Livro Ação Socioambiental Na Amazônia
Livro Ação Socioambiental Na Amazônia
Livro Ação Socioambiental Na Amazônia
Ação socioambiental
na Amazônia:
Educação, saúde e
produção em comunidades
Editora Na Raiz
São Paulo
2020
Editora Na Raiz
Editor-Chefe: Prof. Dr. Valdir Lamim-Guedes
Conselho Editorial
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Foto da capa: Sr. Pedrinho, andando em seu castanhal nas margens do rio Madeira |
Marcelo Salazar
Foto da quarta capa: Pôr do sol no Lago do Cuniã em uma tarde de futebol | Diógenes
Valdanha Neto
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autores. O download da obra é permitido e o compartilhamento desde que sejam citadas as referências dos autores,
mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais.
2
Sumário
Prefácio ............................................................................................................................... 5
Marcelo Salazar
3
6. Saúde Integral e Integrada .................................................................................. 141
Andrea Silveira
Argollo Ferrão
4
Prefácio
Marcelo Salazar
aterrorizante, que demanda a reflexão sobre o que nos trouxe até aqui e sobre outras
que 2153 bilionários concentram mais riqueza do que 7,79 bilhões de pessoas,
Escrevo à beira do rio Xingu, vizinho ao rio Madeira, local onde me apaixonei
pela Amazônia. Acabei casando com o Xingu e seus afluentes - Iriri e Riozinho do
Anfrísio. Mas como o convite para este texto partiu de um companheiro de jornadas
1 Para uma discussão do futuro pós pandemia ver LATOUR, B. Imaginar gestos que barrem o
retorno da produção pré-crise. Paris, 2020. Disponível em: <http://www.bruno-
latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS.pdf.> Acesso em 23/05/2020.
KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
2 O mapeamento cognitivo é uma técnica de planejamento baseada na teoria dos construtos
pessoais de George Kelly que se insere, dentro da Engenharia de Produção, no campo da Pesquisa
5
propõe a montar uma representação semi-estruturada de um problema a partir da
visão de uma ou mais pessoas, cuja aplicação é incrível para muitas realidades
Operacional (PO), uma abordagem técnica que para tomada de decisões que procura determinar
como projetar e operar um sistema, geralmente sob condições de recursos escassos, buscando
organizar as possíveis variáveis de um processo e encontrar soluções eficientes.
3 SALAZAR, M. Planejamento Estratégico de projetos de Intervenção Social Utilizando como
6
Não é possível ler cada quadrinho nessa escala, mas é possível perceber a
que está em cima no mapa são objetivos, o que está embaixo, ações que levam a esses
conceitos. Se a metodologia não resolveu tudo o que encontrei, ela deixou mais claro
Subi num ônibus em São Paulo rumo a Rondônia, levando esse plano na
mochila. Viajamos por quase três dias, tomando banho e comendo em postos na
para mergulhar numa jornada de um mês. Viajamos num barco hospital, conduzido
pelo saudoso Padre Francisco Viana Pires, e passamos por diversas comunidades
para fazer o que planejamos e para mudar planos a todo momento. Remar, carregar
animados “piseiros” nos primeiros anos de NAPRA. Essa emoção traz um misto de
saudade das pessoas que foram parceiras dos muitos desafios desse período, e
também dos sonhos tecidos nesses momentos de livre pensar, sem horários, ali,
junto às comunidades.
7
do Meio. Meu desafio era atuar na implementação das Unidades de Conservação
(2006). Participei também das etapas finais do esforço de criação da Resex Rio Xingu,
Anos duros e férteis se seguiram. Uma parte importante dos desafios encarados na
Terra do Meio estão no livro “Xingu: História dos produtos da Floresta” publicado
***
povos. O Brasil abriga 254 diferentes povos em 724 terras indígenas. São cerca de
território nacional, o que leva o governo atual a afirmar que o Brasil é líder mundial
nesse quesito. Há, no entanto, 30 países com percentual maior de áreas protegidas.4
explodir entre os anos de 2002 e 2004 e depois cair drasticamente com política
Silva esteve à frente do Ministério do Meio Ambiente (2003 a 2008), foram criadas
somando 26,8 milhões de hectares, a maior extensão de UCs criada por um governo
até hoje5. Isso foi fundamental para conter o desmatamento e a grilagem de terras
8
Comunidades Tradicionais - PNPCT, que criou as bases para o reconhecimento das
Figura 2: Evolução da taxa anual de desmatamento desde 1988 na Amazônia Legal, incluindo
estimativa para 2019 (em azul).6
Crescimento, que levou para a floresta grandes obras, como as usinas do Madeira e
Foi no governo Lula, ainda sob o comando de Marina, em 2007, que foi dada a
licença prévia para Santo Antônio e Jirau. A licença de instalação já foi emitida no
período de Carlos Minc, logo após a saída de Marina Silva, em agosto de 2008. As
Os rios Madeira e Xingu tiveram a sina de serem barrados quase ao mesmo tempo.
9
impediram a emissão da licença prévia em 2010, pelo governo Lula, e a de instalação,
para todos os seres vivos que dependem desses ambientes para viver.
Territórios estes cada vez mais invadidas e ameaçadas no governo de Jair Bolsonaro.
tamanho do estado de São Paulo, foram desmatados no país, metade dessa área na
afora pelo agronegócio brasileiro. Os dados indicam que não faz sentido desmatar
Terra que estuda os chamados “rios voadores”, estabelecem uma relação direta entre
10
chuvas no centro-oeste e sudeste do Brasil depende das florestas conservadas na
suas emissões de carbono - conta que deve ficar cada vez mais cara no futuro. Além
disso, a consequente falta de chuvas pode colocar em risco a pouca área realmente
8 Nobre, Antonio Donato. “A floresta está perdendo capacidade de sequestrar carbono porque está
doente”, Mongabay, entrevista concedida a Sibélia Zanon, em 13 Dezembro 2019.
https://brasil.mongabay.com/2019/12/antonio-donato-nobre-a-floresta-esta-perdendo-capacidade-
de-sequestrar-carbono-porque-esta-doente/ Acesso em: 24/05/2020 e palestra de Antônio Nobre “O
QUE VOCÊ NÃO SABIA SOBRE A ÁGUA” no Seminário FRU.TO 2019. São Paulo, SP. Disponível
em < https://www.youtube.com/watch?v=GgomGGWultY > Acesso 24/05/2020
9 ISA - Instituto Socioambiental. Site institucional. Notícias socioambientais: Desmatamento em
Terras Indígenas sobre 124%, mas segue concentrado em áreas críticas, 12 de Dezembro de 2018.
Disponível em: <https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/desmatamento-
em-terras-indigenas-cresce-124-mas-segue-concentrado-em-areas-criticas> Acesso 24/05/2020.
11
Como muito bem pontua a jornalista Eliane Brum em diversos de seus artigos
conciliação ficou mais explícita na gestão de Dilma Rousseff, que traçou para a
potencial da floresta e seus povos para contribuir com outros caminhos possíveis
sobre alimentos, cultivo e manejo de florestas e solos esses povos guardam? Quantas
Infelizmente, há ainda muito trabalho a fazer para que esse potencial seja
realizado e que a sociedade mude a relação de valor com a floresta e seus povos.
12
Histórias do Napra, um projeto de juventudes, rios e florestas num cantinho
conservado de uma das regiões mais devastadas da Amazônia
No contexto de evidente crise, abandono e ameaça da floresta e seus povos, e
Rio Madeira, em expedições que ocorriam durante as férias de julho. A iniciativa era
para o grupo.
viabilizar viagem, uniram-se e, liderados pelo recém formado dentista Dr. Hamilton
Diversas alternativas foram estudadas, e optou-se por uma parceira com o Projeto
2002, o NAPRA foi formalizado como associação privada sem fins lucrativos e
13
atuação se concentraram em três áreas: Saúde, Produção e Educação, de forma
interdisciplinar.
comunidades ribeirinhas dessa região. Era notável que muitos dos estudantes que
aspecto e a focar também num processo cada vez mais estruturado de formação,
começou. Em julho, essas equipes passam por uma imersão nas comunidades
alguns dos membros do NAPRA uma breve viagem diagnóstico antes de julho para
parceiros locais.
esse tipo de assistência na região. Depois que a Secretaria de Saúde de Porto Velho
14
comunidades de Santa Catarina, às margens do rio Madeira. O projeto teve uma das
da antena para o satélite, fizemos uma fila de umas 15 pessoas entre um orelhão que
foi aprimorado e implementado na Terra do Meio pelo ISA e, em outras regiões, por
outras organizações. Esse projeto resultou numa parceria com Universidade de São
15
Paulo e Universidade Técnica de Berlim, com diversos intercâmbios e projetos
laboratório para entendermos a dinâmica real de mercado. Éramos cinco sócios, dois
de São Carlos do Jamari (Crispim Paulino e Márcio Santana) e três de São Paulo
parceiro para beneficiar na região de São José do Rio Preto. Com a castanha toda
depois para R$ 23,00 por kilo. Mas, de repente, caiu a R$ 13,00 por conta de um navio
que havia retornado da Europa, recusado por alto índice de aflatoxina (seria bom
acabou entregando nossa castanha para pagar dívidas. Perdemos toda a grana (o
equivalente a cerca de 70 mil reais hoje). A castanha estava paga nas comunidades,
mas não houve a distribuição de lucro, como era combinado com os nossos sócios
16
Por meio do NAPRA, foram realizados também os primeiros diagnósticos
Resex do Lago do Cuniã, ESEC Cuniã e FLONA Jacundá. Época em que poucas UCs
tinham seus planos de manejo. Os diagnósticos foram feitos todos de uma vez, pois
delegar esse desafio a um grupo de estudantes que ia uma vez por mês para área.
De fato, quase não havia recursos para isso. Demoramos dois anos, mas entregamos
Unidades de Conservação e outras oficinas, também feitas de uma só vez por falta
articulação de gestores do IBAMA nesse processo. Esse jeito de fazer foi pioneiro e
talvez tenha inspirado outras equipes Brasil afora a trabalhar de forma mais
Ouvi que o NGI Cuniã-Jacundá foi o primeiro a ser criado no Brasil em 2010.
alguns exemplos que me vem à mente, como Márcio Santana, que teve atuação no
15 Os Plano de Manejo de Unidades de Conservação são de fato planos de gestão com caracterização
da região, das comunidades tradicionais do interior e entorno, das ameaças e diretrizes para o
desenvolvimento da área. Mais informações e os planos de manejo das áreas referidas podem ser
encontrados em https://www.icmbio.gov.br/portal/unidadesdeconservacao/planos-de-manejo
16 ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, órgão gestor das Unidades
de Conservação no Brasil. Nasceu do IBAMA, que detinha essa função até a criação do ICMBio.
17
Movimento dos Atingidos por Barragem; Crispim Paulino dos Santos, que montou
e outras atividades; Ademilton Lopes, da RESEX Cuniã, jovem liderança que ajudou
Minhas Raízes, um grupo musical local que está ganhando espaço no estado de
Calama. Dos estudantes, destaco Raquel Rodrigues do Santos, Bióloga pela UFSCar,
que trabalhou por quase 10 anos no ISA e hoje está fazendo doutorado na ESAQ-
de produção pela USP de São Carlos, que teve uma empresa para comercialização
de castanhas, foi consultor do IBAMA e hoje atua como gestor de grandes projetos
(Gaguinho), um dos muitos que mudou para Porto Velho, hoje militante do
produtos da floresta. Quase 800 voluntários passaram pelo NAPRA ao longo desses
muitos sigam conectados com a Amazônia e seus povos, usando esse vínculo para
dos rumos do país e do mundo. A geração que está hoje nas universidades é a
18
estruturantes para garantir a saúde do planeta e enfrentar a crise climática.
Movimentos como o Fridays for the Future, iniciado pelo protesto solitário da sueca
Conectar esses movimentos com a Amazônia e seus desafios é uma das chaves para
o desenho desse novo momento do mundo. Uma das formas mais efetivas de gerar
essa conexão é no chão, nos rios, com experiências reais, em iniciativas como as
Boa leitura!
Marcelo Salazar
Vila Canoas, Altamira-PA, 21 de maio de 2020
no meio de uma quarentena pra lá de ativa!
19
Amazônia hoje: fortalecendo a ação socioambiental em
comunidades
extinção. A floresta também é crítica para a regulação dos ciclos da água e para um
estoque de carbono e sua queima uma fonte de emissões de gases que levam à
mudança do clima.
Essas alianças são fundamentais justamente porque é comum que os atores dessas
20
movimentos sociais, dentre outros apoiadores, pode possibilitar o acesso a recursos
valiosos para suas lutas políticas. Entretanto, é fundamental que seus apoiadores,
que dominam fontes de poder social, sejam capazes de entender suas próprias
mundo que elas podem envolver. Essa capacidade de refletir é a forma mais efetiva
de evitar que as próprias visões e interesses dos apoiadores não se imponham sobre
a dos apoiados.
incluindo (i) o território e do meio ambiente; (ii) a educação e a cultura; (iii) a saúde
comunidades sobre o seu território e sobre os recursos naturais dos quais dependem
são aqui abordadas. Essa é uma questão crucial, uma vez que é preciso reconhecer
que comunidades amazônicas são atores marginais nas estruturas sociais brasileiras
21
são forças importantes de desterritorizalização de comunidades tradicionais.
Essa primeira parte é composta por dois textos que abordam a influência do
as características distintivas desse território. Isso faz com que esses projetos gerem
usina hidrelétrica de Belo Monte para desvelar parte da trama (e do drama) social
dos atingidos por barragens. Por meio de amplo cruzamento de dados secundários
e realização de entrevistas com mulheres que bordam arpilleras, revelam como essa
desejem somar forças aos movimentos organizados da sociedade civil pela luta pelos
direitos e dignidade
22
Outras dimensões chave do desenvolvimento comunitário são as da cultura
estão relacionadas com o ambiente que habitam e que são distintas das de outros
grupos sociais brasileiros. Ainda que nos dias de hoje a diversidade cultural da
lidar com esse contexto. Por um lado, é fundamental que elas promovam a
capacidade crítica dos comunitários, para que eles consigam enxergar as formas
veladas de dominação cultural das quais são vítimas, tornando-se mais livres. Por
potência para transformar sua própria condição. Para lidar com essas questões, os
23
tem, por mais bem elaborada que seja. Finaliza problematizando o que chama de
altamente preparadas perante projetos que não foram bem-sucedidos. Daí decorre a
que “tudo” é importante estar presente na escola, desde uma “educação financeira”
até o ensino de “mitos e lendas locais”. Dialoga essas questões com o que realmente
por meio de projetos faça alianças com as escolas locais sem responsabilizá-las por
de vida locais.
Finaliza seu texto fazendo votos de maior reconhecimento sobre o que nos une frente
24
ao que ataca nossa humanidade. Ideias a inspirar não somente projetos
fortalecimento.
Indica o avanço no trato das questões de modo estritamente biológico para uma
social e cultural”.
25
Amazônia, desenvolvidos, respectivamente, no oeste do Pará e na RESEX Chico
produção. Ainda que ela envolva questões cruciais para conciliar melhoria da
dos capítulos aqui reunidos enfatizam, inclusive, como as questões econômicas não
são dissociáveis das culturais, evidenciando como a dinâmica dos mercados nos
26
em concepções domésticas ou tradicionais. Propõem ainda que ainda que essas
tecnologias e formas de organização devam ser respeitadas, seus limites devem ser
essas lógicas, os autores destacam a lógica técnica ou industrial, que pode ser útil na
tecnologias sociais.
propicia que o manejo dos produtos florestais não madeireiros seja feito de forma
florestais, que deve ser feito por meio do diálogo dos próprios produtores, que estão
que gera incentivos de longo prazo para a conservação. O capítulo inclui um estudo
27
não são homogêneas, os autores propõem que pelo menos três concepções distintas
das famílias de trabalhadores que habitam as áreas rurais da região. Por fim, os
Hanai e Maiara Rosa Silva Nunes exploram a construção histórica da defesa de ações
de turismo com base comunitária, com especial enfoque para a realidade amazônica.
28
1. Impactos dos projetos de infraestrutura na Amazônia
Brasileira: um território em transformação
Apresentação
A Amazônia é um território distinto, seja na perspectiva do Brasil, seja na
brasileira, uma visão alternativa do papel que esse território desempenha. Não se
àqueles que já foram apropriados no centro sul do Brasil e, por isso, susceptível à
Amazônia são apenas retóricas e estes (impactos) servem de pretextos outros que
pela produção pecuária, soja, cana e dendê, que resulta, em áreas desmatadas,
29
mineral já é um vetor importante nesta questão e que há muitos interesses para o
crescimento na região.
Estado também são distintas. A vida vivida tem relação direta com a biodiversidade
geram impactos nas populações amazônicas que por vezes são irreversíveis. Se por
compatíveis com sua renda, e onde o Estado não tem presença efetiva. Isso faz com
1Na Amazônia ainda há atividades de escambo, que é constituída por inter-relação entre
comunidades e pessoas que tem laços de afinidade, de vizinhança e/ou de parentesco.
30
O problema abordado neste texto refere-se à relação entre as interferências na
base:
ou secas intensas.
biodiversidade.
O território não é apenas o resultado da superposição de um
conjunto de sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas
criadas pelo homem. O território é o chão e mais a população, isto
é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas
materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi2
2cf. p. 96. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
9. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2002.
31
da Amazônia hoje é a pecuária e outras causas importantes são a agricultura de larga
pela água deste texto são, na visão do autor, as maiores consequências das
outro lado, impactam a vida vivida dos moradores da Amazônia (conflitos) com
impactos sociais locais. A hipótese que permeia é que existe relação entre as duas
3 RIVERO et al. Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do
desmatamento na Amazônia. Nova Economia, v.19, n.1, 2009.
4 cf. p. 29. CPT. Conflitos no Campo- Brasil 2016. Coordenação: Antônio Canuto, Cássia Regina da
32
A máxima de que a infraestrutura induz o desenvolvimento
O desenvolvimento de povos e nações ainda é entendido como sinônimo de
resíduos (efluentes sólidos, líquidos e gasosos) que nem sempre podem ser
flora. O uso dos recursos naturais é feito com base no uso intensivo de capital
implantação do Tennesse Vale Authority- TVA iniciado em 1933 nos EUA, na bacia
desenvolvimento regional. A região era uma área pobre dos EUA, com grande
33
implantadas na região foram: controle de cheias, implantar Usinas Hidrelétricas,
intervenção requer. Até porque o espaço era compreendido como não ocupado, sem
Amazônia para fins de geração elétrica, iniciado com as UHE`s Samuel, Balbina e
Tucuruí, e mais recentemente as UHE`s do Rio Madeira (Santo Antônio e Jirau), Belo
a tônica reticente, desde as primeiras intervenções até os dias atuais. Isso foi feito
34
desmatamento enorme e crescente com perda de biodiversidade (dados mostrados
população Amazônica.
está presente em nove (09) Estados do Brasil (Pará, Amazonas, Maranhão, Goiás,
Mato Grosso, Acre, Amapá, Rondônia e Roraima) com biomas distintos do Brasil e,
vegetação florestal densa e fechada, rios com volume e velocidade de água altas, rica
8 A Amazônia legal foi criada em 1953 como área de atuação da Superintendência do Plano de
Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA).
9 BECKER, B. K. Os eixos de integração e desenvolvimento e a Amazônia. Revista Território, ano
IV, n. 6, 1999.
35
Historicamente a Amazônia era ocupada por milhões de indígenas.
penetração na Amazônia em busca das drogas do sertão; até 1970 a Amazônia tinha
somente 1% da sua área desmatada. Nos 40 anos seguintes, 18% da região foi
desmatada.
Foi no século XX, depois das guerras mundiais, que se intensificou a ocupação
como um espaço a ser ocupado por atividades econômicas tradicionais do centro sul
espaços vividos.
com 62% vivendo na zona urbana e 38% na zona rural, e tem baixo impacto no PIB
entendida como uma intrincada relação entre urbano e o rural, entre o industrial e o
36
Territórios são maiores do que as limitações geográficas
Segundo Escobar (2014, p. 88)10, o território é um "espaço coletivo, composto
por todo lugar necessário e indispensável onde homens e mulheres, jovens e adultos,
histórica e cultural” (tradução livre). O Autor destaca ainda que o território é uma
articulação complexa entre aquele que nele vive e a biodiversidade que o envolve.
10 ESCOBAR, A. Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia.
Medellin: UNAULA, 2014.
11 O equilíbrio pode ser representado pela Entropia que mede o grau de desorganização de um
sistema.
37
e mesmo que não haja a explicitação discursiva há sustentabilidade ambiental,
território (que foi assentado) o mesmo contexto anterior (como o rio, a várzea, os
abandonos.
vezes esse processo é ilegal. Entretanto, mesmo quando está envolto em legalidade
os problemas causados são tão grandes que podem resultar em conflitos. Não
tratarei, com o rigor que merecem, os conflitos, porque o texto está focado nos
A violência no campo
A violência no campo avança para as áreas de expansão do capital,
notadamente a Amazônia e o Cerrado. A Amazônia tem hoje 57% dos casos conflitos
do Brasil. Esses conflitos envolvem 54% famílias do território, como destacado por
questão agrária deixa de ser uma questão restrita ao campo e envolve a sociedade
12 cf. p.12. CPT. Conflitos no Campo- Brasil 2016. Coordenação: Antônio Canuto, Cássia Regina da
Silva Luz, Thiago Valentim Pinto Andrade. Goiânia, 2016. 232p.
13 cf. p.11. SILVA, J. G. A modernização dolorosa Estrutura agrária, fronteira agrícola e
38
as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em
diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela
terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes
conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou
por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas.
produção de mais valia. Os conflitos que ocorrem no seio das sociedades desiguais
são mais intensos e graves, porque são resultado da exclusão do acesso a bens e
detrimento do outro, um conflito de classes, entre aqueles que tem e aqueles que não
tem. Como destacado pela CPT15, no Brasil há sempre violência por causa de nossa
Boff16, "a maioria dos crimes fica impune, seja pelas longas distâncias a serem
terra nem sempre está qualificada de maneira legal, porque uma parte das áreas
15 CPT, 2016.
16 CPT, 2016, p.30.
39
que nela vivem terem ou não a posse de fato e de direito. Portanto, essa questão
transitória depende dos atores que atuam no Território. Tal situação remete à
mais pobres não tem as ferramentas institucionais e legais para lutar por direitos,
“invasão, ocupação, favela, gleba não são inocentes e procuram definir uma situação
Deslocamentos compulsórios
A respeito de deslocamento forçado por eventos, Sassen19 destaca que:
Esse foi o quinto ano [2011] em que o número de pessoas deslocadas
à força superou os 42 milhões. A classificação “pessoas deslocadas”
inclui várias populações diferentes. Em 2011, a distribuição era de
15,2 milhões de refugiados (10,4 milhões sob os cuidados da
ACNUR e 4,8 milhões registrados na Agência das Nações Unidas
para os Refugiados Palestinos), 26,4 milhões pessoas deslocadas
dentro de seu próprio país por causa desse foi o quinto ano em que
os conflitos e 895 mil pessoas em busca de asilo, com
aproximadamente um décimo deste último grupo somente na
África do Sul. O total de 2011 contém, entre outras, três alarmantes
tendências de crescimento que gostaria de destacar aqui. Uma é que
17cf. p. 174. ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonização da terra e a moradia na era das finanças.
São Paulo: Boitempo, 2017.
18 cf. p. 152. ROLNIK, R. Guerra dos lugares: A colonização da terra e a moradia na era das
40
se estimava que 4,3 milhões de pessoas eram novos deslocados em
decorrência de conflitos ou perseguições. A segunda tendência era
que os 895 mil solicitantes de asilo que acabei de mencionar
representavam o maior número nessa categoria em mais de dez
anos. A terceira era que outras 3,5 milhões de pessoas eram novos
deslocados dentro das fronteiras de seu próprio país, um aumento
de 20% em relação a 2010. atravessando fronteiras internacionais,
deslocados à força), com aproximam ente um décimo.
41
oi na trama geométrica de uma agrovila, esvaziada de significados
... lhes faltavam os referenciais espaciais e as relações sociais que os
situavam nas redes do passado.
Conflitos no campo
Os conflitos no Brasil, apresentados numericamente no Quadro 03, indicam
são disputas entre os que podem mais com os que podem menos, do latifúndio com
o pequeno proprietário, daqueles que vão barrar o rio com aqueles que utilizam o
rio como fonte de vida. São forças inigualáveis, com acessos as instâncias distintas e
passaram de 925, afetando 451 mil pessoas, para 1.536, afetando 910 mil pessoas. O
chegando a 61. Em 2003, esse número chegou a 73 (aumento de 70% entre 2002 e
23CPT, 2016.
24RIVERO et al. Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do
desmatamento na Amazônia. Nova Economia, v.19, n.1, 2009.
42
Ferreira25, em um documento da SEDAM (Secretaria de Desenvolvimento
passou de 14 para 172 (no mesmo período), multiplicando-se por 12. Uma parte
hidrelétricas e algumas tem tamanhos expressivos, tais como: Santo Antônio e Jirau
Os conflitos pela água são definidos por resistências, na maior parte das vezes
27 cf. p. 87. DAOU, A. M. Um espaço fora do mapa: as lutas que as águas ensejam e o território como
43
simbolizava o espaço social pleno na vida ribeirinha ... Em favor da
racionalidade métrica, os mapas, de fato, nada acrescentavam sobre
a existência daquele modo de vida e promoviam na espécie de
preeminência do espaço abstrato, do qual subtraiam-se o
dinamismo da vida social e as descontinuidades correlatas às
distâncias sociais que os sujeitos operavam entre si.
pela água são as usinas hidrelétricas. Aquelas construídas na Amazônia são mais
modificações graves na dinâmica dos Rios e alterando todo o processo de vida dos
da reprodução normalmente feita nas cabeceiras dos rios e remansos, bem como as
MW. Entretanto, Silva e Rossi30 apresentaram que nas 17 UHE que iniciaram
28 RIBEIRO, A. M. Os Atingidos pela UHE Santo Antônio em Porto Velho, RO: Análise da
comunidade São Domingos. Dissertação- Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional e Meio Ambiente- Fundação Universidade Federal de Rondônia. Orientador: Artur de
Souza Moret. Porto Velho, RO. 2013.
29 O tempo de construção de UHE é entre 30 a 72 meses, com média de 40 meses (de acordo com
CPFL- Energia. P&D de Tarifas Internacionais: Relatório V– Formação de custos e preços de geração e
transmissão de energia elétrica. SP. 2015).
30 SILVA, R. P. B. da; ROSSI, L. A. Estudo comparativo dos impactos das Usinas Hidrelétricas com
os impactos evitados por uma Usina Virtual Equivalente através das ações de Eficiência Energética.
In: XIX Seminário Nacional de Distribuição de Energia Elétrica SENDI 2010. 22 a 26 de
novembro. São Paulo, SP. 2010
44
operação entre 1992 e 2002 esse valor diminui drasticamente para 1,91 famílias por
MW. Mesmo assim, os autores destacam que os valores médios mais adequados
chegam a 0,84 famílias por MW. Dessa forma, podemos afirmar então que os valores
podem ser aproximados por máximo de 23 e médio de 0,84 famílias por MW e para
efeito das análises o valor utilizado será o último, destacando que esse pode estar
que tem seus laços com o ambiente rompidos. Por outro lado, os assentamentos não
RIBEIRO, A. M. Os Atingidos pela UHE Santo Antônio em Porto Velho, RO: Análise da comunidade São
31
45
forma sustentável, após o deslocamento- na comunidade São Domingos- produzem
pesquisadas é a preferência pelo local antigo, bem como o desejo de retornar a ele.
Desmatamento na Amazônia
Na Amazônia, os estados com maior desmatamento, comparando com o total
desmatado, são Mato Grosso (33,8%), Pará (33,9) e Rondônia (13,6) que juntos tem
81,3% do total desmatado da Região. O Quadro 1.5 e a Figura 1.2 mostram que o
liberais entre 1994 e 2004 com forte crescimento do desmatamento, e naqueles mais
46
Quadro 1.1 Conflito no campo e Conflito pela Água no Brasil: 2002- 2016. Fonte:
CPT, 2016.
Confli Total Total Pessoas Conflito pela Pessoas
tos conflitos assassinados envolvidas Água envolvidas
2002 925 43 451.277 14 14.352
2003 1690 73 1.190.579 20 48.005
2004 1801 39 975.987 60 107.245
2005 1881 38 1.021.355 71 162.315
2006 1.657 39 783.801 45 13.072
2007 1.538 28 795.341 87 163.735
2008 1.170 28 502.390 46 135.780
2009 1.184 26 628.009 45 201.675
2010 1.186 34 559.401 87 197.210
2011 1.363 29 600.925 68 137.855
2012 1.364 36 648.515 79 158.920
2013 1.266 34 573.118 93 134.835
2014 1.286 36 817.102 127 214.075
2015 1.217 50 816.837 135 211.685
2016 1.536 61 909.843 172 222.355
47
Quadro 1.2: UHE instaladas na Amazônia. Fonte: SIPOT (2017).
Nome Potência instalada (MW) Proprietária da concessão Estado
Tucuruí 8535 100% para Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. PA
Jirau 3375 100% para Energia Sustentável do Brasil S.A. RO
Santo Antônio 3150,76 100% para Santo Antônio Energia S.A. RO
Belo Monte 1338,76111 100% para Norte Energia S.A. PA
Santo Antônio
do Jari 373,4 100% para ECE Participações S.A. AP; PA
Ferreira Gomes 252 100% para Ferreira Gomes Energia S.A AP
100% para Amazonas Geração e Transmissão de Energia
Balbina 249,75 S.A AM
Cachoeira
Caldeirão 219 100% para Empresa de Energia Cachoeira Caldeirão S.A. AP
Samuel 216,75 100% para Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. RO
Rondon II 73,5 100% para Eletrogoes S/A. RO
Curuá-Una 30,3 100% para Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. PA
Salto Curuá 30 100% para Curuá Energia S.A PA
Total 17844
48
Quadro 1.3 Ocorrência de impactos de UHE`s. Fonte: Moret (2018)1.
1MORET, A. de S. Estudo dos impactos sociais, ambientais e econômicos em assentamento de UHE`s e a intervenção no circuito inferior da economia.
Relatório Científico de Pós-Doc. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional- UFRJ, 2018.
49
Quadro 1.4 Impactos ambientais e sociais em 3 assentamentos de UHE`s: Jirau, Chixoy e Lajeado. Fonte: Moret (2018) 1.
UHE Jirau UHE Chixoy UHE Lajeado
Emprego Emprego Peixe
Trabalho Renda Área para produção
Falta de peixe Falta do Rio Peixe
Falta de água para lazer Peixe Falta de verde
Falta do rio Não tem terra para Falta de paz
Quebra nas relações de produção Preferem o local antigo
vizinhança Tem que comprar tudo
Preferem o local antigo Não teve indenização
Massacres (Rio Negro)
Governo foi condenado
pela Corte Interamericana
de DH
Governo tem que fazer
reparação: econômica,
autonomia, terra para
produção, moradias e não
repetição
Preferem o local antigo
1 MORET, 2018.
50
Quadro 1.5: Desmatamento na Amazônia 1978-2015. Fonte: INPE (2016).
51
Quadro 1.5: Desmatamento na Amazônia 1978-2015. Fonte: INPE (2016) (continuação).
Ano\ Mato Amazônia
Estados Acre Amazonas Amapá Maranhão Grosso Pará Rondônia Roraima Tocantins Legal
2005 592 775 33 922 7145 5899 3244 133 271 19014
2006 398 788 30 674 4333 5659 2049 231 124 14286
2007 184 610 39 631 2678 5526 1611 309 63 11651
2008 254 604 100 1271 3258 5607 1136 574 107 12911
2009 167 405 70 828 1049 4281 482 121 61 7464
2010 259 595 53 712 871 3770 435 256 49 7000
2011 280 502 66 396 1120 3008 865 141 40 6418
2012 305 523 27 269 757 1741 773 124 52 4571
2013 221 583 23 403 1139 2346 932 170 74 5891
2014 309 500 31 257 1075 1887 684 219 50 5012
2015 264 712 25 209 1601 2153 1030 156 57 6207
Acumulado
13318 22363 1518 24404 139917 140134 56485 7178 8564 413882
Amazônia
% da área
total 3,2 5,4 0,4 5,9 33,8 33,9 13,6 1,7 2,1
desmatada
52
Figura 1.2: Desmatamento dos Estados da Amazônia entre 1978-2015. Fonte: INPE (2016).
bens que são direitos sociais. Valores altos demonstram o qual vulnerável está a
região, destacando que todos os valores para a Região Norte são maiores do que
aqueles do Brasil. Pior são os valores medidos para as regiões rurais. Como exemplo,
em 2009, a área rural da Região Norte obteve índice de 59,5 relacionado à privação
menor uma vez e meia. Da mesma forma, podemos destacar que na privação pelo
53
saneamento no Brasil é três vezes menor do que a área rural do Norte. Quanto à
privação da água, o valor do Brasil é 5 vezes menor do que nas áreas rurais da Região
Norte.
Gini, apresentados os anos 1991, 2000 e 2010 no Quadro 1.7. Cabe ressaltar que há
diferença positiva de valores entre os anos 2010 e 1991. Entretanto, a diferença entre
os anos de 2000 e 2010 são negativas para todos os estados da Amazônia. Há que se
Região Norte (soja, dendê, cana, pecuária) prejudicaram a renda na região, mesmo
54
Quadro 1.7: Índice de Gini da renda domiciliar per capita segundo Região, Unidade da Federação e
Região Metropolitana. Fonte: IPEADATA (2017).
% 1991-
Territórios 1991 2000 2010 2010 % 2000-2010
Total 0,6383 0,646 0,6086 -3 -3,74
Região Norte 0,6257 0,6545 0,6319 0,62 -2,26
Acre 0,6259 0,6477 0,6394 1,4 -0,83
Amapá 0,585 0,6318 0,6157 3,1 -1,61
Amazonas 0,6282 0,6823 0,6664 3,82 -1,59
Pará 0,6206 0,6512 0,626 0,54 -2,52
Rondônia 0,6155 0,611 0,5686 -4,7 -4,24
Roraima 0,6216 0,6202 0,6398 1,82 1,96
Tocantins 0,6331 0,655 0,6099 -2,32 -4,51
habitats que nunca serão repostos. As análises dos dados demonstram que o capital
Brasil, da mesma forma que os direitos sociais são baixos no que tange aos acessos a
55
2. A barragem de Belo Monte e a perda de redes de
sociabilidade das populações atingidas representadas em
arpilleras amazônicas
Marina Ertzogue
Monise Busquets
Introdução
A usina hidroelétrica Belo Monte (PA), um dos maiores empreendimentos do
mundo. Em novembro de 2015 foi emitida pelo IBAMA a Licença de Operação que
famílias que viviam nos igarapés em áreas alagáveis do rio Xingu, “sem qualquer
56
reforçam o objetivo da política de reassentamento involuntário: “É assegurar que as
projeto não fique em situação pior, mas melhor do que estavam antes do projeto ser
empreendido”3.
suas casas” – seja por causa do início da construção das estruturas da usina, ou
‘interferidas’ pelo empreendimento”4. O ISA informa também que 3.000 famílias que
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH – (2010) afirma que os agentes
sociais, econômicos, políticos e culturais associados”. Por outro lado, diz o CDDPH
3 cf. p. 271. Norte Energia S.A. Projeto Básico Ambiental da Usina Hidrelétrica Belo Monte:
Planos, Programas e Projetos. Volume. II, Tomo 1,2, ano 2011.
4 cf. p. 13. PALMQUIST, H. Remoção forçada de ribeirinhos por Belo Monte provoca desastre
57
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), desde o seu surgimento
em 1991, vem cumprindo um papel histórico em defesa dos direitos das populações
atingidas por barragens. Dentro do MAB foi criado em 2011, o Coletivo Nacional
oficinas de arpilleras que percorreu nove estados brasileiros: Minas Gerais, São
Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Tocantins, Pará, Rondônia, Ceará, Bahia. Segundo
energético brasileiro, além de denunciar violações dos direitos dos povos atingidos
por barragens, além disso, as mulheres aprendem a bordar arpilleras. Nesse artigo
analisamos desde a dinâmica das oficinas até a produção final das arpilleras. Com
além da “leitura” das arpilleras produzidas por mulheres que vivem nos RUC’s,
58
também foram realizadas entrevistas usando o método “grupo focal”. Entrevistas
grupais6, são aquelas onde o entrevistador, nessa forma de abordagem, assume uma
posição de facilitador do tema da discussão. Uma parte das entrevistas foi feita no
ações. É sob esse modelo conceitual que a cultura é dotada de significados, não é um
algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos
com densidade” (Geertz, 2008, p. 10)7. A propósito, o título “A água é dos povos e
arpillera coletiva.
pode acarretar em custos sociais que vão além dos custos financeiros e outros gastos
que anteriormente não faziam parte das despesas das populações atingidas. O
6 cf. p. 151. GONDIM, S. M. G. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios
metodológicos. Paidéia, v. 12, n. 24, p 149-161, 2003.
7 GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
59
Operação de Reservatórios” (2005, p. 28), pode implicar em aspectos negativos que
que, em geral, tratar-se de populações de baixa renda, com pouca mobilidade social
não são efetivadas na prática, pelo menos é o que se observa em processos de litígios
2005 para apuração de denúncias de violação dos direitos humanos define como
60
ampla discussão e negociação (2010, p. 31). Para corroborar com esta asserção, o
61
Mulheres do MAB”, denunciando os impactos das obras de barragens na vida das
mulheres atingidas12:
que o MAB entrou em contato com Roberta Bacic, curadora da exposição, para
educadora.
12 MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS – MAB. Carta Final do Encontro Nacional
das Mulheres do MAB publicada em 08/04/2011. Disponível em:
<http://www.mabnacional.org.br/noticia/carta-final-do-encontro-nacional-das-mulheres-do-
mab>. Acesso em: 20 out. 2015.
13 A exposição Arpilleras da resistência política chilena percorreu cinco capitais brasileiras: Rio
de Janeiro, Porto Alegre, Brasília, Curitiba e Belo Horizonte. O evento veio ao Brasil pelo Projeto
Memória, vencedor do edital do Ministério da Justiça/ Comissão da Anistia.
62
atingidas para que eles possam se tornar defensores e formadores em direitos
humanos”.14
arpillera “Onde estão nossos direitos?”. No encontro, Roberta Bacic destacou que a
Latina (São Paulo). A mostra reuniu 25 peças feitas nas oficinas do MAB. “Para nós,
63
histórias negadas”, destacou uma das organizadoras do evento, integrante do
Coletivo das Mulheres. Ela ressaltou que a barragem “chega sem informação
alguma, sem consulta, destrói o nosso tecido social e comunitário, nossas redes de
Nós atingidas, temos nossas vidas rasgadas. Nas arpilleras, temos encontrado
o fio, a juta, a linha para costurar um sentido, nos empoderar como sujeito no
primeiras arpilleras foram produzidas por mulheres dos presos políticos e depois
64
juntam, interrompem a solidão e a tristeza e por umas horas quebram a rotina da
artesãs. De 10% a 15% do valor arrecadado era destinado para um fundo coletivo.
Isla Negra (Chile), ressurge, por volta da década de 1950, com Violeta Parra, cantora,
suas histórias, ponto por ponto, tudo era feito à mão e de modo coletivo. A arpillera
era determinada pelo tamanho do saco de aniagem que, depois de lavado, era
dividido em seis partes “para que o mesmo número de mulheres bordassem suas
Para contar uma história, segundo James Young24, o artista faz uso de
qualquer estilo, técnica ou gênero, desde que seja algo familiar ao seu conhecimento
politica chilena. Rio de Janeiro/ Brasília: Projeto Marcas da Memória/ Ministério da Justiça/
Comissão de Anistia, 2012.
24 YOUNG, J. E. Living with the Fabric Arts of Memory. Cooke, Ariel Zeitlin e Macdowell,
Marsha (eds.) Weavings of War: Fabrics of memory; USA, Michigan State University Museum,
2005, p.31-36.
65
“não só o contador de histórias, mas também a maneira de toda uma cultura de
pela situação então vivida no país. Hoje elas são um testemunho vivo e presente, e
bordado é algo íntimo e delicado, além disso, a experiência de trabalhar com esse
artesanato evoca uma função pessoal de memória. A costura que junta retalhos na
tecido.
pessoas que sofreram por violações. Mães chilenas costuraram arpilleras com tecido
das roupas dos filhos mortos na ditadura. “Tenho visto muitas vezes como o tecido
é cheio de lágrimas, onde a memória não é algo evasivo, mas pessoal e tem formas
Desde o início das oficinas (1975), as peças eram anônimas por temor da
repressão política. Algumas arpilleras trazem no verso, num bolso oculto, cartas com
descrição do bordado. “Assim, surgia uma dupla narrativa: uma que aparecia
28 AGOSIN, M. Tapestries of Hope, Threads of Love, The Arpillera movement in Chile 1974-
66
visualmente na tela bordada e a outra que estava oculta na parte de trás, por
escrito”30.
Colômbia, Peru, Catalunha, Irlanda do Norte e Índia. Para Alba Hernández e María
oficial. Isto pode observado no desenho das arpilleras que, por trás da aparente
resistências. “De esta forma, con sus tejidos clandestinos, dejan testimonio de la
67
peças feitas nas oficinas do MAB não geram fonte de renda, são instrumentos de
arpilleras não para ter sustento econômico, mas sim para ter na mão uma
mulheres”34.
Figura 2.1: Arpillera Tratores Famintos. Fonte: Catálogo Arpilleras, bordando a resistência. 2015, p.
45.
famintos” (Figura 1). “A quebra do tecido social, a perda da convivência e dos laços
68
comunitários rompidos: no reassentamento, as casas são iguais, sozinha, a mulher
Figura 2.2: Arpillera Mulheres, Água e Energia não são Mercadorias. Fonte: Catálogo Arpilleras,
bordando a resistência. 2015, p. 29.
o debate político: o que é o MAB; o que é esse modelo energético e depois trabalha
69
a técnica das Arpilleras e trazer o debate do que foi feito” 39.
É necessário um dia
tarde. No primeiro dia, “a gente consegue ter um material quase que pronto, não se
conclui em um dia, a gente coloca os alfinetes e tudo mais, leva para casa, onde outra
mulher do grupo consegue noutro dia terminar de fazer essa peça” (acabamento).40
debate político explicando porque a gente tá fazendo, dizer o que são as arpilleras e
o motivo da gente estar trabalhando com essa técnica” 41. A quantidade de peças
divididas em quatro grupos. O ideal em cada grupo, segundo Gisely, para fazer o
fazia um trabalho de organização com as mulheres, mas com as arpilleras tem sido
possível registrar denúncias de violação dos direitos dos atingidos. Além disso, a
muitas vezes elas não conseguiam falar, mas que agora com o retalho, elas têm
conseguido e nós percebemos isso quando nos reunimos com as mulheres nesse
debate”42.
39 Entrevista com Gisely facilitadora de oficinas de arpillera, realizada por Monise Busquets em
Belém (PA), 29/09/2016.
40 Entrevista com Gisely facilitadora de oficinas de arpillera, realizada por Monise Busquets em
(PA), 29/09/2016.
70
famílias reassentadas” é o título da arpillera paraense, bordada por mulheres
atingidas pela UHE Belo Monte, em Altamira. Seguindo o modelo das arpilleras
Figura 2.3: Arpillera Quebra dos vínculos familiares e comunitários das famílias reassentadas –
(2015). Fonte: Acervo MAB. Altamira – PA.
comunitários foram quebrados nos colocando distantes uns dos outros”. Nos
71
baixões de Altamira, onde a comunidade vivia não era um lugar perfeito, “pois tinha
vários problemas como a falta de políticas públicas, mas éramos felizes com nossa
família e nossos vizinhos, onde ajudávamos uns aos outros”. Para as mulheres
atingidas, “a Norte Energia nunca vai repor o bem mais precioso que tínhamos: o
Para Ana Soares Barbosa, a demolição das casas, nos baixões de Altamira
amigos, vizinhos e jovens, que fizeram dos baixões seu espaço de moradia, trabalho,
lazer e cultura”. Terminou com o modo de vida da comunidade que aprendeu “com
os fenômenos naturais das cheias do rio Xingu a definir seu próprio tempo de
trabalho e lazer, e serem solidários uns com os outros nos momentos das
enchentes”45.
Sobre perdas simbólicas, Helena Palmquist diz que dia no 13 de junho não
“que existia desde a década de 1970, entre a rodovia Transamazônica e o rio Xingu”.
festejos, pois o loteamento receberá novo nome. “As 252 casas foram demolidas e os
Xingu”46.
72
Figura 2.4: Arpillera A destruição da comunidade – Altamira. Fonte: Exposição Costurando a luta
por direitos – Centro Cultural Sesc Boulevard - Belém (2016). Acervo do MAB.
em casas de palafitas, nos baixões. Do lado esquerdo, o rio, a igreja, a escola e casas
por Belo Monte não ficará na comunidade, como diz a carta: “Energia que vai para
fora da região”, sem trazer benefícios para os atingidos. No plano superior, as casas
No caso, atingidos com direitos assegurados, eles poderiam optar por carta
73
atingidas denunciam a especulação imobiliária em Altamira, enquanto o valor das
estado de degradação ambiental”. Nos trechos entre a sua foz e a Rua Pe. Antônio
queda de pessoas (na seca as palafitas podem chegar a mais de três metros de altura)
por ignorar a história dos bairros e das famílias em seu entorno. Histórias que são
cidade”49.
47 cf. p. 40. NORTE ENERGIA S.A. Projeto Básico Ambiental da Usina Hidrelétrica Belo
Monte: Planos, Programas e Projetos. Volume. II, Tomo 1,2, 2011.
48 NORTE ENERGIA, 2011, p. 40.
no âmbito do reassentamento urbano coletivo. Dossiê Belo Monte. ISA, jun. 2015.
<https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/dossie-belo-monte-
site.pdf>. Acesso 14/ 06/2016.
50 WEISSERMEL, 2015, p. 136.
74
Quando o dia da transferência chegou
Em Altamira, cerca de 5.000 casas estavam previstas para desapropriação até
a data da conclusão da barragem no rio Xingu, sendo que 3.000 casas já haviam sido
chama—, a minha casa era de madeira, mas conseguia abrigar toda a minha
família”.51
A casa de Edizângela era como uma casa de apoio, disse ela, mãe de cinco
filhos. “Minha mãe também morava comigo, meu pai passava um tempo comigo,
minha irmã que mora em São Félix do Xingu, quando precisava vir para Altamira,
área a ser impactada: o bairro Boa Esperança onde Edizângela tinha sua casa de
madeira. Segundo o PBA da empresa aquela era uma área de inundação natural do
rio Xingu e dos respectivos igarapés, sujeita a enchentes periódicas pelo regime
Sobre a ocupação urbana, o PBA53 diz: “São áreas que apresentam uma
ocupação urbana diversificada, embora, em sua maior parte, sejam ocupadas por
51 cf. p. 156. A entrevista com Edizângela Barros está publicada in: LEITE, L. “Belo Monte: os
filhos da barragem” Vozes do Xingu: Dossiê Belo Monte. ISA, s/l, jun. 2015, p. 152 Disponível
em: <https://www.socioambiental.org/sites/blog.socioambiental.org/files/dossie-belo-monte-
site.pdf>. Acesso 14 jun. 2016.
52 LEITE, 2015, p. 156.
75
Quando os moradores de Boa Esperança ouviram falar pela primeira vez da
usina hidrelétrica Belo Monte, eles não acreditavam que deixariam seu bairro e “que
iríamos nos separar da forma como a gente foi separada” — recorda Edizângela,
atingida pela UHE Belo Monte, ela e 1.100 famílias foram removidas para o
Reassentamento Urbano Coletivo Jatobá. “Os assistentes sociais diziam que a gente
iria melhorar de vida, que iríamos ter direito a permanecer juntos. Muita gente
acreditou nisso”.55
“Boate Xingu”.
Figura 2.5: Figura 5. Arpillera Divisora de águas – Altamira. Fonte: Exposição Costurando a Luta
por Direitos. Centro Cultural Sesc Boulevard. Belém (2016). Acervo MAB.
76
Figura 2.6: Figura 6. Vista aérea do bairro Jatobá, reassentamento construído pela Norte Energia:
Fonte: BBC Brasil. 2014. Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141218_belo_monte_reassentamento_ms>.
Acesso em: 10 jun. 2016.
Movimento dos Atingidos por Barragem. A comunidade que luta por direitos
acordo com o tamanho da família. O loteamento foi construído para abrigar 1.100
desenho que representa a comunidade, sobreposto por X, isto significa algo que não
existe mais.
alagadiças, onde viviam as famílias que foram reassentadas no Jatobá. Lá, elas
77
“tinham seus vínculos comunitários estabelecidos. A barragem é o divisor de água
Edizângela sobre a vida no reassentamento Jatobá. Ela lamenta a perda dos vínculos
familiares. Sem condições de abrigar a mãe e todos os filhos, dois deles foram morar
com a avó materna. Edizângela aponta a causa desta separação, a falta de transporte
mãe morar.
do vínculo comunitário e familiar. Cada um foi para um lugar, eu não sei para onde
foram os meus vizinhos, a gente ainda está se achando. Foi prometida uma melhora
na qualidade de vida, mas os meios públicos para atender à comunidade ainda não
foram construídos. Estão no papel, são projetos, mas as pessoas já estão lá. Lá, não
tem escola, o posto de saúde é provisório, não tem creche, temos problema de falta
a gente foi se mudando, muitas pessoas foram ficando. Eles disseram que a rua 8 iria
ser inteira transferida, só não iria ficar junto quem não optasse pelo reassentamento.
78
Diante do exposto, o Conselho recomenda aos Ministério de Minas e Energia,
preexistentes”.60
palafitas antes da UHE de Belo Monte; tema 02: A moradia nos RUC’s com casas
comunidade estudada.
O PBA da Norte Energia62 foi criticado por desqualificar o modo de vida das
comunidades que aprenderam com as cheias do rio Xingu63, “a definir seu próprio
tempo de trabalho e lazer, e serem solidários uns com os outros nos momentos das
60 2010, p. 54-55.
61 PBA, 2011.
62 2011, p. 237.
79
Considerações finais
Após a análise da representação da quebra dos laços de vizinhança contido
reassentamentos com alto custo das tarifas públicas nos remete à outra realidade,
diferente do que está idealizado nos estudos do PBA da empresa. No Jatobá, bairro
erguido do zero para receber famílias deslocadas pela UHE Belo Monte, basta uma
despesas das tarifas públicas, e casas sendo colocadas à venda. O jornal narra várias
Izael mudou-se com a família de uma casa de palafita para uma casa nova e
luz, no valor de 700 reais, decidiu vender a casa. “As pessoas não estão acostumadas
com essa estrutura. Uma moradora vendeu a moradia por R$ 20 mil porque era
grande demais para limpar e voltou pra um barraco, além disso, ela nunca pagou
energia”.65 Outra desistiu da casa e mudou-se para Vitória do Xingu porque além da
conta de luz, ela recebeu um carnê do IPTU. “Nem sei o que fazer com isso. Ainda
64 PEREIRA, R. “Para se livrar das contas, morador coloca casa à venda”. Estadão. São Paulo 12
de abril de 2016. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,altamira-
enfrenta-a-ressaca-de-belo-monte,10000024436>. Acesso em: 16/08/2016.
65 PEREIRA, 2016.
66 PEREIRA, R. “Para se livrar das contas, morador coloca casa à venda”. Estadão. São Paulo 12
80
Uma vez mais observa-se que a população atingia sofre os vilipêndios do
obra, criaram um cenário de recorrentes violações dos direitos humanos, uma vez
critérios para a outorga da Licença de Operação, a Norte Energia tenha saído exitosa
das batalhas judiciais que tentaram impedi que Belo Monte fosse adiante, fatos esses
sofridos pela população atingida e narrados nas histórias bordadas pelo Coletivo
de Mulheres do MAB.
81
3. Educação (Popular) e Projetos Comunitários: elementos
para a ação
Apresentação
A grandeza do desafio de escrever sobre o desenvolvimento de projetos
que seja assumido o ponto de onde falo e enxergo essas questões. Em 2007 iniciei
minha vida de intercâmbios com ações educacionais no mundo rural brasileiro por
É nesse sentido que este artigo tem o objetivo de trazer alguns aspetos teórico-
para construir as considerações, uma vez que esse é o embasamento adotado pelo
destacar que a essência das ideias aqui apresentadas não devem ser pensadas como
singulares à Educação Popular, mas sim a muitas vertentes educacionais, uma vez
82
Notas introdutórias
A educação é um fenômeno que, para ser compreendido, deve ser observado
deixemos claro que quando tratarmos dos processos educativos neste texto, não se
exploração.
sempre, está disposto a ter uma atuação que contribua para a superação de alguma
Em parte, espera-se que isso seja verdade. Caso não seja, melhor seria abrir
mão do projeto. É condição necessária que a equipe tenha confiança para abordar os
temas e questões a serem tratados, mas também é preciso que haja abertura para o
83
(frequentemente seguidas pelo adjetivo “inovadoras”) a problemas sociais, como
iniciativas que pensam que irão construir resoluções espontâneas a partir do diálogo
Dessa forma, a Educação Popular está sempre a nos lembrar que, por mais
que somos limitados. Todavia, essas constatações não devem ser utilizadas como
de nossas intenções, devemos tomá-las como guia para melhorar nossa formação,
vezes permitindo a emersão dos conflitos e tensões de modo que as relações sociais
lúdicas”, e diversos tipos de ações, desde que seja com clareza da intenção política
84
que haja um entendimento sociológico da sociedade em que vivemos, a qual é
dividida por classes sociais e apresenta uma mobilidade extremamente difícil entre
essas classes pelos sujeitos. A educação escolar também não pode ser compreendida
dentre outros.
bancos universitários são os mais preparados a lidar com qualquer tipo de questões
humanas. Essa crença, que serve à reprodução da dominação simbólica das classes
Por vezes, em situações específicas, isso pode ser verdade. Mas há que se
exercitar aquela humildade sobre nossas limitações. Valla3 nos lembra de que a
85
do que o público da ação. Isso pode ocorrer mesmo quando há certo grau de
reconhecer que para uma melhor compreensão de um problema que aflige o outro,
comunidade acerca do tema do projeto? São as mesmas que as da equipe que irá
propô-los? Como aproximar as ideias? Como aprender com quem tem uma gama
de saberes tão diferente das que conhecemos? Como fazer um projeto que tenha a
das questões que a afligem é permeado pela própria experiência dessa situação. Ou
seja, não só a comunidade sabe sobre ela, mas a sente, percebendo-a por diversas
86
Todos esses são elementos que irão variar de cada comunidade, mas que são
demanda real dos moradores, é certo que não haverá participação. Você participaria
em uma ação que beneficiaria mais ao outro – seja esse outro um órgão ambiental,
uma organização não governamental, uma equipe voluntária – do que você? Talvez
educadores e educadoras nas mais diversas situações. E, neste texto, o convite que
faço é o de que cada estudante e profissional que trabalhe com projetos comunitários
estritamente ecológicas, biológicas e/ou tecnológicas (se é que elas existem). Sempre
reflexões da Educação Popular poderão contribuir para uma atuação mais efetiva e
transformadora da realidade.
construção de propostas que sejam efetivas para sustentar avanços nas questões que
se propõem a lidar.
Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. 2ª edição. São Paulo:
Annablume, 2000.
87
pensamento pedagógico de Paulo Freire é a necessidade de superação da hierarquia
entre educador e aprendiz. Esse próprio jogo de palavras “educador” vs. “aprendiz”
noção de diálogo, em Freire8, não pode ser captada como um instrumento para se
com o educando enquanto educa. Trata-se de uma postura mental e prática que não
enxerga o outro como inferior ou subjugado, mas sim um ser humano (igual), mas
7 cf. p. 95-96. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 54ª edição revista e atualizada. São Paulo:
Editora Paz e Terra, 2013.
8 FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 54ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Paz e
Terra, 2013.
88
mais experiente que seja. Assim é a vida. Humildade. A proposta é que ambos os
ou seja, o projeto só terá sido bem-sucedido – caso o filtro faça sentido à comunidade
e seja utilizado. Para isso, há saberes que os “de fora” não detêm: precisarão saber o
energia com o suprimento local, quais tipos de materiais mais adequados ao clima,
dentre outros elementos. Ou seja, não há uma hierarquia entre os diferentes saberes,
determinados fins.
saber escolar elaborado e avançado” presume que a partir de alguns dias no local
uma proposta que faça sentido e que incorra em menor necessidade de revisões
89
Aliás, é essa percepção que nutre a concepção de ser humano de Freire9. O ser
educando. Ora, se o educador está sempre aprendendo, como sustentar uma relação
com base nos “argumentos de autoridade”? Essa postura autoritária pode ser fatal à
Não quero aqui dizer que os educandos sabem tanto quanto (ou igual) os
um educador pronto, não se é um técnico totalmente pronto, não se sabe tudo, não
estamos conclusos. Nunca. Quem poderá nos auxiliar na tarefa de educar é o próprio
educando. Aprendemos a desenvolver projetos não somente pelos livros, mas pelo
diálogo aberto com as pessoas que trabalhamos. Cada projeto contará com um grupo
de pessoas, em cada coletivo desse se formará uma micro comunidade que regrará
os passos e caminhos das ações. Aceitar os saberes dos outros, e perceber que nossos
que haja objetivos e intenções claras, e isso é totalmente compatível com as propostas
da Educação Popular.
9FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 54ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Paz e
Terra, 2013.
90
Projetos comunitários: assumindo frentes de ação
Um projeto, seja ele de pesquisa, de intervenção comunitária, de vida, ou do
que for, precisa ter objetivos claros. Esse é o ponto de partida. Conhecendo o
contexto da situação, o que fazer? Por que fazer? Como fazer? A Figura 3.1 elenca
clareza de cada um desses pontos para que o processo possa ser tomado com
91
A atuação por meio de projetos auxilia o desenvolvimento de trabalhos mais
não fiquem muito aquém de seu potencial – o que também tornaria a atuação inócua.
próprios objetivos dos projetos comunitários sejam definidos juntos aos moradores
Aqui figura outro desafio, como revelar as demandas locais? Não se trata de
demandas já faz parte de uma etapa de concepção de projeto e requer uma interação
transmissíveis. Todavia, serão essas questões que têm resolução educacional? O que
não sabem os comunitários, sobre as drogas, por exemplo, que faça com que haja
saber que a equipe tem com o público que ela pode atender. A demanda apresentada
equipe pode contribuir para que a demanda local seja visibilizada ao órgão estatal
de saúde responsável para que, em parceria, possa ser atendida para além de uma
ação pontual?
92
O diálogo com as demandas locais pode, e deve, inspirar o desenvolvimento
de projetos que tenham como horizonte uma continuidade e fortalecimento local das
responsável direta pela assistência em saúde local. Desse modo, uma instituição não
tendo clareza nas escolhas de seus projetos e ações para visualizar se eles são
coerentes com seu horizonte de sociedade. Busca-se uma sociedade com os órgãos
Esses são dilemas que irão acompanhar os projetos e quanto mais clareza e
Programa
Projeto 1 Projeto 2
Figura 3.2: Hierarquia entre programas, projetos e ações. Fonte: elaborada pelo autor.
93
Programas normalmente envolvem diferentes projetos, necessariamente mais
de um. Cada projeto é composto por diversas ações. Essas questões de compreensão
de “forma” são fundamentais para a elaboração de bons projetos. Mesmo com base
se ter clareza desses fatores. Não existe projeto comunitário com a duração de um
dia, o que pode ser feito em um dia é uma ação. E, apesar disso, é comum nos
projeto a partir dos sujeitos que o vivenciam e trazem em seus saberes também
delineados com uma estrutura consolidada, mas que permita uma pluralidade de
que permeiam minhas lembranças mais fortes e que estão bem relatados, mas outras
94
Candido, Soulé e Pires10 descrevem o processo de implantação de mini
conservação ambiental. Ressonâncias desse projeto podem ser captadas até hoje, dez
2007 e 2008. O projeto foi pensado junto ao grêmio estudantil local e desenvolvido
95
Nessa experiência, o que era um projeto tornou-se um programa em meio às
foi mais centrado na formação política e de luta por direitos, também em decorrência
Barragens, até hoje nutrindo leituras de mundo críticas nas questões comunitárias.
profunda parceria com coletivos locais, para que não sejam apenas pontuais e
grandes organizações que trabalham por meio de projetos, como a The Nature
sucedidas que sejam suas ações – que nos servem de referência e inspiração –, ainda
96
remanescentes ecossistêmicos, ainda persiste a exclusão social da maior parte da
Assim, lidemos com a realidade. Ainda, o que temos de mais avançado para
apresentadas para que se tenha dimensão real das potencialidades das ações e de
suas limitações. E também para auxiliar nas reflexões para construções de projetos
97
interesses populares, mesmo assim a população vê estes
profissionais como sendo atrelados às propostas das autoridades
em que não crê. Daí sua aparente falta de interesse em “participar”.
A impostura educacional
Nas experiências e processos de formação em projetos comunitários são
Ora, é realmente frustrante quando nossos planos não dão certo. Quando
aqui “imposturas” para nomear algo que não se reduzirá a apenas manifestações
referencial teórico das equipes, e, por isso, podem ser considerados imposturas
revelações preconceituosas sim, mas nesses casos resta o combate, e não a tentativa
de compreensão.
vida, por detrás da proposta. Assim, é preciso estar atento às avaliações de projetos
que culpabilizam o outro pela falta de adesão e decorrente insucesso dele. As teorias
projetos.
perceber que as camadas subalternas têm ciência dos limites de suas melhorias
98
conjunturais no sistema econômico e social que vivemos. Valla14 destaca que: “O que
para a população uma avaliação (conjuntural e material) rigorosa dos limites de sua
melhoria.”.
olhar para nós mesmos e ao próprio projeto com uma abertura a aprender onde foi
É claro que não é fácil estar sempre atento a todas as variáveis que permeiam
sob um manto aparente de criticidade. Caso nos esteja parecendo que a comunidade
nossa”15, e não deles. E isso não quer dizer que não possa haver algum caso
local, mas devemos atentar que as organizações sempre estão presentes em uma
comunidade, mesmo que não do modo como acharíamos mais adequado, isso
mesmo território. Os acordos estão lá, as regras estão lá, as hierarquias, os jogos de
99
para que o projeto seja pensado com os pés no chão. E, para isso, é preciso diálogo,
é preciso se abrir para apender com o outro o que, por vezes, achamos que sabemos.
Considerações finais
Neste texto fiz a tentativa de destacar a importância da humildade e do
ações mais efetivas, na medida em que estarão sendo gestados em comunhão com
reconhecer que o aprendizado que nunca cessa será cada vez mais desenvolvido
prazo.
combinadas com outras leituras e debates. Assim, recomendo que as referências aqui
citadas, bem como os outros artigos que compõem esta obra, sejam lidas e
100
4. Educação escolar (do campo): caminhos para o
desenvolvimento socioambiental
Apresentação
Qual é o papel da escola? Esta questão já fomentou e ainda nutre
Portanto, já adianto que o tema não será esgotado aqui, uma vez que tal
Ao leitor que atua na intervenção comunitária, mas não tem pretensão de se deter
organizados.
Espero que as ideias aqui expostas sejam passíveis de operarem apenas como
101
ponto de partida para o desenvolvimento profissional e para uma interlocução
Introdução
É muito frequente para quem trabalha em intervenções comunitárias, nas
e especialista. Cada profissional tem a certeza de que seu tema de trabalho seria
fundamental para ser ensinado na escola, sejam esses temas mais ligados ao
Todavia, esses temas deveriam, de fato, ser trabalhados pela escola? Qual é o
há espaços formais que são criados nas sociedades para formar os sucessores da
muito mais recente na história mundial. Pode-se considerar que foi a partir do
102
sociais2. Cada sociedade trata de elaborar seus mecanismos de reprodução e
subalternas em seus troncos. Mas há lacunas e frestas pelas quais a luta de classes
vivem.
Rurais Sem Terra (MST). Desta forma, teremos elementos para compreender
comunitária, e como.
modelo de campo que foi imposto ao Brasil desde os tempos de colônia, como
103
demonstra Prado Júnior3: uma economia agropecuária pautada no tripé
por mais criticada que suas metodologias e configurações possam ser, permanece
reflexões têm sido utilizadas mais no sentido de repensar esses espaços e seus funcionamentos,
do que como proposição efetiva de extinção deles. ILLICH, I. Sociedade sem escolas. 7ª edição.
Petrópolis: Vozes, 1985.
5 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 54ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.
104
Primeiramente, é preciso explicitar que o conceito de ideologia é
polissêmico, e aqui está sendo tratado com base em sua acepção marxista. O
nova ciência (uma ciência das ideias) fundada pelos chamados “ideólogos”
realidade6.
6 CHAUÍ, M. de S. O que é ideologia. 2ª edição. 14ª reimpressão. São Paulo: Editora Brasiliense,
2011.
7 cf. p. 47. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
2008.
105
É contra essas ideias que surge a Educação do Campo. Contra uma
saúde qualificada. Ora... o que há de natural nisso? Como aceitar essa realidade
tão facilmente? Essa aceitação da sociedade representa uma defesa, mesmo que
perceber.
mundo rural brasileiro, tal como em países centrais do capitalismo como a França
isso que os privilegiados de hoje desejam. E você? Qual o projeto de campo que
gama de saberes valiosos sobre a natureza que não estão presentes nas cidades.
afirmar que os sujeitos do campo têm um capital cultural diferente dos sujeitos
urbanos.
106
A acumulação do capital cultural exige uma incorporação que,
enquanto pressupõe um trabalho de inculcação e assimilação,
custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo
investidor (tal como o bronzeamento, essa incorporação não
pode efetuar-se por procuração). Sendo pessoal, o trabalho de
aquisição é um trabalho do “sujeito” sobre si mesmo (fala-se em
cultivar-se). O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma
propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da
“pessoa”, um habitus.
têm uma relação nada romantizada, mas sim de sobrevivência e coabitação, com
107
Figura 4.1: Desenho de criança ribeirinha sobre seu meio ambiente. Fonte: Valdanha Neto et al.,
201811
108
O primeiro grupo fala sobre o atum (peixe marítimo). E também
de jatuarana e matrinchã (peixes da região). Falam que no
Madeira há dourado, piraíba e arraia de rio – a profa faz conexão
com outras espécies cartilaginosas encontradas na região.
Os alunos iniciam, em voz alta, a leitura da aula sobre peixes do
livro didático. Ao mencionar o bagre, a profa pergunta: “Bagre
tem aqui no Madeira, né [nome do aluno]?”. “Tem! Tem aqui na
água mesmo (no Lago).”. Profa: “Isso. Eu falei que não era para
ficar só nos livros, é pra usar os que vocês conhecem, os
conhecimentos de vocês”.
Até pedi para a [nome da aluna] trazer o peixe com a bexiga
natatória pra fora pra gente ver... Mas... Mas ela trouxe sem
NADA, limpinho! (Risos gerais). [O peixe estava sem escamas,
sem miúdos e sem nadadeiras].
– “Você cortou as nadadeiras dele!?” (pergunta a professora). –
“Ah...é que eu demorei pra falar pra mamãe separar ele...”
(responde a aluna). (Risos gerais).
(diário de campo do autor, 15/05/2013)
programático prescrito e alguns saberes dos alunos. Vale lembrar que essa
camponesas e com uma atuação sensível ao diálogo com o contexto no qual está
esse aspecto do modo de vida local adentra as salas de aula quando estas se
nadadeiras, pois havia sido tratado para o preparo e consumo como alimento.
109
produção da autonomia dos sujeitos camponeses”. Como esclarece Freire14, ao se
que tem saberes, não se pode fingir a inexistência dos saberes advindos das
de todos envolvidos.
em 1935, com a criação da primeira Maison Familiale Rurale (Casa Familiar Rural):
110
familiar com a terra para ter acesso ao sistema escolar15. De lá para cá, ela veio ao
dias varia, pode ser de 30 em 30, de 07 em 07. Cada escola deve se organizar
materiais para que a escola funcione adequadamente e com segurança por meio
estudos para todo o período letivo, seja na escola ou junto ao trabalho familiar.
111
missão da construção de uma escola de qualidade no campo, que valorize os
isto é, diferentes séries tendo aula ao mesmo tempo em uma mesma sala de aula,
com o(a) mesmo(a) professor(a). Muitas vezes isso é visto, pelos profissionais da
a uma educação escolar de qualidade. Porém, essa noção precisa ser colocada em
privadas, são alguns dos exemplos que demonstram como a criatividade no ato
campo, que não precisa ser concebida como demérito. Como destaca Arroyo19:
Quando a organização seriada está em crise por ser
Brasil, já tendo recebido diversos prêmios por suas metodologias de ensino criativas.
19 cf. p. 12. ARROYO, M. G. Escola: terra de direito (prefácio). In: ANTUNES-ROCHA, M. I;
112
antidemocrática, classificatória e segregadora e quando se
avança tanto na compreensão de como a mente humana
aprende, dos complexos processos do aprender humano, fica
sem sentido propor que as escolas do campo, multisseriadas ou
não seriadas, virem seriadas.
Terra, 2007.
113
temas geradores, inspira o ensino interdisciplinar por meio da organização
totalidade dos fenômenos naturais – mesmo que por vezes utilizando raciocínios
valorização dos saberes e modos de vida rurais que existem no país. Desta forma,
destaca-se que a escola não pode ser, em uma comunidade, a curva de rio na qual
tudo que é mais pesado e de difícil solução vai parar, como se fosse uma missão
valorize a escola local e faça sua defesa na tarefa de ensinar, podendo se somar a
114
Mas também, a escola não deve se fechar em si mesma, protegida pelo
treinamento técnico para servirem como mão de obra explorada aos interesses
do capital do agronegócio.
Ainda em tempo, para quem atua em localidades que não têm escolas, essa
deve ser nossa principal luta. O deslocamento dos alunos deve ser evitado ao
22 cf. p. 105. TORRES, R. M. Educação e Imprensa. São Paulo: Editora Cortez, 1996.
115
mais quando um jovem pescador é levado a uma escola da grande comunidade
Brasil, poderão exercer uma violência simbólica contra o jovem que tem como
objetivo seguir o modo de vida rural tradicional de sua mãe e seu pai.
É preciso atentar para que não reforcemos nas esferas educacionais das
campo, dentro de uma Reserva Extrativista da Amazônia, que teve uma goiabeira
fuja dos padrões urbanos. A depender das condições climáticas locais, construir
seja, de toda uma parafernalha que no campo certamente carecerá dos cuidados
116
Alternativas autóctones podem ser muito mais proveitosas. A Figura 4.2
O telhado é elaborado com palhas da própria região. Tal confecção requer uma
já menos calorosa que as telhas de amianto), porém é um serviço que pode ser
realizado por moradores locais, desde que justamente remunerado pelo órgão
de ar.
é preciso repensar nossos próprios valores (por vezes ideológicos), para que
Figura 4.2: Escola de uma Reserva Extrativista amazonense, construída a partir da arquitetura
tradicional. Fonte: Valéria Oliveira de Vasconcelos (2010)
117
Considerações finais
[...] que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado
Off Price. Um poema de Ferreira Gullar
Como pode ser notado, pensar a educação escolar com uma base mais
gestão educacional.
projeto que passa por uma comunidade. A sociedade espera da escola o ensino
118
força a esses movimentos. Como inspiração, anexo a este texto a canção “Não vou
sair do campo”, de Gilvan Santos (ANEXO 1), que nos inspira à luta.
119
5. Diálogo e participação na Educação Popular: muito
além da teoria
Ô de casa...
Principio esse texto com um pedido de licença para entrar e iniciar essa
prosa com você, leitora ou leitor. E, como na maioria das residências que tive o
1MELLO, T. de. Faz escuro mas eu canto. 24ª Edição. São Paulo: Global Editora, 2017.
Thiago de Mello fala do menino que era. Aqui, readequo a escrita para a menina que ainda sou.
120
minhas sandálias do lado de fora. Essa pode parecer uma observação banal de
florestas, tirar as sandálias, desde a mais tenra infância, significa contribuir para
cotidiana; metaforicamente, nas lentes que ajustam minha visão, pode também
simbolizar o contato com o solo em que se pisa – descalçar os sapatos para ter os
pés no chão!
Quando fui instigada a escrever um capítulo para esse livro, tão sonhado
e desejado por grande parte das pessoas que aqui partilham essas páginas, resolvi
tratar de um dos temas que mais me dá prazer e mais faz sentido em minhas
Como certa vez afirmei: a EP é meu “chão, esteio, arrimo, prumo e rumo”.2 Além
disso:
Nosso entendimento de Educação Popular é o da educação
como processo de humanização, um ato político, de
conhecimento e de criação, que ocorre no diálogo entre seres
humanos, sujeitos de sua vida, e que, solidariamente, fazem e
refazem o mundo. Ao falarmos de Educação Popular, não
estamos nos referindo à educação das classes populares, mas à
educação com as classes populares, com elas compromissada e
com elas realizada, mediante o diálogo3.
121
Igualmente com os pés no chão pretendo trazer, portanto, algumas
participação.
ressaltar que esse ensaio é fruto de pesquisas iniciais e em muito pode e merece
ser aprofundado.
Essa escrita vem crivada por minha história de relação e convivência com
ano 20005.
e sociologicamente fundada.
4 O NAPRA é o lugar comum de muitos autores e autoras desse livro. Todas e todos temos
histórias partilhadas, com maior ou menor profundidade nas relações. Para maior
aprofundamento ver: www.napra.org.br
5 Conheci Marcelo Salazar (o Groo), um dos fundadores do NAPRA, ainda estudante de
Engenharia de Produção, quando ele fez parte da equipe que coordenei no Programa
Universidade Solidária. Nesse momento tomei contato com o NAPRA e os sonhos de Groo e
Hamilton. Trabalhamos juntos e juntas em Ouriçangas/BA, onde também estavam Cristiano
Tierno de Siqueira (o Cris), Daniel Penteado (o Dani) e Mauren Botelho. Não vou detalhar aqui
com quem convivi nesses anos, pois caso contrário traria uma história muito mais longa do que
a que cabe nesse texto. Talvez em outras linhas. Aliás, muitas páginas seriam escritas se as
pessoas que gostariam de contar suas histórias de aprender e ensinar com o NAPRA, se
dedicassem a isso.
6 A pedido de Andréia Mataresi, então coordenadora do Núcleo de Educação. Nesses idos
tempos, as reuniões gerais (RGs) do NAPRA ocorriam ora em Campinas/SP, ora em São
Carlos/SP (em chácaras alugadas para esse fim), até que, definitivamente, a cidade de São
Carlos fixou-se como lócus para as RGs. Venho participando, em partilha com várias pessoas,
de inúmeras reuniões de formação desde então.
122
agroextrativista] ou se eu já tinha conversado com eles sobre
isso? E aí você explicou sobre participação popular e o trabalho
colonizador! Lembro como se fosse ontem! Após isso, no ano
seguinte, você entrou para a equipe. A ideia era fazer outra
formação! Aí sua pergunta foi: quem havia escolhido os temas?
E aí fomos pensando por esse caminho, em uma formação de
educadores participativa. Lembro que eu fiquei agoniada
dizendo que então Educação Popular era ensinar sem se
preparar e vocês fez uma MEGA conversa sobre isso! Sobre o
papel do educador e do educando. Após isso, o projeto de
formação de professores [em São Carlos do Jamari/RO] caiu por
água por falta de verba da Prefeitura e por conta da cheia que
havia sido muito longa, logo os educadores não poderiam estar
fora das escolas. Então planejamos fazer um trabalho com os
jovens. Que resultou nos jogos pan-ribeirinhos7.
NAPRA desde 2005, o ano de 2007 foi o único em que viajei para Rondônia, e que
espaços.
123
escrevivências9, vivescrituras10, solidarizando aprendizados comuns, emergidos
estruturei a escrita em cinco partes conectadas entre si. Nessa primeira parte,
desse texto, sob o nome de “Diálogo e participa-ação”. Por fim, na quinta e última
parte, intitulada “Ninguém solta a mão de ninguém”, finalizo essas reflexões com
9 Termo cunhado por Conceição Evaristo (2007) e que se refere “à escrita que nasce do
cotidiano, das lembranças, da experiência de vida da própria autora e do seu povo”. Publicado
no livro “Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e suas interfaces”. Marcos
Antônio Alexandre (Org), Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21. Fonte:
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos.html
10 O termo Vivescritura me cabe muito bem, quando penso em minha vida transcrita em verso e
prosa e que, em articulação com outras vidas e escritas, se transforma em produção científica.
11 EVARISTO, Conceição (op. cit.).
124
anunciar formas de superação dessas mesmas realidades, como postula Paulo
125
transformação social como fundamentos de uma prática definida, a priori, como
cotidiano”16.
Destarte, tendo claro de que falar sobre diálogo não é dialogar, abordarei
palavras do autor:
Sócrates, en una actitud didáctica, más que entrar a plantear su
tesis, partía de las opiniones de su interlocutor a la que
gradualmente iba cuestionando, hasta llegar a “convencerlo”.
[Esta perspectiva]... no busca enriquecerse con el otro porque de
partida se considera que su visión es equivocada. Lo que trata
de hacer es que se acepte la verdad que es, claro está, la que el
educador posee18.
educação, questiona seus primeiros trabalhos que tomavam o diálogo como uma
126
pretender dialogar, conduzir e convencer a ou o interlocutor a pensar da mesma
do que denomina de diálogo como extirpação: ou seja, uma proposta, nem sempre
consciente ou intencional, que parte dos saberes prévios daquelas/es com que se
“universalmente instituídos”.
Nessa linha, os diálogos que travamos em nossas ações não podem ser
jul/dez. 1996.
127
populares” e “saberes cultos” aparecem hierarquicamente separados,
negociação cultural ou na síntese cultural26, uma vez que “los saberes de los
pedagógica”27.
E importante alertar: esse outro pode ser aquele que vive em contextos e
Cendales González.
25 MEJÍA, M. R. (2016). Op. cit, p. 243.
128
estudantes menos experientes de nossas Instituições de Ensino Superior (IES), ou
(re)construir relações.
Para que o diálogo seja o selo do ato de um verdadeiro
conhecimento é preciso que os sujeitos cognoscentes tentem
apreender a realidade cientificamente no sentido de descobrir a
razão de ser da mesma – o que a faz ser como está sendo. Assim,
conhecer não é relembrar algo previamente conhecido e agora
esquecido. Nem a “doxa” pode ser superada pelo “logos” fora
da prática consciente dos seres humanos sobre a realidade28.
“tática manhosa, envolvente, que um usa para confundir o outro”. Pelo contrário,
conclama à participação.
129
“logística” tende a enfraquecer profícuas possibilidades de participação e diálogo
Porque lidamos com gente, não com coisas31, é que não podemos olvidar
participação.
Apel: quando em encontros que têm essa como uma de suas premissas, o orador
presentes estão com muita fome, para proferir a questão fundamental: “quem
está com fome?”. Todas as pessoas levantam as mãos. Um flash reluz: é a hora da
participação...
130
Torres, chama a atenção para que o participativo, desde já algumas décadas, pode
mas, ao contrário, quando ela não ocorre, lança-se mão de técnicas ou dinâmicas
131
Esse exemplo pode espelhar muitas de nossas atividades, acadêmicas ou
educativa. Mas nos provoca Torres: será isso possível? Acaso participação seria
Reiterando, para que, a favor de que, a favor de quem queremos essa participação?
que aqueles que somos capazes de viver, de sentir, de experimentar. E por esse
determinados.
35 Importante tomar o “popular” aqui não somente aquele outro distante de nós: o morador de
periferias, o povo ribeirinho, o pobre, o miserável. Mas a nós mesmas, que como pessoas
contraditórias, por vezes privilegiadas, precisamos tanto do diálogo e da participação social
quanto qualquer outro ser humano para nos tornarmos mais humanos.
36 Google, Apple, Amazon, Facebook e Microsoft (GAFAM).
37 “Somente no eu-tu, o indivíduo se torna pessoa. É esse poder de estar ligado e de ligar-se a
132
Se nós, educadoras e educadores populares não atentarmos para os
inúmeros “eus” que nos subjazem, e com os tantos “tus” com quem vamos nos
outro em “isso”.
Diálogo e participa-ação
Pois o que nos torna humanos é o fato de que
entre nós é impossível aprender e reequilibrar
interiormente a vida e a inteligência através de
cada saber adquirido, sem participarmos de
algum modo ativo do fluxo de sentidos e de
ações que reequilibram nossos contextos de vida
e de pensamento38
de educação ao longo da vida. Revista COCAR, Belém, v.10, n.20, p. 09 a 26 – Ago./Dez. 2016,
p. 17.
133
E é nesse exercício participativo e dialógico de ensinar-e-aprender que
conhecimentos.
Se participar é ter a possibilidade de se expressar, de expor as
opiniões próprias e discutir as alheias, de intervir no processo
de decisão, tal possibilidade, para dar-se e para ser legítima,
requer aceder a níveis cada vez maiores de informação e de
conhecimento. Não se trata, portanto, somente de uma atitude
permissiva, que propicie e estimule a expressão da palavra. Trata-
se, ao mesmo tempo, de qualificar a palavra para qualificar a
participação, a fim de superar o simples intercâmbio de
opiniões, o exercício frustrante de tomar a palavra para cumprir
com os rituais estabelecidos ou com as expectativas dos
educadores, temendo que ela pouco ou nada contribua e,
sobretudo, sabendo que essa palavra dificilmente será incluída
no processo de tomada de decisões. O diálogo e o intercâmbio
são importantes, porém, se não desembocam sobre nada
concreto, podem chegar a ser, às vezes, até mais perigosos que a
própria incomunicação.40
perpassa a radical escolha por me colocar ao lado das pessoas com quem
daqueles que vão inter-agir nessa seara. A teoria não pode ser outra que não
134
situação de com quem se solidarizou, é uma atitude radical41.
aqueles e aquelas com quem partilhamos nossas ações. Como nos ensinam o
político atual, pois caso contrário nossos pés deixariam de pisar o chão da
nos tempos atuais43. Representam faces cujo vértice aponta para uma esperança
socorro quando nos deparamos com cenário tão adverso no planeta, e mais
135
ao estático; ao vivo e não ao morto; ao futuro como desafio à
criatividade humana e não ao futuro como repetição do
presente; ao amor como libertação e não como posse patológica;
à emoção da vida e não às frias abstrações; à comunhão e não ao
gregarismo; ao diálogo e não ao mutismo; à práxis e não à ordem
e à lei, como mitos; aos seres humanos que se organizam
criticamente para a ação e não à organização deles para a
passividade; à linguagem criadora e comunicativa e não aos
“slogans” domesticadores; aos valores que se encarnam e não
aos mitos que se impõem44.
pessoas com quem sempre tivemos convergências. Não será esse pensamento
palavras de Freire:
Necrofílica, a rigidez reacionária prefere o morto ao vivo; o
estático ao dinâmico; o futuro como repetição do presente ao
futuro como aventura criadora; as formas patológicas de amor
ao amor verdadeiro; a esquematização fria à emoção da vida; o
gregarismo à verdadeira comunhão; a organização dos seres
humanos como objetos e não a estes se organizando como
sujeitos; os mitos que são impostos aos valores encarnados; as
prescrições à comunicação; os “slogans” aos desafios. É
necessário que os revolucionários deem testemunho, mais e
mais, da radical diferença que os separa das forças
reacionárias45.
136
aristocrática, seus mitos. Os revolucionários precisam provar o
seu respeito às massas populares dominadas, confiar nelas, não
como pura tática, mas como uma exigência necessária para
serem revolucionários46.
137
profundo respeito ao saber do outro. E por isso, torna-se factível a negociação
alguém que afirma que “[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15
ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não
processado”50. Ou de outra pessoa que posta nas redes sociais "Que estuprem e
Supremo Tribunal Federal. A advogada fez a postagem após o STF derrubar a prisão após
condenação em segunda instância jurídica. Fonte: https://www.brasil247.com/brasil/oab-chama-
tribunal-de-etica-para-advogada-que-sugeriu-nas-redes-estupro-das-filhas-de-ministros-do-stf
52 FREIRE (1996, op.cit., p. 30).
138
expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de
minha briga porque, histórico, vivo a História como tempo de
possibilidade não de determinação. Se a realidade fosse assim
porque estivesse dito que assim teria de ser não haveria sequer
por que ter raiva. Meu direito à raiva pressupõe que, na
experiência histórica da qual participo, o amanhã não é algo
“pré-dado”, mas um desafio, um problema. A minha raiva,
minha justa ira, se funda na minha revolta em face da negação
do direito de “ser mais” inscrito na natureza dos seres humanos.
Não posso, por isso, cruzar os braços fatalistamente diante da
miséria, esvaziando, desta maneira, minha responsabilidade no
discurso cínico e “morno”, que fala da impossibilidade de
mudar porque a realidade é mesmo assim.
nas periferias das cidades, nas beiras de rios amazônicos, ou envolvidos com
qualquer outra instituição ou lócus de educação, com aqueles e aquelas que mais
realidade emudecedora.
O discurso da acomodação ou de sua defesa, o discurso da
exaltação do silêncio imposto de que resulta a imobilidade dos
silenciados, o discurso do elogio da adaptação tomada como
fado ou sina é um discurso negador da humanização de cuja
responsabilidade não podemos nos eximir. A adaptação a
situações negadoras da humanização só pode ser aceita como
consequência da experiência dominadora, ou como exercício de
resistência, como tática na luta política. Dou a impressão de que
139
aceito hoje a condição de silenciado para bem lutar, quando
puder, contra a negação de mim mesmo.
das gentes54”.
140
6. Saúde Integral e Integrada
Andrea Silveira
Introdução
Falar sobre saúde implica, necessariamente, em tecer uma análise
abrem novos horizontes sobre a relação do ser humano com o seu meio ambiente.
Demanda olharmos para o mundo ao nosso redor não apenas como um lugar
preventivo para podermos reconhecer a saúde como uma questão ampla, que
configuração na atualidade.
baseava na relação do ser humano com o seu meio e seu estilo de vida, também
141
medicalização das cidades, a partir da segunda metade do século 19, a medicina
gestão efetiva da circulação de água e ar, além de uma análise mais criteriosa dos
de transmissão coletiva.
então, inaugurada uma nova era nos cuidados em saúde, que passou a priorizar
relação com o meio ambiente começou a ser novamente valorizada com a visão
sobre o ecossistema.
relações humanas com o espaço físico e social tem um impacto direto na saúde
142
que antes faziam parte especialmente das ciências humanas e sociais, passaram
herdado de tempos anteriores foi cedendo a vez para uma perspectiva mais
áreas urbanas e quando são convidados para uma atuação em outros contextos,
está voltada, sobretudo, para tratar ou prevenir doenças e muito pouco para
promover saúde.
Saúde) vêm tentando consolidar novas políticas e orientações tanto para a área
143
da educação em saúde quanto para a prática profissional. Neste sentido, a
144
mesmo tempo, reconhecer a biodiversidade, seus desafios e conexão com as
sobre esses fenômenos e o foco das ações deslocou-se para grupos sociais
145
Na história das sociedades encontramos surtos variados de doenças que
coletivo.
146
eventualmente determinadas pela herança genética), o meio
físico (que abrange condições geográficas, características da
ocupação humana, fontes de água para consumo,
disponibilidade e qualidade dos alimentos, condições de
habitação), assim como o meio socioeconômico e cultural, que
expressa os níveis de ocupação e renda, o acesso à educação
formal e ao lazer, os graus de liberdade, hábitos e formas de
relacionamento interpessoal, a possibilidade de acesso aos
serviços voltados para a promoção e recuperação da saúde e a
qualidade da atenção por eles prestada.4
disciplinas não alcançam o todo do fenômeno e, por essa lógica, tudo pode ser
solução definitiva.
impacto que essa escolha terá e que implicações decorrerão daquilo que ela
deixar de fora. Por isso, num mundo complexo, é impossível dar conta de toda a
147
dos casos), mas entre elas temos um espaço enorme no qual não atuamos.5 O fato
é que a realidade não pode ser apreendida em sua totalidade e a maior parte das
intervenção também carecem de novos desenhos. Talvez por razões muito mais
intervenções para lidar com semelhante vivência. Ou seja, não existe uma cultura
estruturada a partir da biopolítica, que atribui a culpa aos sujeitos e exige uma
claro que esse nível de atenção leva em consideração a população total e não a
saúde dos indivíduos dessa população e sua singularidade (como eles vivem,
como se relacionam entre si e com o ecossistema). Há, por assim dizer, uma
148
homogeneização (promovem os mesmos cuidados para todas as pessoas) e um
o que, por um lado é positivo, uma vez que poderia resultar numa forma efetiva
delimitação sociocultural.
primeiro lugar, em ter acesso a diferentes alternativas, o que não é o caso para
muitos grupos sociais. Além disso, as decisões sobre as ações e a elaboração das
programáticos a partir dos anos 70. O ponto comum nessa jornada é a lógica de
149
aspectos.6, 7, 8 Mas, de modo geral, a saúde pública falha ao destacar o modelo de
sempre apontadas por agentes externos que, inúmeras vezes, fazem uma
6 LEAL, M. C.; SABROZA, P. C.; RODRIGUES, R. H.; BUSS, P. M. (org.). Saúde, ambiente e
desenvolvimento. Vol.2. SP-RJ: Hucitec-Abrasco, 1992.
7 MONTEIRO, C. A.; IUNES, R. F.; TORRES, A. A evolução do país e suas doenças. Informe
9 COSTA, O. V.; AUGUSTO, M. H. A. Uma escolha trágica: saúde ou assistência médica? São
n. 4, p. 366-378, 1992.
150
enfrentamento das questões de saúde em médio e longo prazos. É praticamente
mudança do contexto e das condições de vida das pessoas e isso requer também
Promover saúde, nesse caso, significa fomentar a autonomia dos indivíduos e das
comunidades12 e as práticas mais efetivas para viabilizar isso podem ser pensadas
151
Cuidados básicos na intervenção integrada em saúde13
Considerando a amplitude dos conceitos e as críticas já apresentadas até
maneira integral e integrada. Antes de mais nada, devemos ter em mente que
pessoa e, mesmo que sejamos íntimos, isso requer ações que precedem o
momento do encontro. Iniciar qualquer trabalho nessa área demanda uma série
também da forma como a nossa presença foi solicitada (se for este o caso). O
de que maneira seus atores interagem entre si, para compreendê-la um pouco
uma ordem cronológica para orientar a nossa inclusão no campo, mas este tipo
mas o dinamismo do tecido social faz com que as ações ocorram, na maior parte
13As ideias detalhadas sobre a intervenção em saúde integrada constam no e-book da mesma
autora (SILVEIRA, A. Socialmente engajados: refletindo sobre intervenção psicossocial) que
pode ser livremente acessado no site: www.wontanara.com.br
152
trabalho de campo guardam entre si certa permeabilidade, impedindo a
maleabilidade faz com que nos perguntemos por onde começar. De fato, é
configuração nos moldes atuais, além de verificar que impacto tudo isso teve e
que surgem no campo. Por essa razão, o processo demanda uma interação
permanente entre todos os atores envolvidos (pois cada um tem uma perspectiva
circularidade e maleabilidade.
153
Figura 6.1: Fluxograma das etapas de trabalho. Silveira, A. Socialmente engajados: refletindo
sobre intervenção psicossocial, p. 19, 2014.
154
participação, reforçando a necessidade de preservarmos a democracia do
pode abrir novos caminhos e outras portas: sempre tem alguém que indica
apresentar. Aos poucos vamos tecendo nossa rede, esclarecendo por que estamos
campo.
155
sentimento de justiça e a eficácia política (acreditar na sua capacidade de intervir
frente aos arranjos sociais (o papel que eles têm na comunidade, como executam
percebem isso?).
156
dependência para a fase de colaboração, até atingir sua emancipação
(autonomia).
Muito pelo contrário, como discutimos até aqui, trata-se de uma abordagem que
olha para todos os campos da saúde (como propõe o conceito ampliado de saúde)
localidade.
para inovações. Por outro lado, uma regra deve ser mantida: jamais ignorar o
dizer que as outras devam ser excluídas: temos que manter o olhar macro e
definir o nível de intervenção específico, isto é, se distal (de forma mais indireta
157
encontrar respostas mais criativas para os desafios. Além disso, não podemos nos
colaborador.
processo do adoecimento, mas nos cabe concordar que a atenção em saúde deve,
Por outro lado, existirão necessidades de ações mistas, seja em duas dessas
158
depende exclusivamente de uma área da saúde. Pelo contrário, essa visão
fazeres.
159
Considerações finais
Saúde integral e integrada, portanto, significa olhar para os diversos
aspectos da vida humana e promover uma sincronia entre eles de tal maneira que
que toda ação gera um impacto, mas que nem sempre estamos atentos o
suficiente para reconhecer suas consequências. Precisamos ter clareza dos nossos
transformação.
protocolos e fórmulas mágicas que possam tornar o trabalho mais efetivo, nos
seu momento histórico. Tudo isso tendo, como pano de fundo, uma concepção
seja, nunca vamos a campo sem querer alguma coisa, sem ter alguma coisa pronta
de antemão. Essa tem sido a regra. Mesmo quando tentamos não ocupar o lugar
uma comunidade é reconhecer seu meio-ambiente físico e social. E para que isso
160
peculiaridades do fazer de cada ator. A ação deve ser sempre conjugada no plural
161
7. Saneamento de Pequenas Comunidades e o
Gerenciamento dos Recursos Hídricos na Amazônia
Brasileira
Introdução
No Brasil há muitas dificuldades e desafios relativos à integração de
e locais.
162
modelo de governança e gestão para a melhoria e ampliação do acesso aos
água como bem de domínio público, como recurso natural limitado, dotado de
civil1.
relaciona-se diretamente com a diluição do esgoto lançado (um dos tipos de uso
dos recursos hídricos). Dentre as diretrizes para implantação dessa política estão:
1BRASIL. Lei No 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que institui a Política Nacional de Recursos
Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso
XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei N o 8.001, de 13 de março de 1990,
que modificou a Lei No 7.990, de 28 de dezembro de 1989.
163
medição. Já o esgotamento sanitário envolve a coleta, o transporte, o tratamento
e a disposição final dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu
prestação de tais serviços por entidade que não integre a administração do titular
2BRASIL. Lei No 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o
saneamento básico, altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de
1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei n o 6.528, de 11
de maio de 1978; e dá outras providências.
164
público, limitando-se a condomínios e localidades de pequeno porte ocupadas
da cobrança de tarifas, que podem ser estabelecidas para cada um desses serviços
ou para os dois. Os subsídios tarifários e não tarifários podem ser adotados para
destinação final dos esgotos sanitários são admitidas na ausência de rede pública
nas áreas rurais dos municípios da Amazônia brasileira, pode-se considerar que
165
Ambas as políticas definem a bacia hidrográfica como a unidade territorial
correspondente.
estiver inserido, sendo esse último um instrumento previsto nas políticas dos
3Conselho Nacional do Meio Ambiente. Resolução No 357, de 17 de março de 2005, que dispõe
sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem
como estabelece as condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências.
166
ligado às condições do esgoto ou efluente e o enquadramento vinculado à
qualidade do corpo hídrico receptor, que, por sua vez, deve garantir os usos dos
social, de gestão dos recursos hídricos e dos serviços de saneamento básico para
de experiências bem ou mal sucedidas das regiões Sudeste e Sul, onde os índices
(em especial nas suas áreas rurais) deva passar por modelos de governança e
comunitária.
Governança e gestão
Define-se governança das águas como “o conjunto de sistemas políticos,
167
sociedade”4. Na prática, espera-se que tal governança determine quem fica com
o que, quando, como e quem tem o direito à água, aos serviços e aos benefícios
determinados setores5.
que definem e identificam quais são as metas de gestão a serem perseguidas. Por
sua vez, a gestão trata dos mecanismos e medidas utilizadas para atingir as metas
que leva a mencionar que uma crise de governança hídrica é uma crise das
168
institucional; capacidades estatais; instrumentos de gestão do sistema; relações
pode ser feita por meio de dois aspectos: efetividade da legislação e importância
descentralização da participação.
propõe oito princípios chaves para uma boa governança, entre os quais:
HÖESL, R. Gobernanza y gestion forestal con énfasis en REDD+: manual didáctico para la
formación de capacitadores. CATIE y GIZ, 2011.
169
Quadro 7.1: Indicadores e verificadores para acompanhamento do ambiente institucional. Fonte: adaptado de WWF Brasil e FGV
(2014).
Aspectos da
O que pretende verificar Indicadores Fontes
Governança
170
Quadro 7.2: Indicadores e verificadores para acompanhamento da interação do estado com a sociedade. Fonte: adaptado de WWF
Brasil e FGV (2014).
Aspectos da
O que pretende verificar Indicadores Fontes
Governança
Se a informação
O índice de
disponibilizada aos
satisfação dos entes
participantes dos Pesquisas de Satisfação
de colegiados
colegiados é absorvida de
disponibilizado
forma satisfatória
Quantidade de
A existência de
campanhas
Interação do Estado Qualificação da campanhas institucionais
veiculadas em
com a Sociedade Participação de formação incentivando
meios de Pesquisa junto às
a participação no sistema
comunicação publicações e aos sítios
eletrônicos dos órgãos
A implementação de Quantidade de
gestores
projetos, ações, projetos, ações e
deliberações monitorados deliberações
e avaliados pelos implementados e
organismos colegiados avaliados
171
Se a participação nos
Grau de
órgãos oficiais do Sistema
cumprimento das Relatórios anuais dos
Canais de Participação de Gerenciamento de
atribuições legais colegiados
Recursos Hídricos é
pelos colegiados
efetiva
Expressa o estágio de
implementação dos
sistemas de gestão de Número de CBHs Órgão gestor, conselhos,
recursos hídricos a partir criados e em deliberações ou
da constituição e funcionamento resoluções
funcionamento dos
organismos de base
Expressa o grau de
Interação do Estado Descentralização da compromisso e Existência de
com a Sociedade Participação comprometimento do dotação Orçamentos do órgão
órgão gestor com o orçamentária para gestor
funcionamento dos apoio aos CBHs
comitês
Composição do Regimento interno do
Expressa a participação e colegiado que colegiado, resoluções ou
a representatividade nos integra o sistema deliberações do mesmo,
processos de gestão estadual de publicação da nomeação
gerenciamento de tal colegiado
172
Expressa o compromisso
Existência de
real com a disseminação
ferramenta de
de informações,
comunicação e
esclarecimentos Entes do sistema
divulgação, como
e notícias que fortaleçam
boletim eletrônico,
o reconhecimento do
site e publicações
sistema pela sociedade.
173
Transparência é condição sine qua non para a participação e
visualizada pelo grau de inclusão desse tema nos debates das políticas de
governança.
174
O grau de cumprimento das atribuições legais pelos colegiados indica se
Muitas vezes, não existe dotação orçamentária para apoio aos conselhos
dos mesmos.
175
Participação social e o envolvimento comunitário em saneamento rural
As políticas públicas com participação cidadã têm mais chance de êxito,
cumprimento voluntário9.
América do Sul. Além disso, programas que incluem sistemas gerenciados pelas
176
A Colômbia é reconhecida por ter o melhor programa de abastecimento
80% da sua população rural com acesso à água potável. O programa colombiano,
do comitê6.
que gerenciam tais recursos sobre os próprios usuários, o que, por sua vez, pode
177
disponíveis sem se desprezar (ao contrário, procurando incluir) a cultura da
178
voltadas ao abastecimento, incluindo a prestação de assistência técnica. Destaca-
organizacionais de transação6.
Enfim, fica a reflexão a ser propiciada pela seguinte pergunta: esse modelo
179
de 50 litros de água de chuva por pessoa diariamente na estação chuvosa e 20
Considerações finais
Certamente, o modelo atual de governança e gestão nos serviços de
180
capacitação nessa temática, do aprimoramento da participação e do controle
adaptação climática e promoção de justiça social, por isso, este tema merece
maior atenção por parte dos diferentes atores que compõem o SINGREH, e
181
8. Para além do regatão: os condicionantes sociais do
acesso dos produtores tradicionais aos diferentes
canais de comercialização
Introdução
A comercialização da produção das comunidades tradicionais é uma
produtores adquirem recursos financeiros que dão base para seu consumo, e que
não são obtidos nas suas atividades produtivas, para a manutenção familiar. É
de consumo.
182
capítulo que ela é incompleta. Suas limitações decorrem de pressupostos que dão
base para a ciência econômica de que a economia pode ser estudada como uma
esfera completamente separada de outras esferas sociais. Para romper com esse
serem vistos com desconfiança pelas elites dominantes e possuíam uma posição
comercial das regiões. A igreja católica, uma das poucas instituições centrais
mais geral, havia uma cultura religiosa, coletivista, fechada e hierárquica, que
183
condenavam a livre busca pelo auto interesse econômico individualista nos
mercados.
primeiro passo foi dado com a retomada do comércio, iniciada com o crescente
trabalhos dos economistas clássicos dão base para justificação, de certa forma
3 HUBERMAN (1978).
4 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
5 TAYLOR, C. A secular age. Harvard University Press, 2007.
6 SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre a natureza e suas causas. Nova Cultural,
1988.
7 MANDEVILLE, B. The fable of the bees: or: Private vices, publick benefits. Liberty Fund,
1988.
184
a especialização produtiva e o livre comércio e concorrência não seriam bons
somente para os empresários, mas para produzir riqueza para a sociedade como
Elas dão base para a construção da economia como esfera autônoma da vida
8WALRAS, L. Compêndio dos elementos de economia política pura. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
185
serão vistos como construções sociais, históricas, culturais e políticas. Como
Estados como algo artificial. São os Estados modernos que fornecem as bases
186
socialização primários e secundários, incorporando certos princípios que dão
base para seu comportamento, eles são capazes, em certas condições, de moldar
identificação e de conflito entre si. Essa visão é detalhada nas seções abaixo.
racionalidade dependem dos grupos sociais dos quais são parte e de suas
sociais como um ideal que eles buscam impor a toda a sociedade por meios
simbólica”, são realizadas por processo sociais que consideram como irracionais
Apesar da violência das sanções que são impostas aos desviantes, a lógica
maneira absoluta na esfera das ações econômicas. Isso porque ela nunca é
187
completamente independente das outras esferas de sociabilidade humana, sendo
esses preceitos tendem a ser vistos como superiores aos que não o fazem e a
racionalidade econômica dominante, o que faz com seu status econômico seja
uma forma mais geral, os aproxima de outros grupos sociais das classes sociais
SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.
14
188
Os traços gerais das culturas tradicionais são amplamente documentados
tende a ser limitada pela posição ocupada entre pelas pessoas nas cadeias de
prevalência dos atores masculinos sobre os femininos, o que por vezes implica
em estruturas patriarcais.
comumente prioriza a venda de seu produto para um comerciante não com base
apenas no preço que ele paga por seu produto e no cálculo dos seus ganhos, mas
Kabyle house or the world reversed: essays. Cambridge University Press, 1979.
189
envolvendo uma capacidade de pensamento prospectivo, ou seja, de projeção de
distribuído e com que membros de classes sociais mais baixas tendem a estar
considerando o futuro como algo que está “por vir” e não como algo que pode
conhecimento socialmente úteis, o que tem a ver com seu baixo grau de
escolarização. Em sua análise dos grupos sociais brasileiros, Jessé Souza mostra
“batalhadores”, dos quais a maioria dos moradores das comunidades são parte,
Estado. Em seus estudos, o autor mostra que muitos membros dessas classes não
190
pelo mercado formal e a plena cidadania, que são exercidas de maneira pré-
evidentemente, não significa que essas pessoas não tenham outros recursos, mas
culturais, verifica-se que sua aquisição depende em grande medida dos recursos
classes mais baixas, uma vez que é na família que as crianças começam a aprender
escolar. Em geral, filhos de pais pouco escolarizados têm uma tendência maior
posições sociais.
cultural define, portanto, posições e disposições sociais aos atores, que moldam
que a economia nos faz pensar, portanto, não são apenas os recursos econômicos
que definem a posição das pessoas, mas também o acesso aos recursos culturais,
191
uma distribuição relativa, com certos atores podem ter uma proporção maior de
geral, os grupos sociais desafiantes têm mais dificuldades de ter acesso aos
Além dos recursos que influenciam os modos de ser dos grupos sociais,
capital não pode ser totalmente separada dos recursos econômicos e culturais,
uma vez as nossas conexões em rede têm “peso”. O contato com um ator muito
rico e/ou culto tende a ser valioso, abrindo novas possibilidades sociais. O acesso
19 BOURDIEU, 2013.
20 ABRAMOVAY, R. Laços financeiros na luta contra a pobreza. São Paulo: Annablume, 2004.
21 BOURDIEU, 2005.
192
Relações de mercado como relações sociais
As relações de mercado podem ser pensadas em termos da relação entre
levando uns aos outros em conta, de acordo com uma certa estrutura de
do campo dos compradores, que tem sua estrutura e sua dinâmica concorrência
dos produtores e dos compradores contam com suas próprias estruturas que dão
mais ou menos “peso” a certos atores. Cada um deles conta com atores vistos
22 BOURDIEU, 2005.
23 BOURDIEU, 2005.
193
dominantes nos campos econômicos, o que é fundamental para a reprodução das
estruturas sociais. Os atores dominantes contam com maior aporte dos recursos
de acordo com suas próprias visões e disposições, o que faz com que eles tenham
pelos dominantes, que parece ser neutro, mas que na verdade, é arbitrário e gera
dos campos dos produtores e dos compradores tende a influência nas dinâmicas
também nas estruturas sociais, tendem a ser mais próximos socialmente, o que
relacionam entre si, eles tendem a “falar a mesma língua” e pensar de formas
similares, o que facilita a efetivação das relações comerciais. Por terem uma
importam. Ainda que na economia tenda-se a enfatizar que o campo dos clientes
cliente tem sempre razão”, também é possível que a oferta molde a demanda.
194
Isso é especialmente relevante e um contexto econômico amplamente dominado
dominar os menos.
restrições sociais.
exemplo, pode ser dividido em produção de castanha, açaí, óleos vegetais, cipós,
195
De forma geral, as atividades nas quais as comunidades tradicionais estão
modernas para a produção no setor primário, uma vez que possibilitam maior
país, que falam em nome de todos. Como a pescaria artesanal é uma atividade
196
muito dispersa e na qual os atores contam com menos recursos, tende a haver
define ainda que a pesca deve ser realizada apenas para consumo nos períodos
valorizar a floresta “em pé” e melhorar a qualidade de vida das comunidades 25.
produtos, como frutas, castanhas, cipós, raízes, sementes, óleos, seivas, cascas e
197
manejadas por comunidades. Trata-se, portanto, de um campo pouco
organizado, com uma estrutura de poder e uma produção muito dispersa. Nos
fortalecer o campo. O Estado também tem atuado nesse sentido por meio de
produtos naturais. Esse aumento atrai a atenção de atores econômicos de fora das
Isso é possível apenas para alguns produtos, como certas frutas. Na produção de
Pará27. Outras formas de ampliar a produtividade das áreas, que tem sido
198
projetos comunitários, são o adensamento de certas espécies em áreas florestais28
familiares31.
pequenas propriedades rurais: estudo de caso. Ciência Florestal, v. 12, n. 1, p. 135-141, 2005.
30 SAUER, S. Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo
em novembro de 2017.
199
campos em que estão inseridos ou compõem campos com posição global muito
como é o caso do extrativismo. Essas posições são semelhantes, ou, de forma mais
domínio precário, muitas vezes, ocupadas. Isso restringe o seu acesso ao crédito,
recursos, eles também contam com pouco acesso a equipamentos que facilitem
que os jogos econômicos mais importantes nos impõem. Isso faz com que eles
instituições de ensino, fazem com que a escolaridade média dos produtores seja
muito baixa. Assim, boa parte desses trabalhadores contam com habilidades de
leitura e escrita bastante precárias, o que é um empecilho grave para o acesso aos
para pequenos cálculos, feitos de cabeça, mas há poucos que conseguem lidar
criação de laços afetivos com a profissão dos pais e disposições para que eles
200
lidem com o trabalho duro na floresta32. Por isso, produtores que vêm de famílias
menos estruturadas e, por vezes, mono parentais, tendem a ter mais dificuldades
de inserção produtiva. Isso porque, para os membros das classes mais baixas do
matas e espécies33, 34, para que a pesca e o extrativismo sejam uma opção viável
produção.
novos. Isso porque os filhos dos produtores têm perdido interesse nas atividades
produtivas, o que pode ser associado à sua percepção acerca do baixo status social
que se lançam à vida nas cidades sem muitos recursos, o que faz com que ocupem
32 SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.
33 CANDIDO, S. E. A. Comunidades ribeirinhas, engenheiros e conservação da floresta:
construção participativa do espaço tecnológico em empreendimentos econômicos solidários na
Amazônia. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção). Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, SP, 2010.
34 SANTOS, R. R. O extrativismo de castanha-do-Brasil Bertholletia excelsa (Humbl. & Bonpl.)
no rio Madeira, Rondônia: bases para uma gestão ambiental participativa. Dissertação
(Mestrado em Ciências Biológicas). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2011.
201
novas dinâmicas de acumulação por meio da precarização do trabalho do
capitalismo contemporâneo.
Outro capital importante e que da base para a ação nos mercados pelos
regiões rurais, o acesso aos mercados por esses produtores ao mercado se dá por
por meio dar vários canais distintos. Em todos os casos, os preços pagos pelos
final das safras dos produtos comunitários, quando poucos produtores estão
uma cadeia de intermediários, que contam com meios para viabilizar vendas e
202
por concentrarem ganhos da cadeia a partir de atividades não produtivas35, 36.
possuem em relação aos produtores, o que uma está associado a uma estrutura
escala e de escopo.
e com seus produtores. Muitos deles são “filhos da região” por onde navegam.
ser de famílias tradicionais locais, atuando com base na sua reputação como
35 GET – Global Engineering Teams. Project Report: Commercialization of Non Timber Forest
Products. Berlin, Germany, 2007.
36 CANDIDO, S. E. A. Comunidades ribeirinhas, engenheiros e conservação da floresta:
203
todos os casos, esses atores comerciais têm forte presença local, “falando a língua
produtores, oferecendo suporte a eles nos momentos em que precisam, por meio
conta disso, é comum que os produtores tenham grande respeito e confiança nos
que constituem a base para que eles reproduzam suas posições. Em termos dos
grupos sociais brasileiros descritos por Souza37, 38, eles podem ser vistos como
“batalhadores”, um grupo que tem um acesso mais alto a capital econômico, mas
que ainda não tem acesso às formas de conhecimento formais consagradas pela
econômico, que é mais ou menos herdado das gerações anteriores, de acordo com
quão antiga for sua atuação do mercado, ou mesmo em ganhos obtidos em outras
individuais, lidando com volumes maiores dos produtos, o que permite acesso a
tenham pouco valor global nas sociedades modernas, são fundamentais para a
sua atuação. O primeiro deles tem a ver com o seu conhecimento prático acerca
SOUZA, J. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009.
37
204
compradores, bem como o conhecimento básico do seu linguajar e dos jargões
com base nos quais os negócios são feitos. Por fim, as próprias conexões com
intermediários e que dá base para seu negócio. Por vezes, os intermediários que
o que faz com que vendam sua produção para outros intermediários que atuam
nos portos urbanos. Esses outros intermediários também contam com um acesso
maior a certos recursos úteis no meio urbano, como meios de transporte terrestres
obtidos por meio do ensino superior. Em virtude disso, eles tendem a ter um
das comunidades, a quem tratam comumente como pessoas simples, que tendem
a considerar precárias.
205
Uma reclamação constante e compreensível a partir dessa ótica das distinções
capazes de te “deixar na mão” por alguns centavos a mais oferecidos por outro
fornecedores, que são membros de classes sociais mais baixas. É comum ainda
comunidades tradicionais.
materiais.
uma vez que seus clientes são grandes atacadistas e varejistas de outras regiões
do país com elevado poder de barganha. A negociação com esses é facilitada nos
casos de produtos menos perecíveis, como óleos e castanhas, uma vez que, além
206
de suportar o transporte das comunidades para a cidade, os produtos precisam
fluvial.
embalados de forma diferenciada. Eles contam com margens maiores, o que pode
arranjos não depende apenas da atitude auto interessada dos atores econômicos,
agronegócio.
207
Essas transformações culturais têm feito com que empresas industriais
Amazon: A review of opportunities and problems. Forest Policy and Economics, v. 8, n. 4, 485-
494, 2006.
42 STRAATMANN, J. Redes voltadas para produtos florestais não madeireiros: análise da
influência de redes de cooperação nas cadeias de valor da Terra do meio no Pará. 2014. Tese
(Doutorado em Engenharia de Produção), Universidade de São Paulo, São Carlos, 2014.
208
dependência em relação aos grandes intermediários, que comumente são vistos
duradouras e estáveis.
Agricultura Familiar43, por meio dos quais os governos têm sido forçados a
frescos para as próprias escolas das comunidades, o que constitui uma forma de
envolver relações entre atores das próprias comunidades, ele envolve práticas
dificuldades como acesso mínimo à capital cultural, que por vezes impedem que
demanda desses produtos, buscamos agora refletir sobre barreiras para que as
superá-las.
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário. Site institucional. Brasília, DF, 2017. Acesso
43
em novembro de 2017.
209
sociais e à sua posição no espaço social brasileiro. Os produtores são parte de
posicionados socialmente.
pessoas que “falam a mesma língua”, que comumente conhecem uns aos outros
e que também constroem uma visão sobre suas reputações com base em um
do ponto de vista logístico, uma vez que o produtor não precisa se deslocar até a
cidade para vender seu produto. Esses pequenos comerciantes se dispõem ainda
economicamente, visto que eles contam com pouco poder de barganha nas
210
Amazônica em diferentes canais de comercialização44. Verifica-se que o acesso a
algo que pode contribuir para a ampliação de seu repertório cultural e criar bases
Figura 8.1: Variação do preço pago pela castanha com casca e requisitos nos diversos canais de
comercialização. Fonte: GET (2007)45.
tendem a enfatizar sua própria experiência e ter uma abordagem mais baseada
44 GET – Global Engineering Teams. Project Report: Commercialization of Non Timber Forest
Products. Berlin, Germany, 2007.
45 GET – Global Engineering Teams. Project Report: Commercialization of Non Timber Forest
211
em costumes e conhecimentos próprios. Os produtores tendem, assim, a ter
demandas de qualidade exigidas por esses segmentos, bem como ajustar suas
atividades a tempos e prazos mais bem definidos que esses demandantes podem
melhor posicionados tendem a ser muito maiores, o que por vezes inviabiliza que
para lidar com elas. Entretanto, essa abertura tem seus limites, uma vez que elas
uma compreensão consistente não apenas das restrições materiais, mas também
intuitivos”. Essas ações podem lidar com questões contornáveis no longo, médio
tempo.
enorme desafio, ainda mais considerando o contexto da educação nas áreas rurais
212
romper as fronteiras sociais invisíveis que fazem com que os membros dessas
canais com demandas maiores, e também para ampliar o poder de barganha dos
produtores. A atuação conjunta nas vendas pode se dar de acordo com diferentes
213
que pode ser fundamental para acessar certos mercados. Também é relevante que
Abastecimento47.
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário. Site institucional. Brasília, DF, 2017. Acesso
47
em novembro de 2017.
214
Considerações finais
O desenvolvimento de ações efetivas para a melhoria das condições
215
9. Organização e tecnologias de produção em
comunidades da Amazônia: um olhar sociológico
Introdução
A geração de renda em comunidades tradicionais da Amazônia a partir de
pecuária.
comunidades.
se trata de uma arena que busca pensar o mundo dito econômico como esfera de
216
uma perspectiva sociológica, consideramos especialmente relevante para a
bases culturais que dão base para a ação e o sentido que os atores atribuem a elas.
econômicas4.
uma unidade e uma hierarquia marcada por estima e confiança, dentre os quais
5 Boltanski e Thévenot (2006) fazem uma história das ideias identificando os filósofos políticos
que mais contribuíram para a instituição dos valores modernos, que se concretizaram nessas
seis formas de justificar as ações com base no bem comum. A filosofia política trata-se do campo
que se propõe a construir consensos sociais para disputas políticas, possibilitando acordos
gerais e, até mesmo, a convivência humana. Boltanski e Thévenot (2006) explicitaram essas
moralidades ou formas de racionalidade modernas presentes nesses filósofos.
217
criatividade e fé. Por último, o mundo da fama consiste em formas de valor que
socialização anterior, o que faz com que esses processos sejam permeados por
6 cf. p. 126. GRUN, R. Modelos de empresa, modelos de mundo: sobre algumas características
culturais da nova ordem econômica e da resistência a ela. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, v. 14, n. 41, p. 121-140, 1999.
7 GRUN, R. Modelos de empresa, modelos de mundo: sobre algumas características culturais da
nova ordem econômica e da resistência a ela. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n. 41,
p. 121-140, 1999.
8 ZILBOVICIUS, M. Modelos para a produção, produção de modelos: gênese, lógica e difusão
218
sua vez, um reforço do modelo. Quando esse modelo é questionado, novas
visão sobre os principais desafios e limites para que esses dois modelos de
mundo se conciliem.
tradicionais.
219
valor doméstica não ocorre só na família ou dentro de casa. A lógica doméstica
não opera apenas no seio das relações de produção em si, mas na própria
ritos de passagem são marcados por essa lógica. Por exemplo, a entrega do facão
do pai ao filho simboliza sua maturidade para lidar com tal instrumento e a
tradição nesse mundo. Apesar de haver casos de mulheres que ocupam algumas
trabalho como forma pura de gerar renda, ou como uma forma de valor
proveito deles, como na agricultura que varia ao longo do ano entre terra firme e
várzea de acordo com o nível do rio, em vez de uma busca infindável por
significa que não existam técnicas de manejo. Diversos são os relatos de esforços
220
industrial, já que essas técnicas têm suas origens relacionadas à tradição, mais do
Estado. São comuns os casos em que isso se justifica pelo uso histórico da terra.
hereditariamente e com base no uso e no zelo, como nos casos dos castanhais e
movimentos de cheia e seca do rio, dos períodos de desova de peixes, o que não
região.
para qualquer região, a Figura 1 apresenta a forma que, em geral, se dão os ciclos
naturais e sua relação com o trabalho na floresta na região do Baixo Rio Madeira
221
várzea (ou vargem, como alguns dizem na região) de agrocultivares de ciclo curto
curto e o baixo volume de água adensa a população de peixes fazendo com que
terra firme são mantidos durante todo o ano, já que são pouco afetados pela
dinâmica do rio.
básicas às quais os produtores têm acesso. Outros são mais peculiares, sendo de
muito diversificadas, sendo que cada produtor tem suas manias e rituais
222
para transporte. Após a lavagem, as castanhas são distribuídas em uma lona ou
Figura 9.1: Ciclos naturais e atividades produtivas nas comunidades ribeirinhas do Baixo Rio
Madeira, Rondônia. Fonte: Elaboração própria, com base em Candido (2010).
223
Quadro 9.1 Tecnologias tradicionalmente utilizadas por castanheiros.
Fonte: Candido (2010, p. 111).
Tecnologias Funções
Embarcação de pequeno • Possibilitar o transporte do extrativista e seus
porte (casco, motor e suprimentos até os castanhais que só podem ser
combustível ou casco e acessados por via fluvial e a castanha coletada
remos) para a morada do extrativista.
Calçado (bota “sete •
Proteger os pés durante as caminhadas e o
léguas”, bota de couro, trabalho na mata.
tênis ou chinelo10) • Proteger parcialmente as pernas de ataques de
animais peçonhentos (no caso das botas)
• Manter pés secos durante caminhada na mata
(no caso da bota do tipo “sete léguas”)
Calça e camisas de manga • Proteger braços, pernas e demais partes do
longa corpo dos ataques de animais peçonhentos e de
outros insetos, sobretudo, “carapanãs”11.
Espingarda • Caçar
• Auto-proteção do extrativista contra os perigos
da mata
Barraco (Lona, cordas ou • Prover abrigo para os extrativistas que dormem
enviras e pedaços de na mata durante a coleta.
madeira da mata)
Rede, corda e mosquiteiro •
Amparar o extrativista durante o descanso,
elevando-o do chão enquanto ele dorme na
mata e possibilitando maior conforto e
segurança
• Proteger o extrativista de mosquitos e insetos,
impedindo sua entrada na rede (mosquiteiro).
10 O chinelo é geralmente usado nos casos em que o extrativista não tem dinheiro para comprar
um calçado mais adequado.
11 Mosquitos sugadores de sangue, conhecidos como pernilongos em outras regiões brasileiras.
224
Quadro 9.1: Tecnologias tradicionalmente utilizadas por castanheiros.
Fonte: Candido (2010, p. 111) (continuação).
Tecnologias Funções
Facão • Cortar mato a fim de abrir novas picadas ou
manter as antigas, possibilitando a localização
do extrativista na mata e demarcação de sua
área de coleta
• Cortar a mata na área ao redor da castanheira,
realizando a “limpeza” do castanhal
• Cortar tronco das castanheiras, “sangrando-as”
e possibilitando o aumento de sua
produtividade
• Espetar o ouriço, possibilitando seu transporte
do chão até o saco ou o paneiro durante sua
coleta embaixo da castanheira
• Quebrar a casca do ouriço a fim de retirar as
castanhas de dentro dele
• Cortar superficialmente o tronco de árvores,
auxiliando o extrativista a retirar fibras (envira
e matá-matá) que auxiliam no transporte da
castanha na mata
• Auto-proteção do extrativista
“Pé-de-bode” • Coletar os ouriços da castanha do chão e
depositá-los no paneiro sem que o castanheiro
precise se abaixar com peso nas costas
• Proteger o castanheiro do ataque de animais
peçonhentos durante a tarefa de coletar o
ouriço do chão e colocá-lo no paneiro
Enxofre (aplicado com • Aumentar a produtividade da castanheira
auxílio do trado)
Fósforo ou isqueiro e • Possibilitar o ateamento de fogo na base da
folhas secas castanheira, o que, de acordo com alguns
extrativistas, aumenta a produtividade da
árvore.
Ouriço da castanha • Apoiar o extrativista durante a quebra dos
ouriços, evitando que ele precise sentar-se no
chão e melhorando sua postura durante a
quebra.
225
Quadro 9.1: Tecnologias tradicionalmente utilizadas por castanheiros.
Fonte: Candido (2010, p. 111) (continuação).
Tecnologias Funções
Saco de polipropileno ou • Auxiliar o extrativista no transporte dos ouriços
paneiro no castanhal.
• Auxiliar extrativistas no transporte das
castanhas
Fibra de Envira/matá- • Fixar o saco de polipropileno nos ombros, peito
matá e testa do extrativista, facilitando o transporte
da castanha na mata.
Cigarro e isqueiro • Espantar insetos durante o tempo em que o
extrativista está parado na mata, momento em
que eles mais atacam.
Figura 9.2: Castanheiro durante a quebra dos ouriços na mata. Fonte: NAPRA, 2004 12.
226
predomínio da lógica doméstica de produção nesses espaços. Há baixa inovação
resistência, por outro, ele pode ser frágil no contexto atual. Apresentar novas
mundos, tanto no sentido das formas de valor, quanto no sentido mais material,
227
Empreendimentos solidários em comunidades ribeirinhas
Projetos voltados ao fortalecimento da produção em comunidades
como recursos a partir dos quais eles possam alterar sua posição social relativa e
mundo cívico para a esfera da organização do trabalho. Essa lógica possui uma
minorias.
é diferente da do mercado, que visa ganhos financeiros, ainda que nas sociedades
vida e das suas condições de trabalho. Para que essas formas não gerem a
228
apropriação privada de ganhos, entretanto, é relevante que ela seja combinada e
atual está fortemente enraizado nos mundos industrial e comercial, fazendo com
solidários, cujo mundo dominante é o cívico. Para essa análise, vamos comparar
os mundos industrial e cívico quanto a algumas variáveis, para que seja possível
rompe totalmente com essa ideia, mas tem base em outro mundo que vai
229
Quadro 9.2: Comparação entre modelo de organização do trabalho dominante e
dos empreendimentos econômicos solidários. Fonte: Elaborado pelos autores
com base em Gaiger (2003)14 e Singer (2002)15.
Modelo de organização Empreendimentos
do trabalho dominante econômicos solidários
Mundos dominantes Mercado/Industrial Cívico/Industrial
Principal objetivo Oferecer produtos e Valorizar o trabalho e as
serviços para acumular pessoas engajadas no
capital empreendimento
Propriedade Privada. Separação entre Coletiva. Compartilhada
os que trabalham e os que entre todos que trabalham no
são donos empreendimento
igualitariamente
Controle de gestão Gerentes e/ou Autogestionário ou gestão
proprietários democrática (podem ter
responsáveis pela
operacionalização da gestão,
mas decisões centrais e
princípios de gestão são
definidos entre todos)
Medidas de Medidas financeiras Associadas à capacidade de
desempenho (custo, receita, lucro) e de manutenção do
eficiência operacional empreendimento e de seus
colaboradores
Estrutura Hierárquica, controlada Não hierárquica, controlada
organizacional e pelo proprietário ou pelo coletivo
funções gestor Não separação entre trabalho
Separação entre trabalho intelectual e operacional
intelectual e operacional Funções e rotinas bem
Funções e rotinas bem definidas, mas rotativas e
definidas e, flexíveis
eventualmente, flexíveis
230
Quadro 9.3: Comparação entre modelo de organização do trabalho dominante e
dos empreendimentos econômicos solidários (continuação).
Modelo de organização Empreendimentos
do trabalho dominante econômicos solidários
Relações de trabalho Funcionários assalariados Todos são sócios com
percentuais iguais de direito
sobre a propriedade
Remuneração Associada a área, cargo, Por hora de trabalho, igual ou
nível na hierarquia e ao próxima entre as diversas
alcance de metas funções
Relação com o Busca por se tornar Busca por um ambiente
ambiente e com o dominante, por ter maior colaborativo, com cooperação
mercado market share e aumentar entre cooperativas, e por
seus lucros sempre que relações sustentáveis e pelo
possível comércio justo
questão.
16 FEENBERG, A. Critical theory of technology. New York: Oxford University Press, 1991.
231
neutros. A formação de artefatos tecnológicos mais complexos se daria a partir
da união de elementos técnicos de forma coerente. Essa união deve obedecer não
soluções técnicas e que levam especialistas a refutarem ideias que não estejam
desenvolvimento e operação.
a partir do mundo em que estão inseridos. Assim, a forma de valor cívica deve
232
ser a diretriz para a concepção e adoção de tecnologias nesses empreendimentos,
Entendemos que a forma de valor cívica deve ser a grande guia para a
estão inseridos em um campo que, de forma geral, valoriza essa lógica. Além
organização que se propõe aqui. Além disso, como discutido no capítulo sobre
233
atentando para possíveis disputas existentes entre as diferentes famílias, grupos
conflito em torno delas, enxergar o que é mais legítimo para o grupo e possibilitar
234
Quadro 9.4: Diretrizes para formação de grupo para geração de trabalho e renda em comunidades ribeirinhas. Elaboração própria,
com base em NAPRA (2008).1
1Núcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia (NAPRA). Manual Mini-Fábrica: Projeto Artesanato. Sugestões para organizar o trabalho em grupo.
2008.
235
Quadro 9.5: Diretrizes para apoio a grupos para geração de trabalho e renda em comunidades ribeirinhas. Elaboração própria, com
base em NAPRA (2008).2
2Núcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia (NAPRA). Manual Mini-Fábrica: Projeto Artesanato. Sugestões para organizar o trabalho em grupo.
2008.
236
As tecnologias a serem adotadas, bem como as diretrizes para adoção dessas
capital a ser investido, o que está alinhado à forma de seleção de tecnologias nos
questões do tipo: Faz sentido ter uma linha de produção rigidamente estabelecida em um
espaço que se propõe a melhorar as condições de trabalho? Essa tecnologia propicia a interação
local (por exemplo, uma máquina que utiliza muita energia elétrica)?
comercialização que se deseja acessar, uma vez eu muitos exigem essa formalização.
Considerações finais
O objetivo deste capítulo foi discutir como propostas de melhoria das
interagem com a estrutura social local. Não quisemos, com isso, ser reprodutores ou
respeito a ela. Qualquer modelo externo a ser proposto irá interagir com a cultura
237
10. Manejo e governança da “floresta em pé”: produtos
florestais não-madeireiros
Introdução
“Onde ficam as fazendas de colheita de castanha-do-Pará?”. A resposta para
essa simples pergunta é um tanto complexa pois antes de tratá-la devemos explicar
impossível colher qualquer coisa, muito diferente do que acontece com outras
amêndoas que, como o amendoim, são plantadas para serem colhidas anualmente
maioria dos cidadãos brasileiros. Não se tem ideia de que debaixo do tapete verde
2012): Pessoas que vivem e têm direitos costumeiros sobre florestas, que desenvolveram modos
de vida e um conhecimento tradicional que são adaptados aos ambientes florestais. As “forest
people” dependem primária e diretamente da floresta tanto para sua subsistência, quanto para a
geração de renda, através da pesca, caça, agricultura itinerante, coleta de produtos florestais e
outras atividades.
238
Figura 10.1: O extrativista José Alves Gomes ao lado de uma de suas castanheiras de maior estima,
com mais de 50 metros de altura, no Rio Iriri – PA (Foto: Raquel Rodrigues dos Santos, 2017).
Oculta porque, no senso comum, ou pensamos numa floresta pura, vazia, sem
agropecuária e mineração em expansão nos estados do Norte nos chegam com certa
existe outra possibilidade? Esta não só existe como está perto de nós e em expansão,
como podemos perceber através do exemplo do açaí, cada vez mais presente nas
239
Apesar de alguns PFNM estarem em processo de valorização no mercado
científico sobre a grande maioria dos PFNM3, 4. Por todos estes motivos, apesar das
marginalizadas.
Por outro lado, estes produtos possuem um valor anterior ao monetário. Eles
como uma forma efetiva de gerar renda monetária para povos rurais e aliviar a
Twenty-First Century. In: Tropical Forestry Handbook. Berlin, Heidelberg: Springer Berlin
Heidelberg, 2015. p. 1–50.
5 SHACKLETON; SHACKLETON; SHANLEY, 2011; SHANLEY et al., 2015.
240
Após duas décadas de pesquisa6, sabe-se que a inserção dos PFNM em
condições são temas de pesquisas e práticas atuais, em constante revisão, com foco
cadeia de valor dos produtos. Nesse capítulo vamos explorar três conceitos
o capítulo com um breve estudo de caso com um dos PFNM mais relevantes
9 O Projeto NAPRA é uma organização privada sem fins lucrativos que tem a missão de apoiar
241
Esperamos que ao final da leitura você possa entender a complexidade por traz da
por exemplo, incluem a caça nessa definição. Mas aqui nos referimos ao conjunto de
frutos, castanhas, folhas, óleos, resinas, cipós, palhas, etc. No Quadro 1 identificamos
exploradas da planta, bem como usos mais comuns, ressaltando que pode haver
exploração de outras partes e outros usos também. Para além dessa lista, existe uma
açaí.
uma vez que a economia Amazônica em nosso país historicamente teve pilares em
nos últimos 20 anos os PFNM voltaram a aparecer com certo destaque em pesquisas
políticas públicas12.
poucas políticas públicas e seus produtos continuam ausentes das estatísticas nacionais
(SHACKLETON; SHACKLETON; SHANLEY, 2011).
242
Quadro 10.1 Lista de PFNM comuns na Amazônia brasileira, seus usos e mercados
(retirado e adaptado de CLAY; CLEMENT, 199313 e SHANLEY; MEDINA, 200514).
Nomes comuns e Partes da planta Usos comerciais Mercados mais
específicos mais usadas mais comuns comuns
Abiu (Pouteria caimito, Fruto Alimentação Familiar
P. glomerata, P.
macrophylla)
Açaí (Euterpe oleracea) Semente, fruto, Alimentação Familiar, Local,
folha, caule (palmito e Nacional,
polpa), Internacional
artesanato
Açaí solteiro (Euterpe Fruto, folha, caule Alimentação Familiar, Local,
precatoria) (palmito e Nacional,
polpa) e Internacional
artesanato
Andiroba (Carapa Semente Óleo medicinal Familiar e
guianensis) regional
Babaçú (Orbignya Folha, fruto e Alimentação Familiar, Local,
phalerata) semente (Farinha, óleo Regional e
comestível) Nacional
artesanato,
moradia
Bacaba (Oenocarpus Fruto Alimentação Familiar, Local
bacaba) (polpa, óleo e Regional
comestível)
Bacuri (Platonia Fruto Alimentação Familiar e Local
insignis)
Biribá Bravo (Rollinia Fruto Alimentação Familiar
mucosa)
Breu (gêneros da família Resina Óleo essencial, Familiar, Local,
Burseraceae) aroma Regional e
Nacional
243
Quadro 10.1 Lista de PFNM comuns na Amazônia brasileira, seus usos e mercados
(continuação).
Nomes comuns e Partes da planta Usos comerciais Mercados mais
específicos mais usadas mais comuns comuns
Buriti (Mauritia Fruto, folha, casca Alimentação Familiar e Local
flexuosa) (polpa)
artesanato.
Cacau (Theobroma sp.) Fruto e semente Alimentação Familiar, Local,
(polpa e Regional,
semente), Nacional e
cosmético Internacional
Cacauí (Theobroma Fruto e semente Alimentação, Familiar, Local,
speciosum) cosmético Regional,
Nacional e
Internacional
Cajarana (Spondias Fruto Alimentação Familiar
dulcis)
Camu-camu (Myrcaria Fruto Alimentação, Familiar, Local,
dubia) medicina Regional e
Nacional
Castanha-do-Pará Semente Alimentação Familiar, Local,
(Bertholletia excelsa) Regional,
Nacional e
Internacional
Cipó-Titica (Heteropsis Cipó Artesanato Familiar
sp.)
Copaíba (Copaifera Seiva Óleo medicinal Familiar, Local,
multijuga) e cosmético Regional,
Nacional e
Internacional
Cumaru (Dipteryx Semente Medicina, óleo Familiar, Local,
odorata) essencial Internacional
Cupuaçú (Theobroma Fruto e semente Alimentação, Familiar, Local,
grandiflorum) cosmético. Regional,
Nacional e
Internacional
Inajá (Maximiliana Fruto Alimentação Familiar
maripa)
244
Quadro 10.1 Lista de PFNM comuns na Amazônia brasileira, seus usos e mercados
(continuação).
Nomes comuns e Partes da planta Usos comerciais Mercados mais
específicos mais usadas mais comuns comuns
Ingá (Inga spp.) Fruto Alimentação Familiar, Local
Jarina (Phytelephas Semente Artesanato Familiar,
aequatorialis) Nacional,
Internacional
Jatobá (Hymenaea Fruto Alimentação Familiar
courbaril)
Pariri (Pouteria pariry) Fruto Alimentação Familiar
Patauá (Jessenia bataua) Fruto Alimentação Familiar, Local
(polpa e óleo
comestível)
Pau-rosa (Aniba duckei) Casca Essência Internacional
Piqui ou piquiá Fruto Alimentação Familiar
(Caryocar villosum)
Pupunha (Bactris Fruto e caule Alimentação Familiar, Local,
gasipaes) (polpa e Regional
palmito)
Seringueira (Hevea Látex Borracha Nacional
brasiliensis)
Taperebá (Spondias Fruto Alimentação Familiar
mombin)
Tucumã-do-pará Fruto Alimentação, Familiar, Local,
(Astrocaryum vulgare) artesanato Regional
Ucuúba (Virola Semente Alimentação Nacional
surinamensis)
Unha-de-gato (Uncaria Cipó Medicina Familiar, Local
tomentosa e Uncaria
guianensis)
Uxi (Endopleura uchi) Fruto Alimentação Familiar, Local
245
Figura 10.2: Fruto aberto de castanha-do-pará (B. excelsa) (Foto: Raquel Santos, 2010).
Figura 10.3: Sementes de coco-babaçú (O. phalerata) (Foto: Márcio Souza, 2009).
Figura 10.4: Fruto e sementes de andiroba (C. guianensis) (Foto: Marllison Borges, 2019).
246
Figura 10.5: Blocos de látex de borracha (H. brasiliensis) (Foto: Raquel Santos, 2013).
Figura 10.7: Biribá bravo (Rollinia mucosa) (Foto: Marcelo Salazar, 2006).
247
Figura 10.8: Extrativista tirando copaíba (Copaifera spp.) no Rio Iriri (Pará) (Foto: Leonardo Moura,
2016).
da produção. Isso, somado à ausência de incentivos, faz com que na grande maioria
para famílias amazônicas não consiga competir com a renda proveniente de outras
incentivo necessários para fortalecer sua economia. É preciso ter em vista as outras
248
adversas16; proporcionam ligação com o mundo urbano e com o mundo
afastamento dessa identidade que por muitas vezes culmina em perda de dignidade.
Podemos entender que por conta dessa dependência direta da floresta, esses
sirva para as gerações futuras exercerem seu mesmo modo de vida. Nessa lógica, o
floresta para a humanidade20 (Figura 1). Ainda que essa relação não seja simples de
globais trazem para o modo de vida dos povos em todo o planeta, grandes agências
mudanças climáticas21.
Socioambiental, 2017.
19 SHACKLETON; SHACKLETON; SHANLEY, 2011.
21 FAO. Global forest resources assessment 2015: how are the world’s forests changing? Roma:
249
Conserva- Serviços
Modos de Humani-
Povos da
ção da Ecossistê-
floresta vida dade
floresta micos
florestais
Figura 10.9: Relações entre o modo de vida dos povos da floresta e da conservação da Amazônia.
em mercados locais e regionais, tende a ser sustentável22. Mas nesse contexto pode
lacking in contemporary diets. Consumed and traded by rural and urban people of all classes,
forest foods, resins, gums, fuel, fiber, and medicines are available to those most in need: low-
income populations, women, children, and increasingly families weakened by famine, disease,
or drought; migrants beset by natural disasters; and refugees in conflict-ridden zones”
(Shackleton and Shackleton 2004; Pierce and Emery 2005 apud SHANLEY et al., 2015).
250
socioambientalmente justos nos produtos que consomem, além de expressar uma
globalizado, o grande aumento da demanda e dos preços pode alavancar uma oferta
capaz de gerar desequilíbrios ecológicos. Homma26, por exemplo, defende que todo
PFNM no mercado passa por um ciclo com fase de expansão - quando se descobre
cultivos mais intensivos e de fácil acesso aos produtores, seria uma forma de
mercado pode ser sustentável se seguir certas premissas. Nesse sentido, aspectos de
governança tem sido apontados como cruciais para modelar casos particulares 27,
segurança de direitos à terra e aos recursos. Também tem-se apostado cada vez mais
251
em um olhar amplo sobre o contexto - ambiental, social, cultural, institucional - no
qual determinado recurso florestal está inserido e em uma análise das variáveis
atuantes nas várias dimensões desses contextos, para poder entender quais os
envolve PFNM tem se expandido para uma visão mais abrangente sobre esses
que os produtos têm para o modo de vida dos povos que as habitam ajudam a
Por fim, é preciso não perder de vista que as mudanças de uso do solo,
Co-manejo adaptativo
252
manutenção da floresta Amazônica. A ideia anteriormente vigente – o
presença humana (como as Estações Ecológicas), tem sua raiz na teoria ecológica
clássica, que pressupõe que todo ecossistema em seu processo evolutivo31 alcança
inesperados. Ele deve ser flexível38 e considerar ações guiadas continuamente pelos
distúrbio temporário. Quanto mais rápido ele retorna e com menos flutuação, mais estável é
(HOLLING, 1973).
33Refere-se ao conceito de comunidade em ecologia, que abrange um conjunto de populações e
35 HOLLING, C. S. Resilience and stability of ecological systems. In: The Future of Nature:
Resilience for Complexity and Change. [s.l.] Cambridge University Press, 2002.
38 HOLLING, 1973.
253
sucessivos feedbacks do ecossistema39. Chamamos essa abordagem de “manejo
adaptativo”40.
Figura 10.10: O ciclo adaptativo e suas fases (retirado de Bernasconi, 2013; adaptado de Berkes et al.,
2003).
manejo adaptativo deve se inserir também nas esferas sociais e econômicas, devido
os atores da cadeia41.
externas do governo e ONGs no manejo de PFNM. A maioria dos técnicos que lidam
com essas intervenções vive fora da floresta e geralmente não tem um contato diário
39 Ver Tabela 1 em (BERKES; COLDING; FOLKE, 2002) para mais detalhes sobre métodos
flexíveis de manejo.
40 A expressão “manejo adaptativo” é utilizada por Firket Berkes e seguidores para designar
manejo humano no ambiente que se baseia em práticas que respondem aos feedbacks
ambientais durante e após as mudanças. O manejo adaptativo deve partir da história
socioecológica do ambiente para propor ações adequadas para ao seu estágio atual e avaliar
constantemente a resposta a essas ações gerando aprendizado para que as próximas ações sejam
mais adequadas (BERKES, 1999; BERKES; FOLKE, 1999).
41 ALEXIADES, M. N.; SHANLEY, P. Productos Forestales, Medios de Subsistencia y
254
com ela. Isso dificulta a identificação de respostas do ecossistema às ações
implantadas. Já os povos da floresta, não só tem uma rotina que os faz perceber as
respostas42, 43, 44, 45, 46. Esse conhecimento profundo sobre as mudanças no ambiente é
gerado naturalmente pela vivência por longos períodos em um mesmo lugar numa
Traditional Ecological Knowledge , and Non-timber Forest Products. In: NTFP Conference
Proceedings, Anais...1998.
44 BERKES, F. Sacred ecology: traditional ecological knowledge and resource management.
Jurua: Praticas e Conhecimentos das Populacoes. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
46 ALEXIADES; SHANLEY, 2004.
BERKES; COLDING; FOLKE, 2002. *BERKES, F.; FOLKE, C. Linking Social and Ecological
Systems. Management Practices and Social Mechanisms for Building Resilience. Environment
and Development Economics, v. 4, n. 2, p. 237–242, 1999. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/208573509_Linking_Social_and_Ecological_Systems
_Management_Practices_and_Social_Mechanisms_for_Building_Resilience>. Acesso em: 20 out.
2019.
49 ALMEIDA, M. W. B. de. As colocações: forma social, sistema tecnológico, unidade de recursos
naturais. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v. 17, n. 1, 19 jul. 2012. Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/12612>.
255
mecanismo reduz a pressão sobre os recursos naturais através da
diminuição da população. Gera um padrão desigual de ocupação
das colocações [e pode ser verificado exatamente checando esse
padrão desigual de ocupação], e permite que surjam micro-
santuários para regeneração da caça e da floresta. Entre seringais,
áreas assim constituem verdadeiros refúgios.50
A mera posse do conhecimento não é condição única para que o manejo seja
se mantém sustentável e hoje sabe-se que elas perpassam não somente as dimensões
sociedades com muito conhecimento ecológico exercendo seu modo de vida florestal
esse processo53, 54. Em alguns casos isso significa simplesmente dar condições para
promissores aos produtos55. Em outros casos, isso significa realmente promover uma
integração entre o conhecimento local e científico para propor o manejo na base 56.
Para isso, faz-se necessário o diálogo de visões de mundo e respeito entre técnicos e
53 DIETZ, T.; OSTROM, E.; STERN, P. C. The struggle to govern the commons. Science, v. 302,
256
extrativistas para uma construção de novos saberes e poder de realização conjunta
Segurança de direitos
adaptativo e sustentável. Muitos estudos apontam que a falta desses direitos age
ter acesso aos recursos e se o mesmo pode ser transferido. Finalmente, há ainda o
pelo governo (statutory laws ou “de jure rights”) ou podem ser normas informais das
comunidades (customary rights ou “de facto rights”). Concordando com a ideia de co-
257
O caso dos castanhais do Baixo Rio Madeira: São Carlos e Cuniã
Dado o apanhado teórico geral sobre o panorama dos PFNM e os conceitos
pará59.
Figura 10.11: Localização das Unidades de Conservação no baixo Rio Madeira (Rondônia) onde foi
realizada a pesquisa.
pode atingir 40 metros de altura, 30 metros de diâmetro de copa e ter mais de 500
59 SANTOS, 2011.
60 SCOLES, R. et al. Sobrevivência e frutificação de Bertholletia excelsa Bonpl. em áreas
Desmatadas em Oriximiná, Pará. Floresta e Ambiente, v. 23, n. 4, p. 555–564, 2016.
61 PERES, C. A.; BAIDER, C. Seed Dispersal, Spatial Distribuition and Population Structure of
258
abrem espécies de trilhas (piques) que ligam uma castanheira à outra. Os frutos são
início da época chuvosa, eles caem da copa no chão. O trabalho dos extrativistas
casa. Muitas vezes o extrativista carrega em suas costas esta carga, que comumente
A safra anual da castanha acontece após a queda dos ouriços durante a época
chuvosa que começa em meados de novembro e se estende até maio. Esse período é
para ano.
Figura 10.12: Extrativista quebrando castanha no baixo Rio Madeira (Foto: Raquel Rodrigues dos
Santos, 2009).
259
Figura 10.13: Extrativistas quebrando um monte de castanha no Rio Iriri (Pará) (Foto: Duvan
Murillo, 2017).
dentro floresta – em áreas distantes dos terreiros das casas e da beira do rio favorece
a prospecção de outros recursos – como copaíba, pequi, uxi, babaçú, breu, pariri,
safra pelo gosto da tradição, da manutenção de seu modo de vida. Não diferente de
260
buscaram melhorar esse valor de comercialização principalmente por meio da
Co-manejo adaptativo
Nesse contexto, no início (2009), o primeiro passo dos técnicos do NAPRA foi
norte amazônico (Quadro 2). Como foram utilizadas por mais de 20 anos com
A longa vivência dos técnicos no trabalho com a castanha fez com que se
conservação dos castanhais por parte da literatura científica (ex: rodízio de árvores,
mas, pelo contrário, um estímulo para produção, não somente pelo manejo que os
extrativistas fazem nas árvores como por uma certa relação de afeto com estas,
percebendo que afirmações dos extrativistas como “Toda fruteira tem que zelar para
dar fruta, é igual o ser humano, é igual mulher: se você zelar, ela dá fruto” (E.D., Cuniã);
261
"Ela quer ver a continuidade da gente passar ali todo dia". (G., Cuniã)62, dialogam com
atuais63, 64.
tempo. É fato tanto para a ciência quanto para o conhecimento tradicional que as
geração de extrativistas passada para esta nos últimos 50 anos. As hipóteses para
explicar este fato são diversas. Investigações científicas sobre o tema o relacionam às
mudanças climáticas que são preocupação global. Por exemplo, acredita-se que a
62 SANTOS, 2011.
63 CLEMENT, C. R. et al. The domestication of amazonia before european conquest. Proceedings
of the Royal Society B: Biological Sciences. Royal Society of London: London, 2015.
64 LEVIS, C. et al. Persistent effects of pre-Columbian plant domestication on Amazonian forest
excelsa Humb. & Bonpl. Lecythidaceae) in Eastern Amazonia. Pollinating Bees - The
Conservation Link between Agriculture and Nature, p. 245–254, 2002.
262
Quadro 10.2 Técnicas de manejo realizadas pelos extrativistas de castanha do baixo
Rio Madeira em Rondônia (fonte: SANTOS, 2011).
Técnicas de Manejo Descrição Objetivos
263
Segurança de direitos
Os castanhais dessa região do Baixo Madeira também são marcados por uma
de Cuniã, todos os castanhais estão de jure sob direito de alienação da União, mas o
órgão gestor lhes dá liberdade para determinar acesso, retirada, manejo e exclusão.
fundiária diferente, mas que garante pouco ou nenhum direito de jure aos
onde coletam historicamente, mesmo que, na maioria dos casos, corram o risco de
perder as áreas para outros extrativistas ou para os donos de jure. Estes direitos de
facto envolvem castanhais passados de pai para filho, por exemplo, que pressupõem
direito a acesso, retirada, manejo, exclusão e até mesmo alienação dos piques de
No geral, menos práticas de manejo são executadas em São Carlos do que em Cuniã,
incluindo até mesmo a falta de limpeza dos caminhos que dão acesso às
enquanto os frutos das castanheiras estão caindo da copa - para garantir a máxima
produção antes de outros extrativistas entrarem nas áreas. Esta prática oferece risco
de acidentes graves nos castanhais pela queda dos pesados frutos. Já os extrativistas
de Cuniã podem sem muitos prejuízos esperar até fevereiro para iniciar a coleta,
67 SANTOS, 2011.
68 SANTOS, 2011.
264
Esse é um exemplo de como a garantia de direitos sobre o recurso e sobre a
corre o risco de perder cada vez mais espaço para outras atividades e as áreas de
jure, uma vez que alguns donos de grandes títulos definitivos de terras são bastante
ausentes na região. Nesse cenário, áreas como estas correm o risco de exploração
Considerações finais
Neste capítulo apresentamos os produtos florestais não-madeireiros e sua
pelas comunidades por passar pela necessidade destes serem inseridos em mercados
mais amplos.
castanha do pé”. Assim, a introdução dada aqui à questão é um convite para a busca
265
por mais conhecimento, experimentação e aprimoramento das ações de apoio à
266
11. Modelos de agricultura na Amazônia Brasileira
Introdução
A Amazônia é um vasto território, uma “colcha de retalhos” de
flora. É um mundo, que antes de cima, subjetivo e visto verde, é visto de baixo
concreto e real. Nesse universo convivem diversas visões de mundo que buscam
desenvolvimento dominantes, que não mais pode ser pensado apenas da ótica
humana e econômica.
North Whitehead e sua teoria da Diversificação da Natureza, que grosso modo seria
Trabalho, o qual ele também descreve “como um processo pelo qual recursos
Esse valor que surge com o social só é possível a partir da existência de um dado
lugar:
O valor real de cada um” dos recursos “não depende de sua
existência separada, mas de sua qualificação geográfica, isto é, da
significação conjunta que todos e cada um obtêm pelo fato de
participar de um lugar. Fora dos lugares, produtos, inovações”,
atividades, “populações e dinheiro, por mais concreto que pareçam,
são abstrações. A definição conjunta e individual de cada um
267
depende de uma dada localização1.
a produção agrícola como forma de transformação do uso do solo. Nessa área, dois
em pé, contribuindo para um caminho de busca a ser trilhado pelo leitor em textos,
pretende esgotar toda bibliografia sobre o assunto e muito menos trazer respostas
Agronegócio, que tem início com a Revolução Verde. Esse modelo será caracterizado
1SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4 ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
268
No quarto item do texto, apresentaremos casos das relações com a terra dos
e a falta de acesso aos mercados, que impacta seriamente na forma como o solo é
agricultura pelo mundo. Essas “soluções” chegaram ao Brasil por volta da década
são bem diferentes, assim como os produtos decorrentes dos modelos. No primeiro
269
modelo, promove-se a redução da variabilidade como síntese de um único produto
almeja a produtividade.
relatado mais a frente – que está associado a outras atividades, como a extração de
biocombustíveis4.
270
fronteiras de destruição da floresta. Ainda, identificou quatro
multinacionais na área: Archer Daniels Midland (ADM), Bunge,
Dreyfus e Cargill. Essas empresas formam quase um monopólio na
prensagem de soja na Europa, fornecendo matéria-prima para a
indústria de ração animal. Elas estão agindo no setor no
fornecimento de quase toda a cadeia produtiva, desde sementes e
agrotóxicos até a construção de infraestrutura, como portos e
armazéns, sem favorecer o desenvolvimento regional7.
por meio de evidências que indicam que tal expansão está ocorrendo por meio do
uso das áreas utilizadas anteriormente para pecuária. Atrelam dessa forma, a
modelos de negócios que tratam da gestão dos recursos que dispõe com o fim de
271
Acerca dos produtos da agricultura convencional que levam ao
plantios de milho, arroz e o cultivo em larga escala de soja. Sendo os dois primeiros,
cultura de soja em áreas novas”. Assim, portanto, é a soja beneficiada pelo avanço
autores por meio de análise, no mesmo período citado anteriormente, nos estados
Riveiro et al13. Por meio de uma imagem do ano de 2000 e outra de 2006 poderá ser
10 RIVERO, S. et al. Pecuária e desmatamento: uma análise das principais causas diretas do
desmatamento na Amazônia. Nova Economia, v. 19, n. 1, p. 41-66, abr. 2009.
11 DOMINGUES, M. S.; BERMANN, C. O arco de desflorestamento na Amazônia: da pecuária à
272
Quatro classes de desmatamento, quais sejam: os municípios com
menos de 20% de área desmatada, os municípios com 20% a menos
de 50% de área desmatada, os municípios com 50% a menos de 80%
de área desmatada e os municípios com mais de 80% de área
desmatada.14
Figura 11.1: O arco do desmatamento nos anos 2000. Elaboração de Rivero et al (2009) 15 com edição
própria.
Figura 11.2: O arco do desmatamento nos anos 2008. Elaboração de Rivero et al (2009) 16 com edição
própria.
273
Em termos sociais, os impactos dentre as duas frentes podem ser vistos por
que fazem com que ele seja visto como um fator, buscando-se reduzir a variabilidade
tayloristas/fordistas.
17 MEIRELLES FILHO, J., A hora e a vez de extinguir o trabalho precário na Amazônia. São
Paulo: Revista Carta Capital. 2014. Disponível em http://envolverde.cartacapital.com.br/hora-e-
vez-de-extinguir-o-trabalho-precario-na-amazonia/#comments
18 DOMINGUES, M. S.; BERMANN, C. O arco de desflorestamento na Amazônia: da pecuária à
274
agrícola e a opção do Governo por políticas que beneficiem a balança comercial
brasileira. Citam o caso da reforma agrária em Sinop (MT) para ilustrar o conjunto
de pacotes que chegam ao território, “em um mundo onde terra desmatada vale
muito mais do que floresta em pé”, desmatar “é a única forma que o assentado
essa “máquina” organizada pelos Impérios Alimentares provoca também pode ser
tradicional. Isso gera insegurança alimentar, uma vez que antes o camponês
produzia também para sua alimentação, como bem relatado por Brandfort e Torres.
Esse processo é reforçado pela atuação dos órgãos sanitários, que dificultam e, por
XIX. Já em torno da metade do século XX, após o segundo ciclo da borracha, iniciam-
se fluxos migratórios também da região Sul do Brasil, o que até então vinha
dos seus rios para a locomoção, passa a ter na abertura de estradas e rodovias pelo
dessa época.
Com vastas áreas abertas e com as novas ligações possíveis propiciadas pelos
275
tônica do vazio demográfico alimentou o caldo para o estabelecimento de slogans
como o de “Integrar para não entregar”. Como aponta Gonçalves (2005) 20, afirmar
que há um vazio é uma boa justificativa para o fato de não se conseguir controlar
um território que historicamente sempre foi ocupado por diversos povos indígenas
e por aqueles que chegaram depois como quilombolas, homens brancos pobres e
mestiços.
terras até trabalhadores urbanos que cultivam parcelas de terra para auto-
agroecossistemas23, 24.
familiares são camponesas”25. É dessa forma que o autor Hugues Lamarche inicia
uma diferenciação não tão simples de se fazer e, para tal, põe em diálogo dois outros
Aguiar (2015).
24 EMPERAIRE, L. A agrobiodiversidade em risco: o exemplo das mandiocas na Amazônia.
1993.
276
autores, o célebre agrônomo social A. Chayanov e o H. Mendras. Une, dessa forma,
A partir desse diálogo entre os autores, Lamarche26 afirma que ocorre para a
ligados à família”. Ainda, considera que a relação entre esses três fatores dispõe
reprodução da exploração”.
assim como nós, em vez de agricultura familiar. Essa escolha tem origem nos
26 LAMARCHE, 1993.
27 LAMARCHE, 1993.
28 PLOEG, J. D. V. Camponeses e a arte da agricultura: um manifesto Chayanoviano. São Paulo;
277
embora a unidade de produção camponesa esteja condicionada e
seja afetada pelo contexto capitalista em que funciona, não é
diretamente governada por ele. Na verdade, é governada por um
conjunto de equilíbrios” que “são princípios de organização29.
penosidade e utilidade. Ploeg30 vai além das limitações de tempo e espaço, as quais
Chayanov tinha plena consciência e discorre sobre mais cinco equilíbrios. Para
camponesa, respeitando suas singularidades. Algo que pode ser visto como uma das
de cinco, além dos de Chayanov – pessoas e natureza; produção e reprodução; recursos internos
e externos; autonomia e dependência; escala e intensidade.
31 PLOEG, 2016.
278
própria poderão ser (9) fortalecidos através de outras atividades
não agrícolas. Finalmente, existem (10) padrões de cooperação que
regulam e fortalecem essas inter-relações32.
Santos et al.33, estão o feijão, o arroz, o café, o milho, o cacau e as nativas, em especial,
279
Os mesmos autores relatam a importância da diversificação e a força do
280
com a organização das famílias em grupos de estudo, trabalho e ajuda mútua;
curiosidade dos leitores para que busquem conhecer melhor essas práticas agrícolas.
Agricultura indígena
De acordo com o ISA36, em todo o Brasil são mais de 250 povos além dos
índios isolados e em toda região Norte, segundo o Censo 2010 do IBGE, são mais 300
mil indivíduos declarados como índios. A seguir no mapa, pode ser visto a dispersão
36ISA – Instituto Socioambiental. Site institucional. Quadro Geral dos Povos. Disponível em:
https://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral Acesso em: 22 de dezembro de 2017.
281
Figura 11.3: Dispersão e quantidade de indivíduos indígenas em terras indígenas em território
brasileiro. Fonte: IBGE (2017)37.
das pragas. Outra definição elaborada pelos autores Pedroso Júnior, Murrieta e
Belém: UFPA. Cadernos de Altos Estudos da Amazônia, NAEA, v. 10, p. 197-252. 1989.
39 PEDROSO JUNIOR, N. N.; MURRIETA, R. S. S.; ADAMS, C. A agricultura de corte e queima:
um sistema em transformação. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. hum, v. 3, n. 2, p. 153-174,
ago. 2008.
282
de corte e queima é uma adaptação altamente eficiente às condições
onde o trabalho, e não a terra, é o fator limitante mais significativo
na produção agrícola40.
bem como a presença da prática da queima pode variar bastante levando a certas
ecossistema da floresta.
planta, tão necessários no solo e, tão importante quanto, eleva o pH. Os solos ácidos
Belém: UFPA. Cadernos de Altos Estudos da Amazônia, NAEA, v. 10, p. 197-252. 1989.
43 FEARNSIDE, 1989.
283
declinam como resultado de uma combinação de exaustão da fertilidade do solo e o
O mesmo autor pondera sobre a questão que leva aos agricultores migrarem
e “abandonarem” uma dada roça. Para os próprios, não existiria preocupação com
os níveis de fósforo, matéria orgânica ou qualquer outro nutriente do solo, mas antes
com o resultado líquido em termos da colheita obtida com seu trabalho. Também
são raras e conflitantes, sendo necessário dados em demasia para estimar sobre o
assunto.
caso dos desanas, dos mundurukus, dos kayapós e dos kokomas citados por Alves45. Os
limpeza do solo, até a colheita de fruteiras como o abiu (Pouteria caimito), pupunha
ao que hoje iam desde a topografia, passando pela fertilidade do solo até condições
44 FEARNSIDE, 1989.
45 ALVES, R. N. B. Características da agricultura indígena e sua influência na produção familiar
da Amazônia. Belém: Embrapa Amazônia Oriental. 2001. 20 p.
46 FRIKEL, P. Agricultura dos índios mundurukus. Belém: Boletim do Museu Paraense Emilio
284
Segundo o mesmo autor, a atividade agrícola dos mundurukus se dava pela
sequência a seguir:
3. Broca;
4. Derruba da mata;
5. Queima;
7. Cavação e plantação;
escolhendo em um canto ou em um dos lados mais altos da área uma árvore maior,
dentro dessa área, todos os troncos pela metade do seu diâmetro, mais ou menos até
por completo e, ao cair, arrastava as árvores vizinhas cortadas pela metade, em uma
vegetação nativa, com alta diversidade de espécies em suas roças e seguindo uma
sucessão natural. Assim, no princípio, cultivam espécies de baixo porte e vida curta
48 FRIKEL, P. Agricultura dos índios mundurukus. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi,
n.4, 1959. 35p.
49 ALVES, R. N. B. Características da agricultura indígena e sua influência na produção familiar
285
grande porte (os ibê), como a castanha-do-pará, que legam a netos e bisnetos. Os puru
em pousio (3,09 pés/ha), maior do que em áreas não manejadas (1,79 pés/ha), “o que
50 ANDERSON, A.R.; POSEY, D.A. Reflorestamento Indígena. Ciência Hoje, Volume Especial
Amazônia. p. 6-12, 1991.
51 ANDERSON; POSEY, 1991.
52 ALVES, 2001.
286
certa qualidade de cacaueiro (FRIKEL53 apud ALVES)54.
“cheiro”. As quais muitas serviam para banhos e dar ao corpo e ao cabelo um cheiro
mais agradável. Algumas ervas eram também usadas com fins medicinais e para
barro e artigos de olaria da mulher. Pela tradição, o trançado era um trabalho feito
somente pelos homens e a louça pelas mulheres. Outra característica peculiar dos
mundurukus, já em 1959, usavam enxadas e até ferro de covas, como resultado desta
é a agricultura cabocla, sofreu uma especialização. Como o caso dos kokomas, citado
53 FRIKEL, P. Agricultura dos índios mundurukus. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi,
n.4, 1959. 35p.
54 ALVES, R. N. B. Características da agricultura indígena e sua influência na produção familiar
56 ALVES, 2001.
57 ALVES, 2001.
287
e macaxeira para produção de farinha. Os autores citam até que há uma redução de
de mandioca.
Agricultura quilombola
Brasil, apenas Acre, Roraima e Distrito Federal não se tem a presença registrada
dessas comunidades59. Em especial, iremos citar dois casos no Pará e assim como
dito sobre os povos indígenas e seus modos de uso do solo, também não iremos
uma estrutura em que quem usava a terra não detinha a posse e quem detinha a
essas atividades, a mais importante hoje é a olaria, que ainda preserva condições de
288
trabalho insalubres e de forte dependência dos atravessadores. Nas palavras de um
reprodução.
breu. Os produtos extraídos de seus territórios são utilizados não só como alimento,
mas também na confecção de suas casas, na produção de utensílios e ainda para fins
cidade são, basicamente, açúcar, café, macarrão, arroz, feijão, sal, óleo e biscoitos.
Cada família possui seu roçado, onde planta principalmente a mandioca, o milho e
62NAHUM, 2011.
63Comissão Pró-Índio de São Paulo. Site institucional. São Paulo, SP, 2020. Disponível em
<http://cpisp.org.br/quilombolas-em-oriximina/>. Acesso em 30 de janeiro de 2020.
289
a banana. Com importância relativa bem menor, são cultivados também: feijão,
pupunha.
roçado.
peculiar de seu território, caracterizada pela divisão entre a região das residências e
das plantações (nas margens dos rios e lagos) e a região de extrativismo (situada nas
áreas de mata). A exploração de cada uma dessas regiões dos territórios varia
Um ponto importante da relação com a terra, que passa pela forma como
290
Conservação de Uso Sustentável muitos territórios remanescentes de quilombos
foram sobrepostos e desde então, estão à mercê dos Planos de Manejo dessas UC’s 64.
Local, Direitos e Cidadania65. Essas ações nada mais são do que um apanhado de
remanescentes de quilombos.
atividade produtiva66.
sendo o estado do Pará o maior produtor brasileiro em 2017 67. Dentre os países que
a FAO (Food and Agricultura Organization)68 tem levantamento de dados, em 2016 ela
dezembro de 2017.
291
mandioca é uma planta originária da região Amazônica. Possivelmente, os
variedades mais “mansas” e mandioca para as mais “bravas”. Como se pode ver,
variedade não carrega uma noção universal, sendo algo localmente definido pelas
diversas variedades que mudam também de cor da polpa, teor de fécula, teor de
açúcar, textura e a toxidade. Essa característica tóxica da planta é dada pela presença
Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, v.32, pp. 23-35, 2005.
73 LORENZI, J. O. Mandioca. 2. ed. Campinas: CATI, 2012. 129 p.
292
princípio é considerado como parte dos mecanismos de defesa desenvolvidos ao
As amarelas costumam ter sabor mais forte e as brancas, sabor mais fraco.
Essa característica está ligada a presença dos compostos ciânicos, sendo as “bravas”
e amarelas com sabor mais forte e as brancas e “mansas” com sabor mais fraco. Em
termos de quantidade da presença dos compostos, as “bravas” são aquelas com mais
manejo da mandioca e que isso pode reduzir ou até fazer sumir diversas variedades.
(amido).
293
Mas uma distinção é necessária nessa relação com o mercado. Já definimos
Existe aquela mandioca com forte cor amarela, mas que dá pouca farinha e
aquela outra que dá muita farinha, mas com uma cor amarela mais tênue. E mesmo
agricultor lida o faz manter a diversidade por meio de combinações. É assim que ele
terreno preparado, parte-se para etapa de plantio que se dá por meio do corte do
caule das variedades escolhidas pelo produtor. Esse pedaço cortado com
maniva e os subsequentes pedaços –, que neste caso, ocorre pela ação humana77.
queima é de 100 sacos de farinha de mandioca por hectare. Contudo, segundo este
Amazônia, alguns detalhes deste manejo do solo podem servir como parâmetros
294
para comparações: variedades de mandioca cultivadas; local onde será o roçado e o
tempo do pousio.
principalmente, pelos órgãos ambientais de fiscalização. Com isso, tal prática tem
são ensinadas aos agricultores (as), desde práticas adquiridas pelos “Pacotes
mandioca, como também consideram necessária uma política pública para correção
raiz.
295
Já na academia e nos centros de pesquisa especializada (EMBRAPA, por
está presente em pratos acompanhados desde o caldo do açaí e o café até o peixe
Além das raízes, também a parte área da mandioca, suas folhas e as manivas
folhas se faz tanto alimento para consumo humano como ração para consumo
famílias iam desde uma busca maior por diversidade de variedades, no caso das que
80 LORENZI, J. O. Mandioca. 2. ed. Campinas: CATI, 2012. 129 p. (Boletim técnico CATI, 245).
296
produziam mais para subsistência, até as famílias que vivem basicamente da
Calama, região distrital de Porto Velho (RO), identificou um modo de fazer típico
aspectos, ter duração de quatro dias para o beneficiamento passando por 18 etapas;
lavar, fermentar, sevar, tirar goma e tucupi, misturar, prensar, ralar, escaldar e torrar
(fermentada).
Considerações finais
Com tudo que foi dito até então neste capítulo, fica claro que existem
diferenças, mas que também há semelhanças que vão além das interfaces entre os
grupos. Indo além na diferenciação deles, o sociólogo rural Ploeg considera que “as
mandioca: um estudo de caso sobre a farinha d´água em Calama, município de Porto Velho.
Trabalho de Conclusão de Curso (EngeUFSCar), 2013.
297
reside em outro lugar, isto é, nas diferentes formas de estruturar o social e o
material”.
dialogam e complementam o que foi dito até aqui sobre a “Via Camponesa”,
frente a frente, há também a análise sociológica que parte de uma categorização para
tais categorias por acreditar que servem como um esquema e não de forma simplista,
produto contínuo da ação humana, seja por políticas públicas seja por atividades
298
12. Turismo comunitário e participativo: potencialidades e
desafios em comunidades ribeirinhas da Amazônia
brasileira
Introdução
Para a Organização Mundial do Turismo (OMT)1, “o turismo compreende as
Para Grimm e Sampaio2, para conceituar o turismo deve-se entender que ele
Além disso, deve-se considerar que o turismo também se realiza por meio das
turistas.
1 cf. p. 371. OMT. Organização Mundial de Turismo. Introdução ao turismo. São Paulo: Roca,
2001.
2 GRIMM, I.J., SAMPAIO, C.A.C. Turismo de Base Comunitária: convivencialidade e
299
O Brasil é um país com grande potencial turístico, possui uma grande
comunitária”.
300
Entretanto, como toda e qualquer atividade voltada para o mercado e
capitalização dos bens naturais, o turismo pode vir a ser uma via de degradação
de consumo torna-se ao longo dos anos cada vez mais intenso e massificado,
gerando impactos cada vez mais drásticos ao espaço onde se desenvolve, dando à
É nesse contexto que surge o Turismo de Base Comunitária (TBC), uma nova
6 cf. p. 213. LOBATO, F.H.S.; et al. Turismo de Base Comunitária: o caminho para a inclusão
social, conservação ambiental e geração de emprego e renda na comunidade de Santa Maria do
Baixo Acará - Trilha do Cutiti (PA). Anais do IX Congresso Nacional de Ecoturismo e do V
Encontro Interdisciplinar de Turismo em Unidades de Conservação. Revista Brasileira de
Ecoturismo, São Paulo, v.6, n.4, nov-2013, p.213.
7 FROESE, V. F. Ecoturismo de Base Comunitária: possibilidade para o desenvolvimento
turístico em Oriximiná/PA. 2009. 128p. Monografia (Graduação em Turismo) UFF, Niterói, 2009.
8 MINISTÉRIO DO TURISMO. Plano Nacional do Turismo: o turismo fazendo muito mais pelo
301
redes, estabelecimento de padrões e normas de atendimento
diferenciado e estratégias inovadoras, para inserção desses
produtos na cadeia produtiva do turismo, particularmente com
relação a produtos e serviços turísticos de base comunitária com
representatividade da cultura local, valorização do modo de vida
ou defesa do meio ambiente. Finalidade: promover a qualificação e
a diversificação da oferta turística, com a geração de trabalho e
renda, e a valorização da cultura e do modo de vida local9.
socioespaciais), por exemplo, estão apoiadas nas práticas de seus pilares e princípios
convencional.
precisa estar em pauta nos diferentes espaços em que haja partes interessadas em
302
cúpulas responsáveis por políticas públicas que fomentarão tais atividades,
destinos turísticos, pois estes são motivos de forte demanda para visitação e bases
303
meio ambiente natural, físico, ou ecológico, e provocar alterações sociais, culturais e
dos locais atrativos; insatisfação dos moradores locais e dos turistas; aumento de
dentre outros.
304
O turismo é uma atividade ambivalente que pode servir para ativar,
dignificar e reconhecer o valor da cultura local, ao mesmo tempo que pode produzir
do número de pessoas (nível de uso), mas também das atividades que realizam e
natural15.
em mercadoria16.
13 OMT. Agenda para planificadores locales: turismo sostenible y gestión municipal. Madrid:
OMT, 1999. (Edición para América Latina y el Caribe).
14 ANDRÉS ABELLÁN, M.; CERRO BARJA, A.; BENAYAS DEL ÁLAMO, J. Propuesta de un
modelo para identificar impactos ambientales del turismo en espacios naturales. Cuadernos de
Turismo, n.5, p.7-17, 2000.
15 RUSCHMANN, D.V.M. Turismo e planejamento sustentável: a proteção do meio ambiente.
305
As atividades associadas ao turismo acarretam inúmeros impactos, efeitos e
Turismo sustentável
O turismo sustentável foi definido pela Organização Mundial de Turismo17
como aquele que “atende às necessidades dos turistas de hoje e das regiões
propostos18.
É visto como um condutor ao gerenciamento de todos os recursos,
de tal forma que as necessidades econômicas, sociais e estéticas
passam a ser satisfeitas sem desprezar a manutenção da integridade
cultural, dos processos ecológicos essenciais, da diversidade
biológica e dos sistemas que garantem a vida.19
authorities in sustainable tourism. Paris, France: UNEP; Division of Technology, Industry and
Economics Production and Consumption Branch; International Council for Local
Environmental Initiatives, 60p, 2003.
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME; WORLD TOURISM ORGANIZATION.
Making tourism more sustainable: a guide for policy makers. Paris, France; Madrid, Spain:
UNEP/WTO, 2005, 210p.
VERA REBOLLO, J.F.; IVARS BAIDAL, J.A. Measuring sustainability in a mass tourist
destination: pressures, perceptions and policy responses in Torrevieja, Spain. Journal of
Sustainable Tourism, Clevedon, v.11, n.2/3, p.181-202, 2003b.
19 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE TURISMO, 2003, p. 24.
306
Nesta declaração, a OMT amplia os princípios do desenvolvimento turístico
equilíbrio adequado entre estas três dimensões para garantir sua sustentabilidade a
20 Cf. p.108. VERA REBOLLO, J.F.; IVARS BAIDAL, J.A. Sistema de indicadores aplicado a la
planificación y gestión del desarrollo turístico sostenible. In: VALDÉS PELÁES, L; PÉREZ
FERNANDEZ, J.M. DEL VALLE TUERO, E.A. Experiências públicas y privadas en el
desarrollo de un modelo de turismo sostenible. Oviedo: Fundación Universidad de Oviedo,
p.105-129, 2003a.
21 UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAME. Tourism and local agenda 21: the role of
authorities in sustainable tourism. Paris, France: UNEP; Division of Technology, Industry and
Economics Production and Consumption Branch; International Council for Local
Environmental Initiatives, 60p, 2003.
307
● O respeito à autenticidade sociocultural das comunidades anfitriãs, com o
tolerância;
um comportamento sustentável;
turística;
22MEDINA NUÑOZ, R.D.; MEDINA MUÑOZ D.R. Indicadores del desarrollo sostenible del
turismo: una aplicación al caso de Canarias como destino turístico. In: CONGRESO DE
TURISMO, UNIVERSIDAD Y EMPRESA, 5., 2002, Benicasim. La calidad integral del turismo.
Valencia (España): [s.n.], 2003. p.289-306.
308
● A qualidade ambiental global da região turística dever ser mantida e
parte da oferta turística de um destino devem ser conservados para seu uso
recursos;
popularidade;
turística; e
309
O objetivo do turismo sustentável fundamenta-se em critérios de
atividade econômica”.
24 VERA REBOLLO, J.F.; IVARS BAIDAL, J.A. Sistema de indicadores aplicado a la planificación
y gestión del desarrollo turístico sostenible. In: VALDÉS PELÁES, L; PÉREZ FERNANDEZ,
J.M. DEL VALLE TUERO, E.A. Experiências públicas y privadas en el desarrollo de un
modelo de turismo sostenible. Oviedo: Fundación Universidad de Oviedo, p.105-129, 2003a.
25 PETERSEN, P.; ROMANO, J.O. Abordagens participativas para o desenvolvimento local.
Turismo. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 set. 2008, ano 145, nº181. Seção 1, p.168 (1-5).
310
A busca da sustentabilidade deve enfatizar precisamente as propostas que
apenas por uma ótica, enfim, deve haver uma interação entre as diferenças e
valorização da diversidade.
forma de aprovechamiento de los recursos: aplicación al caso del Baixo Miño. 2004. 373f. Tesis
(Doctorado en Ciencias Economicas) – Departamento de Economía Aplicada, Universidad de
Vigo, Vigo, 2004.
29 RANAURO, M.L. Sustentabilidade numa perspectiva endógena: contribuição das
311
recursos naturais e culturais locais, passem a buscar no turismo oportunidades para
31 CORIOLANO, L.N.M.T. Lazer e turismo em busca de uma sociedade sustentável. In: ______.
(Org.). Turismo com ética. Fortaleza: UECE – Universidade Estadual do Ceará, p 110-121,
1998.
32 cf. p. 6. HANAI, F.Y., ESPÍNDOLA, E.L.G. Programa de Sensibilização Sustentável do
312
O turismo comunitário não está centrado somente na atividade turística, uma
sociedade.
estadual e federal).
34 IRVING, 2009.
35 MINISTÉRIO DO TURISMO. Dinâmica e Diversidade do Turismo de Base Comunitária:
Desafio para a formulação de política pública/ Ministério do Turismo. – Brasília. 2010.
36 MTUR, 2010, p. 11.
313
Uma premissa essencial é que o Turismo de Base Comunitária se desenvolva
Com relação ao turismo, onde a ideia é explorar o local onde essas pessoas
vivem, vários são os motivos para se tratar as questões sob a ótima da comunidade,
que deve ser inserida nas discussões sobre as opções de desenvolvimento possíveis
para decidir sobre as alternativas a serem adotadas. Caso contrário, “os destinos do
turismo serão conduzidos por atores e grupos que, na maioria das vezes, não
como:
comunidades têm que partir das necessidades sentidas pela população e não
através das ideias de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Revista Turismo em Análise. Vol. 23,
n. 1, p. 104-127, 17 abril 2012.
39 COELHO, E.A. Refletindo sobre Turismo de Base Comunitária em Unidades de Conservação
através de uma perspectiva amazônica. Revista Brasileira de Ecoturismo, São Paulo, v.6, n.1,
pp.313-326, jan/abr-2013.
40 CORIOLANO, L.N.M.T. O turismo comunitário no nordeste brasileiro. In: BARTHOLO, R.;
314
apenas da consciência e orientações técnicas, de pessoas externas à
comunidade;
desenvolvimento;
pontua:
i) a autogestão; ii) o associativismo e cooperativismo; iii) a
democratização de oportunidades e benefícios; iv) a centralidade da
colaboração, parceria e participação; v) a valorização da cultura
local e, principalmente, vi) o protagonismo das comunidades locais
na gestão da atividade e/ou na oferta de bens e serviços turísticos,
visando a apropriação por parte destas comunidades dos benefícios
advindos do desenvolvimento da atividade turística (p. 16).
315
experiências em que é possível exercer a compreensão mútua e a solidariedade,
Porém, mesmo baseado em todas essas diretrizes e princípios, o TBC tem que
desenvolvimento sustentável:
(i) As experiências de Turismo de Base Comunitária bem sucedidas
não podem ser interpretadas como passíveis de reaplicação em
outras localidades e contextos. Tal atitude faria do desenvolvimento
situado um objeto de reprodução seriada, ou seja, uma contradição
nos próprios termos da questão; (ii) O Turismo de Base Comunitária
deve ser encarado em uma perspectiva possibilista e não
determinista e prescritiva para o desenvolvimento situado e o
turismo. Não podemos interpretá-lo como um modelo estanque,
com uma configuração fixa e capaz de atender toda e qualquer
realidade e (iii). Deve-se, ainda, reconhecer que iniciativas de
Turismo de Base Comunitária não estão isentas de influências
externas, divergências internas e conflitos de interesse43.
Tais ressalvas são feitas também por Coriolano e Vasconcelos 44: “o turismo
região e não ser para outra”. Pois ainda segundo os autores, “promover a região não
BURSZTYN, I.; BARTHOLO, R.; DELAMARO, M. Turismo para quem? Sobre caminhos de
desenvolvimento e alternativas para o turismo no Brasil. In: BARTHOLO, R.; SANSOLO, D.G.;
BURSZTYN, I. (Org.) Turismo de Base Comunitária: diversidade de olhares e experiências
brasileiras. Rio de Janeiro-RJ: Letra e Imagem, p.76-91, 2009.
HALLACK, N. et al. Turismo de Base Comunitária: estado da arte e experiências brasileiras.
AmbientalMENTE Sustentable, ano V, vol. I, núm. 9-10, páginas 37-55, jan/dez-2011.
44 cf. p. 102. CORIOLANO, L.N.M.T. O turismo comunitário no nordeste brasileiro. In:
316
Para Irving45, embora frequentemente atores externos funcionem como
endógena e expressar o desejo dos grupos sociais locais, ela certamente não atenderá
dinâmica de desenvolvimento.
relação com a natureza, seu patrimônio cultural, pois é este o fator que diferencia o
317
lugar, e se preocupam com o envolvimento participativo, não de
forma individualista; daí o avanço para as gestões integradas dos
arranjos produtivos que passam a ser comunitários, e facilitam os
enfrentamentos48.
de modo que a mesma possa idealizar de forma endógena e segura de seus valores
serem vivenciadas, tanto por quem visita, quanto por quem recebe.
têm em comum as lutas sociais, como a conservação dos recursos naturais, base da
subsistência de diversas comunidades, a luta pela terra, a luta pelo direito à memória
318
Acrescenta-se a esses atores alguns movimentos sociais, comunidades,
Olinda, Barra das Moitas, Caetanos de Cima, Curral Velho, Prainha do Canto Verde,
no Ceará53.
com sede no município de Santa Rosa de Lima (SC). Ainda no sul há o Projeto de
Comunitária no Brasil.
52 CORIOLANO, 2009.
53 CORIOLANO, 2009.
54 CORIOLANO, L.N.M.T. O turismo comunitário no nordeste brasileiro. In: BARTHOLO, R.;
319
Quadro 12.1 Iniciativas de Desenvolvimento do Turismo de Base Comunitária no
Brasil. Fonte: Elaborado pelos autores (2019).
320
Quadro 12.1: Iniciativas de Desenvolvimento do Turismo de Base Comunitária no
Brasil (continuação).
Conservação (UCs), onde o turismo pode ser praticado como atividade econômica
Amazônia apresenta, esta tem papel estratégico quando se fala em turismo no Brasil,
321
oferecidas, acesso ao mercado para comercialização dos produtos e serviços, falta de
orçamento e capacitação das comunidades para a gestão do TBC ainda são entraves
para que o TBC seja uma opção viável de geração de renda a longo prazo.
Mesmo com experiências importantes surgindo por toda a região
amazônica, podemos afirmar que poucas iniciativas estão bem
estruturadas e com operação constante. Na maior parte, ainda estão
promovendo discussões internas sobre os rumos do turismo na
localidade, bem como realizando um trabalho de mobilização e
qualificação para a prestação de serviços. No que tange
especificamente ao processo de comercialização, a maior parte
ainda não sente a necessidade de aumentar o fluxo de visitantes,
pois ainda não tem capacidade para atender a uma demanda
maior56.
município de Manaus58.
59 NOVO, 2012.
322
Destaca-se algumas experiências para melhor entendimento do processo de
região61.
Ecoturismo da Amazônia, onde a renda gerada por meio dos pacotes turísticos
Pousada Uacari
323
Geographic Traveller e o guia Lonely Planet) e está localizada no interior da Reserva
Roteiro Arapiuns
parceria com o Projeto Bagagem e apresenta aos visitantes uma das regiões mais
64 BURSZTYN, 2012.
65 BURSZTYN, 2012.
66 BURSZTYN, 2012.
direto do turismo de base comunitária na Amazônia. 2012. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de
Engenharia de Produção, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
68 NOVO, C.B.M.C. Turismo de base comunitária na Região Metropolitana de Manaus (AM):
324
Considerações finais
O TBC é uma alternativa viável, aplicável e sustentável, contrapondo-se ao
pelo “turista”, que passa a ser percebido e querer perceber-se como parte ativa da
sendo, promover esse convívio entre pessoas e culturas diferentes é benéfico para
o receptor tem que explorar o visitante para obter lucro, e do visitante muitas vezes
anfitriões.
emergiram há poucos anos e é ainda pouco estudado pela academia mesmo pelos
papel das Políticas Públicas é ainda mais importante quando se trata do TBC na
325
Amazônia, considerando que a grande maioria das iniciativas estão sendo
vai além do mero benefício econômico que as populações locais podem ter com o
cultural, lutando pela manutenção de seus modos de vida, pelo direito à terra, se
da conservação ambiental como um valor intrínseco aos seus modos de vida e não
É preciso que haja subsídio técnico e teórico para que essas populações
possam desenvolver o TBC de maneira prática e que seja condizente com a sua
326
pois além do potencial turístico, dos atrativos naturais e da cultura fortalecida, é
turismo local, mas para que haja independência e interações positivas entre os atores
envolvidos e os de agentes externos. Cabe a cada comunidade saber lidar com essas
parcerias de forma que elas não se tornem soberanas sob as decisões comunitárias,
O grande desafio do TBC está na unicidade da sua aplicação, que deve ser
visitante.
327
Sobre os organizadores
Silvio Eduardo Alvarez Candido
328
Sobre os(as) autores(as)
André Munhoz de Argollo Ferrão
Andrea Silveira
329
Artur de Souza Moret
330
Eduardo Michalichen Garcia
331
Participa do Grupo de Pesquisa SUSTENTA (Sustentabilidade e Gestão Ambiental),
no qual é líder e do Grupo de Pesquisa GEOTUR (Geografia, Espaço e Turismo).
Leonardo H. de Moura
332
Marina Ertzogue
Monise Busquets
333
organizações do terceiro setor e governo, como o Instituto Socioambiental (ISA), o
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
334