido pela Baixa Pombalina, foi
ampliado em Oitocentos com a urbanização das Avenidas Novas, pela mão do engenheiro
Frederico Ressano Garcia, que regressou a Lisboa a meados do séc. XIX, após formar-se
na moderna École des Ponts et Chaussées parisiense. Mas a ligação espacial entre os dois
“projetos” será estabelecida por uma peça urbana igualmente relevante: a abertura de uma
comprida e larga Avenida, de tipo boulevard, chamada Liberdade, transformando o antigo
passeio público, tão apreciado pelos habitantes de Lisboa, que se iniciava a partir da Praça
do Rossio.
Já naquele momento, as zonas do Chiado e do Bairro Alto eram mais apetecíveis para
viver, animadas pelo espírito pré-romântico dos artistas e poetas, superando em vitalidade

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das ruas e os edifícios da Baixa, que se completavam em serviços e negócios. Então, para
o contentamento da crescente burguesia, o município dedicou-se aos jardins, como muitas
cidades europeias, e assim se pensaram os grandes espaços verdes de Lisboa: ao final da
Avenida da Liberdade, hoje Parque Eduardo VII, e o segundo depois da urbanização das
Avenidas Novas, chamado de Campo Grande. Com efeito, para Ressano Garcia, o projeto
da Avenida da Liberdade não era tanto uma operação de embelezamento, mas também o
elemento estruturante da própria expansão urbana, diz-nos a Professora Raquel Henriques
da Silva: “Deixando intacta a cidade herdada – a dos velhos bairros que sobreviveram
ao terramoto e a pombalina, que constituía o espaço moderno – elaborou um projeto de
expansão seguindo os paradigmas Haussmannianos em curso por toda Europa, querendo
dotar Lisboa de novos bairros residenciais, de eficaz articulação interior, dinamizadores
das áreas circundantes.” [3].
Na Praça Duque de Saldanha parte o terceiro dos eixos estruturantes da expansão de
Ressano Garcia, a Avenida da República, que leva a cidade para Norte, até ao parque do
Campo Grande, ao lado do qual se implantou posteriormente a área universitária e donde
saem também algumas das Avenidas do moderno Bairro de Alvalade, respetivamente dos
seus lados esquerdo e direito. Este eixo da República atravessa pelo meio de uma área de
traçado ortorreticular de boas dimensões. Mas também aqui, como em tantos outros casos
das cidades portuguesas, o ordenamento não constitui um paradigma definitivo, já que se
consideraram os recursos e as condicionantes topográficas: a praxis da retícula deteve-se
pela funcionalidade e economia das ruas preexistentes e alguns desses traçados cruzaram-
se com antigos caminhos, o que supõe de novo a diversidade, ganhando ainda um modelo
tridimensional com as memórias locais.
No percurso que vem desde a Baixa, os lisboetas puderam com facilidade absorver as
Avenidas Novas que, a pé ou de elétrico, se fazia através de uma linha reta, ligeiramente
fracionada na Fontes Pereira de Melo. Sem dúvida que se aprendeu da Baixa, por exemplo
da integração das normas de edificação com o desenho, dando equilíbrio formal a todo o
conjunto e hierarquia a cada tipo de espaço, na melhor tradição disciplinar do Urbanismo.
Veremos também nestas Avenidas o marco importante de composição que é o “remate”
das esquinas de um quarteirão, quando se cruzam diferentes sistemas urbanos. A análise
completa-se com os indicadores urbanísticos de algumas ruas e Avenidas, na qual poderá
surpreender o índice constante entre uma largura e a altura média da sua frente edificada,
apesar de que variam os respetivos parâmetros do planeamento ortorreticular (a largura é
indicada com a unidade em metros, ainda que a sua medida de construção tenha sido um
múltiplo do palmo de mãos).
As ruas da Baixa apresentam graus de uniformidade quanto à extensão e largura, tendo
o índice entre esta e a altura média da frente edificada, entre 0,37, da Rua dos Correeiros
(uma das longitudinais secundárias), e 0,82, na Rua do Comércio, a mais larga do projeto,
que retoma simbolicamente o nome da antiga Rua Nova dos Mercadores pré-Pombalina.
A dimensão dos quarteirões regulares é de 71 metros por 32, entre o cruzamento das ruas.
Devido a esta métrica, a função viária foi retirada praticamente, ficando as longitudinais
Rua Áurea e da Prata com sentido único. Com efeito, até há pouco tempo por ali passava
todo o tráfico que cruzava este centro da cidade, em direção às Avenidas, para Norte, ou
à marginal, bordeando o rio.
Já no séc. XIX, considerou-se uma mobilidade mecânica e elétrica, de extensões que
ultrapassam o quilómetro e dimensões de quarteirões que chegam aos 300 metros. Desde
as Avenidas fundamentais, ligadas entre si pelos nós circulares do Marquês de Pombal e
da Praça de Saldanha, sem dúvidas o principal eixo de distribuição (que se confirma pela

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linha de metro que circula debaixo), se notam diferentes larguras e condições ambientais.
Mas nalgumas das Avenidas secundárias do plano de Ressano Garcia vemos um desenho
tridimensional coerente, com um índice de 1,25, constante entre a largura e a altura média
edificada, mesmo se alterando os seus parâmetros, o que demonstra novamente a riqueza
dos traçados ortorreticulares.

3 AS NOVAS VILAS DO SUL


O sul de Portugal, nos séc. XVIII e XIX, na sequência do exemplo percursor da capital,
foi palco de outros processos que se enquadram num urbanismo iluminista, praticado na
Europa, embora com fortes influências nos processos socioeconómicos e produtivos dos
territórios, outrora marcados pelo carácter rural e piscatório, que se refletem na estrutura
urbana. São os planos iniciais de Porto Covo e de Vila Real de Santo António, de modelos
urbanísticos semelhantes, contudo diversos no contexto e na iniciativa da sua edificação.
Para além da abordagem ao estudo das suas formas, do desenho dos conjuntos urbanos e
das tipologias do edificado, apresentam-se processos associados, nomeadamente os que
derivaram para uma evolução particular, contribuindo assim para um maior conhecimento
da história da construção destas vilas.
Mas importa, antes, destacar o caso singular de Manique do Intendente, uma nova vila
situada no concelho da Azambuja, que se desenvolve a partir da já existente povoação de
Manique, que em 1751 teria cerca de 405 habitantes. Surge por ordem régia, a partir do
empreendedor Pina Manique, a quem a Rainha Dona Maria doa as terras de Alcoentrinho
e ordena que a nova povoação se chame então Manique do Intendente. Com edificação
no período entre 1791 e 1803, as obras foram incompletas por morte do seu promotor, em
1805. O autor do Palácio e da Casa de Câmara e Cadeia terá sido Joaquim Fortunato de
Novais, arquiteto que participou nos projetos.
A peça modelo é a Praça dos Imperadores, que configura uma planta hexagonal, com
a área aproximada de 3800 m2 e um pelourinho no centro. Dos ângulos da praça surgem
seis ruas, tendo os nomes César, Justiniano, Augusto, Trajano e Sertório, além do último,
que se desconhece (Marques, 2004). Na praça foram contruídos o Palácio do Intendente
(atualmente muito degradado, apesar de classificado como imóvel de interesse público);
a Casa de Câmara e Cadeia e outras casas de habitação, todos de um requinte barroco de
influência internacional, aproximando-se de um tipo de urbanismo mais frequente além-
fronteiras do que no território nacional ou nas possessões ultramarinas e diferenciando-
se dos demais exemplos, que são produto da “escola das cidades portuguesas.” (Marques,
2004, p.1). [4]
No final do séc. XVIII, quase contemporâneo à vila de Manique do Intendente, surge
a vila de Porto Covo (1792-1794), que se destaca sobretudo por tratar-se de uma iniciativa
privada. Assinale-se também que ambas, Manique do Intendente e Porto Covo, são duas
experiências incompletas, mas cujo traçado é ainda regulador das operações urbanísticas
contemporâneas, que importa compreender igualmente perante o caso mais específico de
Vila Real de Santo António.
Nos dois casos mais a sul, são planeadas e edificadas de raiz, de proximidade costeira
e fronteira: Porto Covo, situado no topo de uma falésia, associado ao porto de pesca numa
calheta da costa alentejana, sendo portanto uma delimitação do território continental com
o oceano Atlântico; e Vila Real de Santo António, uma vila situada na foz do rio Guadiana,
num contexto transfronteiriço com Espanha, na bacia do mediterrâneo.
Apesar do distanciamento geográfico entre as duas vilas (cerca de 230 km por estradas
nacionais) e hoje da organização administrativa em diferentes regiões, Alentejo e Algarve,

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enfatiza-se desde logo o contexto do sul de Portugal que, de acordo com Orlando Ribeiro
(2011 [1945]), as aproxima a partir de um conjunto de características inerentes, sendo a
praça central uma dessas características, com a toponímia do Marquês de Pombal, que as
identifica em ambos casos [5].
De planta quadrangular, seguem o modelo da Praça do Comércio da Baixa Pombalina,
ao contrário do desenho hexagonal dos Imperadores, em Manique do Intendente. No caso
de Vila Real de Santo António, a Praça teria sido denominada também de Praça Real ou
do Comércio, realçando a parte funcional do plano. Na primeira planta elaborada para a
vila evidenciam-se os edifícios da frente, que se destinam a responder ao funcionamento
do ciclo do peixe, como preparação, armazenagem, venda, etc..
Em Porto Covo, identificam-se outras duas praças, uma com a presença da Igreja, de
Nossa Senhora de Conceição, e um pelourinho central, junto ao cais de embarque, onde
se encontra também a Estalagem ou o Celeiro; e a Norte uma segunda Praça do Mercado,
com o Hospital no topo, em posição central, e um edifício para os armadores da pescaria,
onde confluíam as várias vias.
Numa breve comparação entre ambas as praças Marquês de Pombal, de Vila Real de
Santo António e de Porto Covo, para além de terem a mesma toponímia e de terem sido
desenhadas de acordo com os princípios iluministas, têm ainda em comum a sua dimensão
e posição no plano. Em termos de dimensão, a Praça em Porto Covo tem cerca de 2115
m2 (aproximadamente 46 m. de lado) e a de Vila Real de Santo António cerca de 5184
m2 (aproximadamente 72 m. de lado). As áreas grandiosas de ambas praças, em relação
com a escala dos lugares e povoações que as antecedem, refletem a relevância dos planos.
As duas têm uma posição central, que é o lugar onde se implantam os edifícios de maior
relevância social e onde confinam todas as vias, aspetos comuns aos exemplos iluministas
internacionais.
Da linha de costa que corresponde à atual freguesia do Porto Covo faz parte a ilha do
Pessegueiro, com o seu forte – o Forte da Ilha de Dentro – e o Forte da Ilha do Pessegueiro,
também conhecido como Forte da Ilha de Fora ou Forte de Santo Alberto do Pessegueiro,
que, pela sua posição, afirma as características defensivas do território costeiro, para além
das características piscatórias também inerentes. Os fortes faziam parte de um projeto
maior de defesa da Costa Vicentina, onde estaria previsto um porto artificial junto a um
molhe de pedra que ligaria a ilha do Pessegueiro à ilhota fronteira até ao continente. As
características piscatórias do território evidenciam-se na calheta de Porto Covo, fazendo
da vila, “uma porta de saída do carvão fabricado na região, que os navios de cabotagem
vinham carregar” (Quaresma, 2009, p. 75) [6].
Trata-se de um caso menos conhecido. Após o terramoto de 1755, a Rainha D. Maria
I encomendou um levantamento cartográfico das fortificações da costa, que identificasse
os danos e as obras necessárias, ao engenheiro militar João Gabriel Chermont e a Diogo
Correia da Mota, que fizeram “um dos mais completos trabalhos cartográficos sobre a
Costa Vicentina”, segundo o historiador António Quaresma. O autor refere ainda que este
trabalho pode considerar-se um importante contributo para a organização do território e
também uma “chamada de atenção e novos olhares para esta costa”, onde se concretiza o
projeto urbanístico de Porto Covo, por iniciativa do burguês nobilitado Jacinto Fernandes
Bandeira.
O plano de urbanização, da autoria do arquiteto Henrique Guilherme de Oliveira, foi
delineado, tudo indica, entre 1792 e 1794, pouco depois do levantamento de Chermont e
Correia da Mota. O projeto ficou muito aquém do inicialmente previsto, sendo visível a
“cortina” que cercava a povoação, do lado do mar, “com a dupla função de fortificar e de

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evitar que alguém se precipitasse da arriba, enquadrando essa perspetiva fortificadora,


ainda que residual” (Quaresma, 2009, p. 75). A sul um pequeno porto, que contudo indica
que o plano terá sido elaborado sem considerar a cota alta da falésia, onde atualmente se
situa o conjunto edificado [6].
A vila ergue-se com edificações planeadas e organizadas de forma ortogonal em torno
da praça central de grande dimensão, onde se destacam os torreões nos quatro ângulos da
praça, e edifícios de habitação que correspondem a construções de um piso, construídos
com as técnicas tradicionais, de cobertura com duas águas em estrutura de madeira e telha
assente no ripado. Têm uma organização interna muito simples, de poucas divisões, onde
a distribuição é feita a partir do compartimento principal da casa – a cozinha, que seria a
zona social. Esta tipologia viria mais tarde a ser identificada como própria da zona 6, na
publicação do Inquérito à Arquitetura Popular Portuguesa, como arquitetura vernacular,
associada à tipologia rural – os montes.
Já o caso de Vila Real de Santo António, como a Baixa de Lisboa, está mais estudado
e publicado. Nos trabalhos desenvolvidos em torno da história urbana, salienta-se a obra
de José Eduardo Horta Correia, natural da vila, fruto da sua pesquisa na reconstituição e
interpretação deste período. E outros estudos seguiram-se, também no campo disciplinar
da arquitetura. Reconhecendo um património em risco e com o intuito de criar uma base
para uma proposta de reabilitação do núcleo histórico, o município de Vila Real de Santo
António promoveu um levantamento e uma compilação de desenhos, imagens e alguma
informação dispersa para posterior publicação, que tem também o intuito de a tornar mais
acessível ao público (Figueiras, 1999) [7].
Um Plano de Salvaguarda para a Vila surge em 2005, evocando à importância do seu
património urbanístico, que relaciona a gestão do conjunto com a escala e complexidade
urbana, mas ainda não dispõe de um grau de conhecimento significativo, como acontece
internacionalmente (Rossa, 2005) [8]. Existem diversos estudos em torno da vida urbana,
salientando-se uma análise recente que evidencia a forte relação da indústria conserveira
com a génese da vila e sua arquitetura (Amaro, 2020) [9]. Ou outros de carácter histórico
e geográfico, apresentando uma “cidade ideal do iluminismo por aliar as características
formais e a sua funcionalidade industrial com a função ideológica de confrontar o reino
espanhol e impor o poderio do português” (Mendes, 2010, p.149) [10].
A história urbana de Vila Real de Santo António tem início, em 1773, quando Marquês
de Pombal pede ao governador do Algarve um plano para uma vila com traçado regular,
concebido junto às ruínas de Santo António de Arenilha, povoação que foi destruída pelo
terramoto de 1755 e cujo padroeiro viria a dar o nome à vila régia. Segundo Nuno Portas,
é um plano coerente, funcional, ordenado e pensado como um todo, um projeto exemplar
a vários níveis (Correia, 1997, p.8) [11]. Em 13 de maio de 1776, aniversário de Sebastião
José de Carvalho e Melo, foi inaugurada esta nova vila do Iluminismo.
Uma cidade de fundação localizada na foz do rio Guadiana, na fronteira com Espanha,
que resulta de uma estratégia económica, política e territorial e surge sob supervisão direta
do Marquês de Pombal, entre os anos 1774 e 1776, erguida em apenas dois anos. O plano
foi executado por Reynaldo Manuel dos Santos, arquiteto da Real Casa do Risco, gabinete
criado para desenhar e construir a reconstrução da Baixa de Lisboa.
O grande motor de desenvolvimento desta Vila será a indústria conserveira, que está
na génese das principais intervenções fabris, a partir de 1879, com a “Parodi & Roldan”,
precisamente em Vila Real de Santo António, ainda que outras cidades da região tenham
já instalações industriais, como Olhão, Lagos ou Portimão. Evidenciando a componente
produtiva e o crescimento desta vila, surgem o caminho-de-ferro, uma ponte-cais, várias

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fábricas de conserva e pontões privados, que vão dar origem ao “redesenho da sua frente
ribeirinha” (Amaro, 2020, p.20) [9]. O plano consolida-se com a construção de habitação,
do bairro “Casas para pobres”, e mais tarde com o anteplano de urbanização, este último
pelo arquiteto Paulo Cunha, de 1950.
As edificações têm surgido de acordo com o projeto inicial, respeitado até ao presente.
A partir das suas plantas, identificam-se os mais emblemáticos edifícios do plano: a Igreja,
a Câmara Municipal, antiga Casa da Guarda, e vários edifícios de habitação, onde foram
utilizados elementos de construção standard pré-fabricados como as cantarias que vieram
de Lisboa, em barco, talhadas e aparelhadas para imediato assentamento. Todo o plano é
meticulosamente organizado a partir do ciclo do peixe, ou seja, com um grande sentido
funcional. Nas restantes ruas, os vários edifícios viriam a ser construídos por particulares,
mas respeitando o modelo arquitetónico do plano.
Em termos métricos, dois tipos arquitetónicos foram mais difundidos na habitação de
frente larga: no Alentejo, a Casa de Células com 40 palmos de testa e, no vale do Tejo e
na Beira litoral, a Casa Atlântica de 50 palmos. De uma origem rural, o primeiro vai sendo
gradualmente inserido em tecidos urbanos de centralidade crescente, até figurar em vilas
de fundação e mesmo em moradas mais opulentas e assobradadas [12]. Ao mesmo tempo,
o módulo de 50 palmos da Casa Atlântica irá prestar-se, em Lisboa, ao desenvolvimento
tipológico do prédio de rendimentos setecentista.
A intrusão desses módulos em contextos de expansão urbana, principalmente a partir
de meados de setecentos, coloca-os em competição direta com os tipos de casas correntes
de frente estreita, que têm a evidente vantagem de serem económicos em metros lineares
de frente de rua e muito frequentes na Europa ocidental, formada por edifícios dispostos
um ao lado do outro, com corredor de distribuição lateral nos lotes de 25 a 30 palmos, ou
em enfiada simples nas parcelas de 15 a 20 palmos. Por isso, a presença dos lotes de frente
larga parece justificar-se apenas pela necessidade de volumosos programas, como o do
edifício de rendimentos lisboeta, ou a sinalização dos sobrados alentejanos. Além destes
casos, a testa de 40 palmos comparece na atuação dos engenheiros militares responsáveis
pela traça de povoações planeadas durante o séc. XVIII, nomeadamente no Alentejo, mas
também no Brasil.

4 A URBANIZAÇÃO LITORAL A NORTE


O crescimento urbano que acompanha a industrialização e a expansão dos caminhos-
de-ferro modificou, todavia, aquela preferência. Em finais do séc. XIX, erguem-se casas
de frente larga com 40 palmos noutras áreas. Em Coimbra, por exemplo, o módulo de 40
palmos predomina nos parcelamentos especulativos ou sociais de habitações “operárias”,
junto à Estação Velha e em Montes Claros, fronteira da promoção imobiliária privada na
periferia da cidade [13].
Curiosamente, a adoção do sistema métrico a meados do séc. XIX não vai erradicar o
módulo de 40 palmos, talvez por ser exatamente conversível em 9 metros redondos e sua
capacidade em acomodar os espaços habitacionais. Esta métrica será depois associada ao
discurso sanitarista em prol da iluminação e ventilação abundantes, por permitir projetos
de casas volumetricamente compactas, mas ainda assim com janelas abrindo diretamente
para o exterior em todas as suas divisões.
Uma das últimas experiências em larga escala com o módulo de 9 metros é coordenada
já no Estado Novo por Cottinelli Telmo, no planeamento do bairro operário Camões, no
núcleo ferroviário do Entroncamento. Diversos projetos de casas com frente semelhante
declinam variações sobre o tipo originário da casa alentejana de quatro células (por vezes

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a cozinha é uma dessas células, noutras é um anexo nos fundos da casa). A modernidade
de tais projetos consiste em explorar configurações de circulação, com e sem corredores
ou halls de distribuição entre as divisões [14].
Por seu lado no Norte do país, com a chegada do caminho-de-ferro ao Porto, passando
por Vila Nova de Gaia, o início da década de 1860 traduz-se num importante processo de
urbanização do território atravessado pela nova infraestrutura. À Linha do Norte juntam-
se outras infraestruturas de relevo, designadamente as estradas distritais e municipais que
ao longo da segunda metade de Oitocentos atravessam o território gaiense. São vários os
núcleos territoriais formados devido a esta infraestrutura, ancorados na sua maioria em
estações ou apeadeiros da Linha do Norte. De entre estes, abordam-se os delineados até
à implantação da República, constituídos como zonas residenciais de estâncias balneares,
apresentando cada um diferentes critérios de desenho, embora sobre um mesmo modelo.
A análise dos projetos, documentados nos acervos do Arquivo Municipal Sophia de Mello
Breyner, permite não só compreender a evolução daqueles critérios mas também a forma
de crescimento urbano de cada estância. Outras informações permitem ainda registar as
intenções de desenvolvimento desta frente com projetos não executados que propunham
a interligação das estâncias balneares, criando assim um tecido urbano contínuo ao longo
de vários quilómetros da costa atlântica e da linha férrea. Uma vez completo, o conjunto
das estâncias balneares do litoral gaiense tornar-se-iam no mais extenso conjunto urbano
da região do Porto a estabelecer-se sob um mesmo princípio urbanístico alicerçado numa
malha de arruamentos arborizados.
A urbanização da praia da Granja é a primeira cronologicamente. Os planos terão tido
início numa ocasião em que se preparavam os trabalhos de construção do troço ferroviário
entre Estarreja e Vila Nova de Gaia (Castro, 1973, pp. 64-74) [15]. Esta linha atravessa
os terrenos da antiga quinta da Granja, detida até à extinção das ordens religiosas pelos
monges Agostinhos de Grijó, mas adquirida em 1860 por Fructuoso José da Silva Ayres.
É ele que promove a urbanização dos terrenos, do lado poente do caminho-de-ferro, desde
logo junto ao local onde é construída uma estação ferroviária do terceiro nível hierárquico.
A urbanização realizada prevê a criação de uma primeira via seguindo o eixo ferroviário
norte-sul (Avenida Sacadura Cabral), para além de duas outras paralelas (atuais Avenida
da República e Esplanada Fernando Ermida), e quatro arruamentos perpendiculares, por
forma a criar nove quarteirões. As edificações serão apenas realizadas, no entanto, entre
a linha ferroviária e a paralela mais próxima, pois a distância face à costa vem a ser mais
reduzida devido ao avanço progressivo do mar nos anos que se seguem à construção dos
molhes do Porto de Leixões.
As primeiras casas erguidas na Praia da Granja constituem portanto uma frente urbana
voltada diretamente para a via que acompanha a linha de caminho-de-ferro do lado poente.
Tratam-se, na sua maioria, de casas em correnteza, afastadas do limite da via pública por
forma a criar largos terraços ou alpendres. Nos restantes arruamentos, as edificações são
geralmente isoladas em cada lote ou assumem uma implantação geminada, fruto da sua
construção conjunta, distanciando-se frequentemente dos limites das vias.
Como espaço público de exceção, verifica-se o alargamento dessa via inicial (Avenida
Sacadura Cabral) junto à estação ferroviária, entre as duas primeiras artérias transversais,
formando uma pequena alameda. Num dos seus extremos é edificado o primeiro edifício
do conjunto urbano que não apresenta funções residenciais, designadamente o edifício da
Assembleia da Granja, destinado a funcionar como estabelecimento de recreio da estância
balnear. No extremo oposto da alameda surge um outro edifício não-residencial, o Hotel
da Granja. Este conjunto urbanístico é ainda complementado com a urbanização realizada

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do lado nascente à linha ferroviária, onde surgem posteriormente algumas casas, mas sem
ordenamento planeado, e ainda uma capela.
O desenho urbanístico desta estância balnear será completado já em finais da primeira
metade do século XX, quando é realizado o talude de sustentação da esplanada criada ao
longo da segunda rua paralela à linha de caminho-de-ferro, formando um novo espaço de
exceção. Destaca-se então a planta semicircular em avanço sobre a praia, segundo o eixo
de simetria da fachada de uma das principais residências erguidas nesta frente marítima,
já na década de 1920.
A Praia da Aguda, distando algo mais de 1 quilómetro da Praia da Granja, é a segunda
estância a ser urbanizada no litoral gaiense. Neste local existia já uma pequena povoação
piscatória, integrada na nova urbanização, tanto quanto se sabe, por iniciativa do mestre-
de-obras João Gomes da Silva Guerra e de outras personalidades, que se lhe associam na
última década do séc. XIX (Tenreiro, 2020, vol. 1, p. 143) [16]. O desenho urbano desta
nova estância balnear vai seguir as diretrizes das ruas paralelas à linha férrea traçadas na
Praia da Granja. Assim, a Avenida Sacadura Cabral e a Avenida da República conservam
os mesmos nomes, sendo que a terceira, no alinhamento da Esplanada Fernando Ermida,
toma o nome de Avenida Gomes Guerra, promotor da urbanização, que desempenhou o
cargo de vereador na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. Perpendicularmente, são
lançados cinco arruamentos, partindo o mais largo do apeadeiro ferroviário em direção à
povoação piscatória, atualmente designado Avenida Jorge Correia. No cruzamento com
o terceiro arruamento paralelo à linha de caminho-de-ferro, a Avenida Gomes Guerra, é
criada uma grande praça circular que se estabelece como o principal espaço público desta
urbanização da Praia da Aguda, onde se ergueu primeiramente uma capela e, mais tarde,
um quartel de bombeiros, sendo o traçado urbano, muito possivelmente, do Major Agnelo
José Moreira.
O desenvolvimento deste núcleo realizou-se pois inicialmente em direção ao primeiro,
Praia da Granja, unindo-se ambas as malhas cerca de 1911, como atestam os documentos
existentes no arquivo municipal gaiense, que registam ainda a proposta de várias artérias
transversais à linha férrea que não chegam a ser realizadas. Além deste crescimento, no
sentido sul, a urbanização da Praia da Aguda expande-se igualmente para o interior, isto
é, para o lado nascente da linha de caminho-de-ferro. A principal artéria que, com origem
na povoação piscatória, atravessa a praça circular e cruza a linha férrea no apeadeiro da
Aguda, prolonga-se até ao alargamento de um antigo caminho rural, o Largo de Arcozelo,
regularizado já no segundo quartel do séc. XX, passando entre eles a estrada distrital que
se dirige para a Praia da Granja. A última expansão da urbanização da Praia da Aguda é
realizada já em meados do séc. XX em direção a norte, seguindo as mesmas diretrizes da
expansão sul.
É de notar que, tal como na Praia da Granja, também a urbanização da Praia da Aguda
vai apresentar diferentes tipos de implantação, para as edificações que ali serão erguidas.
O primeiro corresponde a uma construção à face da via pública, que se verifica não apenas
nos arruamentos do bairro piscatório como também ao longo de vários troços da segunda
via paralela à linha de caminho-de-ferro (atual Avenida da República). O segundo tipo de
implantação corresponde a edifícios justapostos entre si, mas afastados dos limites da via
pública, modelo vagamente semelhante àquele observado ao longo da frente de edifícios
voltados para a alameda e a linha de caminho-de-ferro na Praia da Granja. Finalmente, o
terceiro tipo de implantação corresponde a casas isoladas nas suas parcelas e afastadas da
via pública. Pela conjugação destes três tipos, nos quais o segundo se estabelece em áreas
de transição entre as outras duas tipologias, verifica-se a vontade de atribuir um carácter

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mais urbano a certos espaços da estância balnear, criando eixos ou centros onde se podem
fixar os estabelecimentos comerciais essenciais ao funcionamento e à vivência desta zona
residencial e de veraneio.
Pouco após a urbanização da Praia da Aguda é levada a cabo uma nova urbanização a
cerca de 2,5 quilómetros a norte, na Praia do Senhor da Pedra. Desconhece-se a data de
início do processo de construção, mas em 1899 é anunciada a venda em hasta pública de
lotes para edificação no local (Tenreiro, 2020, vol. 3, p. 227) [16]. O território que se vai
ocupar com a nova urbanização situa-se inteiramente na freguesia de Gulpilhares, a norte
da atual Alameda do Senhor da Pedra, prolongando-se até Francelos, abrangendo portanto
os terrenos entre a praia e a estrada que cruza o litoral gaiense, que aqui toma o nome de
Avenida Gago Coutinho, no prolongamento da Avenida Sacadura Cabral. Trata-se de um
dos mais extensos e ambiciosos projetos de urbanização realizados para a frente atlântica
do município de Vila Nova de Gaia, propondo o ordenamento de uma faixa costeira com
mais de um quilómetro de extensão, mas do mesmo é realizado apenas uma pequena parte,
precisamente junto à Alameda do Senhor da Pedra.
Os documentos existentes sobre esta urbanização constituem peças de grande interesse,
uma vez que o seu plano indica detalhadamente os lotes que compõem cada uma das suas
partes, situação excecional no contexto dos empreendimentos para o litoral de Vila Nova
de Gaia. O plano, que terá certamente sido apresentado à Câmara Municipal por iniciativa
dos proprietários interessados em lotear os terrenos, previa a organização da edificação
em dois tipos diferentes de lotes, designadamente alguns com 10 metros de largura na sua
frente para a via pública e outros com o dobro da largura. Apenas uma frente do primeiro
tipo de lotes chega a ser edificada, com casas erguidas face à via pública, o que denuncia
uma intenção de criar na parte correspondente aos talhões dessas características uma zona
de carácter mais urbano, junto da Alameda do Senhor da Pedra. Ao invés, o tipo de lotes
de maior largura deveria, certamente, prever já a um tipo de edificação isolada na parcela
e afastada da via pública. Outra característica que distingue este plano é a demarcação de
amplos terrenos destinados especificamente a espaço público ajardinado e de recreio, que
interrompem ocasionalmente a continuidade do tecido edificado, para além de uma praça
circular localizada num dos cruzamentos da estrada que baliza a nascente toda a estância
balnear.
Este plano de urbanização será revisto posteriormente na sua articulação, a norte, com
o pequeno aglomerado então já existente, na Praia de Valadares. A alteração do plano de
urbanização, realizada pelo construtor Fortunato Fernandes da Silva, terá sido realizada
devido à abertura, nos primeiros anos do séc. XX, de uma avenida de ligação entre a via-
férrea e a costa em Francelos. Designada hoje de Alameda da República, ela constitui um
elemento insólito de urbanização do litoral gaiense. Não se conhecem documentos sobre
o início da sua construção, mas existem vários projetos relativos à adaptação e integração
no restante tecido urbano local. Esta alameda apresenta dois troços distintos, um primeiro
unindo a Praia de Francelos ao apeadeiro ferroviário e um segundo do lado oposto da via-
férrea, a partir de uma praça semicircular, de onde irradia uma outra artéria que se articula
com a rede viária de matriz rural. Também aqui surgem dois tipos de implantação para as
edificações, designadamente lotes com construções à face da via pública, na proximidade
da costa, e talhões de grande dimensão, para habitações isoladas dos limites das parcelas
e rodeados por jardins.

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5 CONCLUSÕES
O período de 150 anos que cobre este trabalho, entre a consequência do terramoto e a
implantação da República, constitui uma base de referência para os projetos urbanos que
durante o Estado Novo e depois da revolução se desenvolveram até ao presente. Os casos
aqui apresentados, propositadamente diversos nas suas escalas e geografias, definem as
dimensões tradicionais da “nossa arte” de concretizar traçados: incluir as preexistências
territoriais e condicionantes económicas, ligar o desenho urbano à métrica da construção
e equilibrar o conjunto com alguma variedade.
O modelo urbanístico da Baixa foi absorvido nos processos seguintes, no crescimento
da capital e noutros exemplos em todo o país. De uma iluminista estrutura reticular, entre
longitudinais e transversais, ligadas à arquitetura e aos espaços públicos, que formam o
“cenário público” do século XVIII, passámos a eixos lineares de maior ambição, mas sem
descurar os momentos de diversidade urbana.
A influência dos planos traçados soube perdurar na expansão das cidades e vilas, face
à evolução dos requisitos sociais e económicos da burguesia. E se a escassez dos recursos
conduziu a que só uma porção limitada dos planos delineados tenha sido executada, a sua
aplicação faseada permitiu o ordenamento controlado de parte significativa dos espaços
urbanos portugueses.
A visão dos objetivos foi assim combinada com o pragmatismo das respostas, onde as
normas da construção tradicional estiveram presentes, procurando soluções adaptadas aos
ambientes em mudança, a partir do seu enquadramento territorial, em cada circunstância.
Estas dimensões oferecem pois uma componente operativa e profissional para os nossos
dias, no domínio da organização urbana, eventualmente da reabilitação e reconversão dos
seus elementos, que o futuro venha a solicitar.

6 REFERÊNCIAS
[1] França, José-Augusto. 1997. Lisboa: Urbanismo e Arquitectura. Livros Horizonte.
Lisboa.
[2] Salgueiro, Teresa Barata. 2001. Lisboa, Periferia e Centralidades. Celta Editora.
Lisboa.
[3] Silva, Raquel Henriques. 2002. “Planear a cidade burguesa (1777-1900)”. In Lisboa
Conhecer Pensar Fazer Cidade. Câmara Municipal de Lisboa.
[4] Marques, Cátia Gonçalves. 2004. Manique do Intendente: uma vila iluminista. Prova
Final de Licenciatura em Arquitectura. Departamento de Arquitectura da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC). Coimbra.
[5] Ribeiro, Orlando. 2011 [1945]. Portugal, O Mediterrâneo e o Atlântico. Letra Livre.
Lisboa.
[6] Quaresma, António Martins. 2009. Forte do Pessegueiro. Fortificação da Costa de
Sines após a restauração. Câmara Municipal de Sines.
[7] Figueiras, Rui. 1999. Vila Pombalina: Vila Real de Santo António. Câmara
Municipal de Vila Real de Santo António.
[8] Rossa, Walter (coord.) 2005. “Planos: Salvaguarda de Vila Real de Santo António”.
In Em Cima do Joelho. Centro de Estudos de Arquitectura. FCTUC. Coimbra.

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[9] Amaro, Armando. 2020. Indústria Conserveira na Construção da Malha Urbana no


Algarve: Das estruturas produtivas à habitação operária (1900-1960). Dissertação de
Mestrado Integrado em Arquitetura. Universidade de Évora – Escola de Artes.
[10] Mendes, António Rosa (coord.) 2010. Vila Real de Santo António e o Urbanismo
Iluminista. Câmara Municipal de Vila Real de Santo António.
[11] Correia, José Horta. 1997. Vila Real de Santo António. Urbanismo e Poder na
Política Pombalina. Edições da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
[12] Domingas, Maria Simplício, apud Baganha, José. 2016. A arquitectura popular
dos povoados do Alentejo. Edições 70, Lisboa.
[13] Calmeiro, Margarida Relvão. 2015. Urbanismo antes dos planos: Coimbra 1834–
1934. Tese de doutoramento em Arquitetura, na especialidade de Teoria e História da
Arquitetura. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
[14] Paixão, Diogo Alexandre Nunes. 2016. Os bairros operários da Companhia de
Caminhos de Ferro Portugueses. O caso do Entroncamento até à primeira metade do
século XX. Dissertação de Mestrado em Arquitectura. Universidade do Porto, Faculdade
de Arquitectura.
[15] Castro, António Pais de Sande e. 1973. A Granja de todos os tempos: desde a
Granja dos Frades de Grijó e da Granja dos Ayres, até à praia da Granja dos nossos dias.
Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia.
[16] Tenreiro. José Pedro de Galhano. 2020. O limiar do moderno: arquitetura ecléctica
no Porto e no norte de Portugal 1895-1925. Tese de Doutoramento. Faculdade de
Arquitectura da Universidade de Lisboa.

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