Definitivamente, Simão

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 23

definitivamente, simão!

Definitivamente_Simao.indd 1 17/05/22 12:01


Definitivamente_Simao.indd 2 17/05/22 12:01
José Simão

Definitivamente,
Simão!
(Ou de como eu dancei com o Nureyev,
aplaudi o pôr do sol nas Dunas da Gal, chamei
um político de Picolé de Chuchu e virei
presidente do Partido da Genitália Nacional.)

Definitivamente_Simao.indd 3 17/05/22 12:01


Copyright © 2022 by José Simão

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa
Alceu Chiesorin Nunes

Foto de capa
Bob Wolfenson

Preparação
André Marinho

Revisão
Adriana Bairrada
Márcia Moura

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Simão, José
Definitivamente, Simão! : (Ou de como eu dancei com o
Nureyev, aplaudi o pôr do sol nas Dunas da Gal, chamei um
político de Picolé de Chuchu e virei presidente do Partido da
Genitália Nacional.) / José Simão. — 1ª ed. — Rio de Janeiro :
Objetiva, 2022.
isbn 978-85-390-0730-1
1. Jornalistas brasileiros 2. Memórias autobiográficas. i. Título.
22-107776 cdd-b869.803

Índice para catálogo sistemático:


1. Memórias : Literatura brasileira b869.803
Eliete Marques da Silva — Bibliotecária — crb-8/9380

[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Praça Floriano, 19, sala 3001 — Cinelândia
20031-050 — Rio de Janeiro — rj
Telefone: (21) 3993-7510
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
facebook.com/editoraobjetiva
instagram.com/editora_objetiva
twitter.com/edobjetiva

Definitivamente_Simao.indd 4 17/05/22 12:01


Para Gustavo

Definitivamente_Simao.indd 5 17/05/22 12:01


Definitivamente_Simao.indd 6 17/05/22 12:01
Sumário

Abre-alas! .................................................................................. 11

1. Descobrimento do Brasil: A invasão portuguesa ............ 16


2. Infância: O hominho do papai! ......................................... 19
3. São Paulo: Minha terra firme! ........................................... 24
4. Família: Meu pai, minha mãe e meu irmão ..................... 29
5. Adolescência: Transei atrás do cemitério! ....................... 32
6. Ditadura: Medo de camburão ........................................... 36
7. As dunas do barato: Anos 1970......................................... 41
8. Folias brejeiras: As Anittas dos anos 1950! ..................... 45
9. Elvira Pagã: Cassetete, não! ............................................... 49
10. Virgínia Lane: Tem Bububu no Bobobó! ....................... 52
11. Luz del Fuego: A mulher das cobras ............................... 55
12. Mara Rúbia: A rainha das escadarias .............................. 58
13. Bahia: A terra que me escolheu! ...................................... 61
14. Arembepe: A praia mágica da Bahia ............................... 66
15. Itapuã: Uma love story baiana .......................................... 74
16. Rose, Neide e Ura: Três vidas bem brasileiras .............. 78
17. A Mulher Gorila! A Mulher Serpente! E a Malévola! .. 82

Definitivamente_Simao.indd 7 17/05/22 12:01


18. Televisão: As novelas que vivi .......................................... 85
19. Os anos do rock: Minha vida era dançar! ...................... 89
20. Aí eu entrei na Folha! ....................................................... 94
21. Políticos: A turma da tarja preta ...................................... 99
22. Os marqueteiros, os truqueiros! ..................................... 111
23. Impeachment do Collor: A queda do aquilo roxo! ....... 114
24. Gustavo: O divino conteúdo .......................................... 118
25. Avenida Paulista: O fetiche ............................................. 122
26. Carnaval: A grande festa da gandaia nacional! .............. 126
27. Festas juninas: Viva o milho-verde! ................................ 130
28. Viva o humor, abaixo o rancor! ....................................... 133
29. Letras: A arte de escrever ................................................ 137
30. Terapia: Tirar as minhocas para fora! ............................. 141
31. Religião: Ateu místico! ...................................................... 146
32. Egito: Eu falei faraó! ........................................................ 151
33. Istambul: Nós, os turcos! ................................................. 159
34. Jordânia: A Bíblia viva! ..................................................... 165
35. Dubai: Business is Business! ........................................... 171
36. Miami: O Morumbi de Cuba ......................................... 175
37. Cuba: A viagem que não fiz! ............................................ 178
38. Portugal: Saudades! .......................................................... 182
39. A Itália é hétera! ................................................................ 187
40. China: A multidão! ........................................................... 193
41. Ceará: Iracema, a virgem dos lábios de mel .................. 199
42. A viagem, o voo e o avião ................................................. 203
43. Copa de 94: Ganhamos, apesar do Parreira! ................ 207
44. Copa de 98: A amarelada! ............................................... 212
45. Copa no Brasil: A Copa do não vai ter Copa! ............... 215
46. Peladeiros do Brasil: Na várzea não tem var! .............. 218
47. A voz: BandNews fm ................................................. 221
48. A dupla pipoca: Eu e Boechat ........................................ 225

Definitivamente_Simao.indd 8 17/05/22 12:01


49. Três p: Prêmios, processos e palestras! ......................... 230
50. O arrependimento: Fundamental! ................................. 235
51. Hipocondria: Sou eu!........................................................ 236
52. Televisão: Amiga amada! .................................................. 241
53. Teletrash: Bagaças e podreras! ......................................... 247
54. Meus gatos: Net e Flix! .................................................... 251
55. Minha diarista: Adriana sendo Adriana! ........................ 255
56. O isolamento: Os ombros não relaxam! ........................ 258
57. Genocídio: Pandemia no Brasil! ...................................... 261
58. WhatsApp: Não vivo sem você! ...................................... 264
59. Minha vida com Alexa! .................................................... 268
60. Sensacionalismo: Trailer para o próximo livro ............. 272
61. Velhice: O inesperado! ..................................................... 275

Definitivamente_Simao.indd 9 17/05/22 12:01


Definitivamente_Simao.indd 10 17/05/22 12:01
Abre-alas!

Lillian Hellman disse que quem escreve é paranoico.


Gabriel García Márquez declarou que a ortografia é o terror
do ser humano. Desde o berço!
Gertrude Stein escreveu que uma rosa é uma rosa é uma rosa
é uma rosa!
Minha diarista escreveu: “Estou atrasada. Jonathan tem que
fazer algo”. Amei esse “algo”! Tão abstrato e solto no espaço.
Augusto de Campos: língua linguagem!
Carlos Drummond de Andrade escreveu que

no meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Shakespeare escreveu “to be or not to be”!


Oswald de Andrade escreveu tupi or not tupi!
Castro Alves declamou:

11

Definitivamente_Simao.indd 11 17/05/22 12:01


Talhado para as grandezas
Pra crescer, criar, subir
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir!

Clarice escreveu porque o que ela sabia fazer era escrever.


O que você sabe fazer?
escrever!

Este livro foi concebido nas mesas do bistrô Ritz, na alameda


Franca. Eu marcava com o Matinas Suzuki Jr. pelo WhatsApp:
“Old Ritz?”
“Old Ritz.”
“Treze horas.”
“Fechado!”
Num almoço, Matinas me deu Memórias de um homem sem
profissão, de Oswald de Andrade.
Devorei!
Tive uma ideia: por que não contar a História do Brasil através
das minhas memórias sentimentais?
Não é um livro clássico de memórias. São memórias do co-
ração. O fio condutor é o coração. Aquele coração vermelho
pulsando da internet!
É um livro afetivo!
Este livro é a minha História do Brasil! Sou apaixonado pelo
Brasil. O Brasil me emociona. O Brasil está presente em todos
os capítulos.
Já viajei pelo mundo todo. Mas como disse aquela senhorinha
baiana: “Como a terrinha não há”. Não há!
Nelson Rodrigues quando chegava em Bonsucesso já sentia
saudades do Rio.

12

Definitivamente_Simao.indd 12 17/05/22 12:01


Não é um livro homenagem ao Brasil. Mostra um Brasil desi-
gual, um Brasil alegre, um Brasil que se conformou, um Brasil
que luta, um Brasil da folia. Um Brasil que eu sinto!
Bolsonaro transformou o Brasil no pior país para se viver. Mas
nem assim perdi o bom humor! Como disse aquela baiana que
veio morar em São Paulo: “Eu não atravessei a caatinga pra ficar
de mau humor!”.
Matinas me jogou duas luzes fundamentais. Enviei o terceiro
texto pra ele por e-mail. Respondeu:
“Simão, isso que dá consistência ao livro.”
Entendi.
E mandei brasa!
Mudou o rumo do livro. Mudou meu rumo.
Outra luz, ele me disse:
“Coloquei seus textos no Word e não deu nem oitenta páginas.
O livro não para em pé!”.
Tinha que escrever um livro que parasse em pé!
Na realidade, ele sabia que eu tinha muito mais coisas para
contar. E foi arrancando do fundo das minhas memórias.
Esse livro foi escrito às cinco e meia da manhã, a melhor
hora para pensar. Você começa a pensar no escuro e a manhã vai
clareando e você passa a pensar no claro. Pensar no escuro não
é como pensar no claro. Comigo pelo menos é assim! Eu penso
no escuro e escrevo no claro.
Tenho um grupo de madrugadores:
Raul Cutait “assunto do e-mail: madrugador”, ele já responde:
“Salve, Zé!”.
Zeca Camargo se antecipa, acorda às cinco!
Matinas é madrugador. Também, com esse nome!
Astrid Fontenelle virou madrugadora. E tantos mais!

13

Definitivamente_Simao.indd 13 17/05/22 12:01


Aprendi com o poeta Augusto de Campos que as palavras são
células vivas!
Minhas frases são células livres! Elas são soltas no espaço!
Cada capítulo é composto de frases!
Passo o dia pensando em frases!
O meu dia virou frases!
Eu devia ter aqueles letreiros luminosos giratórios na testa!
As frases ficariam rodando. Esse seria o livro!
Sempre digo que o ritmo é tão importante quanto o conteúdo.
Às vezes tinha um assunto para contar, mas pensava: “Não, é
muito chato. Vai aborrecer o leitor”.
O leitor tem um controle remoto na cabeça!
O livro não é sagrado, como a maioria pensa. É um objeto
de prazer!
Você faz o que quiser com ele. Inclusive não ler!
Eu pulo páginas!
Eu já li livro de trás pra frente!
Livro não é um objeto morto das estantes da Academia Bra-
sileira de Letras!
Minha estante é pequena. Só guardo livros que realmente me
interessam!
Livros mais leves que eu sei que não vou ler de novo, doo
para ongs!
Mas tem livros que leio sempre.
Todo dia leio um verso de Poesias completas de Bob Dylan, de
poesias de João Cabral e um trecho de Clarice Lispector.
Pinky Wainer me deu uma edição de Alice B. Toklas, de Ger-
turde Stein. Ilustrado com aquarelas belíssimas! Esse está na
estante com a capa exposta como um objeto!
Minhas memórias! Um livro que mexe com o corpo da gente!
É um livro escrito com prazer!

14

Definitivamente_Simao.indd 14 17/05/22 12:01


Nada dá certo sem tesão!
Acordava pensando: “Oba! Hoje vai ter textão!”.
Capítulo eu chamo de textão!
Um livro que às vezes foi muito doloroso.
Como a morte do meu irmão, a ditadura, a minha mãe al-
coólatra.
E outros eu pulava de prazer: Bahia, Carnaval, adolescência,
os anos do rock!
Amor e dor.
Escrito com sinceridade.
Encarando o amor e a dor!
Mas escrito com prazer!
O textão das memórias do coração!
Ai, que vida mais vivida!

15

Definitivamente_Simao.indd 15 17/05/22 12:01


1. Descobrimento do Brasil:
A invasão portuguesa

O Gabeira disse que as velas das caravelas eram feitas de cânha-


mo. Maconha! Por isso que Cabral saiu para as Índias e acabou
batendo no Brasil. Ficou sem noção!
Os portugueses viram os índios e levaram um susto. Os índios
viram os portugueses e levaram um susto. O descobrimento do
Brasil foi um susto!
O Brasil é a terra da putaria porque foi batizado com o nome
de um pau: Pau-brasil!
Pero Vaz de Caminha escreveu uma carta ao rei de Portugal
pedindo emprego para o cunhado. E aí nasceu o mdb. Pero Vaz
de Caminha foi o fundador do mdb!
A Primeira Missa!
A Cruz!
O mico no galho com os olhos esbugalhados!
Anos mais tarde a índia Bartira deitada na rede: “Ouço pas-
sos, é João Ramalho”. João Ramalho foi casado com a tibiriçá
Bartira.
Em Portugal, era casado com Catarina das Vacas! Bartira é a
tetravó da tetravó da Lygia Fagundes Telles!

16

Definitivamente_Simao.indd 16 17/05/22 12:01


Índio gay se chama “menos guerreiro”. E usa produtos de
maquiagem da mac!
Chegaram os negros. Os pretos. As costas lanhadas!
A foto do pretinho servindo de mula pra sinhá-moça!
Os bandeirantes com as barbas sujas de feijão invadiram tudo.
Tudo destruíam. Tudo que se mexia matavam. E tem muita família
tradicional que se orgulha de ser descendente de Borba Gato!
Que virou estátua na avenida Santo Amaro, em São Paulo. Uma
das estátuas mais horrendas do planeta, um monstrumento!
Em 2021, queimaram a estátua. Deviam queimar todas. As
estátuas enfeiaram as cidades!
Lampião exibe seu lado fashion numa máquina de costura.
Lampião estupra as meninas. Lampião se encontra com Meu
Padim Padre Cícero. Os cangaceiros tiveram as cabeças cortadas
e exibidas nas portas das igrejas!
Agreste! O beato sobe a montanha!
Um branquelo de óculos chega na selva com uma Bíblia na
mão. O etnocídio!
A arara! Existe bicho mais lindo que arara?
Brasília: um disco voador no cerrado!
Acho que Niemeyer foi abduzido. Voltou pra prancheta e
desenhou Brasília.
Regina Casé, num dos melhores programas sobre Portugal,
pergunta a uma portuguesa na janela:
“O Brasil ainda pertence aos portugueses?”
“Pertence.”
“Então quer que eu entre e faça o seu almoço?”
Regina vai à terra de Pedro Álvares Cabral. Procura na lista
telefônica alguém de sobrenome Cabral. Liga do orelhão. “Pois,
pois”, o alguém atende. “Quem fala?”, pergunta Regina. E a res-
posta do outro lado: “Você!”.

17

Definitivamente_Simao.indd 17 17/05/22 12:01


Dom Pedro i levanta a espada e foi comer a Marquesa de
Santos!
Ademar de Barros, governador de São Paulo, roubou uma urna
marajoara. E jogou no fundo do quintal!
São Paulo não pode parar. São Paulo não pode parar porque
não tem estacionamento!
Os japoneses vieram no Kasato Maru. Os italianos vieram para
as fazendas… e viraram os donos. E São Paulo parece a capital do
Líbano: Haddad, Kassab, Maluf, Skaf e Alckmin!
Os muçulmanos foram para o Nordeste, se casaram com as
sertanejas e esfolaram o carneiro! Com cortes precisos nunca
vistos na região!
Os nigerianos vendem panos no chão de São Paulo! Alguns
dançam black music na porta de um bar em frente ao Sesc 24
de Maio!
2021: “Mãe, se eu virar polícia eu fico branco?”.
O mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar!

18

Definitivamente_Simao.indd 18 17/05/22 12:01


2. Infância:
O hominho do papai!

Meu avô cochilava embaixo de um relógio cuco.


A gente puxava o cordão do cuco e saía correndo!
Minha família tinha uma empregada espírita que se comuni-
cava com a Evita Perón!
Na esquina da casa de meu avô, em São João da Boa Vista,
tinha um puteiro.
Passamos pela frente e, pela janela, eu vi uma penteadeira.
Penteadeira e janela eram fundamentais para uma prostituta!
No dia seguinte passei sozinho e em cima da penteadeira avis-
tei um objeto fascinante: uma dançarina do ventre de borracha!
A puta notou meu interesse, veio até a janela e apertou o objeto
por baixo: a dançarina começou a se mexer. Espanto!
Nunca tinha visto um objeto em movimento! Muito menos
uma coisa erótica como uma dançarina do ventre!
Fiquei absolutamente fascinado. Era show business!
Passei a ir todo dia. A puta era simpática, farta!
Pense numa imagem: uma parede enorme, metade amarela e
metade branca, uma janela, uma puta grandona e eu pequeninho
na ponta dos pés.

19

Definitivamente_Simao.indd 19 17/05/22 12:01


Olhos arregalados. Vendo o espetáculo!
Clarice Lispector menina em Recife teria descrito essa cena
melhor do que eu!
Meu primo gostava de ir pisando nos vidros até a fábrica de
guaraná. Atrás da casa dele!
Pela frente passava boiada. Era lá que eu passava as férias. A
gente dormia de pijama de flanela!
Eu era asmático! Pai médico.
Meu pai era uma mãe judia!
Meu pai era uma mãe de Almodóvar!
Mimado!
Toda vez que eu chorava, meu pai me pegava no colo e dizia:
o que fizeram com o hominho do papai?!
Uma manhã no Jardim Botânico fui atacado pelos gansos.
Joguei pedras nos gansos e eles me atacaram. Fui salvo pelo colo
do meu pai!
Passávamos o verão numa pensão em Santos. O garçom imi-
tava Carmen Miranda!
Os hóspedes pediam: “Juca, imita a Carmen Miranda”. E ele
revirava os olhos, jogava os braços pro alto e começava a gesti-
cular. Era show business!
Eu tinha seis anos. A mulher que trabalhava lá em casa se
chamava Cleusa.
Nas noites de sábado ela dançava rumba num circo!
Ela me levava pra escola. Ia na frente dançando rumba no
trilho do bonde. Parecia Fellini!
Foi aí que começou minha fascinação pelo show business!
Eu era asmático!
Aos nove anos já tinha lido textos de Proust! Hoje conto pros
meus amigos e eles gritam: “ah, que frescura!”.

20

Definitivamente_Simao.indd 20 17/05/22 12:01


Fiquei de castigo no colégio. Sem recreio! Por ter sido sarcásti-
co com a professora. A tia me trouxe um copo d’água da moringa.
Eu era o primeiro preso político!
Eu era asmático!
Eu não tinha amigos. Em vez de jogar bola na rua, ia pra casa
da vizinha com uma panelinha de água fervendo com uma seringa
dentro. A vizinha aplicava a injeção. Eu era feliz!
Sempre gostei que cuidassem de mim!
Até hoje sou assim. Se não consigo abrir um pacote de bolacha
olho com olhos de socorro para o mais próximo.
mimado!
Todos gostam de tomar conta de mim.
Do hominho do papai!
Dormia no mesmo quarto com meu irmão. Que ouvia pro-
gramas de terror no rádio.
Nossa casa era um sobrado e havia uma velha escada de ma-
deira que rangia. Da minha cama, eu ouvia passos!
Se eu tivesse um quarto só pra mim não estaria ouvindo terror,
estaria ouvindo a Ângela Maria!
Eu tinha uma cachorrinha chamada Bolinha.
Meus pais deram a cachorrinha em segredo!
Entrei no porão da casa com uma vela acesa gritando: “Bolinha!
Bolinha!”. Meus pais ficaram surpresos com a minha reação. Ou
seja, não entendiam nada de estimação!
Amava e ainda amo os animais.
Detesto cadeia alimentar! Quando o leão avança em cima de
um filhote de búfalo, fecho os olhos e mudo de canal, rápido!
Um dia, tio Feres deixou um cabrito para ser guardado em
casa. Fiquei amigo do cabrito. Noutro dia, apareceu e levou o
cabrito. Para ser devorado no banquete de Ramadã!

21

Definitivamente_Simao.indd 21 17/05/22 12:01


Perto do Natal meus pais compraram um peru. Mas esse eu
sabia que ia morrer!
Eu bebi a água do peru! Quando levaram o peru para ser exe-
cutado, eu me vi sozinho no quintal. E bebi a água do peru!
Meu avô foi capitão da Guarda Nacional. Na parede tinha
pendurado uma espada e a foto da família imperial. Em São João
da Boa Vista.
Ele usava terno jaquetão e engraxava a sola do sapato. Uma
noite o gato mijou no jaquetão! De vingança ele pegou um esgui-
cho e molhou a minha avó!
Toda noite meu avô ia ao cinema. No Teatro Municipal. E
sentava na mesma cadeira.
A cidade inteira sabia que aquela era a cadeira dele. Uma noite
chegou um forasteiro e sentou na cadeira dele. Meu avô entrou,
olhou, foi embora e nunca mais voltou!
Meu tio João Batista era desembargador e muito rico. A família
contava com a herança. Como certa!
Quando ele morreu, deixou todo o dinheiro para uma puta.
Ele tinha um caso com essa puta em segredo, por dez anos! A
puta ficou rica!
A gente não podia passar em frente à casa da puta. Pelo de-
saforo. Tinha que dar a volta no quarteirão.
A puta morreu e deixou todo o dinheiro para a Santa Casa.
Que em agradecimento erigiu uma estátua no portão. A puta virou
estátua! E a família ávida pela herança, sem um tostão!
Tia Sinharinha usava cabelo roxo e peles de raposa no calor
de São João!
Minha mãe não apitava nada. Perguntei:
“Mãe, vamos na sessão dupla do Cine Cruzeiro?”
“Se o seu pai deixar!”
Meu pai tinha um Mercury 48!

22

Definitivamente_Simao.indd 22 17/05/22 12:01


O carro era uma novidade no interior. Entrava em São João
buzinando! Da casa do meu avô pulávamos de alegria. Ele estava
chegando!
Infância!
O Pato Donald não tinha pinto!
Eu não ligava para o meu pinto!
A infância acaba quando?
Quero dizer e-xa-ta-men-te quando?

23

Definitivamente_Simao.indd 23 17/05/22 12:01

Você também pode gostar