Romanceiro Da Inconfidência: Poemas Que Contam A História: Temporis (Ação) Goiás, v. 1, N. 10, 2010
Romanceiro Da Inconfidência: Poemas Que Contam A História: Temporis (Ação) Goiás, v. 1, N. 10, 2010
Romanceiro Da Inconfidência: Poemas Que Contam A História: Temporis (Ação) Goiás, v. 1, N. 10, 2010
RESUMO
1
Mestrandra em Estudos Literários pela UFG. [email protected]
temporis[ação]; Goiás, v. 1, n. 10, 2010. 2
...
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
- liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
2
– Doravante, qualquer citação do Romanceiro da Inconfidência vai conter apenas o número da página
correspondente à 19ª impressão da Editora Nova Fronteira de 1989.
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...
(Ai, ouro negro das brenhas,
ai, ouro negro dos rios...
Por ti trabalham os pobres,
por ti padecem os ricos.
Por ti, mais por essas pedras
que, com seu límpido brilho,
mudam a face do mundo,
tornam os reis intranqüilos!
Em largas mesas solenes,
vão redigindo os ministros
cartas, alvarás, decretos,
e fabricando delitos.)
(RI, p. 76)
Destacam-se ainda, nas estrofes acima, a dualidade dos sentimentos, das ações e
das características do ser humano: riqueza e miséria, ódio e amor, bem e mal, mentiras e
verdades, liberdade e opressão.
3
- “Romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, são intensamente auto-reflexivos e mesmo
assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos”.
(HUTCHEON, 1991, p.21)
4
- Cultura que usa e abusa das convenções do discurso, problematiza, contradiz e desafia todo o nosso
conceito de conhecimento histórico e literário, bem como a consciência que temos sobre nossa implicação
ideológica na cultura que predomina à nossa volta. (HUTCHEON, 1991)
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Vale lembrar que a análise de uma obra literária deve basear-se na sua essência e
para isso é preciso convergir a atenção para a expressão do “eu” dentro da linguagem
conotativa do universo poético do autor. Ao abordar a Inconfidência Mineira, Cecília
Meireles conseguiu dar a ela um enfoque poético inédito, em que a imaginação se junta
ao factual sem que um exclua o outro, além de passar ao largo do jugo disciplinar da
História. Ora, justamente o “momento histórico” fez-se essencial nessa projeção
subjetiva da poeta, não pelo sentido comum da retratação de uma cena historicamente
comprovada, mas no tom de lamento e na expectativa emocionada e indignada da
condição humana, porque ela trata não o acontecimento em si, mas o sentimento que ele
representa e tece com o fio da História uma leitura do símbolo nacional e evidencia para
os brasileiros como a questão da nacionalidade ainda se lhes apresenta de maneira
dolorosa. Cecília Meireles, no ROMANCE LIX ou DA REFLEXÃO DOS JUSTOS, é
enfática e realista, sem, contudo, ser dura:
A reflexão contida nos versos anteriores é tão atemporal quanto oportuna porque
descerra aspectos subjacentes aos fatos históricos, uma das possibilidades que a
metaficção pode proporcionar ao leitor, pois, para Linda Hutcheon (1991, p.22), “a
autoconsciência teórica da metaficção historiográfica sobre a História e a ficção como
criações humanas passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração das formas e
dos conteúdos do passado”, já que é uma narrativa que incorpora a literatura, a ciência e
a teoria. Hutcheon (1991, p.152) faz, entretanto, uma ressalva, esclarecendo que essa
incorporação de dados históricos ao poema não visa a uma assimilação, mas uma
“acessibilidade textualizada” (processos de escrita e sua ênfase na subjetividade) dos
fatos históricos para tentar dar-lhes sentido.
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Como Linda Hutcheon (1991), outro teórico que muito tem contribuído para o
questionamento da relação entre Literatura e História é Hayden White, que diz:
Qualquer episódio histórico – de uma revolução ou de uma guerra, por exemplo – pode
ser decomposto numa multidão de momentos psíquicos e individuais (grifo do autor).
Cada um desses momentos, por sua vez, pode ser traduzido numa manifestação de algum
processo mais fundamental de evoluções inconscientes[...] (2001, p.71)
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!
(RI, p. 37)
poetizar (grifo do autor) não é uma atividade que paira sobre a vida ou a realidade, que as
transcende ou permanece alienada delas, mas representa um modo de práxis que serve de
base imediata para toda atividade cultural (sendo esta tanto uma idéia de Vico, Hegel e
Nietzche, quanto de Freud e Lévi-Strauss), e até mesmo para a ciência. Já não somos
obrigados, pois, a acreditar – como os historiadores do período pós-romântico – que a
ficção é a antítese do fato (como a superstição ou a magia é a antítese da ciência) ou que
podemos relacionar os fatos entre si sem o auxilio de qualquer matriz capacitadora e
genericamente ficcional. (WHITE, 2001, p.142).
aludida apenas por “pensamentos” que estão presos por “inabaláveis muros” e abafados
como rezas caídas em “desertos sem ouvido”. O uso de palavras e expressões em tom
obscuro como “sombra e umidade”, “céu preso numa grade”, “Desaparecem todos os
vultos”, “Lutuoso véu”, “diáfana paragem”, “Deus se reparte”, “amarga”, entre outras,
reproduzem o espírito e a expectativa do povo diante do sonho frustrado de alcançar a
independência e, por fim, uma conclusão emocionada diante da trágica realidade e do
dramático destino de Tiradentes: o que resta fazer sobre “Ofícios” “transfigurados” em
“sacrifícios”?
Em artigo publicado pela revista Estudos Históricos (1991, p.24), Hayden White
citou Jacques Barzun para frisar que a História só é acessível por meio da linguagem em
forma de discurso e que esse “discurso tem que ser escrito antes de poder ser digerido
como História”. Com o ideário iluminista e a proclamação do império da razão,
as memórias construídas a partir de relatos, passaram pela profissionalização do
discurso e, como tal, passou a ser compreendido como produtor de um tipo distinto de
conhecimento. Entende-se daí que a narrativa é o tipo de discurso predominante da
historiografia, por ser, na verdade, típica interpretação dos eventos, das pessoas, das
estruturas e dos processos do passado.
5
- “Os eventos acontecem, os fatos são constituídos pela descrição lingüística, o modo da linguagem
usado para constituir os fatos pode ser formalizado e governado por regras, como os discursos científicos
e tradicionais; pode ser relativamente livre, como em todo discurso literário modernista, ou pode ser uma
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apenas, e sim é feita” (WHITE,1991, p.36), o que equivaleria a uma narrativa histórica
construída a partir da visão de mundo do historiador e não somente pela apreensão de
dados exteriores com efeito explicativo, pois um acontecimento histórico não é
transparente por inteiro. É muito mais uma construção feita e refeita pelo historiador, de
acordo com as suas perspectivas individuais. Continuando sua análise, White (1991)
acusa a História de manter-se presa ao círculo tautológico do registro documental,
cronologicamente ordenado à coerência formal do tipo de estrutura-de-enredo, com
aspectos descritivos e explanatórios e classifica-o como relatório arquivista dos fatos,
em que sua racionalidade deliberativa priva-o de suas pretensões de fornecer verdades
sobre o conhecimento dos seus objetos de estudo.
Alguns aspectos elencados por Hayden White (1991) como sendo importantes
para o significado da narrativa histórica – por exemplo, a visão de mundo, a fala
figurativa e a reflexividade – são parte da natureza do Romanceiro da Inconfidência
como obra literária e, certamente, são os responsáveis pelo seu sentido e
correspondência, tanto na representação particular como na significação universal.
Mesmo originando-se de uma verdade, mesmo comprovado por registros documentais e
mesmo contendo tempo e espaço determinados, o Romanceiro foge da racionalidade e
da coerência a que se referiu White (1991) e rompe a barreira conceitual e informativa
para sugerir a dimensão humana que se encobre por trás da página obscura do
...
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Memórias, relatos, escritos publicados, arquivos, monumentos.
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Considerar o mundo como um sistema de relações entre meios e fins.
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Peter Burke (1992) acredita que a Literatura pode oferecer técnicas que auxiliem
a historiografia numa forma que concilie a esfera das estruturas com a dos
acontecimentos. Entre eles, o método de narração regressivo e a articulação de diversos
pontos de vista sobre um assunto, fazendo com que o leitor perceba a pressão do
passado sobre as sociedades, ao mesmo tempo em que deixa claro que o papel do
historiador como narrador não é neutro nem definitivo. Quando Peter Burke diz que “o
historiador necessita, como o romancista, praticar a heteroglassia 8” (1992, p.336), ele o
coloca numa posição de observador, que poderia, também, analisar os acontecimentos.
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- Vozes variadas e opostas (BURQUE, 1992, p.15)
9
Opinião das pessoas comuns e com sua experiência da mudança social.
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uma natureza fictícia e de uma base no real, pois integra a História ao âmbito do
amadurecimento humano, numa relação mundo-palavra. Um mergulho em suas
entrelinhas revela um repertório sócio-político-cultural em versos como estes abaixo,
presentes no CENÁRIO I:
Parece claro, então, que ao colocar num passado atemporal e sensível o padrão
de referência identitário da Inconfidência Mineira, Cecília Meireles consegue a
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Treva da noite,
lanosa capa
nos ombros curvos
dos altos montes
aglomerados...
Agora, tudo
jaz em silêncio:
amor, inveja,
ódio, inocência,
no imenso tempo
se estão levando...
Grosso cascalho
da humana vida...
Negros orgulhos.
ingênua audácia,
e fingimentos
e covardias
(e covardias!)
vão dando voltas
no imenso tempo,
- à água implacável
do tempo imenso,
rodando soltos,
com sua rude
miséria exposta...
Parada noite,
Suspensa em bruma:
não, não se avistam
os fundos leitos...
Mas, no horizonte
do que é memória
da eternidade,
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referve o embate
de antigas horas,
de antigos fatos,
de homens antigos.
E aqui ficamos
todos contritos,
a ouvir a névoa
o desconforme,
submerso curso
dessa torrente
do purgatório...
ABSTRACT
The Romanceiro da Inconfidência, by Cecília Meireles, is a masterpiece that had as motivation and bases
of creation a history event, happened in MG, in 1789, the “Inconfidência Mineira”. Poetically, the author
submits the emotions and experiences to the fact that literary assumptions that affect the flow imaginative
and, in search of the essence, beyond the borders of practicality and theory to involve the history in a
context that incorporates parts of reality, the meanings reflective, representative and metaphysical. This
research proposes the examination of the relationship of interaction/link between literature and history,
from Romanceiro da Inconfidência as corpus for analysis, and seeks support theoretical in Historiografic
Metaffiction, it will try the articulation of ideas of Linda Hutcheon with those of Hayden White, among
others.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Pedro. Cecília Meireles (entrevista). In: Revista Manchete. Rio de Janeiro, nº 630, p.34-37,
1964.
BURKE, Peter. A História dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: A Escrita da História:
novas perspectivas. São Paulo: Ed.Unesp, 1992.
COUTINHO, Afrânio. As formas da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Block Editores, 1984.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo (Tradução de Ricardo Cruz). Rio de Janeiro: Imago,
1991.
LIMA, Luiz Costa. História.Ficção.Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
WHITE, Hayden. Teoria Literária e Escrita da História. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro. Vol.7.
nº13, 1991. p.21-48. Disponível em www.cpdoc.fgv/revista/aps/dsp acessado em julho de 2008.
______ _______. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura (Tradução de Alípio Correia
de França Neto). 2 ed. São Paulo: Edusp, 2001.