Artigo Pronto SBS 2023 - Faxinais e Contratos Domesticatórios

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21º CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA

11 A 14 DE JULHO DE 2023
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ- UFPA

GRUPO DE TRABALHO: CP07. Sociologia Ambiental e Ecologia Política

MORALIDADES AMBIENTAIS DOS FAXINAIS/CAÍVAS DO SUL DO


BRASIL. UMA ANÁLISE DA SUA EXPERIÊNCIA DE CONTRATOS
DOMESTICATÓRIOS NÃO PREDATÓRIOS

Luciano Felix Florit- Universidade Regional de Blumenau-FURB


Cristhine Fabiola de Ramos- Universidade Regional de Blumenau-FURB
Caetano Sordi – Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC

Apoio CNPq
Resumo

É nítido para a maioria dos analistas que a estrutura de relação da


humanidade com o resto da natureza está em um momento crucial. Nesse
contexto, não está em questão apenas como conceber um sistema
socioeconômico que se sustente ao longo do tempo, mas também, e até para
poder realizar esse objetivo, cada vez mais analistas nos questionamos sobre
os fundamentos éticos que embasam a forma como nos relacionamos com os
seres e entes não humanos. Ganha espaço a compreensão de que sem o
segundo, a conquista do primeiro será acanhada, superficial e injusta. Neste
contexto, o tratamento dispensado aos animais no sistema agroalimentar
mostra-se como um dos desafios mais complexos e espinhosos. Ao pensar
sobre a questão animal, frequentemente se invoca o exemplo de outras
culturas, notadamente os povos indígenas, que estabelecem sua relação com
estes seres sob bases ontológicas radicalmente diferentes às ocidentais.
Também, já do seio da cultura ocidental, há um conjunto de reflexões ético-
políticas que repensam e reformulam criticamente esta situação. Neste
trabalho, nos propomos a apresentar uma análise por um caminho diferente,
que é o de trazer a experiencia dos faxinais, comunidades tradicionais do sul
do Brasil, analisando a mesma sob o prisma da noção de contratos
domesticatórios. Fazemos isto, por entendermos que tal experiência é uma
fonte sugestiva de outras possibilidades para pensar a problemática animal, de
forma indissociável à justiça ambiental e a equidade territorial.

Palavras chaves: Justiça ambiental, faxinais, contratos domesticatórios

Summary

It is clear to most analysts that the structure of humanity's relationship


with the rest of nature is at a crucial moment. In this context, it is not just a
question of how to conceive a socioeconomic system that is sustainable over
time, but also, and even in order to achieve this objective, more and more
analysts are questioning themselves about the ethical foundations that underlie
the way we relate to non-human beings and beings. The understanding gains
ground that without the second, the conquest of the first will be shy, superficial
and unfair. In this context, the treatment given to animals in the agri-food
system is one of the most complex and thorny challenges. When thinking about
the animal question, the example of other cultures is often invoked, notably
indigenous peoples, who establish their relationship with these beings on
ontological bases that are radically different from those of the West. Also,
already within Western culture, there is a set of ethical-political reflections that
critically rethink and reformulate this situation. In this work, we propose to
present an analysis through a different path, which is to bring the experience of
faxinais, traditional communities in southern Brazil, analyzed under the prism of
the notion of domestic contracts. We do this because we understand that such
an experience is a suggestive source of other possibilities for thinking about the
animal problem, inseparable from environmental justice and territorial equity.

Key words: Environmental justice, faxinals, domestic contracts


Introdução1

É nítido para a maioria dos analistas que a estrutura de relação da


humanidade com o resto da natureza está em um momento crucial. Nesse
contexto, não está em questão apenas como conceber um sistema
socioeconômico que se sustente ao longo do tempo, mas também, e até para
poder realizar esse objetivo, cada vez mais analistas nos questionamos sobre
os fundamentos éticos que embasam a forma como nos relacionamos com os
seres e entes não humanos. Ganha espaço a compreensão de que sem o
segundo, a conquista do primeiro será acanhada, superficial e injusta. Neste
contexto, o tratamento dispensado aos animais no sistema agroalimentar
mostra-se como um dos desafios mais complexos e espinhosos. Ao pensar
sobre a questão animal, frequentemente se invoca o exemplo de outras
culturas, notadamente os povos indígenas, que estabelecem sua relação com
estes seres sob bases ontológicas radicalmente diferentes às ocidentais.
Também, já do seio da cultura ocidental há um conjunto de reflexões ético-
políticas que repensam e reformulam criticamente esta situação. Neste
trabalho, nos propomos a apresentar uma análise por um caminho diferente,
que é o de trazer a experiencia dos faxinais, comunidades tradicionais do sul
do Brasil, analisado a mesma sob o prisma da noção de contratos
domesticatórios. Fazemos isto, por entendermos que tal experiência é uma
fonte sugestiva de outras possibilidades para pensar a problemática animal, de
forma indissociável à justiça ambiental e a equidade territorial.

Os faxinais/caívas, criadouros comunitários e araucárias.

Ao longo da história da ocupação dos territórios da região sul do Brasil,


observa-se a formação de vários grupos e sujeitos sociais, que criam e recriam
os seus modos de vida, de acordo com a localização geográfica em que estão

1
Trabalho realizado com apoio do CNPq
inseridas e resistência às frentes de modernização do território, que alteram e
transformam o espaço através de relações urbano-industriais-capitalistas.
Dentre esses grupos, podemos citar povos indígenas, quilombolas, pescadores
artesanais, cipozeiros, caboclos e os povos faxinalenses. Estes, em particular,
só desenvolvem o seu modo de vida, com a presença da floresta com
araucária habitada por humanos e animais em configurações territoriais
específicas e elementos materiais e imateriais a elas relacionadas. Os povos
faxinalenses vivem em terras tradicionalmente ocupadas que tem como
principal característica o uso comum da terra e dos recursos naturais,
destacando a criação animal a solta, onde os animais transitam livremente
entre as propriedades da comunidade de faxinal (CHANG, 1988). E é dentro do
criadouro comunitário, que podemos perceber o estreitamento dos laços entre
humano e animal através de contratos domesticatórios específicos. Além disso,
a forma com o faxinalense se relaciona com a natureza, garante a preservação
da floresta com araucária, sendo assim a preservação e a valorização deste
modo de vida é de extrema importância não só para os faxinalenses como para
toda a sociedade envolvente (RAMOS, 2022).
Dentro do sistema faxinal existe uma relação entre a diversidade
biológica e os sistemas agrícolas tradicionais, que são somados ao uso e
manejo destes recursos, juntamente com o conhecimento e cultura destas
populações tradicionais e agricultores familiares. (IPE, 2020). No âmbito das
comunidades faxinalenses, podemos citar várias contribuições para a
preservação da floresta, sendo dentro da floresta com araucária que se situa o
criadouro comunitário e sem ele, não tem como manter o modo extensivo de
criação animal, o extrativismo da erva mate e do pinhão, é uma atividade
econômica importantíssima para a manutenção da comunidade (CORREIA,
2015). Sendo assim, e com os nossos relatos dos trabalhos de campo,
podemos dizer que as comunidades Faxinalenses/Caívas, tem uma ligação
muito forte com a floresta de araucária, o território e o seu modo de vida, que
pode ser considerado um modo de vida sustentável, em sua relação com
sociedade x natureza.
Uma outra característica marcante dos faxinais, mas que muitas vezes
não é tratada com a devida importância pelos teóricos, é a criação animal e das
produções extensivas dentro do sistema faxinal, a forma com que o animal é
tratado e criado, por muitas vezes é vista como atrasada e prejudicial, para um
o avanço do processo econômico e agrícola, principalmente por parte dos
municípios que abrigam essas comunidades. Porém é da forma tradicional, os
animais transitando por baixo da floresta com araucária, que a preservação da
floresta é garantida.
A manutenção do modo de vida faxinalense, vem ao longo dos anos
sendo ameaçada e se agrava com a falta de políticas públicas de incentivo a
permanecia desses agricultores no campo, que garantam no mínimo o básico
para a sobrevivência, a pobreza no campo, faz com que muitos proprietários
vendam suas terras para proprietários maiores, e venham para a cidades,
trabalhar como assalariado nas indústrias. (Cunha; Sahr, 2005; Löwen Sahr;
Iegelski, 2003).
A modernização da agricultura, fez com que grande parte das pessoas
que viviam no campo fossem para as cidades, no caso das comunidades
faxinalenses no centro-sul do Paraná e das caívas, no planalto norte
catarinense, não é diferente, muitas pessoas, sem ter como competir com a
agricultura moderna, vendem suas terras e migram para as cidades, como já
dissemos anteriormente.
Os diversas formas de tentativas de expansão do território através da
apropriação por espoliação da natureza, isso ligado fortemente ao coronelismo
e por seguinte a guerra do contestado, no inicio do século XX, abriu caminho
para a modernização do território, dentro do contexto da revolução verde, a
expansão da fronteira agrícola da soja, do milho a e implementação de
frigoríficos, transformaram essas comunidades faxinalenses/caívas, fizeram
com que essas comunidades, mesmo que resilientes, perdessem
características importantes do seu modo de vida.
Uma das características mais marcantes da comunidades faxinalenses é
justamente o criadouro comunitário, que apensar de não ser o único elemento,
é um dos mais importantes, pois é nele que acontece a interação com a
floresta com araucária, tanto pelos animais quando pelos seres humanos, e ali
que podemos identificar a prática dos contratos domesticatórios, que
especificaremos mais adiante.
Na maioria das comunidades faxinalenses/Caívas de Santa Catarina não
existe mais criadouro comunitário, no Paraná algumas famílias ainda mantêm
esta importante característica das comunidades faxinalenses, que fazem com
que o modo de vida dessas comunidades, seja único. Existem no Brasil, várias
outras comunidades que têm a característica do uso comum da terra e dos
recursos naturais, como os agricultores de fundo de pasto na Bahia, porém o
que faz uma faxinal ser faxinal é justamente a floresta com araucária. Júlio
Cezar Suzuki, compreende o conceito de modo de vida como sendo:

A forma como os moradores percebem, vivem e concebem o espaço,


mediados pelo conjunto de suas práticas cotidianas e por sua história,
posição que ocupam na sociedade envolvente e forma específica que
assegura a sua reprodução social, constituindo-se no modo pelo qual
o grupo social manifesta sua vida. O modo de vida se realiza, então,
a partir de dimensões materiais e imateriais, como forma de
apropriação e de reprodução das relações sociais em que se inserem
os sujeitos, definindo práticas territoriais, com produção de
territorialidades e territórios, relacionados, assim, à sociedade e à
natureza. (SUZUKI, 2013. p. 633)

Alguns autores como Chang (1988); Nerone (2000); Sahr (2006),


Foetsch (2014) apontaram elementos principais que identificam o território
faxinalense sendo eles como a presença da Floresta com Araucárias, o uso
coletivo da terra, porém existem outros vários elementos, que ajudam a
identificar o território faxinalense, podemos perceber que os mesmos se
encaixam nas dimensões materiais e imateriais propostas por Suzuki (2013).
O uso coletivo das terras e dos recursos naturais criam laços de
solidariedade com os proprietários de terras ou posseiros dentro das
comunidades faxinalenses, este torna-se explícito por meio das terras de uso
comum e do criadouro comunitário. Vale ressaltar, que mesmo as comunidades
faxinalenses/Caívas que não tem mais o criadouro comunitário, mantém os
traços de solidariedade com os outros moradores das comunidades
Faxinalenses/Caívas se manifesta nas relações de compadrio, parentesco,
como ceder alguns litros2 de terra, para o plantio, ou uma área de pasto,
(principalmente no inverno), para a criação animal.

2 Unidade de medida utilizada principalmente por pequenos agricultores, um litro de terra refere-se a
605 metros quadrados.
Nas áreas de criadouro, seja ele comunitário ou não, onde se cria o
gado alto e baixo, além de várias espécies de aves, que também são criadas à
solta, é neste espaço que os moradores dos faxinais expressam suas práticas
religiosas, sociais. (TAVARES, 2008), A criação de animal a solta, geram
também, laços de solidariedade entre humano e animal, este chamado por
Sordi (2019) de contratos domesticatórios, no qual falaremos com mais
profundidade adiante.
Devido às várias formas apropriação da natureza e posteriormente as
frentes de modernização que atingiram as comunidades faxinalenses, muitas
delas, deixaram de ter em seus territórios o criadouro comunitário, em
entrevista nos trabalhos de campo, os entrevistados nos relataram que o fim do
criadouro comunitário, se deu por conta da entrada de pessoas alheias ao
sistema faxinal, e que por conta disso, se foi perdendo a confiança entre as
famílias e cada um resolveu cercar o seu terreno.
Mesmo com as propriedades cercadas, a criação animal a solta continua
sendo umas das principais características das comunidades de
Faxinais/Caívas, pois a relação que os seres humanos tem com os animais, é
totalmente diferente da criação que atende aos interesses da indústria. Em
outras palavras, mesmo que os animais não sejam criados no criadouro
comunitário, o modo como que os faxinalenses, criam e cuidam desses
animais, continua da mesma forma de anos atrás.
Em trabalhos de campo, realizado na Comunidade Caíva de Bonetes em
Canoinhas-SC, entre os anos de 2021 e 2022, podemos observar essa
característica, em meio a área preservada de floresta ombrófila mista (mata
com araucária), os animais transitam livremente entre as propriedades de três
irmãos da família (Figura 1). Ali podemos observar as varias espécies entre os
galináceos e bovinos, convivendo, apesar do momento do registro não
aparecerem na foto, existe ali também a convivência com os suínos, que
também são criados a solta. Quando solicitado, seu G. F, foi até o galpão,
pegou a ração e chamou os animais, até os que estavam mais longe vieram
correndo, quando reconheceram a voz do dono. A cena fotografada a abaixo
se repetiu em todas as visitas feitas a família.
Figura 1: Trato com os animais, comunidade de Bonetes Canoinhas- SC

Fonte: RAMOS, 2021.

Em todas as comunidades visitadas, tanto no Paraná, com o faxinal


organizado como tal, tanto em Santa Catarina, notou-se a proximidade dos
animais com o humano, a Mangueira3, onde ficam as vacas, como os
mangueirões onde ficam os porcos, estão todos muitos próximos das casas,
assim fica claro, esta proximidade entre humano e animal, descrita por SORDI,
como contratos domesticatórios. Outra questão interessante, como já
descrevemos acima, todos os animais além de serem criados a solta, todas as
espécies ficam juntas, ou seja, elas comem (quando é feito o trato pelo seu
dono), saem a procura de alimentos, no mesmo ambiente, e conseguem
conviver na maioria das vezes em harmonia.

3
Curral, onde ficam o gado, para vacinar, ordenhar, tratar.
A noção de contrato domesticatório

A criação animal em contexto dos faxinais ocorre numa configuração


territorial específica, as terras de criar, na qual há um compartilhamento
espacial entre humanos e suas moradias e os animais e seus espaços de viver,
se alimentar, receber trato, se reproduzir, etc.
Este domínio, embora delimitado do espaço externo por cercas, não
contém fronteiras internas entre humanos e animais, dentro do qual estes
últimos vivem à solta, podendo circular pela mata de araucária, pelas oficinas e
depósitos de humanos, assim como pelas redondezas das moradias destes.
Trata-se, portanto, de uma “arquitetura da domesticação” (Anderson et al.
2017) – isto é, os modos pelos quais as relações entre seres de diferentes
espécies se inscrevem nas infraestruturas físicas e configurações materiais da
paisagem – em que a dominação/submissão do animal fica em segundo plano
com relação à colaboração/simbiose, desafiando dicotomias e concepções
convencionais.
Inevitavelmente, as interações entre humanos e animais ocorrem de
modo muito diferente a como ocorrem nos espaços de produção animal
configurados com base no que Porcher (2011) denomina de “ideologia
zootécnica”. Pelo contrário, os mesmos funcionam com base em contratos
domesticatórios (Larrére e Larrére, 2000; Oma, 2010; Sordi, 2019) implícitos,
nos quais a economia moral entre humanos e animais, com direitos e deveres
mútuos estabelecidos em um sistema de reciprocidade (Mauss, 2003) operam
em uma dinâmica fortemente apoiada na confiança e no cuidado.
Como todo processo domesticatório, não se trata, obviamente, de um
contrato plenamente simétrico, calcado na igualdade absoluta entre humanos e
animais, mas que cria um vínculo entre parceiros desiguais que lhes assegura
direitos e deveres mútuos, o qual, por sinal, vem sendo cultivado nos mais de
10.000 anos de processos de domesticação (Larrére e Larrére, 2000). Assim,
a dinâmica das relações de criação que se desenvolvem nestas terras de criar
chama fortemente a atenção em contraste com a lógica da ideologia zootécnica
(Porcher, 2011) e da pecuária industrial pela qual “os animais acabaram
reduzidos, na prática e não só na teoria, aos meros ‘objetos’ que os teóricos da
tradição ocidental sempre os supuseram ser” (Ingold, 2000, p 75).
Desta forma, entendemos que o conceito de contrato domesticatório
permite compreender diferentes modalidades de relação entre humanos e
animais de criação sem incorrer nas clássicas narrativas sobre o processo de
domesticação de inspiração utilitária, unilinear e evolucionista. A ideia do
contrato, portanto, aponta para a variedade e a diversidade local dos sistemas
domesticatórios (Cassidy e Leach, 2007; Sigaut, 1998); sua contingência,
reversibilidade e processualidade (Digard, 1988); bem como suas imbricações
morais, éticas e políticas em modos de vida específicos e suas concepções de
bem-viver. Por fim, o conceito de contrato domesticatório também auxilia a
iluminar o papel dos não-humanos dos processos de resistência dos povos e
comunidades tradicionais às formas predatórias e coloniais de exploração do
meio ambiente (Bulamah, 2022).

Observações de campo e reflexões resultantes

Do ponto de vista metodológico, o trabalho se apoiou em observações e


entrevistas realizadas pelos autores em trabalho de campo que teve lugar em
dezembro de 2022, na comunidade Faxinalense do Emboque, no município de
São Mateus do Sul/PR, e na Comunidade Caíva de Bonetes, Município de
Canoinhas/SC. As mesmas, são analisadas sob o prisma dos contratos
domesticatórios e da relação com o território que essas comunidades
estabelecem, inferindo delas elementos das moralidades ambientais destas
comunidades tradicionais. Entendemos que estas moralidades ambientais de
comunidades tradicionais constituem um elemento de extrema relevância não
só para serem respeitadas e garantidos seus direitos, mas também porque
constituem perspectivas de enorme valor heurístico para a sociedade
envolvente. Elas contêm caminhos e possibilidades para se repensar a relação
com os seres não humanos que não permanecem presos ao dualismo natureza
e cultura que estrutura e reproduz a problemática socioecológica atual.
Os conceitos de Justiça ambiental, segundo Selene Herculano (2002) é
um conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas,
sejam eles inseridos em comunidades tradicionais ou não, ou algum grupo
étnico, racial, ou classe social, tenha que suportar sozinhos, uma parte das
consequências ambientais negativas, causadas pelas frentes de modernização
do território, pelas políticas de governo aplicadas em escalas federais,
estaduais e municipais, ou pela ausência dessas políticas que ajudem na
preservação ambiental. (HERCULANO 2002). Com outras palavras justiça
ambiental trata-se “espacialização da justiça distributiva, uma vez que diz
respeito à distribuição do meio ambiente para os seres humanos”. (LOW &
GLEESON, apud LYNCH, 2001).
Já a injustiça ambiental é o a forma com que a sociedade urbano
industrial capitalista, destinam a maior parte dos danos ambientais do
desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa
renda, grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais
vulneráveis (HERCULANO, 2002. p. 3). No Brasil, temos vários casos de
Injustiças ambientais, é um tema de muita relevância que pode trazer diversas
contribuições, para esses povos que sofrem com questões relacionadas a
disputas e exploração do meio ambiente, que muitas vezes só reforçam ainda
mais as desigualdades sociais, que vem acompanhada na maioria das vezes
da extrema pobreza, e as péssimas condições gerais de vida a ela associadas.
Entre as várias injustiças ambientais que assolam o território brasileiro,
entre questões de poluição urbana, desmatamento, uso indiscriminado de
agrotóxicos, entre tantas outras questões, focamos aqui, nas injustiças
ambientais dos povos e comunidades tradicionais, em especial nas injustiças
ambientais das comunidades Faxinalenses/Caívas do Planalto Norte de Santa
Catarina, causadas principalmente pelos projetos de desenvolvimento a todo
custo.
Os faxinais do Paraná e as comunidades caívas de Santa Catarina, são
exemplos claros dessas injustiças ambientais, pois desde sua formação vem
sofrendo com as mudanças ocorridas em seus territórios, seja pela exploração
da madeira, que no caso de Santa Catarina se deu pela madeireira Lumber em
1912, deixou como herança no território do contestado um ecocídio 4, em que
foi destruído grande parte da Floresta com Araucárias, e que afetou toda a
biodiversidade ao seu redor, incluindo os povos faxinalenses, que dependem

4Ecocídio é uma expressão que pode ser usada para fazer referência a qualquer destruição
em larga escala do meio ambiente ou à sobre-exploração de recursos não-renováveis.
exclusivamente da Floresta com Araucárias para reproduzir o seu modo de
vida.
As comunidades faxinalenses/caívas, podemos observar claramente
esses casos de injustiças ambientais, essas comunidades como já dito
anteriormente, são as que mais contribuem para a preservação das florestas
com araucária, mananciais de água doce entre outros recursos naturais. Desde
a formação das primeiras comunidades faxinalenses tanto no estado do Paraná
quanto em Santa Catarina, essas comunidades vem sofrendo com as injustiças
ambientais. Como já citamos anteriormente o modo de vida faxinalense é
dependente da floresta com araucária, sem araucária não existe faxinal, e é
através da floresta que esse modo de vida se realiza, e por esse motivo ainda
manteve por anos, a preservação dos imensos pinheirais, que chamaram a
atenção das madeireiras.
A chegada das madeireiras no Centro-Sul Paranaense e Planalto Norte
de Santa Catarina, deu um início a uma serie de conflitos territoriais que
acarretaram profundas transformações no território, esse conflitos que se
iniciam no começo do século XX, mas que se prologam até meados da década
de 1970, intitulam um período da história do Brasil, no qual se que se intitula
como ciclo da madeira, que posteriormente deu lado a agricultura intensiva no
contexto da revolução verde.
As comunidades Faxinalenses/Caívas que resistiram a todos esses
processos, e ainda hoje continuam resistindo, atualmente ainda enfrentam,
mesmo que sem perceber as injustiças ambientais, pois mesmo sendo um dos
agentes principais da preservação de floresta com araucária, e ali imponha
limites do seu uso, como por exemplo a para o criadouro comunitário, a forma
com que se relaciona com os animais, é singular. Porém muitas vezes, para
complementar a renda, se vê obrigado a ter uma inserção parcial ao mercado.
Essa inserção mesmo que parcial ao mercado, faz com muitas dessas
comunidades precisem buscar alternativas, como o cultivo do tabaco, além de
ser um trabalho muito árduo, traz várias consequências para o meio ambiente,
como a poluição e envenenamento pela grande quantidade de agrotóxico, o
que não é exclusividade do tabaco, isso se repete com a monocultura da soja
convencional e do milho. Em trabalho de campo realizado no Faxinal do
Emboque em São Mateus do Sul-PR, os entrevistados nos relevam que
mesmo tendo uma área de cultivo de soja orgânica, é necessário o cultivo de
algumas áreas convencional.
Porém, mesmo com essas questões dos cultivos da soja convencional,
tabaco e o uso agrotóxico, por algumas dessas comunidades, podemos afirmar
que o modo de vida faxinalense/caíva traz esses princípios de uma ética
socioambiental satisfatória (Florit, 2019), pois eles mesmos sem perceber,
impõe limites no uso da natureza que os cerca, seja através da criação animal
e dos contratados domesticatórios, do uso de sementes crioulas, do cultivo de
orgânicos, e da utilização dos recursos da Floresta com Araucárias, o
extrativismo do pinhão, que é feito no tempo certo, o corte da erva mate, e a
utilização da madeira, somente para o que for necessário, permitindo assim, a
sua perpetuação.
Nas comunidades Faxinalenses/Caívas, estão claro estes casos de
injustiças ambientais, sendo que essas comunidades são as que mais
contribuem para a preservação das florestas com araucária, e os recursos
naturais. Desde suas primeiras formações, as comunidades faxinalenses
sofreram com a questão da injustiça ambiental, como já descrito anteriormente,
o modo de vida faxinalense, depende totalmente da Floresta com Araucárias, e
através dela que o seu modo de vida se realiza, assim foram preservados
imensos pinheirais de araucária e imbuia, que despertou o interesse de muitas
madeireiras, o que deu início a uma série de conflitos no início do século XX,
por conta dessa exploração da madeira, foi um período da história do sul do
Brasil, que se intitula como ciclo da madeira

Considerações Finais:

A trajetória das comunidades faxinalenses/caívas contribui para pensar


outra forma de desenvolvimento territorial, pautadas em uma ética
socioambiental, que é aplicada, mesmo que inconscientemente pelos
faxinalenses, no seu dia a dia na forma com que se relaciona com a natureza e
com os animais domésticos, através dos contratos domesticátórios. E mesmo
tendo tanto para contribuir, essas comunidades ainda sofrem com casos de
injustiça ambiental, causados na maioria das vezes pelo avanço das frentes
capitalista. Mas mesmo ainda assim resistem, se reinventam, ressignificam
suas territorialidades, modo de ser e estar no território, sendo que a tradição
recebida dos antepassados é mantida nos dias atuais, seja ela pela forma com
que se relacionam com a Floresta com Araucárias, suas práticas religiosas, e
os contratos domesticatórios, são reinventadas por conta dos diversos
conflitos, criando e recriando, constantemente, novas territorialidades,
mantendo assim o modo de vida faxinalense vivo.
Essas novas territorialidades, geram particularidades nos territórios,
faxinalense/Caíva no Planalto Norte de Santa Catarina, inclusive naquelas
comunidades que não mantém mais o criadouro comunitário, mantendo mesmo
assim contratos domesticatórios, a forma de uso da natureza, a as relações e
acordo comunitários, e a preservação da biodiversidade, ou seja, seu modo de
vida. Assim compreende-se que as comunidades Faxinalenses/Caívas, não
são um único território, no singular, mas com diferentes territórios e
territorialidades, que se firmam, através de dos seus vários processos
históricos, por meio de suas diferentes dimensões, política, social, cultural,
econômica, e que a natureza e a relação com os animais, é um elemento
constitutivo da sua organização social que se realiza através das dimensões
matérias e imateriais dos faxinais.
Assim, concluímos que o modo de vida dos faxinais aplicam uma
moralidade ambiental, a qual é compatível com uma ética socioambiental,
sendo elas: A proteção da floresta de araucária, proteção e sacralização de
olhos d’água, contratos domesticatórios e não coisificação dos animais,
racionalidades não exclusivamente mercantis com valorações múltiplas da
natureza, sendo que tudo isto resulta em limites morais ao uso da natureza.

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