O Sprechgesang Como Técnica Composicional No Século XXI O Sprechgesang Como Técnica Composicional No Século XXI

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XXXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa, 2021

O Sprechgesang como técnica composicional no século XXI – comentários


analíticos sobre obras vocais de Marcos Balter e Januíbe Tejera.

MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

SUBÁREA ou SIMPÓSIO: Composição e Sonologia

Silvio Mansani da Silva


UDESC [email protected]
Acácio Tadeu de Camargo Piedade
UDESC [email protected]

Resumo. Esse texto define e contextualiza o Sprechgesang utilizado na obra Pierrot Lunaire, op.
21 de Arnold Schoenberg, apontando os seus antecedentes históricos e identificando o uso da técnica
em obras de compositores brasileiros do século XXI. No sentido de rever a importância desta técnica
na composição contemporânea, apresentamos aspectos das partes vocais das obras Moi singe, de
Januíbe Tejera e Aesopica, de Marcos Balter, observando como o canto falado é utilizado e qual a
sua importância para as estruturas narrativa e musical.

Palavras-chave. canto falado; voz na música contemporânea; Sprechgesang

Title. The Sprechgesang as a tool for composition at the XXIst century – Analytical comments
on vocal works by Marcos Balter and Januibe Tejera.

Abstract. In this paper we present a definition and contextualization of the Sprechgesang as used
by Arnold Schoenberg in Pierrot Lunaire, op. 21. Besides this historical background, we intend to
review the importance of this technique for the Composition in the XXIst. century. Therefore, we
analyse two works by Brazilian contemporary composers in which this technique is used: Moi singe,
by Januíbe Tejera, and Aesopica, by Marcos Balter. We intend to show how this kind of vocal
enunciation have been used and its importance for the narrative and musical structures.

Keywords. spoken song; voice in contemporary music; Sprechgesang

1. Introdução
Este texto aborda um tipo específico de prática entre texto e música: o canto falado
ou fala cantada, que se refere a um modo de entoar (ou enunciar) posicionado numa zona
intermediária entre a fala e o canto. Ainda que se possa discutir o tema no contexto da
declamação poética ou teatral, o objetivo aqui é analisar o uso desse recurso em obras musicais
a partir de Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg, obra que popularizou o Sprechgesang e
prenunciou uma revolução nos modos de uso da voz na música do século XX. Por fim,
buscamos alguns exemplos musicais em obras de compositores brasileiros do século XXI que
fazem uso dessa técnica, seja aos moldes clássicos da segunda escola de Viena ou de forma
atualizada pelas experiências subsequentes.

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2. Antecedentes
A fala e o canto são atributos da voz humana que detém a capacidade simultânea
de emitir fonemas linguísticos e estabilizar alturas e durações dos sons no plano da emissão. De
maneira geral, pôde-se conceber um conjunto de modulações da voz que variam do sussurro ao
grito e compreendem o uso ordinário da fala e o canto. Diversos também são os usos sociais
desses recursos, por isso mesmo, é natural que se observe diferentes configurações de canto/fala
em diferentes épocas e culturas, associadas a manifestações religiosas, cívicas ou artísticas.
Na Grécia antiga, por exemplo, poesia e música estavam de tal modo imbricados
que não havia um termo específico para uma arte feita exclusivamente com a linguagem,
embora sua ocorrência tenha sido registrada, por exemplo, na Poética de Aristóteles (GROUT;
PALISCA, 2001, p. 20). No entanto, a mecânica da união entre texto e música na poesia grega
não foi sempre estável e homogênea. A submissão do aspecto rítmico da melodia à prosódia da
fala, regulada pelos pés métricos (abstraídos da sucessão de sílabas tônicas e átonas do discurso
oral), dão a medida de uma tensão entre os elementos que resulta em diferentes soluções
práticas. Por um lado, uma música mais sóbria ligada aos templos, apegada ao texto e com
formação instrumental reduzida; por outro, um estilo profano mais ágil e ritmicamente mais
livre, que remete às danças populares (REINACH, 2011, p.146). Entre 440 e 300 a.C. vigorou
um estilo ligado ao teatro e afeito ao virtuosismo de cantores e instrumentistas, que libertou o
rítmico melódico, emancipando os eventos musicais da completa vinculação com o texto e
proporcionando uma maior ornamentação (idem, 2011, p.147).
Essa dicotomia entre música e literatura se reproduz em outros períodos da música
ocidental, como na música medieval cristã, cuja história vai do cantochão à polifonia e envolve
polêmicas sobre a primazia do texto, seu embelezamento e até ofuscação pelo abuso de recursos
musicais (VIRET, 2015, p.34). Segundo Viret, tudo se inicia com a cantilação cristã, prática de
vocalizar o texto sagrado diante da assembleia com uma entonação solene que transita entre
tom falado e o cantado: “A cantilação, palavra melodizada, não é exatamente canto, mas o
protótipo do estilo gregoriano cantado. Diz respeito ao que é lido, recitado, declamado” (op.cit.,
p.40).
No início do século XVII, o advento da Seconda Prattica propõe um estilo de
música dominada pelos afetos do texto, em oposição ao estilo polifônico da prima prattica,
cujas regras musicais do contraponto se sobrepunham ao verbo (GROUT; PALISCA, 2001, p.
311). Inspirados na estrutura da tragédia grega, os compositores da época apostaram na melodia
acompanhada por baixo-contínuo como o melhor recurso para a música teatral que almejavam.

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O objetivo era criar “um tipo de canto intermédio entre a recitação falada e a canção” (idem, p.
320), para tanto desenvolveram um estilo recitativo capaz de melhor impulsionar os diálogos
das cenas. Mas pra lá de uma associação simplista entre os materiais melódico e poético, Chasin
(2009) defende ainda que a imitatione del parlare, reinvindicada por Monteverdi, contempla a
busca pela interioridade das paixões humanas que se manifestam na materialidade do som da
voz: “mimese do dizer: alma em recitação […] canto falado, declamado, não simplesmente
porque palavra silábica, que se avizinha da fala, mas por que voz in mímeses de si […]” (idem,
p. 183).

3. O Sprechgesang de Pierrot Lunaire


Entre os anos 1890 e 1910, compositores de diferentes lugares do mundo se
aventuraram na busca por novas sonoridades. Bartók, Scriabin e Ives compuseram obras que
têm em comum o mesmo tratamento livre da dissonância, atenuação e remoção da tonalidade
(SIMMS, 2000, p. 7). Mas o passo definitivo e deliberado para fora do diatonismo foi dado por
Arnold Schoenberg com a adoção de um cromatismo total liberado de hierarquias que
culminaria com o dodecafonismo. Ainda assim, a despeito do ímpeto inovador, muitos críticos
continuaram a apontar significativa influência do romantismo tardio nas obras do compositor.
Leibowitz (1981), por exemplo, elege o drama como característica fundamental da obra de
Schoenberg e sustenta que tal elemento sobreviverá às mudanças estéticas apresentadas pelas
peças posteriores. Para ele, a própria ideia de Sprechgesang representa um avanço na busca
para a solução do dualismo entre drama e música, que vai ao encontro da busca de Wagner por
superar a dicotomia recitativo/arioso, dentro da ópera.
O abandono do sistema tonal trouxe dificuldades significativas para a construção
de grandes peças. Sem o apoio de uma perspectiva que regulasse a abstração dos eventos
sonoros, os compositores se dedicaram inicialmente a miniaturas (MENEZES, 2002, p. 135-
136), com enunciados musicais muito breves e singulares (o estilo aforístico). Não à toa, a
música vocal e o apoio no texto foram fatores determinantes para a estruturação de peças longas
sem os recursos narrativos da harmonia tradicional: “Eu descobri como construir formas longas
seguindo um texto ou um poema. As diferenças de tamanho e forma de suas partes e a mudança
de caráter e humor eram refletidas na forma e tamanho da composição”, explica Schoenberg
(apud RESENDE FILHO, 2012, p. 220).
Dentre essas obras vocais está Pierrot Lunaire, op. 21 (1912), de Arnold
Schoenberg, uma peça camerística para recitante e grupo misto (flauta/piccolo,

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clarinete/clarinete baixo, violino/viola, violoncelo e piano). Toda a obra parece tanto apontar
para o futuro da arte como lançar um olhar irônico para o passado, representando muito bem a
atmosfera decadente e transitiva do fin-de-siècle (DUNSBY, 1992, p.4).
A influência do estilo de declamação proveniente de cabarés vienenses e franceses
na constituição do Sprechgesang é sustentada pela atividade de Schoenberg como orquestrador
de operetas e canções de cabaré e pela sua declarada admiração por artistas do gênero, como
Alexander Girardi (BRYN-JULSON & MATHEWS, 2009, p. 33-34). Tal intérprete vai além
partitura da canção, acrescentando elementos oriundos do estilo teatral de declamação,
modulando e alterando o contorno da melodia. Embora Schoenberg nunca tenha se pronunciado
sobre o assunto, é importante pontuar que o uso estilizado e até mesmo caricato da fala já era
realidade no universo do teatro musical popular praticado na Viena do início do século XX.
A peça foi comissionada pela atriz performática Albertine Zehme, que encomendou
um melodrama (gênero dramático de declamação poética com acompanhamento musical)
baseado em poemas do franco/belga Albert Giraud inspirados na Comedia dell’arte e traduzidos
para o alemão por Engelbert Hartleben (CAMPOS, 1998). No entanto, ainda que a parte da voz
indique que se trata de uma “recitação”, o gênero musical que dá suporte à obra é o ciclo de
canções (DUNSBY, 1992, p.5) e o texto está condicionado a uma linha melódica detalhada nas
alturas, de modo impeditivo para atores sem formação musical. O elemento que liga os gêneros
dramático e musical, nesse caso, é a técnica entoativa denominada Sprechgesang, cuja
característica principal é a ambiguidade entre canto e declamação poética (GRIFFITHS, 2011,
p. 34). Essa ambiguidade se desdobra em muitos planos, resultando numa obra entre a canção
e o melodrama, mas que não se realiza completamente nem como uma coisa nem como outra.
A própria definição da técnica do Sprechgesang no prefácio da partitura é ambígua, quando
afirma não se tratar propriamente nem de canto nem de fala, mas de algo intermediário entre as
duas coisas (SCHOENBERG, 1994, p.54). Um modo expressionista de executar linhas
melódicas com a voz que traduz muito bem o espírito satírico e grotesco da peça: “uma
entonação exagerada, além dos limites da fala e aquém do canto” (MENEZES, 2002, p. 144)
que provoca uma distorção caricatural que leva ao estranhamento.
Dunsby (1992, p. 3-6) afirma que Pierrot Lunaire é resultado da acomodação da forma
do melodrama em um ciclo de canções. Segundo ele, o costume de recitar poemas com música
alcançou certa popularidade no século XIX, mas não era visto como modelo de música séria
pelos compositores, que a trataram como moda passageira de uso apenas ocasional. A música
utilizada nos melodramas não era necessariamente composta para tal, mas há casos em que

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compositores se preocuparam em estabelecer uma mínima acomodação do texto na partitura,


de modo a organizar a sucessão dos eventos. A maneira mais simples consistia em transcrever
o texto na partitura, logo acima dos compassos em que deveria ser falado. Outro método um
pouco mais rígido acrescentava aos textos valores fixos de duração, o que permitia um maior
controle sobre a expressão vocal e a sincronização do ritmo da fala com a música (MERRIL,
2016, p. 43-45).
Um terceiro método ainda mais ousado foi proposto pelo compositor Engelbert
Humperdinck na primeira versão de sua obra, intitulada Die Königskinder (1897), e consistia
em fixar ritmos e alturas para o discurso poético. O compositor explica que o objetivo é a
realização das Sprechnoten, com o objetivo de imitar a modulação da fala e obter um efeito de
maior realismo e naturalidade, conforme suas palavras (SODER, 2008, p.4). Para identificar o
novo modo de entoar, idealizou um sistema específico de notação com a substituição da cabeça
da figura de nota por um “x” (BRYN-JULSON; MATHEWS, p.4).
É justamente o método de notação (com cabeça de nota em “x”) de Humperdinck que
Schoenberg ressuscitará para identificar o Sprechgesang na sua obra Gurrelieder (1911) e nos
manuscritos de Pierrot Lunaire. Na primeira edição comercial publicada desta última, no
entanto, a notação utilizada foi a cabeça de nota tradicional com o “x” deslocado para as hastes
(SCHOENBERG, 1994). Outra diferença importante em relação a Gurrelieder é que a linha
vocal no Pierrot é mais arrojada na tessitura, usando registros extremos da voz, incluindo
grandes saltos intervalares e uso variado do ritmo. No prefácio da peça (idem), o compositor
informa que não se trata de uma busca realista pela natureza da fala e que o cantor deve buscar
realizar uma Sprechmelodie (melodia falada), mas que isso não significa um jeito falado de
cantar, tampouco uma maneira de falar em modo cantabile. Além das recomendações iniciais,
o compositor se utilizou fartamente de elementos textuais acima da linha vocal para estabelecer
mudanças nos modos de emissão, tais como: Gesungen (cantado), Geflüstert (sussurrado),
Klangvoller geflüstert (sussurrado mas bem sonoramente), Geflüstert tonlos (sussurrado sem
altura), entre outros.

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4. O Sprechgesang no século XXI


As duas obras comentadas a seguir, Moi Singe, de Januíbe Tejera, e Aesopica, de
Marcos Balter, serão analisadas somente em relação aos modos de uso da voz e as relações
entre música, texto e fala. Por se tratar de peças de longa duração (entre 30 e 60 minutos) e com
muitas seções, não será possível adentrar nos pormenores da escrita e elaborar uma análise mais
abrangente. Os objetivos são: 1) identificar de que maneiras o gestos de canto/fala são utilizados
em obras recentes de compositores brasileiros; 2) verificar se o Sprechgesang, tal como
concebido por Arnold Schoenberg, ainda possui alguma relevância para os criadores da
atualidade; 3) compreender como os compositores têm se utilizado do aspecto semântico do
texto ou se têm optado pela fragmentação da linguagem, apropriando-se musicalmente da
fonética. Por fim, é preciso dizer que a amostragem compreendida por esse estudo é pequena
para conclusões generalizantes, podendo apenas contribuir com dados parciais para a
elucidação dessas questões.

5. Moi Singe, de Januibe Tejera1


O teatro musical Moi Singe (2017) (“Eu Macaco”) do compositor Januíbe Tejera, é
uma peça para mezzo-soprano, barítono, grupo instrumental e eletrônica. O texto foi concebido
pelo próprio compositor através de uma adaptação livre a partir de uma tradução francesa do
conto Um Relatório para a Academia, de Franz Kafka, originalmente publicado em 1919 na
coletânea Um médico rural2. Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa cuja personagem,
um macaco, se dispõe a falar em uma conferência para um público de acadêmicos sobre suas
experiências decorrentes do contato com a civilização. Para embasar o debate sobre o canto/fala
nesta obra, é necessário compreender aspectos de sua dramaturgia.
O relato do macaco informa que o processo de humanização ao qual submeteu a si
mesmo foi, na verdade, uma estratégia para se livrar da jaula em que foi encarcerado após a sua
captura. Podemos arguir que se trata de um esforço de cancelar a alteridade (símio/humano)
para constranger o dominador à aceitação. No entanto, o aparente êxito evolutivo não é motivo
de comemoração, como diz a personagem no trecho final da Cena 6: “Non, je ne voulais pas de
la liberté, je voulais seulement une issue, à droite, à gauche, n’importe où. L’exigence était

1
Januíbe Tejera de Miranda é natural da Bahia, formado em composição pelo Conservatório Nacional Superior
de Música de Paris e com formação no IRCAM. Atualmente é professor de composição na Universidade de
Austin, Texas.
2
Kafka (1994).

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modeste, s’en sortir seulement s’en sortir!”3 (TEJERA, 2017). Mas a sentença que melhor
resume o sentimento do protagonista está cuidadosamente posicionado no final da primeira
cena: “Moi, singe libre, je me soumis à ce joug”4 (idem).
As ideias de submissão, liberdade inalcançável e sua consequente conversão em uma
mera e relativa saída (à esquerda ou à direita) são recorrências advindas das predileções
temáticas de Kafka, que também era advogado, afeito às relações de opressão do indivíduo pela
sociedade (CALIXTO, 2016, p.63). Outro aspecto recorrente de sua literatura é o uso pontual
da “deformação”, estrategicamente enquadrada na realidade, através de uma linguagem sóbria
e seca (CARONE, 2009, 30-31), consistindo na introdução de um elemento fantástico na
narrativa, com o qual a lógica do mundo real terá de lidar. Esse elemento frequentemente
aparece relacionado à animalidade, como no caso da hominização do macaco, em Um Relatório
para a Academia, ou do homem que se transforma em inseto, em O Processo (CALIXTO,
2016, p.68).
A primeira especificidade de Moi Singe é que se trata de um monodrama, ou seja, uma
obra dramática para apenas uma personagem, mas que requer a atuação de dois cantores, duas
vozes de gêneros opostos que se alternam e se sobrepõem para representar o macaco
humanizado. Por essa duplicação insólita do “eu” do texto em primeira pessoa, pelo modo como
o cenário é constituído, com a presença dos músicos no palco e a utilização do equipamento de
sonorização como elementos cenográficos (microfones e acessórios), pode-se caracterizar a
obra como um drama musical entre o oratório e a ópera. Uma solução inteligente que promove
o que é mero suporte à condição de signo poético e colabora com a transposição da
metalinguagem declarada já no título do conto (que se quer relatório), transformando-o num
espetáculo musical que se pretende conferência. Interessante observar que o binômio mimético
original conto/relatório, transposto para obra musical como espetáculo/conferência, dialoga
com outros dois: realismo/fantasia (fundado no estilo de Kafka) e canto/fala (no plano do drama
musical).
Moi Singe condensa o conto de Kafka em 14 cenas, procurando abordar os fatos
relatados pelo protagonista, os quais podem ser segmentados em três grupos: 1) o tempo
presente, em que o macaco se dirige à plateia; 2) as lembranças relativas a viagem no navio da
companhia após a sua captura; e 3) a vida pregressa em meio ao seu habitat natural, sobre a
qual não há muitas lembranças nem possibilidade de retorno.

3
“Não, eu não queria liberdade, só queria uma saída, para a direita, para a esquerda, não importa para onde. A
exigência era modesta, apenas para sobreviver!”, tradução dos autores.
4
”Eu, macaco livre, me submeto a esse jugo”, tradução dos autores.

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O Sprechgesang nos parece um ponto forte em Moi singe. É por meio dele que a peça
ganha o impulso inicial e extrai a potência necessária para caracterizar a ideia de palestra
musical. Trata-se de um parlé-chanté com alturas definidas, como a de Pierrot, mas com um o
contorno ajustado aos afetos do texto árido e direto de Kafka. Por isso, no início da partitura,
na primeira entrada da voz, a indicação de técnica Sprechgesang vem acompanhada do
esclarecimento: “voix parlé/chanté, toujours au microphone, comme une conférence, mais avec
un ton intimidateur”.5
A opção pelo canto falado expressionista se revela ideal porque a entonação caricata
oferece conteúdo musical sem despregar o texto da sua posição de palestra mimetizada pelo
gênero discursivo do conto. Ao mesmo tempo, sua transposição para o drama musical amplifica
o tom velado de sátira contido na prosa sóbria do escritor, que ganha ares de deboche. A figura
1 traz um trecho da parte vocal da obra:

Figura 1: Trecho da parte vocal da Cena 1 (“Mesdames et messieurs”) de Moi singe (2017), de Januíbe Tejera.

Moi Singe é uma obra dentre aquelas que priorizam o aspecto semântico do texto mas
lançam mão de efeitos fonéticos para potencializar a expressividade do discurso. Merrill (2016,
p. 46) diferencia três aspectos do uso da voz: 1) aspecto semântico, 2) aspecto fonético, e 3)
forma mista fonético-semântica. Na figura 2 abaixo, observa-se como são concatenados tais
efeitos, que compreendem ruídos de garganta, nasais exagerados, grandes glissandos bruscos,
jogos rítmicos com monossílabos, entre outros:

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“Voz falada/cantada, sempre no microfone, como uma conferência, mas com um tom intimidador”. Tradução
nossa.

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Figura 2: da parte vocal da Cena 2 (“Mais la conséquence fut..”) de Moi singe (2017), de Januíbe Tejera.

Os modos de cantar, grosso modo, podem ser divididos entre os que alteram a forma
de emissão mas permitem o desenrolar do texto e os que bloqueiam o fluxo das palavras,
abrindo espaço para figurações de ordem puramente musical. Aos do segundo tipo pertencem
os efeitos fonéticos e os ruídos não linguísticos, como vibração com a garganta e estalos de
língua. Em Moi Singe, a escrita para duas vozes oferece facilidades na concatenação de todos
esses elementos e permite uma divisão polifônica de tarefas que se complementa. A figura 3
traz a profusão de sonoridades que se sucede na voz dos cantores:

Figura 3: Trecho da parte vocal da Cena 4 (“je suis originaire”) de Moi singe (2017), de Januíbe Tejera.

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Do compasso 283 ao 289, o barítono em Sprechgesang pontua algumas palavras-chave


do texto, enquanto a soprano acelera a narrativa, com voz sussurrada e instável. No compasso
292, com a palavra je, há um jogo improvisado de variação nos modelos de vocalização (entre
falado, cantado e caricato) que é seguido por um trecho imitativo que começa com um modo
dérrailler e chanter (canto ordinário).
Além do criativo trabalho vocal, Moi Singe aprofunda em seu decorrer a relação
das linhas vocais com o grupo instrumental e o material audiovisual do espetáculo. Enquanto
as primeiras cenas exploraram intensamente as possibilidades da formação vocal em duo, as
Cenas 6 e 11 reduzem a textura e investem em duos de voz com instrumento (respectivamente,
barítono/voz e soprano/clarinete baixo). Se na Cena seis, barítono e contrabaixo se fundem até
o desaparecimento do primeiro e eu seu consequente retorno, na Cena 11 o clarinete imita a
entonação da voz, oferecendo um dobramento que incorpora timbre e dramaticidade à linha
vocal. Uma análise mais aprofundada desses conteúdos está além do escopo desse texto, mas é
importante salientar que há outras qualidades nessa obra que nos motivam a uma futura análise
mais detalhada que possa abranger as contribuições do material instrumental, da eletrônica e
dos elementos visuais que compões a cenografia.

6. Aesopica, de Marcos Balter6


Composta em 2011, Aesopica é uma obra para grupo misto, eletrônica e
narrador/cantor, cujo texto é uma adaptação livre, realizada pelo próprio compositor, de fábulas
atribuídas a Esopo. Ao todo, são dezesseis movimentos que alternam ora o protagonismo do
canto, ora a ênfase no grupo instrumental, incluindo também seções de improvisação em duo
sobre base eletrônica pré-gravada. O grupo instrumental é formado por instrumentos de
diferentes famílias, como madeiras (flauta, clarinete e fagote), metais (trompa e tuba), cordas
(violino e violoncelo, piano, violão) e percussão (marimba, vibrafone entre outros
instrumentos). Comissionada e estreada pelo International Contemporary Ensemble, a peça foi
também lançada comercialmente pelo grupo no álbum intitulado Aesopica: Music of Marcos
Balter (AESOPICA, 2016), numa versão reduzida que exclui o interlúdio e os quatro diálogos
para dois instrumentos e eletrônica, além dos dois últimos movimentos baseados em fábulas.
No Prólogo que dá início à peça, o narrador/cantor executa uma linha melódica com ritmos
mensurados e escrita de altura relativa (pentagrama sem adição de clave), conforme figura 4

6
Marcos Balter (1974) é natural do Rio de Janeiro e estudou composição nos Estados Unidos na Northwestern
University. Atualmente vivendo em Nova York, onde atua como compositor, é professor associado de
composição musical na Montclair State University.

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(abaixo). O compositor se absteve de indicar a classificação da voz solista, abrindo espaço para
que qualquer intérprete a adapte ao seu registro. Isso demonstra também que as relações
intervales resultantes entre as notas da voz e os demais instrumentos têm menos relevância do
que outros fatores como ritmo e timbre. Assim, fica subentendido que o mais importante na
linha vocal não são as alturas em si, mas as medidas intervalares que definem o contorno da
peça. Ainda quanto ao Prólogo, a parte vocal é acompanhada por flauta baixo, clarinete baixo,
trompa, tuba e piano, que leem uma mesma parte, composta de apenas uma linha, mas que
emula o desenho de alturas e os ritmos da voz, conforme a figura abaixo:

Figura 4: Trecho da parte vocal de Prologue, de Aesopica (2011), de Marcos Balter.

Desta forma, os instrumentistas devem copiar as inflexões do narrador, ao mesmo


tempo em que seguem o contorno melódico e a notação rítmica estabelecida, com
recomendação, nas instruções da partitura, de usarem livremente a microtonalidade, clusters,
multifônicos, entre outros recursos que possam imitar a entonação de modo que o resultado soe
como uma única voz (BALTER, 2017, p. 1).
Aesopica não se atem à narração linear, conforme são lidas as famosas fábulas a que
faz referência. O texto de cada movimento estabelece algumas poucas imagens da narrativa
clássica e a música as comenta, com ares de sofisticada sonoplastia. Em muitos momentos, a
narrativa é lacônica e se desenvolve mais fluidamente nas extremidades das seções, em forma
de fala, com contornos ao modo de como se conta histórias, como se ocupasse a função de um
texto programático. Noutros momentos, a sintaxe do texto se pulveriza e a voz contribui com a
sonoridade da fonética para a construção musical.
Por conta desses aspectos, pelo interlúdio instrumental e pelos quatro duetos que
conferem destaque a instrumentos específicos, pode-se dizer que o compartilhamento do
protagonismo é um dos pressupostos mais importantes em Aesopica. Para atingir essa sensação
de coletividade, Balter lança mão de dois elementos importantes: a improvisação dirigida e a
multiplicação de papéis, ou seja, os músicos são pontualmente levados a vocalizar ou tocar

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outro instrumento que não o seu, como se pode ver na figura 5 (abaixo), excerto do final do
sexto movimento (The Wind and the Sun). Aqui todos os músicos cantam e tocam crotales ao
mesmo tempo, de acordo com as instruções:

Figura 5: Trecho da parte vocal de The wind and the sun, de Aesopica (2011), de Marcos Balter.

O movimento The fly and mule (“a mosca e a mula”), por exemplo, nos seus primeiros
14 compassos, o cantor esfrega as mãos e emite em falsete suas notas mais agudas, exclamando
monossílabos (Ah!, fah!, lah!), além de sons consonantais (“f” e “s”). Esse momento é bastante
rítmico e estabelece uma atmosfera lúdica, com sons agudos delicados, na qual se destaca a
sonoridade dos woodblocks, o que pode ser entendido como uma alusão sutil ao som de cascos
equinos. A narrativa condensa a fábula em sua essência: “a fly lands on the back of the mule
and annoyed with the slow pace of the ride protests: Faster with the cart or I’ll bite till you’re
smart”.7 Na figura 6, trecho de The fly and mule, pode-se observar um trecho do contorno
melódico, caracterizado por grandes saltos com mudança de registro, glissando e modificação
na emissão de voz normal para caricata (entre os compassos 18 e 23). É evidente que não se
trata de canto tradicional, tampouco do Sprechgesang de Schoenberg ou de Tejera, mas sem

7
“Uma mosca pousa no dorso de uma mula e, incomodada com o passo lento da cavalgada, protesta: mais rápido
com essa carroça, ou eu te mordo até que fique esperta”, tradução nossa.

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dúvida de uma expressão de vocalidade comprometida com a fala e ao mesmo tempo embebida
das experiências com a voz no contexto da música contemporânea:

Figura 6: Trecho da parte vocal de The fly and mule, de Aesopica (2011), de Marcos Balter.

7. Considerações finais
Observamos que a imbricação entre canto e fala, seja na forma de fala cantada (fala
que se projeta para o canto) ou canto falado (canto que se ajusta ao contorno da fala) são práticas
que remontam a antiguidade e estão presentes em diversas culturas até a contemporaneidade.
O Sprechgesang é apenas uma das configurações possíveis de canto/fala, mas se
notabilizou com o Pierrot de Schoenberg como precursor de uma revolução nos modos de uso
da voz em técnicas de composição durante o século XX. Para trazer dois exemplos destes usos
por dois compositores brasileiros da atualidade, comentamos as partes vocais das
obras Aesopica e Moi singe. Concluímos que o Sprechgesang continua relevante como recurso
expressivo que mantém os aspectos semânticos do texto, permitindo o desenrolar de narrativas
na composição musical. Em ambas as obras, a técnica aparece entremeada, em maior ou menor
medida, por outros efeitos de caráter fonético e até mesmo pelo canto ordinário. A notação
utilizada também varia bastante, sendo que na partitura de Moi singe está claramente expresso
o uso de Sprechgesang, com o uso da notação de Pierrot, enquanto Aesopica apresenta uma
solução com pentagrama e figuras de cabeça tradicional, porém sem uso de clave. Ambas se
utilizam amplamente dos recursos textuais para indicar as variações nos modos de emissão, o
que nos mostra que o Sprechgesang continua sendo uma técnica composicional relevante na
atualidade.

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XXXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa, 2021

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