Tese LairAmaroDosSantosFaria

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de História
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

LAIR AMARO DOS SANTOS FARIA

“FAZEI ISSO EM MINHA MEMÓRIA” (Lc 22:19):


COMPARANDO MEMÓRIAS NOS EVANGELHOS
SINÓTICOS E NO EVANGELHO DE TOMÉ NA BUSCA DO
JESUS HISTÓRICO

ORIENTADOR: PROF. DR.º ANDRÉ LEONARDO CHEVITARESE

RIO DE JANEIRO
2016
2

Lair Amaro dos Santos Faria

“FAZEI ISSO EM MINHA MEMÓRIA” (Lc 22:19):


COMPARANDO MEMÓRIAS NOS EVANGELHOS SINÓTICOS E
NO EVANGELHO DE TOMÉ NA BUSCA DO JESUS HISTÓRICO

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História Comparada, Instituto de
História, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisito parcial à obtenção do título de
Doutor em História.

Orientador: André Leonardo Chevitarese


Linha de Pesquisa: Poder e Discurso

Rio de Janeiro
2016
Ficha Catalográfica

FARIA, Lair A. dos S.


“Fazei isso em minha memória” (Lc 22:19): comparando memórias
nos evangelhos sinóticos e no evangelho de Tomé na busca do
Jesus Histórico / Lair Amaro dos Santos Faria. – 2015.

Tese (Doutorado em História Comparada) – Universidade


Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós-
Graduação em História Comparada, Rio de Janeiro, 2015.

Orientador: André Leonardo Chevitarese

1. História Antiga. 2. Paleocristianismos. 3. Evangelhos Canônicos


e Não Canônicos. 4. Estudos sobre Memória. 5. Oralidade e
Letramento. – Teses.
I. Chevitarese, André Leonardo (Orient.).
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de História.
III. Título
2

Banca Examinadora

Titulares

_______________________________________________
André Leonardo Chevitarese (Orientador)
Doutor – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

__________________________________
Flávio dos Santos Gomes
Doutor – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

__________________________________
José Costa d’Assunção Barros
Doutor – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

__________________________________
Renata Rozental Sancovsky
Doutora – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História

__________________________________
Daniel Brasil Justi
Doutor – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Suplentes

__________________________________
Marta Mega de Andrade
Doutora – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Comparada

__________________________________
Paulo Duarte
Doutor – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em História Comparada
3

À minha avó, Edite, mulher guerreira, que nos deixou na semana em que
essa Tese era finalizada, mas que continua presente em meu coração.

Aos velhinhos que me fizeram quem eu sou e que vibrariam com esse
momento, Dinho Evaristo, Dinha Anita, Tia Juju e Tia Cocota.

À minha mãe, Edna dos Santos Faria, cujo amor me sustenta e me faz
manter a esperança de que dias melhores virão.

À minha esposa, Cássia Castro dos Santos Faria, por ser a principal
responsável por eu estar cumprindo mais essa etapa na vida.
4

Agradecimentos

À minha família que acreditou mais em mim do que eu em mim mesmo. Irmãos, cunhadas,
tios e tias, primos e primas. Todos foram fundamentais em cada passo, em cada dificuldade
enfrentada.

Ao meu orientador, André Leonardo Chevitarese, que desde a Graduação me tutela e me


aponta os melhores caminhos. Tudo o que eu tenho de bom, academicamente falando, eu
devo a ele. Tudo o que eu construir profissionalmente será em homenagem a ele. A eternidade
será curta para eu expressar minha absoluta gratidão a esse que é, para mim, o maior exemplo
de erudição, humildade, compromisso ético e hombridade que eu já conheci. Por mais que eu
estude e estude, por mais títulos que eu conquiste, nunca serei digno de “desatar as sandálias
dos seus pés”.

Aos meus amigos que não mediram esforços para que eu não esmorecesse na luta, sabedores
das minhas limitações: Daniel Justi, Juliana Cavalcanti, Vítor Almeida, Airan Borges, Jane
Santos, Marcelo Fernandes, Douglas Mota, Simone Toschi, Ricardo Dias, Carlos Eduardo
Schmidt, Leandro Falcon, Eliana de Souza.

Aos colegas tutores e aos alunos que tive na Licenciatura em História nos quatro anos em que
me doei em Cantagalo, pelo Cederj, no sonho de preparar professores verdadeiramente
comprometidos com o ensino de História. Em especial à turma que foi a minha primeira
experiência em docência superior.

Aos meus alunos e minhas alunas cenecistas e alguns da rede pública estadual de ensino que,
pelos constantes desafios a mim feitos, moldaram-me como um educador mais do que
profissional da educação.

Aos alunos e às alunas que passaram por mim nos cursos que ministrei no Centro Loyola de
Fé e Cultura, no IH e na Uerj.

Aos professores que tive no Doutorado, às funcionarias da Secretaria do PPGHC e aos


funcionários do IH.
5

Resumo

A partir do momento em que pesquisadores começaram a analisar os escritos do assim


chamado Novo Testamento sem os prejuízos advindos da confissão religiosa, múltiplas
questões emergiram. Dentre elas, a de determinar a ordem cronológica em que os quatro
evangelhos canônicos foram produzidos. No curso dessa investigação, em meados do século
XIX, os acadêmicos identificaram, com certa surpresa, que os evangelhos de Marcos, Mateus
e Lucas compartilhavam uma quantidade expressiva de passagens semelhantes.
O aprofundamento desse tópico resultou no surgimento do chamado Problema Sinótico. Em
outras palavras, a tentativa de se obter uma resposta satisfatória para as impressionantes
concordâncias textuais entre os referidos documentos. Das hipóteses aventadas, a que mais
consenso atingiu foi a que estipula que Marcos foi o primeiro evangelho, Mateus e Lucas
vieram em seguida, utilizando Marcos e outro documento, hoje perdido, como suas fontes.
A descoberta, no século XX, de um conjunto de códices, datado do século IV, impactou os
círculos acadêmicos. Pois no bojo desse material literário antigo encontrava-se um evangelho,
há muito conhecido por referências feitas por antigos cristãos: o Evangelho de Tomé.
Este Evangelho e os demais documentos pertencentes ao códice permitiram reavaliar a
história da formação dos primitivos agrupamentos de seguidores do movimento iniciado por
Jesus de Nazaré. Com efeito, o cristianismo tornou-se, em perspectiva exclusivamente
acadêmica, “cristianismos”.
Tomé, por sua vez, impôs a necessidade de se reavaliar o Problema Sinótico, à medida que
seu conteúdo também apresentava similaridades com o material sinótico. Diversas tentativas
foram efetuadas a fim de determinar qual tipo de relação haveria entre esse texto e os
evangelhos canônicos. Tentativas realizadas sob os auspícios do paradigma literário.
Nesta Tese envida-se um diálogo com duas áreas recentes de pesquisa: estudos sobre
memória e estudos sobre a relação oralidade e letramento. Esse caminho parece-nos muito
promissor e efetivamente propenso a solucionar o problema das aparentes contradições
textuais existentes entre os evangelhos.
Com efeito, conjugando-se memória e oralidade, conclui-se que os ditos atribuídos a Jesus
foram proferidos por diferentes sujeitos em diferentes momentos para públicos distintos.
Assim, as dessemelhanças entre as tradições escritas podem ser o resultado das adaptações
sofridas ao longo do processo de transmissão das falas de Jesus.
6

Abstract

From the time when researchers began to examine the writings of the so-called New
Testament without the losses arising from religious faith, many questions emerged. Among
them, to determine the chronological order in which the four canonical gospels were
produced. In the course of this investigation in the mid- nineteenth century , scholars have
identified, with some surprise, that the gospels of Mark, Matthew and Luke shared a
significant amount of similar passages .
The deepening of this topic resulted in the emergence of so-called Synoptic Problem. In other
words, the attempt to obtain a satisfactory response to the striking concordance between said
textual documents. Of the suggested hypothesis, the more consensus reached was that
stipulates that Mark was the first gospel, Matthew and Luke followed, using Marcos and
another document, now lost, as their sources.
The discovery in the twentieth century, a set of codices, dating from the fourth century,
affected the academic circles. For in the midst of this ancient literary material stood a gospel,
long known for references by early Christians: the Gospel of Thomas .
This Gospel and other documents pertaining to the Codex allowed reassess the history of the
formation of the early movement's followers groupings initiated by Jesus of Nazareth. Indeed,
Christian became, in pure academic perspective, "Christianities".
Thomas, in turn, has imposed the need to reassess the Synoptic Problem, as its content also
had similarities to the synoptic material. Several attempts were made to determine what kind
of relationship would be between this text and the canonical gospels. Attempts held under the
auspices of the literary paradigm.
In this work shall make up a dialogue with two recent areas of research: studies on memory
and studies on the relationship orality and literacy. This way it seems very promising and
likely to effectively solve the problem of existing apparent textual contradictions between the
Gospels.
Indeed, combining up memory and orality, it is concluded that the sayings attributed to Jesus
were delivered by different individuals at different times for different audiences. Thus, the
dissimilarities between the written traditions can be the result of adaptations suffered during
the process of transmission of the sayings of Jesus.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
II. COMUNIDADE: UM TERMO EM DISPUTA 17
III. ESTABELECENDO BALIZAS E DEFININDO HIPÓTESES 31

1. NO PRINCÍPIO ERA O PROBLEMA SINÓTICO


1.1. DAS HARMONIAS ÀS SINOPSES DOS EVANGELHOS 38
1.2. A INTERDEPENDÊNCIA LITERÁRIA DOS EVANGELHOS SINÓTICOS 43
1.3. HIPÓTESES PROPOSTAS PARA SOLUCIONAR O PROBLEMA SINÓTICO 55
1.4. A HIPÓTESE DAS DUAS FONTES 73
1.5. PROBLEMA SINÓTICO: NOVAS PERSPECTIVAS 81
1.6. CONCLUSÃO 93

2. EM UMA BIBLIOTECA NO DESERTO


2.2. O IMPACTO DA DESCOBERTA DE TOMÉ NOS CÍRCULOS ACADÊMICOS 98
2.3. UM LUGAR PARA TOMÉ NO DESENVOLVIMENTO DOS CRISTIANISMOS 105
2.3.1. AS MOTIVAÇÕES SUBJACENTES AO DEBATE SOBRE A VARIEDADE PRIMITIVA 118
2.3.2. DA ESSÊNCIA DO JUDAÍSMO E DO CRISTIANISMO 125
2.4. TOMÉ: PELO DIREITO DE SER CLASSIFICADO COMO EVANGELHO 126
2.4.1. PODEM OS EVANGELHOS SER UM TIPO DE MIDRASH? 130
2.5. AS ETAPAS DE REDAÇÃO DE TOMÉ 139
2.5.1. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO 158
2.5.2. PRINCÍPIO DA CAPACIDADE DE RESPOSTA 159
2.5.3. PRINCÍPIO DA CLIENTELA 161
2.6. A CRISTOLOGIA DE TOMÉ 165
2.6.1. A FORMAÇÃO DAS CRISTOLOGIAS 166
2.6.2. TOMÉ TEM ALGUM TIPO DE CRISTOLOGIA? 170
2.7. TRADIÇÕES EM CONFLITO: TOMÉ E A COMUNIDADE DE DISCÍPULO AMADO 172
2.7.1. “TODAS ESSAS COISAS FORAM ESCRITAS PARA QUE CREIAIS” 173
2.7.2. “MEU SENHOR E MEU DEUS” 177
2.7.2.1. VER PARA CRER, CRER SEM VER 185

3. LEMBRAI-VOS DA PALAVRA QUE EU DISSE


8

3.1. DIFUNDE-SE POR CAUSA DE SUA VULGARIDADE E DA IGNORÂNCIA DE SEUS ADEPTOS 176
3.2. O QUE OUVIREM EM SEU OUVIDO, DE SEU TELHADO PROCLAMEM NO OUTRO OUVIDO 179
3.2.1. COMO ENTENDE ELE DE LETRAS SEM TER ESTUDADO? 181
3.3. O NOVO PROBLEMA SINÓTICO 189
3.3.1. TOMÉ DEPENDE DOS SINÓTICOS 190
3.3.2. TOMÉ CONHECEU OS SINÓTICOS 195
3.3.3. TOMÉ ESTAVA FAMILIARIZADO COM OS SINÓTICOS 201
3.3.4. TOMÉ É INDEPENDENTE DOS SINÓTICOS 221
3.4. E SEU TESTEMUNHO É VERDADEIRO 233
3.4.1. COMUNIDADES DE MEMÓRIAS 234
3.4.2. QUEM SE LEMBRA? 237
3.5. ENCONTRANDO A OVELHA PERDIDA 242
3.6. CONCLUSÃO 250

CONCLUSÃO 253

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 262


9

Introdução
12

Houve um momento, durante a minha Defesa da Dissertação de Mestrado, que deixou


uma marca profunda em minha consciência. Não ficou registrado por escrito e nem em áudio.
Porém, continuou ecoando na lembrança desde então e permanece indefinidamente, mesmo
sabendo, por força das pesquisas, o quão frágil e maleável é a nossa memória.
O momento aludido ocorreu quando uma das arguidoras do meu trabalho de pesquisa, a
professora Dr.ª Renata Rosental Sancovsky, afirmou que aquela Dissertação inaugurava, em
solo brasileiro, um novo campo de pesquisa na área do cristianismo primitivo. Naquele
instante, não tive a dimensão do que sua fala representava. Como ainda não tenho, eu
confesso, passados já cinco anos.
Esta Tese de Doutorado, portanto, consiste no desdobramento do trabalho anterior e
alberga pretensões semelhantes. A saber, verificar a aplicabilidade das noções desenvolvidas
em torno da oralidade e seu par inseparável, a memória, para o corpo literário engendrado no
seio de grupos do movimento de Jesus sem Jesus.
No Mestrado, realizado sob a orientação do prof. Dr. André L. Chevitarese aproximei-
me dos estudos de Werner Kelber no que tange ao papel, solenemente ignorado pela pesquisa
acadêmica, da oralidade para uma compreensão adequada do modo como os evangelhos
vieram à luz e como foram transmitidos.
Corolário da equação oralidade/letramento, quando entendida para o contexto em que
Jesus de Nazaré, seus seguidores e seus adversários transitaram, estudar a memória, em seus
diferentes aspectos, mostrou-se crucial para uma abordagem mais concorde com o que se
pode esperar acerca dos eventos que tiveram lugar em torno do ministério público de Jesus.
Nesse sentido, se ficou demonstrado que dois dos evangelhos mais antigos – ou mais
próximos dos eventos e dizeres neles contidos – resultaram, em certa medida, da transcrição
13

de exposições orais de pregadores itinerantes, mostrou-se interessante levar essas reflexões


para outro documento dito “cristão”: o Evangelho de Tomé.
Com efeito, esse Evangelho, como reconhecido por um amplo contingente de
pesquisadores, guarda muitas semelhanças com os evangelhos sinóticos – os evangelhos de
Marcos, Mateus e Lucas – e também com o Evangelho Q. Ora, por que não então comparar
esses textos e tentar encontrar evidências de oralidade por trás desse documento?
Para esse fim, no entanto, algumas ideias necessitaram ser refletidas para que o caminho
pudesse ser trilhado com menos embaraços. Uma primeira noção que não podia ser evitada
diz respeito à profícua produção literária nos grupos assim chamados “cristãos”. Muito
embora, como salienta Bart D. Ehrman (2006, p. 39), o fenômeno da escrita tenha sido da
maior importância para as igrejas e os cristãos a elas ligados, a produção e disseminação de
textos escritos nesse curto período de tempo, quer dizer, após a morte de Jesus de Nazaré até
meados do século II E.C., não implicam uma vasta rede de sujeitos letrados, com habilidade
para ler e escrever esses documentos. Com efeito, significativos avanços nos estudos acerca
da oralidade e letramento na Antiguidade, em geral, e no Antigo Israel, em especial, são
categóricos em apontar uma série de limitações nesses campos.
A título de exemplo, um texto, provavelmente escrito entre 110 e 140 E.C. (EHRMAN,
2008, p. 342), nascido nessa ambiência em que Jesus de Nazaré constituía o centro das
reflexões existenciais e teológicas e intitulado Pastor de Hermas, retrata uma das condições
possíveis em que devem ter emergido os textos e/ou cópias (HOOLE, 1870, p. 9-10):

...enquanto caminhava, lembrei-me da visão do ano anterior; e o


Espírito novamente tomou-me e transportou-me para o mesmo lugar
em que a revelação fora-me dada. Quando, por conseguinte, cheguei
ao lugar, prostrei-me de joelhos e orei ao Senhor e glorifiquei seu
Nome, porque ele me achou digno e fez-me conhecedor dos meus
pecados do passado. E após ter me levantado ao fim da oração, tornei
a ver a mesma senhora do ano passado, caminhando e lendo um
pequeno livro. Ela perguntou-me: “Você seria capaz de proclamar
essas coisas aos eleitos de Deus?” Respondi a ela: “Senhora, não sou
capaz de lembrar tantas coisas. Dê-me o livro, para que eu possa
copiá-lo.” Ela disse: “Tome-o. E depois me devolva.” Eu o peguei e
quando me afastei para um lado do campo, copiei-o letra por letra,
pois não conseguia distinguir as palavras.

A dificuldade exposta pelo autor nesse documento não canônico, isto é, não distinguir
as palavras e ter que copiar um livro inteiro letra por letra constituía mais a regra do que uma
14

exceção1. Com efeito, estudos mostram que o letramento amplo em uma sociedade é um
fenômeno moderno que se tornou desejável e possível após o advento da Revolução
Industrial2.
Antes dessa época, portanto, eram irrisórias as taxas de alfabetização, mesmo em
sociedades que estimulavam a leitura e a escrita, como, por exemplo, a Roma dos primeiros
séculos da Era Comum ou até mesmo a Grécia do período clássico (THOMAS, 2005;
EHRMAN, 2006). Assim, convém compartilhar os esclarecimentos fornecidos por Rosalind
Thomas que sublinham o equívoco que é encarar a Grécia clássica (séculos V-IV a.E.C.), em
função da existência de um corpus substancial de literatura tal como documentos, inscrições e
arquivos como uma “sociedade extensivamente apoiada na palavra escrita” (2005, p. 3-4).
Antes, ela assevera, a Grécia era uma “sociedade oral, na qual a palavra escrita vinha em
segundo plano em relação à palavra falada” (2005, p. 3-4).
E o que dizer da sociedade judaica, de onde provém Jesus de Nazaré e seus seguidores?
Não são os judeus conhecidos como o Povo do Livro? Catherine Hezser, por meio de um
exaustivo levantamento em material literário e epigráfico, relativiza uma noção comum,
albergada mesmo em círculos acadêmicos, de que a sociedade judaica era uma sociedade
letrada (2001, p. 27). De fato, com base em um mandamento observável no texto bíblico
intitulado Deuteronômio onde se lê (6:9) “tu as escreverás nos umbrais da tua casa, e nas tuas
portas”, uma abordagem antiga e tradicional concluiu serem os judeus amplamente capazes de
ler e escrever.
No entanto, a pesquisadora pondera que o mandamento deuteronomista não pressupõe
que todos fossem realmente capazes de fazê-lo. Antes, essa poderia ser uma incumbência
restrita a um grupo menor de pessoas, nomeadamente escribas profissionais. Ian Young, por
sua vez, nota que não há como aceitar que outros estratos sociais do Antigo Israel, além dos
escribas e membros proeminentes das elites econômicas e políticas, fossem capazes de ler e

1
Pode-se objetar e dizer que o autor não compreendia as palavras por essas estarem vertidas em uma língua
desconhecida do autor, mas, ao que se saiba, nenhum comentador opta por uma solução desse tipo (HAINES-
EITZEN, 2000).
2
No relatório “Adult and youth literacy: global trends in gender parity” publicado pela UNESCO, lê-se que, em
2008, 796 milhões de adultos em todo o mundo (com 15 anos e mais) reportaram serem incapazes de ler e
escrever e dois terços desse número eram formados por mulheres. O relatório indica que a taxa global de
letramento entre adultos variava, naquele ano, em torno de 83%. Mais da metade dos 17% de pessoas que não
sabiam ler nem escrever viviam no sudeste asiático e outra parte significativa vivia na África subsaariana.
Disponível para consulta em: http://www.unesco.org/education/ild2010/FactSheet2010_Lit_EN.pdf
15

escrever, excetuando-se os casos em que as evidências fortemente apontem o contrário (1998,


p. 245).
Por conseguinte, à medida que as documentações escritas judaicas especificam os
indivíduos que podiam ler e escrever é nelas que se deve buscar a resposta para a pergunta:
quem podia ler e escrever no Antigo Israel? Consoante um minucioso levantamento dos
textos que formam as Escrituras Hebraicas, Young constata que possuíam habilidade para
(1998, p. 245-247):
(a) Escrever
(I) Sacerdotes e outras personalidades ligadas ao culto religioso
(II) Classes dirigentes
(2.1) Escribas
(2.2) Líderes comunitários e chefes de exércitos
(III) Artesãos com essa habilidade3
(b) Ler
(I) Sacerdotes e Levitas
(II) Classes dirigentes
(2.1) Escribas
(2.2) Líderes comunitários e chefes de exércitos
Ainda que se possa asseverar que a ausência de referências não significa objetivamente
a impossibilidade de que estratos mais baixos da sociedade judaica fossem incapazes de ler e
escrever, salta aos olhos, todavia, quais grupos sociais possuíam tais prerrogativas ou
condições mais favoráveis para o aprendizado.
Convém frisar, por outro lado, que o letramento na antiguidade era variado e que adotar
uma definição única simplifica e distorce sua compreensão. Não basta, portanto, definir
letramento como a capacidade de ler e escrever. É necessário identificar o que esses agentes
podiam ler e escrever. Nesse contexto, havia uma diferença gritante entre conseguir ler
símbolos dispersos e ler uma narrativa ou uma poesia grafados em um papiro. Thomas sugere
que o grau dessas habilidades podiam também refletir parcialmente a necessidade da escrita

3
Convém ressaltar que o levantamento pormenorizado de Young sobre a documentação hebraica mostra que a
quantidade de artesãos que compõem essa lista era dois. E mesmo esses indivíduos eram, segundo o texto
bíblico, filhos de sacerdotes, isto é, membros destacados da sociedade daquele tempo. Ademais, a narrativa que
relata que ambos escreviam, mostra-os produzindo uma única frase, ainda que não defina qual dos dois foi o
responsável, a saber: “Consagrado a Iahweh” (Ex 39:30).
16

na vida diária (2005, p. 13). Assim, é preciso levar em conta, por exemplo, o tipo de profissão
e questões de gênero.
Com esteio nas considerações até aqui delineadas, cumpre voltar a atenção para os
heterogêneos grupos de judeus (e gentios) que se aglutinaram em torno do movimento
liderado por Jesus de Nazaré. À proporção que, como já mencionado, um bom número de
documentos foi redigido em seu interior, convém indagar até que ponto esse fato pode revelar
a origem “de classe” dos integrantes desses grupos ou mesmo sua composição social.
Ademais, convém aduzir outra variável de suma importância a esse processo histórico: a
existência de um amplo consenso historiográfico, quase uma unanimidade erudita, de que os
textos foram originariamente escritos em grego.
Essas questões não podem, entretanto, sobrepujar a realidade concreta de que o
contexto em que foram transmitidas, criadas, desdobradas, desenvolvidas, repetidas e mesmo
esquecidas as histórias sobre Jesus de Nazaré era marcadamente oral. Desprezar ou ignorar
isso é adotar uma concepção do mundo antigo e de suas relações sociais e comunicativas
simplesmente improcedentes.
Por esse motivo, apesar dos escritos possivelmente circularem, eles nada dizem acerca
do letramento dentro das comunidades. Harry Gamble enfatiza que, embora a literatura que
sobreviveu ao tempo reflita a capacidade e o ponto de vista de letrados cristãos, ela por si só
não representa esses grupos em sua generalidade (1995, p. 4).
Indubitavelmente, as primeiras comunidades de crenças “cristãs” formaram-se tendo
eixos norteadores e constituintes particulares. Em algumas, a fé inamovível de que Jesus,
mesmo depois de morto, ainda se fazia presente entre seus integrantes, exortando-os e
confortando-os. Outras comunidades, por sua vez, tinham como liga a convicção de que Jesus
fora um grande mestre e que seus ditos de sabedoria apontavam um renovado modo de ser.
Além dessas, outros grupos abraçaram a esperança de que Jesus em breve retornaria e numa
grande faxina cósmica restauraria a paz no mundo4. Com efeito, como salienta André L.
Chevitarese, “desde as suas origens mais remotas, ainda nas primeiras gerações de ‘cristãos’,
para além de alguns poucos consensos, houve uma polissemia sobre o que disse e o que não
disse Jesus” (2011, p. 9).

4
A expressão “faxina cósmica” é um empréstimo das ilações de Crossan acerca do fervor escatológico e/ou
apocalíptico que perpassava algumas facções político-religiosas na Palestina romana dos primeiros séculos da
Era Comum (cf. CROSSAN, 2008).
17

Quaisquer que fossem as razões, objetivas e subjetivas, que mantinham unidos os


sujeitos nessas comunidades, essas provavelmente eram formadas pelo entrelaçamento de
contadores de histórias, autores e copistas, mais as audiências de tamanho e composição
variadas. Além, evidentemente, das respectivas lideranças comunitárias.
Em que medida, portanto, podem-se atestar, em face do entrelaçamento dos indivíduos
que compunham as primitivas comunidades, suas memórias e as questões relativas ao poder,
que as tradições, orais e escritas, de e sobre Jesus efetivamente remontam ao profeta que veio
da Galileia?
Tendo em vista a polissemia de discursos e seus distintivos pontos de origem, não
parece improvável que tenha havido processos de negociação de memórias e embates de
autoridade suscitados pelo confronto entre tradições orais e textos escritos no processo de
formação dos grupos “cristãos” primitivos que devem ter sido, inicialmente, minúsculos.

I. COMUNIDADE: UM TERMO EM DISPUTA5

Algumas linhas acima a expressão “comunidade” foi usada para referir-se aos grupos
que se estabeleceram em torno da necessidade de preservar a memória de Jesus de Nazaré e,
vivendo sua mensagem, dar continuidade ao seu projeto. O termo está bem assentado na
pesquisa histórica dos cristianismos primitivos e segue sem ser questionado. Com efeito, neste
trabalho o termo aparecerá recorrentemente. Convém, todavia, discorrer a respeito e assinalar
os problemas que o termo carrega.
“O evangelho de Mateus busca”, defende J. A. Overman, “de maneira quase
transparente, abordar uma série de questões que surgiram na vida dessa comunidade judaica
centralizada em Jesus, nos anos posteriores à primeira revolta e à destruição do templo”
(1999, p. 29). Mais que isso, segundo Overman, “Mateus considerava-se judeu” e “tudo
indica ser sua comunidade judaica” (1999, p. 19).
Mais adiante, nessa mesma obra, Overman tece comentários sobre Mt 5:17-20. Com
efeito, em seu ponto de vista, os versículos levam-no a considerar que “o autor” desse
evangelho “parece estar na defensiva”, à proporção que os versos sugerem que a “comunidade
mateana” estava sendo acusada de agir “de modo irresponsável em assuntos da Lei” (1999, p.
91). Os versos por ele destacados declaram:

5
Uma das críticas construtivas ofertadas no Exame de Qualificação dizia respeito à falta de especificação do
termo comunidade enquanto conceito. Esse tópico pretende sanar a falha cometida.
18

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas
dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que
passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei,
sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses
menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será
chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e os
ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus. Com efeito, eu vos
asseguro que se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e a dos
fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.

Ademais, ele menciona (1999, p. 91):

Sem dúvida, os membros da Igreja ouvem essas acusações no mercado, no


teatro, em debates públicos ou em casa, às refeições. Talvez alguns judeus
mateanos, sobretudo os membros mais vulneráveis, mais novos ou mais
jovens (...), comecem a crer nos argumentos dos que não pertencem ao
grupo.

Ao abordar a oração conhecida como “Pai nosso”, na forma como se apresenta em


Mateus, Overman sublinha que a inclusão da oração nesse evangelho “é muito significativa”.
Com efeito, é possível inferir que a comunidade “criou alguma estrutura, há rituais bastante
sutis que ela reitera unida e a codificação de uma epítome, ou esboço breve, das esperanças e
crenças do grupo” (1999, p. 106).
Refletindo sobre a parábola mateana conhecida como a parábola dos trabalhadores da
vinha (Mt 20:1-16), Overman postula que nela “dá para perceber a tensão existente entre
membros mais idosos, talvez fundadores, da comunidade mateana e membros mais novos ou
mais jovens que se consideram plenos participantes da vida e do discernimento do judaísmo
mateano” (1999, p. 312).
Nota-se, assim, que da leitura da narrativa mateana Overman é capaz de desenhar os
traços de uma “comunidade”. Nesse sentido, sintetizando o que já foi declarado, tratava-se de
uma comunidade judaica, criticada “pelos de fora” e que veio a estruturar algum tipo de ritual.
Não só isso. Overman reconstrói a “comunidade”, conferindo movimento e vida aos seus
supostos membros. Eles vão ao teatro, ao mercado, eles participam de debates públicos. E é
uma comunidade permeada de tensões como, por exemplo, entre idosos e jovens. Convém
sublinhar, por sua vez, que, ao menos nessa obra, Overman não oferece aos seus leitores, uma
explicação básica acerca da metodologia que usa para delinear, com os detalhes descritos, a
comunidade por detrás do evangelho canônico de Mateus.
Essa observação acerca da ausência de explicitação do método empregado por Overman
pode ser estendida para vários outros acadêmicos que laboram no campo dos cristianismos
19

primitivos. Por conseguinte, “comunidades” formam um pressuposto e, ao mesmo tempo, o


ponto de chegada. Em outras palavras, elas já estão lá, concretas, e o material evangélico
canônico apenas confirma sua existência.
Stanley Stowers releu alguns desses estudiosos em busca da plausibilidade de suas
concepções e concluiu que por trás de muitas, se não de todas, reconstruções da história das
comunidades cristãs primitivas há uma pronunciada influência da historiografia do
romantismo. Para ele, a utilização desse conceito está “muito distante de ser descritivo e
analítico” (2011, p. 239). Assim, como resultado de suas leituras, ele frisa que a ideia de que
os evangelhos revelam as comunidades que os produziram provém da combinação de duas
abordagens (2011, p. 240):
1. A “teologia” do autor pode ser vista como o pensamento que foi criado ou
desenvolvido em uma comunidade particular, a teologia que definiu e diferenciou a
comunidade de outras comunidades.
2. O autor pode ser visto como alguém que compôs uma história sobre Jesus que, em
quase todos os detalhes, dirige-se a assuntos e necessidades de uma comunidade em
particular.
No entanto, tais posicionamentos, ou seja, a suposição de que, “desde o princípio, a
formação básica do movimento que mais adiante veio a se tornar o cristianismo foram
comunidades”, ele observa, “é raramente questionada” (2011, p. 241). Assim, quando as
cartas paulinas descrevem que Paulo chegou a Corinto, pregou o evangelho aos habitantes da
cidade, esses se converteram e se agruparam numa comunidade cristã, Stowers, em uma
observação sutilmente irônica, afirma que “o que Paulo proclamou como uma criação
miraculosa de Deus [ou seja, a Igreja], os estudiosos tomaram, frequentemente, como dados
sociológicos” (2011, p. 243).
O cerne de sua crítica reside na construção acadêmica das comunidades orientando-se,
por exemplo, na fala de Paulo em suas cartas. Assim, é fácil para Paulo, dirigindo-se para
determinado grupo de indivíduos, afirmar que eles já formam uma comunidade. Que todos ali
comungam do mesmo Espírito. Na perspectiva de Stowers, tratou-se de uma estratégia
brilhante. Com efeito, em vez de propor aos seus receptores que eles tinham um objetivo a
alcançar, isto é, ajustar-se aos ditames evangélicos, com seus bônus e inevitáveis ônus, Paulo
dirigia-se a eles dizendo que ali já estava instaurada “uma comunidade de pessoas
transformadas e prontas para viverem como tinha que ser vivido” (2011, p. 242).
20

Entretanto, e Stowers está corretíssimo, esses estudos carecem do contato com a


experiência dos sujeitos que aceitaram aderir às “comunidades”. Em suma, a respeito dos
“convertidos”, não se escutam suas vozes.
Convém ressaltar, por sua vez, as principais razões pelas quais Stowers reclama mais
cautela no uso do conceito “comunidade” por parte dos pesquisadores. Assim, ele declara
(2011, p. 245):

O uso de “comunidade” ou “comunidades” é quase sempre injustificado. Por


injustificado, eu quero dizer que os escritores não fornecem evidências e
argumentos para tomar as formações sociais em questão como altamente
coesas no que se refere a crenças e práticas comuns. A alegação de que um
grupo cristão primitivo ou formação social era uma comunidade deveria
exigir tantas evidências e argumentos quanto qualquer outra alegação
histórica.

Corolário desse motivo, a falta de arcabouço teórico. Os conceitos são, segundo


Stowers, com bastante frequência, de cunho teológico. Outro fator que incomoda Stowers
quanto ao uso da expressão “comunidade” refere-se à maneira como os estudiosos tratam os
assim chamados “pagãos”.
Conforme sua percepção, seus pares que trabalham com a noção de que, desde o
princípio, os cristãos reuniram-se em comunidades, tratam esses indivíduos, ou seja, “gregos,
romanos e outros”, como seres passivos em vez de “pessoas social e humanamente
plausíveis” (2011, p. 246) (Grifos originais).
À luz da história moderna, da etnografia e das ciências sociais, Stowers declara, sujeitos
não se submetem a um corpo novo de crenças e práticas sem um mínimo de resistência e
negociação. Ademais, essas disciplinas acadêmicas demonstram que a aceitação costuma ser
seletiva e dependente de estruturas de referência e interesses pessoais. Por conseguinte,
“comunidade é tomada não somente como significando alta coesão social, no qual se
comungam crenças e práticas, mas também excelência moral” (2011, p. 246).
Em todas as áreas em que se estudam a literatura do antigo Mediterrâneo, os escritos
são estudados como “o produto de um autor individual trabalhando em um contexto histórico
e social particular e não como o produto de uma comunidade” (2011, p. 247). Por outro lado,
a literatura cristã primitiva é abordada como um caso único e incomparável com o que a
rodeia. Implica dizer, um exemplar conjunto de textos notabilizado por ter, não um autor, mas
uma comunidade por detrás de sua redação.
Por fim, Stowers critica a ideia de que as primeiras formações dos assim chamados
“cristãos” foram comunidades à medida que assim o fazendo, os acadêmicos dispensam toda
21

uma série de diferentes formações sociais de existência comprovada na Antiguidade. Nesse


sentido, a história social e as ciências sociais têm estudado, com sucesso, associações, escolas
e grupos familiares.
Com efeito, Stowers questiona se algumas dessas estruturas não podem ter sido as
formas como os primeiros “cristãos” reuniram-se. Assim, ele propõe ampliar o olhar e
conjeturar a possibilidade de os protocristãos terem se associado de outras maneiras que não
somente na forma de “comunidades”. Stowers reconhece que alguma comunidade cristã deve
ter existido, porém, para ele, outra formação social era muito mais importante: os “campos ou
redes de produtores culturais letrados e especializados” (2011, p. 250).
Encontra-se tão estabelecida a certeza de que as primeiras formações “cristãs” foram
comunidades que, por exemplo, Robin Scroggs assevera ser sua “convicção que a
comunidade engendrada por Jesus preenche as características essenciais de uma seita
religiosa, tal como definida por recentes análises sociológicas” (1975, p. 2). Note-se, portanto,
que, enquanto “seita” requer alguma forma de conceituação sociológica, “comunidade”
dispensa definições esclarecedoras de sentido.
Essa despreocupação com uma definição do termo “comunidade” fica patente quando se
entra em contato com o ramo de pesquisadores dedicados ao Quarto Evangelho. “Embora
aceite em princípio”, assinala Raymond E. Brown, “a possibilidade de detectar vida
comunitária sob a história superficial do evangelho, quero deixar claro que vejo dificuldades
metodológicas para aplicar tal princípio” (1983, p. 16).
Não obstante suas “dificuldades metodológicas”, Brown aponta que a pesquisa reunida
em seu livro, sintomaticamente intitulado A comunidade do Discípulo Amado, enfocará o
evangelho de João consoante a sugestão de que esse material literário “deve ser lido em
diferentes níveis, de modo que ele nos narre, tanto a história de Jesus, quanto a da
comunidade que cria nele” (1983, p. 15).
Assim, debalde todas as cautelas necessárias, Brown sustenta que os “evangelhos nos
falam como cada evangelista concebia Jesus e o apresentava a uma comunidade cristã (...),
apresentação essa que nos dá indiretamente uma visão da vida dessa comunidade, no tempo
em que o evangelho foi escrito” (1983, p 15).
Por conseguinte, como evidência de que a comunidade joanina inicialmente formou-se
quando alguns judeus se juntaram a Jesus e com “relativamente pouca dificuldade acharam
que ele era o Messias que eles esperavam”, Brown destaca Jo 1:35-51 (1983, p. 27):
22

Os dois discípulos ouviram-no falar [João Batista] e seguiram Jesus. Jesus


voltou-se e, vendo que eles o seguiam, disse-lhes: “Que procurais?”
Disseram-lhe: “Rabi (que, traduzido, significa Mestre), onde moras?” Disse-
lhes: “Vinde e vede”. Então eles foram e viram onde morava, e
permaneceram com ele aquele dia. André, o irmão de Simão Pedro, era um
dos dois que ouviram as palavras de João e seguiram Jesus. Encontra
primeiramente seu próprio irmão Simão e lhe diz: “Encontramos o Messias
(que quer dizer Cristo)”.

Antes de prosseguir com as considerações de Brown, convém fazer um adendo. Adendo


este que não implica desvio, mas sinaliza o quão complexo é inferir, a partir do material
escrito, a comunidade de crenças que o engendrou.
Há um considerável consenso que a Cristologia joanina é o ápice do processo de
divinização de Jesus e que, assim parece, tomou lugar na virada do século I para o século II.
Nesse sentido, a crença que Jesus de Nazaré era Deus – ou um com Deus – demandou vários
anos e desenvolvimentos culturais para que fosse instaurada no meio dito cristão.
Em outras palavras, soa anacrônica a ilação de Brown de que os judeus que se uniram a
Jesus, compondo seu núcleo inicial, viram-no como o Messias com “relativamente pouca
dificuldade” e já desde o primeiro contato com ele. A historiografia dos cristianismos
concorda que o ramo representado pelo Quarto Evangelho tem como uma de suas principais
características a alta Cristologia, porém isso sendo entendido tanto como um desdobramento
teológico autônomo quanto posterior às Cristologias concebidas no interior dos outros ramos
que estão materializados nos evangelhos canônicos de Marcos, Mateus e Lucas.
Geza Vermes, que não é um especialista em João, afirma que “o Quarto Evangelho –
talvez com exceção de uns poucos detalhes especiais relacionados à história da crucificação –
não pode ser aceito como fonte primária da vida e dos ensinamentos de Jesus”, ainda que seja
“razoável presumir que estejamos aqui diante de segmentos da tradição evangélica comum já
existente em forma escrita quando João começou a compor sua história” (2006, p. 36-37).
Vermes repercute uma visão, há muito albergada, de que o Quarto Evangelho é mais
teologia do que história. A. Von Harnack, por exemplo, escrevendo em 1904, asseverava: “O
Quarto Evangelho não pode ser usado como fonte histórica... (ele) dificilmente pode ser
levado, em qualquer ponto, como fonte para a história de Jesus” (apud POLLARD, 1970, p.
3)
Nesse sentido, convém dar ouvido ao que fala Gerd Theissen: “No evangelho de João, a
divinização do Jesus terreno atinge seu ponto culminante” (2009, p. 255). Com efeito, essa
deve ser a bússola que guia a leitura desse evangelho. Se isso implica ver no texto a condição
de vida da “comunidade”, é tema para ser debatido mais a frente. Importa, portanto,
23

compreender que essa divinização, enunciada já em seu prólogo, repercute, necessariamente,


ao longo de toda a narrativa.
Em síntese, a concepção cristológica de João orienta sua escrita, da primeira à última
linha. Logo, com todo o respeito a Brown, não há como concordar com sua afirmação de que
os seguidores de Jesus não tiveram dificuldade para ver nele o Messias desde o momento que
o viram e o ouviram.
Acontece que a suposição de Brown, por outro lado, revela uma das armadilhas a que
pode estar sujeita a pesquisa que tenta deslindar, com base nos textos, agrupamentos humanos
com suas crenças, incertezas e expectativas.
Entre os especialistas em Marcos, por sua vez, predomina a noção de que esse
evangelho emergiu do interior de uma comunidade que passava por uma situação de
perseguição. Com efeito, as passagens a seguir fornecem o embasamento para os que
consideram evidente que a “comunidade” marcana sofria perseguição:

4:17 – “...caso venha uma tribulação ou uma perseguição por causa da


Palavra, imediatamente sucumbem”.

8:34-35 – “Chamando a multidão, juntamente com seus discípulos, disse-


lhes: ‘Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz
e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida, a perderá; mas, o que
perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará’”.

10:29-30 – “Jesus declarou: ‘Em verdade vos digo que não há quem tenha
deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa e por
causa do Evangelho, que não receba cem vezes mais desde agora, neste
tempo, casas, irmãos e irmãs, mãe e filhos e terras, com perseguições; e, no
mundo futuro, a vida eterna’”.

13:9-13 – “Ficai de sobreaviso. Entregar-vos-ão aos sinédrios e às


sinagogas, e sereis açoitados, e vos conduzirão perante governadores e reis
por minha causa, para dardes testemunhos perante eles. (...) Quando, pois,
vos levardes para vos entregar, não vos preocupei com o que havereis de
dizer (...)”.

Adam Winn, por exemplo, considera que esses versos claramente indicam que o
evangelho foi redigido em Roma. “A mais bem conhecida perseguição aos cristãos”, ele
sustenta, “teve lugar em Roma, durante 64 E.C., pelas mãos do imperador Nero” (2008, p.
82). Por conseguinte, Marcos estaria, através desses versículos, conclamando os membros de
sua comunidade a suportarem as dores advindas da perseguição imperial. Percebe-se, desse
modo, que versículos inferem comunidade que infere a situação de vida da comunidade e
24

infere, inclusive, o local de proveniência e data de composição do documento. No entanto, o


que define uma comunidade? Winn nada diz.
No que tange ao evangelho de Lucas, Philip Esler, desenvolve uma proposta de
discussão das “inter-relações entre a teologia de Lucas e as pressões políticas e sociais” que a
“comunidade” sofria. Assim, como parte preliminar de seu estudo, ele sublinha que se deve
indagar se Lucas “estava escrevendo para uma comunidade cristã em particular, muito
provavelmente sua congregação local” (1987, p. 25).
Ele chama a atenção para o fato de poder-se observar, muito embora a tendência de se
usar as expressões “comunidade marcana, mateana e joanina”, uma resistência quanto a essa
utilização quando referida a Lucas. Nesse sentido, ele aponta alguns pesquisadores que
consideram que Lucas, “ao contrário de Mateus, tinha mais em vista muitas comunidades em
vez de uma única comunidade” (1987, p. 26). Debalde essa definição, Esler entende ser
“preferível tratar Lucas do mesmo modo como são tratados os outros evangelistas, ou seja,
operando com a noção de que Lucas tinha uma comunidade cristã específica em mente”
(1987, p. 26).
O que faz Esler defender esse ponto de vista? Quais seus fundamentos?
Para ele, uma exortação de Jesus, encontrada somente nesse evangelho, é a chave para
atestar sua proposição (Lc 12:32):

Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-
vos o Reino!

Com efeito, a imagem do “rebanho” seria um indicativo de que os leitores de Lucas


comporiam uma “pequena comunidade cristã acossada por dificuldades do lado de dentro e
do lado de fora” (1987, p. 26). Ademais, Esler opera com três possibilidades distintas no que
se refere à composição da “comunidade cristã” de Lucas (1987, p. 31):

1. Total ou predominantemente gentia, com ausência de judeus ou como uma


minoria insignificante;

2. Uma mistura de judeus e gentios, na qual cada grupo é significativo;

3. Total ou predominantemente judia, com ausência de gentios ou como uma


minoria insignificante.

Esler sublinha que, em sua perspectiva, a opção que mais se aproxima da verdade é a
segunda, muito embora os gentios que aderiram à comunidade lucana não “se converteram da
25

idolatria, mas eram associados, anteriormente, às sinagogas judaicas” (1987, p. 31). Convém
salientar, portanto, o comentário de Esler segundo o qual inexistem argumentos específicos
que sustentem a ideia de que a audiência de Lucas era marcadamente gentia. Com efeito, “o
assunto é tratado en passant em trabalhos sobre outros tópicos” (1997, p. 32).
Assim, aventa-se como argumento a favor de uma “comunidade” marcadamente gentia
o fato de o texto lucano incorrer em “aparente abreviação ou omissão de ênfases e assuntos
caracteristicamente judaicos de suas fontes” (1997, p. 32). Os exemplos mais comumente
citados são, consoante Esler, as antíteses listadas em Mt 5:21-48, a controvérsia sobre pureza
e impureza em Mc 7:1-23 e vários desentendimentos de Jesus com os rabis. Com efeito, esses
exemplos não constam do evangelho lucano e trata-se de situações – autênticas ou fictícias –
em que Jesus de Nazaré teve a oportunidade de expor sua concepção acerca de questões
diretamente relacionadas ao modo de vida judia. À proporção que Lucas deixou de incluí-los
em seu evangelho, certos pesquisadores encontram aí o lastro que necessitam para inferir que
a “comunidade” por trás desse evangelho seria majoritariamente gentia.
É dispensável prosseguir elencando e comentando cada um dos argumentos ofertados
por Esler em sua hipótese de uma comunidade lucana mista. Fugiria ao escopo desse trabalho.
Cumpre sublinhar, porém, que ele orienta-se por diretrizes muito idênticas às de outros tantos
pesquisadores.
Lucas foi escrito por e para uma “comunidade”. Os dados, como ele pondera, indicam a
constituição interna dessa comunidade. No entanto, o que define uma “comunidade” sequer é
discutido por ele. Implica dizer, “comunidade” é um a priori que dispensa maiores
detalhamentos.
A busca pela reconstrução hipotética de comunidades por trás dos evangelhos não se
restringe ao material canônico. Pesquisadores há que adotam procedimentos similares na
documentação não canônica. Bruce Lincoln monta uma hipótese sobre Tomé, sugerindo que
esse documento “foi usado como foco de uma comunidade em Edessa [atual Síria]”, a qual
ele resolve denominar “a comunidade-Tomé” (1977, p. 68).
Consoante seu pensamento, os membros da “comunidade-Tomé” estavam subdivididos
em diferentes níveis de iniciação. Sua evidência pode ser obtida no Dito 2 que, conforme sua
leitura, “divide a comunidade nesse níveis” (1977, p. 69):

Jesus disse: “Que aquele que procura não deixe de procurar até que encontre.
Quando encontrar, ficará perturbado. Quando estiver perturbado, ficará
maravilhado e dominará tudo”.
26

Na formulação de sua hipótese, Lincoln sustenta estar inclinado a reconhecer nesse Dito
quatro tipos de iniciados (1977, p. 70) e que podem ser visualizados no quadro a seguir:

Subdivisão do Dito Tipo de iniciado


Que aquele que procura não deixe de Indivíduos de fora da comunidade, mas que
procurar até que encontre podiam ser convencidos a entrar
Quando encontrar, ficará perturbado Noviços da comunidade, mas que não
alcançaram qualquer tipo de iluminação
Quando estiver perturbado, ficará Membros sênior que atingiram um nível de
maravilhado conhecimento e iniciados num nível mais alto
da comunidade
E dominará tudo Alcançaram completamente a perfeição

Mais que isso, sua hipótese contempla a existência de “diferentes seções no texto” de
Tomé “endereçadas a cada um desses grupos” e, ele frisa, pode ser encarado como um fato e
não como indício de um processo de redação difuso do texto tomesino. Assim, a partir do
texto, Lincoln acredita poder identificar a estrutura da comunidade.
Nesse sentido, ele postula que a comunidade-Tomé prestava-se a atividades
proselitistas, com estratégias razoavelmente claras. Deve-se por em primeiro lugar, consoante
Lincoln, os Ditos que asseguram ser a comunidade portadora de ensinos secretos de Jesus e
que essa condição reflete uma “relação especial de Tomé” com Jesus. Por conseguinte, o
Prólogo do Evangelho e o Dito 13 funcionariam conforme essa intenção de atrair membros
para dentro da comunidade:

Estas são as sentenças ocultas que o Jesus vivo pronunciou e Judas Tomé, o
Gêmeo registrou.

Jesus disse a seus seguidores: “comparem-me com algo e digam-me com que
me assemelho”. Simão Pedro disse-lhe: “O senhor é como um mensageiro
justo”. Mateus disse-lhe: “O senhor é como um sábio filósofo”. Tomé disse-
lhe: “Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com que o senhor se
assemelha”. Jesus disse: “Não sou seu mestre. Porque você bebeu,
embriagou-se na fonte borbulhante que ofereci”. E se afastou com ele e lhe
disse três sentenças. Quando Tomé voltou para seus amigos, estes lhe
perguntaram: “O que Jesus lhe disse?” Tomé lhes disse: “Se eu lhes expuser
uma das sentenças que ele me disse, vocês pegarão pedras e me apedrejarão,
e das pedras virá fogo e os consumirá”.

Atraídos, portanto, pelo discurso do conhecimento secreto e da proximidade com Jesus,


esses indivíduos, acercando-se da comunidade, encontrar-se-iam envolvidos pelas promessas
de benefícios reais advindos do ingresso no grupo (1977, p. 70):
27

Tomé 17
Jesus disse: “Dar-lhes-ei o que nenhum olho viu, o que nenhum ouvido
ouviu, o que nenhuma mão tocou, o que não se manifestou no coração
humano”.

Tomé 19
Jesus disse: “Feliz aquele que existiu antes de existir. Se se tornarem meus
seguidores e ouvirem minhas palavras, estas pedras lhes servirão. Pois para
vocês há cinco árvores no paraíso; elas não se modificam, seja no verão, seja
no inverno, e suas folhas não caem. Quem quer que as conheça não provará
a morte”.

Além desses Ditos, Lincoln sustenta que o Dito 108 se mostra uma apresentação
convincente dirigida aos que aceitavam tornarem-se membros da comunidade (1977, p. 70):

Tomé 108
Jesus disse: “Quem beber de minha boca se tornará como eu; eu próprio me
tornarei essa pessoa, e as coisas ocultas serão reveladas para essa pessoa”.

Inseridos na comunidade-Tomé, os adeptos deveriam pautar suas vidas consoante


determinadas regras. Uma dessas regras, portanto, expressa em quatro Ditos distintos
impunha o abandono de suas famílias (1977, p. 71):

Tomé 55
Jesus disse: “Quem quer que não odeie o pai e a mãe não pode ser meu
seguidor, e quem quer que não odeie seus irmãos e irmãs e não carregue a
cruz como eu carrego não será digno de mim”.

Alojados na comunidade-Tomé, os membros deviam observar regras relativas ao jejum,


orações e caridade conforme se pode ler nos Ditos 6, 14 e 104 (1977, p. 71):

Tomé 14
Jesus disse-lhes: “Se jejuarem, incorrem em pecado, e se orarem, serão
condenados, e se derem esmolas, prejudicarão seus espíritos”.

Para Lincoln, ser membro da comunidade-Tomé implicava, obrigatoriamente, adotar


uma disciplina ascética rígida. Com efeito, em sua leitura desse material, os Ditos 27, 36, 42,
54, 58, 95 e 100 eram entendidos como mandamentos de renúncia a esse mundo (1977, p. 71):

Tomé 27
Se não jejuarem do mundo, vocês não encontrarão o reino. Se não
observarem o sabá como sabá, não verão o pai.
28

Tomé 36
Jesus disse: “Não se preocupe, da manhã até a noite e da noite até a manhã,
com o que vestirá”.

Tomé 58
Jesus disse: “Feliz a pessoa que trabalhou muito e encontrou a vida”.

Em sua construção da estrutura comunitária de Tomé, Lincoln aventa que seus


integrantes eram encorajados a estudar e, mais que isso, a confiar em Jesus e em si próprios.
Nesse sentido, os Ditos 1, 3, 5, 26, 43, 67, 70, 91 e 94 eram empregados para esse fim (1977,
p. 71):

Tomé 94
Jesus [disse]: “Quem procura, encontrará; para [quem bate] ser-lhe-á aberta”.

Lincoln encontra, nos Ditos de Tomé, elementos que atestam que os mais antigos
instruíam os mais novos com ensinamentos elementares e materiais esotéricos.
Posteriormente, e sem pressa, os noviços eram ensinados acerca da natureza da alma (Ditos 8,
76, 96, 97, 107, 109), da natureza do Cristo (Ditos 44, 52, 59, 65, 66), a relação entre carne,
mundo, corpo e alma (Ditos 29, 80, 81, 87, 110,111, 112), o reino da luz (Ditos 24, 50, 77,
83) e comer coisas vivas (Ditos 7, 11, 60).
Lincoln vai além e pondera que essas regras e estudos demandavam vários anos e que,
ao longo desse tempo, alguns noviços deixariam a comunidade. Convém frisar que ele não
indica se a evasão decorria dos sacrifícios que as regras impunham ou se por quaisquer outras
razões.
Os que permaneciam na comunidade, no entanto, “absorvendo essas doutrinas e
mantendo as práticas ascéticas do grupo”, passavam por um ritual batismal e eram “iniciados
na condição de membro completo da comunidade-Tomé” (1977, p. 72).
Por sua vez, assim como Tomé contém instruções e conselhos para os noviços, os
membros mais velhos da comunidade também encontram orientações nos Ditos. Nesse
sentido, Lincoln encontra indicações sobre como angariar adeptos (Ditos 9, 14b, 20, 73, 93 e
74). Para esse grupo mais seleto da comunidade-Tomé, o pesquisador alega haver sentenças
no material tomesino que sugerem “a necessidade de erigir uma forte organização como uma
defesa contra perseguição” (1977, p. 73):
29

Tomé 32
Jesus disse: “Uma cidade construída sobre alta montanha e fortificada não
pode cair, nem pode estar oculta”.

Entretanto, ele sublinha, o estudo era uma obrigação constante para todos os membros
da comunidade-Tomé. Cumpre salientar que Lincoln defende que o Dito 62 constitui uma
sentença que mostra haver um segundo nível de instrução para os integrantes da comunidade
(1977, p. 73) :

Jesus disse: “Desvendo meus mistérios para aqueles [que são dignos] de
[meus] mistérios. Não deixem que sua mão esquerda saiba o que a sua
direita está fazendo”.

No topo da comunidade, propõe Lincoln, situavam-se os “Perfeitos”, aqueles membros


que haviam atingido o “estado andrógino” (1977, p. 76). Esses, por sua vez, seriam “os mais
experientes e mais dedicados membros do grupo e deviam ser em número reduzido” (1977, p.
76):

Tomé 23
Jesus disse: “Eu os escolherei, um dentre mil e dois entre dez mil, e eles
permanecerão como um só”.

Os “Perfeitos” eram aqueles que foram bem-sucedidos no abandono completo do


mundo, “superando o estado falido do homem e assim podiam não somente olhar a frente para
salvação futura, mas como podiam desfrutar dela no aqui e agora” (1977, p. 76):

Tomé 49
Jesus disse: “Felizes aqueles sozinhos e escolhidos, pois encontrarão o reino.
Vocês vieram dele e retornarão a ele”.

Tomé 75
Jesus disse: “Há muitos que permanecem à porta, mas aqueles que estão sós
entrarão no cômodo nupcial”.

Encerrando suas perquirições analíticas, Lincoln reitera que o traçado de uma


comunidade por detrás de Tomé é uma hipótese e não mais que isso. Todavia, ele salienta, seu
texto oferece uma boa explicação para o que muitos pensam ser um amontoado de Ditos
heterogêneos.
No rol da documentação não canônica, convém frisar, por outro lado, a existência de um
texto que, consensualmente, ratifica a noção de que determinados cristãos reuniram-se em
30

comunidades. Aaron Milavec, por exemplo, é assertivo e postula que a Didaqué é um


documento anônimo e “como tantos outros livros das Escrituras Cristãs, não pertenceu ou
originou-se de um indivíduo sozinho. Pertenceu a várias comunidades de chefes de família
que tinham recebido o Caminho da Vida por meio de uma revelação dada a eles pelo Pai
através de seu servo Jesus” (2002, p. 3).
John D. Crossan postula que esse pequeno manual de disciplina “deixa-nos ver,
provavelmente da melhor forma que jamais conseguiremos, como uma comunidade cristã
primitiva regulava sua vida” (2004, p. 403). Ademais, apoiando-se em Milavec, Crossan
aponta que o documento foi gerado em razão de uma “crise comunitária” (2004, p. 405).
Adiante, chega a dizer que a “comunidade da Didaqué” possuía e “executa um programa de
instrução completa para novos convertidos, em especial pagãos” (2004, p. 410).
Jonathan Draper, um especialista nesse material, afirma acreditar que a “Didaqué e
Mateus vieram da mesma comunidade, nomeadamente Antioquia” (1991, p. 355). Entretanto,
ele sugere que se ambos os documentos emergiram de dentro da mesma comunidade, não
cabe procurar relações de dependência literária entre os textos, mas atentar para a dialética
que regulou a influência de um texto sobre o outro. No fim das contas, ele declara (1991, p.
355) (Grifos do autor):

O gênero evangelho tomou o lugar do gênero regras da comunidade. O


gênero regras da comunidade ou ordem da igreja sobreviveu na periferia,
mas sem a autoridade de Escritura.

Assim, como ele admite que Didaqué foi engendrada dentro de uma comunidade, não
há problema algum, para Draper, em deduzir que o texto, em uma determinada passagem,
expõe mudanças de circunstâncias e controvérsias no seio da comunidade.
Encontra-se consagrado o uso de “comunidade” para referir-se às primitivas formações
de seguidores do movimento de Jesus sem Jesus. Mais que isso, os textos rotulados como
“evangelhos” conteriam indicações sobre essas comunidades, denotando suas particularidades
e peculiaridades.
Assim, os estudiosos, em sua ampla maioria, têm como certo que a comunidade
mateana era constituída por judeus, que a comunidade lucana era composta por um misto de
gentios e judeus, que a comunidade joanina congregava elementos de variadas procedências, a
comunidade tomesina era marcada pela existência de distintos grupos de iniciados e assim por
diante. Tomando emprestada uma expressão do filósofo da ciência Thomas Kuhn (1998),
31

convém asseverar que “comunidade” se trata de um paradigma no campo dos estudos


neotestamentários.
Entretanto, em 1979, Luke Timothy Johnson asseverava serem desastrosas todas as
tentativas de deslindar comunidades por detrás dos evangelhos. Assim, verificando a
passagem registrada em Lc 11:1 – “Estando, em certo lugar, orando, ao terminar, um de seus
discípulos pediu-lhe: ‘Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou a seus discípulos’” –
Johnson questiona se, a partir desse versículo, pode o pesquisador atestar que: (a) a
comunidade (ou alguns dentro dela) não ora? Ou (b) a comunidade está solicitando a correção
de uma visão inapropriada acerca da forma de orar? (apud KLINK III, 2004, p. 63).
Em suas ponderações sobre o atual estado do debate, Edward K. Klink III alerta que a
discussão acerca do emprego do termo “comunidade” gira em torno de “definições” (2004, p.
78). Nesse sentido, ele afirma que o futuro das discussões deverá se concentrar em quatro
áreas específicas: (1) definição do termo “comunidade”; (2) definição da natureza dos
evangelhos; (3) definição do uso e da função do evangelho na igreja primitiva e (4) a crítica
pós-moderna da ênfase histórica-crítica da modernidade.
A respeito do primeiro tópico, Klink III faz menção aos perigos inerentes que emergem
quando se aplicam termos formativos tais como “comunidade”, “seita” ou “grupo”
evangélico(a) sem uma definição apropriada. Convém frisar, porém, que o próprio Klink III
não avança sobre o assunto, à medida que ele mesmo não detalha em que sentido o termo
deve ser compreendido.
Em suma, até que uma definição satisfatória seja encontrada, os círculos acadêmicos
não terão muito para onde se dirigir a não ser continuar utilizado o termo “comunidade” para
se referir ao público para o qual cada um dos evangelhos foi redigido e, concomitantemente, o
meio em cujo interior essas narrativas foram geradas.

II. ESTABELECENDO BALIZAS E DEFININDO HIPÓTESES

Tudo começa quando os pesquisadores, mesmo com tendências teológicas, tomam


consciência que os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas guardam significativas
semelhanças textuais entre si. Concomitantemente, percebe-se que esses mesmos textos
evangélicos apresentam dessemelhanças textuais quando comparados.
Refeitos do choque que tal descoberta lhes suscitou, os estudiosos se veem diante de um
problema a ser resolvido. Aliás, o quebra-cabeça torna-se ainda mais complexo quando os
32

acadêmicos se dão conta de que, comparado aos três primeiros evangelhos, João, o Quarto
Evangelho, é bastante diferente. Em muitos aspectos, diga-se de passagem.
Instaurando-se, a partir daí, o assim chamado Problema Sinótico. Expressão essa que é
uma referência ao “problema” causado quando da percepção das semelhanças e
dessemelhanças entre os documentos evangélicos canônicos. No intuito de solucionar o
Problema Sinótico, várias hipóteses foram testadas. Muita tinta foi gasta na busca de uma
resposta satisfatória para a questão: Por que Mateus, Marcos e Lucas relatam a história de
Jesus quase na mesma ordem enquanto João não os acompanha?
Por conseguinte, o primeiro capítulo desta Tese introduz toda essa discussão acadêmica
desde o seu surgimento, apresentando e ilustrando as muitas hipóteses que foram
desenvolvidas. Ademais, convém ressaltar, ficará evidente que os debates sobre o Problema
Sinótico e suas tentativas de resolução tomam por base as relações de dependência literária
entre os evangelhos. Assim, perícopes individuais serão postas lado a lado, setas serão
dirigidas de uma coluna para outra, palavras serão sublinhadas de diferentes maneiras.
A descoberta casual, em meados do século XX, de um exemplar do Evangelho de Tomé
no interior de uma caverna situada próximo a Nag Hammadi, no Egito, suscitou, por sua vez,
outro impacto nos círculos acadêmicos. O relato de seu achado estará presente no início do
segundo capítulo que é inteiramente dedicado a descortinar múltiplos aspectos desse
surpreendente documento cristão.
Em seguida à apresentação de Tomé, o terceiro e último capítulo tratará do que aqui será
denominado como o “Novo Problema Sinótico”. Quer dizer, o reconhecimento de que esse
Evangelho contém sentenças atribuídas a Jesus que são muito semelhantes às suas falas
registradas nos evangelhos canônicos, enseja adotar procedimentos metodológicos similares
aos que foram utilizados na busca de uma solução para o Problema Sinótico.
Entretanto, esse procedimento comparativo não se lastreará no paradigma literário.
Muito embora se tratem de textos, tais documentos originaram-se em um ambiente
marcadamente oral. Por conseguinte, em vez de atentar-se para as semelhanças e
dessemelhanças textuais como consequências de erros, deliberados ou não, de escribas, será
testado a hipótese de a memória e suas peculiaridades estarem por trás tanto das diferenças
quanto das concordâncias.
Com efeito, e isso será descrito no momento aprazado, há muito se perdeu de vista que
a transmissão das tradições de e sobre Jesus de Nazaré dependeram de sujeitos que, letrados
ou não, deslocaram-se por longas extensões territoriais e proferiram suas pregações para
distintos públicos. Esse detalhe ainda não entrou em pauta na esmagadora maioria dos estudos
33

acadêmicos. Um detalhe que, por sua vez, tem implicações significativas para quem tem em
mente encontrar a versão mais original dos discursos de Jesus.
Cumpre, portanto, sistematizar a ordenação dessa Tese em seu esforço de vislumbrar os
cenários mais plausíveis para o processo de transmissão das tradições de e sobre Jesus:

Capítulo 1: As “comunidades” de crenças que se formaram em torno da mensagem


revolucionária de Jesus de Nazaré consideraram essencial coletar e verter por escrito as
memórias referentes ao seu ministério público. Fragmentos de textos despontaram, alguns se
perderam, e textos completos foram redigidos. Permanece, porém, na obscuridade a maneira
como todo esse processo se desdobrou e de que forma – ou se chegou a ocorrer – os textos
circulavam e eram absorvidos nos diferentes grupos.
A tradição cristã, contudo, engendrou discursos de verdade segundo os quais cada um
dos evangelhos que vieram a lume havia sido escrito por sujeitos discretos e que, de uma
maneira ou outra, deviam ser encarados como redatores de relatos fidedignos da carreira
pública do filho de José e Maria.
Tal convicção foi derruída quando o olhar acadêmico, crítico e cético, reconheceu que
os textos canônicos possuíam alguma espécie de dependência literária entre si. Implica dizer,
quem quer que tenham sido seus autores, os textos dialogavam entre si, haviam sido
confrontados em algum momento. Dessa percepção, emergiu o Problema Sinótico.
Um problema ignorado pela ampla massa de fieis da cristandade nada afeita aos
colóquios eruditos, mas de fundamental importância para a escrita da história social dos
cristianismos primitivos. A emergência dessa questão, as hipóteses aventadas para solucioná-
la e seus desdobramentos serão o objeto do capítulo “No princípio era o Problema Sinótico”.

Capítulo 2: O mar calmo em que navegavam as narrativas acerca da mensagem e da


missão de Jesus de Nazaré foi revirado por um “maremoto” quando, em meados do século
XX, uma biblioteca contendo textos, até então desconhecidos, veio à tona. Descoberta no
deserto egípcio, a coletânea de documentos continha material que impactou os círculos
acadêmicos à proporção que, devidamente compreendida, acarretaria uma indispensável e
irrecusável revisão em tudo o que se sabia a respeito das origens do movimento de Jesus sem
Jesus.
Com efeito, dessa biblioteca antiga destacava-se um evangelho que provocou uma cisão
entre os especialistas: o Evangelho de Tomé. Tudo nele era por demais inusitado para
pesquisadores cuja carreiras se consolidaram no exame de textos “cristãos” nos quais Jesus de
34

Nazaré era o Messias, realizava milagres, enfrentava as autoridades de seu tempo,


pronunciava parábolas e, acima de tudo, morrera e retornara três dias após o seu decesso.
Tomé se mostrava radicalmente distinto de tudo o que sempre se supôs fosse sabido
acerca de Jesus. Quem o escreveu aparentava nunca ter tido contato com as tradições
depositadas nos evangelhos canônicos de Marcos, Mateus, Lucas e João. Não é de se
espantar, portanto, a tensão que ocasionou e as seguidas desqualificações a que esteve sujeito.
O exame, porém, de sua forma e de seu conteúdo apontou que esse texto antigo
representava outra voz dentre tantas outras que se produziram nos primeiros séculos da Era
Comum. Mesmo que se escolhesse rotulá-lo como um documento que não procedia das
pregações de Jesus de Nazaré, retirando-se dele sua autenticidade, convinha tratá-lo como
testemunho da polissemia de discursos ensejados em torno da figura de Jesus.
Redescoberto nas “Areias do deserto”, Tomé é submetido a escrutínio nesse capítulo no
máximo de tópicos possíveis no intuito de ser conhecido e, assim se espera, cooperar para a
demolição dos preconceitos que cercam esse importante documento “cristão”.

Capítulo 3: O olhar bastante atento sobre Tomé, por sua vez, redundou na percepção de
que essa coletânea de sentenças atribuídas a Jesus de Nazaré contém notáveis semelhanças
com falas igualmente atribuídas a ele nos evangelhos que foram canonizados. Levantamentos
feitos assinalaram haver em torno de 1/3 de ditos em comum.
Assim, não incorre em equívoco sustentar que o evangelho tomesino instaurou um
Novo Problema Sinótico. Com efeito, se a semelhança entre os evangelhos sinóticos suscitou
a busca pela ordem cronológica em que esses textos foram redigidos e as possíveis relações
de dependência literária entre si, qual motivo lógico e sensato para não submeter os textos a
uma análise comparada agregando Tomé ao quadro?
Em verdade, não há motivos para se recusar essas comparações. No último capítulo,
portanto, as comparações são feitas adotando-se procedimento metodológico idêntico ao que
os acadêmicos empreenderam quando intentaram solucionar o Problema Sinótico “original”.
Todavia, convém fazer uma ressalva: as tentativas de equacionar-se o Problema
Sinótico se deram sob a égide do paradigma literário. Implica dizer, situando lado a lado
textos e textos. Ignorando-se, deliberadamente ou não, que todos esses textos eram voltados
mais para os ouvidos do que para os olhos. Em outras palavras, textos erigidos para
audiências em diferentes níveis de letramento e, portanto, recitados em performances
comunais e interativas.
35

Ora, se o material escrito foi precedido, necessariamente, pela transmissão oral é


provável que cada um dos Ditos que o compõe haja sido enunciado de maneiras distintas,
consoante: (a) quem era o portador da palavra; (b) a audiência presente; (b.1) as reações
imprevisíveis com que cada audiência recebia esses carismáticos ambulantes.
Assim, o capítulo conclusivo opera em dois níveis. Em um primeiro momento, numa
não exaustiva discussão em torno dos avanços advindos do frutífero diálogo entre os estudos
bíblicos e os estudos sobre oralidade e sobre memórias, textos são tratados como textos e
assim abordados. Em seguida, os limites dessa aproximação ao material literário ficarão
evidenciados quando se verificar que o paradigma literário é insuficiente para se entabular
uma análise mais de acordo com o cenário dentro do qual esses documentos foram trazidos à
baila.
Nesse sentido, convém desvestir-se da visão padrão sobre os primórdios da constituição
das crenças ditas cristãs e ter em mente a imperiosa necessidade de analisar esse pretérito por
meio da noção de que o material literário era consequente a proclamações e performances
orais. Dependentes, em maior ou menor grau, da memória.
Considerando-se a noção de fala “original” em sociedades de comunicação
marcadamente oral/acústica e que a mensagem de Jesus de Nazaré foi divulgada por sujeitos
distintos, em situações diferentes e para audiências singulares, a polissemia de discursos sobre
o Mestre da Galileia aponta para a conclusão de que todos os ditos podem ser considerados
autênticos e originais e que, em razão dessa hipótese, as discrepâncias textuais, excetuando-se
as em que se pode demonstrar a intervenção de um copista, originam-se de aspectos
peculiares das performances orais.
36

No princípio era o

1 Problema Sinótico
As relações literárias entre os evangelhos
sinóticos
37

Há um postulado, quase um axioma, que enuncia: tudo o que se pode saber a respeito
de Jesus e do movimento popular messiânico por ele liderado encontra-se, por inteiro, nos
quatro relatos contidos no assim chamado Novo Testamento6: os evangelhos de Marcos,
Mateus, Lucas e João. Um corolário deste postulado: portanto, os quatro documentos
fornecem e se constituem um conjunto unitário, harmônico e concordante.
Assim, existe a noção de que esses quatro relatos narram com fidelidade histórica as
palavras e atos de Jesus durante seu ministério público. Afinal, conforme essa noção, os
autores dos evangelhos foram testemunhas oculares, nos casos de Mateus e João, e indiretas,
no que se refere a Marcos e Lucas7.
No entanto, esse testemunho quádruplo, se for lido horizontal e comparativamente,
quer dizer, centrando-se numa unidade ou noutra de qualquer um dos evangelhos e fizer-se
uma comparação ao longo de duas, três ou quatro versões, o que se percebe claramente é bem
mais a discordância do que a concordância.
Pode-se, por exemplo, buscar determinar o primeiro dos “milagres” atribuídos a Jesus.
De acordo com o autor do evangelho de Marcos, o primeiro sinal prodigalizado por Jesus em
seu ministério público ocorreu em Cafarnaum, no interior de uma sinagoga, por meio da
expulsão de um espírito impuro que atormentava um homem não nomeado pela narrativa (Mc
1,21-28), ao passo que, conforme o autor do evangelho de João, o “início dos sinais”, isto é,
Jesus provando a autenticidade de sua missão, ocorreu em Caná da Galileia, durante um

6
“Novo Testamento” não é, no sentido usual, um livro, mas uma coleção de escritos cristãos primitivos, num
total de vinte e sete documentos. Harry Gamble pondera que o Novo Testamento “desenvolveu-se gradualmente
ao longo de vários séculos como resultado de uma variedade complexa de fatores condicionantes na vida da
igreja primitiva e que não atingiu a forma que o conhecemos hoje antes do século IV” (GAMBLE, 1985, p. 12).
7
A pesquisa acadêmica há muito abandonou os esforços para identificar os autores de cada um dos evangelhos
canônicos. Helmut Köester pondera que esses documentos “são composições em que tradições orais e
documentos antigos foram inseridos em escritos” (KOESTER, 2005, p. 5).
38

casamento no qual Jesus teria transformado água em vinho (Jo 2,1-12), aliás, um tipo de
fenômeno exclusivo da narrativa joanina8.
Além desse exemplo, vários outros suscitam um impasse acerca de como entender os
materiais comuns, os materiais exclusivos e os materiais divergentes que se encontram nas
quatro narrativas evangélicas intracanônicas.

1.1. DAS HARMONIAS À SINOPSE DOS EVANGELHOS

Ao contrário do que possa parecer, não é uma constatação moderna a percepção de


que as narrativas evangélicas intracanônicas apresentam vários pontos de convergência e de
divergência9. Consoante o falecido historiador Geza Vermes, “perturbada pelas diferenças e
dissonâncias nos quatro registros da vida de Jesus”, a igreja cristã tentou aplainar ou eliminar
as discrepâncias (2006, p. 17)10. Por conseguinte, prossegue Vermes, “a igreja primitiva
tentou substituir os quatro Evangelhos separados por uma narrativa que incorporasse todos os
detalhes de Mateus, Marcos, Lucas e João”, de forma a eliminar todas as diferenças (2006, p.
17). Mark Goodacre concorda com Vermes e sustenta que a harmonização resultou, em parte,
do constrangimento que se sentia quando era observada a existência de quatro evangelhos na
Bíblia e não apenas um (2005, p. 14).
Assim, uma sintética apresentação de alguns dos textos mais importantes permitirá
atentar para os esforços no sentido de engendrar uma harmonia dos Evangelhos e, por
conseguinte, acompanhar o processo que conduziu, enfim, à formulação do assim chamado
Problema Sinótico.
Já no século II, autores cristãos buscavam produzir uma harmonia dos evangelhos. A
mais antiga tentativa empreendida para resolver o problema das semelhanças e diferenças
existentes entre os evangelhos intracanônicos liga-se a um discípulo de Justino Mártir11, o
cristão sírio Taciano (c. 110-172), que “muito provavelmente entre 165 e 180 E.C.”
(KOESTER, 2005, p. 34), redigiu uma harmonia dos quatro Evangelhos denominada

8
Convém ressaltar que jamais, na narrativa joanina, Jesus é retratado realizando exorcismos.
9
Black e Beck (2001, p. 11) observam que as semelhanças e diferenças entre os evangelhos sinóticos (Mt, Mc e
Lc) constituem um fenômeno único em toda a literatura da Antiguidade.
10
Geza Vermes faleceu em 8 de maio de 2013 aos 88 anos.
11
Justino Mártir foi um dos mais famosos apologistas cristãos do século II.
39

Diatéssaron12, ou o “Quatro-em-Um” (VERMES, 2006, p. 17), com o propósito de obter um


texto que fosse único e abrangente13.
Consoante Robert H. Stein, Taciano entremeou os documentos, começando com o
prólogo joanino e seguindo a ordem das festividades judaicas tal qual encontrada no
evangelho de João. Quando seu trabalho foi finalizado, Taciano havia reduzido os 3.780
versículos dos quatro evangelhos para 2.769 versículos. Patricia Walters frisa que a
harmonização de Taciano produziu uma “visão coerente da vida e da mensagem de Jesus”
(WALTERS, 2010, p. 237). Com efeito, o Diatessaron tornou-se bastante popular e, no
século IV, havia mais de duzentas cópias de sua harmonia entre os evangelhos em uso
(STEIN, 1989, p. 16).
Seu método adotou o prólogo joanino (Jo 1,1-18) como o início do ministério de Jesus,
seguindo a ordem das festas judaicas, também do Evangelho de João, para traçar uma linha
cronológica e harmonizar os quatro relatos entre si. A obra de Taciano foi considerada
legítima durante vários séculos pelas Igrejas de língua siríaca no Oriente, mas não pelas de
língua grega e latina (BROWN, 2004, p. 67).
Em seguida, um cristão pouco conhecido, chamado Ammonius de Alexandria (c. 220),
precursor das modernas sinopses dos evangelhos, embora tenha empregado o termo
“harmonia”, buscou listar as passagens paralelas identificáveis nos evangelhos com fins de
comparação, sem se ocupar com a sequência histórica (STEIN, 1989, p. 17).
Com base neste trabalho de Ammonius, Eusébio de Cesaréia (265-339) produziu seu
famoso Cânone de Eusébio. Neste seu catálogo de cânones, Eusébio disponibilizava uma útil
relação dos materiais paralelos aos quatro evangelhos. Em primeiro lugar, ele dividiu cada um
dos evangelhos em seções começando cada uma pelo número um. Sua primeira relação listava
o material que era comum aos quatro evangelhos. Assim, na relação – Mt 8; Mc 2; Lc 7 e Jo
10 – Eusébio indicava que a oitava seção de Mateus, a segunda de Marcos, a sétima de Lucas
e a décima de João continham material paralelo, a saber, o batismo de Jesus.
Os outros cânones eram:
2º Material comum a Mateus, Marcos e Lucas;

12
O termo, conforme assinala Helmut Köester (2005, p. 34), parece indicar o uso de quatro fontes, mas que
também pode simplesmente significar “harmonia”.
13
Conforme Emily J. Hunt, as evidências da Patrística permitem afirmar que Taciano combinou os quatro
evangelhos conhecidos com “um ou mais evangelhos judeu-cristãos” (HUNT, 2003, p. 56). Helmut Koester
aponta que, além desses evangelhos, sugere-se que o Evangelho de Tomé igualmente foi usado por Taciano.
Entretanto, ele assevera, os argumentos empregados “não são convincentes” (KOESTER, 2005, p. 35).
40

3º Material comum a Mateus, Lucas e João;


4º Material comum a Mateus, Marcos e João;
5º Material comum a Mateus e Lucas;
6º Material comum a Mateus e Marcos;
7º Material comum a Mateus e João;
8º Material comum a Lucas e Marcos;
9º Material comum a Lucas e João;
10º Composto por quatro subseções que listam o que é exclusivo a Mateus, Marcos,
Lucas e João.
Outro trabalho importante que visava lidar com as similaridades e as discrepâncias entre
os evangelhos intracanônicos foi escrito por Santo Agostinho, intitulado De Consensu
Evangelistarum. Sua perspectiva era claramente harmonizadora, intentando demonstrar que
os relatos evangélicos não conflitavam ou contradiziam-se entre si. Como, em seu ponto de
vista, os evangelhos haviam sido escritos por homens através da ação do Espírito Santo, os
relatos não podiam desdizer-se uns aos outros.
Neste sentido, quando discute o ministério de João, cognominado Batista, o autor de
Confissões aponta que as palavras atribuídas a João, de fato, são distintas nas quatro versões
evangélicas14, todavia, tais diferenças não deveriam causar qualquer grande dificuldade, pois,
mesmo desconhecendo com precisão as reais palavras proferidas pelo profeta João, todos
podiam ter contato com a verdade do que teria sido pronunciado (STEIN, 1989, p. 18).
Ao discorrer sobre as versões diferentes do sermão do monte (ou montanha)
encontradas nos evangelhos de Mateus e Lucas15, o Bispo de Hipona argumenta que elas se
deveram ao fato de ter se dado em dois momentos distintos do ministério público de Jesus,
justificando-se assim os modos como foram descritas pelos autores dos evangelhos16.

14
Mt 3,1-12; Mc 1,7-8; Lc 3,7-18; Jo 1,19-34.
15
Mt 5,1-12; Lc 6,20-23.
16
Embora seja razoável supor, conforme argumenta Santo Agostinho, que as dessemelhanças narrativas do
sermão do monte (ou montanha) possam estar relacionadas a dois momentos diferentes do ministério público de
Jesus, seu argumento cai por terra quando, por exemplo, coloca-se à prova a perícope do batismo de Jesus pelo
profeta João, o Batista. Como os quatro relatos são divergentes, mas se referem necessariamente a um único
episódio, não há como utilizar como argumento para as discordâncias a ocorrência de mais de uma cena do
batismo.
41

Nos séculos seguintes, inúmeras outras harmonias dos Evangelhos foram produzidas,
sendo ainda perceptíveis as influências exercidas pelo trabalho de Taciano em muitas delas17.
Pode-se destacar como um dos mais importantes trabalhos realizados com este propósito o de
John Gerson, intitulado Monoterreron Sive Unum Ex Quattuor Evangeliis e publicado
originalmente em Colônia entre 1483 e 1484, que dividiu a vida de Jesus em 151 Rubricae ou
capítulos que, por sua vez, estavam divididos em três partes, acrescentadas a cada uma quatro
seções tratando de várias questões.
É de notar-se que até a invenção da imprensa estes trabalhos de harmonia dos
Evangelhos não tentavam pôr lado a lado os materiais comuns aos textos. A partir do
surgimento das máquinas tipográficas, cresceu o interesse pela produção de harmonias que
contivessem os relatos em paralelo com o objetivo de melhor compará-los. Estava em
andamento o processo de desenvolvimento das “Sinopses” evangélicas, que passavam a
substituir as “harmonias integradas”, isto é, tentativas de integrar os quatro testemunhos num
único documento, por “harmonias paralelas”, basicamente divididas em dois formatos
principais: (a) harmonias paralelas horizontais e (b) harmonias paralelas verticais.
Dentre as mais notáveis harmonias paralelas horizontais escritas, Stein menciona a de
João Calvino, denominada Uma harmonia dos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas,
publicada em Gênova no ano de 1555 (STEIN, 1989, p. 21). Nela, Calvino colocou os relatos
paralelos uns sobre os outros e seu trabalho aparentemente foi o primeiro a usar a divisão em
versículos dos Evangelhos.
A análise empreendida por Johann Jacob Griesbach no ano de 1776 e intitulada
Synopsis Evangeliorum Matthaei, Marci et Lucae, tornou-se célebre por inaugurar um novo
momento nos estudos neotestamentários a respeito das relações entre os textos de Mateus,
Marcos, Lucas e João.
Conforme suas percucientes observações e utilizando um “simples conjunto de critérios
críticos para comparar os quatro evangelhos entre si”, Griesbach concluiu que o Quarto
Evangelho – o de João – era diferente dos demais (MACK, 1994, p. 24). Por esse motivo,
Griesbach considerou o Evangelho de João menos indicado como obra historiográfica e

17
Orígenes de Alexandria, um teólogo cristão da primeira metade do século III, acreditava que a resolução podia
ser obtida por meio de uma operação simples: os textos deviam ser entendidos em dois níveis distintos, um
literário e outro espiritual. Por conseguinte, se o sentido literal de uma passagem evangélica confundia o fiel, seu
sentido espiritual, não. Em suma, Orígenes advogava que “apesar de os evangelistas, às vezes, descrevessem
diferentemente as motivações de Jesus, cada um escreveu uma verdade espiritual” (WALTERS, 2010, p. 237).
42

posicionou lado a lado os três primeiros evangelhos, para efeito de comparação (ou synopsis,
compreendida como “vista de conjunto”).
Sua proposta passava ao largo das tentativas de harmonizar os textos evangélicos, pois,
concebia ele, era seriamente duvidoso que uma narrativa harmônica pudesse ser obtida
justapondo-se os textos evangélicos, à medida que os autores dos evangelhos não deixaram
indicações de que teriam se orientado, em seus textos, por alguma ordem cronológica.
Basta observar o quadro abaixo que esquematiza uma provável ordem cronológica nos
relatos evangélicos adotando como ponto de referência o episódio em que Jesus convoca
pessoalmente seus primeiros discípulos (Quadro 1):

Quadro 1
Mateus Marcos Lucas João
Jesus convoca os Jesus convoca os Expulsa um espírito Jesus convoca os
primeiros discípulos; primeiros discípulos; impuro de um homem primeiros discípulos;
Profere um longo Expulsa um espírito no interior de uma Transforma água em
sermão no monte; impuro de um sinagoga; vinho durante um
Cura um leproso; homem no interior de Após sair da si- casamento em Caná;
Cura o servo do uma sinagoga; nagoga, cura a sogra Entra no Templo de
centurião; Após sair da de Simão. Jerusalém e causa
Cura a sogra de sinagoga, cura a Jesus convoca os um grande distúrbio.
Simão. sogra de Simão. primeiros discípulos;

Se admite-se como premissa que os relatos evangélicos foram baseados numa


rememoração dos fatos ocorridos durante o ministério público de Jesus, na sequência exata
em que se sucederam, o quadro comparativo acima dá sustentação ao argumento de Griesbach
segundo o qual não faz sentido elaborar um texto harmônico a partir dos textos de Mateus,
Marcos, Lucas e João. Pois, ou Jesus curou a sogra de Pedro após convocar os primeiros
discípulos (narrativas mateana e marcana) ou o fez antes de convidá-los (narrativa lucana) ou
sequer o fez (narrativa joanina).
Ao desistir de estruturar uma “harmonia” dos textos evangélicos, Griesbach abandona
este termo e emprega “sinopse”. Ao que tudo indica, essa foi a primeira vez que tal termo foi
utilizado com respeito ao material evangélico paralelo.
Seu trabalho notabilizou-se, portanto, por facultar aos estudiosos um instrumento útil de
comparação dos Evangelhos. Novas edições de sua Synopsis foram trazidas a lume
43

continuamente, findando com uma publicação póstuma em 1822. Seu trabalho tornou-se uma
importante referência nos estudos ligados ao Problema Sinótico.

1.2. A INTERDEPENDÊNCIA LITERÁRIA DOS EVANGELHOS SINÓTICOS

Contudo, esses trabalhos chamaram a atenção para outros aspectos. Em primeiro lugar,
em função das semelhanças entre si, Mateus, Marcos e Lucas receberam um nome específico
para identificá-los: Evangelhos Sinóticos. Em segundo, os estudiosos observaram que esses
três evangelhos apresentavam “materiais paralelos numa estrutura semelhante e com
frequência na mesma sequencia de perícopes18 individuais” (KOESTER, 2005, p. 48).
À extensa quantidade de material comum cogitou-se a possibilidade de ter ocorrido por
uma pura coincidência. O elevado grau de concordâncias, porém, fez com que esta conjectura
fosse descartada, impelindo os eruditos a debruçar-se com mais atenção sobre os Evangelhos
Sinóticos.
Nesse sentido, conforme avançavam as análises, diversos grupos de concordâncias iam
se tornando evidentes19, como, por exemplo, semelhanças de palavras (Quadros 2, 3 e 4), a
disposição comum de perícopes individuais (Quadros 5, 6 e 7) e as concordâncias de material
parentético (Quadro 8):

18
“Termo técnico para designar o segmento de um texto bíblico ‘cortado’ para leitura litúrgica no ofício
religioso. As perícopes são quase sempre unidades pequenas, autônomas, compreendendo não mais do que uma
pequena porção do capítulo de um livro bíblico” (KÖESTER, 2005, p. 373).
19
A sequência “Mateus-Marcos-Lucas” adotada nesses quadros não indica a ordem cronológica de redação dos
evangelhos, mas apenas obedece a disposição tradicional dos textos no assim chamado Novo Testamento.
44

Quadro 2

Mateus 9:9 Marcos 2:14 Lucas 5:27


Indo adiante, viu Jesus um E tornou a sair para a beira- Depois disto saiu, viu um
homem chamado Mateus, mar, e toda a multidão ia até publicano, chamado Levi,
sentado na coletoria de ele, e ele os ensinava. Ao sentado na coletoria de
impostos e disse-lhe: passar, viu Levi, filho de impostos e disse-lhe:
“Segue-me”. Este, levan- Alfeu, sentado na coletoria “Segue-me!” E levantando-
tando-se, o seguiu. de impostos, e disse-lhe: se, ele deixou tudo, e o
“Segue-me”. Ele se seguia.
levantou e o seguiu.

Legenda: Itálico: Material comum a Mateus e Marcos


Sublinhado: Material comum a Marcos e Lucas
Negrito: Material comum a Mateus, Marcos e Lucas

Quadro 3

Mateus 19:13-15 Marcos 10:13-16 Lucas 18:15-17


Naquele momento, foram- Traziam-lhe crianças para que Traziam-lhe até mesmo as
lhe trazidas crianças para as tocasse, mas os discípulos criancinhas para que as
que lhes impusesse as mãos as repreendiam. tocasse; vendo isto, os
e fizesse uma oração. Os discípulos as repreendiam.
discípulos, porém, as
repreendiam.

Jesus, todavia, disse: Vendo isso, Jesus ficou Jesus, porém, chamou-as,
“Deixai as crianças e não indignado e disse: “Deixai as dizendo: “Deixai as crianças
as impeçais de virem a crianças virem a mim. Não as virem a mim, e não as
mim, pois delas é o Reino impeçais, pois delas é o Reino impeçais, pois delas é o
dos Céus”. de Deus”. Reino de Deus”.
Em verdade vos digo: aquele Em verdade vos digo: aquele
que não receber o Reino de que não receber o Reino de
Deus como uma criança, não Deus como uma criança, não
entrará nele”. entrará nele”.

Em seguida impôs-lhes as Então, abraçando-as, aben-


45

mãos e partiu dali. çoou-as, impondo as mãos


sobre elas.

Legenda: Itálico: Material comum a Mateus e Marcos


Sublinhado: Material comum a Marcos e Lucas
Negrito: Material comum a Mateus, Marcos e Lucas

Quadro 4

Mateus 22:23-33 Marcos 12:18-27 Lucas 20:27-40


Naquele dia, aproximaram- Então foram até ele alguns Aproximando-se alguns dos
se dele alguns saduceus, saduceus sacudeus
que

dizem não existir – os quais dizem não existir – que negam existir
ressurreição, ressurreição – ressurreição –

e o interrogaram: e o interrogaram: “Mestre, interrogaram-no: Mestre,


“Mestre, Moisés disse: Moisés deixou-nos escrito Moisés deixou-nos escrito:
que

Se alguém morrer sem ter se alguém tiver irmão que


Se alguém tiver um irmão
filhos, o seu irmão se casará morra deixando mulher sem
casado e este morrer sem
com a viúva e suscitará filhos, tomará ele a viúva e
filhos, tomará a viúva e
descendência para o seu suscitará descendência para
suscitará descendência para
irmão. Ora, havia entre nós seu irmão. Havia sete
o seu irmão. Ora havia sete
sete irmãos. irmãos.
irmãos.

O primeiro, tendo-se O primeiro tomou mulher, e

casado, morreu e, como morreu sem deixar O primeiro tomou mulher e


não tivesse descendência, descendência. O segundo morreu sem filhos. Também
deixou a mulher para o seu tomou-a e morreu sem deixar o segundo, e depois o
irmão. O mesmo aconteceu descendência. E o mesmo terceiro a tomou; e assim os
com o segundo, com o sucedeu ao terceiro. E os sete sete morreram sem deixar
terceiro, até o sétimo. não deixaram descendência. filhos.

Por fim, depois de todos Depois de todos, também a


46

eles, morreu também a mulher morreu. Na


mulher. Pois bem, na ressurreição, quando Por fim, também a mulher
ressurreição, de qual dos ressuscitarem, de qual deles morreu. Esta mulher, na
sete será a mulher, pois que será a mulher? Pois que os ressurreição, de qual deles
todos a tiveram?” sete a tiveram por mulher.” vai se tornar mulher? Pois
todos os sete a tiveram por
Jesus respondeu-lhe: Jesus disse: “Não é por isso mulher.”
“Estais enganados, que vos enganais,
desconhecendo as desconhecendo as Escrituras Jesus lhes respondeu: “Os
Escrituras o poder de Deus. e o poder de Deus? Pois filhos deste século casam-se e
Com efeito, na ressurreição, quando ressuscitarem dos dão-se em casamento; mas os
nem eles se casam e nem mortos, nem eles se casam, que forem julgados dignos de
elas se dão em casamento, nem elas se dão em ter parte no outro século e na
casamento, ressurreição dos mortos, nem
mas são todos como os eles se casam, nem elas se
anjos no céu. mas são como os anjos nos dão em casamento; pois
céus. nem mesmo podem morrer:
Quanto à ressurreição dos são semelhantes aos anjos,
mortos, não lestes o que Quanto aos mortos que hão de
Deus nos declarou? Eu sou ressurgir, não lestes no livro e são filhos de Deus, sendo
o Deus de Abraão, o Deus de Moisés, no trecho sobre a filhos da ressurreição. Ora,
de Isaac e o Deus de Jacó? sarça, como Deus lhe disse: que os mortos ressuscitam,
Ora, ele não é Deus de Eu sou o Deus de Abraão, o também Moisés o indicou na
mortos, mas sim de Deus de Isaac e o Deus de passagem da sarça, quando
vivos.” Jacó? Ora, ele não é Deus de diz: o Senhor Deus de
mortos, mas sim de vivos. Abraão, o Deus de Isaac e o
Deus de Jacó. Ora, ele não é
Deus de mortos, mas sim de
Ao ouvir isso, as multidões Estais muito enganados!” vivos; todos, com efeito,
ficaram extasiadas com o vivem para ele.”
seu ensino. Tomando então a palavra,
alguns escribas disseram-lhe:
“Mestre, falaste bem.” E já
ninguém mais ousava
interrogá-lo sobre coisa
alguma.
47

Legenda: Itálico: Material comum a Mateus e Marcos


Sublinhado: Material comum a Marcos e Lucas
Negrito: Material comum a Mateus, Marcos e Lucas

Embora as marcações (definidas na legenda) possam gerar alguma confusão na


percepção das relações literárias entre os Evangelhos, elas possuem um objetivo bem
definido. Dirigem o olhar para as concordâncias exatas em palavras, ora entre dois, ora entre
três, evangelhos sinóticos. Ao mesmo tempo, é possível detectar certas semelhanças não em
palavras, mas em sentido, como, por exemplo, no Quadro 3, em que os textos de Mateus e de
Marcos grafam “crianças” enquanto o de Lucas opta por “criancinhas”20.
O que enseja a indagação de como três autores, desconhecidos entre si e escrevendo em
tempos e lugares diferentes, puderam assemelhar-se com tanta precisão em seus escritos. Uma
resposta sugere que os três reportaram-se ao que exatamente aconteceu e ao que exatamente
foi dito.
No entanto, esta resposta deixa de considerar três aspectos:
(a) Porque algumas vezes os relatos não concordam exatamente nas mesmas palavras,
deduz-se que, a menos que se assuma que as concordâncias perfeitas signifiquem
“reproduções históricas exatas” e que as concordâncias imperfeitas ou as ausências de
concordâncias traduzem-se em “reproduções históricas inexatas”, cada relato de ditos ou
feitos de Jesus são inteiramente distintos entre si.
(b) É muito provável que Jesus falasse e pensasse em aramaico21. Ora, as concordâncias
em palavras aparecem na escrita em grego. Em termos de probabilidade, são mínimas as

20
As concordâncias em palavras ficam bem mais em destaque quando se tem acesso a sinopses em grego.
21
O pesquisador John P. Meier (1992, p. 253) assinala que “Jesus teria falado qualquer língua normalmente
usada” por judeus no dia-a-dia da Palestina do século I. No entanto, ele considera não podermos ter certeza
absoluta sobre qual língua exatamente era utilizada por Jesus. Segundo Meier, as provas literárias e epigráficas
“não nos dizem nada”, à medida que não traduzem diretamente “provas inequívocas sobre o idioma mais
comumente falado pelos judeus do povo na Palestina do século I”. Meier (1992, p. 255) apoia-se em alguns
pesquisadores que admitem ter ocorrido um “eclipsamento do idioma aramaico na Palestina durante o programa
de helenização desenvolvido pelos monarcas selêucidas da Síria nos séculos III e II a.C.”. Assim, Meier (1992,
p. 265) conclui que as “pesquisas devem, de preferência, se ater à opinião mais provável, ou seja, que Jesus
ensinava regular e talvez exclusivamente em aramaico, seu grego estando num nível apenas prático e
profissional, talvez mesmo rudimentar”. Por outro lado, Vermes (2006, p. 11) não titubeia, garantindo que “a
língua de Jesus e seus discípulos galileus era o aramaico, uma língua semítica aparentada ao hebraico, então
falada pela maioria dos judeus palestinos”. Brown (2004, p. 182) pondera que Jesus, sendo um “judeu galileu da
48

chances de que os três autores pudessem ter vertido para o grego as palavras e ações de Jesus
exatamente com os mesmos termos, quer tenham sido eles testemunhas oculares, quer tenham
coletado as passagens de outrem22.
(c) É conveniente lembrar que quando o evangelho de João registra episódios ou falas
similares, seu texto contém pouca ou nenhuma conformidade de palavras em relação aos
Sinóticos23. Isto não quer dizer que João fornece um testemunho mais fidedigno dos fatos
ocorridos durante o ministério público de Jesus do que os autores dos Evangelhos de Mateus,
de Marcos e de Lucas, como pelo menos duas passagens de seu evangelho parecem insinuar
(Jo 21,24: “Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu; e
sabemos que o seu testemunho é verdadeiro” e Jo 19,34-35a: “... mas um dos soldados
traspassou-lhe o lado com a lança e imediatamente saiu sangue e água. Aquele que viu dá
testemunho e seu testemunho é verdadeiro”)24. Indica somente um outro problema que surge

primeira terça parte do século I” falava aramaico e que o grego consistia numa “língua que ele geralmente não
falava (se é que deveras falou), a judeus e pagãos urbanizados”.
22
Não é de todo impossível que uma ou mais pessoas consigam traduzir, independentes entre si, uma palavra de
uma língua para outra utilizando a mesma expressão. Mas aqui estão em questão mais de 200 palavras,
estruturadas em frases e parágrafos. Neste sentido, é assaz pertinente a advertência de Vermes (2006, p. 11) no
que respeita ao texto grego dos evangelhos: “Se já existiu um Evangelho aramaico escrito, não sobreviveu por
muito tempo; nós certamente não o temos mais. Ao mesmo tempo, em consequência do sucesso da igreja
primitiva no mundo gentio (isto é, não judeu) falante do grego, o conjunto da mensagem transmitida pelos
apóstolos – o Evangelho, as epístolas e o resto – foi registrado em grego (...). Porém, esse Novo Testamento
grego é uma ‘tradução’ dos pensamentos e idéias genuínos do pensar e falar aramaicos de Jesus e seus discípulos
imediatos, não apenas a tradução para uma língua inteiramente diferente, mas também o transplante da ideologia
dos Evangelhos para o ambiente cultural e religioso completamente estrangeiro do mundo pagão greco-romano”.
É surpreendente, portanto, que esta transposição de palavras e idéias de um ambiente judaico para um outro
completamente distinto culturalmente conseguisse uniformidade a ponto de reproduzir as mesmas palavras.
23
Como é o caso dos relatos paralelos da cura à distância do filho/servo do funcionário real/centurião. Em João
(4:46-54) é explicitamente declarado que a cura do filho de um funcionário real ocorre em Caná da Galileia
enquanto no relato lucano (7:1-10), o episódio se dá em Cafarnaum com a cura do servo de um centurião. John
D. Crossan (1994, p. 364) sublinha que os dois textos “desenvolveram a história em sentidos opostos, partindo
de um único evento para chegar a dois processos divergentes”.
24
Lincoln (2002, p. 3-26) aponta que as expressões joaninas “ver” e “testemunhar”, presentes no Quarto
Evangelho, configuram-se como artifícios literários com forte conotação metafórica que foram empregados pelo
narrador e que, não obstante, não acarretam em implicações negativas no que se refere à integridade do
testemunho do Quarto Evangelho. C. H. Dodd (2003, p. 572) é de opinião que o autor do Quarto Evangelho,
“colocou na boca de seus personagens discursos que, já que eles demonstram não só a feição de seu próprio
estilo, mas também a marca de um ambiente diferente daquele em que tiveram lugar os eventos recordados, não
49

quando se crê que os documentos sinóticos se assemelham entre si porque são fruto de
observações daquilo que historicamente aconteceu.
Outra resposta alternativa defende que as concordâncias em palavras se devem ao fato
de que seus escritores foram guiados ou inspirados pelo Espírito Santo, por Deus ou o que
valha. Por conseguinte, novos problemas emergem:
(a) João será sempre um obstáculo a este tipo de explicação. Se os autores dos
Evangelhos Sinóticos foram “ajudados” por quem quer seja, daí o alto grau de semelhança
entre seus escritos, é necessário justificar porque estas “forças sobrenaturais” alijaram o autor
do Quarto Evangelho deste processo.
(b) Por sua vez, se a inspiração esclarece as concordâncias, ela não explica as
discordâncias. Se foi o Espírito Santo (ou outra entidade divina) quem fomentou as
semelhanças, é o caso de procurar quem foi que maldosamente “assoprou” as discrepâncias
entre os evangelhos canônicos.25
O outro conjunto de concordâncias entre os Evangelhos Sinóticos refere-se à disposição
de perícopes individuais (Quadros 5, 6 e 7):

Quadro 5
Mateus Marcos Lucas
a. Jesus ensina na sinagoga de Cafarnaum 1:21-22 4:31-32
b. Jesus cura um endemoninhado em Cafarnaum 1:23-28 4:33-37
c. Jesus cura a sogra de Pedro 8:14-15 1:29-31 4:38-39
d. Jesus faz várias curas no sábado 8:16-17 1:32-34 4:40-41
e. Jesus deixa Cafarnaum 1:35-38 4:42-43

podem ser tidos como históricos”. Por fim, C. H. Dodd (2003, p. 573) indaga: “Até que ponto esta obra,
narrando de novo num ambiente de pensamento o episódio do qual nasceu o Cristianismo, oferece um relato
verdadeiro e válido de seu significado na história?”
25
Brown (2004, p. 87-90) expõe as quatro posições gerais diferentes em relação à inspiração movendo-se por
trás dos livros bíblicos. São elas: (a) A inspiração da Escritura é uma piedosa crença teológica sem nenhum
valor; (b) Sem comprometer-se com nenhuma visão, seja positiva, seja negativa, alguns intérpretes consideram
as referências a inspiração como totalmente inapropriadas num estudo erudito das Escrituras; (c) A inspiração
divina é um elemento tão dominante que as limitações dos escritores humanos tornar-se-iam insignificantes; (d)
Uma posição intermediária que aceita a inspiração, mas admite que o papel de Deus, como autor das Escrituras,
não removeu as limitações humanas. Ehrman (2006, p. 21) é taxativo: “Do mesmo modo como os copistas
humanos copiaram, e alteraram, os textos das Escrituras, outros autores humanos escreveram os originais dos
textos das Escrituras. Ela [a Bíblia] é um livro humano do começo ao fim”.
50

f. Pregação de Jesus por toda a Galiléia 4:23 1:39 4:44


g. A milagrosa pesca dos peixes 5:1-11
h. Jesus cura um leproso 8:1-4 1:40-45 5:12-16
i. Jesus cura um paralítico 9:1-8 2:1-12 5:17-26
j. O chamado de Levi (Mateus) 9:9-13 2:13-17 5:27-32
l. Controvérsia sobre o jejum 9:14-17 2:18-22 5:33-39
m. Controvérsia sobre as espigas arrancadas 12:1-8 2:23-28 6:1-5
n. Controvérsia sobre a cura no sábado 12:9-14 3:1-6 6:6-11
o. Jesus cercado por uma grande multidão 4:24-25 3:7-12 6:17-19
12:15-16
p. Escolha dos Doze 10:1-4 3:13-19 6:12-16

Como já foi observado, a sequência do Quadro 5 ao ser comparada com a ordem do


evangelho joanino deu sustentação para que Griesbach recusasse a possibilidade de construir
uma harmonia entre os evangelhos, mas aqui a mesma cronologia dos eventos, excluindo
João, atende a outros propósitos. Assim, nesse quadro, fica bastante patente a concordância
em ordem das perícopes entre Marcos e Lucas, com exceção das duas últimas em que um dos
dois simplesmente inverteu a sequência dos eventos.
Observa-se também certa concordância na ordem mateana, embora os itens f e n estejam
deslocados em relação à ordem marcana e lucana, além de Mateus posicionar a escolha dos
Doze antes da controvérsia sobre a cura no sábado enquanto os outros dois redatores dos
Evangelhos situam-na em algum momento posterior.

Quadro 6
Mateus Marcos Lucas
a. Pedro reconhece Jesus como Messias 16:13-20 8:27-30 9:18-21
b. Jesus anuncia sua Paixão e Ressurreição 16:21-23 8:31-33 9:22
c. Jesus orienta sobre como segui-lo 16:24-28 8:34-9:1 9:23-27
d. A transfiguração 17:1-9 9:2-10 9:28-36
e. Diálogo a respeito do retorno de Elias 17:10-13 9:11-13
f. Jesus cura um rapaz possesso 17:14-21 9:14-29 9:37-43a
g. Segundo anúncio da Paixão 17:22-23 9:30-32 9:43b-45
h. Jesus paga o imposto ao Templo 17:24-27
i. Jesus ensina quem é o maior 18:1-5 9:33-37 9:46-48
j. O uso do nome de Jesus 9:38-41 9:49-50
51

l. Jesus alerta sobre as consequências da queda 18:6-9 9:42-50 17:1-2


14:34-35
m. Parábola da ovelha perdida e reencontrada 18:10-14 15:3-7
n. Sobre a correção de um irmão 18:15-18
o. Sobre Jesus estar presente entre dois ou mais 18:19-20
p. Reconciliação entre irmãos 18:21-22 17:4
q. Parábola do devedor implacável 18:23-35
r. Jesus parte da Galiléia para a Judéia 19:1-2 10:1 9:51
(grande bloco lucano com ensinos de Jesus) (9:51-18:14)
s. Sobre o divórcio 19:3-12 10:2-12
t. Jesus abençoa as crianças 19:13-15 10:13-16 18:15-17
u. Jesus e o jovem rico 19:16-22 10:17-22 18:18-23
v. Jesus ensina sobre o perigo da riqueza 19:23-30 10:23-31 18:24-30
x. Parábola dos trabalhadores da vinha 20:1-16
k. Terceiro anúncio da Paixão 20:17-19 10:32-34 18:31-34
y. O pedido dos filhos de Zebedeu 20:20-28 10:35-45
w. Cura de dois cegos em Jericó 20:29-34 10:46-52 18:35-43

Esse segundo exemplo também permite atestar a concordância na ordem das perícopes
individuais, embora, às vezes, um ou outro autor omita ou insira relatos ao texto. Assim, o
autor do evangelho de Lucas omite e, o diálogo a respeito do retorno de Elias; s, sobre o
divórcio; e y, o pedido dos filhos de Zebedeu. Mateus, por sua vez, omite j, sobre o uso do
nome de Jesus. Marcos, por seu lado, não relata m, a parábola da ovelha perdida. De qualquer
maneira, nota-se que, mesmo saindo da ordem das perícopes, os autores sempre retornam à
sequência “original”.
É o caso, por exemplo, do procedimento lucano. Tomando-se a continuidade de Mateus
como referência, constata-se que, após a partida de Jesus da Galiléia para a Judéia, perícope
compartilhada por Mateus e Lucas, a narrativa mateana descreve palavras de Jesus sobre o
divórcio e, em seguida, mostra o episódio em que Jesus abençoa as crianças que lhe são
trazidas.
Lucas inclui entre a partida de Jesus e a bênção das crianças dez capítulos em seu
evangelho e, em seguida, retoma a narrativa do ponto em que interrompera e obedecendo ao
ordenamento mateano.
52

Quadro 7
Mateus Marcos Lucas
a. A mãe e os irmãos de Jesus 12:46-50 3:31-35 8:19-21
b. Parábola do semeador 13:1-9 4:1-9 8:4-8
c. Por que Jesus fala em parábolas 13:10-17 4:10-12 8:9-10
d. Interpretação da parábola do semeador 13:18-23 4:13:20 8:11-15
e. Parábola da lâmpada debaixo do alqueire e da
“medida por medida” 4:21-25 8:16-18
f. Parábola da semente que germina por si só 4:26-29
g. Parábola do joio 13:24-30
h. Parábola do grão de mostarda 13:31-32 4:30-32 13:18-19
i. Parábola do fermento 13:33 13:20-21
j. A pedagogia das parábolas 13:34-35 4:33-34
l. Explicação da parábola do joio 13:36-43
m. Parábolas do tesouro e da pérola 13:44-46
n. Parábola da rede 13:47-50
o. Parábola do escriba que se torna discípulo 13:51-52
p. Jesus interrompe a tempestade 8:23-27 4:35-41 8:22-25
q. Jesus cura os gadarenos endemoninhados 8:28-34 5:1-20 8:26-39
r. Jesus cura a filha de Jairo 9:18-26 5:21-43 8:40-56
s. Jesus é rejeitado em Nazaré 13:53-58 6:1-6a (4:16-30)

Como nos exemplos anteriores, esse também possibilita enxergar um ordenamento


comum no posicionamento das perícopes. Com efeito, as mudanças de posicionamento
também são claramente perceptíveis. Lucas introduz h e i, as parábolas do grão de mostarda e
do fermento, no intervalo entre a parábola da lâmpada debaixo do alqueire e o episódio em
que Jesus faz parar a tempestade. A passagem em que a mãe de Jesus e seus irmãos vão até
ele que antecede, conforme Mateus e Marcos, os discursos sobre as parábolas, Lucas insere
no decorrer dos pronunciamentos de Jesus em forma de parábolas.
Mesmo que a atenção se volte para as variações na ordem dos eventos dentro dos
Evangelhos Sinóticos, não se deve perder de vista as impressionantes concordâncias de
sequências que os exemplos acima permitiram aferir. Nesse sentido, é adequado questionar
por quê este ordenamento comum existe.
Argumentos que justificam a concordância no ordenamento em função de os relatos
terem sido produzidos por testemunhas oculares dos fatos remetem aos mesmos tipos de
53

argumentos empregados para explicar a concordância de palavras. O que, já foi


razoavelmente demonstrado, cria mais problemas do que oferece respostas plausíveis.
O Quadro 7 listou uma série de parábolas atribuídas pelos autores dos Evangelhos a
Jesus que, em certo sentido, poderiam ter se dado na ordem em que foram registradas,
reforçando o argumento do testemunho ocular. No entanto, Marcos, após relacionar uma série
consecutiva de parábolas, uma depois da outra, conclui com a seguinte afirmação (4,33-34):

Anunciava-lhes a Palavra por meio de muitas parábolas como estas,


conforme podiam entender; e nada lhes falava a não ser em parábolas. A
seus discípulos, porém, explicava tudo em particular.

Uma interpretação possível das palavras acima propõe que Marcos via as parábolas
anteriormente reproduzidas em seu texto como uma coleção sumária e não como uma
cronologia de parábolas consecutivas pronunciadas por Jesus num único dia de seu ministério
público (STEIN, 1989, p. 36). Daí porque não parece descabido o fato de Mateus sentir-se
livre para mexer na sequência incluindo parábolas ausentes das outras narrativas sinóticas, ou
Lucas interpolar as parábolas do grão de mostarda e do fermento numa ordem distinta da dos
outros evangelhos.
Nesse sentido, os estudos de crítica da narrativa buscaram identificar estruturas globais
dos evangelhos, identificando igualmente os estilos e preferências literárias dos autores dos
textos neotestamentários. Assim, por exemplo, o Evangelho marcano agrupa cinco milagres
de cura entre Mc 1,23 e 2,12 que são interrompidos em 1,35-39 por uma declaração que
condensa numa única frase o que, provavelmente, passou-se em vários dias do ministério
público de Jesus, de uma maneira parecida ao que se nota após a relação de parábolas26.

26
K. W. Larsen (2004) faz um útil levantamento dos estudos recentes que intentam definir uma estrutura do
evangelho de Marcos. As principais correntes acadêmicas, pesquisadas por Larsen, sugerem como princípios
para esquematizar o texto marcano: (a) Perícopes iniciadas por marcos topográficos e/ou geográficos; (b) Temas
teológicos; (c) Sitz im Leben da comunidade marcana primitiva; (d) Fatores literários. Em defesa deste último
item, acadêmicos há que advogam como artifício estruturador a utilização de declarações sumarizantes (como
4:33-34 e 1:39) que serviriam como elos entre histórias que chegaram isoladas a Marcos sem que este soubesse
quando e onde ocorreram e que, portanto, revelariam um processo artificial por trás da elaboração de seu texto,
minimizando a pretensão de historicidade deste Evangelho. Embora Larsen (2004, p. 140) aponte haver
pesquisadores que advirtam sobre a inutilidade dessa busca por um esquema redacional, alegando que tal
estrutura literária atribui ao autor de Marcos um elevado grau de autoconsciência no ato de redigir seu texto que
ele, de fato, não teria.
54

À medida que esquemas redacionais também foram notados nos outros evangelhos,
indicando claramente uma intencionalidade na disposição das passagens evangélicas mais do
que por considerações de ordem cronológica, fez com que as concordâncias em ordem
tornassem-se mais significantes para os pesquisadores.
Um último conjunto de concordâncias notadas nos Evangelhos Sinóticos consiste na
semelhança de material parentético comum. Materiais parentéticos são comentários
adicionados ao texto evangélico e remetem à ideia de colocar-se um trecho em parênteses
(Quadro 8):

Quadro 8
Mateus 24:15-18 Marcos 13:14-16 Lucas 21:20-22
Quando, portanto, virdes a Quando virdes a Quando virdes Jerusalém
abominação da desolação, de abominação da desolação cercada de exércitos sabei
que fala o profeta Daniel, instalada onde não devia que está próxima a sua
instalada no lugar santo – que o estar – que o leitor desolação. Então, os que
55

leitor entenda –, então, os que entenda –, então os que estiverem na Judéia fujam
estiverem na Judéia fujam para estiverem na Judéia fujam para os montes, os que
os montes, aquele que estiver para os montes, aquele que estiverem dentro da cidade
no terraço, não desça para estiver no terraço não saiam, e os que estiverem
apanhar as coisas da sua casa, e desça nem entre para nos campos não entrem
aquele que estiver no campo apanhar alguma coisa em nela, porque serão dias de
não volte atrás para apanhar a sua casa, aquele que punição, nos quais deverá
sua veste! estiver no campo não volte cumprir-se tudo o que foi
para trás a fim de apanhar escrito.
a sua veste.

O pequeno comentário – “que o leitor entenda” – é a mais expressiva concordância


observável entre os textos de Mateus e Marcos. Chama a atenção, por outro lado, a sua
omissão por Lucas levando a crer que sua presença no texto não seria necessária no contexto
do discurso escatológico. Stein destaca que este pequeno comentário torna óbvia a presença
de uma fonte escrita comum, à medida que se refere a um “leitor” e não a um “ouvinte”
(STEIN, 1989, p. 38).
Diante desse conjunto de evidências – concordâncias em palavras, na ordem de
perícopes e presença de material parentético –, os estudiosos depararam-se com um problema
maior. Afinal, como explicar satisfatoriamente o fato de que Marcos, Mateus e Lucas narram
aproximadamente a mesma história em, mais ou menos, a mesma ordem, enquanto João
utiliza um procedimento completamente diferente? (ROBINSON; HOFFMANN;
KLOPPENBORG, 2000, p. 19)
Gradativamente os pesquisadores foram deduzindo que algum tipo de interdependência
literária haveria entre Mateus, Marcos e Lucas. O que, em resumo, veio a ser o enunciado do
hoje denominado Problema Sinótico.

1.3. HIPÓTESES PROPOSTAS PARA SOLUCIONAR O PROBLEMA SINÓTICO

Intrigados com as similaridades e com as discrepâncias entre os Evangelhos Sinóticos,


os estudiosos pensaram e desenvolveram inúmeras hipóteses que solucionassem de forma
satisfatória o Problema Sinótico. As tentativas mais antigas recorreram a uma tradição oral
comum por trás dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. De acordo com J. K. L. Gieseler,
que propôs sua explicação em 1818, os apóstolos teriam criado tais tradições orais conforme o
56

propósito de “disseminar a Palavra” e que, bem cedo, receberam uma forma fixa e então
foram traduzidas para o Grego e nesta língua, chegaram aos e vieram a ser usadas pelos
autores finais dos Evangelhos27. As concordâncias entre os Sinóticos, portanto, foram
anteriores ao surgimento dos textos, fazendo-se presente no instante em que as tradições orais
foram estabelecidas numa forma padrão (STEIN, 1989, p. 43).
De fato, antes de existirem versões escritas dos evangelhos, há um consenso majoritário
que afirma que tradições orais circulavam entre as diversas comunidades cristãs primitivas até
sua definitiva formatação textual. Köester assevera que desde o começo do cristianismo
(compreendido como o período imediatamente posterior à morte de Jesus) havia uma tradição
oral, transmitida sob a autoridade do “Senhor”. Conforme seu entendimento, paralela a essa
pregação, meios escritos também eram utilizados (KOESTER, 2005, p. 2):

Tudo o que era escrito ainda fazia parte do âmbito da comunicação oral na
pregação, na catequese e na celebração em comum, pois destinava-se à
leitura em voz alta, voltando assim ao meio de comunicação da expressão
oral – ‘literatura oral’.

Foi a partir, prossegue Köester (2005, p. 3):

Das últimas décadas do século I d.C., isto é, na terceira geração do povo


cristão, [que] a adoção do meio escrito para a comunicação e transmissão de
tradições antigas se tornou mais evidente, o que não significa que a
transmissão oral deixasse de existir.

A principal razão para essa mudança de meios de transmissão foi, como assinala
Köester, de ordem cultural, à proporção que na cultura da época, o público letrado esperava
naturalmente por informações escritas e em livros. Embora Ehrman (2006, p. 31) aponte que
“a maioria dos cristãos, assim como a maior parte da população do império (incluindo os
judeus!), era analfabeta”. Não significando, entretanto, continua Ehrman (2006, p. 31), que os
“livros desempenhassem um papel menor na religião. De fato, eles eram centralmente

27
J. C. S. B. Meihy (2005, p. 61) explica que “enquanto a narrativa da memória não se consubstancia em um
documento escrito, ela é mutável e sofre variações que vão desde a ênfase ou a entonação até os silêncios e
disfarces”.
57

importantes e, em muitos aspectos, fundamentais para a vida dos cristãos em suas


comunidades”.
Daí vindo a constituírem-se os Evangelhos. Que seriam “composições em que tradições
orais e documentos antigos foram inseridos em escritos que tomaram como ponto de partida o
querigma28 da cruz e da ressurreição de Jesus” (KOESTER, 2005, p. 5). Embora relacione
outras fontes escritas primitivas jazendo por trás dos evangelhos, Köester assegura que, em
última análise, “todos os materiais preservados nos evangelhos do Novo Testamento derivam
de tradições orais” (2005, p. 52).
O decano dos estudos neotestamentários, o falecido Raymond E. Brown (p. 181-186),
acompanha de perto Köester e enxerga a formação dos evangelhos num processo
compreendido em três estágios:
1. O ministério público de Jesus. Neste estágio, os companheiros de Jesus viram e
ouviram o que ele fez e disse. Retiveram na memória, de forma seletiva, aquilo que dizia
respeito à proclamação que Jesus fazia de Deus, e não às muitas trivialidades da vida
cotidiana.
2. A pregação (apostólica) sobre Jesus. Com a morte de Jesus, aqueles que viram e
ouviram Jesus, convencidos pelas aparições após a ressurreição, sentiram-se impulsionados a
difundir oralmente sua fé29.
3. Os evangelhos escritos. Surgem num período posterior, ainda que coexistindo com a
pregação marcadamente oral, a qual permanece baseada na conservação e desenvolvimento
do material sobre Jesus até o século II.
Para Brown, é nesse terceiro estágio que as similaridades entre os textos de Marcos, de
Mateus e de Lucas aparecem, permitindo-se inferir algum tipo de dependência de um ou dois
evangelhos em relação ao terceiro ou dos três a uma fonte escrita comum (BROWN, 2004, p.
186). Assim, esquematizando a proposta de Brown, conforme o trinômio memória-oralidade-

28
Dodd esclarece que, em sua formulação mais concisa, querigma “consiste no anúncio de certos
acontecimentos históricos, feito de tal modo que se pode perceber também seu significado particular. Tais
acontecimentos são: o aparecimento de Jesus no cenário deste mundo – e compreende o ministério, os
sofrimentos, a morte e sucessiva aparição aos discípulos, na qualidade de ressuscitado da morte e revestido da
glória de um outro mundo – e a afirmação da Igreja distinguida pelo poder e ação do Espírito Santo e voltada
ansiosamente para o retorno de seu Senhor como juiz e salvador do mundo” (1979, p. 7-8).
29
Brown assinala: “Aquela fé pós-ressurrecional iluminou as lembranças do que eles tinham visto e ouvido
durante o período pré-ressurrecional; assim, eles proclamaram os feitos e palavras de Cristo com o significado
enriquecido” (2004, p. 182). Neste ponto parece falar mais alto o religioso, e não o acadêmico.
58

escrita, ela difere, no que diz respeito ao surgimento das coincidências sinóticas, dos
argumentos de Gieseler que o antecipam para algum momento da pregação apostólica.
Seja durante a pregação apostólica, seja na transcrição desta para o texto, é preciso
examinar as passagens paralelas, uma a uma, a fim de, empiricamente, atestar qual dentre as
duas vertentes mais bem explica as concordâncias entre os textos de Mateus, Marcos e Lucas.
Não obstante, para uma parcela considerável dos historiadores, as concordâncias em palavras,
o ordenamento comum das perícopes e o material parentético pendem para uma solução que
relacione fontes escritas comuns mais do que tradições orais comuns.
Por conseguinte, admitindo-se como premissa algum tipo de relação literária entre os
Evangelhos Sinóticos, as hipóteses se multiplicam, cada uma com seus argumentos pró e
contra.

Hipótese do fragmento. Em 1817, Friedrich Schleiermacher sugeriu que a forma mais


antiga dos escritos evangélicos consistia em várias coleções fragmentárias dos materiais sobre
Jesus, anotadas pelos apóstolos como uma espécie de breves recordações das atividades e
ditos de Jesus (memorabilia).30
À medida que os apóstolos foram morrendo, estas recordações fragmentadas, divididas
em histórias de milagres, narrativa da paixão, diversos discursos e outros, foram coletadas
pelos evangelistas tornando-se as inúmeras fontes que, reunidas, compuseram as versões
finais dos Evangelhos Sinóticos (KOESTER, 2005, p. 49; STEIN, 1989, p. 45). Ainda que a
hipótese de Schleiermacher logre justificar, até certo ponto, um ordenamento notado no que,
muito provavelmente, poderia constituir-se numa coleção de parábolas em Marcos (4,1-32) ou
numa coleção de milagres no mesmo Marcos (2,1-3,6), ela é incapaz de explicar
plausivelmente de que maneira, três autores trabalhando independentemente e colecionando
por conta própria alguns escritos fragmentados, puderam ordenar as memorabilia de forma
tão similar, levando-se em consideração a ausência de indicações, de qualquer tipo, que
conectem uma perícope à outra.

Hipótese do proto-evangelho ou evangelho primitivo. Proposta por G. E. Lessing (1776)


e desenvolvida por J. G. Eichhorn (1796), advoga a existência, originalmente, de um único
escrito evangélico oniabrangente, escrito em aramaico, mais tarde traduzido para o grego, e

30
Quando os apóstolos anotaram suas lembranças? No mesmo dia em que presenciaram os eventos? Dias, ou
anos, depois? Sob que condições emocionais? Tradicionalmente admite-se que eram doze apóstolos. Todos
registraram suas lembranças? Como demonstrar este fato? Acima de tudo, qual teoria da memória é empregada
para justificar este argumento?
59

que esteve disponível no passado a todos os autores dos Evangelhos Sinóticos (Quadro 9),
havendo, também, uma variação desta hipótese, que postula uma versão posterior de Marcos –
um texto denominado Deutero-Marcos – situada numa posição intermediária entre o Marcos
Canônico e os evangelhos mateano e lucano (Quadro 10):

Quadro 9
Proto-Marcos
(na ordem marcana)

Mateus Marcos Lucas

Quadro 10
Marcos

Deutero-Marcos
(na ordem marcana)

Mateus Lucas

Consoante essa hipótese, a tradução para o grego deste “Proto-Marcos” originou vários
manuscritos a que os autores dos Sinóticos tiveram acesso quando da composição de seus
próprios textos. Assim, as semelhanças (em palavras e na sequência das perícopes) entre os
evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas seriam uma consequência do manuseio de versões
idênticas do proto-Marcos enquanto as dissonâncias seriam fruto da utilização de cópias que
sofreram alterações no processo de tradução (BROWN, 2004, p. 188; KÖESTER, 2005, p.
49; STEIN, 1989, p. 45-46; KLOPPENBORG, 2000, p. 23-24).
Em função da premissa que estrutura esta hipótese, os pesquisadores notaram ser
possível “reconstruir” a fonte comum aos três Evangelhos Sinóticos, através da separação do
material compartilhado por Mateus, Marcos e Lucas. Contudo, à proporção que este
procedimento era levado a efeito, mais e mais o Proto-Evangelho e o Marcos canônico se
assemelhavam, inexistindo, com efeito, razões para distingui-los um do outro. Implica dizer, o
60

Proto-Marcos e Marcos possuíam a mesma identidade, em outras palavras, tratavam-se da


mesma fonte escrita.
De qualquer maneira, embora a hipótese de um Proto-Marcos tenha perdido sua força
explicativa, as inter-relações literárias entre os Sinóticos mostraram-se indiscutíveis desde
então.

Hipótese da interdependência ou utilização. Trata-se de uma hipótese que se desdobra


em vários modelos. A análise comparada da sequência de perícopes nos três sinóticos fez
perceber um padrão típico de concordâncias: ainda que, em geral, Mateus e Lucas concordem
com a ordem marcana, ambos registram dissonâncias peculiares em relação a Marcos. Mateus
discorda com a sequência marcana principalmente em Mt 8-9 e faz algumas poucas
transposições em perícopes marcanas. As ordens em Marcos e Lucas também divergem em
alguns pontos, distribuídas no decorrer do texto lucano. Observa-se, contudo, que as
discordâncias entre Marcos e Lucas não correspondem às discordâncias entre Marcos e
Mateus.
Ou seja, mesmo posicionando diferentemente as perícopes em seus respectivos
documentos, Mateus e Lucas, nas passagens que possuem paralelas a Marcos, jamais mudam
de posição estas perícopes, respeitando o ordenamento marcano. Implica dizer, a inter-relação
entre Mateus e Lucas é mediada por Marcos, ao menos nas seções em que Marcos possui
paralelos.
Estando numa condição intermediária, esta hipótese, portanto, sugere que o evangelho
“C” conheceu o evangelho “A” por meio de Marcos (Quadro 11):
Quadro 11
Mateus (A) Lucas

Marcos (B) Marcos

Lucas (C) Mateus

Desse modo, essa hipótese explica as triplas concordâncias entre os Sinóticos supondo
que Marcos copiou com exatidão o Evangelho “A” enquanto o Evangelho “C”, por sua vez,
reproduziu com precisão o texto marcano. Quando acontece de um evangelho estar de acordo
com Marcos, mas em desacordo com o outro, os defensores desta hipótese assinalam que isto
é facilmente explicável imaginando-se que Marcos modificou sua fonte “A” e que o
Evangelho “C” reproduziu com fidelidade o texto marcano, acompanhando a alteração feita
61

por Marcos. Entretanto, esta hipótese não esclarece porque o Evangelho “C” omite perícopes
que Marcos copiou de “A” (Mt 16,1-4 // Mc 8,11-13).
Como o Quadro 11 mostra, há a possibilidade de considerar-se Mateus o primeiro
evangelho canônico ou a de Lucas ser o mais antigo. Dentre os defensores deste modelo
hipotético, há um amplo consenso na direção da primeira inter-relação, isto é, a ordem
canônica é também a sequência da dependência: Mateus foi escrito primeiro, Marcos
abreviou-o e, a seguir, vieram Lucas e João, cada um utilizando-se de seu predecessor.

Hipótese de Griesbach. Assim chamada por ter sido proposta por Johann Jakob
Griesbach em 1783 e 1789 (STEIN, 1989, p. 131). De acordo com ela, Mateus escreveu
primeiro, Lucas derivou-se diretamente de Mateus31 e Marcos, procedendo “como muitos
outros historiadores greco-romanos”, (BLOMBERG, 2001, p. 31) abreviou substancialmente
suas duas únicas fontes, Mateus e Lucas (Quadro 12):

Quadro 12

Mateus

Lucas

Marcos

Essa hipótese assume a prioridade mateana, isto é, sustenta que Mateus é o evangelho
mais antigo, pois Griesbach concluíra que, se o autor do primeiro evangelho houvera sido o
apóstolo Mateus, teria sido impossível que ele redigisse seu trabalho copiando de uma fonte
escrita por um não-apóstolo como Marcos.
Além disso, a hipótese adota como uma de suas bases o testemunho de autores cristãos
do início do século II, como Papias32, que, consoante Eusébio de Cesaréia (260-340), teria

31
Brown (2004, p. 189) observa que Griesbach “não deixou claro se Lucas dependia de Mateus, mas a hipótese
modificada de Griesbach, defendida hoje, supõe realmente essa dependência”. Neste sentido, Tuckett (1997, p.
12) comenta que “há discordâncias mesmo entre aqueles que podem ser chamados de ‘Griesbachianos’ acerca da
questão da relação precisa entre Mateus e Lucas”.
32
Segundo Theissen e Merz (2002, p. 76), Papias foi Bispo de Hierápolis na Ásia Menor no começo do século II
e propôs-se reunir as tradições orais de Jesus e o que “se origina da voz viva e permanente”, interrogando
pessoas que ainda teriam conhecido os discípulos de Jesus. Seu trabalho se perdeu, restando algumas citações
pouco confiáveis em Irineu e Eusébio.
62

recebido de um “ancião” (presbyteros) a seguinte informação: “Agora Mateus dispôs


ordenadamente os ditos [logia] em língua hebraica [ou aramaica], e cada um interpretava
conforme era capaz” (BROWN, 2004, p. 244).
Convém observar que essa passagem nada diz sobre a ordem dos evangelhos ou acerca
da primazia de Mateus, mas simplesmente sublinha que um homem chamado Mateus
empenhou-se na tarefa de dispor os ensinos de Jesus em língua hebraica ou aramaica (BOCK,
2001, p. 44).
Mais que isso, ela é passível de dúvidas à medida que a referência aos “ditos [logia]”
pode tanto estar relacionada a uma coleção de ensinos de Jesus como ao evangelho de
Mateus. Ademais, o evangelho mateano existe em grego. Como Papias menciona um texto em
hebraico (ou aramaico), os historiadores se questionam se isso indica um original semítico do
qual as cópias remanescentes são uma tradução33.
A maioria dos estudiosos advoga a tese de que o evangelho de Mateus foi composto
originalmente em grego e não é tradução de um original semítico. Implica dizer, ou Papias
estava errado/enganado ao atribuir um evangelho (ditos) em hebraico (ou aramaico) a Mateus,
ou a composição hebraica que ele descreveu não era a obra hoje conhecida como o Mateus
canônico em grego (BROWN, 2004, p. 309).
Por conseguinte, não parece acertado aplicar a citação de Papias como um indicativo da
primazia mateana. Ou seja, se Mateus não é o primeiro evangelho entre os sinóticos, as
deduções da hipótese de Griesbach ficam seriamente comprometidas.
Colocando Marcos como o último dos Sinóticos, os defensores da hipótese de
Griesbach34 deslocam esse evangelho de sua posição intermediária, conforme observado nas
outras hipóteses, e, diante de sua extensão reduzida, postulam que isto se deu porque o
propósito de seu autor fora o de oferecer uma versão condensada dos evangelhos para uso da
Igreja, como uma espécie de “Seleções Reader’s Digest” (STEIN, 1989, p. 49) e para corrigir
as inconsistências e contradições dos textos de Mateus e Lucas (STEIN, 1989, p. 133).
De fato, quando comparado a Mateus e Lucas, Marcos é bem mais compacto, dando a
impressão de ser uma versão resumida dos outros evangelhos. Com efeito, seus 661
versículos fazem de Marcos o menor dentre os Sinóticos, notando-se que Mateus contém
1068 versículos e Lucas, 1149.

33
Köester afirma que “não deve haver a mínima dúvida de que o Evangelho de Mateus foi originariamente
escrito em grego” (2005, p. 188).
34
Tuckett chama-os de “Griesbachianos Modernos” (1997, p. 13).
63

Em relação a isso, os historiadores ponderam no sentido de tentar decifrar um aspecto


próprio da redação de Marcos. Em seu evangelho, Marcos enfatiza constantemente a condição
de Jesus como um mestre que ensina, através de (a) junções com as quais ele interliga
perícopes (1,21-22 – “Entraram em Cafarnaum e, logo no sábado, foram à sinagoga. E ali ele
ensinava. Extasiavam-se com o seu ensino, porque lhes ensinava com autoridade e não como
os escribas”; 2,13 – “E tornou a sair para a beira-mar, e toda a multidão ia até ele, e ele os
ensinava”; 12,35a – “E prosseguiu Jesus ensinando no Templo...”); (b) inserções e notas
explicativas (9,30a – “Tendo partido dali, caminhava através da Galiléia, mas não queria que
ninguém soubesse, pois ensinava aos seus discípulos e dizia-lhes...”) e (c) sumários (10,1b –
“E, como de costume, continuava a ensiná-las”).
Observando, portanto, o material compartilhado por Mateus e Lucas, hipoteticamente
disponível ao autor de Marcos, verifica-se que este suprimiu em seu texto, justamente
perícopes nas quais Jesus é retratado como um Mestre que ensina: o sermão da montanha e os
ensinamentos contidos em Lc 9,51-18,14. Ou seja, extensas partes nas quais Jesus é
apresentado como um Mestre.
Portanto, se Marcos teve um forte interesse em retratar Jesus ensinando às multidões,
aos discípulos, no Templo, a beira-mar e assim por diante, revela-se um obstáculo
considerável aos defensores da hipótese de Griesbach a omissão por Marcos de material tão
significativo35.
Convém relacionar ainda outros dois aspectos importantes. De acordo com a hipótese
de Griesbach Lucas é dependente de Mateus. O argumento principal desta tese repousa no que
os estudiosos denominam de “Concordâncias Menores”, ou seja, passagens que em Mateus e
em Lucas estão de acordo e, ao mesmo tempo, em desacordo com Marcos. Entre elas, pode-se
citar o episódio em que judeus zombam de Jesus, em que tanto Mateus quanto Lucas trazem
uma pergunta dirigida a Jesus expressa de forma idêntica, mas ausente em Marcos (Quadro
13):

35
McKnight mostra que, em 1979, C. M. Tuckett defendeu com êxito sua dissertação de pós-doutorado sobre a
renovação da hipótese de Griesbach, ensejada por alguns historiadores durante a segunda metade do século XX,
concluindo, todavia, por sua insuficiente capacidade explicativa para o problema sinótico (2001, p. 69-70).
64

Quadro 13
Mateus 26:67-68 Lucas 22:64-65 Marcos 14:65
E cuspiram-lhe no rosto e ... cobriam-lhe o rosto e o Alguns começaram a cuspir
o esbofetearam. Outros lhe interrogavam: “Faz uma nele, a cobrir-lhe o rosto, a
davam bordoadas, profecia: quem é que te esbofeteá-lo e a dizer: “Faz
dizendo: “Faze-nos uma bateu?” uma profecia!”
profecia. Messias: quem
te bateu?”

Para os defensores da hipótese de Griesbach, a expressão “quem [é que] te bateu?”36


corresponde a estas “concordâncias menores” e demonstra que Lucas teve acesso ao texto de
Mateus, copiando a pergunta em seu evangelho. Assim, o pressuposto da maioria dos
estudiosos do Problema Sinótico, isto é, Mateus e Lucas escreveram independentemente, cai
por terra, a menos que se opte pelo argumento da coincidência.
Não obstante o embaraço suscitado por essa concordância menor, Brown assinala que
“se Marcos usou Mateus e Lucas, por que omitiu a pergunta que ambos os evangelhos trazem
e que corrobora o sentido [do pedido de uma profecia]?” (BROWN, 2004, p. 24). Por sua vez,
Tuckett explica que muitos eruditos tentam obter uma explicação plausível postulando uma
“corrupção primitiva no texto do evangelho de Mateus” (TUCKETT, 1996, p. 17). Stein
adverte que uma série complexa de razões pode ser invocada para tornar compreensíveis as
concordâncias menores e sugere que uma corrupção nas passagens marcanas paralelas às
passagens mateanas e lucanas podem explicar o fato, à medida que copistas e escribas,
intencionado “harmonizar” os textos sinóticos entre si, teriam feito alterações nos textos que,
enfim, chegaram aos dias de hoje (STEIN, 1989, p. 125).
John Kloppenborg discute esse problema das concordâncias menores considerando-as
de mínima importância no estudo das inter-relações literárias dos Sinóticos
(KLOPPENBORG, 2000, p. 32). Segundo ele, os eruditos amontoam em um só conjunto
omissões compartilhadas de perícopes, palavras e frases do texto marcano; acréscimos ou
elaborações próprias de Marcos; algumas discordâncias em termos de ordem nas palavras ou
inflexão de palavras ou verbos e fazem disto uma prova a favor da dependência direta de

36
Em The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures a última expressão do texto de Mateus está
assim redigida:      e no texto lucano:     . São as mesmas palavras, mas
que na tradução para o português da Bíblia de Jerusalém, com o acréscimo do “é que”, retiram a precisão da
concordância entre Mateus e Lucas.
65

Lucas ao texto mateano. Assim, Kloppenborg questiona a validade destes argumentos e


assinala que as concordâncias menores explicam-se por coincidências ocorridas na redação
dos evangelhos (2000, p. 34).
Entretanto, ele igualmente reconhece que há algumas poucas concordâncias menores
que não são tão facilmente explicáveis (KLOPPENBORG, 2000, P. 35-36) (Quadro 14):

Quadro 14
Marcos 4:11 Mateus 13:11 Lucas 8:10
Disse-lhes: “A vós foi Jesus respondeu: “Porque a Ele respondeu: “A vós foi dado
dado o mistério do Reino vós foi dado conhecer os conhecer os mistérios do Reino
de Deus; aos de fora, mistérios do Reino dos de Deus”.
porém, tudo se passa em Céus, mas a eles não”.
parábolas, (...)”.

Nessa passagem, Mateus e Lucas escrevem “    ” (a


vós foi dado conhecer os mistérios), enquanto Marcos registra “   ”
(a vós o mistério foi dado). Existem discordâncias: (a) na ordem das palavras; (b) na flexão de
número do substantivo “mistério” e (c) na adição (ou omissão) do infinitivo “”
(conhecer).
As explicações oferecidas para essas concordâncias acima entre Mateus e Lucas
contrárias a Marcos variam entre: (1) coincidências na redação; (2) influência da tradição oral;
(3) corrupção primitiva dos textos por copistas e (4) revisão do texto, num estágio primitivo
ou posterior.
Há, contudo, sérios argumentos contra a dependência de Lucas a Mateus. São os casos
em que Lucas e Mateus apresentam relatos quase contraditórios e que Lucas não se mobiliza
no sentido de conciliar esta dificuldade. Os exemplos são vários: a narrativa da infância de
Jesus em Lucas e em Mateus; a narrativa lucana da morte de Judas em At 1,18-19,
irreconciliável com a narrativa mateana em 27,3-10 e por fim, as omissões lucanas às adições
mateanas ao texto de Marcos (Quadro 15):

Quadro 15
Mateus 12:4-6 Lucas 6:3-4 Marcos 2:25-26
Como não entrou na Casa Jesus respondeu-lhes: “Não Ele respondeu: “Nunca lestes o
de Deus e como eles lestes o que fez Davi, ele e que fez Davi e os seus
66

comeram os pães da seus companheiros, quando companheiros quando


proposição, que não era tiveram fome? necessitavam e tiveram fome?
lícito comer, nem a ele, Entrou na casa de Deus, Ele entrou na casa de Deus, no
nem aos que estavam com tomou os pães da proposição, tempo do Sumo Sacerdote
ele, mas exclusivamente aos comeu-os e deu-os aos Abiatar, e comeu dos pães da
sacerdotes? companheiros – esses pães proposição que só os sacerdotes
Ou não lestes na Lei que dos quais só os sacerdotes podem comer, e os deu também
com os seus deveres podem comer”. aos companheiros”.
sabáticos os sacerdotes
violam o sábado e ficam
sem culpa?

Analisando as passagens paralelas do Quadro 15 o trecho mateano grifado “Ou não


lestes na Lei que com os seus deveres sabáticos os sacerdotes violam o sábado e ficam sem
culpa?” é exclusivo deste evangelho. Para os que não esposam a hipótese de Griesbach, não
há como justificar a omissão desses versículos pelos autores posteriores – Lucas e Marcos –
caso eles realmente tivessem escrito seus evangelhos tendo Mateus como sua fonte.
Na segunda metade do século XX, apareceram estudiosos buscando reviver a Hipótese
de Griesbach, aduzindo diversas objeções aos seus contraditores. O mais destacado deste
grupo de “modernos griesbachianos” chama-se William R. Farmer, cujos trabalhos tentam
corrigir as deficiências observadas nessa hipótese ao longo do tempo. Por exemplo, diante da
inexistência, em Marcos, de uma narrativa da infância de Jesus, seja harmonizando as versões
mateana e lucana, seja optando por uma das duas, Farmer sugere o seguinte raciocínio: (a) se
Marcos possuía Mateus e Lucas, ele provavelmente também possuía o livro Atos dos
Apóstolos; (b) neste livro lucano, ele teve a oportunidade de ler as falas de Pedro; (c) assim,
ele foi impelido a reconhecer, com Pedro, que o ministério público de Jesus começou com o
batismo; (d) por fim, Marcos verificou não ser necessário incluir em sua narrativa, o relato da
infância.

Hipótese da Derivação Simples ou da Prioridade Marcana. Associada a H. J.


Holtzmann (1863) e B. H. Streeter (1924), propõe que Marcos foi o primeiro dos Sinóticos,
sendo utilizado, independentemente, pelos autores de Mateus e Lucas (Quadro 16):
67

Quadro 16

Marcos

Mateus Lucas

É a hipótese defendida por um consenso razoavelmente maciço de estudiosos, em


função de resolver o maior número de questões suscitadas pelo Problema Sinótico. A
prioridade marcana oferece a melhor explicação para as concordâncias frequentes de Mateus e
Lucas com Marcos na sequência de perícopes, na fraseologia e no material parentético e
permite conjeturas plausíveis para o fato de Mateus e Lucas diferirem de Marcos quando isso
se dá independentemente.
Convém ressaltar a existência de toda uma tradição eclesiástica que afirma
peremptoriamente ser Mateus o primeiro evangelho sinótico. No entanto, os estudos de
Christian Gottlob Wilke e de Christian Hermann Weisse, ambos publicados em 1838,
demonstraram convincentemente que o Evangelho de Marcos deve ter sido o evangelho mais
antigo (KOESTER, 2005, p. 49).
Em prol da prioridade marcana, no entanto, as evidências são mais decisivas, quase não
permitindo dúvidas:
(1) O argumento da extensão de Marcos: Sem dúvida, Marcos é o mais curto em
extensão dentre os Sinóticos. Entretanto, é uma impressão que se desfaz quando perícopes
individuais paralelas são submetidas a uma análise comparada. Um quadro sintético composto
por cinquenta e uma perícopes compreendidas entre Mc 1,29-31 e Mc 14,32-42 e suas
passagens paralelas em Mateus e Lucas mostra que Marcos contém vinte e uma perícopes
mais longas em número de palavras, enquanto Mateus apresenta onze perícopes mais extensas
e Lucas é maior em dez perícopes, ou seja, no dobro de perícopes Marcos possui mais
palavras (STEIN, 1989, p. 49). Os dados advindos destas comparações sugerem, portanto, ser
pouco convincente o argumento da abreviação marcana que, forçosamente, situam-no
cronologicamente em algum momento posterior à redação dos textos mateano e lucano;
(2) Comparativamente, Mateus e Lucas raramente diferem de Marcos do mesmo modo
no mesmo tempo, enquanto Marcos e Mateus concordam entre si muito mais freqüentemente
contra Lucas assim como é também freqüente Lucas e Marcos concordarem entre si contra
Mateus;
(3) O estilo de escrita mais rude de Marcos: Mateus e Lucas geralmente parecem achar
desagradável a gramática rude ou incorreta de Marcos, aí também considerando vocabulário,
68

estilo, idioma e construção de sentenças, fazendo com que estes as omitam ou alterem-nas
(Quadro 17):

Quadro 17
Marcos 10:20
Então ele replicou: “Mestre,
tudo isso eu tenho guardado
desde a juventude”.

Mateus 19:20 Lucas 18:21


Disse-lhe então o moço: Ele disse: “Tudo isso tenho
“Tudo isso tenho guardado desde a minha
guardado.” juventude.”

Embora, novamente, a tradução para o português não evidencie qualquer alteração feita
por Mateus e Lucas ao texto marcano, Stein sublinha que a expressão grifada “tenho
guardado” aparece em Marcos com o verbo  (ephylazamen), ou seja, uma forma
incorreta de utilização do verbo levando Mateus e Lucas a mudarem para 
(ephylaza), corrigindo o emprego do verbo (STEIN, 1989, pp. 52-53). Implica dizer, é mais
verossímil que Mateus e Lucas tenham alterado sua fonte do que supor que Marcos haja
incorrido num erro gramatical tendo diante de si dois textos corretos gramaticalmente.
(4) A omissão de material: Parece não haver razões plausíveis para Marcos omitir
material de Mateus e Lucas que retratam Jesus como Mestre, se Marcos, de fato, conhecia os
textos de Mateus e Lucas;
(5) Representações embaraçosas de Jesus e seus discípulos: Mateus e Lucas omitem
detalhes de Marcos que poderiam ensejar algum mal entendido aos leitores/ouvintes de seus
textos. Neste sentido, Marcos faz uma apresentação pouco lisonjeira dos discípulos e de
Maria, assim como emite declarações embaraçosas a respeito de Jesus. Todavia, tais
passagens não aparecem em Mateus e Lucas. Portanto, pode inferir-se ser mais provável que
estes dois autores, tendo o texto marcano como sua fonte, hajam modificado suas versões do
que Marcos ter, posteriormente, acrescentado passagens constrangedoras para os cristãos de
sua comunidade (Quadros 18, 19 e 20):
69

Quadro 18
Mateus 8:16 Marcos 1:32-34a Lucas 4:40
Ao entardecer, trouxeram- Ao entardecer, quando o sol Ao pôr-do-sol, todos os que
lhe muitos endemo- se pôs, trouxeram-lhe todos tinham doentes atingidos de
ninhados e ele, com uma os que estavam enfermos e males diversos traziam-nos, e
palavra, expulsou os endemoninhados. E a cidade ele, impondo as mãos sobre
espíritos e curou todos os inteira aglomerou-se à porta. cada um, curava-os.
que estavam enfermos. E ele curou muitos doentes de
diversas enfermidades e
expulsou muitos demônios.

Nesse episódio, a versão marcana poderia suscitar uma interpretação segundo a qual
teria faltado a Jesus poder para curar “todos os que estavam enfermos e endemoninhados”, daí
porque ele, enfim, conseguiu apenas curar “muitos enfermos” e não “todos os enfermos”.
Embora “todos” e “muitos” possam ser considerados sinônimos no texto marcano,
aparentemente Mateus e Lucas – escrevendo após Marcos – assim não entenderam. Mateus
substitui “muitos” por “todos” e “todos” por “muitos”, desfazendo um possível mal entendido
e garantindo a Jesus total poder sobre os enfermos que a ele foram levados. Lucas é bem mais
sucinto e elimina as referências marcanas, reescrevendo o texto de sua fonte primária.

Quadro 19
Mateus 19:13-14 Marcos 10:13-14 Lucas 18:15-17
Naquele momento, foram- Traziam-lhe crianças para Traziam-lhe até mesmo as
lhe trazidas crianças para que as tocasse, mas os criancinhas para que as tocasse;
que lhes impusesse as mãos discípulos as repreendiam. vendo isto, os discípulos as
e fizesse uma oração. Os Vendo isso, Jesus ficou repreendiam. Jesus, porém,
discípulos, porém, as indignado e disse: “Deixai chamou-as, dizendo: “Deixai as
repreendiam. Jesus, todavia, as crianças virem a mim. crianças virem a mim, e não as
disse: “Deixai as crianças e Não as impeçais, pois delas impeçais, pois delas é o Reino
não as impeçais de virem a é o Reino de Deus.” de Deus.”
mim, pois delas é o Reino
de Céus.”
70

Quadro 20
Mateus 12:9-14 Marcos 3:1-6 Lucas 6:6-11
Partindo dali, entrou na E outra vez entrou na Em outro sábado, entrou ele
sinagoga deles. Ora, ali sinagoga, e estava ali um na sinagoga e começou a
estava um homem com a homem com uma das mãos ensinar. Estava ali um homem
mão atrofiada. Então atrofiada. E o observavam com a mão direita atrofiada.
perguntaram-lhe a fim de o para ver se o curaria no Os escribas e os fariseus
acusar: “É lícito curar aos sábado, para o acusarem. observavam-no para ver se ele
sábados?” Jesus respondeu: Ele disse ao homem da mão o curaria no sábado e assim
“Quem haverá dentre vós atrofiada: “Levanta-te e encontrarem com que o
que, tendo uma ovelha e, vem aqui para o meio.” E acusar. Ele, porém, percebeu
caindo ela numa cova, em perguntou: “É permitido, no seus pensamentos e disse ao
dia de sábado, não vai dia de sábado, fazer o bem homem da mão atrofiada:
apanhá-la e tirá-la dali? ou fazer o mal? Salvar uma “Levanta-te e fica de pé no
Ora, um homem vale muito vida ou matar?” eles, meio.” E ele ficou de pé. Jesus
mais do que uma ovelha! porém, se calaram. lhes disse: “Eu vos pergunto
Logo, é lícito fazer o bem Repassando então sobre se, no sábado, é permitido
aos sábados.” Em seguida eles um olhar de fazer o bem ou o mal, salvar
disse ao homem: “Estende a indignação, e entristecido uma vida ou arruiná-la.”
mão.” Ele a estendeu e ela pela dureza do seu coração, Repassando sobre todos eles
ficou sã, como a outra. disse ao homem: “Estende a um olhar, disse ao homem:
mão.” Ele a estendeu, e a “Estende a mão.” Ele o fez, e
mão voltou ao estado a mão voltou ao estado
normal. normal.

Nos dois exemplos acima, Marcos não se exime de retratar dois momentos do
ministério público de Jesus em que este se mostra indignado, ora com seus discípulos, ora
com seus adversários. Todavia, as versões mateana e lucana do texto, amenizam a situação
por meio da supressão total de qualquer expressão que pudesse sugerir indignação ou irritação
por parte de Jesus.
Implica dizer, é mais verossímil supor que o texto “mais duro” de Marcos é o mais
primitivo e tenha passado por uma revisão posterior nas mãos de Mateus e Lucas do que
aventar o contrário, ou seja, imaginar Marcos, com os dois evangelhos em sua “escrivaninha”,
tenha alterado suas fontes numa direção problemática, cuja compreensão poderia criar
maiores dificuldades.
71

(6) Expressões aramaicas: Marcos possui a mais alta incidência de aramaísmos entre
os Sinóticos37, omitidos por Mateus e Lucas em suas passagens paralelas (Quadro 21):

Quadro 21
Marcos 5:40b-42
Ele, porém, ordenou que saíssem todos, exceto o pai e a mãe da criança e os que o
acompanhavam, e com eles entrou onde estava a criança. Tomando a mão da
criança, disse-lhe: “Talítha kúmi” – o que significa: “Menina, eu te digo, levanta-
te.” No mesmo instante, a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos.

Mateus 9:25 Lucas 8:54-55a


Mas assim que a multidão foi removida Ele, porém, tomando-lhe a mão, chamou-a dizendo:
para fora, ele entrou, tomou-a pela mão “Ó criança, levanta!” O espírito dela voltou e, no
e ela se levantou. mesmo instante, ela ficou de pé.

A eliminação da expressão aramaica “Talítha kúmi” nas versões mateana e lucana


paralelas é justificada pelos estudiosos dos Sinóticos a partir do tipo de audiência que se
supõe eram próprias aos contextos das comunidades cristãs de Mateus e Lucas, ou seja, um
público de fala e cultura gregas, para quem a expressão não acrescentaria nada ao ensino que
se buscava transmitir.
(7) Menos de 10 por cento de Marcos não tem paralelos com os outros Sinóticos.
Implica dizer, parece ilógico que Marcos, tendo a sua disposição dois escritos mais longos e
mais completos, tenha se dado ao trabalho de escrever tão poucas novas informações sobre
Jesus e seu ministério;
(8) Marcos freqüentemente contém toques vívidos, possivelmente frutos de um
testemunho ocular, omitidos tanto por Mateus quanto por Lucas;
(9) Ênfase redacional: Quando se admite a prioridade marcana, um modelo coerente de
ênfase redacional emerge de um modo que não é verificável quando aplicado aos outros
modelos explicativos. Por exemplo, o título teológico favorito de Mateus é “Filho de Davi”
que é aplicado a Jesus onze vezes38. No texto marcano, o título é empregado apenas quatro
vezes39 e no Evangelho de Lucas, também quatro vezes40.

37
Mc 3:17; 5:41; 7:10; 7:34; 14:36; 15:22; 15:34.
38
Mt 1:1; 1:20; 9:27; 12:23; 15:22; 20:30,31; 21:9,15; 22:42,45.
39
Mc 10:47-48; 12:35,37.
72

Que “Filho de Davi” é um título a quem Mateus consagra uma preferência significativa
em seu evangelho não resta dúvida, haja vista o versículo introdutório de seu texto: “Livro da
origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão”. Contudo, é quando se compara a
aparição deste título em Mateus e nos relatos paralelos, que se evidencia o quão forte Mateus
enfatiza a condição davídica de Jesus (Quadro 22):

Quadro 22
Mateus 12:22b-24 Marcos 3:22 Lucas 11:14b-15
Então trouxeram-lhe um Ele expulsava um demônio que
endemoninhado cego e era mudo. Ora, quando o
mudo. E ele o curou, de demônio saiu, o mudo falou e as
modo que o mudo podia multidões ficaram admiradas.
falar e ver. Toda a multidão Alguns dentre eles, porém, dis-
ficou espantada e pôs-se a seram: “É por Beelzebu, o
dizer: “Não será este o príncipe dos demônios, que ele
Filho de Davi?” Mas os expulsa os demônios.”
fariseus, ouvindo isto, E os escribas que haviam
disseram: “Ele não expulsa descido de Jerusalém
demônios, senão por diziam: “Beelzebu está
Beelzebu, príncipe dos nele”, e também: “É pelo
demônios.” príncipe dos demônios
que ele expulsa os
demônios.”

A análise comparada dos versículos expostos no Quadro 18 põe em destaque o recurso


literário mateano de dar voz à multidão, que não é seguido pelos outros evangelistas, mais
atentos a fala dos opositores de Jesus. Quando a multidão se manifesta, embora de forma
interrogativa, ela já reconhece implicitamente: Jesus é o Filho de Davi.
A questão resume-se em distinguir o que é mais provável na passagem, consoante as
duas hipóteses aventadas: (1) Marcos e Lucas escolheram omitir o título “Filho de Davi” que
encontraram em sua fonte [hipótese de Griesbach] ou (2) Mateus acrescentou-o à sua fonte
[prioridade marcana].

40
Lc 18:38,39; 20:41,44.
73

Convém observar que as referências ao título “Filho de Davi” também são omitidas por
Marcos e Lucas em outras três passagens paralelas no texto mateano, indicando com maior
probabilidade tratar-se de uma ênfase redacional posterior do autor do evangelho de Mateus.41
Em suma, há várias soluções propostas, desde o século XVIII, com o objetivo de
equacionar as relações literárias entre os evangelhos sinóticos. Brown assevera ser uma
conclusão realista admitir que “nenhuma solução para o problema sinótico resolve todas as
dificuldades” (BROWN, 2004, p. 191). Mesmo assim, prossegue Brown, “se não se podem
resolver todos os enigmas, é realista aceitar e trabalhar com uma solução relativamente
simples, mas amplamente satisfatória, para o problema sinótico” (BROWN, 2004, p. 191).
Qual seja, admitir a teoria da prioridade marcana e suas implicações.

1.4. A HIPÓTESE DAS DUAS FONTES

É preciso ter claro, contudo, que a teoria da prioridade marcana é uma hipótese que
responde satisfatoriamente parte das questões relativas às inter-relações literárias dos
Evangelhos Sinóticos.
Ao lado das passagens paralelas notadas em Marcos, Mateus e Lucas – a assim
chamada “Tripla Tradição” – os estudiosos notaram outro intrigante conjunto de material:
uma vasta quantidade de versículos comuns a Mateus e Lucas, mas não observáveis no texto
marcano.
Como na Tripla Tradição, o nível de concordâncias na fraseologia e na sequência de
perícopes é tão significativo que permitiu aos estudiosos postular a existência de algum tipo
de inter-relação literária também envolvendo Mateus e Lucas, independente da relação
literária entre eles e Marcos, vindo a receber a denominação de “Dupla Tradição”.
Para os “griesbachianos”, a Dupla Tradição simplesmente confirma que Lucas leu o
Evangelho de Mateus, daí o alto grau de concordância entre seus textos. No entanto, na
perspectiva dos defensores da prioridade marcana, há fortes evidências do contrário (STEIN,
1989, pp. 91-103). Assim, a pergunta fundamental é: Lucas conheceu o texto de Mateus?

41
Convém observar que vários outros eruditos têm desenvolvido estudos a fim de tornar mais evidente a
prioridade marcana. Blomberg destaca, entre outros, Maurice Casey e seu estudo sobre as fontes aramaicas de
Marcos; Peter Head e sua dissertação cujo argumento fundamental reside na conclusão de que aspectos
selecionados da Cristologia de Mateus, em particular seu uso de títulos como Mestre, Senhor, Cristo e Filho de
Davi, fazem mais sentido se se considera Mateus servindo-se de Marcos como sua fonte do que o contrário e, por
fim, David New e sua análise das citações do Antigo Testamento presentes nos Sinóticos (2001, p. 21-22).
74

(a) Quando Mateus acrescenta palavras ou frases ao texto marcano, Lucas não repete o
mesmo procedimento (Quadros 15 e 18, acima). Implica dizer, se Lucas tinha conhecimento
do texto mateano e, por conseguinte, das alterações feitas por este em sua fonte marcana, é
difícil explicar porque Lucas optou pela versão marcana.
(b) Lucas jamais posiciona seu material não-marcano comum a Mateus (dupla tradição)
no mesmo contexto em que Mateus o faz. Assim, este material, dividido por Mateus em cinco
seções (capítulos 5 a 7; 10; 13; 18; 23 a 25), sempre se encerra com as palavras, mais ou
menos idênticas, “Aconteceu que ao terminar Jesus estas palavras...” (7,28; 11,1; 13,53; 19,1;
26,1).42 Observa-se, porém, que estas cinco seções mateanas foram (ou estão) agrupadas por
Lucas em dois grandes blocos de perícopes em 6,20-8:3 e 9,51-18,14. Os estudiosos vêem aí
um empecilho ao argumento da dependência lucana ao texto de Mateus em função de ser
difícil justificar a razão pela qual o autor de Lucas optou por colocar os ditos que ele obteve
do texto mateano em ordem tão distinta em seu evangelho, caso Mateus tivesse lhe servido de
fonte.
(c) Lucas altera significativamente o posicionamento das exortações contidas no sermão
da montanha e omite vários pronunciamentos de Jesus (Quadro 23, apenas o capítulo 5 de
Mateus):
Quadro 23
Mateus Lucas
As bem-aventuranças 5:3-12 6:20-23
O sal da terra 5:13 14:34-35a
A luz do mundo 5:14-16 8:16
O cumprimento da Lei 5:17-19 16:16-17
Sobre a justiça 5:20-24
Sobre a reconciliação 5:25-26 12:58-59
Sobre o adultério 5:27-28
Arrancar o olho, arrancar a mão 5:29-30
Sobre o adultério 5:31-32 16:18
Sobre o juramento 5:33-37
Dar a outra face 5:38-42 6:29-30
Amar os inimigos 5:43-48 6:27-28,32-36

42
Brown considera improvável que, com estes cinco discursos, constituindo cinco seções, Mateus estivesse
tentando fazer um paralelo com o Pentateuco de Moisés, conforme proposto por alguns estudiosos (2004, p.
264).
75

O rearranjo das perícopes e a omissão de outras por Lucas tornam-se compreensíveis


somente se for descartado o uso de Mateus como fonte. Por conseguinte, os estudiosos
advogam a existência de uma segunda fonte jazendo por trás de Mateus e Lucas como uma
explicação plausível.
(d) Admitindo-se que Mateus foi a fonte de Lucas, é necessário que o material mateano
apresente características mais “primitivas” do que o material lucano no sentido de sua teologia
e/ou tradição. Entretanto, a dupla tradição mostra material menos desenvolvido
teologicamente tanto em Mateus quanto em Lucas (Quadros 24 e 25):

Quadro 24
Mateus 7:9-11 Lucas 11:11-13
Quem dentre vós dará uma pedra a seu Quem de vós, sendo pai, se o filho lhe pedir um
filho, se este lhe pedir pão? Ou lhe dará peixe, em vez do peixe lhe dará uma serpente?
uma cobra se este lhe pedir peixe? Ou ainda, se pedir um ovo, lhe dará um
escorpião?
Ora, se vós que sois maus sabeis dar boas Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas
dádivas aos vossos filhos, quanto mais o dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do
vosso Pai, que está nos céus, dará coisas céu dará o Espírito Santo aos que o pedirem!
boas aos que lhe pedem!

Quadro 25
Mateus 7:12 Lucas 6:31
Tudo aquilo, portanto, que quereis que os Como quereis que os outros vos façam, fazei
homens vos façam, fazei-o vós a eles, também a eles.
porque isto é a Lei e os Profetas.

No primeiro exemplo, as “coisas boas” de Mateus, quando postas em contraste com o


“Espírito Santo” de Lucas, denotam um desenvolvimento teológico lucano à luz de uma
percepção pós-Pentecostes daquilo que as “coisas boas” de Deus realmente são, ou seja, o
Espírito Santo. Por sua vez, no segundo exemplo, o comentário mateano “porque isto é a Lei
e os Profetas”, assemelha-se a um desenvolvimento teológico posterior tipicamente mateano
concernente ao cumprimento das Escrituras Sagradas.
Assim, a teologia mais primitiva pendendo ora para um autor ora para outro, é um
elemento complicador para a asserção da dependência lucana em relação a Mateus, à medida
que seria de se esperar que a teologia lucana se revelasse constantemente um passo à frente no
76

desenvolvimento da cristologia mateana. Em função disto, os estudiosos encontram, mais uma


vez, relevantes razões para suspeitar que Lucas não conheceu a obra mateana.
(e) Além da Tripla Tradição e da Dupla Tradição, os estudiosos do Novo Testamento
também identificaram em Mateus e Lucas tradições próprias destas comunidades. Tais
materiais foram denominados de M (tradição mateana) e L (tradição lucana)43 e podem ser
isolados subtraindo-se dos evangelhos de Mateus e Lucas tudo o que se julga ser originário de
Marcos e da parte redacional dos evangelistas.
Assim, assumindo-se que Lucas é dependente de Mateus, a ausência da tradição M em
Lucas (e a ausência da tradição L em Mateus) é um forte argumento a refutar a hipótese de
que Lucas usou como fonte o texto mateano.
Em suma, os diversos argumentos apresentados (a, b, c, d, e e) sugerem fortemente a
independência de Mateus e Lucas entre si, e, por conseguinte, acarretam na conclusão
inexorável de que as perícopes compartilhadas por eles, mas que não foram copiadas do
evangelho de Marcos, são provenientes de outra ou outras fontes.
Ou seja, evidenciado o desconhecimento de Mateus do texto de Lucas e vice-versa, é
preciso traçar uma linha que conecte Mateus e Lucas sem que cruze por Marcos e, ao mesmo
tempo, não interligue os textos mateano e lucano diretamente. Tal solução, bem mais
satisfatória ao problema sinótico, foi denominada de Teoria das Duas Fontes, isto é, a
hipótese de que Mateus e Lucas redigiram seus evangelhos utilizando como suas fontes:
Marcos e outro documento, composto pelo material comum a Mateus e Lucas, mas não
encontrado em Marcos. A esse material não-marcano os especialistas denominaram “Q”
(Quadro 26):

Quadro 26
Q Marcos

Mateus Lucas

43
Meier considera estas tradições de “menor importância, além de problemáticas”, no sentido de afirmar sua
historicidade, pois “não podemos passar automaticamente da tradição M ou L para uma palavra autêntica de
Jesus” já que estes materiais não possuem paralelos. Por esta razão, “não é fácil chegar-se a uma conclusão sobre
sua historicidade” (1992, p. 54).
77

Entretanto, trata-se de uma teoria que, conforme esclarece Meier, “embora seja a mais
usada em geral hoje em dia, não é universalmente aceita” (MEIER, 1992, p. 53). O mesmo
Meier confessa que foi somente após o seu trabalho de crítica da redação de Mateus que ele se
convenceu acerca da viabilidade da teoria, ainda que ela “não deixe de apresentar problemas”
(MEIER, 1992, p. 53).
Uma das dimensões desses “problemas” não explicitados por Meier é discutida por
Kloppenborg (2000, p. 51). Refere-se ao caráter essencialmente hipotético desta solução
proposta para o problema sinótico. Em outras palavras, com o fito de resolver um problema,
os especialistas no Novo Testamento montam hipóteses. Uma destas hipóteses, a das Duas
Fontes, é construída mediante a inferência de um documento hipotético a que não se conhece
um fragmento ou papiro sequer. Quer dizer, uma hipótese que se fundamenta na existência
hipotética de um texto jamais visto. Por esta razão, entre uma hipótese A e uma hipótese B,
qual a mais aceitável?
De fato, as explanações correntes a respeito dos dados advindos dos evangelhos
sinóticos propõem cenários parcimoniosos, mas que, de certa forma, são improváveis no que
se refere a uma representação precisa ou completa do processo de composição real dos
evangelhos escritos.
Nesse sentido, parece extremamente pouco provável, por exemplo, que as cópias de
Marcos e “Q” utilizadas por Mateus fossem idênticas às cópias de Marcos e “Q” usadas por
Lucas. As cópias desses documentos que, de alguma maneira, chegaram às mãos dos autores
de Mateus e Lucas podiam possuir alguns erros mínimos produzidos por copistas ou até
mesmo mudanças mais substanciais44.
Por esse motivo, Kloppenborg cautelosamente observa que os historiadores modernos
não estão em posição de saber as palavras exatas de qualquer um dos evangelhos canônicos e,
conseqüentemente, os especialistas carecem de certeza se os modelos de concordâncias e
discordâncias sobre os quais o entendimento a respeito do problema sinótico é construído,
correspondem aos textos originais (2000, p. 51).
Alguns dos fatores que estavam presentes na composição de um evangelho, de alguma
maneira, podem estar disponíveis ao historiador, porém, muitos outros escapam ao seu
alcance. Muitas variáveis desse processo permanecem ainda incógnitas às pesquisas e, embora

44
Ehrman assevera que os textos cristãos primitivos não foram copiados por copistas profissionais, “pelo menos
nos dois ou três primeiros séculos da igreja” (2006, p. 61). Logo, continua Ehrman, “podemos esperar
especialmente nessas cópias primevas erros comuns em transcrições” (2006, p. 62).
78

a Hipótese das Duas Fontes contenha a melhor explicação sobre as relações literárias entre os
Sinóticos, convém reconhecer ser útil não confundir estas inter-relações como uma descrição
daquilo que, de fato, “aconteceu”. Kloppenborg salienta que hipóteses são “modelos
heurísticos direcionados para ajudar na compreensão e nas descobertas, mas que não
reproduzem a realidade” (2000, p. 51).
Na falta de textos originais e singulares, alguns críticos hodiernos têm concentrado
considerável atenção sobre as transformações e desenvolvimentos que, indubitavelmente,
ocorreram na tradição oral em estágios anteriores à sua fixação em documentos escritos, como
um meio para resolver, por uma via alternativa, o Problema Sinótico45.
Estes esforços têm gerado hipóteses com um alto grau de complexidade, envolvendo um
número tão amplo de variáveis, que ainda que se pudesse demonstrar a sua exatidão, seria
praticamente impossível atestar sua correção. Kloppenborg destaca a hipótese sugerida por
Léon Vaganay, em 1954, para ilustrar o quanto as soluções mais simples devem ser preferidas
(2000, p. 44).
Para Vaganay, as declarações de autores cristãos antigos a respeito da composição dos
evangelhos constituem-se em dados importantes e não desprezíveis. Por conseguinte, o
testemunho de Papias é, em seu ponto de vista, chave para montar um quadro suficientemente
explicativo. Logo, Vaganay adota como pressupostos: (a) Mateus compôs um evangelho em
aramaico, que foi, posteriormente, traduzido para o grego e (b) Marcos estava diretamente
associado com as pregações de Simão Pedro.
Acrescenta ainda que Mateus e Lucas coincidentemente posicionaram o Sermão da
Montanha entre Mc 3,13-19 e 3,20-21 e que essa coincidência indica que ambos estavam
baseados não simplesmente em Marcos, mas também sobre uma outra fonte mais antiga,
cujos relatos do Sermão da Montanha, da cura do servo do centurião e dos ditos sobre João, o
Batista, encontravam-se na mesma ordem. Assim, Vaganay estabelece um proto-evangelho
em aramaico (M) e sua tradução para o grego (Mg) como as fontes mais antigas para os três
Sinóticos.
Este proto-evangelho (M) e sua tradução (Mg) teriam sido uma espécie de catecismo
apostólico primitivo e estariam associados a Simão Pedro, um dos Doze46. Ao mesmo tempo,

45
Convém mencionar, porém, que as soluções para o Problema Sinótico tendem a basear-se em questões
principalmente, ou quase exclusivamente, em termos literários, pois estes dados estão relativamente mais
acessíveis.
46
Chevitarese (2006, p. 129) admite como histórica, tomando por base os critérios adotados por Meier (1992), a
tradição relacionada aos Doze Apóstolos, pontuando que a existência desta tradição tem bases para ser associada
79

o material compartilhado por Marcos, Mateus e Lucas – a Tripla Tradição – assinalaria que a
ordem das perícopes em Marcos era mais original do que a de Mateus e, em decorrência disto,
Mateus e Lucas dependiam de Marcos, enquanto, entre si, eles seriam independentes.
O Evangelho de Mateus refletiria a estrutura e o conteúdo de Mg e o Evangelho de
Lucas, por sua vez, teria se derivado do material copiado de uma segunda fonte pré-sinótica
em aramaico (S) e sua tradução para o grego (Sg), que poderiam ter circulado de diversas
formas. As concordâncias menores, portanto, resultariam do fato de que Mateus e Lucas
conheciam tanto o texto de Marcos quanto a fonte pré-sinótica em grego, Mg
(KLOPPENBORG, 2000, p. 45) (Quadro 27):

a Jesus, e, portanto, carecem de sustentação os argumentos sugeridos por alguns de que os Doze foram uma
“invenção” posterior das comunidades cristãs. Crossan (1995, p. 121) inclui-se entre estes. Ele aceita a
instituição do grupo dos Doze como uma criação de certos grupos cristãos primitivos e que teria ocorrido após a
morte de Jesus. Suas objeções fundam-se em: (1) seria inconcebível imaginar treze homens viajando juntos entre
as pequenas aldeias da Galiléia Inferior no primeiro século; (2) grupos inteiros na igreja primitiva parecem nunca
ter ouvido sobre essa instituição especialmente importante e simbólica. Köester (2005, p. 341) partilha dessa
opinião através de outros argumentos. Em seu ponto de vista, “como Lucas queria descrever a trajetória vitoriosa
do evangelho, guiada por Deus, desde Jerusalém até Roma, ele precisava de um grupo de pessoas que
assegurassem que esse evangelho era realmente a continuação e a proclamação dos eventos que haviam
começado em Belém e na Galiléia”. Por esta razão, Lucas teria recorrido “à ficção dos 'Doze Apóstolos', um
procedimento que devia ser habitual na época, e os transforma nos apóstolos escolhidos por Jesus e nos líderes
da igreja em Jerusalém” (2005, p. 341).
80

Quadro 27
Tradições Orais Simão Pedro
(Aramaico ou grego)

Fontes Orais e Escritas Primitivas (Aramaico ou Grego)

M (aramaico)
incluindo Lc 4:1-13; 6:20-49;
7:1-1-, 18-23

S (aramaico) Mg (grego)
Lc 9:51-18:14

Sg Marcos
(grego)

Sg Lc Sg Mt

Lucas Mateus

Kloppenborg nota que a hipótese de Vaganay estabelece que muitas das transformações
significativas nas tradições sinóticas se deram num momento bem anterior à sua inscrição nos
evangelhos (KLOPPENBORG, 2000, p. 52). Assim, elas estariam além de quaisquer
reconstruções e discussões. Neste sentido, Mg, Sg e as variações nos ditos de Jesus, poderiam
estar diretamente ligadas a múltiplas e variadas performances do próprio Jesus. Inferindo-se,
portanto, que os evangelistas foram editores muito conservadores.
Vaganay concluiu que um autor como Mateus não poderia ter criado, por sua própria
imaginação, uma parábola ou um dito. Em qualquer medida, ele teria observado um grande
respeito por suas fontes, abstendo-se de fiar-se em sua imaginação. Acerca das divergências
entre os textos mateano e lucano, Vaganay dizia não ser surpreendente. Afinal, as cópias
escritas não eram de todo idênticas, em particular, Sg, que deveria ter tido formas divergentes,
dependendo do meio em que fora traduzida.
Além disso, a contribuição das tradições orais ressaltava as diferenças, não somente no
que se refere às perícopes paralelas, mas também na transmissão de novos episódios. Por fim,
81

Mateus e Lucas não foram compiladores. Eles trataram suas fontes de diferentes modos
conforme suas próprias tendências (KLOPPENBORG, 2000, p. 52).
Em síntese, a solução oferecida por Vaganay carece, segundo Kloppenborg, de utilidade
heurística, tal a sua complexidade. Ela multiplica as fontes, distribui as transformações
editoriais por diversos níveis de atividades orais e literárias, e reduz a iniciativa dos
evangelistas como autores, tornando-os meros editores que combinaram e posicionaram suas
fontes e tradições pré-existentes.
Kloppenborg, portanto, rebate essa hipótese, asseverando que a hipótese de utilização
mais simples, que advoga o emprego de apenas uma ou duas fontes, garante a criatividade dos
evangelistas (KLOPPENBORG, 2000, p. 53). Nesse sentido, exige dos intérpretes a
percepção de cenários editoriais e teológicos para cada um dos autores dos evangelhos que
justificam todas as modificações literárias implicadas.
Não importando qual hipótese que se escolha, a de Griesbach ou a dos Dois
Documentos, fato é que mostra-se necessário imaginar um editor com capacidade bastante
para efetuar todas as alterações, rearranjos e reconfigurações que são precisas para que o texto
de Marcos (e “Q”), por exemplo, venha a se constituir no texto de Mateus que se pode
consultar hoje. Isso confere um papel mais ativo e refinado aos autores dos evangelhos, ao
contrário dos resultados obtidos pela complexa hipótese de Vaganay.
Inevitavelmente, emerge a questão sobre o que é uma boa hipótese. Kloppenborg afirma
que se trata daquela que se julga oferecer a mais econômica e mais plausível descrição com os
vastos dados disponíveis (KLOPPENBORG, 2000, p. 54).
“Hipóteses são tudo o que temos e tudo o que teremos”, exclama Kloppenborg (2000, p.
54). Consequentemente, as hipóteses devem ser construídas cuidadosamente e usadas critica e
auto-conscientemente. Devem também ser postas à prova e corrigidas por meio de uma
revisão minuciosa e atenta das evidências.

1.5. PROBLEMA SINÓTICO: NOVAS PERSPECTIVAS

A demanda por uma explicação mais consensual da questão sinótica não se encerra no
que até aqui foi discutido. Ainda que praticamente um consenso acadêmico, a Hipótese das
Duas Fontes e seus corolários continuam sendo alvo de intensos e cada vez mais refinados
debates, contestações e corroborações. Assim, a partir do momento em que se dialoga com
ciências afins torna-se mais estimulante a busca pelos cenários reais em que se deram a
produção das narrativas evangélicas intracanônicas.
82

Robert K. McIver e Marie Carroll avançam nessa questão ao sugerirem, com


propriedade, a necessidade de realizarem-se experimentos que resultem em critérios para
aferir, com o máximo de certeza, a existência de fontes escritas atestando relações de
dependência literária entre os textos.
Para esse fim, McIver e Carroll propõem uma aproximação entre estudiosos dos
evangelhos e pesquisadores da psicologia experimental. Com efeito, os dois autores
conduziram experiências elaboradas para “explorar algumas das características de acordo com
as quais materiais copiados de textos escritos pudessem ser distinguidos de materiais
oralmente transmitidos” (2009, p. 668).
Uma dessas experiências contou com a participação de 43 estudantes que, sorteados
aleatoriamente, formaram três grupos. Aos participantes de cada grupo foi dada uma lista com
oito assuntos aos quais eles deveriam escolher seis. O que deveria mover a escolha era o grau
de conhecimento acerca dos assuntos. Os oito temas eram: (1) o naufrágio do Titanic; (2) a
presidência de John F. Kennedy; (3) a epidemia de AIDS; (4) a morte da princesa Diana; (5) a
“saída do armário” de Ellen DeGeneres; (6) o caso Monica Lewinski; (7) a carreira esportiva
de Cathy Freeman; e (8) a guerra de Kosovo.
Cada um desses itens possuía uma breve descrição variando de 217 a 336 palavras com
seis de oito entre 240 e 290 palavras. Os grupos receberam as seguintes instruções:
Primeiro: Escreva sobre os dois primeiros eventos de sua lista sem quaisquer referências
a fontes. Por favor, escreva em menos de uma página para cada evento. Use os
formulários intitulados “Sem fontes” (isso é vital) e identifique o tópico sobre
o qual você está escrevendo.
Segundo: Por favor, peça sumários dos dois próximos eventos de sua lista. Você terá
permissão para lê-los o quanto desejar. Porém, antes de escrever sobre o
evento, devolva os sumários. Agora, escreva sobre o evento com suas próprias
palavras. Você poderá misturar seu próprio material com o material do
sumário a fim de obter um resumo razoável de tudo o que você queira dizer
sobre o evento. Por favor, escreva em menos de uma página para cada evento.
Utilize suas próprias palavras e você poderá incluir coisas sobre o evento que
não estejam no sumário. Use os formulários intitulados “Fontes usadas, mas
devolvidas” (isso é vital) e identifique os tópicos sobre os quais você está
escrevendo.
Terceiro: Por favor, peça sumários dos dois últimos eventos de sua lista. Você terá
83

permissão para lê-los o quanto quiser. Em seguida, escreva sobre os eventos


com suas próprias palavras. Você não precisa devolver os sumários antes de
escrever. Você poderá misturar seu próprio material com o material do
sumário a fim de obter um resumo razoável de tudo o que você queira dizer
sobre o evento. Por favor, escreva em menos de uma página para cada evento.
Use os formulários intitulados “Fontes usadas e não devolvidas” (isso é vital) e
identifique os tópicos sobre os quais você está escrevendo.
Os alunos do segundo grupo receberam as mesmas instruções, mas em uma ordem
diferente: os primeiros eventos com as fontes disponíveis enquanto escreviam, os segundos
sem referências às fontes e os terceiros após ler e devolver os sumários. O terceiro grupo de
alunos na seguinte ordem: fontes lidas e devolvidas; fontes lidas e não devolvidas; e sem
fontes.
Nas análises das respostas, a informação escrita pelos participantes foi digitada em uma
coluna em paralelo ao texto original e as frases e o vocabulário comum foram sublinhados por
cada um dos estudantes envolvidos no experimento. A hipótese em teste advogava que
haveria uma diferença discernível na quantidade de itens e vocabulário comuns entre o grupo
escrito com base nas próprias recordações do evento e os outros dois grupos a quem foram
dados sumários dos eventos. Além disso, havia a expectativa de distinções na escrita entre os
que devolveram o sumário e os que o retiveram consigo. Por conseguinte, as medidas de
interesse para os pesquisadores eram (1) vocabulário comum, (2) o número máximo de
palavras na sequência exata, e (3) a quantidade de itens do fato que foram recordadas.
Os dois tópicos escolhidos pela maioria dos voluntários foram o naufrágio do Titanic
(40 alunos) e a morte de Diana (37 alunos). Os tipos de diferenças que puderam ser
observadas nos três grupos podem ser ilustrados nos materiais gerados pelos voluntários D 19,
D 10 e D 13. O voluntário D 19, por exemplo, escreveu sobre o naufrágio do Titanic o que
segue:
[Sumário fornecido aos participantes] [Resposta de D 19 – Sem fontes]
Anunciado como inafundável, construído O Titanic era um imenso navio de cruzeiro
para ser o maior navio de sua época e construído pela British White Starline
exemplar ideal do luxo, o Titanic chocou- Company na Irlanda. Esse navio era
se com um iceberg e afundou em sua inafundável em função de seu desenho e
viagem inaugural. As condições do também, assim se dizia, por ser o mais veloz.
Atlântico eram calmas na noite de 14 de Foi concebido para ser o navio de cruzeiro
84

abril de 1912. Em um aparente esforço mais seguro em mar aberto, porém um


para quebrar o recorde do Transatlântico, o choque no Atlântico causou uma tragédia. O
Titanic navegava a velocidade de 22 pés navio bateu em um iceberg e os quatro
(41 km/h) quando chocou-se com o primeiros compartimentos do fundo
iceberg. A princípio, os passageiros e a encheram-se de água deixando a frente mais
tripulação não se deram conta do quão pesada e o navio afundou. Porque eles
grave foram os danos. Porém, o projetista estavam confiantes que não havia botes
do navio estava a bordo e foi logo capaz salva-vidas suficientes para todos e mais de
de reportar ao capitão que cinco dos 1.500 pessoas pereceram.
compartimentos à prova d’água tinham
sido rompidos e que o navio certamente
afundaria em poucas horas.
A quantidade de botes salva-vidas era
insuficiente e um navio próximo, o
Califórnia, não respondeu às mensagens
de rádio e aos sinalizadores. Dos assentos
disponíveis nos botes salva-vidas, nem
todos foram usados e por volta de 1.500
passageiros e tripulantes afogaram-se.
Entre esses, inclusive o capitão. Suas
últimas palavras aos passageiros e
tripulantes que escaparam foram “sejam
britânicos”. Ele foi pela última vez visto
precipitando-se do bordo para as águas.
Em setembro de 1985, uma expedição
científica conjunta EUA-França localizou
os restos do Titanic a uma profundidade de
3.962 m, a cerca de 595 km da costa de
Terra Nova. O navio foi fotografado por
um robô de profundidade.
O afundamento do Titanic virou filme e é
atualmente o filme mais caro já produzido.
85

Pode-se contar 11 palavras em comum entre o original e a redação do voluntário (5%


das 240 palavras do original e 10% das palavras da redação). Observa-se duas palavras
exatamente na mesma ordem e 6 elementos comuns, dos quais 3 estão na mesma sequência.
Para efeito de comparação, cumpre registrar o resultado de outros voluntários:

[Sumário fornecido aos participantes] [Resposta de D 10 – Fontes usadas, mas


devolvidas]
Anunciado como inafundável, construído O Titanic era o maior navio de todos já
para ser o maior navio de sua época e construídos – era tão luxuoso e a frente da
exemplar ideal do luxo, o Titanic chocou- época. Foi na viagem inaugural, em 14 de
se com um iceberg e afundou em sua abril de 1912, quando ele chocou-se com um
viagem inaugural. As condições do iceberg e afundou. Os tripulantes e os
Atlântico eram calmas na noite de 14 de passageiros não se deram conta da extensão
abril de 1912. Em um aparente esforço dos danos, mas o projetista estava a bordo e
para quebrar o recorde do Transatlântico, o disse que ele afundaria. Não havia botes
Titanic navegava a velocidade de 22 pés salva-vidas suficientes para todos. Os botes
(41 km/h) quando chocou-se com o não foram preenchidos com toda sua
iceberg. A princípio, os passageiros e a capacidade e, no fim, 1.500 pessoas
tripulação não se deram conta do quão morreram, inclusive o capitão.
grave foram os danos. Porém, o projetista Em 1985, um cientista francês descobriu o
do navio estava a bordo e foi logo capaz Titanic a profundidade de 3.965 m abaixo do
de reportar ao capitão que cinco dos nível do mar e a 595 km da costa...
compartimentos à prova d’água tinham Um filme foi feito e é um dos maiores filmes
sido rompidos e que o navio certamente já feitos.
afundaria em poucas horas.
A quantidade de botes salva-vidas era
insuficiente e um navio próximo, o
Califórnia, não respondeu às mensagens
de rádio e aos sinalizadores. Dos assentos
disponíveis nos botes salva-vidas, nem
todos foram usados e por volta de 1.500
passageiros e tripulantes afogaram-se.
Entre esses, inclusive o capitão. Suas
86

últimas palavras aos passageiros e


tripulantes que escaparam foram “sejam
britânicos”. Ele foi pela última vez visto
precipitando-se do bordo para as águas.
Em setembro de 1985, uma expedição
científica conjunta EUA-França localizou
os restos do Titanic a uma profundidade de
3.962 m, a cerca de 595 km da costa de
Terra Nova. O navio foi fotografado por
um robô de profundidade.
O afundamento do Titanic virou filme e é
atualmente o filme mais caro já produzido.

[Sumário fornecido aos participantes] [Resposta de D 13 – Fontes usadas e não


devolvidas]
Anunciado como inafundável, construído O Titanic foi construído como o maior navio
para ser o maior navio de sua época e de sua época. Era anunciado como
exemplar ideal do luxo, o Titanic chocou- inafundável. Em 14 de abril de 1992, em um
se com um iceberg e afundou em sua esforço para quebrar um recorde o Titanic
viagem inaugural. As condições do navegava a velocidade plena quando bateu
Atlântico eram calmas na noite de 14 de em um iceberg.
abril de 1912. Em um aparente esforço Os passageiros não tinham certeza se foi
para quebrar o recorde do Transatlântico, o grave a princípio. O projetista do navio logo
Titanic navegava a velocidade de 22 pés reportou que os cinco compartimentos à
(41 km/h) quando chocou-se com o prova d’água tinham sido rompidos e que o
iceberg. A princípio, os passageiros e a navio afundaria dentro de poucas horas.
tripulação não se deram conta do quão A quantidade de botes salva-vidas era
grave foram os danos. Porém, o projetista insuficiente. Dos assentos disponíveis nos
do navio estava a bordo e foi logo capaz botes salva-vidas, nem todos foram usados e
de reportar ao capitão que cinco dos por volta de 1.500 passageiros afogaram-se.
compartimentos à prova d’água tinham Em 1985, uma expedição científica conjunta
sido rompidos e que o navio certamente EUA-França localizou os restos do Titanic a
afundaria em poucas horas. uma profundidade de 3.962 m. O navio foi
87

A quantidade de botes salva-vidas era fotografado por um robô de profundidade.


insuficiente e um navio próximo, o O afundamento do Titanic virou filme que é
Califórnia, não respondeu às mensagens atualmente o filme mais caro já produzido.
de rádio e aos sinalizadores. Dos assentos
disponíveis nos botes salva-vidas, nem
todos foram usados e por volta de 1.500
passageiros e tripulantes afogaram-se.
Entre esses, inclusive o capitão. Suas
últimas palavras aos passageiros e
tripulantes que escaparam foram “sejam
britânicos”. Ele foi pela última vez visto
precipitando-se do bordo para as águas.
Em setembro de 1985, uma expedição
científica conjunta EUA-França localizou
os restos do Titanic a uma profundidade de
3.962 m, a cerca de 595 km da costa de
Terra Nova. O navio foi fotografado por
um robô de profundidade.
O afundamento do Titanic virou filme e é
atualmente o filme mais caro já produzido.

As respostas de D 10 (Fonte devolvida) e D 13 (Fonte não devolvida) estão dentro do


que poder-se-ia esperar, apresentando uma quantidade bem maior de elementos comuns com
o sumário fornecido aos voluntários do que as respostas dadas por D 9 (sem fonte). Consoante
o levantamento de McIver e Carroll, isso se observa na quantidade de palavras comuns, na
porcentagem de palavras comuns comparadas ao original, no número de palavras na
sequência exata, no número de elementos factuais comuns e no número de elementos factuais
em sequência (2009, p. 672-673).
A dupla de pesquisadores conduziu outros dois experimentos que, conforme ambos
notaram, revelaram a importância do gênero literário na transmissão oral do material. Nessas
experiências, os voluntários podiam ouvir alguma coisa lida para eles na quantidade de vezes
que desejassem. Em seguida, eles dirigiam-se para uma sala contígua e repetiam para um
gravador o que haviam escutado tão precisamente quanto possível. Posteriormente, era
solicitado aos voluntários que copiassem por escrito um item similar que lhes era fornecido
88

em cópia escrita. Esse experimento foi projetado na intenção de se obter resultados muito
próximos aos paralelos encontrados no Problema Sinótico.
De acordo com os pesquisadores, isso foi verdadeiro na primeira parte do experimento
que se apoiou sobre memória oral. Porém, a ênfase na concordância verbal obteve um grau de
precisão próximo de 100% no ato de copiar um texto escrito. Algo que não se observa nos
paralelos entre os evangelhos sinóticos. Paralelos com exatidão palavra por palavra não são
encontrados em quaisquer pares sinóticos contendo 32 palavras ou mais.
O que chamou a atenção dos pesquisadores foi a influência que o gênero literário teve
sobre os resultados. Com efeito, no primeiro experimento utilizou-se uma anedota e no
segundo, quatro aforismos. Os testes mostraram que, embora a maioria tenha conseguido
reproduzir a anedota de uma maneira que conservou o humor, ninguém chegou perto de
repeti-la com as mesmas palavras. Por outro lado, vários voluntários chegaram muito próximo
de escrever três dos quatro aforismos com precisão de palavra por palavra.

Experimento 1
[Original] [Resposta do voluntário A 15]
Há essa prisão no deserto, com um velho Havia uma prisão no deserto e havia um
prisioneiro, resignado com sua vida, e um velho ali que era um velho prisioneiro e
jovem recém-chegado. O jovem fala resignado com seu destino. Um jovem
constantemente em escapar e, após alguns prisioneiro é trazido e ele vive louco em
meses, ele para de falar. Ele escapa por uma planejar sua fuga, ele escapa e depois de um
semana e então é trazido de volta pelos mês e uma semana depois é trazido de volta
guardas. Ele está semi-morto. Enlouquecido maluco com raiva e desejo ... agora eu me
de raiva e desejo. esqueci o resto ... Ele ... o velho prisioneiro
Ele descreve o quão bacana foi para o velho ... ele conta ao velho prisioneiro sobre
prisioneiro. Os infinitos trechos de areia, infinitos trechos de areia, nenhum oásis,
nenhum oásis, nenhum sinal de vida. O nenhum sinal de vida ... o velho prisioneiro
velho prisioneiro o ouve por um tempo e diz, “Ah, eu sei, eu tentei escapar quando
diz, “Sim, eu sei. Eu tentei escapar há vinte vim para cá pela primeira vez.” E o jovem
anos”. prisioneiro diz, “Por que não me disse
O jovem prisioneiro diz, “você tentou? Por quando eu planejava todos aqueles mapas
que não me disse durante esses meses todos para escapar?” E o velho prisioneiro disse
que eu planejava minha fuga? Por que não “que eles nunca publicam negativos ...
89

me disse que era impossível?” ninguém publica resultados negativos”.


O velho prisioneiro deu de ombros e disse
“quem publica resultados negativos?”

Experimento 2
[Original] [Resposta do voluntário B7]
É mais provável ser atingido por um raio do É mais provável ser atingido por um raio do
que ser comido por um tubarão. que ser comido por um tubarão.
É mais provável ser infectado por uma É mais provável ser infectado por uma
bactéria carnívora do que ser atingido por bactéria carnívora do que ser atingido por um
um raio. raio.
Mais pessoas trabalhando em noticiário Mais pessoas são mortas por burros
morreram no trabalho em 1996 do que as anualmente do que em acidentes aéreos.
que trabalham em refinarias de petróleo. Houve mais pessoas trabalhando em
Mais pessoas são mortas por burros noticiário em 1996 do que trabalhando em
anualmente do que em acidentes aéreos. refinarias de petróleo.

Os gêneros dos dois exemplos utilizados nos experimentos foram escolhidos


deliberadamente tendo em vista os materiais atribuídos a Jesus nos evangelhos. Como é
amplamente sabido, esses são repletos de aforismos e parábolas. Nos círculos acadêmicos há
igualmente a noção de que anedotas guardam notáveis semelhanças com as parábolas de
Jesus. Ou seja, trata-se de unidades independentes do contexto como um todo e que exigem a
preservação de uma certa quantidade de elementos básicos para fazer “sentido”, mesmo se, tal
como a anedota do experimento 1, muitos daqueles que a transmitem não compreendam sua
significação. Nesse sentido, parábolas e anedotas podem muito bem ser relativamente
resistentes a mudanças.
De posse desses dados experimentais, cumpre verificar as potenciais implicações para a
resolução do Problema Sinótico. Em que medida essas experiências permitem aferir se os
paralelos textuais são resultado da cópia direta ou da transmissão oral? Para a dupla de
pesquisadores nem sempre é possível discernir se por trás de um texto escrito reside um outro
texto. Como eles sublinham, “muitos dos voluntários, no Experimento 5, que conservaram
consigo o sumário escrito não produziram sequências longas de palavras” (2009, p. 678).
No entanto, no que tange às anedotas e descrições de eventos históricos, apenas os
estudantes que não devolveram os textos e tiveram permissão de copiar durante o
90

experimento conseguiram produzir longas sequências de palavras que coincidiam em um grau


relevante de semelhança. Lastreados em seus resultados, os pesquisadores criaram um gráfico
com o propósito de deixar mais acentuados os resultados de seus experimentos.

Quantidade de palavras em sequência exata


70

60

50
Frequência

40
Sem fontes

30 Fontes devolvidas
Fontes não devolvidas
20

10

0
0 4 8 12 16 20 24 28 32 36 40 > 40
Quantidade de palavras

Como se nota no gráfico, sequências de palavras com 16 ou mais palavras são


exclusivas dos grupos de voluntários a quem se permitiu reter as fontes e consultá-las
enquanto copiavam. Tomando como grupo crítico aquele em que os estudantes tiveram que
devolver suas cópias constata-se que oito é o número de palavras que a maior parte conseguiu
reproduzir na sequência exata. Além disso, nenhum deles conseguiu sequências acima de 16
palavras.
O que os experimentos também destacam é que essa característica é válida e precisa
apenas para materiais narrativos, sendo possível que sequências mais extensas de palavras
oriundas de poemas e aforismos curtos sejam lembradas com mais exatidão. Com efeito, a
partir dessas estatísticas, a dupla de pesquisadores propõe a seguinte tese: qualquer sequência
em que haja exatamente iguais 16 ou mais palavras, desde que não sejam aforismos, poesia
ou cantingas, é quase certo ter sido copiada de um texto escrito (2009, p. 680).
Assim, cumpre aplicar essa tese aos versos paralelos dos evangelhos sinóticos. Tendo
em mente que passagens com 16 ou mais palavras que se encontrem exatamente na mesma
91

forma e sequência foram, muito provavelmente, copiadas de textos escritos. A busca por essas
passagens permitiu aos pesquisadores montar a tabela abaixo:
Quantidade de palavras Referência
na sequência exata Mateus Marcos Lucas
31 10:16-25 13:3-13
29 10:13-16 18;15-17
28 11:25-30 10:21-24
28 24:45-51 12:41-48
26 1:21-28 4:31-37
26 6:24 16:10-13
24 3:1-12 3:1-20
24 7:7-12 11:9-13
24 8:18-22 9:57-62
24 12:38-42 11:29-32
23 16:21-28 8:31- 9:1
23 12:38-40 20:45-47
23 24:15-28 13:14-23
23 26:17-25 14:12-21
22 11:1-9 7:18-35
21 8:5-13 7:1-10
20 15:1-20 7:1-23
19 22:41-46 12:35-37
17 8:1-4 5:12-16
17 20:20-28 10:35-45
16 15:32-39 8:1-10
16 16:21-28 9:21-27
16 24:29-35 13:24-31

Com a tabela montada, o próximo passo consiste em descartar todas as passagens que se
possa claramente identificar aforismos, ditos distintivos e poesia, à proporção que longas
sequências de aforismos e ditos distintivos podem ser transmitidos oralmente. Por
conseguinte, sete paralelos foram postos de lado:
92

Mt 6:24 // Lc 16:13
Mc 1:24-25 // Lc 4:34-35
Mt 7:7-8 // Lc 11:9-10
Mt 8:20 // Lc 9:58
Mc 12:38-40 // Lc 20:45-47
Mt 26:24 // Mc 14:21
Mt 20:28 // Mc 10:45
Dentre as passagens paralelas restantes, McIver e Carroll consideram que 7 são
ambíguas se se levar em conta os resultados dos experimentos. São ditos distintivos que se
encontram, muito embora a exatidão de palavras, embutidos em passagens que possuem uma
quantidade de sequências longas de palavras que são exatamente as mesmas, inclinando
qualquer pesquisador a supor que um processo de cópia teve lugar.
Nesse sentido, feitas essas exclusões, restam somente aquelas passagens que, conforme
os critérios do experimento, quase certamente contém material copiado:

 Três paralelos em um discurso Mt 24:15-28 // Mc 13:14-23


apocalíptico Mt 24:29-35 // Mc 13:24-31
Mt 10:21-22 // Mc 13:12-13
 Três relatos narrativos Mt 3:1-12 // Lc 3:1-20 (pregação de João, o
Batista, particularmente Mt 3:7b-12 // Lc
3:7b-9, 16-17)
Mt 11:1-9 // Lc 7:18-35
Mt 8:1-4 // Lc 5:12-16
 Um curto discurso Mt 11:25-30 // Lc 10:21-24
 Uma parábola Mt 24:45-51 // Lc 12:41-48
 Uma citação de Salmos 110 Mt 22:41-46 // Mc 12:35-37

Em linhas gerais, os experimentos levados a cabo pela dupla de pesquisadores


apontaram, no que tange à memória, que anedotas e relatos históricos são mais bem
lembrados em termos mais amplos e não as palavras exatas. Por outro lado, alguns gêneros
literários, como aforismos e poesias, tendem a ser lembrados palavra por palavra.
Por conseguinte, mostra-se possível transmitir sequências mais extensas de palavras
com grau considerável de precisão no caso dessas serem vertidas em forma de aforismos,
poesia e cantigas. Assim, essas observações suscitaram a formulação de um critério para
93

estabelecer a presença de cópia: excetuando poesia, cantigas e aforismos, quando forem


encontradas 16 ou mais palavras em exatamente a mesma ordem em dois ou mais documentos
isso indicará que um processo de cópia direta teve lugar.
A aplicação desse critério aos paralelos encontrados nos evangelhos sinóticos revela que
há, ao menos, nove passagens em que é quase certo que um processo de cópia haja ocorrido.
Com efeito, é bastante provável que outras passagens comuns sejam o resultado de cópia.
Convém ressaltar, todavia, que a maioria das passagens paralelas mostra-se bem mais
próxima de um processo de transmissão que envolve memória e memorização do que de cópia
direta. Assim, o vocabulário comum é encontrado em sequências curtas de palavras, há
mudanças de modo, construção gramatical e tempo dos verbos, sinônimos são comuns e as
passagens são de comprimentos diferentes.

1.6. CONCLUSÃO

Como frisa Udo Schnelle (2004, p. 58), as diferenças entre os evangelhos representavam
um problema para uma porção diminuta de pessoas à medida que a maioria acreditava que os
autores dos evangelhos foram testemunhas oculares da vida de Jesus e as tradições da Igreja
antiga eram acolhidas acriticamente.
Contudo, as atenções foram despertadas para as semelhanças e divergências e a questão
sinótica surgiu exigindo uma explicação plausível. Debalde alguns poucos autores que
rejeitam tanto as explanações oferecidas quanto as hipóteses levantadas para solucionar o
Problema Sinótico, é inegável que existe algum tipo de relação de dependência literária entre
os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas.
Pode-se aventar a hipótese de que parte da resistência às teorias explicativas para o
Problema Sinótico surge da necessidade de admitir que os evangelhos canônicos não foram
escritos por quem tradicionalmente se acreditava que haviam sido seus autores. A partir do
momento em que se evidenciou, com base na análise textual, a ocorrência de cópias no
processo de escrita dos textos considerados sagrados para os cristãos, a releitura das origens
do cristianismo tornou-se imperiosa.
A própria noção de inerrância bíblica viu-se abalada de modo irremediável. Em reação a
isso, observaram-se distintas tentativas de harmonização dos textos evangélicos de forma a
abrandar a constatação de que os Evangelhos são o resultado da escrita de homens que,
conforme suas necessidades e conveniências, alteraram passagens sobre o ministério público
de Jesus de Nazaré.
94

É bom que se diga, entretanto, que nem todos os casos de concordância são inteiramente
resolvidos com a Teoria das Duas Fontes, contudo, ela ainda continua sendo a hipótese que,
“com o menor grau de dificuldade, explica o maior número de fenômenos” (SCHNELLE,
2004, p. 79).
Mesmo assim, apesar de todos os consensos acadêmicos, a Teoria das Duas Fontes
continua sobre intenso questionamento e constante revisão de seus postulados. Quer para que
seja corroborada, quer para que seja refutada. No caso de sua confirmação, os pesquisadores
vêm buscando entabular diálogos com outras áreas de pesquisa no intuito de cercar-se de mais
elementos empíricos que assegurem que os autores dos evangelhos de Mateus e de Lucas
compuseram seus textos com base na leitura do evangelho de Marcos.
Dois fatores, porém, impuseram reformulações significativas aos grupos que analisam o
Problema Sinótico: (a) o aumento crescente da percepção de que o modo de comunicação
predominante no ambiente em que se originaram os evangelhos era o oral e (b) sendo oral,
qual o papel desempenhado pela memória na conservação e na transmissão dos ditos e feitos
de Jesus de Nazaré.
Sob essas condições, a discussão sobre a relação de dependência entre os Evangelhos
Sinóticos enveredou por novos caminhos e o que parecia resolvido ganhou contornos mais
complexos. No próximo capítulo, a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, na década de
1940, trará mais peças a esse imenso quebra-cabeças.
Em uma Biblioteca

2 no deserto
A (re)descoberta do Evangelho de Tomé e
suas implicações históricas
96

Por muitos séculos sabia-se que, na Antiguidade, houve certo evangelho atribuído ao
apóstolo Tomé. Apesar de ter sido removido para a obscuridade do silêncio e enquadrado no
grupo de trabalhos cristãos primitivos considerados heréticos pelos guardiões da tradição
ortodoxa, ecos de sua existência podiam ser ouvidos em listas de livros banidos, descrições de
códices hoje perdidos e, ocasionalmente, em notas passageiras nos volumes dos Pais da
Igreja.
Assim, uma das mais seguras referências sobre um evangelho escrito por um sujeito
chamado Tomé ocorre em um autor do século III, Hipólito de Roma. Em sua Refutação de
Todas as Heresias 5.7.20-21, ele faz menção a uma passagem de um Evangelho de Tomé que
estava em uso entre os gnósticos naassenos e bastante semelhante à parte do Dito 4 do
Evangelho de Tomé. Segundo Hipólito (apud MEYER, 1993, p. 15):

<E> não somente os mistérios dos assírios e dos frígios [mas também os dos
egípcios], dizem eles, testemunham sua doutrina sobre a natureza abençoada,
tanto oculta quanto revelada, do que foi e é e ainda será, que, diz ele, é o
reino do céu dentro da humanidade que é buscada, no tocante ao que
explicitamente ensinam no Evangelho intitulado Segundo Tomé, dizendo
então: “Aquele que procura encontrar-me-á nas crianças a partir dos sete
anos, pois aí, oculto na idade de quatorze anos, sou revelado”. E isto não
provém de Cristo, mas de Hipócrates, que diz: “Uma criança de sete anos é
meio pai”. Portanto, tendo colocado a natureza geradora de tudo na semente
geradora e tendo ouvido a (sentença) hipocrática de que uma criança de sete
anos é meio pai, dizem que se é revelado aos quatorze anos segundo Tomé.
Esta é a doutrina inefável e mística que têm.

Além dessa menção e de outra do mesmo Hipólito, os pesquisadores sabiam de


referências a Tomé feitas por Orígenes, Eusébio, Cirilo de Jerusalém e Filipe Sidetes e
também de evidências de que ele era conhecido e usado pelos naassenos, pelos maniqueus e
vários outros grupos na Síria (LINCOLN, 1977, p. 69). Não obstante, em dezembro de 1945 –
cerca de um ano e meio antes da descoberta dos Manuscritos do Mar Morto – vários felás
egípcios que se deslocavam em seus camelos perto de Jabal al-Tarif, “um íngreme rochedo
97

que margeia o rio Nilo no Alto Egito, não distante da moderna cidade de Nag Hammadi”
(MEYER, 1993, p. 13), em busca de sabakh, um fertilizante natural, rico em nitrato, que se
acumula naquela área e que eles utilizavam nas plantações do pequeno vilarejo de al-Casr,
pararam seus camelos no sopé do rochedo e começaram a cavar em torno de uma grande
pedra que caíra no talude. Ali, segundo relatou o líder do grupo, Muhammad Ali, um de seus
irmãos acertou acidentalmente algo duro embaixo da terra com sua picareta. Era um esqueleto
humano. Escavando ao redor, descobriram um grande jarro de cerâmica com um recipiente
selado em sua parte superior com betume e medindo cerca de sessenta centímetros de altura.
Hesitantes, os irmãos, com temor de que o jarro contivesse em seu interior um jinn,
gênio maligno ou espírito, que, liberto, viria a perseguir e molestar a todos, mudaram de
opinião quando aventaram a possibilidade de também achar ouro, sobrepujando assim o medo
de jinns. Com golpes de picareta o jarro foi quebrado e, segundo narraram aos pesquisadores,
uma substância dourada espalhou-se pelo ar e desapareceu. Não encontraram nenhum espírito
e nenhum ouro. Descobriram um maço de livros velhos encadernados em couro que era inútil
para eles.
Como seus companheiros não demonstraram interesse em levar consigo aqueles livros
antigos, Muhammad Ali embrulhou tudo em seu turbante, voltou para casa com eles e os
guardou no estábulo que abrigava os animais da família. Naquela noite, como sua mãe
precisava de combustível a fim de acender o fogo para preparar a refeição noturna, ela usou
algumas das páginas secas do material que encontrou e pensou serem inúteis. Daí para diante
a história assume contornos trágicos, quase cinematográficos, e envolve rixas de sangue,
vendas no mercado negro, confisco por autoridades do Cairo, anseio por lucros financeiros,
passagem pelas mãos de colecionadores de antiguidades, inclusive Carl Gustav Jung, até parar
no Museu Copta e ser examinada por uma equipe internacional organizada pela UNESCO que
fotografou, estudou, traduziu e publicou os manuscritos.
A coleção era composta de uma dezena de códices, com mais de cinquenta textos, dos
quais cerca de quarenta desconhecidos até então. O tamanho dos textos variava de uma página
(cerca de 35 cm x 15 cm) a mais de uma centena de páginas. No total, cerca de 1.300 páginas
de manuscritos, das quais apenas 1.153 foram conservadas. Entre os documentos estava o
Evangelho de Tomé, escrito em copta, como o restante dos livros da coleção (ver figura47).

47
Fotografia dos Códices de Nag Hammadi tiradas por Jean Doresse no Cairo, em 1949, antes de sua
conservação em plexiglass por Martin Krause e Pahor Labib. Institute for Antiquity and Christianity at
Claremont, Califórnia (IAC). (Apud HEDRICK, C. W., HODGSON, R. Jr., 1986, p. 87).
98

2.2. O IMPACTO DA DESCOBERTA DE TOMÉ NOS CÍRCULOS ACADÊMICOS

O trabalho de transcrição de Tomé deixou claro que outros papiros encontrados em


Oxirrinco, Egito, no final dos anos 1890, estavam relacionados com o Evangelho de Tomé.
Ali, dois arqueólogos da Universidade de Oxford, Bernard Pyne Grenfell e Arthur Surridge
Hunt escavaram fossos com mais de 7m de profundidade durante seis temporadas, uma em
1896-1897, as outras entre 1903 e 1907 e descobriram vasta quantidade de papiros em sua
ampla maioria escritos em grego.
A publicação original desses papiros por Grenfell e Hunt provocou uma reação
entusiasmada nos meios acadêmicos, em especial, os “ditos perdidos” de Jesus, preservados
em três papiros: Papiro Oxirrinco I, 654 e 655 [Ver Anexo]. O Papiro Oxirrinco 654.1-3
apresenta em sua abertura palavras quase idênticas ao prólogo do Evangelho de Tomé de Nag
Hammadi: “Estas são as palavras [ocultas] [que] o Jesus vivo falou [e Judas, que é] também
(chamado) Tomé, [registrou]”.
Em 1952, o pesquisador francês Henri-Charles Puech fez a conexão entre esses
fragmentos e o Evangelho de Tomé, porém, enquanto Gilles Quispel, outro especialista,
examinava alguns dos textos de Nag Hammadi reunidos no Museu Copta, veio a perceber que
99

os fragmentos de Oxirrinco eram pedaços do Evangelho de Tomé. Essa descoberta foi


bastante importante, pois permitiu aos pesquisadores atestar que o Tomé copta, que foi datado
entre 350 e 400, era a tradução de um original grego mais antigo48.
Com efeito, estudiosos das mais diferentes tendências principiaram debates e análises
sobre aspectos variados do Evangelho de Tomé. Quispel e Puech, por exemplo, em suas
primeiras publicações, na década de 50 do século XX, estavam convencidos que Tomé fora
baseado sobre um antigo evangelho perdido usado por judeu-cristãos, que poderia ter sido o
Evangelho dos Hebreus ou o Evangelho dos Nazarenos49. Eles argumentavam que os ditos de
Tomé não possuíam conexão literária com os textos gregos do assim chamado Novo
Testamento, mas representavam uma tradição primitiva de ditos independente associada a
Tiago, líder da igreja de Jerusalém, e, provavelmente, conhecida em aramaico.
Na década de 60, no entanto, a credibilidade da teoria de Quispel foi sendo minada
pelos estudiosos que notaram algumas fragilidades difíceis de contornar. Os paralelos que ele
encontrara entre Tomé e o Evangelho dos Hebreus ou dos Nazarenos não se mostravam tão
claros quanto ele mencionara. Assim, os pesquisadores adotaram uma explicação mais
exótica, desenvolvendo a opinião que o Evangelho de Tomé era um evangelho gnóstico e, por
essa razão, tardio e literalmente dependente dos evangelhos do assim chamado Novo
Testamento.
Nesse sentido, Tomé foi considerado como o primeiro exemplo de uma antiga religião
que os eruditos chamaram “gnosticismo”, um termo relativamente moderno cunhado para

48
Em suas aulas e em conversas pessoais, o professor Chevitarese nos ensina que a questão da datação original
da documentação neotestamentária e não neotestamentária sempre será um tema explosivo e altamente discutido
e discutível. Como ele nos esclarece, datar esses documentos envolve questões de poder à medida que quanto
mais recuada é a data estipulada, mais próximo do ministério público de Jesus de Nazaré se encontra o material
escrito e, por conseguinte, com maior peso de autenticidade e historicidade. Crossan, por exemplo, defende que
Tomé “foi composto originalmente” sem recorrer aos evangelhos canônicos e deixa em aberto a possibilidade de
ter sido redigido “antes que [os evangelhos] existissem” (2004, p. 161). Implica dizer, entre os anos 30 e 60.
Pagels sustenta que “tanto João quanto Tomé parecem partir do pressuposto de que o leitor já conhece a história
básica contada por Marcos e pelos outros [evangelhos sinóticos], e cada um deles alega ir adiante nessa história”
(2004, p. 48). Consoante Pagels, portanto, Tomé emergiu como escrito já próximo ao fim do século I E.C. Risto
Uro, por sua vez, advoga que a melhor conjetura para a datação de Tomé consiste em situá-lo em algum
momento entre 100 e 140 E.C. Sua fundamentação toma como argumento a ausência de sinais dos sistemas
demiúrgicos que “ganharam popularidade no cristianismo primitivo da metade do segundo século em diante”
(2003, p. 135).
49
A hipótese de Quispel será alvo de comentários e críticas em 2.6.
100

descrever uma possibilidade antiga50. O que nenhum daqueles acadêmicos conseguiu


justificar foi o fato de o texto não tratar da morte de Sofia ou do papel do Demiurgo, temas
caros à mitologia gnóstica.
Por isso, começou-se a pensar que Tomé era um “precursor” do gnosticismo. Seria um
texto de transição, em vias de se tornar um evangelho gnóstico. Para essa escola de
pensamento, Tomé era um evangelho proto-gnóstico, mas que, apesar disso, não era
dependente dos textos do assim chamado Novo Testamento ou de composição tardia porque
seu gênero era mais antigo e mais primitivo do que o dos evangelhos aceitos no cânone
neotestamentário. Contudo, os críticos chamaram a atenção para um detalhe: se Tomé era uma
coleção de ditos proto-gnósticos, então ele não podia representar as tradições cristãs
primitivas. Em certa medida, isso levava a uma conclusão inevitável: Tomé não podia
proceder de Jesus, o sábio de Nazaré. Ou será que podia?
Em sua análise da questão, John P. Meier postula ser impossível aceitar que o
Evangelho de Tomé em seu todo, como se apresenta no texto copta, “seja um reflexo
confiável do Jesus histórico ou das mais antigas fontes do cristianismo do século I” (1992, p.
131). Embora reconheça a presença de frases em Tomé muito semelhantes às dos sinóticos,
elas “estão justapostas a outras de evidente matiz gnóstico e, por vezes, parecem ter sido
reformuladas de modo a transmitir uma mensagem gnóstica” (1992, p. 129). Sumarizando a
teologia de Tomé, Meier encontra nela uma “estranha mistura de misticismo, ascetismo,
panteísmo e politeísmo” que, somente quando unidas, ensejam compreender algumas das

50
Charles W. Hedrick esclarece que o termo “gnosticismo” é um “nome que deriva de uma palavra grega que
significa ‘conhecimento’” (HEDRICK, HODGSON: 1986, p. 1). Um termo que, por sua vez, costuma ser
aplicado a uma série de disseminados e diversificados movimentos religiosos-filosóficos da antiguidade que,
entretanto, são compreendidos como tendo algumas similaridades. Ademais, muitos pesquisadores são de
opinião que o gnosticismo é um “fenômeno estritamente do século II E.C. e apresentam outras maneiras de
descrever os motivos e as facetas gnósticos encontrados na literatura anterior ao segundo século” como se pode
perceber na “correspondência paulina, nas cartas deutero-paulinas, nas epístolas pastorais, no evangelho de João
e nos Manuscritos do Mar Morto” (idem, p. 2). Cumpre sublinhar que muitos eruditos encontram evidências de
influência gnóstica no cristianismo primitivo dentro do próprio “Novo Testamento”. Assim, algumas passagens
deste conjunto de documentos refletiriam indícios dessa influência no desenvolvimento do cristianismo no
século I E.C. (idem, p. 5). Nesse sentido, em 1 Cor 2:14 – carta paulina autêntica – o apóstolo, em debate com
seus oponentes, escreve: “O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não
pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito
de tudo e por ninguém é julgado”. As expressões “homem psíquico”, “homem espiritual” são termos, consoante
Hedrick, que aparecem “em sistemas gnósticos do segundo século como maneiras técnicas de distinguir classes
da humanidade” (idem, p. 6).
101

palavras atribuídas ao Jesus “vivo” (1992, p. 131). Ademais, o autor de Um judeu marginal
recorre a uma série de dados que lhe confirma o ponto de vista: além de muitos ditos de Q, há
no Evangelho de Tomé uma boa quantidade de material especial M, uma representação
razoável de material especial L, indícios de traços redacionais de Marcos e uns poucos
equivalentes a asserções do evangelho de João.
Em função dessas constatações, ele indaga se seria realmente provável que a “fonte real
e primitiva dos ditos de Jesus, em que o Evangelho de Tomé supostamente se inspirou”,
continha “material pertencente a tantos ramos diferentes das tradições cristãs do século I”
(1992, p. 141). Assim, Meier defende que a probabilidade maior reside em admitir que o
Evangelho de Tomé teria sido uma fusão do material dos evangelhos de Mateus e Lucas, com
o possível uso de Marcos e João. Em síntese, para ele, em definitivo, o Evangelho de Tomé
representa “apenas uma reelaboração gnóstica da tradição sinótica” e que, por conseguinte,
não o interessa enquanto fonte independente na busca do Jesus histórico.
Com efeito, C. H. Dodd compartilha, de certa maneira, dessa posição de Meier. Ele
indica que “não há nenhum documento gnóstico conhecido que possa, com qualquer indício
de probabilidade, ser datado de antes do período do Novo Testamento” (2003, p. 138). Em
seguida, na mesma linha de raciocínio de Meier, Dodd sublinha que “todos os sistemas
gnósticos típicos combinam, de vários modos e em proporções variadas, ideias provenientes
do cristianismo com ideias que são comprovadamente derivadas de, ou pelo menos têm
afinidades com – outras tradições religiosas ou filosóficas” (2003, p. 138), tais como, segundo
ele, a religião e a filosofia gregas, as escrituras judaicas, a tradição iraniana e outras tradições
orientais. Implica dizer, apesar de não mencionar Tomé explicitamente, à medida que esse é
lido como um texto gnóstico, sua datação é jogada para além da época em que os evangelhos
canônicos foram produzidos. Assim, conforme uma dada lógica, quanto mais distante do
contexto, temporal e espacial, do antigo Israel, menos confiabilidade o texto tem no que tange
ao registro de ditos autênticos de Jesus de Nazaré.
Evidência dessa posição é fornecida por Vermes que, pensando na migração do
cristianismo de um ambiente judaico para locais pagãos como a Síria, a Ásia Menor, o Egito,
a Grécia e Roma, afirma não ter dúvidas de que, por um lado, persistiu alguma continuidade.
No entanto, ele assevera que, por outro lado, “o desarraigamento foi tão completo que, como
fonte de uma compreensão histórica de Jesus de Nazaré, a confiabilidade da igreja gentia,
com toda a literatura composta especialmente por ela, pode ser descartada” (1996, p. 37).
Incluindo aí, o Evangelho de Tomé, cuja tradição mais antiga situa seu local de produção
justamente na Síria.
102

Mark Goodacre, um persistente crítico do lugar a que foi alçado o Evangelho de Tomé
pelos pesquisadores acadêmicos, sustenta que esse documento antigo romanticamente oferta,
para aqueles que assim querem crer, um “testemunho especial de uma fase mais primitiva do
cristianismo” (2012, p. 1).
Em sua visão, Tomé lastreia a perspectiva dos que pensam um “mundo cristão primitivo
dinâmico e no qual a variedade e a diversidade seriam as características de destaque” (2012,
p. 1). Assim, um termo como “ortodoxia” ficaria vazio de sentido e postular “cristianismos”
em vez de “cristianismo” adquire força.
Ademais, Goodacre reclama sobre o que o Evangelho de Tomé representou em termos
da pesquisa acadêmica: o estudioso do Jesus histórico realmente responsável deve agora
trabalhar para além das fronteiras canônicas de modo que aquele que ignorar os textos como o
de Tomé é castigado por seu viés pró-canônico. Com efeito, ele conclui, o pesquisador que
não recorre aos ditos do Evangelho de Tomé é visto como comprometido com um tipo de
tentativa teimosa e confessional de torcer o campo de pesquisa ao ignorar a melhor evidência
disponível sobre o Jesus histórico (2012, p. 2).
Bart Ehrman assevera que o Evangelho Copta de Tomé é, sem sombra de dúvidas, o
“mais significativo livro cristão descoberto nos tempos modernos” (1999, p. 71). O mesmo
pesquisador pondera, em outro trabalho, que esse documento antigo é “uma falsificação 51 dos
ensinamentos de Jesus escrita em nome de alguém que deveria conhecê-los melhor que
ninguém: o irmão gêmeo de Cristo, Dídimo Judas Tomé” (2008, p. 92). Com efeito, para ele,
o Evangelho de Tomé deve ser encarado como “uma valiosa coleção de 114 ditos de Jesus,
muitos dos quais podem refletir os ensinamentos históricos de Cristo, mas que parecem

51
Convém pontuar o que Ehrman denomina como “falsificação” em seu texto. Para ele, cristãos dos primeiros
séculos falsificavam livros. Com efeito, “estudiosos reconhecem que mesmo alguns dos textos aceitos dentro do
cânone são provavelmente falsificações” (2008, p. 28). A relutância em admitir isso publicamente, leva-os a
referir-se a esses escritos como “pseudonímicos”, que seria, por sua vez, um “termo antisséptico” (idem, idem).
Estudiosos, ele prossegue, às vezes se referem a documentos forjados empregando o termo técnico
pseudoepígrafo, que quer dizer “falso escrito”. Contudo, para Ehrman, trata-se de um termo que não é
“completamente útil, já que é tipicamente usado para fazer referência aos livros não-canônicos” (idem, p. 30).
Em suma, falsificação não se aplica a nenhum dos evangelhos canônicos à medida que esses documentos eram,
originalmente, anônimos e suas autorias foram atribuídas posteriormente. Diferentemente de textos canônicos
como as epístolas pastorais de 1 e 2Timóteo e Tito que, apesar de se afirmarem escritas por Paulo, o
autodeclarado apóstolo dos gentios, foram escritas, consoante amplo consenso acadêmico, “muito tempo após
sua morte” (idem, idem). Constitui falsificação todo texto cujo autor imputado não é quem o diz ser. Este seria o
caso, portanto, do Evangelho de Tomé.
103

emoldurados no contexto de reflexões gnósticas posteriores sobre a salvação que Jesus


trouxe” (idem, p. 105).
Ron Cameron foi impactado de uma forma bem distinta da dos pesquisadores acima.
Para ele, o Evangelho de Tomé é um “documento venerável”. Se levado a sério, ele sublinha,
tem o poder de fazer a diferença na redescrição dos primórdios do cristianismo como religião.
Mais que isso, Tomé exige uma antropologia social diferenciada, um conjunto de categorias
interpretativas e uma imaginação crítica que possibilitem mapear as características e os
contornos de uma história social dos cristãos primitivos (2004, p. 107-108).
Gerd Theissen faz diminutas considerações sobre o Evangelho de Tomé que, de certa
forma, podem ser vistas como positivas. A menção a Tomé ocorre no âmbito de sua reflexão
em torno da formação do cânone cristão que, em ampla medida, passa por entender a
consolidação do cristianismo primitivo e a eliminação de toda ideia de pluralidade de
experiências religiosas.
Assim, conforme suas palavras, o cânone e seu processo de construção implicaram a
delimitação consensual de fronteiras face à maré de escritos gnósticos. E quem diz fronteiras,
diz exclusão. Com efeito, o cristianismo primitivo – no singular – vai adotar regras que
podem ser sintetizadas, no que ele chama de “axiomas de base”, em: monoteísmo e fé no
Salvador (2009, p. 367).
Discorrendo sobre os motivos subjacentes que pautaram as decisões que incluíram e
retiraram, aceitaram e negaram escritos ao cânone, Theissen faz uma menção especial ao
Evangelho de Tomé. Com efeito, a não inclusão desse documento resultou na perda de “uma
preciosa variante da fé cristã primitiva: uma mística cristã primitiva individual” (idem, p.
383).
Ademais, Theissen pondera que Tomé não contém razões suficientes para que tenha
sido preterido no cânone. Esse texto antigo “não pode cair sob o veredicto da gnose. Ele não
conhece nenhuma segunda criação do mundo que seria diferente do verdadeiro Deus. E, em
parte alguma, ele defende perceptivelmente uma cristologia docetista” (2009, p. 383). E,
numa declaração surpreendente, Theissen assevera que Tomé “não é nenhum livro herético”
(idem, idem).
Anteriormente, Theissen, em outra discussão, tratara, numa espécie de manual ou guia
de leitura sobre o Jesus histórico, do Evangelho de Tomé no quesito “Fontes cristãs sobre
Jesus”. Assim, ele e Annette Merz orientam seus leitores a levar em conta, no que tange às
fontes sobre Jesus, dois importantes fatores: “sua proximidade com o Jesus histórico e sua
independência” (2002, p. 37). Por conseguinte, no que tange ao primeiro fator, cumpre
104

“determinar a idade da fonte” que, por sua vez, confere mais valor a ela à proporção que
esteja mais ou menos distante do Jesus histórico. Distância essa que “não se identifica com
proximidade histórica” (2002, p. 38). Nesse sentido, muito embora as cartas de Paulo, o
autodeclarado Apóstolo dos Gentios, tenham sido escritas antes dos evangelhos sinóticos, são
estes que se situam mais “próximos historicamente do Jesus histórico” (2002, p. 38).
Na continuidade de suas reflexões, os dois pesquisadores discorrem sobre a utilização
de documentações não canônicas para se chegar ao Jesus da história. Assim, mostram para
seus leitores que esse é um tema controverso que divide a comunidade acadêmica. Com
efeito, podem-se perceber três posturas concorrentes a esse respeito. Há aqueles que postulam
ser totalmente desnecessário recorrer a esse material, à medida que “não podem dar nenhuma
contribuição relevante para o estudo das origens” do cristianismo. Existem os que enxergam
essa documentação exercendo um papel meramente complementar aos escritos canônicos. Por
fim, cumpre destacar os que afirmam que “escritos canônicos e extracanônicos são, em
princípio, fontes de mesmo valor” (2002, p. 40).
Entusiasta desse documento cristão (re)descoberto, Crossan afirma, peremptoriamente,
que Tomé deve ser inserido na camada de materiais orais ou escritos que remontam aos “anos
30 ou 40 e, possivelmente, ao próprio Jesus histórico” (2007, p. 81). Para ele, o texto de Tomé
possui duas camadas. Uma “foi composta na década de 50 E.C., provavelmente em Jerusalém,
sob a influência de Tiago (ver Ev. Tomé 12). Depois do martírio de Tiago, em 62 E.C., a
coleção (e, provavelmente, a comunidade que o compôs) migrou para Edessa, na Síria” (1994,
p. 465). Nessa nova base de fixação, uma “segunda camada foi acrescentada, talvez já na
década de 60 ou 70, sob a influência de Tomé (ver Ev. Tomé 13)” (1994, p. 465).
Elaine Pagels assinala que o Evangelho de Tomé tem o mérito de nos mostrar que
“outros primeiros cristãos compreendiam o ‘evangelho’ de modo bem diferente” (2004, p.
81). Por não perceberem dessa maneira, prossegue a autora, “muitos cristãos, ao lerem hoje o
Evangelho de Tomé, supõem de início que ele esteja simplesmente errado e que mereceu ser
tachado de herético”. Enfim, “o que certos cristãos chamaram depreciativamente de gnóstico
e herético às vezes se revela serem formas de ensinamentos cristãos que meramente não nos
são familiares” (2004, p. 81).
Helmut Köester vai mais longe. Para ele, Tomé “não depende, (...), dos Evangelhos
Sinóticos nem do Evangelho de Ditos Q” (2005, p. 166). É bastante provável, ele prossegue,
que “uma versão primitiva do Evangelho de Tomé tenha sido composta como um evangelho
de ditos em torno do ano 50 d.C, provavelmente também na área da Síria/Palestina” (2005, p.
167).
105

Um dos mais ardorosos defensores da relevância do Evangelho de Tomé enquanto um


testemunho primitivo da carreira pública de Jesus de Nazaré, Stephen J. Patterson sustenta
que “Tomé e os evangelhos sinóticos, num certo sentido, representam duas trajetórias
divergentes movendo-se em direções próprias a partir de um início comum em um movimento
de Jesus enraizado no legado dos ditos, ou palavras, de Jesus” (1993, p. 225).

2.3. UM LUGAR PARA TOMÉ NO DESENVOLVIMENTO DOS CRISTIANISMOS

“Acreditamos que essa diversidade, o ‘evangelho’ de nossa cultura, tenha agora se


revestido do manto da convincente verdade – e essa ‘verdade’ não deve ser importunada pelos
incômodos detalhes de uma paciente e árdua pesquisa, porque, no fim, o debate não é sobre os
detalhes, mas sobre o paradigma maior – a diversidade” (KÖSTENBERGER; KRUGER,
2010, p. 18). Com tais palavras, Köstenberger e Kruger finalizam sua crítica severa ao que
lhes provoca intensa consternação: o consenso acadêmico em torno da diversidade de vistas e
de crenças que tiveram lugar nos primórdios da formação do movimento de Jesus sem Jesus.
Com efeito, o advento da pós-modernidade teria descartado o sentido unívoco e
universal da “verdade” e instalado, por sua vez, o reino do perspectivismo. A ponto de se
poder exclamar, sem medo de parecer insano, “a verdade está morta; vida longa à
diversidade!” (2010, p. 16). Nesse sentido, lamenta a dupla de estudiosos, inexiste razão para
distinguir “ortodoxia” de “heresia” e, com consequências danosas para a fé cristã, a nossa
fascinação pela diversidade forçou a uma remodelação da nossa compreensão acerca do
cristianismo primitivo – escrito e pensado no singular.
Como principais alvos de sua investida, Walter Bauer e Bart Ehrman são duramente
criticados à medida que ambos lhes parecem estar a serviço de uma campanha populista que
postula um cristianismo mais inclusivo, mais diversificado. Consoante Köstenberger e
Kruger, Bauer, teólogo, lexicógrafo e pesquisador da história da Igreja, nascido na Alemanha
em 1877 e falecido em 1960, produziu vários trabalhos de alta monta, dos quais a mais
significativa contribuição acadêmica consistiu na obra “Ortodoxia e Heresia no Cristianismo
Primitivo”, lançada em 1934.
Contrariando uma noção longamente albergada tanto em círculos acadêmicos quanto
teológicos, Bauer propôs que a constatação predominante de que o cristianismo, tendo como
seu ponto de partida Jesus, desdobrou-se em pregações concordantes pelos apóstolos e que
somente mais tarde essa ortodoxia (a crença correta) veio a ser corrompida por várias formas
de heresia (ou heterodoxia, quer dizer, “outros” ensinos que se desviaram da norma ou padrão
106

ortodoxos), consistia em um equívoco. Em síntese, Bauer rejeitava o axioma: “a ortodoxia


precedeu a heresia” (2010, p. 24).
Bauer sustentava uma perspectiva contrária e advogava que “as heresias – isto é, uma
variedade de crenças que podiam legitimamente alegar serem autenticamente ‘cristãs’ –
precederam a noção de ortodoxia como um conjunto padrão de crenças doutrinárias cristãs”
(2010, p. 24).

O modelo explicativo de Bauer, como não poderia ser diferente, despertou críticas e
angariou defensores e opositores. Dentre os primeiros, convém mencionar James D. Dunn
que, em 1977, apropriou-se da tese de Bauer e asseverou que a leitura atenta do assim
chamado Novo Testamento evidenciava que a diversidade suplantava a unicidade. Com
efeito, Dunn garantia que os 27 livros/textos que o compunham continham em si um tema
geral unificador, ou seja, a crença em Jesus como o Senhor exaltado.
Assim, de acordo com Dunn (1990, p. 369):

O elemento unificador era a unidade entre o Jesus histórico e o Cristo


exaltado, significa dizer, a convicção de que o pregador carismático
andarilho de Nazaré tinha ministrado, morrido e ressurgido do mundo dos
mortos para trazer Deus e o homem finalmente juntos, o reconhecimento de
que o poder divino por meio do qual eles [os apóstolos e demais discípulos]
agora cultuavam e foram encontrados e aceitos por Deus como uma e mesma
pessoa, Jesus, o homem, o Cristo, o Filho de Deus, o Senhor, o Espírito
doador da vida.

Dunn chama a atenção para o detalhe crucial de que foram as lutas entre diferentes
pontos de vista – indícios, portanto, da diversidade inicial – que resultaram na visão unificada
que garantiu a coesão do movimento que principiou na Galileia. Com efeito, teriam sido os
vencedores dessa tensão que impuseram sua versão da crença em Jesus como a ortodoxia a ser
crida e seguida.

A Biblioteca de Nag Hammadi, por sua vez, agregou um elemento a mais a essa
discussão polarizada entre, de um lado, os defensores da diversidade e, de outro, os da
unicidade. Por conseguinte, Elaine Pagels explorou, exaustivamente, a perseguição sofrida
pelos grupos cristãos tidos como heréticos por aqueles supostamente detentores da alegada fé
verdadeira. Convém sublinhar que ela declara estar sob a influência do seminal estudo de
Bauer que, é bom que se ressalve, veio a lume uma década antes da surpreendente e casual
descoberta dos códices escondidos nas areias do Egito (1989, p. 154, n. 26).
107

Para ela, o termo “cristianismo”, especialmente “desde a Reforma, cobre uma


variedade espantosa de grupos” (1989, xxii). Com efeito, ela prossegue, aqueles que
reivindicam representar o “verdadeiro cristianismo” no século XX, incluem-se numa ampla
gama de denominações que variam desde “o cardeal católico no Vaticano a um pregador
episcopal de uma igreja Metodista Africana, de um missionário Mórmon na Tailândia a um
membro de uma igreja recuada na região costeira da Grécia” (idem, idem).
Não obstante, todos e cada um desses “cristãos” estão persuadidos de que houve uma
forma mais pura e singular de fé no Cristo, distinguível nas seguintes condições (1989, xxii):

Todos os membros da comunidade cristã dividiam seu dinheiro e


propriedades, todos criam no mesmo ensino e cultuavam em conjunto, todos
reverenciavam a autoridade dos apóstolos. Foi somente depois dessa época
de ouro que conflitos começaram a ocorrer e, assim, as heresias emergiram.

Contrariando essa visão padronizada e longamente mantida, Pagels evoca a necessidade


de se admitir que “o cristianismo primitivo é bem mais diverso do que qualquer um poderia
esperar antes da descoberta de Nag Hammadi” (1989, xxii).
Alhures, em outro livro, escrito em parceria com Karen King acerca da impactante
descoberta do Evangelho de Judas52, Pagels é enfática e não mede suas palavras (PAGELS,
KING, 2007, xv-xvi):

Se pudermos ir além dos estereótipos que chegam até nós por meio da escuta
de apenas um lado da história – uma versão contada tão frequentemente e
por tanto tempo e que, equivocadamente, parece ser a única história possível
– então esses novos achados podem enriquecer nosso conhecimento da
diversidade da imaginação e da prática cristãs, ensejando-nos ler tanto as
novas descobertas quanto a bem conhecida tradição com novos olhos.

Bart Ehrman ecoa as ponderações de Pagels e reafirma a relevância do trabalho de


Bauer. Com efeito, para ele, Bauer ensejou “possivelmente o livro mais importante sobre o
cristianismo primitivo escrito no século vinte” (2006, p. 176). Na perspectiva de Ehrman, os
principais críticos de Bauer são aqueles acadêmicos que se encontram pessoalmente
comprometidos com a visão Eusebiana de que “o cristianismo ortodoxo (ao qual a maioria
desses estudiosos subscreve) sempre foi a visão majoritária da igreja cristã desde o princípio”
(2006, p. 177).

52
O Evangelho de Judas “aparentemente foi descoberto como o terceiro texto de um códice (ou livro) de papiro
– agora designado como o Códice Tchacos –, na década de 1970, no Médio Egito” (KASSER, R., MEYER, M.,
WURST, G., 2006, p. 11).
108

Ehrman, contudo, reconhece que “muitas das alegações específicas [de Bauer] têm
necessidade de ser reescritas”, mas, ao mesmo tempo, os resultados de seu estudo “tornaram-
se a visão dominante entre pesquisadores do cristianismo primitivo hoje” (2006, p. 178). A
propósito, ele sustenta, as evidências de que Bauer estava correto surgem a todo o momento.
Assim, cumpre ter clareza que (2006, p. 178):

Numerosas descobertas arqueológicas de manuscritos do cristianismo


primitivo têm sido feitas nos tempos modernos, quer por arqueólogos em
busca deles quer, acidentalmente, por beduínos que desconhecem o que são
seus achados. O que é impactante é que, descoberta após descoberta, nossa
sensação de que o cristianismo era marcadamente diversificado em suas
primeiras décadas e séculos é simplesmente fortalecida.

Em suas considerações finais a respeito da descoberta do Evangelho de Judas e de seu


significado para a pesquisa dos cristianismos, Ehrman frisa que esse documento oferta uma
evidência adicional de que o cristianismo dos primeiros séculos era, de fato, diversificado.
Mais que isso, Judas atesta que (2006, p. 179-180):

Havia muitas formas de cristianismo e as fronteiras entre esses grupos


cristãos não eram invioláveis. Antes, grupos diferentes e as visões que eles
representavam influenciavam-se extensivamente; muitas de suas fronteiras
eram permeáveis.

C. F. D. Moule sugere um exercício imaginativo e solicita ao seu leitor que pense em


“um viajante”, por volta do ano 60 do primeiro século, “que fosse de Jerusalém para Éfeso”.
Este, assim o fazendo, “encontraria uma variedade notável de doutrina e prática entre
comunidades que, não obstante, reivindicavam todas estar relacionadas com Jesus de Nazaré”
(1979, p. 175).
Apoiando-se exclusivamente no corpus neotestamentário, Moule identifica múltiplos
tipos de cristianismo. Assim, “na cosmopolita Antioquia (...) poder-se-ia encontrar uma
notável variedade de tipos de comunidade, ou seja, gentias, judaicas, judaizantes,
helenizantes, com diferentes formas de cristologia” (1979, p. 176).
Em Éfeso, conforme sua leitura da documentação neotestamentária, Moule postula que
esse hipotético viajante deparar-se-ia com uma “fervilhante diversidade”, à proporção que “as
igrejas paulinas estavam sendo invadidas rapidamente pelo antinomismo, pelo cristianismo
judaizante e pelas influências de um cristianismo do tipo joanino” (idem, idem). Atestando
109

essa sua conclusão, as passagens que se leem em Atos dos Apóstolos (20:29-30)53 e em
Apocalipse (2:1-2)54, respectivamente:

Bem sei que, depois de minha partida, introduzir-se-ão entre vós lobos
vorazes que não pouparão o rebanho. Mesmo do meio de vós surgirão alguns
falando coisas pervertidas, para arrastarem atrás de si os discípulos.
Ao Anjo da Igreja em Éfeso escreve: Assim diz aquele que segura as sete
estrelas em sua mão direita, o que anda em meio aos sete candelabros de
ouro. Conheço tua conduta, tua fadiga e tua perseverança: sei que não podes
suportar os malvados: puseste à prova os que se diziam apóstolos – e não são
– e os descobristes mentirosos.

Em seguida, na suposição de que esse viajante embarcasse de Mileto para Alexandria,


ele teria diante de si o surpreendente cenário de uma variedade de comunidades cristãs “mais

53
Na Introdução a essa obra, Moule defende-se das críticas que possa sofrer em decorrência da utilização de
Atos dos Apóstolos. Conforme suas considerações, neste seu livro, esse documento cristão “é tratado com mais
credibilidade (alguns diriam credulidade) do que por muitos especialistas” (1979, p.15). E por que ele precisa
assim se justificar desde o começo? Daniel Marguerat esclarece que “até o início do século XIX, a questão da
confiabilidade histórica do livro de Lucas [autor presumido do livro Atos dos Apóstolos] não era sequer um
ponto de discussão. Quem quer que desejasse conhecer como a Igreja nasceu tinha apenas um lugar para onde se
dirigir: Atos dos Apóstolos” (2002, p. 2). Entretanto, Marguerat prossegue, “dúvidas emergiram quando os
dados de Atos foram seriamente comparados com o restante do Novo Testamento” (idem, idem). Nesse campo
da pesquisa dos cristianismos originários, convém situar Ferdinand C. Baur (1792-1860) como o iniciador de um
novo paradigma acerca de Atos dos Apóstolos. Consoante Marguerat, Baur reconhecia não poder haver dúvidas
de que “a apresentação de Atos deve ser considerada como uma modificação intencional da verdade histórica no
interesse da tendência específica [de seu autor]” (2002, p. 3-4). Em 1919, Franz Overbeck expressou-se
provocativamente a respeito de Atos, asseverando que Lucas cometeu um pecado: o pecado de ter confundido
história e ficção. Quer dizer, para Overbeck, o autor de Atos “combinou história e lendas, fatos históricos e
sobrenaturais, em uma mistura na qual o historiador moderno se afasta com desgosto” (apud MARGUERAT,
2002, p. 4). Convém, no entanto, sublinhar os esforços de pesquisadores anglo-americanos, por volta da década
de 1990, determinados a reabilitar a confiabilidade histórica de Atos em oposição ao ceticismo alemão. Nesse
sentido, Marguerat pondera que a “historiografia lucana não é para ser julgada acerca de sua conformidade ao
assim chamado bruta facta (sempre ambíguo). Antes, deve ser avaliada de acordo com o ponto de vista do
historiador que controla a escrita da narrativa, a verdade que o autor busca comunicar e a necessidade por
identidade à qual o trabalho do historiador visa responder” (Grifos originais) (idem, p. 6-7).
54
É problemática a referência ao livro Apocalipse por Moule nessa hipotética situação de um viajante na
“década de 60 do primeiro século”. Consoante a insuspeita opinião dos tradutores da Bíblia de Jerusalém, a
respeito da data de composição desse documento cristão “admite-se bastante comumente que tenha sido
composto durante o reinado de Domiciano, pelo ano 95; outros, e não sem alguma probabilidade, creem que pelo
menos algumas partes já estariam redigidas desde o tempo de Nero, pouco antes de 70” (2008, p. 2139).
110

concentradas e com uma fisionomia mais definida” (1979, p. 177). Novamente, o livro Atos
dos Apóstolos fornece a “prova” dessa variedade espantosa. Assim, Moule direciona seus
leitores para At 18:24-26:

Um judeu, chamado Apolo, natural de Alexandria, havia chegado a Éfeso.


Era homem eloquente e versado nas Escrituras. Fora instruído no caminho
do Senhor e, no fervor do espírito, falava e ensinava com exatidão o que se
refere a Jesus, embora só conhecesse o batismo de João. Começou, pois, a
falar com intrepidez na sinagoga. Tendo-o ouvido, Priscila e Áquila
tomaram-no consigo e, com mais exatidão, expuseram-lhe o Caminho.
Como ele quisesse partir para a Acaia, animaram-no os irmãos e escreveram
aos discípulos para que o acolhessem. Tendo lá chegado, muito ajudou, por
efeito da graça, aos que haviam abraçado a fé. Pois refutava vigorosamente
os judeus em público, demonstrando pelas Escrituras que Jesus é o Cristo.

Completando seu périplo pela bacia mediterrânica o andarilho, chegando a Roma, seria
brindado com tendências “se ‘acotovelando’ umas às outras: (...) sinagogas cristãs
judaizantes; as espécies de gnósticos mais liberais dentre os liberais, muito mais próximas dos
cultos de mistério do que do Israel de Deus; congregações petrinas e paulinas, e tudo o mais”
(1979, p. 177).
Em apoio a essas constatações, Moule convida seus leitores a lerem um trecho da
Epístola aos Filipenses (1;12-17) e pensar nas implicações de um trecho da Epístola aos
Romanos (15:20), respectivamente:

Quero que saibais, irmãos, que o que me aconteceu redundou em progresso


do evangelho: minhas prisões se tornaram conhecidas em Cristo por todo o
Pretório e por toda parte, e a maioria dos irmãos, encorajados no Senhor
pelas minhas prisões, proclamam a Palavra com mais ousadia e sem temor. É
verdade que alguns proclamam Cristo por inveja e porfia, e outros por boa
vontade: estes por amor proclamam a Cristo, sabendo que fui posto para
defesa do evangelho, e aqueles por rivalidade, não sinceramente, julgando
com isso acrescentar sofrimento às minhas prisões.

...fazendo questão de anunciar o Evangelho onde o nome de Cristo ainda não


era conhecido, para não construir sobre alicerces lançados por outros.

Com esses exemplos em mãos, Moule assevera que não deveria causar nenhuma
surpresa o reconhecimento de que a rivalidade e a divisão estivessem presentes no começo da
formação do Novo Testamento. Havia, portanto, partidarismos. Por conseguinte, ele declara
(1979, p. 185):

E podemos supor a priori que a probabilidade é, certamente, que haveria


uma variedade de ênfases, tendências, perspectivas e abordagens nos
111

diferentes grupos de cristãos, que, por fim, se consolidariam em diferentes


escolas de pensamento.

O que é, no entanto, da mais alta importância para Moule, a ponto de ele frisar ser a
“moral” de sua análise, as “convicções cristãs básicas persistem com notável constância
através de tal diversidade” (1979, p. 185).
No bojo de sua perquirição sobre o assunto, Moule volta-se para as raízes dessa “ampla
divergência nos tempos do Novo Testamento” em busca de seu começo (1979, p. 186).
Assim, o cristianismo judaizante “acentuaria o aspecto ‘carnal’ (...) de Jesus, e o
desconhecimento ou minimização de sua divindade” (idem, idem). A tendência oposta, e
Moule admite estar caricaturando e simplificando a discussão, “era fundamentalmente pagã,
que partia de pressupostos politeístas e estava familiarizada com as ideias do semideus e
salvador preexistente, que desce à terra para resgatar aqueles que o acolheram, ou que são
predestinados” (idem, idem).
O falecido pesquisador pondera, entretanto, que essa apresentação de duas tendências
como formas puras é enganosa. Com efeito, “mais decisivamente que as gerações passadas de
estudiosos do Novo Testamento”, é de conhecimento que “já ao tempo de Cristo o
monoteísmo judaico estava contagiado por um dualismo oriental, como testemunha a seita de
Qumran” e “mesmo as fortalezas do rabinismo de Jerusalém já tinham sido invadidas por
muitas ideias estranhas” (1979, p. 187).
Em razão disso, convém afastar, peremptoriamente, a ideia de que os autores da
documentação neotestamentária, quer seja Tiago – que Moule trata como quem redigiu a
Epístola de Tiago55 – quer seja Paulo, não hajam sido influenciados por ideias helenistas ou
por ideias gnósticas. Como consequência (1979, p. 190):

Parte da diversidade do Novo Testamento é devida precisamente à variedade


de tendências alienígenas, que são combatidas: discute-se, por assim dizer,
de uma única plataforma, mas de diferentes ângulos dela; e, na medida em

55
Paul A. Holloway assinala que um amplo consenso de que a Epístola de Tiago “representa uma forma
marcadamente helenizada de judeu-cristianismo e é, por consequência, tardia e pseudepígrafa foi, recentemente,
contestado à medida que o Helenismo já se encontrava presente em Jerusalém na época de Tiago” (2010, p. 570).
Todavia, ele acrescenta, essa questão está deslocada. O ponto que não se pode perder de vista é que parece muito
pouco provável que Tiago, “cuja preocupação de que os judeu-cristãos que estivessem fora de Jerusalém
continuassem observando as leis alimentares dos judeus – um dado bem documentado como se pode constatar
em Gal 2:12 e At 15:20.29 – teria escrito uma carta justamente para esse mesmo grupo de pessoas insistindo que
permanecessem observando a lei, mas omitindo esse importante ponto da lei” (2010, p. 570).
112

que se inclina em direção a qualquer extremo, é porque os escritores,


naqueles pontos, reconhecem claramente quais são as posições que estão
ocupadas com o erro e retrocedem violentamente.

Percebe-se, assim, que os autores da documentação neotestamentária e suas respectivas


comunidades estavam ciosos de suas posições, erigindo barricadas contra a contaminação do
evangelho por ideias e doutrinas desviantes. Implica dizer, é como se a formação do
“cristianismo” houvesse sido uma luta incessante pela preservação do ensino “puro” de Jesus
de Nazaré56.
Não obstante, louve-se Moule por inferir que as tradições sobre Jesus “devem ter sido,
de algum modo, selecionadas, plasmadas e reaplicadas de acordo com as tendências locais, e
que isto explica a diversidade de ênfases nos Evangelhos, não só internamente em cada
Evangelho, como também os confrontando um com outro” (1979, p. 191).
Talvez por ter percebido as implicações dessa sugestão, Moule não avança na discussão.
Ele freia o raciocínio e, diferentemente da forma com que vinha tratando até então, encerra
sua análise dizendo laconicamente que “por toda parte se coloca uma cortina de obscuridade”
(1979, p. 191).
A conclusão de sua análise merece destaque. Moule ressalta ser evidente uma “voz
claramente unânime de um só Evangelho e de um só Senhor” (1979, p. 201) permeando todo
o assim chamado Novo Testamento. E isso, ele sublinha, a despeito (1979, p. 201):

De toda sua individualidade e peculiaridade, a despeito das excentricidades


provavelmente alarmantes do ‘submundo’, do qual comunidades cristãs se
originaram, a despeito das diferenças notáveis entre os diversos níveis de
linguagem e do estilo representados.

Uma forma de ressaltar e evidenciar essa univocidade que se sobrepõe à polissemia de


discursos sobre Jesus no assim chamado Novo Testamento consiste, segundo Moule, em

56
Há um trabalho assaz interessante, redigido por Eyal Regev, da Universidade Bar-Ilan, Israel, em que se
discute a noção amplamente aceita de que os ditos “cristãos” primitivos constituíam uma seita no interior do
judaísmo. O cerne de suas ponderações reside no que ele entende ser uma falha nas perspectivas acadêmicas, a
saber, o uso muito restrito do termo “seita” e, por consequência, o estabelecimento de um “fato” que não condiz
com a realidade quando se amplia o sentido do termo. Em sua abordagem, a noção sociológica de seita exige a
presença concomitante de três essenciais critérios: “separação social, exigências e sanções sociais e uma
institucionalização ou organização fixa” (2011, p. 771). Em razão desses critérios, cumpre, examinando a
documentação do assim chamado Novo Testamento, certificar-se se cada um dos autores percebia a si mesmo e
ao grupo para o qual se dirigia “como um corpo social distinto apartado da sociedade judaica circundante”
(idem, idem). Consoante sua leitura desse corpus literário, Regev conclui que não é possível afirmar que essas
comunidades foram sujeitas “a segregação social, a sanções disciplinares e não haviam instaurado uma
organização social fixa” (2011, p. 793). Muito pelo contrário, para ele o que havia era uma relutância em
dissociar-se da sociedade e identidade judaicas.
113

contrapor todos os textos canônicos a um só dos escritos extracanônicos. Nesse sentido, ele
indica o Evangelho de Tomé. Isso sendo feito, ele assevera, o contraste salta aos olhos.
Afinal, citando H.E.W. Turner, “no ‘Evangelho de Tomé’ perdemos completamente ‘o sabor
da realidade histórica’, a cruz, a doutrina da graça e o ‘robusto personalismo da religião do
Novo Testamento’ (em contraste com o misticismo de Tomé)” (1979, p. 201).
Em um estudo bastante útil no sentido de compreender didaticamente o debate entre os
que sustentam a diversidade e os que creem na unicidade desde o princípio, John Kaufman,
apoiado nos escritos de Ehrman, delineia as várias perspectivas que foram elaboradas para
traçar o desenvolvimento do(s) cristianismo(s).
Assim, há o que se pode denominar como a visão “clássica” do cristianismo primitivo.
Tal visão foi bastante difundida e lastreava-se nos textos de Irineu, bispo de Lyon, um
caçador de heresias. Conforme essa visão, a ortodoxia preserva os ensinos originais de Jesus e
dos apóstolos e as assim chamadas heresias seriam desvios dessa fé verdadeira inicial (2011,
p. 115):

Século I Século II

apóstolos ortodoxia

Como a figura deixa entrever, a visão “clássica” postula a noção de que a ortodoxia
antecede as heresias e onde quer que o cristianismo tenha aportado, trouxe consigo a crença
ortodoxa e as heresias (representadas em cada uma das setas menores) foram um fenômeno
que surgiu posteriormente. Kaufman pondera que essa perspectiva pode ser sumarizada nos
seguintes termos (idem, p. 116):

Os apóstolos receberam a fé verdadeira do Senhor. Seus sucessores, os


bispos, salvaguardaram e transmitiram esse verdadeiro Cristianismo através
da sucessão apostólica. Em contraste, vários mestres mal-intencionados
corromperam a verdadeira fé e intencionalmente criaram grupos heréticos
dentre os quais podem ser citados os ebionitas, os marcionitas, os gnósticos e
assim por diante.

Convém trazer à baila o testemunho de um cristão, contemporâneo de Irineu de Lyon,


Hegesipo (c. 180), que sustenta a visão “clássica” do desenvolvimento do cristianismo.
114

Assim, conforme relatado por Eusébio, ao visitar Roma, Hegesipo encontrou-se com vários
bispos e pode notar que todos cultivavam a mesma doutrina. Todavia, ele presenciou o
surgimento de várias heresias (Eusébio, História Eclesiástica, IV, xxii, 4-5):

Após Tiago, o Justo, ter sido martirizado pela mesma razão que nosso
Senhor, Simeão, seu primo, filho de Cleofas, foi nomeado Bispo, (...). Por
causa disso, eles chamavam a igreja de virgem, pois ela não tinha sido ainda
corrompida por vãs mensagens, porém Tebute, porque ele não havia sido
nomeado Bispo, começou a corrompê-la pelas sete heresias, às quais ele
fazia parte (...)”.

Adiante, Hegesipo narra, ainda consoante o relato de Eusébio, que os Docetistas, os


Marcionitas, os Carpocracianos, os Valentianos, e muitos outros, “puseram, com seu peculiar
modo de pensar, suas próprias opiniões e com eles vieram os falsos Cristos, os falsos profetas
e os falsos apóstolos que destruíram a unidade da igreja por meio de suas venenosas doutrinas
contra Deus e contra Cristo” (Eusébio, História Eclesiástica, IV, xxii, 6).
Depreende-se, assim, do testemunho de Hegesipo que a “Igreja” era, originalmente,
“virgem”, “impoluta”, não corrompida pelas heresias, mas em seguida à morte da primeira e
segunda gerações de cristãos, falsos mestres conseguiram infiltrar-se e corromper a “Igreja”.
Essa visão “clássica”, contudo, sofreu severas críticas e foi submetida a revisões
substantivas. É o momento, portanto, de voltar à abordagem de Walter Bauer e destrinchar a
quebra de paradigma por ele instaurada. Em sua obra, Bauer considera que labora em erro
quem afirmar que um cristianismo “ortodoxo” foi corrompido por heresias. Antes, o que se
sucedeu foi que a ortodoxia era simplesmente a versão do cristianismo que predominava na
cidade de Roma. Assim, no que ele denomina um “curioso acidente da história”, o
cristianismo romano tornou-se a forma dominante de crenças e práticas cristãs e,
habilidosamente, tolheu as outras formas de cristianismo encontradas por todo o Império
(BAUER, 1971, p. 240).
Sua tese é demonstrada por meio do cotejamento de variadas documentações originárias
de regiões como Síria (Edessa), Egito, Macedônia, Creta e Ásia Menor. Para ele, nesses
lugares a forma original de cristianismo não foi a assim chamada “ortodoxa”, mas a
“heterodoxa”.
Ehrman sintetiza o pensamento de Bauer por meio das seguintes palavras (2008, p.253):

Em algumas regiões da Cristandade primitiva, aquilo que mais tarde veio a


ser rotulado como “heresia” era, na verdade, a forma mais antiga e principal
de Cristianismo. Em outras regiões, visões posteriormente consideradas
115

heréticas coexistiam com visões que vieram a ser abraçadas pela igreja como
um todo, com a maioria dos crentes não definindo linhas de demarcação
rígidas e claras entre elas.

Por esse novo paradigma, o cristianismo do segundo século deve ser compreendido
como composto por múltiplos e alternativos desdobramentos. Com efeito, mostra-se
impossível destacar, dentre todos, qual o grupo que seria o portador da “verdadeira” herança
dos apóstolos de Jesus de Nazaré.
Kaufman transforma o pensamento de Bauer em uma ilustração que pode auxiliar na
assimilação de sua proposta (2011, p. 118):

Século I Século II

Convém observar que o modelo de Bauer deixa o espaço entre o primeiro e o segundo
séculos em branco. Ele explicitamente declara que esse intervalo é muito improdutivo e muito
debatido para servir como ponto de partida para qualquer estudo.
Nos anos 1970, James Robinson e Helmut Koester tomaram como ponto de partida o
inovador trabalho de Bauer e, debruçando-se sobre a literatura cristã primitiva, decidiram
mostrar que sua reconstrução era igualmente válida para o primeiro século. Com efeito, os
dois estudiosos argumentaram que nunca será descoberto um cristianismo original e
apostólico, pois ele nunca existiu. O cristianismo sempre foi um conglomerado de grupos e
perspectivas rivais e que podem ser vistos representados no corpus documental do assim
chamado Novo Testamento. Os textos nele presentes e mais a literatura extra-canônica
testemunham, portanto, a diversidade existente desde o princípio. Para Koester e Robinson, é
errado caracterizar essa diversidade como aleatória, mas que é mais bem entendida como
formando “trajetórias” distintas. A figura 3, esboçada por Kaufman (2011, p. 122), tenta
ilustrar o modelo teórico de Robinson e Koester:
116

Século I Século II

Assim como a visão “clássica” sobre a trajetória dos cristianismos sofreu críticas, a
visão das trajetórias alternativas também foi submetida a escrutínio acadêmico. Robert
Wilken, em 1981, teceu diversas considerações apontando o que ele entendia serem as
fragilidades do modelo de Robinson e Koester.
A seu ver, o problema com o modelo das trajetórias alternativas é que ele é teleológico.
Ademais, esse modelo simplificaria demais, por um lado, e complicaria demais, por outro.
Com efeito, Wilken discorda da ideia que as trajetórias eram rivais, sugerindo, ao contrário,
que os grupos coexistiam pacificamente mantendo uma causa e identidade comuns. Dessa
maneira, a diversidade era amplamente não problemática.
A favor de sua perspectiva, Wilken recorre ao testemunho de Irineu, o bispo de
Antioquia. Um conflito entre o bispo de Roma e cristãos da Ásia Menor acerca da data da
Páscoa e o término do jejum no qual o bispo de Roma aparentemente queria forçar os cristãos
da Ásia Menor a seguirem a prática romana levou Irineu a opor-se ao bispo de Roma.
Conforme o bispo de Antioquia, os cristãos da Ásia Menor seguiam uma “tradição antiga”
que eles haviam recebido dos “apóstolos” e, por conseguinte, deviam receber permissão para
permanecer com suas práticas. Na visão de Irineu, “o desacordo sobre o jejum confirma nossa
concordância na fé”.
Convém frisar, por sua vez, que os líderes da Igreja também reconheceram que essa
diversidade não podia estender-se ao infinito. Eles perceberam que, a continuar assim, a
unidade poderia não mais ser assegurada. Irineu foi bastante ativo nesse aspecto redigindo um
extenso livro contra o que ele entendia como heresias. E o que era heresia para o bispo de
Antioquia? Tudo aquilo que não se conformasse ao cânon da verdade que, para ele, tinha sido
transmitido dos apóstolos para a Igreja. Em suma, Irineu admitia a existência de múltiplas
tradições provenientes dos apóstolos, mas, ao mesmo tempo, acreditava que havia certas
questões centrais, não negociáveis, que os apóstolos concordavam.
Ou seja, Irineu dá mostras de que a Igreja aceitava a diversidade – que aqui podemos
denominar cristianismos –, mas, ao mesmo tempo, traçava fronteiras entre a diversidade
117

aceitável e a aberração herética. John Kaufman sugere que esse traçado, no entanto, foi um
processo contínuo, realizado desde então, à medida que cada nova geração tinha a necessidade
de reavaliar e reafirmar a fé que havia recebido, em relação aos novos desenvolvimentos da
sociedade como um todo e dentro da Igreja em si mesma (2001, p. 125-126).
Nesse sentido, Kaufman considera que o modelo de trajetórias divergentes não seria a
metáfora mais apropriada para o cristianismo primitivo. Para ele, melhor seria empregar a
noção de um “corrente principal emergente”, cujos limites eram estabelecidos e
constantemente revisados, seja pelos teólogos da Patrística, seja pela Igreja. A figura 4 é uma
tentativa de ilustrar essa proposta:

Século I Século II

Ortodoxia

No âmbito das pesquisas sobre o Jesus histórico em território brasileiro, André L.


Chevitarese é o pioneiro na defesa de um cristianismo multifacetado. Conforme seu ponto de
vista, a experiência religiosa é, inexoravelmente, plural. Nesse sentido, a base formativa dos
cristianismos seria “ampla demais para caber em categorias como certo e errado, ortodoxo e
heterodoxo” (2011, p. 9).
Com efeito, cabe colocar em letras garrafais que, desde as primeiras gerações de
“cristãos”, observou-se, “para além de alguns consensos, (...) uma polissemia sobre o que
disse e o que não disse Jesus” (2011, p. 9), justificando, portanto, o emprego do termo
“cristianismos” em detrimento do reducionista e teologicamente motivado termo
“cristianismo”.
Em todas essas discussões até aqui descritas e brevemente comentadas, o que
efetivamente subjaz a elas?
Chevitarese lança luz sobre o não dito da questão por meio da revelação de sua
insatisfação com o uso recorrente “de termos por demais estranhos ao universo do historiador,
118

apesar de eles povoarem os livros de História” (2011, p. 9). Com efeito, os termos aos quais
ele se refere mostram-se (2011, p. 10):

“Eivados de percepções religiosas” que, por sua vez, “ajudam a moldar


ideias como canonicidade (trata-se ou não de um texto canônico?),
inspiração (trata-se ou não de uma literatura inspirada?), veracidade (trata-se
ou não de autores ortodoxos?) e heresia (que não diz nada e explica muito
menos)”.

O emprego disseminado de tais percepções religiosas, no campo da historiografia do


cristianismo, deixa em gritante evidência que muitos, nessa área disciplinar, são incapazes de
discernir a convicção de fé de que se nutrem e informa suas identidades do “exercício
profissional da História” (2011, p. 10).
Ratifica o incômodo asseverado por Chevitarese, a afirmação contundente de
Köstenberger e Kruger de que está em curso uma batalha sem tréguas. Uma batalha, ambos
estão amplamente convencidos disso, “conduzida por forças que tem por objetivo desacreditar
a mensagem bíblica sobre Jesus, o Senhor e Messias e Filho de Deus, e as absolutas
afirmações de verdade do cristianismo” (2010, p. 18).

2.3.1. AS MOTIVAÇÕES SUBJACENTES AO DEBATE SOBRE A VARIEDADE PRIMITIVA

Karen King enfatiza que os esforços acadêmicos em representar as diferenças no


cristianismo primitivo servem a uma multiplicidade de fins sociopolíticos. Segundo seu ponto
de vista, é possível identificar, nesses propósitos, interesses como “delinear novas maneiras
de por fronteiras normativas de diferenças toleráveis, promover ecumenismo, negociar as
tensões e as possibilidades do pluralismo religioso, resistindo às alegações de verdade
exclusivistas (‘intolerância’), ou empenhar-se numa política de identidade multicultural”
(2011, p. 217).
Cumpre, no entanto, atentar para os modos como as noções de “variedade” ou
“diversidade” se faziam presentes na literatura legada pelos cristãos primitivos. Com efeito,
como parte integrante e inseparável desse debate sobre pluralidade e unicidade, as expressões
“ortodoxia” e “heresia” devem ser refletidas. Tais termos são, e isso é completamente
inegável, pertencentes a “discursos particulares de poder e identidade” (KING, 2011, p. 218).
No fundo, é isso o que está em jogo.
As relações de poder implicadas nesses discursos sobre heresia e ortodoxia encontram-
se firmemente embutidas nas disputas sobre quem podia afirmar o que é a “verdade”. King
119

sustenta que, para esse fim, várias estratégias foram empregadas, cabendo destacar: “limitar
quem era permitido interpretar as Escrituras, esclarecendo o que elas queriam dizer;
estabelecer uma regra de fé para regular a interpretação; remeter ataques ao caráter dos
oponentes, desqualificando-os; chamar a si mesmo de ‘verdadeiro cristão’ e a seus
adversários de ‘heréticos’; argumentar que aos heréticos faltava a verdade” (idem, p. 218-9) e
muitos outros recursos tanto no âmbito do discurso quanto no da retórica.
Além dessas estratégias, aqueles que se arrogavam no direito de definir,
peremptoriamente, o que era ortodoxia e o que era heresia, também recorriam a expedientes
como “contrastar a unidade da verdadeira Igreja à divisibilidade dos heréticos; insistência de
que a adesão à autoridade de uma liderança estabelecida de uma Igreja institucional constituía
ortodoxia; variação doutrinária significava desvio social (cisma); alegação de que a heresia é
produzida pela contaminação externa de uma fé originalmente pura” (KING, 2011, p. 219).
O reconhecimento do uso desses mecanismos pelos cristãos antigos que recusaram a
noção de diversidade, manejando ideias e engendrando discursos para transmitir uma
narrativa, praticamente ficcional, na qual a unidade teria sido a marca característica desde o
princípio não resultou, porém, no abandono do emprego dos termos pela historiografia
moderna (como sublinhado por Chevitarese). King critica essa deficiência de muitos
pesquisadores à medida que, reproduzindo a noção de que havia uma estrutura binária, esses
operam no sentido de restringir a variedade do cristianismo primitivo a somente dois polos
opostos.
King se vale das ponderações de Judith Lieu que salienta que, ao fiar-se nos relatos
produzidos pelos heresiólogos cristãos da antiguidade, adere-se a uma polêmica que tinha por
fim “mistificar o ‘outro’, criando unidade a partir da diversidade e negando a esse ‘outro’ o
direito de ser ouvido, testemunhando, dessa forma, a ameaça que essa voz silenciada trazia”
(LIEU, 2004, p. 296).
Na Epístola a Tito, um documento canônico, incluso, portanto, no assim chamado Novo
Testamento, encontra-se um exemplo, dentre muitos outros, dessa estratégia de
desqualificação e silenciamento do outro (Tt 1.10-14)57:

57
O decano dos estudos neotestamentários, o falecido Raymond E. Brown, discorrendo sobre esse documento
canônico cristão, com muito esforço disfarça sua hesitação no que tange a afirmar peremptoriamente a autoria
dessa carta. Por isso, ele opta por assinalar que essa epístola foi, de acordo com a exegese crítica,
“provavelmente escrita por um discípulo de Paulo ou um comentador simpatizante da herança paulina, várias
décadas depois da morte do apóstolo” (2004, p. 837). Ainda conforme o falecido estudioso, para “80% a 90% da
exegese crítica”, que defende que esse documento não é de autoria de Paulo, a carta foi redigida “por volta do
120

Com efeito, há muitos insubmissos, verbosos e enganadores, especialmente


no partido da circuncisão, aos quais é preciso calar, pois pervertem famílias
inteiras, e, com objetivo do lucro ilícito, ensinam o que não tem direito de
ensinar. Um dos seus próprios profetas disse: “Os cretenses são sempre
mentirosos, animais ferozes, comilões vadios”.58 Este testemunho é
verdadeiro, repreende-os, portanto, severamente, para que sejam sãos na fé, e
não fiquem dando ouvidos a fábulas judaicas ou a mandamentos de homens
desviados da verdade.

“Insubmissos, verbosos e enganadores”, “partido da circuncisão”, “é preciso calar”,


“pervertem famílias inteiras”, “não tem direito de ensinar”, “não dar ouvidos a fábulas
judaicas”, “desviados da verdade”, instauram nas audiências para as quais a epístola foi
endereçada uma transparente determinação de que havia “eles” e, em oposição, os “outros”. E
esses “outros” não se mostravam nem um pouco merecedores de consideração. Como aponta
Lieu, por meio de polêmicas que caricaturam os “outros”, tem início um processo que
culminará na identificação e rejeição do que virá a ser rotulado como “heresia” (2004, p. 296).
A controvérsia expressa no documento Epístola a Tito apresenta, claramente, tons
antijudaicos. Não obstante, os especialistas em Cartas de Paulo divergem sobre o quê e contra
quem, de fato, o texto se refere. Cumpre, porém, atestar que a retórica nela presente pretendia
persuadir seus leitores/ouvintes a respeito de uma divisão binária no seio daquela
comunidade.
Como frisa Lieu, o sucesso dessa retórica se patenteia na reescrita da história do
desenvolvimento da Igreja primitiva na qual o triunfo da ortodoxia se deu ao fim de muitas
batalhas contra evidências ou mesmo suspeitas de heresias ou de paganismos (2004, p. 296).
No entanto, é bom que se diga, nas primeiras gerações de adeptos do movimento iniciado por
Jesus de Nazaré possivelmente os que dele faziam parte sequer distinguissem entre eles
próprios quem eram os “ortodoxos” dos que eram “heréticos”.

fim do século I, ou (menos provavelmente) no começo do século II” (idem, idem). Köester assume uma postura
radicalmente distinta da de Brown. Em sua análise, os documentos enfeixados sob o título “Epístolas Pastorais”,
ou seja, as cartas conhecidas como Tito, 1 e 2 Timóteo, contém “peculiaridades linguísticas, desprovidas de
analogias e paralelos do tempo de Paulo”, fazendo parte, assim, “da linguagem cristã do século II” (2005, p.
318). Ademais, nos momentos em que esses documentos “procuram retomar frases paulinas”, é quando “mais se
evidencia que o autor não foi o próprio Paulo” (idem, idem).
58
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém mencionam, em nota de rodapé, que a citação a “um dos seus próprios
profetas” diz respeito ao “poeta cretense Epimênides de Cnossos (séc. VI a.C).”
121

Ao que tudo indica, essa fronteira foi sendo criada no bojo dos discursos de construção
identitária e fomentada no decorrer dos cultos e das homilias. Lieu sugere que o vigor desse
discurso encontrou impulso diante do desafio demandado pelos encontros posteriores com o
que veio a ser classificado como o “outro”. Para todos os fins, essa bifurcação revela-se
simplista e incapaz de açambarcar o processo como um todo.
Nesse sentido, é impossível discordar de King quando ela afirma que restringir o foco
sobre as diferenças tem o poder de “obscurecer conexões, similaridades e continuidades,
aumentando sensivelmente a questão sobre como falar na unidade do cristianismo em face de
tal variedade” (2011, p. 221). Está coberto de razão, portanto, David Brakke ao postular que o
problema em torno da unidade/diversidade dos primórdios é uma discussão altamente
relevante no que tange à formulação da representação histórica do desdobramento do
movimento de Jesus sem Jesus (2010).
Outra dificuldade a ser anotada nesse debate consiste no uso de classificações
tipológicas e fenomenológicas para agrupar a produção literária das diferentes comunidades
cristãs. Por meio desse método ensejaram-se convenções mais ou menos padronizadas para
caracterizar a diversidade cristã primitiva. Dessa forma, a história social do cristianismo viu-
se povoada de tipos como cristãos judeus, cristãos gentios, cristãos helenistas, cristãos
apocalípticos que, por sua vez, contrastavam com cristãos ebionitas, cristãos gnósticos,
cristãos montanistas, cristãos marcionitas (KING, 2011, 221).
Ao fim e a cabo, debalde essas tipologias, todos esses grupos assim nomeados findam
por ser inscritos na divisão “ortodoxia” e “heresia” que, convém relembrar, limitam e
empobrecem a compreensão da polissemia dos discursos sobre Jesus nos primeiros séculos.
Por conseguinte, são úteis, para o que aqui se propõe tratar, as preclaras considerações de
Brakke acerca da questão (2010, p. 15):

Se for para apreciarmos verdadeiramente a diversidade do cristianismo


primitivo e não dissolvermos essa diversidade em uma sopa de hibridismo,
nós precisamos ainda estabelecer distinções entre formas de vida cristãs (...).
Nossa meta deveria ser, [decifrar] não como um cristianismo singular
expressava-se, a si e em si mesmo, de diferentes maneiras e nem como um
grupo de cristãos emergiu como o vencedor de uma disputa, mas como
múltiplas identidades e comunidades cristãs foram continuamente criadas e
transformadas.

Cumpre frisar que há esforços no sentido de mover-se para além da dicotomia


“ortodoxia/heresia”. No entanto, debalde o aparente êxito de rever a história social das
comunidades cristãs primitivas por outros meios, nota-se que, em alguns casos, tem sido
122

escrita histórias que jamais aconteceram. Consoante King, os equívocos ficam evidentes por
que os métodos tomam “a retórica pela realidade, inapropriadamente reificam categorias
analíticas ou constroem todos harmônicos com base em textos individuais ou em
agrupamentos de textos” (2011, p. 225).
Considere-se, por exemplo, os intensos e calorosos debates acerca do papel das
mulheres na constituição do movimento de Jesus com e sem Jesus. Ehrman assevera que as
disputas em torno do espaço de atuação das mulheres “na Igreja primitiva” ocorreram, no
âmbito da historiografia, “justamente porque as mulheres tinham um papel – muitas vezes,
importante e de destaque” (2005, p. 188).
Isso se dava em razão de a mensagem de Jesus de Nazaré “ser atrativa para as
mulheres” (2005, p. 189). Como tem sido ressaltado por diferentes estudiosos, “as mulheres
desempenhavam um papel proeminente nas comunidades cristãs emergentes, desde os tempos
primitivos” (2005, p. 190). Evidências dessa afirmação podem ser encontradas nas cartas
enviadas por Paulo, o autodeclarado Apóstolo dos Gentios, para as comunidades a ele
associadas.
A carta aos Romanos é costumeiramente citada como referência de que nas igrejas
paulinas as mulheres “não eram tidas como inferiores a sua contraparte masculina” (2005, p.
190). Assim, no término desse documento, Paulo envia saudações a vários membros da
congregação (Rm 16:1-5;7;12):

Recomendo-vos Febe, nossa irmã, diaconisa da Igreja de Cencreia, para que


a recebais no Senhor de modo digno, como convém a santos, e a assistais em
tudo o que ela de vós precisar, porque também ela ajudou a muitos, a mim
inclusive. Saudai Prisca e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, que
para salvar minha vida expuseram a cabeça. Não somente eu lhes devo
gratidão, mas também todas as Igrejas da gentilidade. Saudai também a
Igreja que se reúne em sua casa. (...) Saudai Andrônico e Júnia, meus
parentes e companheiros de prisão, apóstolos exímios que me precederam na
fé em Cristo. (...) Saudai Trifena e Trifosa, que se afadigaram no Senhor.
Saudai a querida Pérside, que muito se afadigou no Senhor.

No trecho destacado, portanto, saltam aos olhos Febe, diaconisa (ou ministra) na igreja
de Cencreia, a quem é confiada a missão de levar a carta aos romanos. Prisca – que, como
Ehrman sublinha, vem em “primeiro lugar, à frente do nome de seu marido” (2005, p. 190) –
cedeu sua casa para as reuniões da congregação em Roma. E Júnia, esposa de Andrônico, cujo
nome – ou melhor, cuja grafia do nome – tem sido alvo de controvérsias há tempos.
A jornalista Renas Pederson esclarece que um arcebispo do século XIII chamado Giles
de Roma foi o primeiro a empreender esforços para fazer desaparecer a apóstola Júnia da
123

história. Com efeito, no comentário do religioso ao texto neotestamentário, Andrônico e Júnia


são mencionados como “homens honrados” (2006, p. 127). O religioso teria sido traído pela
suposta existência de duas variantes de leitura do segundo nome em Rm 16:7: Juniam e
Juliam. Ele teria optado pela variante “Juliam” e admitiu que se tratasse de um nome
masculino, uma vez que o apóstolo Paulo se referia a um apóstolo. Por séculos após Giles, os
escribas e copistas do assim chamado Novo Testamento escolheram grafar o nome da esposa
de Andrônico em sua forma masculina. Implica dizer, em vez de um casal marido e mulher,
Paulo estaria saudando dois homens.
Ainda conforme Pederson, presume-se que Giles de Roma foi prejudicado pela visão
negativa do Papa Bonifácio VIII a respeito do papel atuante e ativo das mulheres na Igreja
(2006, p. 128). Com efeito, o que conspirou contra Júnia foi o fato de Paulo tê-la incluído no
rol dos apóstolos. De certa maneira, isso poderia dar azo às defensoras do apostolado
feminino e da ordenação feminina nas igrejas cristãs.
Wayne Meeks, debalde sua reputação positiva nos círculos acadêmicos, participa dessa
discussão mostrando-se reticente quanto ao gênero da apóstola. Assim, ele põe em dúvida
qual a correta leitura de Juniam: se é o caso do acusativo do feminino Iounia ou se é o
masculino de Iounias (2011, p. 134). Adiante, o pesquisador comenta sobre os apóstolos mais
antigos que se tem notícia. Para isso, ele faz menção aos nomes que aparecem nas cartas de
Paulo. Ou seja, os relatos mais primitivos da ação dos seguidores de Jesus sem Jesus, uma vez
que tais missivas foram redigidas antes dos evangelhos canônicos. Quando aborda os
apóstolos “independentes de Jerusalém”, Meeks declara (2011, p. 279):

Há também Andrônico e (sua mulher?) Júnia (se este for o texto correto),
que provavelmente eram companheiros tarsenses ou companheiros
cilicianos, que se tornaram cristãos antes de Paulo se tornar e que eram
“notáveis entre os apóstolos”. A última frase, contudo, absolutamente não
precisa significar que eles próprios eram apóstolos (Rm 16.7).

Depara-se, portanto, nos dizeres de Meeks que, além da problemática suscitada pelas
variantes de leitura de Rm 16.7, nem como apóstola Júnia merece ser classificada. De fato, ser
“notável entre os apóstolos” não implica, necessariamente, que Andrônico e Júnia eram
apóstolos. Contudo, “para tristeza dos que defendem essa tese, há mais de 250 casos na
antiguidade do emprego do nome Júnia para mulheres e nunca o uso da mesma forma (Júnia)
como abreviação para o nome masculino Junianus”, como ponderam Crossan e Reed (2007,
p. 114).
124

Em síntese, se, como postula Pagels, “pelo fim do segundo século, a participação das
mulheres no culto [cristão] foi explicitamente condenada: grupos em que elas continuaram a
liderar foram acusados de heréticos” (1989, p. 63), uma simples operação de se defender uma
leitura variante da única passagem, em todo o assim chamado Novo Testamento, na qual uma
mulher é literalmente instituída como “apóstola”, roubando-lhe esse papel e, mais que isso,
apagando-a da história, foi capaz de reescrever todo um passado do movimento que, segundo
vários comentadores, tratava de igual para igual homens e mulheres, e empoderava, inclusive,
essas últimas.
Ainda nesse quadro da reescrita da história do desenvolvimento do cristianismo como
um movimento coeso, harmônico e singular, cujas divergências, pontuais, foram contornadas
como crises passageiras e quase irrelevantes, as alegações cristãs de um universalismo foram
construídas em contraste a um alegado particularismo judeu e através da exclusão dos não
cristãos (BUELL, 2005).
Sob o risco de ficar incompleto, cumpre tecer considerações sobre o processo, operado
pelos caçadores de heresias, de dar nome às práticas e às crenças dos “outros”. King, ao
entabular tal discussão, sustenta que os polemistas cristãos da antiguidade inventaram
“nomenclaturas, grupos e divisões sectárias, ou até mesmo modelaram ‘unidades’ artificiais”
(2011, p. 226).
Foi nessa fase de formação de uma identidade cristã que a adoção do rótulo “cristão”
ensejou maneiras distintas de percepção do que o termo em si representava. Pode-se postular
que pressões de fora e de dentro impeliram as lideranças a tentar definir com presteza o que
ser cristão significava.
Lieu assinala que a literatura cristã evidencia a rejeição em permitir que outros que não
os que estavam à frente das igrejas determinassem o sentido do rótulo identitário. Em suma,
reivindicar controle sobre o processo e, por conseguinte, negá-lo aos outros. Usando outras
palavras, o ato de rotular a si mesmo só se completava com a produção de novos rótulos.
Claro e evidente que esse movimento de qualificar os de dentro gerou a qualificação dos de
fora. Nesse sentido, como lembra Lieu, “a recusa de Justino [em conferir] aos outros o epíteto
de ‘cristão’ é sustentado por meio da imposição de um rótulo alternativo como, por exemplo,
marcionitas, valentinianos, basilidianos etc.” (2004, p. 267).
Contudo, a história pode ter se dado de maneira radicalmente diferente. Dentre os
grupos heréticos mencionados por Justino, apenas o material escrito pelos valentinianos
resistiu ao tempo e chegou até o presente. Como sublinha King, “em nenhum dos textos
125

descobertos na Biblioteca de Nag Hammadi que se pode identificar como ‘valentinianos’,


esse termo é usado como uma auto-designação” de seus signatários (2011, p. 226).
Resultando disso que o cisma entre Valentino e a Igreja de Roma pode muito bem ter
sido uma invenção de Justino. Caso possa ser provado, restará concordar com King, que
advoga (2011, p. 226):

A insistência de Irineu sobre a multiplicidade de grupos heréticos, por


exemplo, ajusta-se bem a sua representação dos cristãos ortodoxos como
uniformes na fé e unificados na organização social e práticas rituais, em
contraste aos intermináveis desentendimentos, às divisões cismáticas e às
fabricações dos heréticos.

Com efeito, suspeita-se que ao acentuar as disparidades dos grupos “heréticos”, os


caçadores de heresias buscavam deixar na sombra as diferenças que porventura existiam no
interior das comunidades ditas cristãs, propagandeando uma unidade que talvez não fosse
assim uma realidade. Em consequência disso, recomenda-se cautela no momento em que for
descrita a “variedade” do cristianismo primitivo. Cumpre atentar para as estratégias de
retórica presentes nas alegações de unidade deste em oposição às divisões de seus opositores
também cristãos.
Isso posto, as abordagens sobre as formações cristãs mais antigas devem começar a
sublinhar as múltiplas perspectivas e posicionamentos existentes, como frisa King, dentro das
próprias comunidades e não simplesmente entre facções ou “tipos” de cristianismos (2011, p.
228).

2.3.2. DA ESSÊNCIA DO JUDAÍSMO E DO CRISTIANISMO

Muitos asseguram que o “cristianismo” descende do “judaísmo”. Que há uma relação


genética entre ambos. Assim, à medida que vem crescendo o consenso de que o termo
“cristianismo”, consoante a perspectiva histórica, não precisa mais ser empregado no singular,
mas no plural, haveria, a partir dessa constatação, alguma implicação acerca do que se sabe a
respeito do “judaísmo”?
Mais que isso, como pode um judaísmo “singular” gerar um cristianismo “plural”? Isso
não atestaria, de certa maneira, o caráter rebelde do movimento que se originou das pregações
de Jesus de Nazaré?
126

Crossan, muito embora ressalte não pretender entrar no debate, em razão de o propósito
dentro da pesquisa que desenvolve não requerer uma discussão a respeito, indica que (2004,
p.227):

Muitos estudiosos falam agora sobre judaísmos, no plural em vez do


singular. A palavra enfatiza corretamente a pluralidade e diversidade dessa
religião nos primeiros séculos da era cristã. Também reage apropriadamente
contra a tendência de aplicar normas posteriores de ortodoxia a um período
mais primitivo e muito mais diversificado.

No mesmo diapasão de Crossan, Richard A. Horsley considera não ter havido, no tempo
de Jesus, o que se rotula como “judaísmo”. Com efeito, Horsley frisa que “historiadores do
povo judeu” reviram diversos conceitos e “começaram a reconhecer a grande diversidade
existente entre visões e grupos ‘judaicos’ antigos” (2004, p. 16).
Informação confirmada por Jacob Neusner, William Green e Ernest Frerichs. De acordo
com esses estudiosos, se “um judaísmo compreende uma visão de mundo e uma forma de se
viver que, em conjunto, expressam-se no mundo social de um grupo de judeus”, “judaísmos”,
grafado no plural, “constituem, por conseguinte, várias dessas visões de mundo e formas de
vida dirigidas ao grupo de judeus” (2003[1997], ix).
O trio de autores reitera, mais a frente, que empregará judaísmos e não judaísmo
trazendo à baila a noção de que o próprio cristianismo não cabe dentro de uma terminologia
que o singularize. Com efeito, “os evangelhos são diversos registros sobre uma mesma
pessoa. Cada um representa as questões em formas distintivas conforme seus autores”
(2003[1997, xi]). Após referirem-se às desarmonias entre os quatro evangelhos canônicos, os
estudiosos asseveram, de forma brilhante, que não há quem “proponha forçar todas as
evidências no sentido de testificar um único cristianismo” (2003[1997, xi]).

2.4. TOMÉ: PELO DIREITO DE SER CLASSIFICADO COMO EVANGELHO

A respeito do Evangelho de Tomé, o professor de Teologia Bíblica na Universidade


Livre de Amsterdam, Rochus Zuurmond, declara: “É o mais conhecido e (hoje) mais influente
‘evangelho’ apócrifo, se é que esse termo pode ser aplicado a essa coleção de palavras de
Jesus” (1998, p. 100). Com efeito, como lembra Zuurmond, o próprio documento copta
apresenta-se como “As sentenças ocultas que Jesus, quando vivo, falou e que Dídimo Judas
Tomé anotou” (idem, idem, n. 110) e não como um “evangelho”.
127

Prosseguindo com seus comentários, Zuurmond advoga que Tomé, no que se refere ao
gênero literário, “é evidentemente o das ‘palavras’”, gênero esse que pode ser encontrado
“tanto na tradição grega como na judaica” (1998, p. 101). Seguem-se breves análises
comparativas entre Tomé e os evangelhos canônicos e também com as cartas paulinas até a
conclusão de que é temerário admitir que os ditos desse “evangelho” remetem ao próprio
Jesus. Zuurmond percebe as implicações das hipóteses aventadas por estudiosos, como, por
exemplo, Helmut Köester, de que Tomé precede a todos os evangelhos canônicos e levanta
várias objeções com o propósito de desestimular qualquer alteração no status da
documentação neotestamentária.
Com efeito, Tomé, o documento, é um Evangelho? Antes, o que é um evangelho?
Brown sublinha que “no tempo do NT59, euaggelion (‘boa notícia’, que traduzimos por
‘evangelho’) não se referia a um livro ou escrito, mas a uma proclamação ou mensagem”
(2004, p. 171). Ademais, convém mencionar que (idem, p. 172):

Palavras correlatas eram usadas no grego não-cristão para boas-novas,


especialmente anúncios de vitória em batalhas; no culto imperial, o
nascimento e a presença do imperador constituíam boas-novas para o mundo
romano. Na LXX, as palavras correlatas a euaggelion traduzem a expressão
hebraica bsr, que tem a acepção semelhante de proclamação de boas-novas,
especialmente da vitória de Israel ou da vitória de Deus. Mais amplamente,
pode abranger a proclamação das ações gloriosas de Deus em favor de Israel.

De acordo com o falecido decano dos estudos neotestamentários, atesta-se o uso de


euaggelion para designar escritos cristãos ao longo do século II. No fim desse século, por sua
vez, a profusão de escritos forçou a inserção de introduções aos evangelhos canônicos,
segundo o modelo “Evangelho segundo...” (2004, p.173).
Cabe destacar que o uso do termo deu-se de forma neutra, ou seja, com o único fim de
distinguir um documento sobre Jesus das epístolas, dos apocalipses e outros materiais
literários cristãos. Por outro lado, muitas vezes, de acordo com Brown, fez-se uso de maneira
tendenciosa. Brown frisa que, nesse último caso, o termo era empregado para igualar obras
não canônicas a uma obra canônica. Aproveitando o ensejo, o falecido biblista destaca que
“na Antiguidade, essa pode ter sido uma exigência daqueles a quem a grande Igreja designava
como hereges; hoje, às vezes é a práxis de estudiosos revisionistas que procuram derrubar o
cânone” (2004, p. 173).

59
Novo Testamento.
128

À proporção que o emprego desse termo obedeceu a diferentes propósitos, é natural que
tenham surgido “complicações terminológicas”. Nesse sentido, Brown sugere classificar todo
esse corpus documental em duas categorias distintas (2004, p. 173-174):
(a) Material sobre Jesus – as narrativas da infância e da paixão, coleção de ditos,
coleção de milagres, discursos atribuídos ao Jesus ressuscitado;
(b) Evangelhos – narrativas completas tais como encontramos nos quatro escritos
canônicos.
Adotando, portanto, os textos canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João) como
paradigmas, o falecido biblista, ainda que indiretamente, exclui Tomé do quadro de
evangelhos. Basta observar que “coleção de ditos” está inserida no assim chamado “material
sobre Jesus”. Com efeito, conforme sua descrição, um evangelho abrange “ao menos o âmbito
do ministério público/paixão/ressurreição [de Jesus]” e combina “milagres e ditos” (2004, p.
174). Evidência dessa posição pode ser identificada em sua declaração – um dado, para ele,
“indiscutível” – a respeito dos livros agrupados no assim chamado Novo Testamento: “eles
tem sido o instrumento mais importante para colocar milhões de pessoas, de diferentes tempos
e lugares, em contato com Jesus de Nazaré e com os primeiros fiéis que o anunciaram” (2004,
p. 69).
Com todo respeito à memória e ao legado de Raymond Brown, suas palavras, no
entanto, reforçam o que se pode chamar de ditadura do cânone bíblico e fornecem elementos
para fechar as portas a um cristianismo plural.
Convém sublinhar que essa maneira de encarar a documentação cristã, com admitida
primazia dos textos canônicos, é compartilhada por diferentes estudiosos de distintas
inclinações ideológicas. Vermes, por exemplo, lamenta o fato de “um grande número de
especialistas no Novo Testamento” preferirem ver os autores dos evangelhos como
“portadores de uma mensagem doutrinal mascarada de história” a “narradores da vida, das
ideias, das atividades, do magistério e da morte de um homem santo de carne e sangue”
(2006, p. 177).
Com efeito, Vermes adota como hipótese de trabalho que contando apenas “com a ajuda
dos três primeiros Evangelhos [Marcos, Mateus e Lucas]”, pode-se abordar o “Jesus da
história” (2006, p. 178). Curiosa e sintomaticamente, quando o Evangelho de Tomé é
mencionado, é unicamente para ser indicado que “o original grego data da segunda metade do
século II d.C.” e que, em sua maior parte, trata-se de uma obra “claramente subalterna ao
Novo Testamento grego” (2006, p. 180).
129

Alhures, Vermes dedica-se a esboçar “a personalidade do Jesus real e a quintessência do


seu autêntico evangelho escatológico” (2006b, p. 9), utilizando como fontes literárias,
evidentemente, os evangelhos canônicos. Acerca de Tomé, ele declara (idem, p. 14):

O Evangelho apócrifo de Tomé pretende registrar ditos secretos de Jesus.


Escrito em grego, talvez em meados do século II d.C., e preservado para a
posteridade numa tradução copta egípcia do século III ou IV, (...). Os
paralelos diretos com os Evangelhos Sinópticos nele contidos foram em
grande parte retrabalhados, estando frequentemente contaminados por ideias
hereges (“gnósticas”).

Ainda que não retire de Tomé a condição de Evangelho, Vermes opera no sentido de
afastar seus leitores daquele escrito cristão. Com efeito, termos como “apócrifo” e “ideias
hereges” estão impregnados de conotações negativas. Pessoas mais sensíveis e mais
impressionáveis não verão motivo para ocupar-se das páginas desse documento da Biblioteca
da Nag Hammadi.
Essas opiniões, digamos, negativas não podem servir de obstáculo para o
aprofundamento e para a busca de respostas satisfatórias às indagações propostas no início
desse tópico. Assim, “de onde vem o evangelho? Ele é como outras literaturas do mundo
antigo ou se trata de uma forma nova e revolucionária?” (WILLS, 1997, p. 1).
Consoante Michael Vines, “se falharmos em identificar corretamente o gênero de um
trabalho literário, é muito provável que venhamos a interpretar incorretamente a função tanto
de suas partes individuais quanto a unidade estética do trabalho como um todo” (2002, p. 1).
Cumpre ressaltar, no entanto, que os pesquisadores, quando se referem a “evangelho”, têm em
mente unicamente os textos canônicos. Ou melhor, os evangelhos segundo Marcos, Mateus e
Lucas – os convencionalmente denominados Evangelhos Sinóticos.
Não por acaso, Zuurmond, quando se propõe definir o conceito “evangelho”, questiona
se o termo ainda é adequado e aplicável ao Quarto Evangelho, quer dizer, o evangelho
segundo João. Note-se que ele está se referindo a uma narrativa que faz parte do cânone
neotestamentário. Por que ele levanta essa indagação? Porque Zuurmond reverbera a noção
amplamente albergada de que evangelho, enquanto gênero literário, obedece estritamente à
forma como se apresenta nos evangelhos sinóticos.
Nesse sentido, como indica Vines, a “investigação do gênero evangélico tendeu a
oscilar entre duas posições opostas. Por um lado, a abordagem analógica, que alega que um
gênero existente daria conta da forma escrita dos evangelhos. Por outro lado, a abordagem
evolutiva, que alega que os evangelhos são uma criação única da Igreja” (2002, p. 2).
130

Concentrados no evangelho de Marcos – à medida que esse texto canônico é tido como
o primeiro relato que se tem notícia sobre a vida/ministério público de Jesus e, por
consequência, os evangelhos de Mateus e de Lucas seriam apropriações posteriores de
“Marcos” como modelo – os pesquisadores que seguem a linha da abordagem analógica
acentuaram as similaridades formais entre esse texto canônico e a literatura do período
helenístico. Em decorrência dessa perspectiva, analogias foram feitas entre o evangelho e
aretologia, encômio, memorabilia, diálogo socrático, tragédia grega e épico homérico
(VINES, 2002, p. 3).
Todavia, poucas dessas analogias obtiveram ampla aceitação nos círculos de pesquisa
do evangelho de Marcos. Dentre aquelas, o gênero literário que rendeu maior quantidade de
trabalhos foi a biografia greco-romana. O pioneiro nesse campo, Clyde W. Votaw, postulava,
em 1915, que os evangelhos eram um subconjunto das biografias greco-romanas (VINES,
2002, p. 4).
Sua esperança era conseguir demonstrar que os evangelhos podiam, no mínimo, ser tão
confiáveis enquanto documentos como aqueles outros escritos que registravam a vida e as
atividades de outros famosos mestres como Epíteto, Sócrates e Apolônio de Tiana. Nesse
sentido, convinha não se enganar e ter muita clareza que os biógrafos antigos não haviam
“conduzido uma cuidadosa pesquisa científica sobre a vida de seus sujeitos a fim de preservar
suas memórias para a posteridade” (VINES, 2002, p. 4).
Isso, infere-se da opinião de Votaw, seria incompatível com a finalidade da escrita
dessas biografias. Com efeito, quem redigia essas biografias buscava “elogiar seus sujeitos,
ou afetar a opinião e a ação políticas, ou ensinar a retidão e a utilidade pelo exemplo”
(VINES, 2002, p. 4).
A tese advogada por Votaw, porém, caiu em descrédito com o advento da crítica das
formas. Os defensores desse método de análise literária sublinharam a superficialidade dos
paralelos utilizados por Votaw e isso empobreceu e, de certa forma, anulou o seu trabalho.
Com efeito, esses críticos ressaltaram que, em contraste à Hochliteratur (alta literatura) da
sofisticada cultura grega, os evangelhos não passavam de Kleinliteratur, ou seja, baixa
literatura. Implica dizer, as analogias empreendidas por Votaw seriam inapropriadas.

2.4.1. PODEM OS EVANGELHOS SER UM TIPO DE MIDRASH?

Seguindo pela vereda aberta por Craig Blomberg (2007), cumpre indagar: os
evangelhos são uma espécie de midrash? Diferentemente da crítica da forma, que trata das
131

tradições evangélicas antes que viessem a ser escritas e da crítica da redação que, por sua
vez, analisa a contribuição própria dos evangelistas à tradição de e sobre Jesus, a crítica do
midrash, segundo Blomberg, “considera as relações dos evangelhos às várias passagens do
Antigo Testamento às quais eles podem se referir” (2007, p. 43).
De uma forma geral, usa-se o termo midrash, quando visto como gênero, “aos tipos de
exposição das Escrituras Hebraicas”. Nesse caso, divide-se em três principais categorias
(2007, p. 43):

(a) os targums; (b) ‘reescritas das Escrituras’ mais elaboradas como os


trabalhos do historiador do século I E.C., Josefo, que expandiu e embelezou
porções da história do Antigo Testamento com diálogos imaginários e
criações lendárias como se fossem um romance histórico e (c) comentários
bíblicos judaicos primitivos que prosseguem, por meio de um texto,
explicando seu significado, sugerindo aplicações, discutindo Escrituras ou
ensinos e histórias de rabinos que venham à mente.

Quando midrash se refere à interpretação das Escrituras, Blomberg explica, “uma ou


mais de uma lista antiga de regras utilizadas pelos rabis está normalmente em mente” (2007,
p. 44). Se, inicialmente, havia sete regras principais formuladas por Hillel, um contemporâneo
de Jesus de Nazaré, essas foram expandidas, por volta da metade do segundo século, para
trinta e duas.
Ainda conforme Blomberg, muitos dos princípios seguem uma determinada lógica que
não seriam difíceis de acompanhar na atualidade. Assim, podem-se mencionar “raciocínio do
que se aplica a casos menos importantes ao que se aplicará a casos mais importantes;
interpretar Escritura por meio da Escritura, especialmente quando aparecem linguagem
comum ou imagens; estabelecer um princípio geral sobre a base de exemplos específicos (ou
vice-versa); consulta ao contexto de uma passagem para o discernimento de seu sentido”
(2007, p. 44).
Exposta a definição de midrash, Blomberg é categórico em afirmar que em sentido
algum os evangelhos são, como um todo, paráfrases, elaborações ou interpretações do Antigo
Testamento. Não estaria no escopo dos autores dos evangelhos narrar “a história sagrada dos
judeus, mas contar a história de eventos contemporâneos associados com a vida de Jesus”
(2007, p. 45). Todavia, o pesquisador admite que no processo de redação dos evangelhos,
“seus autores, ao referir-se às Escrituras, explícita e implicitamente, se não por completo, mas
em porções dos textos, empregaram como método o midrash” (idem, p. 45).
Com efeito, considerando-se seções nos evangelhos de Mateus e de Lucas repletas de
citações e alusões às Escrituras Hebraicas, vários pesquisadores têm chegado a conclusão de
132

que esse material é uma forma de midrash. Se isso puder ser demonstrado, surge, portanto,
uma questão – que incomoda ligeiramente Blomberg à proporção que esse seu trabalho se
pretende corroborar a noção de que os evangelhos são confiáveis do ponto de vista histórico –
de altíssimas consequências: “os escritores dos evangelhos não estariam recordando-se de
eventos históricos reais, porém envolvendo, imaginariamente, Jesus em narrativas e ensinos
fictícios inspirados nos textos do Antigo Testamento” (2007, p. 45).
Compreensão semelhante e desconforto similar tem Raymnd E. Brown. Na abordagem
que faz das narrativas de nascimento e infância de Jesus, o falecido biblista faz questão de
assinalar (2005, p. 663):

Nas análises católicas romanas, principalmente em nível popular, “midraxe”


é considerado palavra erudita para ficção, de modo que designar as
narrativas da infância [de Jesus] como “midraxe” equivaleria dizer que são
fábulas e que os acontecimentos relacionados a elas não ocorreram.

No entanto, ele observa, “não é impossível que o termo midraxe se aplique às narrativas
da infância” (2005, p. 666). Embora faça essa pequena concessão, Brown sente necessidade
de reafirmar que não é satisfatório pensar essas duas narrativas como midrash. Com efeito, as
histórias contadas pelos autores dos evangelhos de Mateus e de Lucas acerca dos eventos
relativos ao nascimento de Jesus “não foram compostas para tornar as Escrituras
veterotestamentárias mais inteligíveis, mas para tornar Jesus mais inteligível” (2005, p.
667)60.

60
A crítica moderna dos evangelhos, em geral, e das narrativas de nascimento de Jesus, em particular,
inevitavelmente se depara com o embaraço que é abordar as histórias descritas pelos autores dos evangelhos
canônicos de Mateus e de Lucas e ter que, em certa medida, dar conta dos eventos extraordinários que nelas
ocorrem e, por conseguinte, afirmar ou negar sua plausibilidade histórica. Vermes, por exemplo, pondera que há
como extrair “a verdade” desses dois textos. Contudo, ele sublinha, uma verdade que “só se enquadra muito
ligeiramente na história e provém, em grande parte, da inspiradora e criativa imaginação religiosa do homem”
(2007, p. 13). Ademais, ecoando W.D. Davies e D.C. Allison, Vermes se vê forçado a admitir que essas
narrativas da Infância “não são material a partir do qual se faz história” (2007, p. 174). Marcus J. Borg e Crossan
são de opinião que as narrativas da Infância devem ser lidas mediante o que elas significavam no contexto do
século I d.C. para as audiências a que se dirigiam. Mais que isso, a dupla de pesquisadores não vê as histórias da
natividade “como fatos nem fábulas, mas como parábolas e aberturas” (2008, p.41). Com a sensatez que os
caracteriza, Borg e Crossan postulam que adotar a noção de narrativas parabólicas para os assim chamados
Evangelhos da Infância, “proporciona um modo de ultrapassarmos o conflito obstinado e infrutífero entre ‘fato
ou fábula’” (2008, p. 51). Adiante eles sustentam que “as histórias de Natal, (...) são também, primordialmente,
133

Debalde tal afirmação, o falecido decano dos estudos neotestamentários, por mais que
no íntimo de seu ser assim o desejasse, não consegue se furtar à constatação de que “o estilo
de exegese exemplificado no midraxe tem realmente um lugar na composição da narrativa da
infância” (Grifo original) (2005, p. 667-668).
Não obstante, em função do lugar de fala do ex-presidente da Society of Biblical
Literature, é extremamente compreensível seu posicionamento relutante a respeito da relação
entre as narrativas da infância e o midrash. Sua cautela é, em certa medida, dissimulada. Com
efeito, consoante suas próprias palavras, “é plausível suspeitar que a narrativa dos magos seja
em grande parte uma imaginosa adaptação da narrativa de Balaão, mas não podemos
menosprezar a possibilidade de um incidente histórico fundamental que já não é possível
determinar” (2005, p. 668, n. 9). Em outras palavras, Brown gostaria que a hipótese de as
narrativas da infância haverem sido criadas como um midrash, ou mesmo que tão somente um
distante eco, jamais tivesse surgido nos círculos acadêmicos.
Retornando a Blomberg, não é necessário muito esforço para desvendar seu empenho
em desconectar os evangelhos do midrash. O elemento central: criar essa ponte é retirar dos
textos canônicos sua historicidade e preenchê-los com a imaginação fértil que supostamente
caracteriza aquela técnica de exegese judaica. Como seu propósito essencial consiste em
providenciar respostas aos questionamentos a respeito da confiabilidade e precisão históricas
das narrativas dos quatro evangelhos considerados canônicos, nada mais coerente, para esse
fim, do que rejeitar tal associação.
Ainda assim, ele indaga pelas razões que levam a muitos a operar conforme a noção de
que os evangelistas conheciam e empregaram o midrash na composição de suas histórias.
Para ele, é possível que passagens, como as que se pode ler no evangelho canônico atribuído a
Mateus (27:3-10,) possuam esse apelo capaz de convencer uma miríade de pesquisadores (Os
grifos são da Bíblia de Jerusalém):

Então Judas, que o entregara, vendo que Jesus fora condenado, sentiu
remorsos e veio devolver aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos as trinta
moedas de prata, dizendo: “Pequei, entregando sangue inocente”. Mas estes
responderam: “Que temos nós com isso? O problema é teu”. Ele, atirando as
moedas no Templo, retirou-se e foi enforcar-se. Os chefes dos sacerdotes,
tomando as moedas, disseram: “Não é lícito depositá-las no tesouro do
Templo, porque se trata de preço de sangue”. Assim, depois de deliberarem
em conselho, compraram com elas o campo do Oleiro para o sepultamento

aberturas parabólicas, porém baseadas na tradição bíblica, e não em fatos históricos” (2008, p. 70). Mais um
pouco e eles diriam ser um midrash.
134

de estrangeiros. Eis por que até hoje aquele campo se chama “Campo de
Sangue”. Com isso se cumpriu o oráculo do profeta Jeremias: E tomaram as
trintas moedas de prata, o preço do Precioso, daquele que os filhos de Israel
avaliaram, e deram-nas pelo campo do Oleiro, conforme o Senhor me
ordenara.

Com efeito, o episódio das trinta moedas devolvidas por Judas e usadas para a aquisição
do campo do Oleiro, “talvez não se baseasse em um fato histórico, mas foi inspirado pela
referência à mesma soma de dinheiro paga como salário” no texto veterotestamentário de
Zacarias (11:12-13) (2007, p. 45).
E é exatamente o que postula J. A. Overman. Para ele, “o detalhe sobre o campo
comprado com trinta moedas de prata serve para ligar à Escritura acontecimentos da vida e da
paixão de Jesus” (1999, p. 392). Mais que isso, “Mateus compôs esta narrativa de sete
versículos sobre Judas (...), baseado em uma associação imprecisa com Zc 11,12-13 e Jr
19,11; 32,6-15; 18,2-3” (idem, idem).
Não restam dúvidas, considera Overman, que o autor de Mateus “construiu uma lenda
sobre Judas com o propósito de empregar esses versículos” (1999, p. 393). Por tal razão,
cumpre reconhecer que “a passagem mateana que envolve a morte de Jesus em Jerusalém nas
mãos de falsos líderes e a traição de Judas a Jesus em troca de trinta moedas de prata é lida
como uma espécie de midraxe” (idem, idem).
Miguel P. Fernández ratifica e expande o que Overman afirma e que Blomberg rejeita.
Em sua visão, o tipo de interpretação que caracteriza o midrash, ou seja, “uma interpretação
criativa das Sagradas Escrituras” e que, por sua vez, é tipicamente rabínico, está presente
também no “Novo Testamento e outras literaturas cristãs primitivas” (2010, p. 367).
Fernández não nega, por ser óbvio demais, que se possam identificar a existência de
paralelos entre as narrativas evangélicas e a literatura extra-bíblica como, por exemplo, a
“literatura clássica e helenista” (2010, p. 368). Todavia, justamente por que “a literatura
rabínica e o NT são interpretações e/ou releituras dos textos bíblicos antigos que uma tem a
capacidade de explicar e avaliar a outra” (2010, p. 368).
“A falha fundamental dessa posição”, contesta Blomberg, “emerge de uma observação
paradoxal” (2007, p. 45). Com efeito, para Blomberg, o aspecto não observado por quem
afirma serem os evangelhos uma espécie de midrash consiste em (2007, p. 46):

Quando autores judeus inventaram narrativas não históricas inspiradas nos


textos do Antigo Testamento, eles, geralmente, citavam e interpretavam as
Escrituras bastante literalmente. Uma vez que estavam compondo ficção,
encontravam-se livres para costurar suas criações aos textos que as geraram.
135

Precisamente, foi o oposto que se deu na maioria das passagens evangélicas


em questão. Em muitos casos, as referências ao Antigo Testamento são
reordenadas e reaplicadas em maneiras que é bem mais provável que os
escritores dos evangelhos estivessem tentando mostrar como o Antigo
Testamento se ajustou aos eventos da vida de Jesus e não o contrário.

Firme no objetivo de recusar qualquer aproximação entre os autores dos evangelhos


considerados canônicos e a exegese judaica conhecida como midrash, Blomberg assevera ser
extremamente improvável a hipótese apresentada por Michael Goulder acerca dessa relação.
Com efeito, Goulder sustenta que muitas das narrativas contidas nos evangelhos teriam sido
inventadas “midrashicamente”.
Goulder constrói sua hipótese adotando como premissa básica e fundamental que os
evangelhos “talvez hajam sido concebidos para leitura na igreja” (1974, p. 17). Nesse sentido,
prossegue Goulder, há evidências, tanto nos documentos canônicos quanto nos não-
canônicos, da existência de leitores e ouvintes nas comunidades primitivas (idem, idem)61.
Assim, as passagens que se encontram em 1Ti 4:13, Mc 13:14 e Ef 3:4, respectivamente,
atestariam essa suposição (Grifos dessa transcrição):

Esperando a minha chegada, aplica-te à leitura, à exortação, à instrução.

Quando virdes a abominação da desolação instalada onde não devia estar –


que o leitor entenda – então os que estiverem na Judeia fujam para as
montanhas.

...lendo-me, podeis compreender a percepção que tenho do mistério de


Cristo.

Essencial para fundamentar sua hipótese, é a constatação de que, para os judeus, a


Torah é a Palavra de Deus e, advindo dessa convicção, todos deveriam conhecer essa Palavra.
Mas não apenas partes da Palavra, mas ela como um todo, na íntegra, completamente. Com
efeito, postula Goulder, “se tudo [na Torah] é vital [para os judeus], tudo deve ser lido e, por
conseguinte, a única maneira metódica de fazê-lo é lendo as Escrituras em série” (1974, p.
20).
Com essa premissa, Goulder então defende (1974, p. 20):

A Igreja não valorizava menos o Evangelho do que os Judeus, a Lei: as


palavras do Senhor eram vida e verdade e valeria a pena estar a par da
genealogia [de Jesus], pelo menos uma vez ao ano, para certificar-se de não

61
Os debates historiográficos acerca do nível de letramento no interior das primeiras comunidades de crenças
judaico-cristãs serão aprofundados no Capítulo 3.
136

perder nenhum de seus tesouros. Assim, figuraria psicológica e


circunstancialmente provável que a Igreja lesse o Evangelho de Lucas em
série. (...) O mesmo sendo verdadeiro e se podendo garantir a respeito da
leitura do Evangelho de Mateus.

A tese central de Goulder, portanto, consiste em, estabelecendo uma relação genética
entre cristãos e judeus, pontuar que a “Igreja” reproduzia, consciente e inconscientemente, as
mesmas práticas e mesmos hábitos de sua matriz originária. Nesse sentido, por uma questão
de “fidelidade histórica”, se o midrash era, enquanto gênero literário e técnica de exegese
judaica, uma prática corrente em círculos israelitas, com que base poder-se-ia rechaçar a
possibilidade de as primeiras gerações de “cristãos” empregarem, em muitos momentos de
seu desenvolvimento como uma comunidade de crenças, esse artifício para a composição dos
evangelhos?
Contudo, Blomberg recusa, peremptoriamente, a hipótese e as conclusões de Goulder.
Sumariamente ele desqualifica o trabalho ao qual analisa sugerindo que os paralelos, textuais
e históricos, aventados por Goulder são bastante sutis e imprecisos. Mais que isso, a
fragilidade do argumento de Goulder, consoante Blomberg, expresso nas falhas de
demonstração empírica à medida que Goulder se vê forçado, em mais de um momento, a
confessar que há exceções aos padrões que ele mesmo postula, seria a prova cabal de que seu
trabalho carece de qualquer credibilidade e, por conseguinte, resta admitir que os evangelhos
não são midrash.
Blomberg, por fim, mira seu olhar para outra abordagem acerca do midrash. A que se
refere a ele como um método de interpretação. Assim, ele destaca, a forma como os autores
dos evangelhos canônicos e os rabinos citam e explicam as Escrituras é aceita, por muitos
estudiosos, como legítima.
“Jesus” mesmo, como frisa Blomberg, “regularmente apelava para argumentos ‘do
menor para o maior’ e não apenas quando ele estava citando as Escrituras” (2007, p. 49-50).
Convém fazer uma breve ressalva aqui. Empenhado, de corpo e alma, em demonstrar a
confiabilidade histórica dos evangelhos canônicos, Blomberg aparenta não dar a mínima
atenção para todas as discussões já feitas pela historiografia para definir os critérios mínimos
que permitam distinguir, no interior das narrativas evangélicas, o que Jesus provavelmente
disse do que Jesus pouco provavelmente disse e do que Jesus provavelmente nunca disse.
Com efeito, ele literalmente admite que tudo o que é atribuído a Jesus nos evangelhos
sinóticos dispensa dúvidas sobre sua autenticidade.
137

Um tipo de midrash conhecido nos círculos rabínicos como o “proem” (uma breve
homilia) pode ser reconhecido jazendo por detrás de algumas passagens evangélicas. Por
exemplo, a narrativa lucana registrada em 10:25-37 e conhecida como a “Parábola do bom
samaritano”:

E eis que um legista se levantou e disse para experimentá-lo: “Mestre, que


farei eu para herdar a vida eterna?” Ele disse: “Que está escrito na Lei?
Como lês?” Ele, então, respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o
teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu
entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo”. Jesus disse: “Respondeste
corretamente; faze isso e viverás”.
Ele, porém, querendo se justificar, disse a Jesus: “E quem é meu próximo?”
Jesus retomou: “Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu no meio de
assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o
semimorto. Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote, viu-o e
passou adiante. Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e
prosseguiu. Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e
moveu-se de compaixão. Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando
óleo e vinho, depois colocou-o em seu próprio animal, conduziu-o à
hospedaria, e dispensou-lhe cuidados. No dia seguinte, tirou dois denários e
deu-os ao hospedeiro, dizendo: ‘Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu
regresso te pagarei’. Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem
que caiu nas mãos dos assaltantes?” Ele respondeu: “Aquele que usou de
misericórdia para com ele”. Jesus então lhe disse: “Vai, e também tu, faze o
mesmo”.

O proem subdivide-se em vários tipos, dos quais um denominado yelammedenu


rabbenu (“deixe nosso mestre nos ensinar”) pode ser claramente identificado nessa passagem.
Consoante Blomberg, esse método envolve (2007, p. 50):

1. Diálogo no qual se inclui um E eis que um legista se levantou e


questionamento e citação das Escrituras disse para experimentá-lo: “Mestre,
que farei eu para herdar a vida
eterna?” Ele disse: “Que está escrito
na Lei? Como lês?” Ele, então,
respondeu: “Amarás o Senhor teu
Deus, de todo o teu coração, de toda
a tua alma, com toda a tua força e de
todo o teu entendimento; e a teu
próximo como a ti mesmo”.

2. Segunda citação das Escrituras Jesus disse: “Respondeste


corretamente; faze isso e viverás”.

3. Exposição, frequentemente, por meio Ele, porém, querendo se justificar,


de uma parábola ligada ao texto inicial disse a Jesus: “E quem é meu
por palavras ou frases feitas (“próximo”) próximo?” Jesus retomou: “Um
homem descia de Jerusalém a Jericó,
e caiu no meio de assaltantes que,
após havê-lo despojado e espancado,
138

foram-se, deixando-o semimorto.


Casualmente, descia por esse
caminho um sacerdote, viu-o e
passou adiante. Igualmente um levita,
atravessando esse lugar, viu-o e
prosseguiu. Certo samaritano em
viagem, porém, chegou junto dele,
viu-o e moveu-se de compaixão.
Aproximou-se, cuidou de suas
chagas, derramando óleo e vinho,
depois colocou-o em seu próprio
animal, conduziu-o à hospedaria, e
dispensou-lhe cuidados. No dia
seguinte, tirou dois denários e deu-os
ao hospedeiro, dizendo: ‘Cuida dele,
e o que gastares a mais, em meu
regresso te pagarei’. Qual dos três,
em tua opinião, foi o próximo do
homem que caiu nas mãos dos
assaltantes?”

4. Conclusão alusiva à segunda citação Ele respondeu: “Aquele que usou de


misericórdia para com ele”. Jesus
então lhe disse: “Vai, e também tu,
faze o mesmo”.

É curioso como Blomberg admite que o autor de Lucas serviu-se de um tipo de midrash
para modelar uma passagem – uma tradição que remonta de fato a Jesus? – e conclui,
laconicamente, que tal situação pode “realmente fortalecer os casos de ver essas passagens
como unidades autênticas mais do que conjuntos de composição de tradição e redação” (2007,
p. 50).
Entretanto, parece ser exatamente o oposto. O fulcro das considerações de Blomberg
gira em torno de, associando os evangelhos canônicos ao midrash, não fomentar a concepção
dos céticos de que as narrativas aceitas e incluídas na Bíblia cristã não sejam integralmente
“históricas” e, por conseguinte, inautênticas e não confiáveis. Ora, para que a conclusão de
Blomberg possa ter o mínimo de validade seria capital conseguir demonstrar, com base na
documentação existente, que Jesus de Nazaré atuava “midrashicamente”. Quer consciente,
quer inconscientemente.
Porém, isso seria uma espera em vão. Pelo menos não pela escrita de Blomberg. Mais a
frente o professor de Novo Testamento no Denver Seminary dedica-se a clarear a relação
estabelecida pelos autores dos evangelhos canônicos com as narrativas das Escrituras
Hebraicas. Afinal, é absolutamente impossível negar esse tipo de relacionamento literário.
Para não dizer o mínimo.
139

“As passagens do Novo Testamento envolvendo a interpretação profética do Antigo


Testamento”, ele comenta, “são tradicionalmente divididas pelos cristãos em cumprimento
literal ou tipológico” (2007, p. 51). Blomberg aceita que os evangelistas usam a noção de
cumprimento tipológico, na medida em que eles não estariam “interpretando o significado das
passagens do Antigo Testamento citadas, mas mostrando como eventos contemporâneos
vestem como uma luva em um padrão do que Deus fez no passado e que eles só conseguem
explicar em termos de uma ação divina se repetindo no presente” (2007, p. 52).
Tomem-se como ilustração os versos contidos no Evangelho da Infância de Mateus
(2:13-15) (Os grifos são da Bíblia de Jerusalém):

Após sua partida, eis que o Anjo do Senhor manifestou-se em sonho a José e
lhe disse: “Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito. Fica lá
até que eu te avise, porque Herodes procurará o menino para o matar’. Ele se
levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite, e partiu para o Egito.
Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprisse o que dissera o Senhor
por meio do profeta: Do Egito chamei o meu filho.

Blomberg advoga que Mateus, nessa passagem de seu Evangelho da Infância, não
estaria recorrendo ao midrash como modelo para redigir sua narrativa. Em verdade, ele
sustenta, o autor desse evangelho canônico, ressaltando a noção de cumprimento profético,
pretendia destacar “a surpreendente coincidência de que, assim como Israel tinha sido
protegido e libertado do Egito nos tempos de Moisés, agora o Messias de Deus tinha sido
abrigado naquela terra estrangeira até que pudesse retornar salvo e seguro a sua terra natal”
(2007, p. 52).
Com o máximo de respeito ao pesquisador, nota-se o quanto suas convicções religiosas
atuam como uma espécie de lente, mais ou menos embaçada, interferindo sensivelmente no
seu olhar sobre a documentação canônica62.

2.5. AS ETAPAS DE REDAÇÃO DE TOMÉ

Em seu primoroso e inovador trabalho sobre o Jesus histórico, Crossan montou um


inventário da Tradição de Jesus por meio de uma estratificação cronológica dos documentos
que foram legados pelos adeptos do movimento de Jesus. Conforme sua metodologia de

62
No curso da pesquisa para essa Tese, travou-se contato com uma refutação a Blomberg e elaborada por Robert
A. Derrenbacker Jr. e John S. Kloppenborg Verbin (2001). Blomberg, como é exposto no artigo, é um feroz
opositor da tese da existência do Evangelho Q, advogando que Lucas depende de Mateus.
140

pesquisa, situar os textos em suas épocas de produção o mais precisamente possível – e ele
trata os canônicos e os não canônicos sem as distinções típicas dos que operam com a noção
de textos ortodoxos e apócrifos – mostra-se um recurso imprescindível para se chegar o mais
próximo da voz original de Jesus de Nazaré.
De acordo com essa sua estratificação cronológica, haveria uma primeira camada, ou o
estrato mais antigo de textos ensejados pelas comunidades ditas cristãs, que comporta escritos
que vieram a lume entre as décadas de 30 e 60 do primeiro século. Assim, Crossan enquadra
no Primeiro Estrato um total de treze documentos das mais diferentes espécies. São eles
(1994, p. 465-467):
1. Primeira Epístola de Paulo aos tessalonicenses;
2. Epístola de Paulo aos gálatas;
3. Primeira Epístola de Paulo aos coríntios;
4. Epístola de Paulo aos romanos;
5. Evangelho de Tomé I;
6. Fragmento evangélico Egerton;
7. Papiro Vindobonensis Grego 2325;
8. Papiro de Oxirrinco 1224;
9. Evangelho dos hebreus;
10. Evangelho de sentenças Q;
11. Coleção de milagres;
12. Relato do apocalipse;
13. Evangelho da cruz.
Convém destacar suas observações a respeito do Evangelho de Tomé. Com efeito,
Crossan salienta (1994, p. 465-466):

É possível que haja pelo menos duas camadas separadas dentro deste
evangelho. Uma foi composta na década de 50 E.C., provavelmente em
Jerusalém, sob a influência de Tiago (ver Ev. Tomé 12)63. Depois do martírio
de Tiago, em 62 E.C., a coleção (e, provavelmente, a comunidade que a
compôs) migrou para Edessa, na Síria. Lá, uma segunda camada foi
acrescentada, talvez já na década de 60 ou 70, sob a influência de Tomé (ver
Ev. Tomé 13)64. (...) Estas duas camadas foram identificadas, de forma

63
Ev. Tomé 12: “Os seguidores disseram a Jesus: ‘Sabemos que você nos deixará. Quem será nosso líder?’ Jesus
lhes disse: ‘Não importa onde estiverem, procurarão Tiago, o Justo, em consideração de quem foram criados o
céu e a terra’”.
64
Ev. Tomé 13: “Jesus disse a seus seguidores: ‘Comparem-me com algo e digam-me com que me assemelho’.
Simão Pedro disse-lhe: ‘O senhor é como um mensageiro justo’. Mateus disse-lhe: ‘O senhor é como um sábio
filósofo’. Tomé disse-lhe: ‘Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com que o senhor se assemelha’.
141

provisória, da seguinte maneira: a primeira camada, a de Tiago, pode ser


encontrada nas unidades que apresentam um testemunho independente em
outras fontes, e faria parte do primeiro estrato (Ev. Tomé I); a camada de
Tomé aparece nos trechos que são característicos desta coleção, ou pelo
menos da tradição de Tomé em geral, e está inserida no segundo estrato (Ev.
Tomé II).

Na sequência de suas observações relativas ao Evangelho de Tomé, Crossan acrescenta:


“Esta estratificação grosseira mostra a necessidade de elaborar uma mais adequada, mas
também é um sinal de como esta coleção é antiga” (1994, p. 466).
Como não faz parte do escopo da obra, é justificável o não detalhamento por Crossan
dos critérios empregados para asseverar a existência de “pelo menos duas camadas” no
Evangelho de Tomé. Com efeito, considerar que dois ditos (Tomé 12 e 13) são o suficiente
para atestar que o documento teve momentos distintos de composição não faz jus ao rigor
metodológico com que um pesquisador tão metódico como Crossan sempre se apresenta.
Cumpre, portanto, concentrar a atenção sobre esse Evangelho e, sustentando-se em
outros estudiosos, aferir se procede a alegação de Crossan sobre camadas redacionais em
Tomé. Assim, como frisa April DeConick, sempre despertou curiosidade o fato de Tomé
apresentar, por exemplo, duplicações (2002, p. 167):

Ev. Tomé 38: “Jesus disse: ‘Com Ev. Tomé 92: “Jesus disse: ‘Procurem e
frequência vocês desejam ouvir estas encontrarão. No passado, entretanto, não
palavras que pronuncio para vocês, e lhes falei sobre as coisas a respeito das quais
não têm ninguém mais de quem ouvi- me indagavam. Agora estou disposto a dizê-
las. Haverá dias em que me las, mas vocês não a estão procurando’”.
procurarão e não me encontrarão’”.

Ev. Tomé 48: “Jesus disse: ‘Se dois Ev. Tomé 106: “Jesus disse: ‘Quando de dois
fazem as pazes entre si em uma fizerem um, vocês se tornarão filhos do
mesma casa, dirão à montanha: homem, e quando vocês disserem:
‘Mova-se’, e ela se moverá’”. ‘Montanha, mova-se’, ela se moverá’”.

Ev. Tomé 55: “Jesus disse: ‘Quem Ev. Tomé 101: “Quem quer que não odeie o
quer que não odeie o pai e a mãe não pai e a mãe como eu não pode ser um
pode ser meu seguidor, e quem quer seguidor meu, e quem quer que não ame o
que não odeie irmãos e irmãs e não pai e a mãe como eu não pode ser um
carregue a cruz como eu carrego não seguidor meu. Pois minha mãe [...], mas
será digno de mim’”. minha verdadeira mãe me deu a vida”.

Jesus disse: ‘Não sou seu mestre. Porque você bebeu, embriagou-se na fonte borbulhante que ofereci’. E se
afastou com ele e lhe disse três sentenças. Quando Tomé voltou para seus amigos, estes lhe perguntaram: ‘O que
Jesus lhe disse?’ Tomé lhes disse: ‘Se eu lhes expuser uma das sentenças que ele me disse, vocês pegarão e me
apedrejarão, e das pedras virá fogo e os consumirá”.
142

A perplexidade ganha vulto entre os pesquisadores quando se atenta para o que parece
serem contradições internas do texto. Com efeito, se no Dito 14, o Jesus de Tomé orienta seus
discípulos a não jejuarem, a não orarem e a não darem esmolas, no Dito 27 encontra-se a
expressa recomendação para “jejuar do mundo” e “observarem o Sabath como Sabath”, pois
só dessa maneira “verão o Pai”. DeConick sublinha o estranhamento que lhe causa esses dois
ditos. Nesse sentido, como pode o Jesus de Tomé ordenar o respeito ao Sabath e, ao mesmo
tempo, condenar preceitos do judaísmo de seu tempo?
Há que se ressaltar uma dificuldade insuperável: a existência de somente uma cópia do
Evangelho de Tomé em copta. Implica dizer, inexiste a chance de comparar manuscritos
coptas distintos de Tomé e poder pontuar em quais Ditos a mão de um copista interferiu
acrescentando ou retirando alguma fala de Jesus. Em razão disso, os pesquisadores
concentram-se no texto e se esforçam para encontrar uma resposta satisfatória e convincente
para a indagação acerca do Tomé “original”. E, por conseguinte, distinguir e destacar as
camadas redacionais.
Para decifrar o modo de composição de Tomé, os estudiosos desenvolveram, consoante
DeConick, duas formas básicas de um Modelo Tradicional que dessem conta da grande
variedade de ditos naquele texto. Assim, uma das soluções propõe que o presumido autor
utilizou amplamente outros evangelhos ao longo do tempo em que compôs seu evangelho.
DeConick ilustra esse Modelo por meio da figura a seguir (2002, p. 169):
143

FONTES

ORAIS ESCRITAS

Autor

Evangelho de Tomé

Diagrama 1: Modelo Tradicional

Gilles Quispel, por exemplo, sustentou, na década de 1950, que o texto de Tomé
resultou da combinação de três fontes escritas não canônicas: “um evangelho judeu-cristão
(possivelmente o Evangelho dos Nazarenos), um evangelho encrático65 (provavelmente o
Evangelho dos Egípcios) e uma gnomologia Hermética” (2002, p. 168). Infere-se dessa ideia
que um único autor foi responsável por compilar diferentes “fontes”, orais e escritas,
dispondo-as acrítica e aleatoriamente.
Justiça seja feita, no entanto, a Quispel. Muito embora suas conclusões sejam, na
atualidade, bastante questionadas, coube a ele abrir a trilha pela qual os estudiosos de Tomé
enveredaram. Apesar de não estar à altura dos acadêmicos que submeteram seus trabalhos a
um escrutínio rigoroso, as digressões de Quispel sobre Tomé, no que tange ao processo de
composição, excluíram, inteiramente, o papel desempenhado pelas audiências do
texto/mensagem. Contudo, não se pode exigir dele o que ele não teria como ofertar. Não

65
Köester esclarece que “encratismo” consiste em “renúncia ao sexo, ao casamento e a certos alimentos e
bebidas por razões religiosas e com o objetivo de evitar contaminação de coisas naturais e terrenas” (2005, p.
372).
144

obstante, em respeito aos seus esforços e à sua memória parece válido – e recompensador –
esmiuçar suas premissas e desdobramentos.
Já na época em que publicou sua hipótese das várias fontes de Tomé, Quispel viu-se na
contingência de justificar cada uma de suas proposições. Assim, ele se defendeu e negou,
peremptoriamente, ter postulado que, dentre as fontes de Tomé, poder-se-ia incluir o
Diatessaron, de Taciano, também garantiu que jamais afirmara que Tomé era um evangelho
judeu-cristão e, muito menos, que todos os Ditos refletiam uma tradição independente. Antes,
o que ele dissera, e foi mal compreendido, era que “o Evangelho de Tomé não era gnóstico e
continha, em parte, uma tradição independente” (2008, p. 176-177).
Os críticos que reagiram mais negativamente às ideias de Quispel, advogaram que os
Ditos de Tomé seriam, no fundo, uma perversão gnóstica dos evangelhos canônicos. No
entanto, como Quispel fez questão de salientar, “que tipo de gnosticismo era esse, [se]
Naasseno, Valentiniano ou outro, não ficou claro” (2008, p. 177). Em sua réplica aos eruditos
que o contestaram, Quispel lamenta o fato de os estudiosos “não terem a menor noção do
quão pluriforme o cristianismo primitivo era”. Mais que isso, a reação aos seus estudos,
“prenunciava resultados deploráveis para a pesquisa acadêmica” (idem, idem).
Quispel investe, sem citar nomes, contra os que, enxergando nada além de um
gnosticismo perverso no Evangelho de Tomé, tomaram, com essa noção em mente, o Dito 42
e o traduziram em conformidade com o seu viés tendencioso. Assim, esse Dito pode muito
bem ser uma fala autêntica de Jesus, à medida que consistiria numa “instrução a seus
seguidores, os missionários e os profetas, para que levassem uma vida itinerante – como, de
fato, eles levavam” (2008, p. 178).
Consoante, portanto, a sua linha de raciocínio, o mais curto dos ditos de Tomé, o Dito
42 – “Jesus disse: ‘Sejam transeuntes’” – pertenceria às camadas mais antigas da tradição e
“refletiria a situação da comunidade primitiva de Jerusalém” (2008, p. 178) 66. Nessa
perspectiva, “a interpretação gnosticizante [do Dito] mostrar-se-ia completamente equivocada
e irresponsável” (idem, idem).
O mesmo se observa na interpretação do Dito 25 – “Jesus disse: ‘Ame seu irmão como
sua alma, proteja essa pessoa como a pupila de seu olho’” – pelos críticos das análises de
Quispel. Novamente sem citar nomes, ele refere-se aos que empregam uma “interpretação
reacionária” e declaram que, nesse Dito, o “irmão” a que se deve amar e proteger não se trata
de um israelita ou qualquer outro ser humano, mas de um outro gnóstico. Com efeito, Quispel

66
Sobre o Dito 42 e suas implicações para uma compreensão de Tomé, ver 2.7.
145

comenta, o aforismo de “amar o irmão” está presente nos escritos joaninos, na Didaqué67 e no
Testamento dos Doze Patriarcas. Textos, portanto, originários, ao menos os dois últimos, de
um ambiente judeu-cristão e sem qualquer ligação com o que se sabe a respeito do
gnosticismo68.
Por conseguinte, estabelecer uma espécie de filiação de Tomé com os gnósticos com
lastro nessa interpretação dos Ditos e sem fazer menção aos textos cristãos primitivos resulta
em um enorme, nas palavras de Quispel, “desserviço ao saber acadêmico”. Essa posição,
portanto, é infundada e deveria ser abandonada.
Contudo, Quispel faz uma pequena concessão aos seus críticos. Ele os desafia a refutar
duas acepções que eram consensuais na época em que os estudos sobre Tomé davam seus
primeiros passos. Assim, “a menos que refutem a visão concebida pelos estudiosos de que
Tomé foi escrito por volta de 140 E.C. em Edessa e a menos que mostrem que os Ditos de
Tomé refletem uma escola gnóstica específica atestada em Edessa em 140 E.C.” (2008, p.
179), eles devem repensar suas asserções reacionárias e negativas69.
Na sequência de sua revisão do Evangelho de Tomé, Quispel entabula diálogo com uma
abordagem que não se dirige explicitamente aos seus estudos, mas que ele considera ser
crucial tratar, pois fornece as condições para ele próprio expor suas concepções sobre Tomé.
Nesse caso, Quispel tece comentários sobre as proposições igualmente inovadoras de
Helmut Köester. Buscando não antecipar o que será discutido no Capítulo 3, convém apenas
mencionar que Köester propugna que os Ditos de Tomé “não refletem as impressões digitais
redacionais dos autores dos evangelhos canônicos” (2008, p. 180). Em síntese, Tomé é
consequente de uma tradição independente de e sobre Jesus.
Entretanto, as inferências de Köester são por demais chocantes para Quispel. Ainda que
reconheça o rigor metodológico do pesquisador alemão e louve seu zelo para com a pesquisa,
Köester, para Quispel, em seu radicalismo, ultrapassa certos limites. Assim, conforme
Köester, “o Evangelho de Tomé é uma coleção bastante primitiva de Ditos que precede Q e
nele foi incorporada, sendo trazida a Edessa pelo Judas Tomé histórico, nada menos que
Judas, o irmão de Jesus que é mencionado em Marcos 6:3 e Mateus 13:55” (2008, p. 180).

67
Mais antigo compêndio subsistente de diretrizes da igreja cristã, de acordo com Koester, e que é a “prova clara
da tentativa de erigir uma barreira contra a expansão do entusiasmo religioso por meio de ensinamentos morais
judaicos tradicionais” (2005, p. 173-174).
68
Os escritos joaninos a que se refere Quispel, quer dizer, o Quarto Evangelho, são um caso que necessita ser
analisado separadamente. Sobre as características sui generis desse evangelho, ver 2.8.
69
Sobre a datação de Tomé e local de proveniência da comunidade, ver 2.8.
146

Por conseguinte, se os “reacionários” levam fé que “tudo na Bíblia inspirada é


autêntico, mas que nada é autêntico na tradição livre”, Köester é “extremamente crítico em
relação aos quatro evangelhos do Novo Testamento e extremamente crédulo no que diz
respeito a Tomé” (2008, p. 180).
E o ser crédulo significa aventar a hipótese de que os Ditos de Jesus encontrados nos
assim chamados Evangelhos Gnósticos e outras literaturas gnósticas não podem ser tratados
como se fossem invenções literárias ou construções secundárias. Antes, desse farto material
podem-se discernir “alguns ditos que pertencem a um estágio bem primitivo do
desenvolvimento e transmissão das falas de Jesus” (2008, p. 180).
Quispel rechaça, peremptoriamente, essa proposição. E aproveita o ensejo para assinalar
que, para ele, Tomé “longe de ser um escrito mais antigo que Q, é uma antologia baseada em
dois Evangelhos apócrifos do século II E.C. e em um escrito Hermético que deram a Tomé
um teor aparentemente gnóstico” (2008, p. 181).
A fim de demonstrar sua hipótese, ou seja, Tomé serviu-se de um evangelho judeu-
cristão como fonte, Quispel recorre ao Dito 68 que faz menção, conforme sua leitura, à fuga
de Jerusalém para Pela. Assim, o Jesus de Tomé teria dito (grifos da transcrição):

Ev. Tomé 68: “Jesus disse: ‘Felizes são vocês quando são odiados e
perseguidos: e vocês encontrarão um lugar onde não serão perseguidos’”.

Com efeito, Quispel sustenta que esse Dito não foi “inventado ou formulado pelo autor
de ‘Tomé’, mas é oriundo da tradição” e isso fica evidenciado em uma referência encontrada
nos textos de Clemente de Alexandria que “cita certos cristãos heterodoxos que pervertiam os
evangelhos” e que diziam a respeito de si:

Felizes os perseguidos por minha causa, pois encontrarão um lugar onde não
serão perseguidos (Clemente, Stromata, IV, VI, 41, 2).

Em apoio a essa relação entre Dito de Tomé e cristãos heterodoxos, Quispel recupera
uma descrição de Eusébio de Cesareia segundo a qual judeu-cristãos de Jerusalém não se
envolveram diretamente na Guerra dos Judeus contra Roma, porém emigraram para Pela
(Macedônia) antes da explosão das hostilidades70. Ainda conforme Eusébio, a fuga se deveu a
um oráculo que, conforme acredita Quispel, seria nada menos que o Dito 68 (2008, p. 183).

70
Martin Goodman esclarece que os sessenta anos seguintes à incorporação da Judeia ao império romano, em 6
E.C., “testemunharam muitas crises no relacionamento da população judaica com o governo romano” (1994, p.
147

Juntando essas evidências, Quispel defende que o Dito em Tomé reflete uma versão
judeu-cristã das bênçãos de Jesus aos perseguidos que circulava, possivelmente, antes da
composição do Evangelho. Cumpre ressaltar, no entanto, que há uma considerável diferença
entre uma versão judeu-cristã de uma fala de Jesus e um evangelho judeu-cristão que serviu
de texto-base para o autor de Tomé.
Para uma boa parte dos críticos de Quispel, não faz sentido postular o uso de
documentações pelo autor de Tomé que não sejam os evangelhos canônicos. Implica dizer, é
nas relações de dependência literária entre Tomé e os Sinóticos que se deve encontrar a
solução para a questão da composição daquele documento.
Com efeito, para esses estudiosos que contrariaram as proposições de Quispel, é a
liberdade do autor com suas fontes textuais, “típica dos gnósticos do segundo século” que
fornece o caminho mais seguro para decifrar a escrita de Tomé. Convém mencionar, a título
de exemplificação, a tese advogada por E. Haenchen (2002, p. 169). Conforme esse estudioso,
o autor de Tomé deve ser encarado como alguém que não somente escreveu tendo os
evangelhos canônicos a sua disposição e que pinçou aleatoriamente falas de Jesus para incluir
em seu evangelho, mas também como alguém que desenhou, sobre uma tradição exegética
gnóstica, suas próprias memórias e utilizou um esquema de associações verbais a fim de
estruturar seu evangelho.
No final dos anos 1950 e início dos 1960, Robert McLachlan Wilson fez objeções às
proposições de Quispel e abriu novos caminhos para a pesquisa de Tomé. Em sua visão,
quando se analisa o autor de Tomé (apud DeCONICK: 2002, p. 169-170):

Em algumas situações podemos, de fato, falar de uma harmonização


intencional ou não intencional, de palavras ou frases passando pela mente do
autor em associação com o que ele está escrevendo, porém, em outras, é
difícil imaginá-lo selecionando uma palavra aqui, um dito ali, e, além disso,
conservando parte de outro dito para uso em um contexto maior.
Explanações que possam ser válidas devem levar em consideração o que
podemos aprender dos métodos do escritor e as citações livres a partir das
memórias aparecerão mais próximas de sua marca do que o uso extensivo do
cortar e colar.

15). Os textos do período atestam que distúrbios esporádicos irrompiam e “desde os primeiros anos 50 a
atmosfera de violência propagou-se à capital, onde homens com punhais, sicarii, se escudavam nas multidões de
peregrinos para aterrorizar a população urbana” (idem, p. 16). A tensão crescente explodiu de vez nos anos 60 e,
conforme Goodman, a guerra “durou de 63 a 73 ou 74, quando o último bolsão de resistência em Massada foi
finalmente subjugado” (idem, p. 17).
148

Ao sugerir essa linha de raciocínio, Wilson facilitou insights entre os estudiosos de


Tomé que passaram a conjeturar em termos da utilização de uma ou mais de uma coleção de
ditos de Jesus, mais do que evangelhos completos como fontes, abrindo espaço, dessa
maneira, para que tradições orais viessem a ser incluídas no conjunto de material acessado
pelo autor de Tomé.
Muitos pesquisadores, ressalta DeConick, deixaram em aberto a possibilidade de uma
redação tardia do evangelho, apresentando, assim, uma revisão do modelo anterior. Com isso,
surgiu a figura de um redator que retrabalhou a camada literária mais básica de Tomé,
conferindo-lhe seu aspecto atual.
Tal proposta pode ser visualizada na ilustração a seguir (2002, p. 171):

FONTES

ORAIS ESCRITAS

Autor

Evangelho
Original de Tomé

Novos ditos
sobre glosas
Redator interpretativas

Evangelho
de Tomé Completo

Diagrama 2: Modelo Tradicional com Redator


149

Como se pode notar, o Modelo Tradicional com Redator é justamente o que Crossan
imagina tenha sido o processo de composição de Tomé e que consta na abertura desse tópico.
Créditos sejam dados, porém, a William Arnal que expandiu esse Modelo e, concluindo que
Tomé, irrecusavelmente, possuindo uma “complexidade histórica” e um “ambiente social”
muito similar ao que se supõe se deu com o Evangelho Q, deve ter sido um documento
composto em camadas literárias (1995, p. 474).
Assim, ao lançar seu percuciente olhar sobre Tomé, Arnal argumenta que esse
documento copta “mostra um grau considerável de inconsistência formal e temática” que, por
sua vez, é parecido com o que se observa em Q gerando, por conseguinte, dificuldades para os
estudos de crítica da redação (1995, p. 475).
Por conta dessa inconsistência no seu todo, Arnal pontua que as tradições
compreendidas em Tomé devem ter derivado de mais de uma origem. Contudo, essa
constatação nada acrescenta ao processo por meio do qual as tradições foram coletadas. Não
obstante, podem-se divisar suas tendências principais nesse documento e que “podem ser
distinguidas uma da outra de acordo com bases formais e temáticas e que, individualmente,
formam, cada uma, uma entidade coerente em si mesma” (1995, p. 476). Com efeito, “é a
evidência de um esforço para impor consistência redacional ao documento como um todo que
nos permite discernir a mão de um redator e distingui-la dos vestígios de uma coleção mais
antiga que ele modificou” (1995, p. 476).
Dos 114 Ditos de Tomé, Arnal considera que a parte mais expressiva pode ser
caracterizada, de forma idêntica aos Ditos do Evangelho Q, como um conjunto de “ditos de
Sabedoria”. Quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo. Nessas unidades, ele frisa, “a
creia71 encapsula uma pequena variedade de formas associadas ao gênero sabedoria” (1995,
p. 476) e que vêm sistematizadas no quadro abaixo:

Forma Ditos
Parábola 9, 20, 57, 63-65, 76, 96-98, 107,
109
Imperativos com cláusulas 5, 6, 14
motivadoras introduzidas pela
expressão “pois”

71
A análise retórica do assim chamado Novo Testamento, executada debaixo da influência dos estudos sobre a
retórica antiga, ensejou o emprego crescente, por parte dos especialistas, do termo “creia” para qualificar os ditos
de Jesus. Consoante Vernon K. Robbins, “uma creia é uma declaração concisa ou ação talentosa atribuída a um
personagem específico ou a qualquer coisa análoga a um personagem” (1992, p. 545).
150

Imperativos sem cláusulas 36, 42, 95, 110


motivadoras
Aforismos simples 26, 32, 34, 35, 86 [?]
Aforismos tematicamente agrupados 31, 45, 47
Bem-aventuranças 54, 58

Arnal percebe, igualmente, certa coerência temática nesse material. Permeando esses
Ditos há uma “preocupação com o entendimento correto da realidade; uma apreensão
apropriada do mundo e de seu significado e do comportamento humano adequado” (1995, p.
476). Convém destacar que todas, ou quase todas, as observações feitas nesse material
incitam, consoante Arnal, a uma inversão das expectativas normais – “sem ser esotéricas”,
como ele faz questão de ressaltar – muito embora também façam um apelo ao senso comum e
a uma observação sábia. A ênfase posta sobre a sensatez ou discernimento penetrante serve
como apoio para alegações implícitas de que as coisas não são o que aparentam ser. Nesse
caso, por exemplo, o Dito 5:

“Jesus disse: ‘Conheça o que está diante de sua face, e o que está oculto para
você ser-lhe-á revelado. Pois nada há oculto que não seja revelado’”.

Esse mesmo material continuamente expõe e frustra as expectativas convencionais e


observações superficiais, incluindo as pertinentes a discussões especificamente “religiosas”:

Ev. Tomé 31: “Jesus disse: ‘Um profeta não é aceitável na própria aldeia do
profeta; um médico não cura aqueles que conhecem o médico’”.

Em oposição a esse estrato sapiencial, Arnal postula a existência de um corpo de ditos


que se caracteriza por sua orientação vigorosamente gnóstica, manifestada em sua invocação
de motivos mitológicos gnósticos72. Nesse sentido, deve-se destacar como um traço marcante
desses ditos sua: (a) “obscuridade deliberada e o uso corolário de pontos de referência
extratextuais”, (b) “presença de discípulos nomeados”, (c) “tendência para a forma de
diálogos”, (d) “a ofuscação deliberada do sentido de ditos pela repetição da mesma ou de
palavras similares, mas com significados diferentes” e (e) “o pareamento, mais do que o
agrupamento, de ditos relacionados” (1995, p. 478).
Convém frisar as bases por meio das quais Arnal estipula que Tomé se tratava de um
documento composto por ditos sapienciais e que, posteriormente, recebeu a intervenção de

72
Acerca da discussão sobre Gnose e suas relações com os cristianismos, ver 2.7.
151

uma segunda mão que adicionou ditos gnósticos. Assim, em primeiro lugar, Arnal invoca a
história da tradição. Ou seja, “essa ordem faz mais sentido em sua progressão de uma
sabedoria reversa para o gnosticismo”. Em segundo lugar, “a interpretação do documento
como um todo é controlada pelo incipit73 e pelos dois primeiros ditos que direcionam o leitor
no sentido de uma ‘hermenêutica da penetração’ para tudo o que se segue”. Ademais, como
sublinha Arnal, é “precisamente por meio desse artifício que a redação gnóstica é capaz de
subsumir e reinterpretar o material sapiencial de acordo com sua própria perspectiva”. E, em
último lugar, “embora os temas que caracterizam cada estrato pareçam ser distintos uns dos
outros, há glosas secundárias ao material sapiencial a partir de uma perspectiva gnóstica”.
Saindo um pouco da teorização, cumpre conferir um exemplo, fornecido pelo próprio
Arnal, de como uma segunda mão se fez presente em Tomé conferindo-lhe um tom gnóstico
sobre um material sapiencial. Para essa exemplificação, Arnal recorre ao Dito 16:

Jesus disse: “Talvez as pessoas julguem que vim para impor paz ao mundo.
Não sabem que vim para impor conflitos sobre a terra: fogo, espada, guerra.
Pois haverá cinco em uma casa: haverá três contra dois e dois contra três, pai
contra filho e filho contra pai, e permanecerão sozinhos”.

Em seguida, ele procede a uma análise que, para a facilitação do entendimento, será
dividida em passos:
1º Passo: Arnal chama a atenção para o fato desse Dito de Tomé ter paralelo nos
evangelhos canônicos de Mateus (10:34-36) e de Lucas (12:51-53). Nesse caso, convém
salientar que o paralelo é, de fato, com o Evangelho Q, porém, sem qualquer motivo aparente,
o pesquisador dispensou fazer referência a esse respeito. As passagens aludidas vêm a seguir,
respectivamente:

Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada.
Com efeito, vim contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora à
sua sogra. Em suma: os inimigos do homem serão seus próprios familiares.

Pensais que vim para estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas
a divisão. Pois doravante, numa casa com cinco pessoas, estarão divididas
três contra duas e duas contra três. Ficarão divididos: pai contra filho e filho
contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora
contra sogra.

73
O incipit de Tomé, ou seja, seu prólogo, que é, em outras palavras, o início do documento, diz: “Estas são as
sentenças ocultas que o Jesus vivo pronunciou e Judas Tomé, o Gêmeo, registrou”.
152

2º Passo: Arnal advoga que o Dito de Tomé, “muito claramente”, vira de cabeça para
baixo a “lógica da falta de confiabilidade das aparências e a frustração das expectativas
convencionais”.
3º Passo: O estudioso reitera a noção de que o Dito só pode fazer parte integrante do
estrato sapiencial e apenas dentro dele pode ser inteligível.
4º Passo: A evidência de uma segunda mão – “gnóstica” – está na cláusula final do Dito
(“e permanecerão sozinhos”) que, para todos os efeitos, é inteiramente supérflua e não
apresenta paralelos nos evangelhos canônicos.
5º Passo: Arnal conclui, persuasivamente, que essa adição secundária, ausente nos
evangelhos canônicos, guarda coerência “com o estrato gnóstico em sua obscuridade e em seu
foco em permanecer ‘solitário’”.
Essa exemplificação de sua ideia enseja a elaboração da ilustração abaixo (2002, p.
174):

FONTES

ORAIS ESCRITAS

Autor

Evangelho
Original de Tomé
Ditos de Sabedoria
Ditos gnósticos
Diagrama 3: Modelo de Estratificação tipo eQglosas
Redação interpretativas

Evangelho
de Tomé Completo

Diagrama 3
153

Um observador atento e prudente poderia redarguir Arnal e questioná-lo se o inverso


também não poderia ser verdadeiro. Isto é, em vez de uma segunda mão de cunho gnóstico
intervindo no estrato sapiencial, por que não se pode afirmar que Tomé era um documento
literário gnóstico e que sofreu a intromissão de um redator alinhado com a corrente
sapiencial?
Simplesmente porque, perscrutando os Ditos de Tomé, não se consegue identificar em
quaisquer das passagens de redação cujo impulso é marcadamente gnóstico glosas de
orientação sapiencial. Na opinião de Arnal, aliás, “essa interferência unidirecional indica
conhecimento de um estrato pela mão responsável pelo outro e ambos, assim, confirmam o
modelo de estratificação” e ratificam “o caráter secundário do corpus de ditos caracterizados
por motivos gnósticos” (1995, p. 480).
DeConick sublinha, por sua vez, que esse modelo padece de dois problemas centrais: (a)
ele não dá conta de por que um autor escolheria incluir, em seu evangelho, “ditos conflitantes
e duplicações tiradas de suas fontes orais e escritas ou coletadas da extrema diversidade de
suas tradições religiosas” e (b) não apresenta “habilidade para explicar por que o autor
escolheria estruturar seu evangelho numa forma tão frouxa” (2002, p. 177).
Para ela, portanto, todas essas tentativas de interpretação causaram uma pane,
bloqueando a compreensão do material tomesino. Em razão, segundo a pesquisadora, de se
forçar e confundir o esoterismo antigo judaico com o gnosticismo e, principalmente,
empenhar-se fortemente em uma leitura gnóstica do texto. Por sua vontade, cumpre descartar
as interpretações que advogam ser Tomé uma coletânea de ditos sapienciais não-apocalípticos
primitivos e encarar como um fato que este documento é muito mais complexo do que se
supõe e como vem sendo abordado.
Por conseguinte, ela defende a possibilidade de uma das fontes originais em que se
baseou Tomé adveio de tradições apocalípticas judaicas (2002, p. 179). Pensando esse
Evangelho por esse prisma, convém desenvolver um novo modelo composicional capaz de
explicar satisfatoriamente e solucionar os problemas expostos nos modelos previamente
apresentados.
No modelo que ela propõe, necessita-se esclarecer adequadamente a presença de
distintas tradições no material em análise. Assim, identificam-se materiais judeu-cristãos
primitivos (Ditos 6, 12, 27b), ditos encráticos (27a, 49, 110), tradições herméticas de
sabedoria (3b, 56, 57) e oráculos apocalípticos judaicos com ênfase escatológica (11a, 16,
111a) e mística (15, 37, 59). Conforme suas considerações, as quais não há como rejeitar, “a
154

presença dessas diversas tradições explicam-se pela combinação de várias fontes orais e/ou
escritas” (2002, p. 179).
Corolário dessa constatação, impõe-se a necessidade de se colocar em suspensão a
noção de um único e singular autor para esse documento. Nas palavras de DeConick, caso
isso não seja feito, enquanto procedimento metodológico, restará a decisão de se pensar o
autor de Tomé como um indivíduo acometido de esquizofrenia ou algo semelhante. Com
efeito, as alegadas contradições que se notam entre alguns ditos tomesinos encontrariam uma
explicação plausível recorrendo-se a suposição de uma múltipla autoria. Quer dizer,
“diferentes pessoas modificando o evangelho conforme a progressão do tempo a fim de
preencher as demandas de sua comunidade em processos de mudanças e de suas teologias em
desenvolvimento” (2002, p. 181).
Em que se lastreia DeConick para sustentar sua ideia de múltipla autoria? Na sua
perspectiva, há evidências inegáveis nas glosas interpretativas que se notam em alguns Ditos
como, por exemplo, os que seguem grifados abaixo:

Dito 16c
Jesus disse: “Talvez as pessoas julguem que vim para impor paz ao mundo.
Não sabem que vim para impor conflitos sobre a terra: fogo, espada, guerra.
Pois haverá cinco em uma casa: haverá três contra dois e dois contra três, pai
contra filho e filho contra pai, e permanecerão sozinhos”.

Dito 100c
Mostraram a Jesus uma moeda de ouro e lhe disseram: “Os homens de César
exigem impostos de nós”. Ele lhes disse: “deem a César as coisas que são de
César, deem a deus as coisas que são de deus, e me deem o que é meu”.

Ademais, o modelo composicional que ela advoga precisa ser “historicamente provável
e alinhado com o que se sabe a respeito da composição de outros textos cristãos primitivos do
mesmo período” (2002, p. 182). Nesse sentido, ela recorda que os textos que caíam nas mãos
dos cristãos eram constantemente modificados expurgando-se ou alterando-se materiais que
não agradassem ao desenvolvimento de suas teologias ou adicionando-se itens explicativos ao
material mais antigo (idem, idem).
Desnecessário relembrar o que foi desdobrado no primeiro capítulo desta Tese. Quer
dizer, assumindo-se a Prioridade Marcana, os autores dos evangelhos de Mateus e de Lucas
não parecem ter ficado nem um pouco constrangidos em mexer no texto que tinham como
“fonte primária”. Convém adicionar como elemento comprobatório mais dois exemplos que
corroboram a intervenção sem pudor nos textos ditos “cristãos” pelos próprios “cristãos”.
155

Em primeiro lugar, as revisões no evangelho de Marcos que aconteciam já no século II


uma vez que Clemente de Alexandria menciona saber da existência de três versões desse
texto: a para noviços, a espiritual e a dos Carpocracianos (SMITH, 1973). Em segundo, a
evidência manuscrita de que o evangelho de Marcos teve um final acrescentado, sugerindo,
assim, que o primeiro registro escrito das atividades de Jesus de Nazaré foi tudo menos
estável.
De fato, os especialistas nesse documento admitem, com bastante segurança, que os
versos numerados de 9 a 20 do último capítulo são acréscimos de uma segunda mão a esse
texto. Com efeito, os tradutores da Bíblia de Jerusalém, tão ciosos de preservar a integridade
do material evangélico, não hesitam em anotar (1985, p. 1785, n. “a”):

O trecho final de Mc (vv. 9-20) faz parte das Escrituras; é tido como
canônico. Isso não significa necessariamente que foi escrito por Mc. De fato,
põe-se em dúvida que esse trecho pertença à redação do segundo evangelho.
– As dificuldades começam na tradição manuscrita. Muitos mss, entre eles o
do Vaticano e o Sinaítico, omitem o final atual.

No entanto, eles precisam de uma saída que salvaguarde o texto canônico. Assim, na
mesma nota de rodapé, acrescentam que o que há é uma suposição:

...de que o final primitivo desapareceu por alguma causa por nós
desconhecida e de que o atual fecho foi escrito para preencher a lacuna. (...)
Se não se pode provar ter sido Mc o seu autor, permanece o fato de que ele
constitui, nas palavras de Swerte, “uma autêntica relíquia da primeira
geração cristã”.

Acerca dessa situação, Brown reconhece que o texto, sem os últimos versos, termina de
forma “perturbadora” (2004, p. 232). Tanto que, ele prossegue, “o problema foi percebido na
Antiguidade, pois manuscritos de Marcos testemunham três finais diferentes acrescentados
por copistas, presumivelmente numa tentativa de corrigir a aspereza de Mc 16,8” (2004, p.
232).
Debalde essa constatação histórica, Brown opta por contornar o problema sublinhando
que o final “mais bem atestado” é o em que os versos acrescentados aparecem, e que “vem
impresso como parte do texto de Marcos em muitas Bíblias” (2004, p. 232). Ora, o falecido
biblista tenta, como se diz popularmente, tapar o sol com uma peneira. E nesse seu caso, uma
peneira esburacada.
O Quarto Evangelho igualmente apresenta sinais claríssimos de uma segunda mão
inserindo adendos ao texto. Como até o mais conservador dos intérpretes reconhece, tudo o
156

que vem em seguida a 20:31 constitui um acréscimo que, possivelmente, tentou dar conta de
uma crise que se instalou na comunidade como resultado da morte do Discípulo Amado, ao
qual, assim supõem os acadêmicos acerca da crença dessa comunidade, nunca morreria.
DeConick aponta ainda mais uma forte circunstância que favorece a noção da constante
instabilidade do material literário dito “cristão”. E esse seu exemplo emerge da comparação
entre os próprios manuscritos de Tomé (P.Oxy. 1, P.Oxy. 654, P.Oxy. 655 e a versão copta)
no qual se descobrem variantes textuais. Diferenças que podem ser atribuídas a erros por parte
dos copistas ou a falhas na tradução (2002, p. 184).
Convém adicionar mais um exemplo que, de certa maneira, ratifica a noção sugerida por
DeConick. Esse exemplo é extraído do testemunho de Hipólito quando faz referência aos
naassenos e o seu uso de um evangelho “segundo Tomé”. Conforme Hipólito, esse grupo
transmitia um Dito em que se afirmava: “Aquele que me procura me encontrará na criança de
sete anos. Para esse, oculto no décimo quarto eon, eu sou revelado”.
O Dito que mais se aproxima a esse é encontrado no Evangelho copta de Tomé, em seu
Dito 4, mas com a seguinte redação:

Jesus disse: “A pessoa na velhice não hesitará em perguntar a uma


criancinha de sete dias sobre o lugar da vida, e essa pessoa viverá. Pois
muitos dos primeiros serão os últimos e se tornarão um só”.

Em suma, a história da composição de Tomé aponta para um documento que não veio a
ser redigido por um único autor e num esforço contínuo e ininterrupto. Aceitamos, portanto,
que esse texto antigo consiste de uma coletânea de Ditos que foi tomando corpo à medida que
o tempo ia passando e conforme iam emergindo indagações que requeriam respostas.
DeConick considera razoável admitir não ser totalmente implausível que (2002, p. 185):

À proporção que novos convertidos se juntavam ao grupo originário, aqueles


traziam consigo novas ideias, novas interpretações, novas tradições e até
mesmo ditos de Jesus que eles poderiam ter ouvido da parte de cristãos de
outras comunidades ou da parte de profetas andarilhos que, algum dia
qualquer, hajam parado em suas comunidades e os ensinado.

Com esteio nessas suposições, pode-se pensar na história da composição do Evangelho


de Tomé consoante a ilustração a seguir (2002, p. 186):
157

FONTES

ORAIS ESCRITAS

Autor

Núcleo do Evangelho
de Tomé
Novos Ditos e
Crise ou interpretações
conflito dos Ditos

Primeira Expansão
Evangelho de Tomé

Novos Ditos e
Crise ou interpretações
conflito dos Ditos

Expansão seguinte do
Evangelho de Tomé

Novos Ditos e
interpretações
dos Ditos

Continuação das
expansões em resposta às
crises e conflitos

Evangelho de Tomé
definitivo

Diagrama 4: Modelo de Expansão Contínua do Material

O Modelo de Expansão Contínua, sugerido por DeConick, implica pensar a composição


de Tomé como um movimento dinâmico e interativo à proporção que o texto passa por
158

constantes revisões conforme mais pessoas, de diferentes proveniências, aderem à


comunidade de crenças. Por conseguinte, o texto que sobreviveu ao tempo – a versão copta –
pode ser a resultante de décadas de ações interpretativas que engendraram crises e/ou
conflitos e a busca por sua resolução de forma satisfatória.
Uma questão que naturalmente emerge é a de se há como filtrar os Ditos tomesinos da
versão encontrada em Nag Hammadi e apontar as camadas de tradição em seu interior. Nesse
ponto, continuamos sendo norteados pelos insights de DeConick. A pesquisadora criou, para
esse fim, um conjunto de princípios capaz de discernir as etapas de composição de Tomé.
Assim, sua análise pauta-se pela identificação de três princípios básicos: (i) desenvolvimento;
(ii) capacidade de resposta e (iii) clientela.

2.5.1. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO

O autor primitivo do Evangelho orientou-se, provavelmente, pelas mesmas diretrizes


empregadas por outros autores, ou seja, cotejou discursos de e sobre o profeta Jesus e os
conservou numa espécie de catálogo. Essa seria a camada mais antiga. Com o decorrer do
tempo, esse material originário desenvolveu-se com o intuito de instruir os membros, antigos
e novos, da comunidade de crenças ou, como pondera DeConick, para polemizar contra
visões opostas que surgiam aqui ou ali. Esse princípio, por sua vez, subdivide-se em dois: (a)
literário e (b) ideológico.
No que se refere ao desenvolvimento literário, postula-se que este é discernido por meio
de proposições interpretativas e alegorias acrescentadas aos Ditos. Assim, as indagações
atribuídas aos discípulos muito frequentemente representam questões e preocupações que
tomaram lugar, consoante DeConick, por volta do final do primeiro século. Como exemplo
desse tipo de desenvolvimento, a pesquisadora sugere o Dito 53:

Seus seguidores disseram-lhe: “A circuncisão é útil ou não?” Ele lhes disse:


“Se fosse útil, os pais das crianças as teriam produzido já circuncidadas em
suas mães. A verdadeira circuncisão no espírito tornou-se valiosa em todos
os aspectos”.

No que tange ao desenvolvimento ideológico, ditos inteiros concernentes a temas como


cristologia e soteriologia muito provavelmente fazem parte de camadas mais recentes do
material textual e, por essa razão, não provém do núcleo originário de Tomé.
159

2.5.2. PRINCÍPIO DA CAPACIDADE DE RESPOSTA

Por esse princípio, a dinâmica vivencial da comunidade justifica a inclusão de Ditos no


interior do Evangelho. Nesse sentido, pressupõe-se que a comunidade de crenças está em
contato com outras comunidades e/ou instituições sociais que em momentos diversos entra em
colisão, ocasionando dissonâncias cognitivas e tentativas de se achar uma imediata resposta.
Com efeito, pode-se operar com a noção de crises e seu manejo no sentido de abrandar seus
efeitos. Essa proposta da pesquisadora é bem interessante e, de certa maneira, bastante
elucidativa.
Assim, ela acredita que determinadas falas atribuídas ao Jesus de Tomé originaram-se
como uma forma de resposta a crises que se instalaram em paralelo a crises outras que as
demais comunidades de crenças também vivenciavam. Nesse sentido, podem-se citar os
conflitos que emergiram em função do “atraso da parusia e do influxo de gentios nas
comunidades” (2002, p. 190).
Por conseguinte, a pesquisadora advoga que se façam comparações entre os ditos de
Tomé e outros documentos cristãos primitivos mesmo nos casos em que não se aventa
quaisquer relações de dependência ou independência literárias. Em sua perspectiva, pode-se
conseguir um vislumbre de como a comunidade tomesina encarou e solucionou um conflito
conforme suas especificidades ideológicas. Para DeConick, a história de Tomé “deve ser
reconstruída contextualmente e não em um vácuo” (idem, idem).
Há lógica em seu argumento de que os Ditos 6a, 14a, 27 e 53 são o resultado do
impacto provocado pela inclusão de gentios à comunidade tomesina e seus questionamentos
acerca da observância da Torah:

Dito 6a
Seus seguidores perguntaram-lhe e disseram-lhe: “Quer que jejuemos?
Como devemos rezar? Devemos dar esmolas? Que tipo de alimentação
devemos observar?”

Dito 14a
Jesus disse-lhes: “Se jejuarem, incorrem em pecado, e se orarem, serão
condenados, e se derem esmolas, prejudicarão os seus espíritos”.

Dito 27
“Se não jejuarem do mundo, vocês não encontrarão o reino. Se não
observarem o sabá como sabá, não verão o pai”.

Dito 53
Seus seguidores disseram-lhe: “A circuncisão é útil ou não?” Ele lhes disse:
“Se fosse útil, os pais das crianças as teriam produzido já circuncidadas em
160

suas mães. A verdadeira circuncisão no espírito tornou-se valiosa em todos


os aspectos”.

Por outro lado, a pesquisadora sustenta ter havido situações de conflito específicas ao
contexto da comunidade e que não ecoam tensões ocorridas nas demais comunidades de
crenças cristãs. De qualquer maneira, esse conflito ensejou respostas e tais respostas
materializaram-se na forma de Ditos.
DeConick assevera que dois Ditos foram adicionados ao núcleo original de Tomé em
decorrência de uma crise que brotou no interior da comunidade e que necessitava de uma
urgente resposta. Com efeito, os Ditos 12 e 13 refletiriam duas ameaças ao posto de liderança
da comunidade:

Dito 12
Os seguidores disseram a Jesus: “Sabemos que você nos deixará. Quem será
nosso líder?” Jesus lhes disse: “Não importa onde estiverem, procurarão
Tiago, o Justo, em consideração de quem foram criados o céu e a terra”.

Dito 13
Jesus disse a seus seguidores: “Comparem-me com algo e digam-me com
que me assemelho”.
Simão Pedro disse-lhe: “O senhor é como um mensageiro justo”.
Mateus disse-lhe: “O senhor é como um sábio filósofo”.
Tomé disse-lhe: “Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com que
o senhor se assemelha”.
Jesus disse: “Não sou seu mestre. Porque você bebeu, embriagou-se na fonte
borbulhante que ofereci”.
E se afastou com ele e lhe disse três sentenças.
Quando Tomé voltou para seus amigos, estes lhe perguntaram: “O que Jesus
lhe disse?”
Tomé lhes disse: “Se eu lhes expuser uma das sentenças que ele me disse,
vocês pegarão pedras e me apedrejarão, e das pedras virá fogo e os
consumirá”.

Vale lembrar que esses dois Ditos estão entre os que mais suscitam comentários por
parte dos especialistas em Tomé. Com efeito, sua justaposição é intrigante. Risto Uro, acerca
dessa curiosa circunstância, sublinha, a nosso ver com acerto, que a questão do quão
exatamente a autoridade desses dois sujeitos estaria relacionada “não recebe [no documento]
qualquer explanação e é deixada [em aberto] para que o leitor decida” (2003, p. 80).
Ademais, os dois Ditos, se tratados como memórias em torno da autoridade maior da
comunidade tomesina, ensejam outras indagações. Como já referido anteriormente, Crossan
interpreta o Dito 12 como um indício de que o Evangelho de Tomé foi composto sob a
influência de Tiago. Entretanto, com todo o respeito a ele, convém ouvir a opinião de
161

Patterson segundo a qual não faz sentido essa construção de uma das fases pelas quais a
comunidade tomesina vivenciou.
Com efeito, ele pondera, há que se apresentar uma boa razão para que o autor de Tomé
tenha optado por manter o Dito 12 apenas para, no Dito seguinte, ver a autoridade de Tiago
ser suplantada pela de Tomé. Mais que isso, qualquer que tenha sido a razão por sua
manutenção no texto, resta ainda explicar porque no Dito 13, que claramente diminui a
autoridade tanto de Pedro quanto de Mateus, Tiago sequer é mencionado. Assim, Patterson
sustenta que os dois Ditos “representam afirmações paralelas, mas não necessariamente
afirmações indicativas de alguma espécie de disputa”, levando-o a concluir ser provável que
os sujeitos que adotavam esse evangelho “estimavam a ambos e fixaram um lugar de
importância a cada um em seus mitos de origem” (1993, p. 116, n. 13)74.
Esse adendo, portanto, oferta outro ponto de vista acerca dos Ditos que DeConick
considera serem um indício de conflito de autoridade na comunidade tomesina, sinalizando
que ainda há muita tinta a ser vertida na busca de uma compreensão consensual dos meandros
da história da composição do Evangelho de Tomé.

2.5.3. PRINCÍPIO DA CLIENTELA

Por meio desse princípio, DeConick sustenta que a ampliação do círculo de integrantes
da comunidade forçou o desenvolvimento de Ditos que refletiam “as necessidades, os desejos,
as crenças e as interpretações da clientela em mudança” (2002, p. 191). Assim, Ditos de
sabedoria hermética foram introduzidos em Tomé em decorrência do influxo de uma clientela
de sujeitos que, além de familiarizados com a doutrina hermética, consideravam Jesus como a
nova voz de Hermes (idem, idem). Consoante seu raciocínio, tais Ditos, por não pertencerem
ao núcleo original do Evangelho, podem ser removidos da coletânea.
Exemplos de Ditos herméticos que entraram tardiamente no texto como resultado da
nova clientela:

74
Convém mencionar que Tiago ocupa lugar de destaque em um livro também encontrado na Biblioteca de Nag
Hammadi. Esse referido livro não possui indicação de autoria, mas os especialistas que o analisaram
denominaram-no “Apócrifo de Tiago” em razão de ele ser o personagem principal nos diálogos que o
caracterizam. Com efeito, se o prólogo de Tomé afirma que as sentenças nele contidas são declarações ocultas
pronunciadas por Jesus e que Tomé as registrou por escrito, o “Apócrifo” alega ser um dos dois livros secretos
revelados “a Pedro e a Tiago” e escrito por este último “em hebraico” (CARTLIDGE, DUNGAN, 1994, p. 161).
162

Dito 7
Jesus disse: “Feliz é o leão que o ser humano comerá, pois assim o leão se
torna humano. E tolo é o ser humano que o leão comerá, e o leão se tornará
humano”.

Dito 29
Jesus disse: “Se a carne foi criada por causa do espírito, isto é uma
maravilha, mas se o espírito foi criado por causa do corpo, isto é maravilha
das maravilhas. No entanto, maravilha-me como essa grande riqueza veio a
estar nesta pobreza”.

Acerca do Dito 7, há um consenso que ele deve ter sido adicionado ao texto tomesino
por volta do século III ou IV E.C. Postula-se, aliás, que ele teria sido cunhado por algum
adepto vinculado ao encratismo egípcio (PATTERSON, 1993, p. 115, n. 10).
Aplicando esses princípios ao material de Tomé, DeConick realiza uma triagem nas
sentenças e, por meio da tabela que segue, distingue o que fazia parte do núcleo do Evangelho
do que veio a ser inserido posteriormente (2002, p. 193):

Introdução Resposta, Clientela 58 Dito Original


1 Desenvolvimento 59 Desenvolvimento, Resposta
2 Dito Original 60a Dito Original
3a Resposta 60b Desenvolvimento, Resposta,
Clientela
3b Clientela 61a Dito Original
4a Desenvolvimento, Clientela 61b Desenvolvimento, Resposta,
Clientela
4b Dito Original 62a Dito Original
5 Dito Original 62b Dito Original
6a Desenvolvimento, Resposta 63 Dito Original
6b Dito Original 64a Dito Original
6c Dito Original 64b Desenvolvimento, Clientela
6d-e Desenvolvimento 65 Dito Original
7 Clientela 66 Dito Original
8 Dito Original 67 Clientela
9 Dito Original 68a Dito Original
10 Dito Original 68b Desenvolvimento
11a Dito Original 69a Dito Original
163

11b Clientela 69b Clientela


12 Desenvolvimento, Resposta 69c Dito Original
13 Desenvolvimento, Resposta 70 Desenvolvimento, Clientela
14a Desenvolvimento, Resposta 71 Dito Original
14b Dito Original 72 Dito Original
14c Resposta 73 Dito Original
15 Dito Original 74 Dito Original
16a Dito Original 75 Clientela
16b Dito Original 76 Dito Original
16c Desenvolvimento, Clientela 77 Desenvolvimento, Resposta,
Clientela
17 Dito Original 78 Dito Original
18 Desenvolvimento, Resposta, 79 Dito Original
Clientela
19 Desenvolvimento, Resposta 80 Clientela
20 Dito Original 81 Dito Original
21a Clientela 82 Dito Original
21b,d Dito Original 83 Resposta
21c Desenvolvimento, Clientela 84 Resposta
21e Dito Original 85 Resposta, Clientela
22 Clientela 86 Dito Original
23a Dito Original 87 Clientela
23b Clientela 88 Resposta
24a Resposta 89 Dito Original
24b Dito Original 90 Dito Original
25 Dito Original 91 Dito Original
26 Dito Original 92 Dito Original
27 Resposta 93 Dito Original
28 Desenvolvimento, Resposta, 94 Dito Original
Clientela
29 Clientela 95 Dito Original
30 Dito Original 96 Dito Original
31 Dito Original 97 Dito Original
164

32 Dito Original 98 Dito Original


33a Dito Original 99 Dito Original
33b Dito Original 100a-b Dito Original
34 Dito Original 100c Desenvolvimento
35 Dito Original 101 Desenvolvimento, Clientela
36 Dito Original 102 Dito Original
37 Desenvolvimento, Resposta 103 Dito Original
38a Dito Original 104 Dito Original
38b Resposta 105 Clientela
39 Dito Original 106 Clientela
40 Dito Original 107 Dito Original
41 Dito Original 108 Desenvolvimento, Resposta
42 Dito Original 109 Dito Original
43 Resposta 110 Clientela
44 Dito Original 111a Dito Original
45 Dito Original 111b Desenvolvimento, Resposta,
Clientela
46 Dito Original 111c Desenvolvimento
47a Dito Original 112 Clientela
47b Dito Original 113 Desenvolvimento, Resposta
47c Dito Original 114 Clientela
48 Dito Original
49 Clientela
50 Resposta, Clientela
51 Desenvolvimento, Resposta
52 Desenvolvimento, Resposta
53 Desenvolvimento, Resposta
54 Dito Original
55 Dito Original
56 Clientela
57 Dito Original
165

Cumpre ter clareza, como a própria DeConick admite, que sua reconstrução é, do ponto
de vista histórico, plausível ainda que totalmente especulativa.

2.6. A CRISTOLOGIA DE TOMÉ

De acordo com James D. Dunn, “antes de Jesus, sequer existia ‘cristologia’, ou existia,
propriamente falando, unicamente nas diferentes formas de ‘expectativa messiânica’” (1989,
xii)75. Nesse sentido, confiando-se na proposição de Dunn, havia uma miríade de expectativas
em torno da vinda de um Messias em ambiente judaico. Por razões especiais, e que serão
discutidas, os adeptos do movimento inaugurado por Jesus de Nazaré adotaram como verdade
que aquele camponês judeu iletrado deveria ser para sempre lembrado e adorado como o
Cristo.
Convém assinalar, no entanto, que essa transformação de Jesus em Cristo transcende o
aspecto puramente religioso cabendo ser analisada como uma parte integrante e indissociável
da história social dos cristianismos. Dispensável dizer que, assim como as narrativas de
milagres e da ressurreição de Jesus, cristologia merecerá ser tratada como um processo
histórico de acordo com o qual os sujeitos não possuem controle sobre suas variáveis. Em
suma, não é enveredar por elucubrações e malabarismos exegéticos para atestar, por exemplo,
que Jesus era o Cristo e, por tal motivo, confirmava as profecias do Antigo Israel. Mas sim,
discorrer sobre os horizontes culturais que permitiram o nascimento dessa concepção.
Maurice Sachot sublinha com propriedade que “o cristianismo não nasceu pronto, como
Atena, que saiu toda armada da cabeça de Zeus, ou Adão, modelado no tamanho adulto pelas
mãos de Iahweh” (2004[1998], p. 11). Adiante, e não há como refutar esse seu postulado, a
definição do cristianismo não se separa do meio em que ele se desenvolveu. Em uma
argumentação consistente, Sachot declara (2004[1998], p. 12):

75
Dunn vem se notabilizando – ou assim ele alimenta o sonho – por tentar impingir sobre a comunidade
acadêmica a noção do “evento-Cristo” e, por consequência, do incomensurável impacto que isso causou em seus
seguidores mais próximos. Mais que isso, toda pesquisa do Jesus histórico ressente-se de falhas, evidentes para
ele, porém não reconhecidas pela maioria dos estudiosos. Não por acaso, seu mais recente livro, que tem a
pretensão de ofertar uma “nova perspectiva” acerca de Jesus, traz como subtítulo: “o que os estudos sobre o
Jesus histórico deixaram para trás”. Com efeito, para ele, é imperioso admitir que “não temos realmente
nenhuma outra fonte que ofereça uma imagem alternativa de Jesus ou que imponha o mesmo respeito que os
Evangelhos Sinóticos ao dar testemunho do impacto inicial provocado por Jesus” (2013, p. 38). Tal declaração
tem implicações que não podem deixar de ser discutidas.
166

Não só o cristianismo é efetivamente transformado pelo meio onde se


encontra, mas também ele o transforma por sua vez, a ponto de tornar
praticamente impossível, ao final, a distinção, na nova civilização que dele
resultou, entre o que é propriamente cristão e o que não é.

Assim, da mesma maneira que há um cristianismo para cada comunidade de crenças


haverá, inelutavelmente, uma cristologia para cada grupamento de aderentes aos muitos
movimentos de Jesus sem Jesus.

2.6.1. A FORMAÇÃO DAS CRISTOLOGIAS

Em algum momento, difícil de precisar, emergiu a noção de que Jesus, o filho de José e
de Maria, era o Cristo. Especula-se se tal percepção ocorreu já no decorrer do ministério
público de Jesus ou se foi uma elaboração que principiou logo após a sua terrível morte por
crucifixão. Implica dizer, pergunta-se se as cristologias precedem a escrita dos evangelhos ou
se são concomitantes a eles.
Que o culto a Cristo não haja sido idêntico em cada uma das formações religiosas que
nasceram em decorrência da mensagem de Jesus dispensa maiores detalhamentos. Contudo, é
mais do que fundamental destacar que é bastante possível que o culto a Jesus como Cristo não
tenha sido uma concepção que atingiu a todos os diferentes grupos que apareceram.
Nesse sentido, há indícios que apontam que pelo menos uma comunidade de crenças
recusou-se a pensar Jesus como alguém que, antes ou depois de sua morte, fosse um com
Deus ou o próprio Deus feito carne entre os homens. Essa possibilidade é entabulada para um
grupo específico: os seguidores galileus de Jesus que orientavam suas vidas conforme os
ditames do Evangelho Q.
Um dos defensores da ideia, Burton Mack, não titubeia em asseverar que “o mais
notável com relação aos membros do povo de Q é que eles não eram cristãos. Eles não
encaravam Jesus como um messias nem como o Cristo” (1994, p. 12). Mais que isso, “o povo
de Q era o povo de Jesus, e não o povo cristão” (idem, idem).
Mack tem consciência que essa proposta é controversa, que desafia os paradigmas
longamente aceitos. Contudo, longe de manter-se na defensiva, ele é arrojado e sustenta que
“o movimento de Jesus documentado por Q não pode ser tido como forma variante da
corrente cristã que embasa o retrato convencional das origens cristãs” (1994, p. 15). Tanto não
pode que, ele assim o crê, o “destaque recebido pelos evangelhos narrativos do Novo
167

Testamento” lança uma forte suspeita sobre os reais motivos pelos quais “o livro de Q foi
esquecido” e veio a despertar, depois de sua descoberta, “bastante consternação entre os
estudiosos cristãos” (1994, p. 17).
A assertiva de Mack, por esse motivo, lança luz sobre o episódio conhecido como a
tentação de Jesus no deserto. Quando na terceira e última tentação o Jesus de Q rejeita a
ordem do diabo para que o cultue, objetando que somente a Deus é que se deve prestar culto,
pode-se inferir que o povo de Q se prevenia, em razão do sistema de crenças que em seu
interior se desenvolvia, da emergência de alguma forma de veneração a Jesus. Em outras
palavras, o(s) autor(es) do Evangelho Q projetaram em Jesus a rejeição que ele(s) próprio(s)
possuíam a qualquer tipo de culto a seu Mestre.
Se o povo de Q empregou como recurso e, ao mesmo tempo, como discurso de
autoridade, a narrativa das tentações de Jesus para vetar a formação de algum tipo de culto ao
Cristo, o hino constante na Carta aos Filipenses aponta para uma direção oposta indicando
haver, em uma época muito próxima da redação do Evangelho Q, grupos de adeptos do
Evangelho que operavam dentro da noção de que Jesus, identificado como o Cristo, podia ser
cultuado.
Conforme Lilian Portefaix, o hino “é cuidadoso em esclarecer a disposição do Cristo de
uma maneira que ele seria compreensível não somente para os membros das primeiras horas
da igreja, bem ambientados com o ensino oral de Paulo, mas também para futuros
convertidos” (1998, p. 142).
Para tanto, a pesquisadora advoga a ideia de que os temas presentes no hino seriam
familiares à audiência para a qual foi destinada. Com efeito, ela sustenta, “um deus que se
torna humano” não provocaria nenhum estranhamento aos membros da comunidade de
Filipos à medida que, desde Eurípedes e sua obra As Bacantes, esse seria um assunto que
circulava por aquele ambiente (1998, p. 143).
Elucidando o sentido do hino, Helmut Köester propõe que ele (2005, p. 146):

Não é mais uma oferta de salvação para os que querem seguir o chamado e o
caminho da Sabedoria celestial. Mais precisamente, ele anuncia o reino
cósmico do Cristo crucificado e exige de toda congregação uma disposição
que corresponde ao caminho de humilhação de Cristo, ou seja, unanimidade,
respeito mútuo e renúncia à própria importância pessoal.

O que ambos os autores estão sugerindo é que em pouquíssimo tempo após a morte de
Jesus de Nazaré em Jerusalém, judeus se congregaram em torno de uma ideologia que já
168

elaborara a noção de que aquele carpinteiro pobre fora guindado ao lugar mais alto do plano
celeste.
Muito embora todos os pesquisadores sejam unânimes em afirmar ser essa carta de
Paulo – e o hino que a integra – extremamente difícil de se datar, ela não é posterior à década
de 50 do século I E.C. E isso tem implicações significativas para se pensar o processo de
divinização de Jesus.
Raymond Brown, decano dos estudos neotestamentários, lista os muitos problemas que
o hino em Filipenses suscita entre os pesquisadores. Dentre eles, cumpre salientar o debate
acerca do foco exato da cristologia implícita ao hino. Com efeito, nas palavras de Brown
(2004, p. 653):

O hino postula a encarnação de uma figura divina, como o faz o prólogo


joanino, ou existe um jogo com as duas figuras de Adão (ou seja, modelos
humanos arquetípicos): o Adão do Gênesis, que era à imagem de Deus, mas,
por tentar ambiciosamente chegar mais alto, caiu mais baixo mediante o
pecado, e Cristo, que era à imagem de Deus, mas, ao optar humildemente
por descer mais baixo, findou por ser exaltado ao ser-lhe concedido um
nome divino (Fl 2.9-11)?

O que importa ressaltar com todas as letras é que o hino aos Filipenses, dependendo da
resposta que se dê à indagação de Brown, denotaria uma alta cristologia e que, contrariando
um modelo explicativo para o processo de transformação de Jesus em Deus, veio a ser
atingida muito cedo. Dunn se encontra entre os pesquisadores que advoga convictamente que
a cristologia desenvolveu-se muito rapidamente, estimulada intensamente pelo assim
chamado “evento Cristo”, ou seja, o impacto provocado pelo ministério público de Jesus de
Nazaré e os episódios relativos à sua morte e a posterior crença em sua ressurreição.
Convém, no entanto, por em questão o fato de Jesus e seus primeiros seguidores, até
onde a documentação permite verificar, eram todos judeus monoteístas. Alçar Jesus a uma
condição de igualdade com Deus implicou, necessariamente, em alguma espécie de
acomodação conceitual.
Larry Hurtado propõe que o desenvolvimento cristológico somente foi possível porque
entrou em ação, não uma acomodação, mas uma transformação ou mutação na tradição
judaica. Com o fim de provar sua hipótese, Hurtado aponta, na documentação cristã canônica,
os indícios dessa mutação conceitual que possibilitaram a devoção a Jesus debalde o
monoteísmo predominante entre seus seguidores judeus.
169

Assim, ele toma como ponto de partida os versos contidos no livro intitulado Atos dos
Apóstolos que dizem (At 2.33-36):

Portanto, exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo
prometido e o derramou, e é isto o que vedes e ouvis. Pois Davi, que não
subiu aos céus, afirma: “Disse o Senhor ao meu Senhor: senta-te à minha
direita, até que eu faça de teus inimigos um estrado para os teus pés”. Saiba,
portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e
Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes.

Na visão de Hurtado, essa passagem contém um sumário da fé cristã primitiva e que se


destaca por referir-se à ressurreição de Jesus como “sua exaltação à direita de Deus” e faz um
apelo a “toda a casa de Israel” para que aceite Jesus como “Senhor e Cristo”.
Há, porém, que se ponderar uma conclusão que Hurtado tira já nesses seus primeiros
passos na tentativa de demonstrar a alegada mutação conceitual entre os seguidores de Jesus.
No bojo de sua argumentação, ele insiste que o livro Atos dos Apóstolos foi redigido no
período entre 65 e 85 E.C., “mas a ênfase na ressurreição de Jesus como marcante para sua
instalação em uma dignidade não previamente mantida”, indicaria fortemente que isso seria
“um reflexo do pensamento cristão dos primeiros anos” (1998, p. 94).
Há que se separar aqui duas noções. No entendimento de Hurtado, At 2.33-36 atesta
que, mesmo tendo sido escrito mais de três décadas após os eventos traumáticos da crucifixão,
a fé cristã na exaltação de Jesus que os versos citados apresentam não surgiu
concomitantemente a escrita deste relato das atividades missionárias dos apóstolos, mas
encontrava-se desde muito cedo nos corações daqueles que comungaram do ministério
público de Jesus de Nazaré. A outra noção que precisa ser discutida refere-se a datação do
documento.
Os estudiosos do assim chamado Novo Testamento, em geral, e os especialistas no livro
Atos dos Apóstolos, em particular, admitem que essa obra foi escrita entre o final do século I
e o início do século seguinte. Assim, cabem duas proposições em torno da fé que seus versos
exprimem: (1) embora muito posteriores ao assim chamado “evento Cristo”, ou eles são
depositários da crença no Jesus exaltado à direita de Deus e que se encontrava já desde o
princípio ou (2) refletem e conservam uma forma de crer em Jesus como Senhor que foi
engendrada na época em que foram escritos e como resultado de um processo de reelaboração
de ideias, isto é, próximo ao fim do século I E.C. Ou, nos termos de Hurtado, uma mutação
conceitual.
170

A tendência predominante nos círculos acadêmicos da atualidade é situar a assim


chamada alta cristologia, ou seja, a crença e subsequente fé em Jesus como Deus a partir do
final do século I. De certa forma, quanto mais próximo do ministério público do filho de José
e Maria, menos factível reconhecer nele a encarnação de Deus. Os distanciamentos temporal e
geográfico somados às influências culturais para além do ambiente de pensamento judeu
formaram o terreno fértil em que germinou a ideia de exaltação de Jesus à direita de Deus.

2.6.2. TOMÉ TEM ALGUM TIPO DE CRISTOLOGIA?

Um dado que recorrentemente chama a atenção dos especialistas em Tomé são


justamente algumas notáveis semelhanças com o Evangelho Q. Se ambos partilham da mesma
forma de registrar as tradições de e sobre Jesus, ou seja, como uma coletânea de sentenças, os
dois documentos também revelam percepções distintas das dos evangelhos sinóticos acerca
do status de Jesus de Nazaré.
Para os estudiosos de Tomé, esse evangelho é sui generis na maneira como interpreta
Jesus. Davies sustenta que a comunidade de crenças por trás desse documento entendia que o
mundo deveria ser considerado na condição como se apresenta no livro do Gênesis no trecho
que vai de 1:1 a 2:4 e que as pessoas, por conseguinte, necessitariam restaurarem-se a si
mesmas na condição de se encontrarem à imagem de Deus (1992, p. 664).
No desdobramento de sua análise, Davies identifica equivalências nos Ditos tomesinos
que o convencem de sua proposta. Por conseguinte, as sentenças atribuídas a Jesus abrem vias
para se entender como o autor de Tomé alcançava a noção de quem Jesus era. O seu
procedimento se apoia na associação entre os Ditos. Assim, o Dito 49 postula:

Jesus disse: “Felizes aqueles sozinhos e escolhidos, pois encontrarão o reino.


Vocês vieram dele e retornarão a ele”.

E o Dito 50, por sua vez, contém a seguinte afirmação:

Jesus disse: “Se lhe disserem: ‘De onde vieram?’, digam-lhes: ‘Viemos da
luz, do lugar onde a luz surgiu por si, estabeleceu[-se] e apareceu em sua
imagem’.”

Lidas em conjunto, as sentenças não dão espaço para dúvida: reino e luz são termos que
se equivalem. Os discípulos vieram do reino e da luz. Ou seja, são oriundos do mesmo
“lugar”. Adiante, Tomé anota a sentença 77:
171

Jesus disse: “Sou a luz que está sobre todas as coisas. Sou tudo: de mim saiu
tudo e a mim tudo chegou”.

Perante essas afirmações, Davies conclui que as distinções entre “luz”, “reino” e
“princípio” são mais terminológicas do que reais. Em razão disso e das similaridades com o
processo de exegese praticado por Fílon de Alexandria, pode-se supor que Tomé foi gestado
numa ambiência em que se procedia à exegese alegórica de Gênesis 1 e 2 (1992, p. 666).
O que importa destacar, contudo, é que o Reino em Tomé situa-se no princípio de tudo e
é para lá que os adeptos desse cristianismo devem voltar. Com efeito, isso se depreende das
sentenças reunidas conforme a numeração acadêmica nos Ditos 17, 18 e 19;

Dito 17
Jesus disse: “Dar-lhes-ei o que nenhum olho viu, o que nenhum ouvido
ouviu, o que nenhuma mão tocou, o que não se manifestou no coração
humano”.

Dito 18
Os seguidores disseram a Jesus: “Diga-nos como será nosso fim”.
Jesus disse: “Vocês descobriram, então, o princípio, de modo que procuram
o fim? Onde o princípio está, o fim estará. Feliz é aquele que permanece no
princípio: ele conhecerá o fim e não provará a morte”.

Dito 19
Jesus disse: “Feliz aquele que existiu antes de existir”.

Essas considerações são preliminares para que haja condições de definir a cristologia de
Tomé. Nesse sentido, convém indagar: para Tomé, Jesus é o Cristo? Suas sentenças têm
caráter salvífico?
É possível que esse tipo de questionamento tenha surgido em algum momento na vida
dos cristãos tomesinos. Afinal, o Dito 91 sugere essa situação:

Eles lhe disseram: “Diga-nos quem você é para que possamos acreditar em
você”.
Ele lhes disse: “Vocês examinam a face do céu e da terra, mas vocês não
conhecem quem está em sua presença e não sabem como examinar este
momento”.

De certa maneira, “eles” demandam uma definição sobre quem Jesus é, pois disso
depende a continuidade de sua adesão ao grupo. É de se lamentar a ausência de elementos
172

contextuais que aclarem as razões pelas quais se dirigiu essa pergunta a “Jesus”. No entanto,
se Jesus era o Cristo, Tomé não poderia deixar passar a oportunidade de declará-lo
abertamente. Mas ele não o faz.
Nada impede que a afirmação atribuída a Jesus no Dito 77 (“Eu sou a luz”) venha a ser
considerada como uma autodesignação cristológica. Mas, cumpre sublinhar, quem o fizesse
incorreria em erro. Com efeito, o Jesus de Tomé assinala no Dito 24: “Há luz dentro de uma
pessoa de luz, e a luz brilha sobre o mundo”.
Ora, se ser a luz corresponder a uma forma de postular condição cristológica para si e
como Jesus aponta que aqueles que o seguem são pessoas de luz com luz dentro de si, infere-
se que todos que voltam para a luz são Cristos. Não é de se espantar, portanto, a tenaz
resistência, em alguns círculos religiosos modernos, a acercar-se desse evangelho dito
“gnóstico”. As implicações de suas sentenças são, sem sombra de dúvidas, por demais
perturbadoras para quem está radicalmente imbuído das tradições cristãs milenarmente
ensinadas a ferro e fogo.

2.7. TRADIÇÕES EM CONFLITO: TOMÉ E A COMUNIDADE DO DISCÍPULO AMADO

No imaginário popular, Tomé, um dos que foram pessoalmente escolhidos por Jesus
para compor o seu círculo mais íntimo de seguidores – o grupo dos Doze –, figura como o
apóstolo que duvidou da ressurreição do filho de José e Maria. O único, por sinal. Ou melhor,
como o único que efetivamente declarou abertamente sua incredulidade. Com efeito, tornou-
se corrente a expressão “Sou como São Tomé, só acredito vendo”.
Esquivando-se, porém, do senso comum, convém atentar para a documentação
neotestamentária e extra-canônica a fim de certificar-se se tal imaginário lastreia-se nos
documentos produzidos pelas comunidades de crenças cristãs dos primeiros séculos. Com
efeito, a primeira e mais do que fundamental constatação a que se chega quando se adota esse
procedimento é: menciona-se o nome de Tomé apenas e tão somente, no âmbito dos
evangelhos sinóticos, na lista dos Doze. Fora dessa lista, o discípulo nunca aparece nas
narrativas de Marcos, Mateus e Lucas.
A situação muda radicalmente de figura quando se procura por Tomé no evangelho de
João. Nesse documento, o assim rotulado “apóstolo incrédulo” merece algum destaque. Ele
tem voz, ele tem dúvidas, ele alcança uma certeza inamovível.
Um leitor um pouco mais crítico e não influenciado por leituras teológicas do assim
chamado Novo Testamento, poderia levantar várias perguntas quando confrontado com esse
173

contraste. Com efeito, se, em certa medida, os evangelhos canônicos registram a “vida de
Jesus”, por quais motivos teria havido silêncio sobre Tomé em três autores/comunidades de
crenças e havido ênfase por parte de um único autor/comunidade de crenças? Seria isso uma
evidência de maior precisão histórica por parte do Quarto Evangelho? Ou haveria algo oculto
nas entrelinhas desse texto?
O sinal de alerta dispara quando, lendo Meier, depara-se com a seguinte afirmação:
“...todas as passagens do Quarto Evangelho que envolvem Tomé aparentam um ar suspeito de
veículos teológicos do evangelista” (2003, p. 215). Vindo de um biblista respeitado como
Meier, o “aparentam” de sua declaração fala muito mais do que aparenta à primeira vista.

2.7.1. “TODAS ESSAS COISAS FORAM ESCRITAS PARA QUE CREIAIS”

Na opinião abalizada de John P. Meier, o “Evangelho de João não deve ser rejeitado em
seu todo e a priori como uma fonte para o Jesus histórico” (1992, p. 54). Há que se
reconhecer, pensando junto com Meier, que “a nova redação das narrativas com objetivos
simbólicos e a reformulação das palavras com vistas ao projeto teológico atingem seu ponto
alto em João” (1992, p. 54). E, convém manter como referência para uso futuro, “por vezes
(...) João pode estar historicamente mais correto do que [os Sinóticos]” (1992, p. 54).
O simples fato de um biblista do quilate de Meier necessitar fazer tais comentários
atesta as tensões que o Quarto Evangelho suscita no campo de estudos neotestamentários.
Campo esse que se vê, frequentemente, às voltas com esforços no sentido de garantir que toda
a documentação canônica seja o que dizem ser. Em outras palavras, Escrituras inspiradas e,
por conseguinte, inquestionáveis em todos os sentidos.
Basta aqui relembrar as reticências de Zuurmoond sobre a aplicabilidade do rótulo
“evangelho” a esse texto. Mais que isso, diante da conclusão de alguns pesquisadores de que
esse evangelho, em razão de “se mostrar a par de alguns detalhes topográficos de Jerusalém”,
deve ser considerado uma fonte histórica fidedigna, não lhe parece, de maneira alguma,
acertado. Com efeito, para ele, “o autor desse evangelho pode muito bem ter pertencido à
comunidade primitiva de Jerusalém, sem jamais ter visto Jesus ‘na carne’” (1998, p. 94).
Cumpre reforçar, todavia, que a questão levantada por Zuurmond restringe-se a debater se
João pode ser utilizado como fonte histórica para o ministério público de Jesus de Nazaré.
Quanto a isso, ele é taxativamente assertivo: não, o Quarto Evangelho não é muito
confiável nesse sentido. Isso porque João não demonstra interesse algum “na facticidade do
Jesus histórico”. O enredo de seu livro liga-se ao Jesus pós-pascal e, convém sublinhar,
174

define-se mais acertadamente como “um tratado teológico (cristológico)” no qual a “história
está a serviço do anúncio, não o contrário” (1998, p. 94).
Destoando um pouco desses respeitados acadêmicos, Theissen e Merz assumem que
João integra um conjunto maior de material escrito acerca de Jesus que é completamente
gnóstico ou próximo de uma experiência de fé gnóstica. Com efeito, ambos consideram João
e Tomé como fontes oriundas dessa ambiência gnóstica. Contudo, é em vão que se espera um
maior aprofundamento das consequências dessa conclusão.
Cumpre, no entanto, registrar o que dizem sobre a imagem de Jesus que essa
documentação de matriz gnóstica enseja: “diferentemente das quatro fontes sinóticas, as
fontes quase-gnósticas [João e Tomé, por exemplo] não dão uma imagem coerente de Jesus”
(2002, p. 54)76.
Reiterando, portanto, o quebra-cabeça que João oferece para a pesquisa, os dois
estudiosos tentam dar conta da condição sui generis desse documento. Assim, eles declaram
(2002, p. 55):

Apesar de o autor ter estruturado a atividade de Jesus de forma distinta dos


sinóticos (com prólogo introdutório, várias viagens a Jerusalém, cronologia
das festas judaicas) e ter se esforçado em criar grandes complexos
narrativos, ele demonstra ter tido conhecimento de pelo menos um
evangelho sinótico ao ter assumido a forma de evangelho. Apesar das
marcantes diferenças na organização teológica, é evidente que João
pressupõe fontes com matizes sinóticos, tanto na tradição narrativa como na
tradição de ditos.

Há que se relevar, até certo ponto, a superficialidade com que os autores tratam a
questão. O livro por eles escrito se propõe a ser um manual, uma espécie de estudo
introdutório que pretende açambarcar o maior número possível de temas e expor, como eles
sublinham, o estágio atual da pesquisa. Por conseguinte, não faz sentido cobrar de Theissen e
Merz desdobramentos em torno de assuntos que renderiam livros inteiros somente para si.
Mas não há como se eximir de indagar sobre a lógica exposta por ambos. Por que João
viu-se forçado a modelar as atividades de Jesus de que tomou conhecimento na “forma de
evangelho”? Até que ponto é possível determinar, com base na documentação existente, algo
como uma exigência de que as lembranças sobre a carreira pública de Jesus deveriam, quando
vertidas por escrito, ajustar-se aos moldes de Marcos?

76
Parece ter havido alguma incompreensão nesse ponto. As fontes sinóticas são três e não quatro.
175

Alhures, num opúsculo dedicado a elucidar cada um dos textos que integram o assim
chamado Novo Testamento, Theissen volta a enfatizar a suposição de que João conheceu
outros evangelhos, “mesmo que não os tenha utilizado como fonte” (2007, p. 111). Assim, o
plano de João é semelhante ao de Marcos: “começa com João Batista e termina com a história
da paixão” (idem, idem). Partindo de dois pressupostos, ou seja, Marcos inaugurou o gênero
evangelho e haveria uma imensa dificuldade de um mesmo gênero ter sido “inventado” por
dois autores de forma independente, Theissen então vaticina: o autor de João “deve ter tido
conhecimento do Evangelho de Marcos” (idem, idem).
Ora, em poucas linhas Theissen aparenta não se lembrar da ambiência gnóstica da qual
supostamente João emergiu. Mais que isso, ao notar que esse autor deve ter tido
conhecimento – por meio da leitura direta? Através da audição de trechos ou do todo? – de
Marcos, por que não aventou a possibilidade de alguma espécie de ciência acerca de Tomé, já
que ambos são supostamente provenientes de um mesmo conjunto de textos e/ou tradições?
Um exegeta de elevada reputação, Charles H. Dodd assevera que o Quarto Evangelho
“pertence só parcialmente à mesma classe que os [evangelhos] Sinóticos. Seu contexto
verdadeiro é só em parte aquele que ele condivide com os outros evangelhos” (2003[1968], p.
19).
Com efeito, Dodd assevera (2003[1968], p. 25):

Se procurarmos captar a intenção do autor, sem observar de modo rígido as


formas gramaticais, percebemos certamente que ele está pensando, em
primeiro lugar, não tanto em cristãos que necessitam duma teologia mais
profunda, e sim em não-cristãos que se põem o problema da vida eterna e do
caminho para atingi-la, e podem estar prontos para seguir o modelo cristão,
se este lhes for apresentado em termos que, segundo seu modo de ver, estão
relacionados com os interesses e a experiência religiosa que eles já
possuíam.

De certa forma, as palavras de Dodd podem sugerir que o autor do Quarto Evangelho
modelou as tradições que recebeu sobre Jesus de Nazaré para que fossem compreendidas para
seu público-alvo. A fiar-se nessa possibilidade, não seria um erro laborar sobre esse texto em
busca de suas camadas textuais.
No entanto, essas questões ficarão, temporariamente, de quarentena, pois parece mais
profícuo acompanhar o raciocínio de Dodd acerca de outro aspecto. Com efeito, o que se quer
abordar é a maneira como o exegeta inglês discute o gnosticismo e sua relação com o Quarto
Evangelho.
176

Assim, ele assinala, há uma “variedade desconcertante de sentidos” com que os


escritores modernos tratam os termos “gnóstico” e “gnosticismo”. Consoante a etimologia da
palavra, ou seja, de que “a salvação se realiza pelo conhecimento”, mostra-se obrigatório, em
seu ponto de vista, rotular “teólogos cristãos ortodoxos, como Clemente de Alexandria e
Orígenes, por um lado e judeus helenistas como Fílon, e escritores pagãos como os
hermetistas, por outro lado” como gnósticos (2003[1968], p. 137). Mais que isso, se esse for o
sentido a ser empregado, “o evangelho segundo João deveria ser classificado como gnóstico”
(idem, idem).
Não por acaso, se existem muitas razões para estudar-se o Quarto Evangelho, uma que
jamais poderia ser olvidada, consoante Dodd, envolve ter clareza de que os “leitores deste
evangelho no século II parecem ter reparado alguma afinidade” entre esse documento e a
“heresia gnóstica” (2003[1968], p. 143).
Raymond Brown, ao longo de sua carreira acadêmica, produziu diferentes escritos
dedicados ao Quarto Evangelho. Suas obras, portanto, que pese o fato de sua filiação religiosa
e como isso marcadamente afeta suas análises, mostram-se um material riquíssimo e
necessário para quem se predispõe a ter um guia para compreender João.
Assim, consoante o biblista, a partir do século XIX, “a maioria dos intérpretes passou a
acreditar que João não foi produzido por uma testemunha ocular” (2004, p. 493). Por
conseguinte, essa visão implicou na admissão de que esse evangelho não tem valor histórico,
“diferentemente do material nos evangelhos sinóticos” (2004, p. 494).
No entanto, prossegue Brown (2004, p. 495), João passou a ser encarado de outra forma
em meados do século XX. Essa forma, por sua vez, é a que Brown publicamente reconhece
ser partidário. Tal teoria pode ser esquematicamente resumida como segue:
1. Havia duas memórias distintas do que Jesus disse e fez: as conservadas nos sinóticos
(“especificamente em Marcos”) e as memórias de João que “não eram de origem apostólica
padronizada” (2004, p. 495).
2. As memórias foram influenciadas pela experiência de vida da comunidade joanina e
dos pregadores joaninos que as expuseram.
3. Por fim, “um evangelista” entrou em ação modelando a tradição desse estágio
anterior na forma de um evangelho escrito.
Assim, Brown deixa implícito que o Quarto Evangelho deve ser encarado como o
entrelaçamento entre “memórias de Jesus” e uma muito criativa e imaginativa “intuição
teológica”.
177

John Ashton assume para si a responsabilidade de facilitar a compreensão desse


evangelho deveras intricado e recheado de simbolismos. Com efeito, a chave de leitura para o
texto da comunidade do Discípulo Amado consiste em ter clareza de que as ideias nele
contidas foram formuladas “no contexto do difícil relacionamento entre os cristãos joaninos e
os outros membros da sinagoga à qual eles pertenciam” (2007, p. 5).
O que perpassa cada um desses autores, tanto os historiadores quanto os exegetas, é o
explícito reconhecimento que João não escreve história, mas teologia. Mais que isso, sua alta
cristologia atesta um refinado teólogo, em um patamar muito distante e bastante acima dos
autores dos evangelhos sinóticos.
Recentemente, contudo, especialistas em João vieram a público e cerraram fileiras na
tentativa de garantir a historicidade dos relatos presentes no Quarto Evangelho. Meier, que
não é exatamente um expert em João, encontra nessa narrativa canônica elementos que
certificam, por exemplo, a relação mestre-discípulo entre João, cognominado Batista, e o
Jesus histórico. Implica dizer, João fornece evidências históricas de que Jesus de Nazaré e
João Batista tiveram existência real e foram muito próximos.
Nesse sentido, para o questionamento sobre se Jesus de Nazaré foi discípulo de João,
cognominado Batista, Meier chama a atenção para aquilo que ele considera ser uma ironia: “a
única prova, embora indireta, de que Jesus foi discípulo de João” provém “do muito difamado
Quarto Evangelho”. Mais que isso, “sem os capítulos 1 e 3 do Quarto Evangelho”, não teria
“ocorrido a alguém a ideia de que estas tradições de Q e de Marcos mostram Jesus como
discípulo de João” (1996, p. 161).
E não apenas isso. Aos olhos de Meier, “o Quarto Evangelho faz todo o possível para
eliminar quaisquer vestígios de um papel independente para João. Ele não mais é chamado de
‘Batista’, o cognome que exprimia sua posição e sua prática exclusiva. Sua única função no
Quarto Evangelho é ser testemunha de Jesus” (1996, p. 163). Por conseguinte, esse evangelho
coloca na boca de João palavras que servem para retratar o papel que ele deve representar
dentro da trama desenhada por João e, concomitantemente, como ele deveria ser lembrado
dali por diante. Assim, perante o que Jesus significa, João declara (Jo 3:30): “É necessário que
ele [Jesus] cresça e eu diminua”.
Isso, entretanto, é o bastante para garantir o retrato de Tomé que João apresenta?

2.7.2. “MEU SENHOR E MEU DEUS”


178

Jesus está morto. Dali por diante, todos os planos e esperanças que ele alimentou
passam para o campo das expectativas não realizadas. Restam àqueles homens e mulheres
duas possibilidades: voltar às suas vidas normais ou dar prosseguimento a tudo àquilo que ele
afirmou que seria necessário para a implantação do Reino. Sem esquecer, porém, dos riscos
aparentes que essa última opção comportava.
O autor do evangelho de Marcos, como é consensual entre os especialistas, encerra sua
narrativa afirmando que três mulheres dirigiram-se ao local em que o corpo de Jesus houvera
sido depositado a fim de ungir o cadáver com aromas. Chegando ao local, Maria de Magdala,
Maria, mãe de Tiago e Salomé depararam-se com “um jovem sentado à direita, vestido com
uma túnica branca”, dentro do túmulo.
Apavoradas, recebem um comando do jovem. Elas deveriam informar aos “discípulos e
a Pedro” que Jesus, de volta ao mundo dos vivos, aguardava a todos na Galileia. Contudo,
consoante a narrativa, não foi isso que se deu (16:8):

Elas saíram e fugiram do túmulo, pois um temor e um estupor se apossaram


delas. E nada contaram a ninguém, pois tinham medo...

E assim se encerra a narrativa evangélica canônica mais antiga. Com mulheres fugindo
e ocultando de todos o que teriam presenciado no local em que o corpo de Jesus jazia para
sempre.
Entretanto, esse documento sofreu uma intervenção posterior e um novo final veio a ser
acrescentado77. Os versículos incluídos no texto de Marcos contam o que se sucedeu ao
comando do jovem às piedosas mulheres (16:9-14):

Ora, tendo ressuscitado na madrugada do primeiro dia da semana, ele


apareceu primeiro a Maria de Magdala, de quem havia expulsado sete
demônios. Ela foi anunciá-la àqueles que haviam estado em companhia dele
e que estavam aflitos e choravam. Eles, ouvindo que ele estava vivo e que
fora visto por ela, não creram. Depois disso, ele se manifestou de outra
forma a dois deles, enquanto caminhavam para o campo. Eles foram
anunciar aos restantes, mas nem nestes creram. Finalmente, ele se
manifestou aos Onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a

77
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém aduzem uma nota de rodapé a esses versículos. Por uma questão de
honestidade intelectual, admitem que esse trecho final não foi redigido pela mesma pessoa que produziu o
documento como um todo. Assim, “muitos mss [manuscritos], entre eles o do Vat. [Vaticano] e o Sin.
[Sinaítico], omitem o final atual”. Acrescentam, ainda, que quatro manuscritos “dão em seguida os dois finais, o
breve e o longo”. Todavia, por uma questão de crença, são peremptórios em asseverar: “O trecho final de Mc
(VV. 9-20) faz parte das Escrituras inspiradas; é tido como canônico”.
179

incredulidade e a dureza do coração, porque não haviam dado crédito aos


que o tinham visto ressuscitado.

O quadro abaixo sistematiza as aparições de Jesus, segundo a narrativa marcana, após a


sua morte por crucifixão:

Quadro 2.1: Aparições de Jesus ressuscitado em Marcos


Aparição Receptor
Primeira Maria de Magdala
Segunda Dois deles (anônimos)
Terceira Onze

As reações variaram entre aceitação e negação. Os Onze precisaram de uma experiência


mais impactante e de cunho pessoal para, enfim, sair da rejeição para a aceitação. Com efeito,
o testemunho de Maria e o testemunho dos dois discípulos anônimos não foram o suficiente
para ensejar o convencimento daquilo que lhes era transmitido. O quadro abaixo auxilia a
visualização desse movimento:

Quadro 2.2. Reação dos Onze


Testemunho Reação dos Onze
De Maria de Magdala Não creram
De dois deles Não creram

Na sequência da narrativa do final aduzido ao evangelho de Marcos, porém, Jesus


manifesta-se aos Onze. Aqui há uma curiosidade. O texto de Marcos introduz “Onze” onde
antes eram “Doze” e não oferece uma explicação sequer acerca dessa mudança, digamos,
numérica. Leitores do assim chamado Novo Testamento não titubeariam em afirmar: Judas
Iscariotes, o que entregou Jesus, não se encontra mais entre eles, pois se suicidou. Portanto,
inexiste motivo para usar o termo “Doze”.
No entanto, a informação sobre o desaparecimento de Judas Iscariotes não é um dado
que conste em Marcos. Seu destino, para o grupo que conservou algumas das memórias de e
sobre Jesus e que foram vertidas por escritos nesse evangelho, ficou em completo
desconhecimento. Se por acaso sabiam, optaram por relegar ao esquecimento deixando de
registrar.
Cumpre, porém, salientar o que o copista que adicionou um final a Marcos descreveu
sobre o momento em que Jesus se faz visível aos Onze:
180

Finalmente, ele se manifestou aos Onze, quando estavam à mesa, e


censurou-lhes a incredulidade e a dureza do coração, porque não haviam
dado crédito aos que o tinham visto ressuscitado.

Nesse adendo ao evangelho de Marcos, portanto, a derradeira aparição de Jesus ocorre


em um local privado e todos são admoestados por sua incredulidade e por, em certa medida,
precisarem ver para crer. Note-se, assim, que nenhum discípulo é advertido nominalmente
acerca de sua falta de fé na ressurreição do primeiro filho de José com Maria.
Quem conhecesse a história de Jesus unicamente por meio do evangelho de Mateus
ouviria/leria uma versão com tons significativamente distintos. Assim como em Marcos,
mulheres vão ao túmulo. Em vez de um jovem, um “Anjo do Senhor” desce do céu em
seguida a um “grande terremoto”. Avisadas, pelo ser angélico, de que o túmulo a que foram
visitar estava vazio e que lhes estava incumbida a tarefa de notificar a ressurreição aos
remanescentes do grupo de Jesus, as mulheres (28:8):

Elas, partido depressa do túmulo, comovidas e com grande alegria, correram


a anunciá-lo a seus discípulos.

A narrativa não descreve o encontro entre as mulheres, testemunhas oculares da


ressurreição, e os discípulos. Mas deduz-se do que vem a seguir que eles acataram o que
escutaram delas. Com efeito, Mateus declara (28:16):

Os onze discípulos caminharam para a Galileia, à montanha que Jesus lhes


determinara.

Eis que, de acordo com Mateus, todos são testemunhas de mais uma aparição de Jesus.
Cumpre salientar, contudo, que as reações não se mostraram unânimes (28:17):

Ao vê-lo, prostraram-se diante dele. Alguns, porém, duvidaram.

O texto carece de mostrar se também os que duvidaram prostraram-se diante de Jesus.


Todavia, cumpre sublinhar que a dúvida alcançou não mais a todos, mas “alguns” dentre eles.
Quantos? Quais discípulos? Tais informações, para um hipotético indivíduo que travasse
conhecimento com a história de Jesus unicamente por meio de Mateus, faltariam por
completo.
O autor de Lucas expande consideravelmente as tradições de e sobre Jesus as quais teve
acesso. Com efeito, um indivíduo que viesse a se tornar cristão graças à leitura desse
181

evangelho canônico seria brindado com uma narrativa repleta de detalhes. Assim, Maria
Madalena, Joana, Maria, mãe de Tiago e outras mulheres, foram ao sepulcro onde o corpo de
Jesus fora deixado. Ali chegando, foram recebidas por dois homens “com veste fulgurante”
que enunciaram a notícia da ressurreição de Jesus.
As mulheres sentiram medo. As mulheres se lembraram das palavras de Jesus. As
mulheres, debalde isso tudo, voltaram ao encontro dos discípulos e narraram sua experiência
no túmulo. Todavia, para os homens, “essas palavras, porém, lhes pareceram desvario, e não
lhes deram crédito” (Lc 24:11).
Apesar de toda descrença inicial, Lucas inclui uma ação de Simão Pedro que, como
frisam os tradutores da Bíblia de Jerusalém, é omitida por alguns manuscritos (24:12):

Pedro, contudo, levantou-se e correu ao túmulo. Inclinando-se, porém, viu


apenas os lençóis. E voltou para casa, muito surpreso com o que acontecera.

A ação de Pedro poderia ser interpretada como um gesto de quem desejava ver para
crer. Lamentavelmente, as tradições lucanas se mostram muito exíguas no que tange à atitude
de Pedro perante o anúncio feito por todas aquelas mulheres. Quer dizer, seu testemunho do
sepulcro vazio não mereceu desdobramentos.
Na sequência, Lucas oferece uma longa e pormenorizada descrição acerca dos dois
discípulos que viram Jesus ressuscitado. Toma-se ciência que ambos viajavam para Emaús,
um povoado situado a “sessenta estádios de Jerusalém”. Além disso, um dos dois deixa de ser
anônimo e fica-se sabendo que ele se chamava Cléofas (24:18).
Esses discípulos, reconhecendo Jesus e crendo na ressurreição, retomam o caminho de
volta para Jerusalém determinados a narrar o acontecido e, assim, confirmar e fortalecer a fé
de todos. Encontrando-se com os Onze, entabulam uma conversa sobre a experiência vivida e
ouvem, por sua vez, que o que eles passaram foi verdadeiro, pois (24:34):

“O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!”

À medida que eles não se mostram surpresos diante do que Cléofas e sua companhia
haviam vindo dizer, infere-se que a trama lucana opera com a noção de que a incredulidade
houvera sido deixada para trás. Afinal, não era um desvario de mulheres, mas a palavra de
Simão.
Enquanto trocavam impressões e regozijavam-se, Lucas põe Jesus no meio deles. Sua
súbita aparição, entretanto, provoca “espanto e temor”, pois “imaginavam ver um espírito”
182

(24:37). Com o fito de infundir-lhes confiança, o Jesus de Lucas então os indaga e, em


seguida, ordena (24:38-40):

Por que estais perturbados e por que surgem tais dúvidas em vossos
corações? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu! Apalpai-me e entendei que
um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho.
Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e os pés.

Convém sistematizar as informações fornecidas pelo autor de Lucas. O quadro a seguir


organiza as aparições de Jesus:

Quadro 2.3. Aparições de Jesus ressuscitado em Lucas


Aparição Receptor(es)
Primeira A Maria Madalena, Joana, Maria, mãe de
Tiago, e outras mulheres anônimas
Segunda A Simão
Terceira A Cléofas e alguém que lhe faz companhia
Quarta Aos Onze

A aceitação, ou não, da ressurreição variou de acordo com a origem dos testemunhos e


também conforme a situação de enunciação. Assim, o quadro abaixo tenta condensar as
informações e aclarar o entendimento:

Quadro 2.4. A reação dos Onze


Testemunho Reação imediata
Das mulheres Não deram crédito
Simão (indireto) Deram crédito
Cléofas e sua companhia Deram crédito

À primeira vista, porém, a aparição de Jesus diante dos Onze e mais os discípulos que
vieram de Emaús para ratificar a ressurreição miraculosa, ensejou dúvidas. Contudo, cumpre
perceber que o espanto e o temor originaram-se da súbita presença de alguém que foi então
entendido como um “espírito”. A fim de dirimir essa dúvida, o Jesus de Lucas oferece-se
como prova de que ali se encontrava um homem de carne e osso. Qual o seu gesto? Solicitou
que os circunstantes, superando seus pré-conceitos e medos mais arraigados, fossem até ele e
o tocassem.
A narrativa lucana deixa implícito que os incrédulos obedeceram à ordem de Jesus, pois
nenhuma informação é dada se houve alguma resistência ou recusa. Cabe, no entanto,
sublinhar que, assim como em Mateus, nenhum dos Onze foi indicado nominalmente. Implica
dizer, o temor e o espanto foram gerais, mas a descrença na ressurreição em si não é um dado
183

que se possa extrair do texto. Com efeito, essa era uma convicção que se formou desde o
testemunho – não detalhado e exclusivo da narrativa de Lucas – de Simão Pedro.
Suponha-se que os eventos posteriores a crucifixão de Jesus, quer dizer, os relatos de
sua suposta ressurreição, houvessem sido espalhados por meio de outro documento que não os
Sinóticos. Nesse caso, via Quarto Evangelho.
Esse público travaria contato com a informação de que Maria Madalena dirigiu-se ao
sepulcro de Jesus e, encontrando-o aberto, disparou em direção a Simão Pedro “e ao outro
discípulo, que Jesus amava” e alertou-os de um presumido furto do corpo de Jesus (20:3).
Ambos, assim, correm juntos até o local e confirmam que o corpo de Jesus havia
desaparecido. Cumpre, porém, enfatizar o verso 8:

Então, entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: e


viu e creu.

Ato contínuo, com a volta dos discípulos “para casa”, Maria Madalena permanece no
local e, conforme a narrativa joanina, ali fica desmanchando-se em lágrimas. A discípula vê
dois anjos, que travam conversa com ela, e, em seguida, é surpreendida pela aparição do
próprio Jesus ressuscitado. Do diálogo entabulado entre ela e o Nazareno, resulta o comando
para que seus seguidores recebam, da parte dela, a notícia alvissareira de que ele, Jesus,
“subiria” para o Pai (20:17). Nesse sentido, o texto aponta (20:18): “Maria Madalena foi
anunciar aos discípulos: ‘Vi o Senhor, e as coisas que ele lhe disse’”.
Diferentemente dos outros escritos canônicos, o texto do Quarto Evangelho nada
apresenta acerca da recepção dos discípulos ao anúncio ofertado por Maria Madalena sobre
sua experiência visionária. Convém sublinhar, entretanto, que os versos de 11 a 18 podem ser
um acréscimo ao texto joanino da ressurreição de Jesus, explicando, assim, a anomalia no
fluxo narrativo que a passagem denota.
Em seguida, João volta a atenção de seus leitores/ouvintes para os discípulos. Que se
encontravam, “por medo dos judeus”, em algum lugar no qual as portas estavam fechadas. É o
momento em que Jesus aparece para todos. É, dessa maneira, a segunda aparição do morto.
Nada, porém, é dito sobre a reação inicial do grupo perante o ocorrido. O texto descreve que,
em seguida à saudação que faz a todos os presentes, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado” e
aqueles que presenciaram a cena “ficaram cheios de alegria por verem o Senhor” (20:20).
184

Um leitor atento e que conhecesse as narrativas sinóticas identificaria, de pronto, as


notáveis semelhanças entre os textos. Estranharia, porventura, algumas dessemelhanças, mas,
como de praxe, harmonizaria as descrições vendo-as como complementares.
João, todavia, destaca uma situação que nenhum outro autor até então mencionara.
Tomé, “chamado Dídimo”, não estava com os discípulos quando dessa segunda aparição de
Jesus. Diante da informação de que, em sua ausência, todos puderam ver e crer, esse discípulo
então profere o que, no imaginário popular cristão, atesta sua incredulidade (20:25):

Se eu não vir em suas mãos o lugar dos cravos e se não puser meu dedo no
lugar dos cravos e minha mão no seu lado, não crerei.

Com efeito, o Tomé de João, requer ver e tocar para que a crença na ressurreição venha
a se tornar uma convicção inabalável. E é o que João providencia em sua narrativa (20:26-
29):

Oito dias depois, achavam-se os discípulos, de novo, dentro de casa, e Tomé


com eles. Jesus veio, estando as portas fechadas, pôs-se no meio deles e
disse: ‘A paz esteja convosco!’ Disse depois a Tomé: ‘Põe teu dedo aqui e
vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas
incrédulo, mas crê!’ Respondeu-lhe Tomé: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ Jesus
lhe disse: ‘Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!’

Convém notar que o Jesus de João aparenta saber, de antemão, que Tomé estava cético
quanto ao relato de seus companheiros. Com efeito, em seguida a saudação feita aos
presentes, ele dirige-se exatamente a Tomé oferecendo-se como prova “viva” e apontando
exatamente para aquilo que o Tomé de João alegara ser o que garantiria a ele a veracidade da
ressurreição de Jesus.
Um leitor imbuído de muita fé talvez deixe escapar essas nuances dos textos e, mesmo
se confrontado a elas, obterá uma boa explicação para as incongruências presentes nas quatro
narrativas evangélicas.
Ainda que o ceticismo de Tomé seja uma ocorrência restrita a um evangelho canônico,
encontra-se entranhado na memória coletiva cristã que ele, e somente ele, externou toda a sua
dificuldade em admitir que um morto voltara para o meio dos vivos. Cumpre enfatizar, no
entanto, que pesquisadores estranharam essa ocorrência e entabularam reflexões sobre o
inusitado narrado pelo Quarto Evangelho. Em linhas gerais, inferiram que havia mais do que
uma cena meramente inventada.
185

2.7.2.1. VER PARA CRER, CRER SEM VER

A partir do Quarto Evangelho, Tomé recebeu como alcunha a pecha de incrédulo. Como
já mencionado, seu ceticismo acerca da ressurreição corporal de Jesus perpetuou, no
imaginário popular, a noção de que para o discípulo, crer seria inseparável de ver. Adele
Reinhartz sustenta, sem aprofundar-se na questão da historicidade do episódio, que Jo 20:29
deve ser lido tendo em mente Jo 4:46-48:

Ele voltou novamente a Caná da Galileia, onde transformara água em vinho.


Havia um funcionário real, cujo filho se achava doente em Cafarnaum.
Ouvindo dizer que Jesus viera da Judeia para a Galileia, foi procurá-lo, e
pedia-lhe que descesse e curasse seu filho, que estava à morte. Disse-lhe
Jesus: “Se não virdes sinais e prodígios, não crereis78”.

Por conseguinte, a fala do Jesus de João para Tomé, assim como para o funcionário real
da perícope acima, é “endereçada aos leitores do evangelho de João, que vivem numa época
em que a visão direta de Jesus já não é mais possível” (2005, p. 58). Prosseguindo em sua
interpretação do narrado, Reinhartz aventa que o objetivo do autor consiste em afirmar a
superioridade da fé que se obtém com base no escutar em oposição à fé que se adquire
lastreada no ver.
O exemplo de Tomé, portanto, constitui uma espécie de instrução fornecida por João
para que seus leitores creiam naquilo que eles escutam sobre as palavras e os feitos de Jesus
através do evangelho (2005, p. 59). A fiar-se na leitura de Reinhartz, pode-se conjeturar que
esses leitores estavam a exigir das lideranças da comunidade demonstrações visíveis e
palpáveis dos benefícios que adviriam de fazer parte desse grupo. Em outras palavras,
clamavam por “sinais e prodígios”. Queriam provas insofismáveis. Consoante Reinhartz, tais
exigências eram abrandadas à medida que recebiam instruções como a parábola do bom
pastor (10:1-5):

Em verdade, em verdade, vos digo: quem não entra pela porta no redil das
ovelhas, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante; o que entra pela
porta é o pastor das ovelhas. A este o porteiro abre: as ovelhas ouvem sua
voz e ele chama suas ovelhas uma por uma e as conduz para fora. Tendo
feito sair todas as que são suas, caminha à frente delas e as ovelhas o

78
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém, em nota de rodapé, interferem na leitura da passagem postulando que o
dito de Jesus nela inserida é “provavelmente glosa do evangelista” e “se dirige aos contemporâneos” do
evangelista (1985, p. 1852, n. “f”).
186

seguem, pois conhecem a sua voz. Elas não seguirão um estranho, mas
fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos.

No fim das contas, pode-se inferir que Reinhartz concebe (a) uma comunidade de
crenças permeada por indivíduos capazes de ler e (b) cuja submissão aos preceitos do
cristianismo joanino implicava ouvir as palavras de Jesus contidas no evangelho. Seria o caso,
talvez, de pensar em uma comunidade de crenças em que feitos sobrenaturais – ou que assim
se crê que sejam – já não fossem reproduzidos com frequência. Nesse sentido, a ênfase no
ouvir aquilo que é lido, em detrimento do ver, seria um recurso estratégico empregado para
garantir a continuidade do grupo e silenciar aqueles que sentiam necessidade de algo mais que
relatos de curas milagrosas ocorridos no passado.
Com efeito, se essa era a intenção do autor do Quarto Evangelho e essa era a situação
vivencial da comunidade de crenças, a falha de Tomé residiu em não crer com base no
testemunho dos discípulos. Em não tê-los ouvido. Em não ter confiado em seus
companheiros. Por conseguinte, o incrédulo Tomé da passagem é uma criação de João
pensada para o momento pelo qual passava o grupo.
Edward W. Klink III conecta várias passagens do Quarto Evangelho e propõe que o
cético Tomé exerce uma função específica na narrativa joanina. Para ele, João é claro em
apontar que os discípulos foram todos enviados em missão “ao mundo” para fazer prosélitos
(2007, p. 237). De fato, esse evangelho canônico põe na boca de Jesus as seguintes palavras
(Jo 17:18-19):

Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E, por eles,


a mim mesmo me santifico para que sejam santificados na verdade.

Klink argumenta que o texto joanino não permite dúvidas de que a missão dos
discípulos pretende alcançar o máximo de pessoas, sem distinções de qualquer espécie. Mais
que isso, o Jesus de João espera que a crença desses que estão próximos a ele seja transferida
aos que ouvirão sua mensagem. Apesar desses últimos nunca terem-no visto em pessoa. Pois,
como o Quarto Evangelho defende, o objetivo central é que “todos sejam um” (17:21).
No que tange à passagem em que o incrédulo Tomé confessa sua fé em Jesus, Klink
postula (2007, p. 237):

Uma visão semelhante sobre os futuros crentes no interior da missão


[proselitista] é vocalizada na conversa de Jesus com Tomé. Jesus utiliza o
187

“crer porque viu” de Tomé como um exemplo para aqueles que creem, mas
que não verão. Aqueles que creem sem ver são abençoados.

Cumpre salientar, portanto, que a “confissão de Tomé” nesse momento da narrativa


corresponde ao clímax da confissão cristológica desse evangelho (2007, p. 237). Como
sustenta Klink, “leitores que chegaram a esse ponto da narrativa são, agora, capazes de juntar-
se a Tomé. O Quarto Evangelho é, então, uma testemunha para esses que não tenham visto
com seus próprios olhos; eles são abençoados se confiam em seu testemunho e creem” (2007,
p. 237).
Pagels, entretanto, advoga outra interpretação. Com efeito, após comparar a narrativa
joanina com a lista de sentenças tomesina, a pesquisadora chegou à conclusão que João
escreveu seu evangelho “para refutar o que Tomé ensina” (2004, p. 65).
Sustentando-se, em parte, no trabalho de Gregory Riley, Pagels entende que João
“inventou a personagem que chamamos de Tomé, o incrédulo, talvez como uma maneira de
caricaturar os que respeitavam um mestre – e uma versão dos ensinamentos de Jesus – que ele
considerava sem fé e falso” (2004, p. 66).
Mais que isso, ela postula que João “conta três episódios sobre Tomé para mostrar
como os cristãos de Tomé estão errados” (2004, p. 74). Por conseguinte, algo no conteúdo dos
ensinamentos dos “cristãos de Tomé” entrava em rota de colisão com a maneira como João
pensava ser a forma correta de ser “cristão”.
Lembrai-vos da

3 palavra que vos disse


Memória, oralidade e o novo Problema
Sinótico
175

“No ano 40”, postula Rodney Stark, “havia mil cristãos” (2006, p. 15). Com efeito, ele
infere, “se o cristianismo cresceu à taxa de 40% por década, haveria 7.530 cristãos no ano
100, 217.795 no ano 200 e 6.299.832 no ano 300” (idem, p. 16). Stark, por sua vez, demonstra
estar consciente de que o crescimento do cristianismo foi mais relevante no assim chamado
Oriente, ou seja, “na Ásia Menor, no Egito e no Norte da África” (idem, p. 20).
Ademais, como sugere Wayne Meeks, antes do fim da década de 30, “os que
acreditavam no Messias Jesus haviam levado a mensagem de sua nova seita às comunidades
judaicas das cidades greco-romanas” (2011[1983], p. 34). Assim, uma década após a
crucifixão de Jesus, o movimento cristão encontrou ambiente propício para seu
desenvolvimento na cidade greco-romana. A cultura das aldeias e vilarejos da Palestina havia
sido deixada para trás (2011[1983], p. 35).
Consoante Gillian Clark, debalde a crucifixão de Jesus, o Império Romano não caçou
seus seguidores imediatos e os primeiros missionários disseminaram os ensinos do Nazareno
por todo o mundo mediterrânico com o auxílio das estradas romanas, do controle imperial
romano e da aceitação romana da diversidade religiosa (2004, p. 5). A tolerância de Roma
para com o judaísmo, Clark sustenta, foi benéfica para os grupos cristãos primitivos. Com
efeito, esses se reuniam, no princípio, nas sinagogas judaicas ou entre gentios simpatizantes
do judaísmo conhecidos como tementes a Deus. Por conseguinte, é possível conjecturar que
essa tenha sido “uma razão pela qual não houve nenhuma tentativa sistemática para eliminar
os cristãos antes da metade do terceiro século” (2004, p. 6).
“O cristianismo primitivo”, assevera Gerd Theissen, “começou como um movimento de
renovação no interior do judaísmo trazido à existência por meio de Jesus” (1977, p. 1). Além
disso, o “primeiro cristianismo helenístico desenvolveu-se predominantemente fora da
Palestina, ainda que o movimento de Jesus fosse um fenômeno palestino que se disseminou
nas regiões vizinhas da Síria” (idem, idem).
176

“O movimento de Jesus”, acredita Theissen, teve sua estrutura interna determinada


“pela interação de três funções: os carismáticos itinerantes, seus simpatizantes em
comunidades locais e os portadores da revelação” (1977, p. 7). Com efeito, existia uma
“relação de complementaridade entre os carismáticos itinerantes e as comunidades locais: os
carismáticos itinerantes eram as decisivas autoridades espirituais nas comunidades locais e as
comunidades locais eram a base material e social indispensáveis para os carismáticos
itinerantes” (1977, p. 7).
Esse breve apanhado de considerações sobre o movimento de Jesus sem Jesus trata de
assuntos relevantes e, ao mesmo tempo, deixa na obscuridade outros ainda mais
fundamentais. Assim, o que se pode depreender do crescimento espantoso do cristianismo no
que tange aos seus adeptos? Como eram transmitidos os fundamentos desse movimento? As
cartas trocadas entre lideranças emergentes e grupos recém-formados podem ser
caracterizadas como uma espécie de panfletos escritos? O mesmo pode-se dizer acerca dos
evangelhos? Ou teria sido mais intenso e eficiente o recurso da “propaganda boca a boca”? A
fiar-se no modelo sugerido por Theissen, quem eram os sujeitos que ocupavam as funções por
ele criadas? A documentação existente permite descer ao nível da experiência dos indivíduos
e obter respostas plausíveis a esses questionamentos? E como fica a questão quando Tomé é
introduzido na discussão?

3.1. DIFUNDE-SE POR CAUSA DE SUA VULGARIDADE E DA IGNORÂNCIA DE SEUS

ADEPTOS

Historiadores e biblistas comungam, não obstante as múltiplas discordâncias entre si, de


uma mesma certeza: o movimento de Jesus migrou das margens do Império para seu centro,
deixando suas raízes rurais para trás vindo a assumir, paulatinamente, um novo ethos mais de
acordo com a vida das cidades.
Espraiou-se, conquistou novos adeptos, urbanizou-se, desligou-se do que ainda
conservava do judaísmo, estruturou-se à medida que mais complexo se tornava, reformulou-
se, tomou novas formas, constituiu hierarquias, conquistou corações e mentes, ganhou o
mundo, perdeu-se.
Subjazem a essa compreensão da difusão do movimento de Jesus sem Jesus alguns
consensos muito pouco contestados. Quando se imagina o mundo social dos primeiros
“cristãos”, é o assim chamado Novo Testamento que assoma à mente. Não resta dúvida de
que essa documentação dialogava com o mundo do qual era parte integrante. Contudo, a
177

pesquisa acadêmica ainda não se deu conta, por completo, da necessidade de encarar essa
mesma documentação como uma possível resposta aos textos procedentes de outros
segmentos que também podem ser rotulados como “cristãos”. Exemplos como os estudados
no capítulo 2 ainda são bastante pontuais.
Ademais, cumpre distinguir os adeptos do movimento de Jesus que ensejaram a
documentação neotestamentária dos seguidores que aderiram muito antes de haver evangelhos
escritos. E não tomar uns pelos outros. Nesse sentido, é salutar a apreciação de Esler segundo
a qual “os documentos do Novo Testamento nos falam a partir de mundos sociais
particulares” e que esses textos “manifestam uma complexa interpenetração de sociedade e
Evangelho, de contexto e kerigma (‘a proclamação de fé’) e que não se pode esperar entendê-
los sem uma metodologia apropriada para tratar de seu lado social” (1994, p. 2).
Com efeito, prossegue Esler, a História, “dada sua ênfase no único e no particular”, não
pode ter a expectativa de que é capaz de suprir todas as questões que podem ser colocadas ao
assim chamado Novo Testamento se o objetivo for “penetrar nas inter-relações, valores e
símbolos ordinários que caracterizam o cotidiano das comunidades cristãs primitivas e que
estão refletidas nos vinte e sete livros canônicos escritos por elas e para elas” (1994, p. 2).
Por conseguinte, ele propõe, é mister que se promova a busca de modelos, retirados das
Ciências Sociais, que auxiliem, de modo eficaz, na reconstrução dos mundos sociais em que
esses textos foram gerados. Mais que isso, e é de suma importância para os objetivos dessa
pesquisa, Esler frisa que os textos do assim chamado Novo Testamento “foram, em geral,
escritos para comunidades cristãs primitivas particulares” (1994, p. 6). Por outras palavras,
recorrendo ao seu tema principal de pesquisa, “o autor de Lucas-Atos estava escrevendo para
uma comunidade cristã em particular ou para um conjunto de comunidades com pronunciadas
similaridades estruturais” (idem, idem).
Reunindo todas essas suposições acadêmicas, tem-se, assim, um quadro no qual se
observa o crescimento do movimento que implica a disseminação da proposta de Jesus e,
inevitavelmente, a aceitação de suas ideias. Viver em conformidade com elas é uma outra
questão. Não obstante, e isso não é uma crítica aos pesquisadores, praticamente todos os
estudiosos operam com noções imbuídas de um paradigma: o paradigma do letramento
disseminado.
Com efeito, nota-se um silêncio acerca de como um movimento – um “fenômeno
palestino”, nas palavras de Theissen – que teve suas origens nas vilas e aldeias da Galileia,
nas quais se pode asseverar que havia o predomínio da fala aramaica, espalha-se ao longo do
178

Mediterrâneo alcançando regiões as mais distantes e nada ou muito pouco é dito sobre as
condições de recepção dessa mensagem.
Nesse sentido, Horsley e Silberman asseveram que o “cristianismo” (as aspas são dos
autores), pelo que é possível extrair da documentação escrita, era, “em suas primeiras
décadas, (...) uma rede de pessoas pobres e comunidades marginais nas cidades e nas zonas
rurais, que um governo, mesmo moderno, teria tido problemas para reconhecer como
‘religião’” (2000, p. 20).
Por meio de dados advindos da “arqueologia, fontes judaicas antigas, história social e
insights a partir da etno-história de sociedades camponesas em todo o Mediterrâneo”, os dois
autores esforçam-se para “reconstruir o panorama básico humano da época em que Jesus
iniciou seu ministério público” (2000, p. 57).
Além disso, os autores enfatizam (2000, p. 69):

O programa arrebatador de Jesus para a renovação comunitária nunca


poderia ser realizado por uma única pessoa; desde o inicio de seu ministério
percebemos os vagos esboços de uma estratégia organizacional. Ao enviar
apóstolos-missionários como Pedro, André, João e Tiago, pescadores de
Cafarnaum, às aldeias da Galileia e aos territórios vizinhos, Jesus decidiu
divulgar a mensagem do Reino por intermédio do trabalho daqueles que
assumiram o papel dos antigos “filhos dos profetas” – aquela sociedade
andarilha de pregadores inflamados pelo Espírito e taumaturgos que tiveram
seus atos e ensinamentos de justiça entre o povo do reino do Norte de Israel
registrados nos livros dos Reis.

Contudo, destacam Horsley e Silberman, o chamamento dos enviados de Jesus de


Nazaré não teve a resposta entusiasmada que se esperava. Com efeito, diferentemente do que
imaginam os cristãos atuais (2000, p. 70):

A própria ausência de referências históricas fora da literatura do Novo


Testamento indica que o ministério de Jesus na Galileia foi um fenômeno
extremamente local entre as aldeias galileias – desconhecido ou, com maior
probabilidade, considerado indigno de menção pelos cronistas
contemporâneos e pelos escribas oficiais da corte herodiana.

Debalde as conclusões de Horsley e Silberman, há indícios da presença de “cristãos”


para além da Galileia. Mais precisamente no Egito. Com efeito, consoante Colin Roberts, a
palavra  é encontrada em um papiro no qual há uma ordem dada pelo presidente
do Conselho de Oxirrinco e datada do ano 256 E.C. para que seja aprisionado certo
“Petosarapis, filho de Horus, descrito como um cristão” (1977, p. 3).
179

3.2. O QUE OUVIREM EM SEU OUVIDO, DE SEU TELHADO PROCLAMEM NO OUTRO

OUVIDO

Consoante o decano dos estudos neotestamentários, a formação do evangelho79 se deu


em três estágios (2004, p. 181-186):
1. O ministério público de Jesus ou a atividade de Jesus de Nazaré. Concomitante aos
feitos notáveis e à proclamação do Reino, por parte do filho de Maria, os seus companheiros
viam e ouviam o que era feito e dito. Isso ficou retido na memória de todos, constituindo “o
‘material sobre Jesus’ em estado bruto”. Contudo, sublinha o falecido biblista, tais memórias
eram seletivas. Implica dizer, reteve-se apenas o que foi tido como fundamental acerca da
carreira pública de Jesus.
2. A pregação (apostólica) sobre Jesus. A disseminação da mensagem do Reino,
confinada aos que viram e ouviram Jesus e, cumpre frisar, iluminada “pela fé pós-
ressurrecional”. Posteriormente, o “círculo dos pregadores missionários alargou-se para além
dos companheiros originais de Jesus, e as experiências de fé dos novos convertidos, como
Paulo, enriqueceram o que foi recebido e proclamado”. Durante esse estágio, destaca Brown,
entrou em operação a “necessária adaptação da pregação a um público-alvo”. Com efeito, a
transposição das propostas de Jesus, enunciadas originalmente em aramaico, para indivíduos
na diáspora, em grego, ensejou não somente um trabalho de tradução, mas também de
reformulação de uma série de ideias e conceitos.
3. Os evangelhos escritos. A documentação canônica emergiu em seguida a um estágio
no qual a pregação baseava-se “na conservação e desenvolvimento oral do material sobre
Jesus”. Diante das diferenças que se observam entre os evangelhos cumpre “admitir que os
evangelistas não foram testemunhas oculares do ministério de Jesus”. Por conseguinte, os
autores dessa documentação precisam ser compreendidos como indivíduos que “dão forma,
desenvolvem, revisam o material transmitido sobre Jesus e, como teólogos, direcionam-no
para um objetivo particular”.
Um primeiro aspecto a ser refletido na formulação de Brown é a sua noção de
exclusividade de retenção das memórias sobre os ditos e feitos de Jesus. Com efeito, as
lembranças, aos olhos de Brown, restringiram-se àqueles seus companheiros que estiveram ao
seu lado ao longo dos dias em que o programa do Reino de Deus era defendido pessoalmente

79
Brown emprega o termo no singular e, infere-se de suas ponderações, toma esse gênero literário como um
modelo padrão de escrito sobre as palavras e os feitos de Jesus de Nazaré.
180

por Jesus de Nazaré. Subentende-se que o decano dos estudos neotestamentários considera
ilegítimo todo o material que tenha sido escrito fora dos assim chamados círculos apostólicos.
Por conseguinte, não parece ser por acaso que ele frise a “fé pós-ressurrecional” como
um fator de fortalecimento daqueles que se engajaram no projeto de Jesus sem Jesus. Assim,
deliberadamente ou não, sua postulação faz com que escritos como o Evangelho Q e o
Evangelho de Tomé fiquem de fora desse esquema80. Mais que isso, esses últimos
documentos não seriam veículos autênticos das memórias de Jesus. De acordo com sua
expressão, não conteriam “material sobre Jesus”. Mesmo que ele suponha um alargamento do
círculo de pregadores missionários, ainda assim sua concepção exige que todos os que deram
continuidade ao sonho de Jesus tinham a ressurreição como fio condutor de suas vidas.
No entanto, louve-se o fato de que ele faça menção a um estágio de conservação e
desenvolvimento oral do material sobre Jesus. Ainda que não desdobre em todas as suas
consequências essa ponderação, encontra-se aí um ponto de crucial importância para a mais
recente fase da busca do Jesus histórico.
Com efeito, inovações em três áreas inter-relacionadas introduziram desafios
fundamentais às suposições padrão nos estudos bíblicos (HORSLEY, 2006, vii):
 Nos anos 1970, alguns intérpretes começaram a ler os evangelhos como narrativas
ininterruptas, abandonando o foco padrão sobre ditos e perícopes individuais.
 Nos anos 1980, assistiu-se ao início da exploração da comunicação oral que teria
sido predominante no mundo antigo e, particularmente, suas implicações no que se
refere ao material evangélico.
 Nos anos 1990, a memória cultural despertou a atenção de pelo menos alguns
pesquisadores como um fator central tanto na composição quanto na apropriação da
literatura bíblica. E, novamente, com reflexos na compreensão dos evangelhos.

80
Patterson, discorrendo sobre os desafios que Tomé trouxe para o mundo cristão, aponta que uma das razões
pelas quais esse evangelho “gnóstico” fez eclodir tantas resistências é o seu conteúdo. Com efeito, apesar “do
fato de os cristãos do mundo moderno não assassinarem uns aos outros por causa de disputas doutrinárias”, ainda
não se libertaram de sua “preferência instintiva pela unidade” em detrimento da “diversidade” (2013, p. 4). O
Evangelho de Tomé, segundo sua perspectiva, “é um problema nesse mundo teológico”, à proporção que “parece
não saber nada acerca do kerigma paulino” (2013, p. 4). Ademais, a leitura de Tomé suscita uma indagação
fundamental: “Podia Jesus – sempre biblicamente representado como envolvido no elevado drama do martírio –
ter se preocupado com algo tão frívolo como a auto-descoberta?” (2013, p. 5). Sem fazer prejulgamentos, não
parece muito complicado compreender a postura de Brown.
181

Convém ressaltar que em todos esses três campos Werner Kelber foi o pioneiro.
Horsley, por sua vez, comenta que os trabalhos de Kelber “não só abriram os olhos dos outros
pesquisadores para sua importância central para os estudos neotestamentários, mas tornaram-
se formativos para as tentativas de se questionar suposições, abordagens e interpretações
estabelecidas” (2006, viii).
Nesse sentido, Kelber desafiou as bem arraigadas postulações e metodologias dos
críticos da forma cujo olhar sobre o material evangélico enxerga as tradições orais dos ditos
de Jesus como se fossem “artefatos impressos” (idem, ix). Contrariando tais concepções,
Kelber ponderou que a compreensão mais adequada dos evangelhos passa por entendê-los em
seu contexto histórico, ou seja, com “sensibilidade para a comunicação oral e para o quão
inter-relacionado estava a textualidade com a oralidade” (2006, x). Ademais, Kelber salienta,
“antes que os evangelhos existissem em sua forma escrita, eles eram apresentados oralmente e
recebidos auditivamente” (2006, x).

3.2.1. COMO ENTENDE ELE DE LETRAS SEM TER ESTUDADO?

Pesquisadores do porte de John D. Crossan (2004), Holly Hearon (2004), Whitney


Shiner (2003), Richard Horsley e Jonathan Draper (1999), Ian Young (1998), têm
proficuamente lançado mão do estudo de William Harris (1991) acerca do grau de letramento
na Antiguidade greco-romana a fim de embasar suas percepções em torno do mundo em que
os cristianismos e os judaísmos coexistiram. Por meio desse autor, mostra-se bastante
provável estimar que o “nível de analfabetismo geral do Império Romano sob o principado
estivesse acima de 90%” (1991, p. 22). Mesmo entre as “populações mais educadas – que
seriam encontradas, principalmente, nas cidades gregas do quarto ao primeiro século a. E.C. –
a extensão [de iletrados] a ser notada, se incluíssemos mulheres e populares, estaria bem
acima de 50%” (idem, idem).
Não obstante essas estimativas, uma parcela considerável de estudiosos do cristianismo
primitivo opera com a noção de que as primeiras gerações de seguidores do movimento de
Jesus sem Jesus eram marcadamente letradas. Por conseguinte, imagina-se um cenário no qual
os autores dos evangelhos canônicos escreveram para assembleias letradas que,
rotineiramente, liam, estudavam e debatiam entre si tanto as Escrituras Hebraicas quanto os
escritos produzidos em ambiente protocristão.
Com efeito, é comum argumentar que o simples fato de que esses textos canônicos
tenham sido escritos e preservados atestaria um substancial letramento no interior das
182

primeiras comunidades de crenças cristãs, à medida que não faria sentido produzir
documentos escritos para pessoas incapazes de entender seu conteúdo.
Assim, cumpre subdividir esse cenário em momentos distintos: (a) Jesus de Nazaré e
seus seguidores imediatos; (b) movimento de Jesus sem Jesus; (c) instauração de
comunidades e seus respectivos escritos.
No que tange a primeira subdivisão, Catherine Hezser propõe ter sido o movimento de
Jesus com Jesus uma espécie de judaísmo “popular” dirigido às massas incultas. Sua análise
contrapõe o que se pode saber acerca dos fariseus ao que se pode inferir dos evangelhos
canônicos para concluir que, entre outros fatores, “no caso de Jesus e seus seguidores
primitivos, o conhecimento das Escrituras pode ter se dado primariamente ou mesmo
exclusivamente através dos meios orais de comunicação e não por meio do estudo textual”
(2013, p. 81).
Ao contrário, por exemplo, dos essênios81, Jesus e seus companheiros não gozavam da
condição daqueles pouco privilegiados que podiam dedicar-se ao desenvolvimento das
habilidades de ler e escrever (2013, p. 81). Hezser assim o afirma por que (2013, p. 82):

A ampla maioria dos judeus palestinos trabalhava na agricultura [e isso] não


exigia tais habilidades [de ler e/ou escrever]. Tanto na sociedade judaica
quanto na greco-romana escrever era uma habilidade técnica adquirida por
escribas treinados. Inexiste evidência de que ler em hebreu fosse uma
competência difundida na sociedade judaica. Não temos evidências de um
sistema escolar elementar organizado na Palestina romana e bizantina.

Nesse sentido, a pesquisadora alinha-se ao pensamento dos que advogam ter sido Jesus
um camponês iletrado82. Com efeito, Young, visando definir o grau de letramento no antigo

81
Gabriele Boccaccini disserta sobre a hipótese, amplamente popular e bastante difundida, de os essênios serem
os autores dos Manuscritos do Mar Morto, ou a Literatura de Qumran. Nesse sentido, ele sublinha, persiste,
mesmo entre muitos estudiosos, que “o povo de Qumran não são somente membros de uma comunidade essênia
– eles são os essênios. A indistinção do movimento essêno e a ausência de uma literatura essênia reconhecida
levam os estudiosos a utilizarem textos qumrânicos para descrever as atitudes essênias. Como resultado, os
termos ‘essênio’ e ‘qumrânico’ se tornaram virtualmente intercambiáveis” (2010, p. 31).
82
Crossan considera ser altamente provável que Jesus de Nazaré fosse analfabeto. Consoante a única referência
textual acerca de sua condição social, ou seja, o registro em Marcos (6:3): “Não é este o carpinteiro, o filho de
Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?”, Crossan postula que,
“se Jesus era carpinteiro”, ele pertencia, portanto, “à classe dos Artesãos” (1995, p. 41). Por conseguinte,
devendo ser incluído entre os “95 a 97% do estado judaico” que eram analfabetos. Mais recentemente, ele voltou
ao assunto, enunciando que, para ele, “Jesus era analfabeto até que o contrário seja comprovado” (2004, p. 275).
183

Israel esclarece que uma rede de escolas subsidiadas pelo Estado ou pela religião é essencial
para que se possa medir essa condição. Mesmo que a alfabetização, como assinala Harris,
possa ser passada na instrução doméstica, não se conhece nenhum exemplo de sociedades
majoritariamente letradas sem a presença de um sistema extensivo de escolas (1991, p. 15-
16).
No caso específico do Antigo Israel, debalde os acalorados debates, convém reconhecer,
com Young, a escassez de evidências de que essas escolas, caso tenham existido, “possuíam
como objetivo educar as massas” (1998, p. 242). Por fim, cumpre frisar que é crucial haver
uma ideologia que, por razões econômicas, religiosas ou filantrópicas, considere o letramento
generalizado um fim a ser alcançado (1991, p. 20-21). Como resultado, afirma Young, a
dificuldade em se demonstrar a existência concreta de escolas, na documentação bíblica,
assinalaria, portanto, o desinteresse por uma “ideologia de educação” (1998, p. 243).
À medida que a documentação canônica não retrata o Nazareno manuseando a Torah,
lendo-a e expondo seu conteúdo, seria plausível admitir que o seu conhecimento sobre as
Escrituras se deu por meio “da audição, da memorização e da readaptação de passagens
conforme as circunstâncias de sua audiência” (p. 83).
Convém salientar, entretanto, a resistência da historiografia do assim chamado Novo
Testamento em reconhecer essa condição. Paul Foster, em seu esforço no sentido de atestar
um Jesus letrado, aponta como os pesquisadores do século XIX não possuíam dúvidas acerca
da “infância, criação, educação e influências formativas que moldaram o menino Jesus”
(2006, p. 7). Mesmo D. F. Strauss, um erudito reconhecidamente liberal e cético, mostrava-se
“incrivelmente ingênuo para os padrões modernos da historiografia quando descrevia os anos
formativos de Jesus” (idem, p. 8). Assim, ao referir-se à passagem na qual as multidões ficam
espantadas com os ensinamentos de Jesus à medida que este “ensinava com autoridade e não
como os seus escribas” (Mt 7:29), Strauss infere que (apud FOSTER: 2006, p. 9):

A consideração deve ter sido feita no interesse da lenda cristã em representar


Jesus como independente de mestres humanos, [que] podia induzir dúvidas a
respeito dessas afirmações no Novo Testamento e a uma conjuntura na qual
Jesus pudesse não ser assim tão estranho à cultura ensinada em sua nação.

Por conseguinte, Strauss conclui ser natural admitir que Jesus recebeu educação e, em
consequência disso, era capaz de ler (2006, p. 9). No entanto, a visão sobre o letramento de
Jesus assumiu outra feição ao longo do século XX. Foster lembra que muitos pesquisadores
estabelecem seus pontos de vista lastreados no já mencionado estudo de Harris.
184

Tendo em vista seu propósito de oferecer uma visão alternativa no que se refere às
habilidades de Jesus de Nazaré para ler e escrever, Foster empenha-se em desmontar as
ilações de Harris. Assim, se o surgimento e a disseminação da educação elementar são
diretamente dependentes da urbanização, a tese de Harris mostra-se frágil já que, “embora a
Galileia fosse amplamente rural, havia significativos centros urbanos” (2006, p. 11).
Por outro lado, Nazaré, local com grande probabilidade de ser a terra natal de Jesus e
situada na Galileia, teria uma população, segundo Foster, entre 630 e 720 habitantes. Esse
quantitativo, portanto, permitiria supor que os habitantes de Nazaré poderiam, tranquilamente,
sustentar uma “’escola’ de um só professor” (2006, p. 11)83. Sensatamente, Foster admite,
porém, que “nenhum dos quatro evangelhos canônicos oferece evidências incontroversas de
um Jesus capaz de ler e escrever” (idem, p. 12). Não obstante, em seu ponto de vista, há fortes
indícios no sentido contrário. Quer dizer, Foster sustenta que Jesus de Nazaré era detentor de
habilidades básicas de leitura. Mais que isso, ele sugere que “talvez Jesus não fosse
proveniente da classe social dos camponeses galileus iletrados” (2006, p. 12).
Foster constrói sua hipótese tomando como primeiro indício a passagem lucana que
descreve um episódio do ministério público de Jesus no qual ele, como “era seu costume”,
retornando a Nazaré, “onde fora criado”, entra “em dia de sábado na sinagoga e levantou-se
para fazer a leitura” (Lc 4:16)84. De acordo com a narrativa evangélica (Lc 4:17-21):

Foi-lhe entregue [a Jesus] o livro do profeta Isaías; desenrolou-o,


encontrando o lugar onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me
para proclamar a libertação dos presos e aos cegos a recuperação da vista,
para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do
Senhor”. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos na
sinagoga olhavam-no, atentos. Então começou a dizer-lhes: “Hoje se
cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura”.

Curiosamente, embora admita que essa citação do livro de Isaías levante muitas
controvérsias, tais como sua relação com a LXX, a intromissão de Is 58,6 em sua sequência e
a historicidade real em si do incidente, Foster pondera que o autor do evangelho “apresenta a

83
Cumpre mencionar que J. F. Strange estipula uma população de não mais que 480 indivíduos no início do
século I E.C. (1992, p. 1050) enquanto Eric Meyers e James Strange, tomando por base a extensão de seus
túmulos, estimam uma população numa faixa entre 1.600 a 2.000 pessoas (1981, p. 56).
84
Os tradutores da Bíblia de Jerusalém apressam-se em elucidar seus leitores que “qualquer judeu adulto era
admitido, com autorização do chefe da sinagoga, a fazer a leitura pública do texto sagrado” (2008, p. 1795, n.
“a”).
185

habilidade de ler de Jesus de uma maneira incidental sem qualquer intenção apologética
óbvia” (2006, p. 13).
Entretanto, como acentua Esler, “há pouca dúvida que a perícope concernente à
recepção de Jesus em Nazaré (Lc 4:16-30) exerce uma função programática dentro de Lucas-
Atos como um todo” (1996, p. 34). Assim, as análises literárias da passagem demonstram que
Lucas tomou emprestada a perícope marcana (Mc 6:1-6) e a embelezou de modo a torná-la o
discurso de abertura do ministério público de Jesus. Convém, portanto, explanar, ainda que
ligeiramente, sobre a redação da perícope lucana. No evangelho de Marcos, a passagem é
sumária:

Saindo dali, foi para a sua pátria e os seus discípulos o seguiram. Vindo o
sábado, começou a ensinar na sinagoga e numerosos ouvintes ficavam
admirados, dizendo: “De onde lhe vem tudo isto? E que sabedoria é esta que
lhe foi dada? E como se fazem tais milagres por suas mãos?”

Observa-se que Marcos não descreve a leitura do livro de Isaías, resumindo tudo na
afirmação de que Jesus “começou a ensinar na sinagoga” e, com isso, atraindo a admiração de
“numerosos ouvintes”. Muito embora alguns intérpretes operem com a perspectiva de que
Lucas usou, além de Marcos, outros documentos, a solução mais simples para esse caso é ver
aqui “Lucas retrabalhando livremente” o material marcano e “sem o concurso de outras
fontes” (1996, p. 35). Inferência inequívoca dessa maneira de ler a passagem lucana: “o valor
da versão lucana como fonte para as atitudes e ações do Jesus histórico resta
consideravelmente enfraquecido” (1996, p. 35).
Não obstante, o conservador Meier entende que esses versos lucanos oferecem um
“quadro bem representativo” da possibilidade histórica de Jesus ser “versado no uso das
Escrituras”. Mais que isso, a passagem proporcionaria “certa base indireta para se supor que
Jesus sabia ler e comentar as Escrituras hebraicas” (1992, p. 268).
No entanto, Meier é forçado também a admitir que a perícope lucana é controversa.
Quase se pode imaginar seu desânimo quando menciona que “se ao menos pudéssemos
aceitar Lucas 4:16-30 como um relato fiel de um fato histórico, teríamos uma prova
inquestionável de que Jesus sabia ler e interpretar as escrituras hebraicas” (1992, p. 268)85.
Adiante, após citar estudiosos reconhecidamente renomados que salientam a pouca
probabilidade desse episódio no ministério público de Jesus ser autêntico, ele conclui que

85
O decano dos estudos neotestamentários é econômico e assertivo acerca dessa perícope. Para Brown, a
passagem consiste “na única prova evangélica de que Jesus sabia ler” (2004, p. 341).
186

continua questionável a utilidade dessa passagem no sentido de comprovar o letramento de


Jesus, à medida que “a referência à leitura de Jesus talvez não faça parte da narrativa original”
(1992, p. 269).
Não obstante, Meier prossegue no seu intuito e analisa diferentes sujeitos,
contemporâneos a Jesus e discorre sobre várias “considerações gerais sobre o judaísmo
palestino do século I” (1992, p. 276). Assim, ele alega que a atuação de Jesus como mestre
acrescidas de “provas indiretas” permitem deduzir que “ele tinha, portanto, um razoável nível
de alfabetização em hebraico e também em aramaico” (1992, p. 276).
Com efeito, para ele não parece incoerente postular que Jesus, “em algum ponto de sua
infância ou no início da idade adulta (...) aprendeu a ler e interpretar as Escrituras hebraicas”
(1992, p. 276). Mais que isso, teria sido “na sinagoga de Nazaré” que sua instrução se deu ou
ao menos teve início.
No entanto, apesar de todas essas observações, Meier não pode se furtar a faltar com a
honestidade intelectual. Releve-se o que declara acerca de Jesus e seu “alto grau de talento
natural”, sua “genialidade” e de não ser “um camponês igual aos outros” (1992, p. 276).
Atente-se, portanto, às suas derradeiras palavras a respeito da alfabetização de Jesus (1992, p.
276):

É prudente entender que nesse ponto, como ocorre com bastante frequência
na pesquisa sobre Jesus, chegamos à nossa conclusão não através de textos
diretos, claros e inquestionáveis, mas sim mediante argumentos indiretos,
deduções e linhas convergentes de probabilidades.

Muito embora Foster dialogue intensamente com a obra de Meier, isso não esmorece
nele o desejo de atestar um Jesus letrado. Assim, a “probabilidade de Jesus saber ler” é
aumentada pelo fato de ele “ter sido criado no meio de uma pia família judia” e de ter, ao
longo de sua vida, “demonstrado uma fascinação pelas Escrituras tanto como um conjunto de
textos para debater quanto a informar valores éticos” (2006, p. 14).
Como reforço às suas suposições, Foster encontra em outra passagem do evangelho de
Lucas elementos que ampliam, segundo sua visão, as possibilidades de Jesus de Nazaré ter
sido um judeu letrado. Assim, ele direciona sua investigação para a narrativa lucana de
nascimento de Jesus destacando (Lc 1:35-36):

O Anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo


vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado
187

Filho de Deus. Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice, e


este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril.

O ponto central para o argumento de Foster é retirado da relação que o texto destacado
afirma existir entre Maria, mãe de Jesus, e Isabel, mãe de João, cognominado Batista: ambas
são parentas.
Essa situação de proximidade sanguínea poderia não significar muito, se o autor de
Lucas, por meio dela, não pretendesse fazer com que seus leitores/ouvintes tomassem ciência
de que “a mãe de Jesus estava ligada a círculos sacerdotais” (2006, p. 16). Com efeito, o
próprio texto lucano assinala que Isabel, “descendente de Aarão”, era esposa de “um
sacerdote chamado Zacarias, da classe de Abias” (Lc 1:5). Essas referências suscitam, em
Foster, a noção de que Lucas, debalde a “suspeita geral do valor histórico da narrativa da
infância lucana como um todo” (2006, p. 17), exprimiu esse detalhe acerca dos parentes de
Maria porque desejava conferir a Jesus uma linhagem sacerdotal.
Deliberadamente ignorando toda a erudição neotestamentária que descarta qualquer
laivo de historicidade a narrativa da infância lucana, Foster então postula que, “se for correta a
relação de parentesco entre Maria e Isabel”, Jesus teria nascido no interior de um stratum da
sociedade no qual “o letramento era valioso e a educação elementar (ao menos a leitura das
Escrituras) refletiam uma conexão com as classes sacerdotais e a mais ampla devoção
religiosa judaica” (2006, p. 17).
Enfim, Foster chega à conclusão de que laboram em erro os defensores do iletramento
de Jesus à proporção que seus métodos são todos falhos. Em outras palavras, a “pesquisa
sócio-científica comparada”, dedicada a estudar os níveis de letramento na Antiguidade não é
aplicável ao contexto da cultura judaica do primeiro século e, apesar dos textos que reportam
um Jesus iletrado, “as linhas convergentes de evidências traçadas a partir do ‘material sobre
Jesus’ da igreja primitiva tornam implícitas as alegações acerca de sua habilidade para ler”
(2006, p. 32).
Conta o Quarto Evangelho que Jesus de Nazaré, perseguido pelos judeus na Judeia,
concentrou seu ministério pelos lados da Galileia. No entanto, a aproximação da festa judaica
das Tendas impulsionou o primeiro filho de Maria a tomar o rumo de Jerusalém. Com efeito,
de acordo com a narrativa, Jesus adentrou na cidade “às ocultas” e, mais que isso, “ninguém
falava dele abertamente, por medo dos judeus” (Jo 7:13).
188

No entanto, “quando a festa estava pelo meio”, Jesus “subiu ao Templo e começou a
ensinar” (Jo 7:14). Espantados e admirados, os judeus então expressaram todo o seu
constrangimento com o ocorrido (Jo 7:15):

Como entende ele de letras sem ter estudado?

As palavras chave nessa indagação dos judeus são “entender de letras”. Harris oferta
uma advertência muito útil a seu respeito. Assim, ele assevera (1991, p. 6):

Mesmo quando está claro que um texto literário antigo refere-se a um


letramento básico e não a algum nível mais alto de educação, é muito
raramente claro quanto conhecimento uma pessoa necessitava para ser
qualificada como “conhecedora de letras”. Tais expressões têm de ser
interpretadas caso por caso.

Tudo indica que a situação descrita pelo Quarto Evangelho deve ser interpretada, não
como uma educação geral por parte de Jesus, mas antes, como frisa Chris Keith, “uma
educação específica judaica” e que o “entender as letras” do versículo refere-se ao
“surpreendente conhecimento de Jesus acerca da lei judaica” (2009, p. 152). Nesse sentido,
“no contexto do capítulo 7” da narrativa joanina, cumpre reconhecer que “entender de letras”
diz respeito a “conhecer Moisés” ou “ter certo nível de familiaridade com a lei mosaica”
(2009, p. 153).
Keith persuasivamente demonstra que os versículos joaninos enfeixados no capítulo 7
estão longe de constituir material para os defensores das habilidades de leitura por parte de
Jesus. Convém sublinhar, por sua vez, que o pesquisador aproveita o ensejo para mencionar o
artigo de Foster e, polidamente, afirmar que sua argumentação não se sustenta.
Assim, convém trazer à baila uma das considerações de Crossan a esse respeito. Com
efeito, ele alinha-se ao grupo de pesquisadores que entendem ser contraproducente afirmar
que Jesus fosse letrado. Em razão disso, como ele podia citar tantas vezes, no curso de seu
ministério público, as Escrituras Hebraicas?
Crossan advoga que Jesus conhecia (1995, p. 41):

Como a ampla maioria de seus contemporâneos de uma cultura oral, as


narrativas fundacionais, estórias básicas, e expectativas gerais de sua
tradição, mas não os textos exatos, citações precisas ou argumentações
intricadas de suas elites de escribas.

Entretanto, ele prossegue dizendo (1985, p. 41):


189

Cenas, em outras palavras, como em Lucas 2,41-52, em que a sabedoria


jovem de Jesus espanta seus cultos mestres no Templo em Jerusalém, ou
Lucas 4,1-30, em que sua capacidade adulta para encontrar e interpretar uma
certa passagem de Isaías, devem ser vistas claramente pelo que são:
propaganda de Lucas reformulando o desafio e o carisma orais de Jesus em
termos de instrução e exegese de escriba.

Mas um Jesus iletrado e carismático atraiu para seu entorno pessoas totalmente iletradas
e outras com níveis diferenciados de letramento. Nesse sentido, convém salientar, mais uma
vez, as considerações de Crossan em outro momento de sua prolífica produção historiográfica
(2004, p. 275) (Os grifos são originais):

Assim, mesmo que Jesus fosse um camponês falando a camponeses, outros,


além de camponeses, o ouviam. Não foram camponeses que escreveram
esses dois evangelhos, o Evangelho Q e o Evangelho de Tomé.

Cumpre, portanto, aferir as implicações desses postulados para a questão que emerge
quando Tomé é visto em perspectiva comparada com os evangelhos sinóticos.

3.3. O NOVO PROBLEMA SINÓTICO

Solicite a um fiel cristão, minimamente acostumado a folhear as páginas de sua Bíblia,


que busque na própria memória e aponte em qual evangelho canônico Jesus de Nazaré teria
dito:

Você vê o cisco que está no olho de seu irmão, mas não vê a trave que está em seu
próprio olho. Quando tirar a trave de seu próprio olho, então você verá de modo
suficientemente claro para tirar o cisco do olho de seu irmão.

Com maior ou menor esforço, tal indivíduo afirmaria tratar-se de uma fala de Jesus
encontrada nos evangelhos de Mateus e de Lucas. No entanto, não é de se espantar que esse
mesmo indivíduo tivesse uma reação de surpresa ao saber que o dito não se encontra nem em
Mateus e nem em Lucas. Com efeito, a fala destacada e atribuída a Jesus está em Tomé86.

86
Meyer chama a atenção para o fato de que no Talmude Babilônico, ‘Arakin 16b, expõe-se uma sentença
similar: “Foi ensinado: o Rabi Tarfon disse: ‘Pergunto se há uma pessoa desta geração que aceita admoestação?
Se alguém disser-lhe (sic): “Retire o cisco de entre seus olhos (ou dentes caninos)”, ele lhe diria: “Retire a trave
de entre seus olhos (ou dentes caninos).”’” (1993, p. 92).
190

Convém sublinhar, portanto, que os pesquisadores identificaram, para além dessa fala
sobre o cisco e a trave, notáveis similaridades entre vários ditos de Tomé e os evangelhos
sinóticos. Isso, por sua vez, fez emergir um caloroso debate acerca das relações literárias entre
esses documentos. Celeremente, os estudiosos posicionaram-se em lados opostos e trataram
de defender suas conclusões em torno da questão. Em síntese, estava instalado um novo
Problema Sinótico.

3.3.1. TOMÉ DEPENDE DOS SINÓTICOS

O pesquisador britânico Christopher Tuckett tem sido um defensor acérrimo da


dependência literária de Tomé. Em suas análises, ele põe em destaque a importância que as
relações entre esses escritos dos cristianismos primitivos têm para os que se dedicam a
pesquisar as origens do movimento iniciado por Jesus de Nazaré.
Assim, consoante Tuckett, um dos pontos principais e de maior relevância consiste em
obter uma conclusão satisfatória sobre se Tomé “fornece uma fonte independente que nos
permita descobrir genuínas informações acerca de Jesus” (1988, p. 133). Uma segunda razão
para investir nesse campo, ele afirma, diz respeito à busca por uma detalhada história da
tradição de ditos individuais ou de um grupo de ditos.
Nesse sentido, Tuckett assinala, “com frequência, a independência de Tomé parece ser
tão calmamente admitida que as evidências [desse evangelho] podem ser usadas para lançar
luz sobre a história pré-redacional da tradição” (1988, p. 133). No entanto, antecipando as
conclusões do pesquisador, essas questões e o problema central da dependência ou
independência de Tomé lhe parecem insolúveis.
É lógico que os debates foram intensos e entusiasmados nos anos subsequentes à
descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi e à publicação de Tomé. Naquela época, os
pesquisadores tomavam como certa a dependência de Tomé explicando, por sua vez, as
diferenças textuais entre esse escrito e os demais evangelhos canônicos por meio do
argumento de que uma mão redacional gnóstica teria intervido nas tradições de Jesus.
Abordando a questão por outro viés, Schrage produziu, em 1964, uma monografia na
qual adotou como método comparar o texto copta de Tomé às versões coptas dos evangelhos
sinóticos. Assim o fazendo, Schrage concluiu que as concordâncias entre os textos coptas
atestavam que o autor de Tomé dependia da documentação canônica. Sua pesquisa
monográfica, porém, rendeu-lhe muitas críticas.
191

Tuckett, em sua crítica a monografia de Schrage, sublinha haver um reconhecimento


“quase universal” de que o texto copta de Tomé é uma tradução, muito provavelmente, do
grego para o copta. Ademais, os fragmentos de papiro em grego de Tomé encontrados em
Oxirrinco, Egito, evidenciam que esse evangelho já circulava em grego em épocas anteriores.
Por conseguinte, infere Tuckett, “deve-se considerar a possibilidade de, no processo de
tradução, a linguagem de Tomé foi assimilada àquela do Novo Testamento copta” (1988, p.
134).
Ademais, uma comparação mais aprofundada do texto copta de Tomé e os fragmentos
de Oxirrinco mostra que “nem sempre um é a tradução do outro” (1988, p. 135). Permitindo
concluir que o texto copta de Tomé era relativamente fluido. Nesse sentido, pondera Tuckett,
tendo em vista as evidências de que esse evangelho gozava de certa popularidade, e a
tradução para o copta é um forte indício disso, convém “não saltar muito rapidamente das
evidências mostradas pelo presente texto copta para conclusões acerca de um subjacente texto
(em grego?) original” (1988, p. 135).
Tuckett adverte, no entanto, ser bastante difícil dizer, abstratamente, quais
concordâncias entre Tomé e os Sinóticos “são devedoras de uma assimilação secundária por
parte do escriba e quais são originais” (1988, p. 135). Nesse sentido, cada caso precisa ser
detidamente estudado e jamais se pode perder de vista que, ao se julgar os ditos, “são
inevitáveis elementos de subjetividade” (1988, idem).
Como seu objetivo é jogar por terra os argumentos entabulados pelos defensores da
independência literária de Tomé em relação aos Sinóticos, Tuckett dirige sua atenção para
dois pontos comumente utilizados: (a) a ordem dos ditos e (b) a ausência de quaisquer
ligações entre esse evangelho e o material redacional dos Sinóticos.
No que tange ao ordenamento das falas de Jesus em Tomé, Tuckett discorda dos que
operam conforme a seguinte noção: como a ordem dos ditos de Jesus em Tomé não
acompanha a mesma ordem nos evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas isso é uma evidência
irrefutável de independência literária entre os textos. Afinal de contas, por qual razão lógica
Tomé alteraria essa ordem?
Em sua refutação a esse argumento, Tuckett propõe duas respostas. Em primeiro lugar,
ele recorre às versões conhecidas de Tomé, ou seja, o texto copta encontrado em Nag
Hammadi e os fragmentos gregos desenterrados em Oxirrinco, Egito.
Cotejando um texto inteiro (versão copta) a pedaços de textos (versão grega), Tuckett
afirma que há um único exemplo em que o tradutor para o copta alterou a ordem do texto
grego aparentemente sem uma razão declarada. Por conseguinte, ele conclui, há bons motivos
192

para não se prender a essa forma de argumentação à medida que “é incerta a ordem original
de Tomé” (1988, p. 139).
Em segundo, Tuckett raciocina de acordo com a suposição defendida por outros
pesquisadores de que a ordem dos ditos em Tomé pode ser determinada por um conjunto de
palavras de ligação. Assim, a sequência dos ditos teria um caráter artificial, mas nem por isso
sem uma lógica própria. “Pode ser”, ele sustenta, “que a ordem em Tomé seja muito bem
concebida, porém nós ainda não descobrimos o seu segredo” (1988, p. 139).
Acerca do outro argumento recorrentemente utilizado, Tuckett admite ser um aspecto
um pouco mais difícil de negar sua validade. Com efeito, as semelhanças textuais entre Tomé
e o Sinóticos tanto podem apontar uma relação de dependência daquele com estes quanto
podem sugerir a existência de tradições comuns que antecedem a todos esses textos.
Todavia, o ponto em discussão é o desconhecimento de Tomé em torno das
modificações redacionais ensejadas pelos autores dos evangelhos sinóticos. Convém
ponderar, com Tuckett, que nesse ponto da análise corre-se um sério risco de se deparar com
argumentos circulares e, mais que isso, de entrar por um beco sem saída. Assim, não se
chegará a uma conclusão satisfatória enquanto não for determinado o que, nos evangelhos
sinóticos, é fruto da intervenção de um editor.
Cumpre, portanto, trazer à baila exemplos que auxiliem e facilitem a compreensão da
réplica de Tuckett quanto ao argumento usado para defender a independência literária de
Tomé. Assim, observem-se os ditos paralelos em Mateus e em Lucas:

Mt 23:13 Lc 11:52

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, Ai de vós, legistas, porque tomastes a


porque bloqueais o Reino dos Céus diante chave da ciência! Vós mesmos não
dos homens! Pois vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam
entrais, nem deixais entrar os que querem. entrar!

O dito mencionado apresenta, como se percebe nitidamente, diferenças e semelhanças.


Consoante os especialistas em Evangelho Q, o dito provém desse documento hipotético,
porém sofreu uma intervenção posterior. Nesse sentido, é possível inferir que o núcleo central
do dito contém “ai de vós ... porque”, “vós mesmos não entrais/entrastes” e “impedistes/nem
deixais entrar os que querem”.
Por outro lado, sem muito esforço pode-se postular que ou “escribas e fariseus,
hipócritas, [porque] bloqueais o Reino dos Céus diante dos homens” ou “legistas, [porque]
tomastes a chave da ciência” constitui material redacional. Implica dizer, Mateus ou Lucas
193

fizeram alterações no material de Q no que tange aos grupos que mereceram receber a
admoestação de Jesus de Nazaré. Por conseguinte, apenas um dos dois conservou a versão
original de Q.
É o momento, portanto, de voltar-se para o texto de Tomé e ver como esse dito de Jesus
foi registrado. Assim, a arenga entre Jesus e seus oponentes aparece no dito 39:

Jesus disse: “Os fariseus e os escribas tomaram as chaves do conhecimento e


as esconderam. Eles não entraram, nem permitiram que entrassem aqueles
que querem entrar. Quanto a vocês, sejam tão astutos quanto cobras e tão
inocentes quanto pombas”.

Para Tuckett, o dito em Tomé se encontra mais próximo de Lucas do que de Mateus, à
medida que falta o objeto ao verbo “entrar” e encontra-se referência a chave(s) do
conhecimento/da ciência. Todavia, e isso é crucial em sua refutação, mesmo entre alguns
defensores da existência de Q, pondera-se terem sido produzidas mais de uma versão desse
documento e que os autores de Mateus e de Lucas tinham cópias que já apresentavam
distinções textuais entre si.
Ou seja, teria havido um Qmt e um Qlc e Tomé teve acesso a uma dessas duas cópias
manuscritas. Mais que isso, ao fiar-se nessa possibilidade cairia por terra toda e qualquer
tentativa de advogar a independência de Tomé com base no desconhecimento das alterações
redacionais e ficaria fortalecida a defesa da dependência à proporção que o autor desse
documento, longe de representar uma tradição autônoma e paralela, teve, diante de si, um dos
exemplares que mais adiante foi aceito como canônico.
Assim, Tuckett acredita arrematar a discussão asseverando que “as variações no
palavreado em Mateus e em Lucas podem ser devidas às tradições subjacentes aos dois
evangelhos e nenhuma versão é necessariamente redacional em qualquer ponto” (1988, p.
142).
Prosseguindo em seu intento, Tuckett destaca outro exemplo. Dessa vez ele analisa os
ditos paralelos em Marcos e em Lucas:

Mc 6:4 Lc 4:24

E Jesus lhes dizia: “Um profeta só é Em verdade vos digo que nenhum profeta
desprezado em sua pátria, em sua é bem recebido em sua pátria.
parentela e em sua casa”.
194

Orientando-se pelo postulado da Teoria dos Dois Documentos, ou seja, Marcos foi,
assim como o Evangelho Q, uma das fontes textuais de Lucas, o dito lucano evidencia a mão
redacional de seu autor que optou por encurtar a fala de Jesus que ele encontrou em Marcos,
decidindo-se por excluir, assim, “em sua parentela e em sua casa”. Ao mesmo tempo, Lucas
manteve somente “profeta” e “pátria”, adotando “bem recebido” em vez de “desprezado”.
No entanto, esse caso se reveste de um aspecto peculiar. E que é ótimo, senão
definitivo, para os defensores de algum tipo de relação literária entre Tomé e os Sinóticos. O
dito “é um dos poucos registrados em POxy 1, de modo que nós temos uma versão grega de
Tomé com a qual comparar a Lucas” (1988, p. 143).
Dessa forma, posicionados lado a lado encontra-se o seguinte:

Mc 6:4 Lc 4:24 POxy 1,30-35

  


  
  
 
 

O argumento decisivo em favor do conhecimento do autor de Tomé – e, por inferência,


algum tipo de dependência literária – do evangelho lucano é o aparecimento em ambos do
termo grifado Com efeito, adota-se a seguinte lógica redacional:
1. O autor de Lucas remodelou o documento que lhe serviu de base, escolhendo trocar
“desprezado” por “recebido”;
2. O termo “recebido” aparece na versão grega de Tomé;
3. Logo, Tomé, de alguma maneira, conheceu o texto de Lucas.
Deduzindo-se, assim, que esse evangelho não oferece meios independentes de acesso
aos ditos originais de Jesus de Nazaré.
Dando continuidade ao seu objetivo, qual seja, demonstrar à saciedade o equívoco dos
estudiosos que consideram Tomé uma tradição independente, Tuckett discute outros Ditos
paralelos. Assim, o pesquisador britânico frisa que a fala de Jesus, registrada em Tomé como
Dito 55, não permite que ainda se pense numa tradição autônoma por trás desse documento.
Com efeito, o Jesus de Tomé declara:

Quem quer que não odeie o pai e a mãe não pode ser meu seguidor, e quem
quer que não odeie irmãos e irmãs e não carregue a cruz como eu carrego
não será digno de mim.
195

Ao lançar o olhar para essa fala atribuída a Jesus nos evangelhos canônicos de Mateus e
de Lucas, o pesquisador depara-se com a seguinte situação:

Mt 10:37 Lc 14:25-26

Aquele que ama pai ou mãe mais do que Grandes multidões o acompanhavam.
a mim não é digno de mim. E aquele que Jesus voltou-se e disse-lhes: “Se alguém
ama filho ou filha mais do que a mim não vem a mim e não odeia seu próprio pai e
é digno de mim. mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a
própria vida, não pode ser meu discípulo”.

Dessa maneira, Tuckett constata que é inviável admitir que ambos os finais sejam
originais. Ou seja, um exclui o outro. Sem discutir qual dos dois possivelmente remonta a
Jesus de Nazaré, pois esse não é o seu desiderato, o pesquisador postula que Tomé, ao
reproduzir os dois textos, “claramente mostra concordância com um fim secundário” (1988, p.
148). Que, em outras palavras, permite inferir que Tomé elaborou seu evangelho lastreando-se
em materiais escritos aos quais teve contato.
Em suas considerações finais, Tuckett mostra-se um pouco mais cauteloso e indica ser
prematuro afirmar que esses exemplos atestam uma dependência de Tomé aos Sinóticos como
um todo. Assim, “a existência de um paralelo entre Tomé e um elemento redacional nos
Sinóticos pode apenas revelar uma possível dependência naquele ponto” (1988, p. 156).
Ainda no campo das hipóteses, Tuckett adverte para o fato de que Tomé poderia estar
inconsciente de “quando ele estaria ecoando material redacional de nossos evangelhos
sinóticos e quando estaria ecoando material da tradição” (1988, p. 157). Essa incerteza reforça
o que ele assinala já no princípio de sua exposição: o problema da relação entre Tomé e os
Sinóticos é, provavelmente, insolúvel.
Não obstante, o pesquisador reitera que os paralelos mostrados entre Tomé e os
Sinóticos excluem qualquer possibilidade de defesa da independência daquele em relação a
esses. Em suma, “isso deveria nos prevenir de propor generalizações em torno da
independência de Tomé e, mais que isso, tirar conclusões baseadas em tal teoria” (1988, p.
157).

3.3.2. TOMÉ CONHECEU OS SINÓTICOS


196

Em linha de raciocínio semelhante, Tjitze Baarda, consoante Perrin (2007, p. 195), vem
se mostrando um infatigável crítico dos que propugnam a independência literária de Tomé.
Em especial, contra os que garantem haver aramaismos, ou no mínimo certo colorido
semítico, no palavreado copta ou grego de Tomé. Com efeito, isso sendo demonstrado
remeteria esse documento não canônico, no todo ou em parte, para estágios mais primitivos
da tradição oral ou escrita que eram correntes em comunidades de fala aramaica. Que, em
tese, estabeleceria a antiguidade e independência de Tomé.
Metodologicamente é legítimo que historiadores recorram a esse expediente como
forma de encontrar um lugar para Tomé na trajetória formativa dos cristianismos. Quanto a
isso, Baarda está de pleno acordo. No entanto, ele adverte, “se aramaismos são encontrados
em um logion [Dito], isso pode apontar para o caráter arcaico desse logion específico, porém
não prova que o documento inteiro está, por consequência, enraizado na tradição aramaica
primitiva” (1991, p. 374) (Grifos originais).
Nesse sentido, Baarda debruça-se sobre o Dito 8 com o propósito de demonstrar a pouca
consistência dos argumentos usados para, a partir dele, provar a independência de Tomé. Essa
fala de Jesus em Tomé costuma ser colocada em paralelo a uma parábola registrada pelo autor
de Mateus. O quadro comparativo a seguir põe-nas lado a lado:

Mt 13:47-50 To 8

O Reino dos céus é ainda semelhante à E ele disse: “O homem é como um


rede lançada ao mar, que apanha de tudo. pescador sábio que lança sua rede ao mar
Quando está cheia, puxam-na para a praia e a tirou do mar cheia de pequenos peixes.
e, sentados, juntam o que é bom em Entre estes o pescador sábio descobriu um
vasilhas, mas o que não presta, deitam peixe grande e excelente. Jogou os peixes
fora. Assim será no fim do mundo: virão pequenos de volta ao mar e sem
os anjos e separarão os maus dos justos e dificuldade escolheu o peixe grande.
os lançarão na fornalha ardente. Ali Quem quer que tenha ouvidos para ouvir
haverá choro e ranger de dentes. deve ouvir”.

È mais do que evidente que ambos os textos possuem similaridades. Pode-se suspeitar,
inclusive, da existência de alguma forma de conexão entre eles. Por conseguinte, Baarda
elenca as três sugestões por ele conhecidas (1991, p. 375):
1. Tomé é dependente de Mateus; as diferenças textuais explicam-se pela remodelação
editorial por parte de um editor gnóstico.
2. Mateus é dependente de Tomé, ou, ao menos, da tradição por trás desse texto e o dito
original de sabedoria foi modificado por Mateus no sentido de se adequar aos seus propósitos
no capítulo de seu evangelho em que ele concentra várias parábolas atribuídas a Jesus.
197

3. Ambas as versões remontam a uma tradição pré-canônica na qual a parábola era


transmitida em uma forma diferente tanto de Tomé quanto de Mateus.
Cumpre sublinhar que a série de parábolas enfeixadas por Mateus em seu evangelho
denota uma evidente ação redacional. Isso é demonstrado quando elas são comparadas ao
conjunto semelhante de parábolas escritas por Marcos. Como Baarda frisa, “parece bastante
provável que Mateus não apenas acrescentou essa parábola, mas também a reformulou em
linguagem estritamente mateana, especialmente na explanação dos versículos 49-50 pela qual
o redator final pode ser responsabilizado” (1991, p. 375-376).
Por sua vez, os que advogam a tese de que esse dito de Jesus em Tomé fazia parte de
uma tradição independente argumentam que a ausência da interpretação mateana da parábola
seria a garantia do ponto de vista que defendem. Baarda, por outro lado, insiste para que esses
que assim se posicionam reconheçam que mesmo o Dito em Tomé apresenta traços de uma
mão editorial. Nesse sentido, ele salienta três aspectos: (1) a substituição de “Reino dos céus”
pela expressão gnóstica  no início da parábola; (2) o emprego de “sábio” pode
igualmente ser reflexo de um redator gnóstico e, por fim, (3) a escolha de um único “peixe
grande” pode ter sido impulsionada pela ideia gnóstica de distinção entre muitos e o único, de
forma que o contraste entre maus e bons peixes em Mateus tenha de ser substituído por uma
distinção entre, de um lado, muitos e, de outro, um (1991, p. 376). Em suma, Baarda conclui,
muito embora se salientando o possível caráter arcaico da parábola em Tomé, deve-se ter
clareza de que algumas “dramáticas alterações foram o efeito de uma reelaboração
redacional” (1991, p. 377).
Em seguida, Baarda assevera que, na discussão sobre a independência de Tomé, o Dito
8 desempenha um papel chave. Especialmente se levado em conta a contribuição de Gilles
Quispel ao debate.
Com efeito, a fim de demonstrar o status pré-canônico e extracanônico da versão da
parábola em Tomé, Quispel recorre ao Diatessaron de Taciano. Assim, nas palavras de
Baarda, Quispel orientou-se pela seguinte ideia (1991, p. 380):

Taciano recolheu seu material não apenas dos evangelhos canônicos, mas
também de outras fontes judaico-cristãs. Ele parece ter adotado, para o
Diatessaron, um texto da parábola da rede de pescar que difere da versão
mateana e concorda, em larga medida, com a versão de Tomé. Resultando
disso que Tomé e Taciano eram dependentes de uma fonte judaico-cristã.

Baarda tenta dar um basta a essa questão sugerindo que todas as dificuldades se
encerram se e quando os estudiosos postularem que “não obstante suas imagens em comum,
198

as duas parábolas são completamente independentes” (1991, p. 387) e, consoante Robert


Winterhalter, passarem a tratá-las como “parábolas separadas com significados bastante
diferentes (...) e não baseadas sobre uma única fonte” (1988, p. 22).
Todavia, Baarda lamenta, a maioria dos estudiosos não segue por esse caminho. O
procedimento usual é o de “enfatizar a originalidade e a autenticidade da forma do Dito em
Tomé em contraste com o desenvolvimento secundário do Dito original conforme a estrutura
escatológica do discurso mateano da parábola” (1991, p. 387).
O ponto aqui, portanto, diz respeito ao Jesus que é reconstruído pela pesquisa
acadêmica. Com efeito, as declarações de independência de Tomé em relação aos Sinóticos
ressentem-se da convicção de que aquele evangelho, tido como gnóstico, “foi capaz de
preservar a tendência original das palavras de Jesus como um pregador de sabedoria cuja
atenção estaria voltada para o indivíduo e sua alma” (1991, p. 388).
Nesse sentido, em consonância com essa linha de pensamento, Tomé jamais seria
dependente de Mateus ou dos demais evangelhos sinóticos. Mais que isso, restaria aos meios
acadêmicos reconhecer que uma linha paralela de desenvolvimento das tradições de Jesus
assumiu um tom escatológico e do qual Mateus seria um dos seus representantes canônicos.
Soa um pouco estranho, no entanto, o comentário de Baarda acerca dos proponentes da
independência de Tomé em relação aos Sinóticos. Em seu ponto de vista, qualquer perquirição
sobre o raciocínio de muitos dentre esses acadêmicos revela que, como critério de
interpretação, encontra-se “meramente a intuição de que Jesus foi um pregador de sabedoria e
não um profeta escatológico ou um rabi apocalíptico” (1991, p. 388).
Baarda explica esse cenário, por sua vez, como reflexo de uma moda ou nova onda
teológica. Assim, da mesma maneira que o fim do século XIX viu a profusão de obras
retratando um Jesus moralista e o início do XX presenciou a disseminação de um Jesus
escatológico, os meados do XX embarcam na concepção de um Jesus sábio. “Contudo”, ele
pondera, “esse princípio dificilmente pode ser um guia seguro”, pois “são os textos que
decidem a questão e não as vistas que flutuam sobre a superfície de cada nova onda teológica”
(1991, p. 389).
A sinceridade de Baarda merece ser reconhecida à medida que ele admite não ser um
negador intransigente da hipótese da independência de Tomé. Pelo contrário, ele afirma estar
convencido de que há material autêntico em Tomé, a despeito de sua redação tardia e
gnóstica. Entretanto, e ele está corretíssimo nesse aspecto, cumpre “seguir as mesmas regras
como no caso da pesquisa em torno de Q, [ou seja], usar métodos históricos, linguísticos e
literários sólidos a fim de ver em que medida Mateus e Lucas recolheram material da tradição
199

e em que medida ambos redigiram seus ditos com base em suas próprias convicções
teológicas” (1991, p. 390).
Em suma, Baarda, como suas palavras não deixam margem para dúvidas, recomenda
como solução para a questão olhar Mateus e Tomé enquanto textos. E somente textos. Nesse
sentido, os últimos versos da parábola em Mateus – “Assim será no fim do mundo: virão os
anjos e separarão os maus dos justos e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e
ranger de dentes” – seriam, indubitavelmente, um “toque redacional” do autor/editor desse
evangelho. Entretanto, ele assevera peremptoriamente, “não há nada que ateste que o dito
fosse originalmente um dito de sabedoria e que Mateus o alterou no sentido de torná-lo um
dito escatológico” (1991, p. 390).
Baarda sublinha que ele não diz que Tomé é dependente de Mateus, mas que é
plenamente possível que Tomé conhecesse o texto de Mateus e usou-o na construção de sua
parábola (1991, p. 393). E sob quais bases pode-se fazer essa especulação?
Fundamentalmente, por dois motivos: (1) a não inclusão, por Tomé, do provavelmente
secundário elemento da explicação da parábola por Mateus e (2) a comparação com o
pescador em vez de com a rede.
Em que medida essa omissão deve ser encarada como um argumento convincente? Em
outras palavras, de que forma pode-se postular que o autor de Tomé travou contato – por meio
de leitura? Por meio da audição? Por meio da memória? – com o texto canônico de Mateus e
resolveu, deliberadamente, redigir a parábola conforme seu viés teológico e, assim o fazendo,
deixou de lado a explanação escatológica mateana? Isso, óbvio, caso se mantenha a convicção
de que Tomé não procede dos relatos de uma testemunha ocular das pregações de Jesus de
Nazaré.
A fim de atestar sua hipótese, Baarda recorre a alguns comentadores do evangelho de
Mateus: Pseudo-Teófilo de Antioquia, Santo Agostinho, Aphrahat e Efraim. O que todos
esses antigos cristãos possuem em comum é o fato de, ao usarem a parábola mateana em suas
exegeses, terem passado ao largo no que tange aos últimos versos da parábola, abdicando de
tecerem comentários sobre eles.
Nesse sentido, citando Pseudo-Teófilo de Atenas, Baarda descreve como esse
comentador dos evangelhos canônicos referiu-se à parábola (apud BAARDA, 1991, p. 393):

A rede que é lançada ao mar é a pregação trazida ao mundo. Os peixes são


pescados [e isso] quer dizer que pessoas boas e pessoas más entram juntas na
igreja. Porém, as más, criando cismas, rasgam a rede, e muitos descrentes
tem se afastado da comunidade católica.
200

Agostinho de Hipona é trazido à baila por Baarda para mostrar que seu procedimento é
idêntico ao do exegeta de Antioquia (apud BAARDA, 1991, p. 393):

No tempo [que antecede o julgamento final], irmãos, deixemo-nos bem viver


dentro de redes, não nos deixemos sair pelos rasgos das redes. Pois muitos
têm rasgado a rede, criado cismas e nos abandonado (...). Pois essas redes
têm pescado peixes, bons e maus.

Esses exemplos, portanto, embasam Baarda para que ele assevere (1991, p. 394):

É óbvio que os intérpretes antigos puderam facilmente dispensar a exposição


de Mateus para adequar-se aos seus próprios fins. Por que o redator de Tomé
não poderia ter feito o mesmo que eles?

Em tese, não parece ilógico que Tomé haja decidido, por interesse próprio, desprezar os
versos escatológicos que encerram a parábola mateana e tenha redigido o final que mais lhe
aprouve. Contudo, e com o máximo de respeito ao pesquisador holandês, sua solução
ressente-se de um simplismo que não faz jus ao seu histórico no campo da pesquisa
acadêmica.
Nesse sentido, se esse for o caminho para escrever a história dos cristianismos e as
relações entre os autores e suas respectivas comunidades de crenças, serão temerários os
resultados a que se chegarão.
Debalde isso, convém retomar o raciocínio de Baarda, pois ele tem ainda elementos a
oferecer para a pesquisa em curso. Assim, muito embora avente ser Tomé um texto que, de
uma forma ou de outra, depende dos Sinóticos, Baarda faz questão de frisar que ele está
convicto de que o evangelho de Tomé pode ter preservado materiais arcaicos. Apenas para
esclarecer esse ponto, ao referir-se a material arcaico, Baarda tem em mente a tradição pré-
canônica. Porém, não necessariamente ditos que tenham sido proferidos por Jesus de Nazaré.
Com efeito, sua intenção residiu em desconstruir a ideia de que Tomé, especificamente
o Dito 8, guardou falas mais antigas e mais autênticas do que, por exemplo, o evangelho de
Mateus. Por conseguinte, ele aponta, enquanto não for devidamente provado que o evangelho
de Tomé deriva da tradição pré-canônica, é precoce “concluir que esse Dito mostra que Jesus
não era um mestre escatológico, mas um guru que ensinava sabedoria” (1991, p. 396).
Ademais, ele faz um apelo para que a historiografia abandone a suposição de que o Dito
8 é chave para considerar Jesus um mestre de sabedoria. Cumpre não se esquecer de seu
201

comentário, meio ácido, acerca das novas ondas teológicas que sobem e descem ao longo do
tempo.
Ignoramos, ele pondera, a fonte ou cenário originais que conferiram a Mateus condições
para elaborar sua parábola. De igual maneira, desconhece-se a fonte ou cenário originais no
qual Tomé estava inserido para sermos peremptórios no que se refere ao seu ato de redigir a
parábola em tela. A menos, ele sublinha, que Tomé haja reescrito o texto de Mateus.
Assim, parece-lhe mais cômodo resolver o imbróglio batendo na tecla de que é mais
conveniente aceitar que “temos, diante de nós, duas formas diferentes da parábola” e que
“Tomé pode ser dependente de Mateus, porém não temos como nos certificar disso” (1991, p.
396).

3.3.3. TOMÉ ESTAVA FAMILIARIZADO COM OS SINÓTICOS

Disposto a repensar toda a produção que o antecedeu, Mark Goodacre lança as bases
para uma compreensão de Tomé que o diferencia dos demais autores que buscam solucionar o
problema das relações literárias entre esse evangelho e os Sinóticos.
Nesse sentido, ele advoga que o termo que mais bem indica aquela relação não é
“dependente” e nem “independente”, mas “familiarizado”. Boa parte de sua motivação nesse
sentido veio à tona quando Goodacre foi impactado pela rejeição peremptória de John P.
Meier acerca dos reclamos de independência e anterioridade de Tomé em relação aos
evangelhos canônicos.
Com efeito, Meier, após uma extensa argumentação contrária a aceitação de Tomé como
uma fonte segura para a busca do Jesus histórico, asseverara (1992, p. 141):

Esta ampla “disseminação” dos ditos de Jesus por tantas e diferentes


correntes da tradição (e da redação!) dos Evangelhos Canônicos nos força a
encarar uma questão fundamental: será mesmo provável que a fonte real e
primitiva dos ditos de Jesus, em que o Evangelho de Tomé supostamente se
inspirou, contivesse material pertencente a tantos ramos diferentes das
tradições cristãs do século I, como Q, M especial, L especial, redações de
Mateus e de Lucas, a tradição tripla e, possivelmente, a tradição de João?
Quais seriam a fonte, a localização e a composição dessa tradição
incrivelmente vasta, apesar de tão antiga? Quem foram seus portadores? Será
realmente concebível ter existido alguma fonte cristã primitiva que
contivesse todos esses diferentes elementos daquilo que resultou nos
Evangelhos Canônicos?

Por fim, Meier sacramenta sua posição refratária aos defensores da independência de
Tomé, considerando ser muito mais plausível e muito mais provável que esse documento não
202

passe de uma “fusão de material dos Evangelhos de Mateus e Lucas, com o possível uso de
Marcos e João” (1992, p. 141). Mais que isso, mesmo sem propor nenhuma prova a respeito,
Meier declara que Tomé baseou-se “não diretamente nos quatro Evangelhos Canônicos, mas
em alguma fusão dos mesmos já escrita em grego” (1992, p. 141).
Goodacre, de certa forma, estranha o fato de pouquíssimos especialistas em Tomé
tenham buscado replicar a argumentação de Meier. Com efeito, ele entende que Meier tenta
por em contraste dois cenários e, por conseguinte, visa demonstrar que um “é mais plausível
que o outro” (2012, p. 23). E quais seriam esses cenários?
O primeiro, defendido ardorosamente por Meier, seria um cenário no qual os paralelos
entre esses evangelhos poderiam ser explicados por meio da suposição de que Tomé era
detentor de cópias dos Sinóticos e, deliberadamente, escolheu quais versículos e passagens
empregar na composição de seu evangelho. O outro, por sua vez, teria Tomé como um texto
independente e mais antigo que os evangelhos canônicos – situação que causa calafrios em
Meier – e cujo autor/editor teve acesso a uma variedade considerável de tradições orais pré-
canônicas.
Na perspectiva de Goodacre, ambos os cenários se mostram problemáticos. No segundo
caso, porque pressupõe uma “tradição oral consideravelmente mais homogênea e unificada do
que comumente se pensa” (2012, p. 24). Por conseguinte, supõe Goodacre, os defensores da
independência de Tomé têm, diante de si, dois caminhos a seguir quando tratam da
emergência do material sinótico nesse evangelho “gnóstico” (2012, p. 24)87:

Caminho “A”

Evangelho
de Tomé
Evangelho
Tradições de João
orais
homogêneas
Evangelhos
Sinóticos

87
Os esquemas foram criados com base nas afirmações de Goodacre e não constam de seu livro. Seu propósito é
o de auxiliar na compreensão de seu pensamento.
203

Caminho “B”

Evangelho
de Marcos
Lucas
Tradições especia
orais l
homogêneas
Evangelho
Mateus de Tomé
especial

Contudo, consoante Goodacre, nenhum dos dois caminhos é adotado pelos especialistas
em Tomé. Com efeito, citando Patterson, admitir qualquer uma dessas duas possibilidades
contrariaria a afirmação de que Tomé deve ser compreendido como “o resultado de um ramo
autônomo das tradições cristãs primitivas” (apud GOODACRE, 2012, p. 24). Antes, Tomé
seria dependente, de uma forma ou de outra, de tradições orais comuns aos demais
evangelhos. Por essa razão, Goodacre postula que a “familiaridade de Tomé com os Sinóticos
oferece, aqui, o modelo mais econômico e persuasivo” (2012, p. 24).
Na continuidade de sua descrição em torno das relações entre Tomé e os Sinóticos e a
defesa da familiaridade daquele com estes, Goodacre afirma que se as partes em comum entre
esses textos resumirem-se a uma palavra aqui e a uma frase ali, não é de todo improvável
postular alguma forma de conhecimento mútuo da tradição oral. No entanto, ele prossegue,
“se existirem casos onde Tomé e os Sinóticos mostrem extensas concordâncias textuais em
várias passagens” (2012, p. 25), é o caso então de conexões diretas entre os textos serem
fortemente consideradas.
Com isso em mente, Goodacre se concentra em comparar os textos em busca das
concordâncias literais que se mostrem mais do que meras possibilidades de eventuais
contatos. Nesse sentido, ele vai na contramão dos defensores da independência de Tomé à
medida que agrega ao debate os manuscritos gregos encontrados em Oxirrinco.
Com efeito, muito embora reconheça o estado fragmentário dos papiros de Oxirrinco,
Goodacre faz uma advertência sensata: mesmo nas condições em que se encontram, esses
fragmentos são as evidências mais antigas que temos desse evangelho. Por conseguinte, o
escrutínio acadêmico jamais poderia dispensar esse material.
Em função disso, ele observa (2012, p. 29):
204

A marginalização do testemunho textual grego tem vários efeitos


prejudiciais para a pesquisa de Tomé, dos quais o mais importante é a
tendência a negligenciar as concordâncias textuais, em grego, entre Tomé e
os Sinóticos.

O primeiro exemplo que é trazido à baila é o da considerável semelhança textual entre


Lucas 6:42 // Mateus 7:5 e P.Oxy. 1.1-4:

Mt 7:5 Lc 6:42 P.Oxy. 1.1-14


Hipócrita, tira primeiro a Hipócrita, tira primeiro a trave
trave do teu olho, e então de teu olho, e então verás bem e então verás
verás bem para tirar o cisco para tirar o cisco do olho de bem para tirar o cisco do
do olho do teu irmão. teu irmão. olho de teu irmão.

Goodacre sublinha que a concordância entre os textos é ainda mais impressionante pelo
fato de o testemunho grego de Tomé ser bastante fragmentário. Ademais, como o dito se
inicia com “e então verás”, pode-se inferir que algo bastante similar ao que se encontra em
Mateus e em Lucas estava presente na parte do papiro que não resistiu à ação do tempo.
Entretanto, por minúcias da crítica textual, Goodacre chama a atenção para mais um
fato: a palavra “cisco” ocorre, em todo o assim chamado Novo Testamento, apenas nessa
passagem. Ou seja, “é o tipo de concordância que aponta para o contato direto entre os textos
em questão” (2012, p. 31). Por conseguinte, ele é taxativo, uma “concordância textual como
essa é realmente característica de um contato direto entre textos e não de ‘materiais oralmente
transmitidos’” (2012, p. 32).
Por essas palavras, Goodacre critica acadêmicos que relegam essas concordâncias
textuais a um segundo plano, à proporção que se nota uma marcada preferência pelo Tomé de
Nag Hammadi. Assim, é curioso, ele salienta, que o primeiro fragmento que veio à luz não
tenha sido o testemunho textual que mereceu mais estudo e análise no decorrer dos anos que
Tomé passou a ser objeto de pesquisa. À medida que o tempo passou, essa “extraordinária
semelhança textual” foi caindo no esquecimento e sua relevância, ignorada. A razão para isso,
ele propõe, não estaria apenas na marginalização dos fragmentos gregos, mas “no fracasso em
se apreciar a importância da concordância textual e o que isso tem a nos dizer acerca das
relações entre trabalhos literários” (2012, p. 33).
Com efeito, ele sugere que se proceda a mais cotejamentos entre os Sinóticos e os
papiros fragmentários de Tomé em grego. Por mais que possa parecer um procedimento
despropositado, Goodacre frisa, esse trabalho mostrará que há notáveis concordâncias textuais
205

e, sobretudo, porque envolvem “palavras ou expressões que são raras o bastante para chamar
a atenção” (2012, p. 34).
Por essa forma de buscar as referências textuais, ou seja, tendo em mira palavras raras,
Goodacre propõe comparar os ditos registrados em Lc 17:20-21 e P.Oxy. 654.15-16:

Lc 17:20-21 P.Oxy. 654.15-16


Jesus disse, “[Se] os que vos lideram [lhes
Interrogado pelos fariseus sobre quando
dizem, ‘Veja] o reino está no céu’, então os
chegaria o Reino de Deus, respondeu-lhes “A
pássaros do céu [os precederão. Se lhes dizem]
vinda do Reino de Deus não é observável. Não
‘está debaixo da terra’, então o peixe do mar
se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali!’, pois eis
[entrará ali e precederá] vocês. E [o reino de
que o Reino de Deus está dentro de vós”.
Deus] está dentro de vós [e está fora de vós].”

Convém reconhecer, em primeiro lugar, que a concordância textual é da ordem de oito


palavras desde que a lacuna no papiro grego seja preenchida com “o reino de Deus”. No
entanto, Goodacre pondera, face ao contexto do Dito, não pareça incoerente completar a
lacuna com a expressão.
No entanto, o que multiplica as chances de se postular, com relativa segurança, a
existência de contato direto entre os textos são as palavras “está dentro de vós”. Uma
expressão que é incomum e que ensejou muitas tentativas diferentes de tradução. Não por
acaso, convém mencionar a nota de esclarecimento ofertada pelos tradutores da Bíblia de
Jerusalém que preferem usar “no meio de vós” (2008, p. 1820, n. “a”):

Como uma realidade já atuante [referência ao questionamento feito a Jesus


sobre a época da vinda do Reino de Deus]. Costuma-se traduzir também:
“Dentro de vós”, o que não parece diretamente indicado pelo contexto.

No entanto, Ilaria Ramelli assinala que a expressão entos humôn não apresenta variantes
nos muitos manuscritos de Lucas conhecidos. Debalde essa constatação, as modernas
traduções desse evangelho escolhem empregar, tal como a Bíblia de Jerusalém, “no meio de
nós”. O que lhe parece, com toda razão, totalmente sem sentido.

Após tecer esses comentários persuasivos em torno das semelhanças textuais entre os
Sinóticos e os fragmentos de papiro em grego de Tomé, Goodacre volta-se para a cópia em
copta desse evangelho. Convém sublinhar sua advertência de que essa não é uma tarefa
simples. Com efeito, há esforços nesse sentido por meio da retroversão, ou seja, traduzir o
206

copta para o grego e, a partir daí, buscar os paralelos textuais e suas concordâncias e
discordâncias.
Consiste tal trabalho em um “campo minado”, como pontua Goodacre. O risco que se
corre com isso tem a ver com a possibilidade de uma retradução para um texto grego que, de
alguma maneira, se ajuste a uma teoria conveniente e, assim procedendo, confirmar o que se
procura. Implica dizer, servir-se de um método enviesado cujo fim é o de ratificar conclusões
adquiridas antes mesmo de se iniciar a retradução.
Cabe, por conseguinte, repetir a cautelosa sugestão de Tuckett no que tange ao exercício
de retradução de Tomé do copta para o grego88:

Nos casos em que [existem paralelos em] grego e [em] copta, mas que
diferem um do outro, não é de forma alguma claro que as diferenças sejam
devidas a uma versão grega subjazendo por debaixo do texto copta; as
diferenças podem, muito facilmente, ter surgido quando ocorreu a tradução
para o copta.

Muito embora todas as prevenções que retraduzir do copta para o grego – e, acrescento,
para a língua portuguesa – devam suscitar, em razão de sua imprecisão por natureza, possíveis
semelhanças textuais são também obtidas. Situando-se aqui um dos argumentos mais fortes
do lado dos que apoiam uma relação de dependência de Tomé sobre os Sinóticos.
Assim, nas passagens paralelas Mt 9:37-38 // Lc 10:2 e Tomé 73, encontra-se o seguinte
quadro:

Lc 10:2 Tomé 73 [retraduzido]


Jesus disse: “A colheita é grande, mas os
E dizia-lhes: “A colheita é grande, mas os
trabalhadores são poucos. Então peçam ao
operários são poucos. Pedi, pois, ao Senhor da
Senhor para enviar trabalhadores para a
colheita que envie operários para sua colheita”.
colheita”.

Apesar das pequenas divergências que a tradução para o português apresenta a


quantidade de concordâncias textuais, consoante Goodacre, oferece um indicador de
relacionamento direto entre os textos. Mais que isso, cumpre sublinhar que “a natureza
relativamente incomum de uma porção de termos [nesse Dito] em Tomé”, como, por
exemplo, “trabalhadores”, “grande” e “poucos”, “sugere a direção do relacionamento”, ou
seja, “dos Sinóticos para Tomé” (2012, p. 42).

88
Resenha do livro The gospel of Thomas: original text with commentary de Uwe-Karsten Plisch e disponível
em http://www.bookreviews.org/pdf/6592_7138.pdf
207

Convém ter clareza, porém, que a maior quantidade de concordâncias textuais


encontradas se dá quando se faz a comparação entre os Sinóticos e os fragmentos em grego do
que com Tomé em copta. Num caso e no outro, o que se deve procurar desenvolver é um
método que possibilite aferir, minimamente, a direção em que a concordância se dá. Em
outras palavras, se dos Sinóticos para Tomé ou se vice-versa.
Nesse sentido, uma forma por meio da qual os estudiosos pretendem atestar essa direção
reside em isolar um aspecto que seja claramente redacional em um evangelho sinótico e, em
seguida, demonstrar como Tomé faz paralelo com essa característica redacional. Assim
procedendo, os pesquisadores acreditam ter condições de asseverar que Tomé derivou esse
aspecto do evangelho em tela e não de sua fonte pré-textual.
Todavia, cumpre ressaltar, mesmo essa metodologia nem sempre permite assegurar,
com algum consenso, a dependência de Tomé. Com efeito, a questão é tão controversa que há
casos em que os mesmos ditos concordantes, do ponto de vista textual, são encarados como
evidência tanto da dependência quanto da independência.
Considere-se, portanto, os paralelos registrados em Mt 5:3 // Lc 6:20 e Tomé 54:

Mt 5:3 Lc 6:20 Tomé 54


Erguendo então os olhos para
E pôs-se a falar e os ensinava,
os seus discípulos, dizia: Jesus disse: “Felizes os
dizendo: “Felizes os pobres
“Felizes vós, os pobres, pobres, pois de vocês é o
de espírito, porque deles é o
porque vosso é o Reino de reino dos céus”.
Reino dos Céus”.
Deus”.

Ao examinar esses ditos em paralelo, Crossan explica porque eles constituem um


argumento indubitável de independência (1985, p. 37):

Estudiosos consideram, há bastante tempo, que “de espírito” é um acréscimo


redacional e pessoal de Mateus. (...) [Em Tomé] precisamente o que está
ausente é a adição editorial de Mateus. Mas e se alguém contra-argumentar e
disser que Tomé copiou de Lucas essa passagem? Isso não funcionará. Teria
de ser demonstrado, pelo menos, que Tomé (a) pegou a terceira pessoa
“pobre” de Mateus, em seguida (b) a segunda pessoa “vós” de Lucas e (c)
retornou a Mateus para o final “reino dos céus”. Seria muito mais simples
sugerir que Tomé era mentalmente instável.

Goodacre é nem um pouco cordial com Crossan. Com efeito, acerca da declaração
destacada, ele frisa: “a retórica é poderosa, mas o argumento é fraco” (2012, p. 51). A
sugestão de Crossan, por sua vez, mais bem entendida como “uma caricatura prosaica,
desprovida de imaginação” (2012, p. 51).
208

Deve-se salientar, porém, que Goodacre está advogando em causa própria, pois alhures
ele posicionou-se na contramão do consenso acadêmico no que tange à qual seria a frase mais
autêntica dentre essas duas maneiras distintas de bem-aventurança. Com efeito, enquanto
Tuckett se pronuncia (1996, p. 223):

Na primeira beatitude, muitos concordam que seu objeto em Q é os “pobres”


e que “pobres em espírito” é devido à mudança redacional [efetuada por
Mateus], “espiritualizando” a beatitude da mesma maneira que ele [Mateus]
modificou os “famintos” de Mt 5:6 para referir-se aqueles que têm “fome e
sede de justiça”.

Enquanto Overman exprime-se (1999, p. 87):

A fonte Q contém muitas bem-aventuranças e um conjunto de infortúnios


correspondentes. Mateus acrescentou algumas bem-aventuranças suas e
também corrigiu as de Q. Uma correção bem conhecida é a primeira bem-
aventurança de Mateus: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque
deles é o Reino dos Céus”. A versão lucana declara apenas: “Bem-
aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). Não
há nenhuma explicação clara para essa mudança mateana em particular. (...)
Ele faz uma mudança semelhante em 5,6, em que altera Lc 6,21: muda
“Bem-aventurados vós, que agora tendes fome”, para “Bem-aventurados os
que têm fome e sede de justiça”.

E até mesmo o bastante conservador Brown, com bastante hesitação, ressalva que “é
provável que Mateus tenha acrescentado frases espiritualizantes (‘pobres em espírito’;
‘famintos e sedentos de justiça’)” (2004, p. 270), Goodacre postula serem essas posições
altamente problemáticas.
Em seu ponto de vista, há fortes razões para que se reconheça que a versão lucana é
secundária e, por conseguinte, foi Lucas quem optou por retirar “em espírito” de sua fonte
textual. Que, nesse caso, seria Mateus à proporção que Goodacre insere-se no rol dos
estudiosos que rejeitam peremptoriamente a hipótese Q.
Em sua defesa da questão, Goodacre salienta que o termo “pobre” aparece em várias
outras ocasiões em Lucas, enquanto a qualificação “em espírito” nunca é achada fora desse
contexto em Mateus. Mesmo assim, ele afirma, “tal observação linguística pode ser, na
melhor das hipóteses, não muito reveladora e, na pior das hipóteses, enganadora” (2002, p.
135).
Com efeito, parece-lhe crucial deixar claro e assim convencer seus leitores e a seus
pares que Lucas é um evangelho que assumidamente fez “uma opção preferencial pelos
209

pobres” (2002, p. 135). Nesse sentido, tratar-se-ia de um documento voltado para os


oprimidos, os despossuídos, os fora da lei, os marginalizados. Consequentemente, não caberia
qualquer tipo de surpresa descobrir “o Jesus lucano colocando-se de pé e proferindo sua
primeira bênção aos ‘pobres’. Difícil é imaginar ‘pobre em espírito’ encaixando-se tão
claramente nessa agenda” (2002, p. 136).
Ademais, ele indaga, há bases objetivas para considerar que Mateus “espiritualizou” a
declaração de Jesus? É claro e evidente que sua resposta é um sonoro não. Isso porque, em
sua perspectiva, os intérpretes modernos desconhecem o sentido autêntico do termo “em
espírito”.
Um meio seguro para interpretar corretamente essa expressão, consoante Goodacre,
envolve voltar a atenção para a literatura de Qumran. Com efeito, no documento 1QM 14,7 há
uma menção a “aflito em espírito”. Entretanto, o próprio Goodacre reconhece que a expressão
“parece ser usada, talvez numa alusão consciente a Isaías 66:2, como uma metáfora para
descrever a comunidade redimida que é contrastada aos ‘duros de coração’” (2002, p. 146)
(Grifos meus).
Nesse sentido, e com todo respeito ao professor Goodacre, ele manipula os dados e
supõe que Mateus emprega o termo “em espírito” de maneira bastante apropriada à proporção
que a comunidade mateana representaria um contraponto aos fariseus e aos escribas que, eles
sim, eram vistos como sujeitos “duros de coração”.
Ademais, Goodacre suspeita – e rebate veementemente – que essa alegação de que
Mateus espiritualizou “os pobres” da pregação de Jesus de Nazaré seja muito mais um reflexo
da agenda secularizante da atualidade sendo projetada para o passado do que uma situação
vivencial da época em que os escritos do assim chamado Novo Testamento estavam sendo
elaborados.
Mais uma vez Goodacre está direcionando sua crítica a Crossan. Com efeito, a respeito
dessa beatitude, Crossan assevera ser “difícil imaginar uma sentença mais radical” do que
“bem-aventurados os pobres” (1994, p. 306). “Mesmo assim”, Crossan continua, “ela acabou
sendo relegada ao plano da normalidade, ou mesmo da banalidade” (1994, p. 307).
E não apenas isso. Crossan sublinha que o “acréscimo de ‘em espírito’ em Mateus” tem
o efeito de “desviar nossa atenção da pobreza material para a espiritual, da pobreza econômica
para a religiosa” (1994, p. 307). E como a “agenda” de Crossan, expressa em praticamente
todos os seus livros, introduz uma reflexão sobre a “situação imperial” na qual Jesus de
Nazaré e seus contemporâneos estavam submetidos, não lhe resta sombras de dúvida que a
210

beatitude, de fato, atesta que, para Jesus, Deus abençoava os destituídos, os marginalizados,
os indigentes.
Tal concepção, no entanto, não soa nada agradável aos ouvidos de Goodacre. Por
conseguinte, ele sinaliza, muita atenção deve ser dada a ansiedade dos pesquisadores
modernos em “descobrir uma mensagem mais palatável em uma sociedade secularizada
[como a em que vivemos atualmente], na qual ‘espiritualizante’ representa um
desenvolvimento secundário e negativo de um material originalmente mais conducente a um
evangelho social” (2002, p. 147).
Por mais dissabor que isso possa lhe acarretar, Goodacre periga ficar isolado ou
restringir-se a um grupo minoritário que insiste em sustentar uma concepção idealizada de
Jesus de Nazaré e seu movimento messiânico popular. Com efeito, como frisa Bruce Malina,
“o resultado da carreira de Jesus mostra que, preferencialmente, sua proclamação a respeito
do reino de Deus foi política, não metafórica e muito menos ‘espiritual’, qualquer que tenha
sido o significado da palavra no século dezenove” (2004, p. 11).
Entretanto, não se pode exigir de Goodacre o que ele não pode oferecer. Por
conseguinte, ele encerra seus comentários críticos reiterando sua convicção de que o dito
original é o que Mateus conservou. Implica dizer, a expressão “em espírito” é autêntica e
Lucas, agindo consoante sua agenda pessoal, deliberadamente excluiu o termo. Mais que isso,
ele ressalva a “inconveniência” de um consenso alcançado no campo da exegese bíblica que,
desejosa de reconstruir uma tradição cristã primitiva, a saber, tomar como norte “desafiar a
injustiça, congratulando a pobreza e rejeitando a complacência dos ricos”, recorre a uma
“reconstrução dúbia da redação precisa de um dito” (2002, p. 151).
Assim, como para ele o dito atribuído a Jesus, em sua origem, continha “em espírito”,
de que maneira sua ausência em Tomé relaciona-se à questão da dependência literária entre os
evangelhos? Para Goodacre, significa muito pouco. Ou antes, ele considera, merece ser
ressaltado que:
(a) Tomé optou por seguir a escrita de Lucas, ou seja, omitindo a expressão “em
espírito” de Mateus; e
(b) Tomé optou por seguir a escrita de Mateus, ou seja, empregou o termo, característico
desse autor, “reino dos céus” e não “reino de Deus” como está anotado em Lucas.
Em suma, na opinião de Goodacre, carecem de fundamentos os que, recorrendo a esses
ditos em paralelo, continuam a insistir na tese da independência de Tomé. Avançando em sua
defesa da noção de familiaridade, o professor da Duke University entende ser útil ilustrar a
questão por meio de casos de plágio por parte de estudantes do Ensino Superior.
211

Embora estudantes pouco sábios, como ele qualifica, plagiem trabalhos inteiros, o que é
mais comum de se presenciar são situações nas quais o plágio realiza-se somente de partes de
ensaios alheios. Mesmo que esses estudantes advoguem a seu favor que seus instrutores
dispensem a parte copiada e avaliem as partes que são de sua própria lavra, não parece
razoável, Goodacre pondera, que um corpo disciplinar admita isso como uma desculpa e
confie que as partes supostamente não copiadas foram, de fato, de autoria do estudante em
análise.
Com efeito, a alusão ao plágio escolar vem como forma de contestar a posição assumida
por Patterson (um dos mais vigorosos e ardorosos defensores da hipótese de Tomé constituir
uma trajetória autônoma e independente das tradições de e sobre Jesus) diante dos ditos
paralelos Mt 23:13 // Tomé 39 expostos no quadro abaixo:

Mt 23:13 Tomé 39
Jesus disse: “Os fariseus e os escribas tomaram
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, as chaves do conhecimento e as esconderam.
porque bloqueais o Reino dos Céus diante dos Eles não entraram, nem permitiram que
homens. Pois vós mesmos não entrais, nem entrassem aqueles que querem entrar. Quanto a
deixais entrar os que querem. vocês, sejam tão astutos quanto cobras e tão
inocentes quanto pombas”.

Patterson concorda não ser implausível que, no curso da transmissão textual de Tomé,
tenha ocorrido alguma influência do texto mateano no que tange às palavras grifadas. É
amplamente aceito que “escribas e fariseus” entram no texto canônico de Mateus como
resultado de uma mão editorial, à medida que se trata de uma expressão bastante recorrente
nesse documento judeu-cristão.
Há um indício, porém, de que não se encontra aqui o uso sistemático de Mateus por
Tomé, conforme pondera Patterson, a partir do momento em que se constata que “em nenhum
outro dito em Tomé esses oponentes tipicamente mateanos são mencionados” (1993, p. 36).
Ademais, ele reitera, “se Tomé tivesse intencionalmente tomado emprestado esse topos de
Mateus, seria de se esperar vê-lo incorporado ao texto de Tomé muito mais frequentemente”
(1993, p. 36).
Goodacre busca refutar a ponderação de Patterson apoiando-se na réplica de Dennis
Ingolfsland. Com efeito, ele assevera89:

89
Dennis Ingolfsland, “The Gospel of Thomas and the Synoptic Gospels”, artigo online e disponível em:
http://dennis-ingolfsland.blogspot.com.br/search/label/Gospel%20of%20Thomas. Acesso em 27/07/2013.
212

Imagine que um escritor copiou, com leves alterações, um parágrafo do livro


de Patterson e que Patterson acuse esse escritor de plágio. Como evidência,
Patterson cita o fato de que não somente o trabalho do plagiador acusado
concorda substancialmente com o livro de Patterson, mas que ele incluiu a
frase “tendências gnosticizantes”, que é uma expressão característica de
Patterson, com ocorrência de não menos que sete vezes em um capítulo curto
(capítulo oito) do livro de Patterson. O juiz decide em favor do plagiador,
todavia, dizendo que se o escritor realmente tivesse copiado de Patterson,
“seria de se esperar ver a frase mais frequentemente” no restante do trabalho
do plagiador. É de se duvidar que Patterson ficaria convencido.

Kloppenborg, porém, contesta a analogia do plágio indicando sua fragilidade. Nesse


sentido, no que se refere ao plágio praticado por estudantes de graduação, “nós temos o
‘autógrafo’ (ou seja, o ensaio do estudante); temos acesso às suas fontes (um artigo ou livro
acadêmico impresso ou, muito provavelmente, a Wikipédia); conhecemos as relações
cronológicas entre o ensaio e suas fontes (porque sabemos que o ensaio foi preparado muito
pouco tempo antes da data devida – provavelmente na noite anterior); e conhecemos o vetor
de utilização (ou seja, como a fonte chegou ao ensaio)” (2014, p. 142).
Entretanto, no caso do material cristão primitivo, “não temos nada disso”, declara
Kloppenborg. Não temos o “autógrafo”, quer dizer, o texto original, ou os textos fontes
putativos. O que se têm, no máximo, são cópias de quarta ou quinta mãos 90. Falta-nos
segurança para estipular o intervalo de tempo que separa a redação de Mateus da redação de
Lucas ou entre Tomé e os outros dois. E ignoramos por completo o vetor por meio do qual um
texto-fonte chegou aos seus usuários secundários.
Por conseguinte, é mais adequado considerar que nosso conhecimento reside em saber
que (2014, p. 142):

A fase mais recuada da transmissão dos documentos do cristianismo


primitivo foi fluida, abundante de fertilização e contaminação cruzadas, de

90
Ehrman esclarece que não temos “os escritos originais do Novo Testamento” (2006, p. 15). Muito pelo
contrário, “em vez de realmente ter as palavras inspiradas dos autógrafos (isto é, os originais) da Bíblia, o que
temos são cópias dos autógrafos repletas de erros” (2006, p. 15). Essa constatação empírica leva-o a indagar
sobre qual o sentido de se dizer que “a Bíblia é a palavra infalível de Deus se, de fato, não temos as palavras que
Deus inspirou de modo infalível, mas apenas as palavras copiadas pelos copistas – algumas vezes corretamente,
mas outras (muitas outras!) incorretamente?” (2006, p. 17). Em uma declaração impactante, ele afirma: “Nós não
apenas não temos os originais, como não temos as primeiras cópias dos originais. Não temos nem mesmo as
cópias das cópias dos originais, ou as cópias das cópias das cópias dos originais. O que temos são cópias feitas
mais tarde, muito mais tarde. Na maioria das vezes, trata-se de cópias feitas séculos depois. E todas elas diferem
umas das outras em milhares de passagens” (2006, p. 20).
213

tal maneira que os métodos modernos de crítica textual sempre produzem


uma reconstrução eclética do “texto inicial” (não o “original” putativo) a
partir de múltiplos testemunhos divergentes.

Assim, fazendo um balanço das réplicas e tréplicas, muito embora a analogia com a
prática de plágio possua algum atrativo, há que se convir que a resposta ensejada por
Kloppenborg é muito mais convincente.
Convém apontar que Patterson, respondendo às críticas de Goodacre, chama a atenção
para dois detalhes pertinentes acerca da analogia feita entre plágio e dependência literária e
que dizem respeito a condições que “todos presumimos serem verdadeiras hoje, mas que não
o são para o mundo antigo” (2014, p. 255).
A primeira delas: qualquer um em nossa cultura universitária é letrado e tem acesso a
livros. A segunda: não há tradição oral na cultura universitária moderna, pelo menos não para
aquelas coisas que se poderia utilizar em uma comunicação acadêmica. Na antiguidade, por
contraste, a maioria das pessoas era iletrada e não tinham acesso facilitado a livros. Estes, por
sua vez, eram relativamente raros. De fato, a tradição era oral.
Com efeito, ele prossegue, isso faz bastante diferença. Assim, quando ele, Patterson, lê
um artigo ou trabalho de um aluno, ele sabe que esse estudante “consultou livros e não a
tradição oral” (2014, p. 255). Logo, diante de uma frase em quaisquer desses trabalhos que se
suspeite tenha sido plagiada de um livro há uma maneira de se descobrir: a pesquisa no
Google. Ao ler um texto da antiguidade, porém, as condições são extremamente diferentes.
Nesse sentido, ele assevera (2014, p. 255) (Grifos originais):

Eu sei que o autor era letrado, mas não sei se ele teve acesso a muitos textos.
A poucos, com certeza. Porém, as quais textos, eu não sei. E eu certamente
não tenho como supor que ele acessou muitos textos, muito menos a um
texto em particular. Por outro lado, há como afirmar que ele teve acesso à
tradição oral. Se ele está associado aos seguidores de Jesus, eu posso admitir
que ele ouviu muitos dos ditos e das histórias que nos são familiares de
outros textos de sua tradição.

Em consequência dessas relações, Patterson pondera que “desde que a tradição oral era
comum e os textos relativamente raros, dever-se-ia inclinar-se no sentido da tradição oral, a
menos que haja evidências convincentes a sugerir uma fonte literária” (2014, p. 255).
Por fim, convém sublinhar que é muito difícil estar de acordo com a proposta de
Goodacre. Com efeito, muito embora ele alegue não considerar Tomé dependente dos
Sinóticos, mas familiarizado com esses documentos, seus exemplos pouco contribuem para
uma distinção entre um postulado e outro.
214

Cumpre, no entanto, destacar o tratamento dado por Goodacre às questões relativas aos
estudos sobre oralidade aplicados aos textos neotestamentários e extra-canônicos. Conforme
ele aponta, haveria um crescente impulso acadêmico no sentido de afirmar que “o Evangelho
de Tomé só pode ser apropriadamente entendido como produto de uma ‘mente oral’, como o
resultado de uma ‘disposição oral’ que contrasta com a mentalidade escrita que caracteriza
outros documentos cristãos primitivos” (2002, p. 128) (Grifos originais).
Assim, ele salienta, convém tomar como ponto de partida uma questão básica (2002, p.
129):

O mundo dos textos cristãos primitivos é mais bem compreendido como um


mundo em que havia uma vibrante interação entre oralidade e escrita, os
olhos e os ouvidos, texto e tradição. É um mundo diferente deste em que
atualmente vivemos, porém caricaturas de nosso mundo letrado podem estar
prejudicando uma apreciação apropriada de como oralidade e letramento
interagiam na antiguidade e como o Evangelho de Tomé achou seu espaço
nesse mundo.

Por conseguinte, é o desconhecimento do modo como essa “vibrante interação” se dava


que permite o aumento significativo de pesquisadores que voltam seu olhar para as questões
relativas à oralidade. Nesse sentido, ele frisa, quando confrontados com a brevidade dos ditos
de Tomé ou com a ausência de alegorias em suas parábolas, os estudiosos tomam “uma antiga
visão da crítica da forma sobre o desenvolvimento da tradição e atualizam-na remodelando-a
com exemplos de tradições orais apropriadas por um autor com mentalidade oral” (2002, p.
130).
Além disso, consoante Goodacre, esses pesquisadores que vem adotando a abordagem
que privilegia a oralidade para compreender o mundo no qual o assim chamado Novo
Testamento emergiu fazem, mesmo sem o saber, “uma caricatura de nosso próprio mundo” e,
com consequências negativas, superestimam o papel da oralidade na antiguidade e, por outro
lado, subestimam “a extensão com que oralidade e letramento interagem em nossa própria
cultura” (2002, p. 133).
Goodacre centra sua crítica na falta de compreensão dos acadêmicos acerca da dinâmica
envolvida na interação entre oral e escrito e acusa os pesquisadores de adotarem uma visão
exagerada, até mesmo romântica, do que seria a oralidade primária no passado. Ademais, ele
sublinha, sem um entendimento adequado sobre como essa interação ocorria, todos os estudos
tendem a fracassar fragorosamente em seus objetivos.
215

Assim, segundo Goodacre, a maioria dos estudiosos emprega, erroneamente, o conceito


de “oralidade secundária” para estabelecer os cenários em que os escritos cristãos vieram a
existir. Com efeito, a familiaridade de Tomé com os Sinóticos seria mais bem explicada
recorrendo-se a essa noção. Implica dizer, Tomé não teve acesso direto ao material sinótico,
mas redigiu seu evangelho com base na audição de seus conteúdos ou através das tradições
orais transportadas por missionários letrados.
A propósito, Goodacre tece breves comentários em torno desses sujeitos que tomaram
para a si a incumbência de disseminar as tradições de e sobre Jesus de Nazaré. Em primeiro
lugar, ele admite que o contexto em que eles se movimentavam era marcadamente iletrado.
Ou seja, uma maioria expressiva de pessoas incapazes de ler e escrever. Por outro lado, ele
identifica uma elite minoritária com habilidades tanto para ler quanto para escrever.
Debalde essas considerações, Goodacre conclui que “desde as primeiras décadas do
movimento de Jesus, tem-se a impressão que a tradição oral pressupõe letramentos e
missionários letrados” (2002, p. 142). Com efeito, baseando-se em uma única carta paulina (1
Coríntios) e no livro Atos dos Apóstolos, Goodacre monta sua concepção em torno dos
primeiros divulgadores do evangelho. Nesse sentido, pode-se inferir que tais sujeitos estariam
no topo da pirâmide social de seu tempo.
Convém refletir sobre os exemplos por ele aduzidos e adicionar outro ausente em suas
perquirições. Assim, “a tradição em si mesmo pressupõe missionários letrados” (2002, p.
142), pois o apóstolo Paulo declara em 1 Cor 15:3-491 (Grifos por Goodacre):

Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo


morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado,
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras.

Lendo essa passagem, Goodacre entende que a tradição invoca o que está escrito –
“segundo as Escrituras” – e, por conseguinte, mostra-se “difícil imaginar missionários
iletrados obtendo sucesso na disseminação de um material que, por si mesmo, pressupõe
letramento” (2002, p. 142).
É surpreendente a sua ilação em torno das condições reais de existência dos pregadores
itinerantes do cristianismo primitivo. Ainda mais se ela for tirada exclusivamente dessa

91
Há um erro de citação no livro de Goodacre. Os versículos destacados são o 3 e o 4, mas em seu livro ele
inclui o versículo 5, sem o transcrever.
216

passagem paulina. Porém, não há mais como interpretar esses dois versículos de uma forma
diferente da desenvolvida por Chevitarese (2011).
Apoiando-se nos estudos sobre oralidade e memória aplicados aos cristianismos
originários, Chevitarese assevera inexistir “dúvida que a sintaxe apresentada na abertura desse
capítulo epistolar quer aproximar os coríntios do campo mnemônico” (2011, p. 32). Com
efeito, destaque seja dado ao uso de verbos diretamente relacionados à atividade mnemônica.
Assim, o cerne da pregação paulina é lembrar-lhes o anúncio do evangelho (2011, p. 32).
No que tange à expressão que disparou em Goodacre a suposição de que os
missionários andarilhos não podiam ser iletrados, Chevitarese assinala (2011, p. 33):

Como não são mencionados nomes de livros, nem passagens específicas,


pode-se conjeturar que (a) o querigma estava disponível oralmente no seio
da comunidade judaico-cristã de Corinto, sendo dispensável a inclusão de
livros ou passagens de livros na fórmula ou (b) o evento da ressurreição de
Jesus sistematizaria toda a escritura sagrada judaica, portanto, não estando
ele contido em livros ou passagens de livros específicas.

Antes, porém, de desdobrar as considerações de Chevitarese, cumpre mencionar a


inferência de outro renomado estudioso, C. H. Dodd, a respeito da proclamação do apóstolo
Paulo (1979, p. 10-11):

(...) a Igreja viu-se obrigada, pela própria natureza do querigma, a um


extraordinário trabalho de pesquisa bíblica, em primeiro lugar com a
finalidade de esclarecer para si própria a sua interpretação dos importantes
acontecimentos, dos quais ela própria havia nascido, mas também com a
finalidade de tornar seu evangelho inteligível ao público externo. Segundo os
Atos dos Apóstolos, este trabalho foi empreendido desde o momento em que
a Igreja começou a existir como grupo organizado e ativo.

Dodd imagina uma entidade – a Igreja – que, muito cedo, necessitou dar conta dos
acontecimentos que determinaram seu nascimento: a morte e a alegada ressurreição de Jesus
de Nazaré. Sendo majoritariamente judeus os seus membros, estes foram buscar uma resposta
satisfatória às demandas das circunstâncias vividas na documentação mais óbvia para eles: as
“Escrituras”. Com efeito, entrou em ação “um extraordinário trabalho de pesquisa bíblica”.
Ali devem ter encontrado o que procuravam, pois somente assim o querigma faria sentido e o
discurso de Paulo conteria algum nexo.
Na fala de Dodd, entretanto, há um amálgama de fieis na Igreja nascente. E que
pressupõe que desde o menor até o maior dentre seus integrantes a habilidade de ler fosse a
regra geral. Ademais, não há clareza sobre quem efetivamente dispôs de tempo livre para
217

engajar-se nessa pesquisa bíblica. Mais que isso, é incerto como cópias das escrituras
sagradas do povo judeu podiam fazer parte do acervo da “Igreja”.
Por conseguinte, Dodd equivoca-se quando deixa de inserir na sua explicação o que é
postulado por Chevitarese a respeito da circulação oral do querigma. Além do mais, bradar
que “segundo as Escrituras” é indício explícito de conhecimento textual dos livros sagrados
dos judeus denota uma visão distorcida e não realista do contexto em que a “Igreja” deu seus
primeiros passos.
Com efeito, se, obrigatoriamente, o querigma devia ser difundido e, atrelado a essa
difusão, seus divulgadores precisavam ser letrados nas escrituras sagradas dos judeus, tal
inferência requereria que esses indivíduos fizessem parte da elite de seu tempo. Até que
ponto, porém, essa era uma condição sine qua non para a expansão da mensagem
revolucionária de Jesus de Nazaré?
Podemos imaginar, a fiar-se nessa alegação de Goodacre, uma situação hipotética na
qual, esses missionários andarilhos, postados, em terras estrangeiras, diante de um público
heterogêneo, isto é, composto de judeus e gentios, declarassem a necessidade do
arrependimento (Mc 1:15) e que ali se encontravam para atestar, por meio de seu testemunho,
que Jesus Cristo morreu e ressuscitou “de acordo com as Escrituras” (1Cor 15:3-4) e, ato
contínuo, alguém, versado nos textos sagrados dos judeus, se erguesse do meio do público e
os redarguisse: “Que parte das Escrituras? Provem o que vocês estão falando”.
Nesse caso, um pregador – nos moldes imaginados por Goodacre – ficaria embaraçado
e afundaria de vez o projeto de disseminação do Evangelho, revelando todo o seu
desconhecimento, por ser iletrado, dos livros que contém as tradições dos judeus.
Cabendo, então, postular que esses andarilhos, a fim de evitar esse constrangimento
levariam consigo cópias dos rolos bíblicos (irreal) e saberiam indicar, com precisão, as
passagens que fundamentassem suas prédicas públicas e/ou privadas (menos improvável).
Acontece que essa segunda condição independe de o indivíduo saber ler ou não. Ainda
hoje se conhecem inúmeros casos de pregadores cristãos completamente analfabetos, mas que
sabem de cor a bíblia cristã92.

92
O sítio cristão estadunidense “Christianity Today” externa toda a sua aflição com o que é denominado
“analfabetismo bíblico”. Consoante a página, constitui uma tragédia que “muitos que se dizem cristãos usam
frases como ‘o bom Samaritano’, ‘você colhe o que você planta’ e ‘fazei ao próximo’, mas ignoram
verdadeiramente as Escrituras. Mais que isso, “vários estudos tem revelado que os cristãos americanos não leem
suas Bíblias, não se comprometem com suas Bíblias, não conhecem suas Bíblias”. Levando o autor do texto a
vaticinar: “Vivemos em uma cultura pós-biblicamente letrada”. Escudada em estatísticas e pesquisas, a página
218

Além disso, as tradições evangélicas oferecem elementos que, em certa medida,


desmentem a suposição de Goodacre. Com efeito, a comunidade de crenças marcana parece
ter enfrentado problemas sérios com seus desafetos resistentes à proclamação da mensagem
de Jesus.
É o que se pode depreender do que está anotado em Mc 13:9-11:

Ficai de sobreaviso. Entregar-vos-ão aos sinédrios e às sinagogas, e sereis


açoitados, e vos conduzirão perante governadores e reis por minha causa,
para dardes testemunho perante eles. É necessário que primeiro o Evangelho
seja proclamado a todas as nações93. Quando, pois, vos levarem para vos
entregar, não vos preocupei com o que havereis de dizer; mas, o que vos for
indicado naquela hora, isso falareis; pois não sereis vós que falareis, mas o
Espírito Santo.

Convém tecer breves apontamentos acerca do caráter geral dessa narrativa que é,
consensualmente, o evangelho canônico mais antigo. Nineham sustenta que esse documento
foi escrito “quando não havia relatos escritos de qualquer tipo, mas que as tradições [sobre
Jesus] estavam preservadas inteiramente na ponta da língua” (1967, p. 17). Ele sugere, por sua
vez, que os “cristãos primitivos” – membros da comunidade marcana, assim se pode presumir
– “tinham motivos bem definidos para preservar memórias da vida terrena de Jesus, mas
apenas memórias de certo tipo especiais – memórias que persuadissem os não crentes acerca
do status sobrenatural de Jesus” (1967, p. 19).
Acrescente-se a inferência, extraída do texto marcano, que a comunidade por trás desse
evangelho “estava já começando a sofrer impopularidade, perseguição e, talvez mesmo em
alguns casos, morte, por causa do cristianismo” (1967, p. 32). Nesse contexto de perseguição
e ameaças de prisão e mortes, Nineham vê todo sentido nas palavras que encerram a
passagem. Com efeito, ele aventa (1967, p. 32):

Quando nos lembramos de que a maioria dos primeiros cristãos eram


pessoas simples e deseducadas, para quem um discurso numa corte teria sido

sublinha que em torno de 40% dos cristãos estadunidenses leem suas Bíblias ocasionalmente, “talvez uma ou
duas vezes no mês”. Isso, conclui o texto, “é um grande problema”. Disponível em:
http://www.christianitytoday.com/edstetzer/2014/october/biblical-illiteracy-by-numbers.html
93
“É necessário que primeiro o Evangelho seja proclamado a todas as nações” é comumente considerada uma
inserção no documento marcano. Como assinala D. E. Nineham, os versos 9 e 11 estão intimamente conectados
na forma de pensamento e também ligados por “entregar”. Ademais, esse verso quebra o aparente arranjo
poético da passagem destacada (1967, p. 347).
219

uma terrível provação, nós percebemos o quão significativa seria para elas a
promessa [de que o Espírito Santo falaria por elas].

Ora, se perante autoridades e potestades os discípulos que dariam continuidade ao


legado de Jesus de Nazaré podiam confiar na ajuda do “Espírito Santo”, crendo que de suas
bocas sairia a defesa de suas vidas por vias sobrenaturais, por que não haveriam de ser
intimoratos esses missionários quando confrontados sobre as “Escrituras”? Sim, é uma
especulação que aqui se faz. Talvez de comprovação impossível. Mas é uma tentativa de
contornar outra especulação. A de Goodacre.
Um dado empírico, porém, que pode ser decisivo no sentido de minar a reconstrução de
Goodacre acerca das primeiras levas de pregadores do movimento de Jesus sem Jesus diz
respeito à escassez de manuscritos de origem cristã. Nesse sentido, Ehrman, discutindo a
expansão dos cristianismos nos dois primeiros séculos pondera que a descoberta de papiros
tem contribuído enormemente para nosso entendimento das andanças desses “evangelistas”.
Concomitantemente, e talvez paradoxalmente, como sublinha Ehrman, a escassez
notável desses escritos “cristãos” tem sido usada por estudiosos como indício bastante forte
de que os missionários “não fizeram uso extensivo da palavra escrita em suas tentativas de
propagação da fé” (2006a, p. 114). Isso se funda, por sua vez, no fato de, acerca do segundo
século, terem sido descobertos 871 “textos pagãos” e apenas 11 da “Bíblia cristã” (2006a, p.
114, n. 52).
Estabelecidas suas premissas, ou seja, certo grau de letramento entre os divulgadores da
Boa Nova de Jesus, Goodacre volta-se então para Tomé. Consoante seu entendimento, é
crucial descobrir se “o relacionamento de Tomé com a tradição é diferente da relação escrita
que caracteriza as relações intrassinóticas” (2002, p. 143). Usando outros termos, importa
desvendar se Tomé é “um evangelho oral” (idem, idem).
Sua resposta à questão é demonstrada, assim ele crê, através de três evidências extraídas
do próprio documento. Com efeito, uma primeira evidência de que Tomé não é um evangelho
oral fica explícita logo no prólogo desse evangelho. Ou seja, segundo Goodacre, as palavras
de abertura de Tomé já deveriam ser pensadas como um argumento nesse sentido:

Estas são as sentenças ocultas que o Jesus vivo pronunciou e Judas Tomé, o
Dídimo, escreveu.

O emprego do verbo “escrever” no início do documento seria, para Goodacre, um forte


elemento jogando a favor da noção de que se deve descartar a oralidade de qualquer análise a
220

seu respeito. Mais que isso, e essa é a sua segunda evidência, Tomé possui “uma aparência de
oralidade”. Em decorrência do fato de seu autor ter escolhido como gênero para seu
evangelho, o gênero “livro de ditos”. Assim, convém não se deixar enganar, pois “ditos são,
por sua natureza, orais e qualquer livro de ditos terá, inevitavelmente, características de
discursos e de oralidade” (2002, p. 144) 94.
Como terceira e última evidência, Goodacre aponta a ausência de referências, no texto
tomesino, a escrever e a ler. Tais ausências, para ele, resultam do mesmo motivo: a atitude de
Tomé para com o assim chamado Antigo Testamento e para com a cultura escrita em geral.
Ao fim e ao cabo, é permitido postular que Tomé é um evangelho oral?
Na perspectiva de Goodacre, a “chave do sucesso” de Tomé reside exatamente nesse
ponto. Quer dizer, a decisão de seu autor em ensejar um livro de ditos fomentou, entre os
pesquisadores, a busca por marcas de oralidade por trás de suas sentenças e, dessa maneira,
manteve ocultas suas preferências teológicas e, além disso, foi capaz de manter em atividade,
por todos esses anos, a procura por nexos objetivos entre ele o ministério de Jesus de Nazaré.
Determinado a atestar a familiaridade de Tomé com os Sinóticos, Goodacre tece
considerações sobre o modo de acesso daquele com estes. No entanto, cumpre reconhecer que
“o autor [de Tomé] não nos informa como ele usou suas fontes textuais” e que tudo o que for
dito a respeito não passará de uma “especulação informada”, baseada sobre “pistas retiradas
das evidências internas e na maneira que outros procederam” (2002, p. 150).
Ao desenvolver essa ideia, Goodacre faz uma observação interessante: Tomé era
detentor de cópias individuais de Mateus e de Lucas, mas não de um códice do assim
chamado Novo Testamento. Sua explicação em torno dessa alegada constatação consiste no
fato da “relativa escassez de material joanino” nos 114 Ditos, muito embora ele próprio não
descarte inteiramente a possibilidade de Tomé ter tido um códice com os quatro evangelhos, à
medida que é plausível, conforme ele pensa, que Tomé haja “se concentrado primariamente
em Mateus e Lucas” (2002, p. 150).
Algumas conjeturas de Goodacre dispensam comentários, mas há que se destacar uma
sugestão relevante por ele feita. Com efeito, o desencontro na ordem dos ditos paralelos
permite a ele supor que Tomé “acessava regularmente sua memória sobre o material sinótico”
(2002, p. 151). Mais que isso, “os esforços logísticos” para consultar material escrito eram
muito maiores do que recorrer à memória dos textos lidos, sendo esse último, portanto, o
modo mais empregado.

94
Acerca do gênero literário de Tomé, convém relembrar as asserções de Köester e Robinson.
221

Assim, no intuito de corroborar sua ideia de que Tomé foi um autor com “boa memória
para textos”, Goodacre assinala que a associação do material lucano da forma como se
apresenta em Tomé é, indubitavelmente, a principal prova de que foram as recordações
textuais que explicam o jeito com que o material sinótico foi acessado:

Lc 11:27-28 Tomé 79
Enquanto ele assim falava, certa mulher
levantou a voz do meio da multidão e disse-
lhe: “Felizes as entranhas que te trouxeram e
os seios que te amamentaram” Ele, porém,
respondeu: “Felizes, antes, os que ouvem a Uma mulher da multidão disse-lhe: “Felizes o
palavra de Deus e a observam”. ventre que o carregou e os seios que o
Lc 23:28-29 alimentaram”. Ele disse a [ela]: “Felizes aqueles
que ouviram a palavra do pai e verdadeiramente
Jesus, porém, voltou-se para elas e disse: a guardaram. Pois haverá dias em que vocês
“Filhas de Jerusalém, não chorei por mim; dirão: ‘Felizes o ventre que não concebeu e os
chorai, antes, por vós mesmas e por vossos seios que não deram leite’”.
filhos. Pois, eis que virão dias em que se dirá:
Felizes as estéreis, as entranhas que não
conceberam e os seios que não amamentaram”.

No caso acima, Goodacre apela para a noção de que a memória é essencialmente


associativa e, sem oferecer maiores detalhamentos, infere que o Dito 79 foi composto por
meio da associação das palavras e das imagens que constam nas passagens lucanas em
destaque. Não obstante, ele aduz, “se Tomé estava com frequência acessando os Evangelhos
Sinóticos por meio da memória dos textos, isso pode significar que algumas das variações
seriam devidas a distorções da memória e também a redação intencional” (2002, p. 151).
Goodacre parece não perceber aí um veio perfeito para aprofundar sua análise crítica de
Tomé. Em verdade, ele arremata a questão lamentando e alertando para o perigo que essa
“nova perspectiva” lança para pesquisa do cristianismo. Com efeito, “o entusiasmo” de
muitos pode distorcer os fatos e a “ansiedade em abraçar os estudos sobre oralidade é capaz
de levar a ignorância de áreas como o estudo do relacionamento entre textos” (2002, p. 152).
Por conseguinte, em sua avaliação “Tomé exerceu um papel essencial na discussão
sobre oralidade, porém a alegação de que teria uma inclinação fundamentalmente oral ou de
que seria o produto de um estado de espírito oral exige alguma cautela” (2002, p. 153).

3.3.4. TOMÉ É INDEPENDENTE DOS SINÓTICOS


222

Köester é taxativo a respeito de Tomé: “Esse evangelho não depende, portanto, dos
Evangelhos Sinóticos nem do Evangelho de Ditos Q” (2005, p. 166). Crossan, por sua vez,
mostra-se persuadido da independência de Tomé, muito embora enfatize que ser independente
não implica necessariamente ser mais antigo e ser mais antigo não signifique ser um
documento melhor (1985, p. 35).
Patterson, um dos mais proeminentes pesquisadores que milita desse lado dos estudos
tomesinos, tem bastante a oferecer nessa área. Possivelmente por isso que seja um dos mais
visados por aqueles outros acadêmicos e teólogos que renegam a independência de Tomé.
Convém ressaltar, entretanto, uma de suas prerrogativas e que, por sua coerência, deve
nortear todas as análises daqui por diante. Após um exaustivo trabalho de conferir Dito por
Dito, testando as hipóteses acerca do relacionamento entre os textos, Patterson assevera
conscientemente (1993, p. 93):

É impossível que o Códice 2 de Nag Hammadi e as muitas cópias de Tomé


que se encontram entre nosso manuscrito remanescente e o original tenham
permanecido imunes ao quase universal fenômeno de erros por parte dos
escribas, especialmente aquele da harmonização. (...) Uma vez que o texto
como um todo não se sustenta na tradição sinótica, é razoável prescrever um
punhado de exemplos em que a influência de um texto sinótico seja provável
(...).

Nesse sentido, ele aponta, é “preferível falar da tradição de Tomé como [uma tradição]
autônoma em vez de independente” (1993, p. 93; 2013, p. 100). Com efeito, não se deve
olvidar que, “no curso dos dois a três séculos de transmissão textual é dificilmente imaginável
que a tradição sinótica não tenha vindo a afetar o texto de Tomé de alguma maneira,
especialmente durante o período no qual os evangelhos canônicos estavam experimentando
grande popularidade e gradual ascendência” (1993, p. 93).
Mesmo assim, tal influência é quantificada por Patterson, revelando, porém, que a
mesma não afeta a concepção de autonomia de Tomé. Assim, ele considera que se pode
“razoavelmente identificar 16 exemplos em que Tomé pode ter sido influenciado pelo texto
sinótico” (2013, p. 98). A quantidade total de paralelos entre Tomé e os Sinóticos é de, mais
ou menos, 95 casos. Portanto, a alegada evidência da dependência de Tomé pode ser
sintetizada nos seguintes dados: “em menos de 17% de todos os paralelos Tomé/Sinóticos é
possível achar evidência de influências” que, por sua vez, são sempre triviais, como, por
exemplo, “uma única palavra, uma única frase, uma construção gramatical ou uma sequência
comum” (2013, p. 99).
223

Convém, no entanto, acompanhar seus passos e aferir de que forma Patterson encontra
justificativa para assegurar que Tomé não depende dos Sinóticos. Assim, ele esquematiza os
Ditos comuns e classifica-os em “gêmeos sinóticos”, “irmãos sinóticos” e “primos sinóticos”
(1993, p. 17).
De acordo com sua concepção, gêmeos sinóticos são os Ditos de Tomé que guardam
semelhança com o que se sabe a respeito de gêmeos biológicos que, embora derivem de uma
origem comum, formam características distintas a partir do momento em que começam a
“viver vidas independentes, respondendo às circunstâncias com as quais tem que lidar” (1993,
p. 17).
Nesse sentido, ele esclarece, se Tomé fosse dependente dos Sinóticos haveria como
detectar, em cada caso de paralelos textuais, o mesmo desenvolvimento da história da tradição
por trás da versão de Tomé95. Por outras palavras, Tomé, utilizando o material sinótico, “teria
herdado toda a bagagem histórico-tradicional acumulada e então acrescentado a ele sua
própria flexão redacional” (1993, p. 18).
Patterson, cumpre sublinhar, opera conforme a noção de que o Evangelho Q é mais do
que uma hipótese acadêmica moderna, tendo existido fisicamente. Assim, no intuito de
exemplificar e explanar o que são gêmeos sinóticos, ele destaca (1993, p. 18-19)96:

Tomé 2 Tomé 92 Tomé 94 Q/Lc 11:9 // Mt 7:7


Jesus disse: “1Que Jesus disse: “1Procurem Jesus [disse]: Também eu vos digo:
aquele que procura e encontrarão. 2No “1Quem 1
Pedi e vos será dado;
2
não deixe de passado, entretanto, não procura, buscai e achareis;
3
procurar até que lhes falei sobre as coisas encontrará; batei e vos será
encontre. 2Quando a respeito das quais me 2
para [quem aberto.
encontrar, ficará indagavam. Agora estou bate] ser-lhe-á
perturbado. 3Quando disposto a dizê-las, mas aberta”.
estiver perturbado, vocês não as estão
ficará maravilhado 4e procurando”.
dominará tudo”.

95
Udo Schnelle define “história da tradição”, como a busca “pela evolução e pelo aspecto de um texto, tanto em
sua fase oral como nas formas escritas prévias em nível pré-redacional” (2004, p. 111). De acordo com esse
método exegético, há a convicção de que os textos passam por transformações, ou seja, percorrem “um processo
de crescimento e modificação”, no qual são inseridos “num novo contexto, transformados ou reescritos diante de
novas situações” (2004, p. 111).
96
Os números acrescentados aos ditos, antes de cada frase, não estão presentes no evangelho e têm como única
utilidade favorecer a comparação e, dessa maneira, auxiliar o entendimento da proposta explicativa de Patterson.
224

Consoante Patterson, as sentenças acima constituem quatro versões diferentes do Dito e


não podem ser vistas como etapas distintas em uma linha única de desenvolvimento histórico-
tradicional. Ademais, “cada uma delas tem elementos primários e secundários não
compartilhados entre si” (1993, p. 19).
Apoiando-se na tese de que há uma tendência recorrente de ditos iguais atraírem-se ou
expandirem-se com formulações análogas, Patterson advoga que a forma mais simples
encontrada em Tomé 2:1 e em Tomé 92:1, é, sem dúvida, primária. Por sua vez, devem ser
considerados ditos secundários Tomé 94, com sua forma de dupla linha e Q-Lc 11:9//Mt 7:7
com sua forma em linha tripla.
Patterson recomenda que se leve em conta que a linguagem de um revelador, como
apresentada em Tomé 92:2, é um desdobramento posterior e, portanto, secundário. A versão
do Dito em Q, ademais, provavelmente é a mais desenvolvida das quatro à medida que inclui
uma terceira sentença – “Pedi e vos será dado”.
Feitas essas observações, Patterson expõe que esses Ditos em Tomé, mais do que um
reflexo de um mesmo desenvolvimento histórico-tradicional situado por trás de sua
contraparte sinótica, apresentam seus detalhes específicos bastante únicos. Inferindo,
portanto, que “é muito improvável que uma ou todas as versões coletadas por Tomé derivem
do texto sinótico” (1993, p. 19).
Outro exemplo de “gêmeos sinóticos”, segundo Patterson, pode ser percebido nos Ditos
em que há considerações sobre dieta alimentar (1993, p. 24-25):

Lc 10:8-9 Mc 7:15, 18 Mt 15:11, 18 Tomé 14:4,5


4
Em qualquer cidade Nada há no exterior Não é o que entra Quando forem a
em que entrardes e do homem que, pela boca que torna o qualquer região e
fordes recebidos, penetrando nele, o homem impuro, mas andarem pelo campo,
comei o que vos possa tornar impuro; o que sai da boca, quando as pessoas os
servirem; curai os mas o que sai do isso sim o torna receberem, comam o
enfermos que nela homem, isso é o que impuro. (...) Mas o que lhes servirem e
houver e dizei ao o torna impuro. (...) E que sai da boca curem aquelas que
povo: “O Reino de ele disse-lhes: Então, procede do coração e estiverem doentes.
5
Deus está próximo nem vós tendes é isto que torna o Pois o que entrar em
de vós”. inteligência? Não homem impuro. sua boca não os
entendeis que tudo o conspurcará, é o que
que vem de fora, sai de sua boca que
entrando no homem, os conspurcará.
não pode torná-lo
impuro, (...).

De acordo com Patterson, Tomé 14 foi composto por meio da conexão de duas
sentenças tematicamente semelhantes, ou seja, a questão da prática alimentar correta. A
225

primeira sentença – “comer o que for servido” – faz paralelo com Q/Lc 10:8-9, sendo que
nesse último, pode-se identificar um maior desenvolvimento do Dito, expresso em “dizei ao
povo: ‘O Reino de Deus está próximo de vós’”. Por sua vez, a segunda sentença de Tomé 14
faz paralelo com Mc 7 no Dito referente à controvérsia sobre prática alimentar pura e impura.
Contestando os apoiadores da tese da dependência de Tomé, Patterson admite que
“curem aqueles que estiverem doentes” é uma afirmação fora de lugar no Dito 14. Entretanto,
como alegam os contrários à independência de Tomé, isso não prova que Tomé retirou o
trecho de Lucas. Muito pelo contrário, Patterson sustenta, se esse houvesse sido o caso, qual a
justificativa plausível para Tomé ter recortado, da passagem inteira de Lucas, apenas essa
fala?
Com efeito, parece-lhe mais adequado supor que “Tomé conhecia uma versão de Lc
10:8 de uma outra tradição, a qual circulava como um dito independente e ainda não
combinada com os outros elementos formadores do Dito em Q” (1993, p. 24).
O segundo conjunto de Ditos chamados por Patterson de “irmãos sinóticos” é formado
por sentenças de Jesus que, presentes em Tomé e nos Sinóticos, embora “compartilhem um
traçado comum, talvez terminologia chave, esses pares, no fim, não mostram o tipo de
correspondência verbal que aponte para uma dependência literária de um texto sobre o outro”
(1993, p. 71). Convém frisar, com Patterson, que “quanto mais disseminada uma tradição é,
mais se deve reconhecer a probabilidade de que dois ou mais autores cristãos tenham feito uso
dela de maneira independente” (idem, idem).
Assim, podem ser considerados “irmãos sinóticos” os Ditos a seguir:

Mt 7:16 Lc 6:43-44a Mt 12:33 Tomé 43


Pelos seus frutos os Não há árvore boa Ou declarais que a Seus seguidores
reconhecereis. Por que dê mau fruto, e árvore é boa e o seu disseram-lhe:
acaso colhem-se nem árvore má que fruto é bom, ou “Quem é o senhor
uvas dos dê fruto bom; com declarais que a para nos dizer estas
espinheiros ou figos efeito, uma árvore é árvore é má e o seu coisas?” “Não
dos cardos? conhecida por seu fruto é mau. É pelo sabem quem sou
próprio fruto; não se fruto que se conhece pelo que digo a
colhem figos de a árvore. vocês. Ao contrário,
espinheiros, nem se vocês se tornaram
vindimam uvas de como os judeus, pois
sarças. estes gostam da
árvore, mas odeiam
seu fruto, ou gostam
do fruto, mas
odeiam a árvore”.
226

Patterson indica que há aqui o emprego de uma figura popular, “uma metáfora
construída em torno da consistência da relação entre uma árvore e seus frutos” (1993, p. 76).
Entretanto, é patente a forma distinta com que Tomé e os Sinóticos registram a fala
supostamente pronunciada por Jesus. Mais do que a fala, a própria mensagem em si
diferencia-se nas versões compiladas.
Com efeito, Tomé denota “reprovação ao tipo de pessoa que aceita o benefício, embora
rejeite ou as consequências diretas que derivam daquele (gostam da árvore, mas odeiam o
fruto) ou seus pressupostos necessários (odeiam a árvore, mas gostam do fruto)” (1993, p.
76)97. Os Sinóticos, por sua vez, apontam para a inevitável conexão entre o que algo é
(árvore) e o que esse algo faz (fruto).
Assim, como trabalhar com a suposição de que Tomé é dependente dos Sinóticos?
Patterson está convicto de que o Dito remete a uma tradição bastante antiga e que o fato de
fazer paralelos assinala, unicamente, que esses ditos estavam sendo transmitidos desde muito
cedo e que tomaram rumos próprios em um algum momento do desenvolvimento da tradição.
Em suma, os Ditos em paralelo não atestam “que Tomé conhecia ou usou o texto sinótico”
(1993, p. 77).
Por fim, Patterson aborda os assim chamados “primos sinóticos”. Em sua perspectiva,
são Ditos que “não tem paralelos sinóticos, mas que em termos de seu conteúdo e de sua
forma tradicional, não oferecem fundamentação para distingui-los cronológica e topicamente
dos Ditos da tradição Sinótica” (1993, p. 18).
Acerca desses Ditos, convém frisar três aspectos relevantes: (1) eles podem derivar de
estágios bem antigos do movimento de Jesus e, por conseguinte, merecem ser estudados com
a mesma atenção que é dada aos Ditos Sinóticos e, mais que isso, apontam para a
possibilidade real de procederem de “uma tradição cristã que é essencialmente independente
dos evangelhos sinóticos” (1993, p. 82); (2) o termo “primos sinóticos” não deve induzir a se
pensar que “sinótico” seria uma espécie de padrão e que, por isso, os Ditos que guardassem
quaisquer semelhanças com eles deveriam ser considerados como pertencentes a um lugar
mais antigo na tradição de Jesus e (3) esses Ditos tem sido tratados, pela pesquisa acadêmica,

97
O antijudaísmo dessa sentença não passou despercebido pelos estudiosos. Funk, por exemplo, sublinha que,
incontestavelmente, essa passagem é polêmica. Entretanto, para ele, o Dito possui dois bons motivos para não
ser considerado autêntico, ou seja, a fala não remeteria a Jesus de Nazaré: (1) é incomum, nos Ditos que se
podem considerar autênticos, Jesus falar sobre sua própria identidade e (2) o tom polêmico encaixa-se melhor na
situação em que se presume passava a comunidade tomesina “quando o movimento emergente estava
procurando distinguir-se de seus companheiros” (1996, p. 497).
227

como “gnósticos”. Patterson desafia esse posicionamento, à medida que o rótulo “gnóstico”
automaticamente relega o Dito assim classificado para um estágio posterior e, ao mesmo
tempo, irrelevante da discussão sobre as “origens cristãs” (1993, p. 82-83).
Dos diversos exemplos postos em destaque por Patterson, cumpre selecionar aqueles
que, a priori, possam dirimir qualquer dúvida sobre o significado que ele dá ao termo “primos
sinóticos”. Assim, a sentença registrada em Tomé 17:

Jesus disse: “Dar-lhes-ei o que nenhum olho viu, o que nenhum ouvido
ouviu, o que nenhuma mão tocou, o que não se manifestou no coração
humano”.

Patterson chama a atenção para a constatação de que esse Dito era amplamente
disseminado na Antiguidade e, por conseguinte, muito dificilmente pode ser considerada uma
fala autêntica de Jesus de Nazaré. Não obstante, assim pode-se supor, as comunidades por trás
dos evangelhos sinóticos não tiveram dificuldades em atribuí-la a Jesus. Assim, o Dito guarda
semelhanças com passagens registradas em mais de um escrito “cristão”:

Mt 13:16-17 Lc 10:23-24 1Cor 2:9 Atos de Tomé 36


Mas felizes os E, voltando-se para Mas, como está Mas nós falamos de
vossos olhos, os discípulos, disse- escrito, “o que os Deus e de nosso
porque veem, e os lhes a sós: “Felizes os olhos não viram, os Senhor Jesus, e dos
vossos ouvidos, olhos que veem o que ouvidos nãoouviram anjos, e dos espíritos
porque ouvem. Em vós vedes! Pois eu e o coração do guardiões, e dos
verdade vos digo vos digo que muitos homem não percebeu, santos e do novo
que muitos profetas profetas e reis tudo o que Deus mundo; e do
e justos desejaram quiseram ver o que preparou para os que incorruptível
ver o que vedes e vós vedes, mas não o amam”. alimento da árvore da
não viram, e ouvir o viram, ouvir o que vida e da porção (da
que ouvis e não ouvis, mas não água) da vida; e que
ouviram. ouviram”. olho nenhum viu,
ouvido nenhum ouviu
e não entrou no
coração do homem –
que Deus preparou
para aqueles que o
amam.

Perante o Dito 17, Otto Piper entabula elucubrações acerca das fontes de Tomé. Ele
sabia que muitos estudiosos estavam confiantes que uma porção das fontes desse evangelho
“remontavam às tradições orais da Igreja Primitiva” (1959, p. 21). Com efeito, ele salientava,
que “sabemos hoje que nem todos os ditos de Jesus foram registrados em nossos Evangelhos”
(idem, idem). Por conseguinte, do fato de alguns Ditos em Tomé concordarem mais ou menos
228

com os evangelhos canônicos permitia-se inferir “considerável plausibilidade à hipótese de


que outros ditos, de similares dicção e tema, encontrados nesse livro, possam também ser
declarações genuínas de Jesus” (idem, idem).
Assim, consoante Pipper, o apóstolo Paulo deve ter tido contato ou tinha em mente
“uma coletânea de ditos de Jesus da qual Tomé 17 era um deles” (1959, p. 21). A favor dessa
interpretação, Pipper recorre ao conhecimento, nos círculos acadêmicos, de (1959, p. 22):

Uma quantidade de alegados ditos de Jesus, mencionados pelos Pais da


Igreja como sendo lidos em vários livros heréticos, que está registrada no
Evangelho de Tomé, e fica-se facilmente inclinado a considerá-los ditos
genuínos de Jesus, que, por algum incidente ou por uma indicação de
obscuridade, não foram incorporados aos Evangelhos Sinóticos, mas foram
conservados em alta estima em outros círculos porque as pessoas
descobriram neles um significado mais profundo.

Ademais, Meyer comenta que uma variante dessa sentença também pode ser encontrada
em Plutarco, “Como o Jovem Deve Estudar Poesia 17E: ‘E que estas (palavras) de
Empédocles estejam à mão: ‘Assim estas coisas não são para serem vistas pelos homens, nem
ouvidas, nem compreendidas com a mente’...” (1993, p. 87). Com efeito, o Dito 17, um
“primo sinótico”, sugere “uma derivação cristã primitiva que é independente dos evangelhos
sinóticos” (1993, p. 85).
Em síntese, Patterson está plenamente convencido de que há pouquíssimas evidências a
sustentar a visão de que Tomé depende dos Sinóticos. Não obstante, ele frisa que, em alguns
pontos, mostra-se necessário apontar a influência da redação dos Sinóticos sobre Tomé. Com
efeito, é possível especular que no curso da tradução do grego para o copta ou mesmo durante
a produção das cópias manuscritas em grego haja ocorrido um processo de harmonização, por
parte dos escribas, a um ou mais evangelhos sinóticos.
Apesar do risco de tornar a discussão cansativa, convém trazer à baila as considerações
de John Horman (1979), na expectativa de que se aclarem o que aqui está envolvido. Assim,
ele assinala, consiste “num instrumento indispensável, para entender o texto de Tomé,
comparar esse texto às traduções dos evangelhos para o copta” (1979, p. 328). Todavia, ele
assim o sugere, no sentido de os pesquisadores travarem contato com os hábitos dos
tradutores para o copta.
Com esse tipo de ação, ele diz, o estudioso perceberá que (1979, p. 328-329):

Os tradutores para o copta nem sempre eram tão precisos quanto se poderia
esperar deles em suas traduções. Mais que isso, parece ter havido uma
229

tendência entre eles no sentido de harmonizar os Evangelhos Sinóticos um


com o outro.

Em razão disso, quem se dispuser a analisar Tomé, deve ter como princípio norteador
que (1979, p. 329)98:

Parece razoável supor que o tradutor de Tomé compartilhava dessas


tendências. Por conseguinte, a possibilidade de harmonização deve ser
levada em consideração antes que se tirem conclusões acerca do provável
texto grego de Tomé.

Resumindo as proposições de Horman e adicionando os postulados de Patterson, Tomé


apresentaria fortes indícios de conter tradições autônomas, quando comparadas às tradições
presentes nos Sinóticos, mas é inviável não trabalhar com a hipótese de, ao longo do processo
de sua transmissão textual, copistas tenham sido influenciados por seu conhecimento –
superficial ou profundo – da redação dos Sinóticos.
Patterson qualifica isso como uma espécie de corrupção textual e oferta alguns
exemplos que embasam sua concepção. Assim, para ele, o copista que foi o responsável pelo
exemplar encontrado em Nag Hammadi esteve sujeito ao palavreado de Mateus nas sentenças
(1993, p. 92-93):

Tomé 39:1 Mt 23:13


Jesus disse: “Os fariseus e os escribas Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas,
tomaram as chaves do conhecimento e as porque bloqueais o Reino dos Céus diante dos
esconderam”. homens.

98
Cabe fazer um adendo. Horman está dialogando, neste caso, com o trabalho de W. Schrage, sobre quem ele
direciona a maioria de suas críticas. Com efeito, Scharge advoga que Tomé depende, para sua redação, das
traduções dos evangelhos sinóticos para o copta. Horman comenta, por sua vez, que se Schrage estiver correto,
toda a investigação em torno da independência de Tomé se mostra inútil. Contudo, na perspectiva de Horman, os
comentários de Schrage caracterizam-se por grande instabilidade, caindo em contradição com constância. Em
razão disso, ele frisa, merecem um corretivo. A análise crítica de Tomé a que ele se refere, portanto, diz respeito
às fontes textuais do autor desse documento e não ao texto como um todo. Ademais, está em jogo a questão da
dependência ou independência de Tomé para com os Sinóticos. No caso a que dedica sua atenção, ou seja, a
parábola registrada em Mt 13:4-9 e que faz paralelo com Tomé 9, Horman sustenta que se pode fortemente
admitir que o tradutor de Tomé não “alterou tendenciosamente uma ou mais de uma versões sinóticas da
parábola” (1979, p. 341). Conclusivamente, Horman posiciona-se a favor de uma fonte escrita comum a Tomé e
a Marcos e que ambos tiveram acesso a ela independentemente.
230

Tomé 32 Mt 5: 14b
Jesus disse: “Uma cidade construída sobre Vós sois a luz do mundo. Não se pode
alta montanha e fortificada não pode cair, esconder uma cidade situada sobre um monte.
nem pode estar oculta”.

Esse mesmo copista também teria sido influenciado pela redação lucana nas sentenças
(1993, p. 92-93):

Tomé 45:3 Lc 6:45


Uma pessoa boa produz o bem a partir do O homem bom, do bom tesouro do coração
depósito; uma pessoa má produz coisas más tira o que é bom, mas o mau, de seu mal tira o
a partir do corrompido depósito do coração e que é mau.
diz coisas más.

Tomé 104:1, 3 Mt 5:33


Disseram a Jesus: “Venha, rezemos hoje e Disseram-lhe então: “Os discípulos de João
jejuemos”. (...). Jesus disse: “Quando o jejuam frequentemente e recitam orações
noivo sair do quarto nupcial que as pessoas (...)”. Jesus respondeu-lhes: “Acaso podeis
jejuem e rezem”. fazer que os amigos do noivo jejuem enquanto
o noivo está com eles?”

Tais exemplos levam-no a asseverar não haver como postular uma total independência
de Tomé sobre os Sinóticos. Debalde isso, ele salienta que “Tomé não está ligado aos
evangelhos sinóticos em qualquer forma generativa. Nesse sentido, o Evangelho de Tomé é
para ser considerado um representante de uma tradição cristã primitiva autônoma” (1993, p.
93).
Um segundo teste, proposto por Patterson, a fim de assegurar a independência literária
de Tomé consiste em descobrir um “grau relativamente alto de ordem compartilhada na
sequência em que cada um dos textos apresenta esse material compartilhado” (1993, p. 94).
Crossan, por exemplo, está inteiramente certo de que a questão da ordem dos Ditos é
um argumento mais do que definitivo a favor da independência de Tomé. Consoante suas
palavras, um exemplo é o suficiente (p. 35):

Mt 10:27//Lc 12:3 Tomé 33 Mc 4:21 // Lc 8:16 – Mt


5:15 // Lc 11:33
O que vos digo às escuras, Jesus disse: “O que ouvirem
dizei-o à luz do dia: o que em seu ouvido, de seu telhado
vos é dito aos ouvidos, proclamem no outro ouvido.
proclamai-o sobre os
telhados.
Pois ninguém acende uma E dizia-lhes: “Quem traz
lâmpada e a põe sob uma cesta, uma lâmpada para colocá-la
231

nem a põe em lugar escondido. debaixo do alqueire ou


Ao contrário, põe-na em um debaixo da cama? Ao invés,
suporte, de modo que todos os não a traz para colocá-la no
que vêm e vão vejam sua luz”. lampadário?”

Acerca do exemplo acima, Crossan faz duas observações. Ou antes, pede para que seu
leitor lembre-se de duas condições irrecusavelmente comprováveis. Em primeiro lugar, os
evangelhos sinóticos não continham numeração de capítulos e versículos e nem subtítulos,
sendo textos corridos. Por conseguinte, ele assevera, “seria provavelmente impossível copiar
Ditos sem que se acompanhasse alguma ordem também” (p. 35). Em segundo, Tomé não
apresenta, em si mesmo, nenhuma ordem ou sequência composicional de modo que “não
haveria nenhuma razão para reordenar a sequência de Ditos tomados emprestados daqueles
outros evangelhos” (idem, idem).
Nesse sentido, Tomé, ao formar o Dito 33 adotou como procedimento tomar um pedaço
de Mt 10:27//Lc 12:3 e conectá-lo a outro trecho, retirado, por sua vez, de Mt 5:15//Lc 11:33.
Na opinião de Crossan, tal forma de montar um Dito é ausente de sentido.
Patterson desenvolve a questão esboçando um quadro comparativo com os Ditos de
Tomé posicionados lado a lado com seus paralelos nos Sinóticos. O resultado, como ele
sublinha, não permite dúvidas: Tomé não é dependente de Marcos, Mateus e Lucas.
De maneira idêntica a que se faz quando se busca a ordem das sentenças nos Sinóticos
na busca pela atestação da hipótese Q, faz-se agora incluindo Tomé:

Tomé Mateus Marcos Lucas


2:1 7:7 11:9
3:1-3 17:20-21
4:1
4:2 19:30 10:31 13:30
20:16
5:2 4:22 8:17
6:1-4
6:5-6 10:26 4:22 8:17
7:2
8:1-4 13:47-50
9:1-5 13:3-9 4:2-9 8:4-8
10 12:49
232

Bastam unicamente as dez primeiras sentenças de Tomé para que se fique convencido
de que, no quesito ordem dos Ditos, o autor desse evangelho não acompanha os Sinóticos.
Sem embargo, convém frisar que há sequências que, de fato, denotam um suposto acesso ou
contato entre textos:

Tomé Mateus Marcos Lucas


45:1 6:44b
45:2 6:45a
45:3-4 6:45c

Contudo, isso não constitui uma evidência de peso a favor dos que afirmam a
dependência de Tomé em relação aos Sinóticos. São exceções, como salienta Patterson, que
confirmam, por conseguinte, a independência de Tomé.
Convém mencionar, no entanto, que os proponentes da dependência de Tomé discutem
essa ordem aleatória dos Ditos encontrando nela, por outro lado, indícios de um rearranjo
intencional da tradição sinótica. Nesse sentido, advogam que Tomé reordenou as sentenças
sinóticas de Jesus em consonância com seus interesses teológicos gnósticos. Afirmam,
ademais, que é possível identificar um princípio organizador por trás da sequência dos Ditos.
Tal princípio organizador seria a presença de “elos de palavras ou associação de
palavras-chave” (CROSSAN, 2004, p. 286) conectando os Ditos em Tomé. Assim, encontra-
se base para essa noção, dentre outros exemplos, na sequência abaixo:

Tomé 20 Os seguidores disseram a Jesus: “Diga-nos com o que se


assemelha o reino do céu”
Ele lhes disse: “Ele se assemelha a um grão de mostarda...”
Tomé 21 Maria disse a Jesus: “Seus seguidores se assemelham com o
quê?”
Ele disse: “São semelhantes a criancinhas que vivem em um
campo que não é delas.”
Tomé 22 Jesus viu algumas criancinhas que mamavam. Disse ele a seus
seguidores: “Essas crianças que mamam se assemelham àqueles
que entram no reino...”

O que se pode extrair desse exemplo?


Patterson enfatiza que é importante reconhecer que Tomé elaborou seu evangelho
usando palavras-chave como princípio organizador, conferindo-lhe sua própria lógica interna.
233

Essa lógica, ele assevera, é de natureza essencialmente mnemônica: “uma palavra-chave


no Dito “A” traz à mente uma palavra similar no Dito “B”, alguma coisa no Dito “B” sugere
algo que está no Dito “C” e assim por diante” (1993, p. 102).
Ademais, Patterson pensa em outras possibilidades que expliquem o recurso de Tomé às
palavras-chave (1993, p. 102):
- Um editor organizou a coletânea de Ditos dessa maneira a fim de facilitar a
memorização. Nesse sentido, isso seria de significativa e óbvia utilidade para um “pregador
de rua que comporia seus discursos ad hoc nas colunas agitadas da ágora”.
- O editor juntou esses Ditos simplesmente como ele se lembrava deles e, nesse
processo, as palavras-chave iam acionando a recordação de cada nova sentença. Como
sustenta Patterson, “nesse caso, as palavras-chave não terão sido produto de qualquer desígnio
consciente por parte do editor, mas simplesmente o resultado de seu processo de lembrança”.
- A ordem dentro dos aglomerados de Ditos de Tomé já estava determinada no estágio
oral da tradição, antes de os Ditos terem sido vertidos por escrito.
Todas essas possibilidades, portanto, convergem para a mesma conclusão: Tomé não é
dependente dos Sinóticos. Mais que isso, ao mencionar memorização, performance oral e
tradições orais, Patterson pavimenta o caminho para uma abordagem calcada nos estudos
sobre memória e oralidade.

3.4. E SEU TESTEMUNHO É VERDADEIRO

Do momento em que Jesus de Nazaré principiou sua carreira pública, arrebanhando


seguidores e angariando detratores, entraram em ação processos de (a) ver/ouvir, (b) guardar
na memória, (c) selecionar o que contar e (d) verter por escrito o que não caiu – e antes que
caísse – no esquecimento. Com exceção dos momentos em que o filho de Maria esteve
solitário, em todos os outros ele teve uma ou mais de uma testemunha de seus feitos e ditos.
Em seguida ao seu falecimento, pode-se supor que foi disparado um conjunto de
inúmeras lembranças por parte daqueles que estiveram ao seu lado e/ou que foram impactados
por suas palavras e por suas ações. Assim, não é de todo implausível imaginar que tenha
havido choques, de maior ou menor importância, quando os formadores das primitivas
comunidades de crenças resolveram externar suas recordações em torno dos dias vividos ao
lado de Jesus de Nazaré.
Nesse sentido, quem se lembrava com exatidão de cada uma das palavras proferidas por
ele? Quem era capaz de por em ordem cronológica os fatos que marcaram seu ministério
234

público indicando o que veio antes e o que veio depois? A ordem cronológica era, de fato,
relevante? Ademais, existiu algum tipo de porta-voz dos grupos?
À luz, portanto, dos estudos sobre memória, convém aprofundar o olhar sobre os
testemunhos de testemunhas oculares e averiguar o quão acurado e quão confiável podem ser
aquilo que se obtém dessas pessoas.

3.4.1. COMUNIDADES DE MEMÓRIAS

Como primeira hipótese de trabalho, neste momento da pesquisa, cumpre se considere


que os diferentes círculos de seguidores de Jesus de Nazaré e as posteriores e consequentes
comunidades de crenças constituíram-se como “comunidades de memória” (MISZTAL, 2003,
p. 15).
Consoante Barbara Misztal, “famílias, grupos étnicos e a nação” são os exemplos mais
conhecidos dessas comunidades mnemônicas. De acordo com sua análise, elas “afetam a
‘profundidade’ de nossa memória, regulam quão distante conseguimos nos lembrar, que parte
do passado deveria ser lembrada, que eventos marcam o princípio das coisas e o que deveria
ser jogado para fora de nossa história” (2003, p. 15).
Assim, segundo a tese das múltiplas trajetórias que caracterizam a disseminação da
mensagem de Jesus de Nazaré não parece ser implausível estipular que os evangelhos
representam, além de ramos dos cristianismos, depositórios das lembranças de comunidades
de memória. A priori, tudo seria mais facilitado se desde o começo houvesse apenas uma
comunidade preservando as recordações dos dias em que Jesus pôs em ação seu projeto do
Reino. Ou não.
Entretanto, a realidade histórica está muito longe do que se deseja que pudesse ter sido.
Cada evangelho/comunidade de memória conservou consigo as lembranças que, reunidas,
asseguraram sua identidade coletiva. A leitura atenta dos evangelhos, canônicos e
extracanônicos, porém, faz emergir toda uma diversidade de recordações acerca do ministério
público de Jesus de Nazaré. Nesse sentido, perdem razão os que vociferam a respeito do que
entendem serem “contradições” nos evangelhos. Convém sublinhar, portanto, que há muito
mais fatores envolvidos do que simplesmente se acredita.
De acordo com o Quarto Evangelho, após formar seu pequeno grupo de discípulos,
Jesus “foi convidado para um casamento” que ocorreria em Caná da Galileia. A certa altura
da celebração, de acordo com a narrativa, a mãe de Jesus informa-o sobre o fim do vinho.
Após uma ligeira intercação entre Jesus e sua mãe, o autor do evangelho descreve como Jesus
235

“transformou a água em vinho”, maravilhando a todos os convidados. Ressaltando o feito, a


narrativa garante que ali se dava o “princípio dos sinais” (Jo 2:11).
Por mais que exista toda uma extensa bibliografia que trate esse episódio como
simbólico e não factual, importa ver nele, porém, um “evento que marca o princípio”. A
propósito, o próprio evangelho assim o nomeia. À luz, portanto, da teorização de Misztal, o
assim chamado “milagre de Caná” constitui, para a comunidade joanina, um marco sobre a
apresentação poderosa de Jesus no cenário do mundo.
Em outra comunidade, porém, o princípio se deu num lugar diferente e envolveu uma
situação completamente distinta. Assim, a comunidade por trás do evangelho de Marcos fixou
na memória coletiva que Jesus, após constituir seu pequeno séquito, entrou numa sinagoga
situada em Cafarnaum. No recinto, Jesus ensinava e espantava seus ouvintes em razão de
explanar com autoridade. Naquela ocasião, portanto, “um homem possuído de um espírito
impuro” abordou agressivamente a Jesus, que o conjurou e, como consequência desse
comando verbal, abandonou o corpo do anônimo judeu (Mc 1: 21-28). Esse foi, para a
comunidade marcana, “o princípio das coisas”.
Com todo o respeito aos historiadores mais céticos, não se trata aqui de debater em
torno da historicidade da narrativa de expulsão de um espírito impuro na sinagoga de
Cafarnaum. Nem de, consultando as escavações arqueológicas, tecer vários argumentos
contrários à existência de uma construção sinagogal naquela época e naquele local. Longe
disso. O ponto, assim como no episódio narrado no Quarto Evangelho, é o da formação de
memórias coletivas e suas implicações.
Com efeito, no seguimento de suas ponderações, Misztal discorre sobre o processo “de
socialização mnemônica” que caracteriza as comunidades de memória e que tem por fim
assegurar a coesão do grupo por meio de um processo sutil que acontece tacitamente, ou seja,
“escutar de um membro da família a experiência comungada por todos, por exemplo,
implicitamente ensina o que é para ser considerado memorável e o que se pode realmente
esquecer” (2003, p. 15).
Assim, ela assevera, “devido à tradição mnemônica de um grupo, um viés cognitivo
particular marca todas as recordações do grupo. Tipicamente, tal viés expressa alguma
verdade essencial a respeito do grupo e sua identidade, equipando-o tanto com o tom quanto
com o estilo emocionais de seu relembrar” (2003, p. 16).
Subjaz a essas considerações de Misztal a noção de que, em comunidades de memória,
o ato de lembrar e o ato de esquecer estão intimamente relacionados às estruturas de poder.
Com efeito, as decisões sobre o que manter vivo e o que relegar ao olvido devem partir de um
236

centro de comando. Dependendo da situação, este centro pode ser dirigido pelos mais velhos
ou pelos portadores da memória que, por sua vez, devem ter a anuência dos mais velhos.
Verticalizando um pouco mais a investigação, é possível determinar o papel que as mulheres
desempenham em comunidades de memória?
Balizando essas reflexões preliminares, cumpre apoiar-se nas indicações de Peter Burke
em torno de como o historiador se relaciona com a memória social. Assim, conforme o seu
entendimento, o interesse do historiador pela memória deve partir de dois pontos de vista: (1)
“estudar a memória como uma fonte histórica”, elaborando “uma crítica da confiabilidade da
reminiscência no teor da crítica tradicional de documentos históricos” (2000, p. 72) e (2)
sendo a memória social seletiva, “identificar os princípios de seleção e observar com eles
variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e como mudam com o passar do
tempo” (2000, p. 73).
Convém, no entanto, conceder espaço para as judiciosas e pertinentes observações de
Werner Kelber acerca da relação memória e pesquisa bíblica. Em mais de uma oportunidade,
Kelber denuncia que a erudição bíblica relega os estudos sobre memória à condição de uma
discussão sem relevância99.

99
Esse cenário divisado por Kelber vem sendo alterado substancialmente e a bibliografia relativa ao diálogo
entre estudos sobre a memória e pesquisa bíblica se enriquecem ano após ano. Analisando a narrativa bíblica do
Êxodo, Ronald Hendel sugere que os historiadores “têm muito o que investigar considerando as memórias
coletivas da cultura” (2005, p. 58). Memórias culturais, ele aponta, “são comunicadas oralmente e em textos
escritos, circulando em uma ampla rede discursiva” (2005, p. 58). Com efeito, ele postula empregar a
mnemohistória como uma abordagem para acessar a narrativa do Êxodo, pois, dessa maneira, serão pesquisados
“história e memória para discernir seus traços mútuos e inter-relacionados, a fim de se ver como o passado
lembrado é construído e reinterpretado e como a identidade coletiva depende do passado lembrado” (2005, p.
59). Yael Zerubavel, prolífico sociólogo, desafiando a concepção de “declínio da memória”, advogada por Yosef
Yerushalmi, assevera que a memória coletiva, frequentemente, constrói certos eventos como marcadores
simbólicos de transições históricas. A partir dessa noção, ele explora a intertextualidade das narrativas
comemorativas de dois eventos históricos que funcionam como pontos de inflexão na memória coletiva de Israel:
a queda de Massada, em 73 E.C., e o Holocausto, durante a Segunda Guerra Mundial (1994, p. 74). Mark Smith
exprime-se asseverando que “as narrativas do passado na Bíblia, especialmente de Gênesis até 2 Reis, mostram
uma interessante mistura de informação histórica e de memórias culturais” (2006, p. 21). Ademais, ele
acrescenta, “o estudo acadêmico da memória coletiva oferece importante ajuda intelectual para entender as
representações bíblicas do passado de Israel, que incluem suas recordações passadas de seu Deus” (2006, p.21).
Com efeito, “A memória coletiva primeiro ajudou a moldar o monoteísmo bíblico, e depois influenciou a
compreensão de Israel sobre seu próprio passado politeísta” (idem, idem).
237

Com efeito, desde meados dos anos 1960, os trabalhos sobre memória tem feito parte,
“com intensidade quase obsessiva”, de uma grande variedade de campos tais como (2006,
p.16):

Antropologia, ciência política, crítica literária, estudos medievais, estudos


culturais, sociologia, estudos étnicos, filosofia, história e outras disciplinas,
elevando virtualmente a memória à significância programática e gerando um
corpo diverso de teorias e uma pletora de estudos sobre atividades ligadas a
memorização/come-moração/recordação na cultura humana.

Entretanto, sublinha Kelber, os estudos bíblicos parecem não terem sido afetados por
esses desenvolvimentos. É de se estranhar, portanto, que a “pesquisa sobre Jesus e estudos
sobre os evangelhos” que se ocupam de materiais orais e escritos que são, “em termos de
composição, performance e recepção, profundamente enraizados em contextos culturais
orais/retóricos”, não tenham buscado aproximar-se dos conceitos desenvolvidos sobre
memória (2006, p. 16).
Ademais, Kelber elenca uma série de assuntos que, no interior dos estudos sobre
memória, seriam de preocupação fundamental para os pesquisadores que laboram no campo
dos cristianismos. Assim, podem-se mencionar “o enigma da representação do passado
ausente, a tradição da ars memoriae, envolvimentos entre memória e imaginação, o papel das
imagens no processo de recordação, o problema do esquecimento, o fenômeno das múltiplas
atividades comemorativas” e muitos outros tópicos (2006, p. 16).
Por conseguinte, a reintrodução desses estudos na busca do Jesus histórico demonstraria
sua utilidade à medida que traria novas luzes sobre a tradição de Jesus, “iluminando-a
enquanto um processo de recordação” (2006, p 16).

3.4.2. QUEM SE LEMBRA?

Em 2006, Richard Bauckham publicou um estudo que, desde então, atraiu apoiadores e,
em maior escala, detratores. A torrente de críticas a essa publicação rendeu uma série de
artigos acadêmicos nos quais Bauckham pretendia refutar todos os seus contestadores.
A tese central da obra dizia respeito ao papel, predominante e indispensável, das
testemunhas oculares do ministério público de Jesus de Nazaré no registro escrito de seus
ditos e feitos nos evangelhos. Em suma, cumpria “recuperar o sentido dentro do qual os
Evangelhos são testemunhos” (2006, p. 5). Assim, ele prossegue, “entendidos como
testemunhos, os Evangelhos são o meio inteiramente apropriado de acesso à realidade
238

histórica de Jesus” (2006, p. 5). No intuito de ressaltar sua proposição, Bauckham chamava
seus pares para a necessidade de “reconhecer que, historicamente falando, testemunho é um
único e unicamente válido meio de acessar a realidade histórica” (2006, p. 5).
No bojo de seu estudo, Bauckham mostrava-se bastante convicto de que apresentaria
evidências de que “’a ligação pessoal da tradição de Jesus com missionários em particular’ ao
longo do período de transmissão da tradição até sua escrita como evangelhos, se não
‘historicamente inquestionável’, [seria] ao menos historicamente muito provável” (2006, p.
7).
Ademais, segundo ele supunha, o período de tempo entre o “Jesus ‘histórico’ e os
Evangelhos foi realmente preenchido, não pela transmissão comunitária anônima, mas pela
presença e testemunho contínuos das testemunhas oculares, que permaneceram as fontes
autorizadas de suas tradições até suas mortes” (2006, p. 8).
Levando-o a afirmar peremptoriamente que os que pensam em termos de uma tradição
oral circulante que chegou aos escritores evangélicos optam por um modelo inadequado. Com
efeito, o modelo principal a ser adotado, consoante Bauckham, é “o das testemunhas
oculares” (2006, p. 8).
Assim, para ele, indícios internos aos textos evangélicos canônicos, referências externas
a esses textos e dados advindos dos estudos acerca da historiografia antiga juntam-se para
atestar que, entre outras conclusões, os evangelhos foram escritos pelos autores que a tradição
afirma que foram.
Convém sublinhar, entretanto, que Bauckham não dedica uma linha sequer sobre, por
exemplo, o papel desempenhado pelas testemunhas oculares no fornecimento de memórias
para a redação dos evangelhos não canônicos. Ele simplesmente descarta essa possibilidade,
concentrando-se exclusivamente nos evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João.
A propósito do assunto, Bauckham pondera sobre o Dito 13 (2006, p. 236-237):

Jesus disse a seus seguidores: “Comparem-me com algo e digam-me com


que me assemelho”.
Simão Pedro disse-lhe: “O senhor é como um mensageiro justo”.
Mateus disse-lhe: “O senhor é como um sábio filósofo”.
Tomé disse-lhe: “Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com que
o senhor se assemelha”.
Jesus disse: “Não sou seu mestre. Porque você bebeu, embriagou-se na fonte
borbulhante que ofereci”.
E se afastou com ele e lhe disse três sentenças.
Quando Tomé voltou para seus amigos, estes lhe perguntaram: “O que Jesus
lhe disse?”
239

Tomé lhes disse: “Se eu lhes expuser uma das sentenças que ele me disse,
vocês pegarão pedras e me apedrejarão, e das pedras virá fogo e os
consumirá”.

Para Bauckham, essa é uma passagem intrigante, mas que deve ser encarada como a
demonstração de que “o redator final” de Tomé estava a par da existência dos evangelhos de
Marcos e de Mateus. Com efeito, a inclusão de Mateus no Dito, consoante Bauckham, teria
uma função: “denegrir Mateus e seu evangelho” (2006, p. 236). E, ele conclui, é “altamente
provável que Pedro representa o Evangelho de Marcos” (2006, p. 237). Nada mais é referido
sobre Tomé que o aproxime da noção de ser, como os outros evangelhos, o registro escrito das
lembranças de uma testemunha ocular.
Bauckham, por sua vez, tem consciência de que a memória é falível. “A memória”, ele
comenta, “prega peças em nós, de modo que mesmo quando nos sentimos certos de que
nossas memórias estão corretas, elas se mostram falsas. Pessoas podem se recordar de coisas
que nunca aconteceram” (2006, p. 319).
Por conseguinte, se seu argumento é válido, ou seja, que os evangelhos colocam-nos,
enquanto registros escritos dos relatos orais de testemunhas oculares, em contato muito mais
próximo do que se pensa com Jesus, em que medida, ele indaga, “podemos confiar nas
memórias dessas testemunhas?” (2006, p. 319).
Bauckham sustenta que tais memórias são precisas e confiáveis. Com efeito, aos seus
olhos, o tipo de memória que está em jogo nesse esforço para demonstrar sua tese é a,
consoante William Brewer, “memória recordativa”. Brewer define esse tipo de memória como
(1996, p. 60-61):

Memória sobre um episódio específico de um passado individual.


Tipicamente, parece ser uma “revivência” da experiência fenomenal de um
indivíduo durante esse momento. Assim, é típico dessa memória conter
informações sobre lugares, ações, pessoas, objetos, pensamentos e afetos.
Ela não contém qualquer representação direta do tempo. A informação nesse
tipo de memória se expressa como uma imagem mental. (...) Ela é
acompanhada por uma crença de que o episódio lembrado foi pessoalmente
experimentado pelo indivíduo nesse passado individual. (...) Memória
recordativa suscita alta confiança na precisão de seu conteúdo e essa
confiança pode prognosticar, com frequência, a precisão objetiva da
memória.

Uma amostra de que os evangelhos canônicos foram redigidos com base nesse tipo de
memória encontra-se, conforme acredita Bauckham, na passagem registrada no Quarto
Evangelho como Jo 12:14-16:
240

Jesus, encontrando um jumentinho, montou nele, como está escrito:


Não temas, filho de Sião! Eis que vem o teu rei, montando num jumentinho!
Os discípulos, a princípio, não compreenderam isso; mas quando Jesus foi
glorificado, lembraram-se de que essas coisas estavam escritas a seu respeito
e que tinham sido realizadas.

Convém salientar, porém, que os relatos de testemunhas oculares não são garantia de
fidelidade acerca dos fatos ocorridos como uma decorrência de sua presença no momento em
que eles se dão. Daniel L. Schacter relata casos surpreendentes de erros de atribuição por
parte de testemunhas oculares.
Com efeito, embora assinale não se saber ao certo quantas vezes testemunhas oculares
cometeram erros sobre certas situações e acusaram equivocadamente pessoas inocentes de
crimes que essas não cometeram, ele pede que se considerem dois fatos: (1) De acordo com
estimativas feitas nos anos 1980, a cada ano nos EUA mais de 75 mil casos de julgamentos
criminais foram baseados em testemunhos de testemunhas oculares; e (2) uma análise recente
de quarenta casos em que evidências obtidas em testes de DNA estabeleceram a inocência de
indivíduos erradamente aprisionados revelou que trinta e seus desses casos (90%) envolveram
identificações erradas por parte de testemunhas oculares (2001, p. 92).
Claro e evidente que pesquisas “conduzidas em contextos ocidentais nos séculos XX e
XXI não são necessariamente diretamente transferíveis para a Palestina do primeiro século”, à
proporção que, frisa Judith Redman, “os contextos culturais diferentes e os níveis de
letramento terão efeitos significativos sobre os processos de memória” (2010, p. 179).
Não obstante, a maioria dos psicólogos considera que memórias de testemunhas
oculares são do tipo “autobiográfica” (2010, p. 180). Por sua vez, o processo de aquisição de
memória envolve três estágios: “aquisição, retenção e recuperação” (2010, p. 180). Nesse
sentido, as alegações de que as memórias de determinadas testemunhas oculares são precisas
dependem de que cada um desses estágios não tenha sofrido interferências.
Desenvolvida por Frederic C. Bartlett, a teoria do “esquema” pode ser proficuamente
utilizada no sentido de entender os processos de memória em seus três estágios. De acordo
com Bartlett, um esquema é “uma representação mental que incorpora todo o conhecimento
de um tipo de objeto particular ou de um evento ocorrido em uma experiência passada” (1932,
p. 199). Os esquemas, por sua vez, “são usados para interpretar novos episódios, permitindo-
nos antecipar como reagir em circunstâncias particulares” (2010, p. 180).
Redman explica que nosso esquema sobre, por exemplo, “inverno”, é determinado pelos
invernos que tenhamos previamente passado e talvez também pelo que tenhamos lido ou
241

ouvido sobre invernos. Nesse sentido, mesmo que nunca hajamos visto neve, uma cena com
neve caberia em muitos esquemas ocidentais de inverno e, por conseguinte, facilmente nas
memórias construídas sobre o Natal.
Entretanto, os estudos acadêmicos relativos à aquisição de memória salientam a
existência de variáveis que afetam a habilidade das testemunhas oculares de perceber
precisamente o que até elas chegam como informações. Dentre essas variáveis, Redman cita e
comenta os seguintes (2010, p. 181-185):
1. Expectativas. A percepção de um evento pode ser afetada por aquilo que uma
testemunha espera ver ou ouvir. A cultura, os estereótipos, experiências do passado e
prejuízos pessoais podem moldar as expectativas.
2. Tipo de fato. As pessoas tendem a achar mais difícil de lembrar situações em que é
necessário estimar, por exemplo, peso, distância, número de pessoas em grandes aglomerados
e a duração de eventos ou atividades.
3. Relevância do evento e saliência ou proeminência de detalhes. A fim de lembrar uma
dada experiência, as testemunhas oculares, por incapacidade de reter todos os detalhes,
precisam selecionar quais conservar e quais descartarem, mesmo que inconscientemente.
Assim, “um evento que uma testemunha considerar insignificante será, com frequência,
imprecisa e incompletamente lembrado quando comparado a um evento que ele/a repute
significativo” (2010, p. 183).
4. A personalidade e os interesses da testemunha. As lembranças que se encontram
associadas aos interesses pessoais da testemunha ocular serão recordadas com mais facilidade.
Pesquisas mostraram que detalhes que causam dissabor tendem a ser distorcidos pela
memória.
5. Ponto de vista da observação e adequação perceptiva. Essa variável refere-se à
relação objetiva entre a testemunha e o evento testemunhado. Ou seja, duas testemunhas
oculares, posicionadas em lugares distintos, podem ter recordações diferentes dependendo do
ângulo em que viram ou ouviram o ocorrido.
Agregue-se ainda a esses fatores o processo interpretativo aplicado ao evento pelas
testemunhas oculares que, com frequência, buscam conferir sentido ao que percebem e como
retém na memória. Nesse sentido, os relatos de testemunhas não são garantia de historicidade.
Convém, portanto, ouvir uma das premissas de Robert McIver que assinala que
memórias de grupos são construídas coletivamente, mas é “a qualidade da memória individual
que determina a precisão da memória coletiva como um todo que venha a se formar” (2011, p.
5).
242

Assim, quão precisa é a memória de uma testemunha ocular? À luz dos estudos sobre
memória, a resposta mais razoável é “não muito”.

3.5. ENCONTRANDO A OVELHA PERDIDA

O movimento de Jesus de Nazaré nasceu, cresceu, desenvolveu-se e difundiu-se num


mundo de comunicação predominantemente oral. Com efeito, as tradições de e sobre Jesus
circulavam por entre as comunidades de crenças na forma oral e assim continuaram mesmo
quando textos começaram a surgir.
No bojo dessa constatação, duas vertentes necessitam receber mais atenção dos círculos
acadêmicos especializados: (a) Jesus de Nazaré e suas (re)performances orais e (b) como o
baixo letramento afetou o uso dos evangelhos no interior das comunidades protocristãs após
eles terem sido escritos.
A fim de prosseguir, tratando adequadamente das vertentes acima mencionadas,
convém propor uma indagação: no curso de seu ministério público, quantas vezes Jesus de
Nazaré proferiu, por exemplo, as várias parábolas que, de certa maneira, caracterizam seu
ensino? Uma única vez e as testemunhas oculares dessa solitária performance oral retiveram-
na na memória e a transmitiram ipsis litteris até que fosse vertida em algum dos evangelhos?
Convém sublinhar que Joachim Jeremias considera as parábolas sinóticas como uma
“tradição muito fiel e em imediata proximidade de Jesus” (1970, p. 9). Com efeito, as
parábolas não são “obra de arte”, mas cada uma delas “foi pronunciada numa situação
concreta da vida de Jesus” (1970, p. 15). Todavia, para Jeremias, a enunciação das parábolas,
quer dizer, seu “lugar original histórico” ocorre em “uma situação única e concreta no quadro
da atividade de Jesus” (1970, p. 17).
Entretanto, ele aduz, a assim chamada “Igreja das origens” colocou essas parábolas sob
outro enquadramento, “transformando-as ocasionalmente, ampliando aqui, alegorizando acolá
– tudo isto a partir da sua situação, ou seja, a partir da situação entre a cruz e a parusia” (1970,
p. 17). O empenho em descortinar a voz autêntica de Jesus nas parábolas passaria por
contrapor as versões da Igreja das origens e a situação em que viveu Jesus. Mais que isso,
conforme Jeremias, o Evangelho de Tomé oferece uma ajuda nesse desiderato (1970, p.
18)100.

100
Michel Gourgues é bem mais ponderado nesse aspecto. Para ele, as parábolas devem ser entendidas como
“próprias de cada evangelho”. Por conseguinte, ele adverte, “não será sempre possível – como melhor se poderia
243

O quão realista é essa suposição? Judith Redman se diz surpresa com o fato de a
maioria dos pesquisadores, quando aborda os paralelos sinóticos, pensa que cada um dos ditos
de Jesus foi pronunciado apenas uma e única vez101. Em consequência disso, ela prossegue, as
variantes textuais entre os evangelhos sinóticos resultariam de ajustes pontuais por parte de
seus autores e, reflexo dessa observação, haveria sentenças mais autênticas e mais originais do
que outras.
Nesse sentido, não é por outra razão que os intérpretes visam a descobrir a autêntica voz
de Jesus nas parábolas por meio de estratégias regidas pelo paradigma literário. Assim,
Bernard Brandon Scott debruça-se sobre as várias parábolas que constam do material sinótico
e, como afirmação preliminar, assinala: “admitir a integridade da tradição da parábola não é o
mesmo que admitir que todas as parábolas procedam diretamente de Jesus. Como temos
indicado, a tradição era criativa, não passiva” (1990, p. 65).
Por conseguinte, Scott pergunta-se como um pesquisador pode detectar se “uma
estrutura parabólica deriva de Jesus” (1990, p. 65). De que maneira, ele indaga, pode-se
“separar aquelas parábolas cuja alegação de fazer parte do material original é suspeita? (1990,
p. 65)”.
Scott assinala que ele segue na busca pela “voz” das parábolas. Ele reconhece, por sua
vez, que essa “voz” pode até nem ser a de Jesus, restando-lhe aceitar que sua procura pode
levá-lo a reconstruir o “autor/orador subentendido do corpus de parábolas” (1990, p. 65). No
entanto, ele assevera, são distintos o autor subtendido e o autor real. Por conseguinte, “quando
falamos do Jesus das parábolas, estamos tratando com o autor subentendido, o orador
subentendido, que é um constructo, uma projeção, das parábolas” (1990, p. 66).

fazer confrontando diversas versões evangélicas – remontar mais acima, isto é, até o próprio Jesus” (2004, p.
16).
101
Judy Redman é teóloga e vive em Albury, Austrália. Seu PhD é dedicado ao Evangelho de Tomé e ela estuda,
com profundidade, as parábolas em perspectiva comparada. Ela desenvolveu um blog de pesquisa no qual
compartilha o andamento de suas leituras, suas dúvidas e suas conclusões preliminares. O endereço eletrônico de
seu blog é https://judyredman.wordpress.com/. Por meio de seu blog, travamos contato virtual e, no decorrer
dessa pesquisa de Doutorado, ela trocou muitas ideias comigo, enviando-me, prestativamente, artigos e livros de
interesse para o tema. Mais que isso, ela pôs-me em contato com outros especialistas de língua inglesa em Tomé.
Todas as referências, nesse tópico, em que ela é citada e que não contiverem as indicações do periódico
originário advém de um paper que ela apresentou na Fellowship for Biblical Studies National Conference, em
Mellbourne e em 2012, que teve como um de seus temas centrais os estudos sobre memória aplicados aos
cristianismos primitivos. Sou grato a ela que me enviou o rascunho de sua comunicação e me autorizou a utilizá-
lo na confecção desta Tese.
244

Convém, portanto, seguir sua abordagem das parábolas e aferir como ele alcança a sua
“voz”. Atendendo aos fins desse trabalho, é proveitoso destacar suas considerações em torno
da parábola “O Pastor e suas ovelhas”. Essa se encontra em três versões: Mt 18:12-14; Lc
15:4-6 e Tomé 107. O método de Scott, com efeito, consiste em analisar cada uma
separadamente.

Mateus 18:12-14
Que vos parece? Se um homem possui cem ovelhas e uma delas se extravia,
não deixa ele as noventa e nove nos montes para ir à procura da extraviada?
Se consegue achá-la, em verdade vos digo, terá maior alegria com ela do que
com as noventa e nove que não se extraviaram. Assim também, não é da
vontade de vosso Pai, que está nos céus, que um destes pequeninos se perca.

Primeiro passo: identificar a audiência fictícia da narrativa mateana. Consoante Scott, os


discípulos constituem a audiência da parábola e o leitor subentendido é a Igreja. Scott
concorda com a interpretação de que a parábola tem como ideia fundamental acentuar, entre
seus ouvintes/leitores, a noção de que, assim como o pastor não descansa enquanto não
resgata a ovelha extraviada, os “cristãos” de Mateus também não devem se fatigar de tentar
trazer de volta algum irmão que haja cometido apostasia. À medida que esse cenário ajusta-se
bastante precisamente ao contexto da Igreja primitiva, pode-se postular que a “versão de
Mateus possivelmente não é original” (1990, p. 406).
Em seguida, Scott volta-se para a versão da parábola registrada em Lucas:

Lucas 15:4-7
Qual de vós, tendo cem ovelhas e perder uma, não abandona as noventa e
nove no deserto e vai em busca daquela que se perdeu, até encontrá-la? E
achando-a, alegre a põe sobre os ombros e, de volta para casa, convoca os
amigos e os vizinhos, dizendo-lhes: “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a
minha ovelha perdida”. Eu vos digo que do mesmo modo haverá mais
alegria no céu por um só pecador que se arrepende, do que por noventa e
nove justos que não precisam de arrependimento.

Em sua perspectiva, todo o capítulo 15 do evangelho lucano, do qual a parábola faz


parte, é ficcional, ou seja, é uma criação do autor desse texto. Em reforço de seu argumento,
Scott assevera que a parábola “Uma mulher com dez dracmas” faz par com a parábola “A
ovelha perdida”, ambas apresentando a mesma estrutura, além de conclusões e aplicações
quase idênticas.
A leitura da parábola na versão lucana deixa perceber que ela é endereçada aos
opositores contumazes de Jesus, ou seja, os fariseus. Ademais, o exame da parábola,
245

consoante Scott, permite identificar “mudanças na performance de Lucas que facilitam seu
uso como uma ilustração no debate com os fariseus acerca de sentar-se a mesa com
pecadores” (1990, p. 408).
Na hora em que discute a parábola em Tomé, Scott afirma que nesse documento copta
observa-se “a performance da mesma estrutura parabólica” que subjaz às duas versões
sinóticas, porém com marcantes diferenças.

Tomé 107
Jesus disse: “O reino é como um pastor que tinha cem ovelhas. Uma delas, a
maior, extraviou-se. Ele deixou as noventa e nove e procurou aquela até que
a encontrou. Depois de ter passado por esse contratempo, ele disse à ovelha:
‘Amo-a mais que às noventa e nove’.”

No bojo de seu comentário, ele traz à baila a análise de William Petersen segundo a qual
a parábola tomesina ecoa um pano de fundo “semítico, mais do que uma forma helenística de
cristianismo” (1981, p. 131), à proporção que ela se baseia num texto das Escrituras
Hebraicas, ou seja, o livro de Ezequiel (34:16):

Buscarei a ovelha que estiver perdida, reconduzirei a que estiver desgarrada,


pensarei a que estiver fraturada e restaurarei a que estiver abatida. Quanto à
gorda e vigorosa, guardá-la-ei. Eu as apascentarei com justiça.

A fim de ratificar sua ilação em torno da matriz semítica para a parábola, Petersen
vasculha a literatura rabínica – convém sublinhar que ele próprio reconhece a dificuldade que
existe em datar esse material e solicita ao leitor de seu artigo que suspenda todo julgamento
relativo a esse detalhe – e acredita encontrar muitas referências que sustentam seu ponto de
vista.
Esse achado de Petersen, indaga Scott, é “uma indicação de que a versão de Tomé é
mais original do que a dos Sinóticos?” (1990, p. 409). Ele próprio responde negativamente,
usando como argumento que a interpretação dada por Tomé à parábola “não concorda com
outros temas estabelecidos na tradição de Jesus” (1990, p. 409).
Por fim, Scott adentra em uma discussão sobre qual evangelho preservou a “versão mais
original” da parábola, se Mateus ou Lucas. Note-se que ele, a priori, descarta Tomé como um
documento que possivelmente conservou a parábola em sua “versão mais original”. Na
sequência, portanto, ele monta uma tabela comparativa na qual as concordâncias e
discordâncias textuais podem ser visualizadas com mais facilidade (1990, p. 410):
246

Mateus Lucas Tomé


Homem Homem Pastor
Cem Cem Cem
Uma Uma A maior
Extraviou-se Perdeu-se Extraviou-se
Nos montes No deserto
Se consegue achá-la Achando-a Até achar
Põe sobre os ombros
Terá alegria Alegra-se Ama mais

Scott faz ainda uma observação concernente a “versão mais original” da parábola, à
proporção que é do seu interesse encontrá-la. Com efeito, ele aponta, Mateus e Lucas
“preservam a parábola na forma de um questionamento”, enquanto Tomé trata-a como um
Dito do tipo “O reino é como...”. Por conseguinte, ele assevera ser “impossível decidir se a
estrutura original era interrogativa ou uma declaração direta” (1990, p. 410).
Muito embora pareça ter sido um desvio de rota, as referências ao importante trabalho
de Brandon Scott consistiram em uma tentativa de suscitar reflexões sobre as dificuldades que
se avolumam quando a documentação textual dos cristianismos primitivos é abordada
segundo os critérios e métodos do assim chamado paradigma literário. Com efeito, muita tinta
é gasta, invariavelmente sem sucesso, na procura por esse ente intangível e abstrato, a saber, a
“versão original” das falas do Jesus histórico.
Chevitarese, como costuma ensinar aos que o ouvem a respeito do atual estágio da
pesquisa sobre esse personagem histórico, diz que, relativamente a Jesus de Nazaré, vemos
somente e por enquanto apenas a sua sombra. A sombra deixada por alguém que já passou.
Parece acertado, enfim, levar a sério o que alguns estudiosos vêm trazendo para o
âmbito da pesquisa da história dos cristianismos e dos judaísmos. Quer dizer, mostrar-se mais
receptivo aos insights advindos dos estudos sobre memória, sobre oralidade, sobre História
Oral.
Assim, convém retomar a linha de raciocínio de Redman. A pesquisadora australiana
imagina um tipo de situação que não é inteiramente descartável. Pode-se mesmo dizer que é
bastante verossímil. Suponha-se que Jesus de Nazaré, diante de um determinado público
ouvinte, com certas características próprias, obtém uma boa recepção às suas histórias e
exortações. O que o impediria de, perante outro público ouvinte, mas com características
247

muito próximas, repetir as mesmas histórias e exortações? Mais que isso, qual o obstáculo que
essas histórias, em formas de parábolas, não sofressem pequenas modificações, no ato de seu
pronunciamento, quando assim fosse preciso?
Redman sugere, portanto, que mais do que intervenções dos autores evangélicos sobre
as tradições de e sobre Jesus que até eles chegaram, as variantes poderiam ser da própria
transmissão oral. Se não de Jesus, a cada ato comunicativo, por parte daqueles portadores de
suas memórias. Cumpre ressaltar que Redmann resiste em admitir que tais alterações fossem
fruto de intencionalidades relacionadas às agendas teológicas das lideranças das comunidades
protocristãs. Ela prefere operar dentro de uma concepção de que aqueles indivíduos
mantinham-se fieis a proposta original de Jesus de Nazaré.
Debalde suas reservas quanto a isso, o modelo que ela propõe agrada e merece análise,
discussão e aprofundamento. Para todos os efeitos, ela confere dinamismo ao processo de
expansão das ideias de Jesus refletindo sobre as experiências, quer individuais, quer coletivas,
de seus continuadores.
A fértil sugestão de Redman ecoa – mas bem distanciadamente, cabe frisar – a
abordagem defendida por Horsley em suas últimas obras. Nesse sentido, ele sublinha que “um
personagem histórico só é significativo historicamente à medida que interagiu e entrou em
ressonância com outras pessoas de forma decisiva numa situação histórica específica” (2004,
p. 64-65).
Implica dizer, Horsley sustenta ser imprescindível entabular uma aproximação com a
sociolinguística e com estudos sobre performances orais. Com efeito, ele comenta (2004, p.
71):

Uma performance envolve uma audiência que dela participa e com ela
contribui mediante sua interação com o performer (emissor). O emissor
recita um texto, a performance acontece num contexto (lugar, grupo,
ocasião, circunstâncias históricas) e a recitação do ‘texto’ ressoa com/nos
ouvintes refereciando a tradição em que eles (e o performer) estão inseridos.

Entretanto, depreende-se da proposta de análise dos evangelhos por Horsley que as


performances orais dos evangelhos, por mais que ocorressem em mais de um lugar, eram
praticamente atos comunicativos repetitivos. Como não é o seu objetivo, Horsley não entra
em detalhamentos sobre a questão.
Redman, porém, incluiu, em sua comunicação, essa possibilidade. Com efeito, ela supõe
que as histórias narradas por Jesus de Nazaré chamavam a atenção, atraíam pessoas e eram
248

recontadas continuamente em seguida à sua partida. Acerca dessa situação imaginada,


Redman sumarizou como segue:

Parábola Parábola
versão 1 versão 3

Parábola
versão 2
Audiência 1
Audiência 2
Parábola
versão 4

Jesus conta
uma parábola

Redman recomenda observar que a Audiência 2 é maior do que a Audiência 1 e essa


condição pode resultar em mais de uma versão da parábola sendo posta em circulação.
Cumpre salientar que, nesse cenário imaginado, a versão mais comum da parábola não
implicaria numa maior probabilidade de vir a ser considerada a mais original.
Convém, a propósito, tecer breves comentários em torno do que poderia ser chamada a
versão “original” da parábola. Com efeito, não incorre em equívoco postular que a versão
“original” é a que foi contada por Jesus à sua primeira audiência. Por conseguinte, uma
audiência subsequente em outro local não perceberia que a versão da parábola a qual estaria
ouvindo não se tratava da versão “original”. Para essa audiência, portanto, essa versão seria “a
original”.
Kelber é preciso ao referir-se a Jesus de Nazaré como “um orador de ditos aforísticos e
histórias parabólicas” (1994, p. 147). Assim, ele continua, “o historiador moderno, persuadido
da natureza teológico-literária dos evangelhos e interessado em alcançar o cerne de sua
mensagem, é confrontado com a emissão de discursos” (1994, p. 147). Por conseguinte, é
mister acautelar-se de que discursos orais, em oposição à escrita, não deixam traços e marcas,
para verificação externa.
A verbalização do pensamento em forma de histórias e parábolas, explana Kelber,
destinava-se a afetar as mentes e as vivências dos ouvintes, porém “não deixava resíduos
249

externamente visíveis” (1994, p. 147). Em razão dessas considerações, não é mais possível
continuar operando, acerca de tópicos como transmissão das tradições de e sobre Jesus e a
autenticidade de seus ditos, sob o regime do paradigma literário.
Com efeito, à luz do que se vem aprendendo a respeito de culturas orais e retóricas,
parece ser a hora de rever muitos dos critérios empregados para atestar a autenticidade das
sentenças atribuídas a Jesus. Kelber qualifica como problemática a exclusão de todos os
exemplos de passagens relativas a Jesus de Nazaré que apresentem atestação única. Convém
se diga que Kelber, com essa afirmação de princípios, mira a metodologia da múltipla
atestação utilizada, em especial, por Meier e por Crossan.
Nesse sentido, Kelber duvida da validade das estratégias adotadas por Crossan no
sentido de obter, com relativa segurança, “os materiais mais plausivelmente originais” sobre
Jesus (CROSSAN, 1995, p. 17). A esse respeito, Crossan abertamente declara (1995, p. 17):

...nunca me baseei em nada que tenha apenas uma atestação independente.


Todos os jornalistas profissionais atuam por esse padrão, e os historiadores
críticos deveriam seguir esse bom exemplo. Uma única atestação pode
naturalmente ser exata, mas tento elaborar meu quadro para cima a partir do
mais múltiplo em direção ao único. (...) Esta é uma disciplina metodológica,
um processo que pode não garantir a verdade, mas pelo menos torna a
desonestidade mais difícil.

Reiterando o que ele já havia expressado em outro momento (1994, p. 32):

Um material encontrado em pelo menos duas fontes independentes do


primeiro estrato não pode ter sido inventado por nenhuma delas. Já outro
material do mesmo estrato que seja encontrado num único testemunho pode
ter sido criado pela própria fonte. A repetição de testemunhos dentro do
primeiro estrato traz a tradição o mais perto possível do seu ponto de origem,
pelo menos em termos de uma objetividade formal.

Kelber põe em destaque a decisão de Crossan de buscar reconstituir a vida de Jesus, um


camponês judeu do Mediterrâneo, pondo de lado o que possuir “apenas uma atestação
independente”. Entretanto, ele retoma considerações de Crossan a fim de propor uma inflexão
substantiva em sua metodologia. Com efeito, Crossan esclarece que seu método tem, como
primeiro estágio, a elaboração de um inventário que, em outras palavras, constitui-se de “uma
listagem completa de todas as grandes fontes e textos, intra ou extracanônicos, que serão
utilizados” (1994, p. 30-31). Em torno desse inventário, Crossan informa (1994, p. 472):
250

Há 522 itens no total. Destes, 180 possuem mais de um testemunho


independente: 33 apresentam testemunhos múltiplos; 42, triplo; e 105, duplo.
Há 342 com apenas um testemunho. Em suma, apenas cerca de um terço
apresenta mais de um testemunho.

Kelber então faz a seguinte indagação: “Como pode alguém fazer alegações sobre a
vida histórica de Jesus cuja reconstrução exclui atestações singulares de ditos se, conforme a
contagem de Crossan, dois terços do complexo tem uma única atestação?” (1994, p. 147).
Indiretamente, Kelber pondera que a “biografia revolucionária” de Jesus, escrita por Crossan,
ressente-se de certa incompletude.
Assim, do ponto de vista da experiência concreta dos continuadores da mensagem de
Jesus, é razoável pensar que, em pouquíssimo tempo, várias e diferentes versões de um Dito
ou de uma narrativa de milagres estivessem sendo transportadas oralmente.
Corolário dessa proposição, as variantes textuais observadas entre Tomé e os Sinóticos
podem muito bem ser provenientes do próprio Jesus e/ou das memórias dos indivíduos que
transmitiam os Ditos em sua forma oral.
Atentando para as diferenças apontadas por Scott, o que é mais plausível afirmar em
torno delas? Não há como descartar a possibilidade de Jesus de Nazaré tê-la usado em
situações distintas, negando-se, dessa forma, o postulado de Jeremias. E, se a parábola foi
repetida mais de uma vez, pode-se aventar que era ajustada a necessidade de cada um dos
momentos. Igualmente, não há problema em atribuir as variantes às armadilhas da memória
por parte dos transmissores da mensagem de Jesus sem Jesus. Ou, se assim se preferir,
justificá-las com base na intervenção escribal posterior.

3.6. CONCLUSÃO

Não resta dúvida que Tomé impactou o campo de estudos sobre os cristianismos
primitivos. Para além do fato de poder representar uma vertente alternativa do movimento
originado com Jesus de Nazaré, as notáveis semelhanças textuais entre esse documento e os
evangelhos “oficiais” suscitaram acirrados debates em torno de que tipo de relação literária
poderia haver entre os textos e, mais que isso, entre as comunidades de crenças.
No entanto, influenciados pelo paradigma literário, os estudiosos buscaram
satisfatoriamente responder se Tomé era dependente ou independente dos Sinóticos traçando
linhas, montando tabelas, comparando palavras e expressões literárias. Como resultado,
identificaram Ditos e passagens que podiam ser consideradas evidências de dependência e,
251

reversamente, de independência. Implica dizer, o impasse entre especialistas, em que cada


lado do debate mostra-se convicto de suas razões, vem sendo a tônica desde então.
O trabalho de pioneiro de Werner Kelber, porém, trouxe renovadas possibilidades e
perspectivas para a discussão do que aqui estamos denominando de “novo” Problema
Sinótico. Com efeito, muito embora não esteja preocupado com Tomé em suas pesquisas,
Kelber, ao dialogar com os estudos sobre oralidade na Antiguidade, deslindou o que “estava
lá”, mas que permanecia oculto aos olhos dos especialistas.
Os indivíduos que aderiram às propostas de Jesus, caminhando ao seu lado e que,
posteriormente, assumiram o compromisso de dar continuidade ao seu projeto, deslocando-se
pelo mundo conhecido, ou mesmo ficando estabelecidos em suas comunidades locais,
utilizavam predominantemente a comunicação oral.
Nesse sentido, a disseminação das Boas Novas iniciou-se pela via da transmissão oral,
em eventos comunicativos – seja no interior de uma sinagoga, seja nos portões das cidades,
seja na mesa de refeições comunitárias – nos quais a interação entre pregador e ouvintes devia
ser intensa.
A documentação evangélica canônica sugere, inclusive, que esses propagadores das
memórias de Jesus, estavam imbuídos da fé de que, em todos esses momentos, não estariam
abandonados, mas secundados pelo Espírito quando assim se fizesse necessário.
Mesmo com o aparecimento dos primeiros escritos, pode-se supor, com relativa
segurança, que a voz manteve sua aura de importância e validade. Importa, contudo, deixar
marcado que a difusão do “evangelho” manteve-se dependente de missionários que
deambulavam de um canto a outro do mundo romano.
Por mais que um desses anônimos pregadores tivesse uma e apenas uma história para
contar, não é implausível pensar que a recepção de sua audiência exercesse forte influência
em sua performance. Nesse sentido, como ocorre ainda hoje, pode-se especular que mais de
uma versão das tradições de e sobre Jesus foram contadas e recontadas no decorrer do
processo de espalhar o que mais tarde receberia o nome de cristianismo.
Se essa hipótese estiver certa, as variantes textuais, com exceção das que
comprovadamente resultam de erros – intencionais ou não – de copistas, podem ser reflexos
das muitas e muitas vezes que a mesma mensagem era proferida e adaptada aos novos
contextos comunicativos. Assim, o material literário existente apresenta, por exemplo, um
caso em que, numa discussão entabulada entre Jesus e seus contumazes opositores, um texto
menciona “escribas e fariseus” e o outro, “fariseus e escribas”. A inversão pode ser atribuída a
um dos copistas? Pode, com certeza.
252

Entretanto, à luz dos estudos sobre oralidade e das peculiaridades da memória, acrescida
da noção de que a mensagem de Jesus foi espalhada em diferentes locais, em diferentes
momentos, para diferentes pessoas e por diferentes pessoas, pode-se aventar,
alternativamente, que esse caso e muitos outros refletem os contextos específicos em que as
histórias de e sobre Jesus foram expostas.
Corolário dessas considerações, a noção de que uma “versão original” das falas de Jesus
pode ser obtida cai por terra. Por conseguinte, o Jesus de fala aramaica que circulou pelas
aldeias e vilas do Antigo Israel, como postula Chevitarese, encontra-se irremediavelmente
perdido para a pesquisa acadêmica. Sobre ele, em verdade, temos somente sua sombra.
Nesse sentido, todas as versões são legítimas e, em certa medida, autênticas. Todas,
portanto, embora não remontem a Jesus, são expressões de um movimento vivo e vibrante que
perdeu parte de seu vigor criativo quando as cópias escritas congelaram as pregações em
forma de letras. A criatividade restou sobre a posteridade que imagina um cenário no qual
Jesus de Nazaré fez uma exortação em um determinado fim de tarde e não mais voltou a
empregá-la novamente. Antes, se o fez, foi com as mesmas e idênticas palavras, qualquer que
fosse a recepção de seu público. Logo se vê, uma imaginação descolada das condições
objetivas e subjetivas em que aquele camponês judeu do Mediterrâneo pretendeu fazer uma
revolução.
Conclusão
254

O movimento de Jesus sem Jesus dependeu, em larga escala, de seguidores que fossem
arrojados o bastante para expor sua proposta perante as mais diferentes audiências. Que
atravessaram territórios e mares, imbuídos de fé e boa vontade, para disseminar a promessa do
Reino de Deus.
O sucesso de suas empreitadas, porém, relacionava-se ao poder de convencimento que
suas pregações carregavam. Nesse sentido, mesmo que rústicos e deseducados, os andarilhos
que propagaram as palavras de Jesus de Nazaré devem ter tido tirocínio para adaptarem-se aos
mais diferentes contextos em que se viram inseridos.
Não é implausível supor, por sua vez, que elementos das camadas mais abastadas
possam ter se empolgado com aspectos dessas pregações e tomaram para si a mesma
incumbência de dar prosseguimento ao projeto de Jesus de Nazaré.
Nesse sentido, pode-se evocar a figura de Paulo, o autodeclarado Apóstolo dos Gentios,
que procedia de uma esfera social distinta da que se supõe pertenciam os discípulos de Jesus.
Seguindo por essa linha de raciocínio, a análise de suas cartas permite identificar sujeitos
ocupantes de altos cargos administrativos das cidades romanas que foram atraídos pela
mensagem evangélica.
Não obstante, a pesquisa acadêmica acerca dos cristianismos invariavelmente
desconsiderou essas possibilidades. Com efeito, os muitos métodos de pesquisa sempre
tomaram por referência os textos que sobreviveram ao castigo do tempo e que foram tidos
como relevantes o bastante para serem copiados e transmitidos.
E isso não é um demérito. Afinal de contas, as palavras emitidas por cada um dos
missionários da Boa Nova perderam-se para sempre. Evanesceram logo assim que foram
pronunciadas. Sem os textos, nada teria sobrado. Sem os textos, nada saberíamos. Contudo,
debalde os textos, a tradição oral prosseguiu em paralelo.
255

Abstraindo, temporariamente, as condições reais sob as quais a transmissão das


tradições de e sobre Jesus se deu, o Problema Sinótico, após uma intricada combinação de
dados e versos, encontra sua solução, consensual, mas não unânime, na aceitação de que
Marcos foi o primeiro evangelho canônico escrito.
Em decorrência da assim chamada Primazia Marcana, admite-se que Mateus e Lucas
possuíam, de forma independente, uma cópia manuscrita desse documento e, tomando-o
como fonte, redigiram seus evangelhos, agregando, por sua vez, algumas tradições especiais
que, assim se acredita, foram inventadas em suas próprias comunidades.
Todavia, a pesquisa acadêmica encontrou uma quantidade impressionante de Ditos de
Jesus comuns a Mateus e a Lucas que não apareciam em Marcos. Como resultado disso,
inferiu-se que, seguindo a lógica que perpassou a escrita desses dois documentos canônicos,
os autores desses dois evangelhos deveriam ter também uma cópia manuscrita de outro
Evangelho que não o de Marcos.
Não obstante a resistência de alguns historiadores e biblistas, a Hipótese das Duas
Fontes é, ainda, a resposta que menos contratempos apresenta se comparada às outras
sugestões ofertadas ao longo do tempo.
O primeiro capítulo desta Tese pretendeu, talvez exaustivamente, fazer um apanhado
considerável sobre a história da busca de uma resolução plausível para o assim chamado
Problema Sinótico. O leitor teve acesso às muitas variáveis envolvidas no equacionamento
dessa intrigante e aparentemente simples questão.
Cumpre registrar que, ao longo dessa trajetória acadêmica que dá mais um passo na
produção dessa Tese, a exposição e a explanação do Problema Sinótico em congressos,
colóquios, simpósios e ciclos de debates, receberam apaixonadas, acerbas e, de certa maneira,
irrefletidas críticas ao que a hipótese mais aceita implicava.
Com efeito, o público ouvinte, debalde a circunstância de as apresentações haverem se
restringido a espaços universitários, em tempo algum recebeu com bons ouvidos as
declarações de que o evangelho de Mateus NÃO foi escrito por Mateus, o coletor de
impostos, e que esse mesmo autor COPIOU do evangelho de Marcos e de outro evangelho
cuja existência é hipotética.
Da mesma forma, a resistência sempre foi digna de menção quando era postulado que o
evangelho de Lucas NÃO foi escrito por Lucas, o médico que acompanhou Paulo, o
autodeclarado Apóstolo dos Gentios, e que seu texto não resultou, como assinala seu prólogo,
do recolhimento do testemunho dos que estiveram ao lado de Jesus de Nazaré desde o
princípio. Mais que isso, mentes destreinadas quanto aos procedimentos metodológicos
256

vigentes e aperfeiçoados desde a segunda metade do século XIX igualmente externaram toda
a sua insatisfação ao tomar conhecimento que Lucas COPIOU de dois evangelhos anteriores
ao seu.
Em geral, ao descrever os evangelistas como sujeitos que copiaram de outro evangelho
isso tinha o poder de suscitar, automaticamente, a noção de plágio. Nesse sentido, os autores
dos evangelhos que foram canonizados perdiam a aura de santidade e, mais que isso, os
próprios textos bíblicos adentravam numa área cinzenta de desconfiança.
A inerrância bíblica era posta em xeque. Não obstante o imenso respeito aos que
albergam, mesmo sendo estudantes e professores de História, a convicção de que os
evangelhos canônicos foram escritos por quem se afirma foram os seus autores e que foram
movidos por inspiração divina, as evidências abundam no sentido de reiterar a afirmação de
que as tradições cristãs são fruto de construções históricas e resultantes de interesses
religiosos e sectários.
Na parte final desse capítulo, por sua vez, um estudo empírico foi adicionado em razão
de poder fortalecer a noção de que a percepção literária, predominante nos estudos bíblicos,
em geral, e neotestamentários, em particular, conduz o olhar do pesquisador para onde não
deveria ser conduzido.
Ou seja, encarar os textos como produtos de sujeitos letrados – isso não se pode recusar
– voltados para amplas audiências igual e totalmente letradas – isso, porém, não é admissível
– e, por conseguinte, tratá-los da mesma forma como os estudos literários perscrutam
romances, textos jornalísticos, ensaios filosóficos e assim por diante.
Assim, pode-se considerar um avanço historiográfico a contribuição do experimento
descrito no Capítulo 1 que não despreza o papel preponderante da memória na retenção e
disseminação de textos lidos e/ou ouvidos. Até que se demonstre o contrário, essas parecem
ter sido as condições em que os sujeitos espalharam a mensagem e o projeto revolucionário de
Jesus, o carpinteiro de Nazaré.
Com efeito, consultando a documentação canônica encontram-se perícopes paralelas
que, pela quantidade de palavras e forma com que estão dispostas, indicam alta probabilidade
de serem cópias textuais. Ou “plágios”, como reagem determinados públicos. Há, por sua vez,
perícopes paralelas em que, pelas mesmas razões acima, indicam alta probabilidade de serem
registros orais de memória.
Esses dados permitem ilações relevantes para uma ruptura paradigmática nos estudos
neotestamentários. É de se lamentar, porém, a pouca atenção que a pesquisa levada a efeito
despertou nos círculos bíblicos acadêmicos, conservadores por natureza.
257

Esse cenário, nem sempre amistoso, foi agitado, porém, quando Tomé emergiu de uma
biblioteca no deserto egípcio e mostrou que a trajetória do cristianismo, consoante a tradição,
fora muito diferente do que sempre se aventou. Mais que isso, Tomé jogou por terra a noção
albergada de que houve um cristianismo único e singular. Paulatinamente, os círculos
acadêmicos vão se convencendo de que sendo toda experiência religiosa, plural, há de ser
plural a experiência religiosa que se convencionou chamar cristã. Por conseguinte, não mais
cristianismo, mas “cristianismos”.
Nesse sentido, adotando essa terminologia, cai por terra a distinção, carregada de
prejulgamentos, entre doutrinas e livros ortodoxos e heréticos, canônicos e apócrifos. O
Capítulo 2 esforçou-se para mostrar que esses termos originaram-se como reflexos de
disputas pela posse da verdade. Disputas essas que implicaram na construção de discursos de
verdade que redundaram na desqualificação do outro e na construção de fronteiras
excludentes.
Surpreende, até certo ponto, que pesquisadores não hajam se dado conta disso e tenham
reproduzido o mesmo olhar acerca de tantas outras expressões de fé em Jesus que não foram
admitidas como canônicas. Fecharam seus ouvidos para a polissemia de discursos que existiu
desde o começo.
Nesse sentido, mostrou-se necessário tirar Tomé do olvido com que a erudição bíblica e
neotestamentária o relegou, desmistificá-lo da forma como correntes esotéricas o vestiram, e
tratá-lo como um documento tão autêntico e valioso como os evangelhos que se decidiu
investir da condição de texto canônico.
Assim o fazendo, deparou-se com a imperiosa necessidade de definir, o mais
precisamente possível, o sentido de “evangelho”. Com efeito, foi estabelecida uma concepção
acerca do que seria e do que não seria um evangelho e, por conseguinte, aferir se Tomé se
enquadraria no modelo. Ao fim e ao cabo, inferiu-se que esse documento descoberto nas
areias do Egito merece ser entendido como tendo vida própria, independente, sendo
conveniente não amarrá-lo nas linhas que interligam Marcos, Mateus, Lucas e João.
Com efeito, para mais bem ser apreciado e tratado como mais uma voz do passado, por
tanto tempo silenciada, sobre a passagem de Jesus de Nazaré entre os homens, Tomé requer
um tratamento diferenciado. Mais que isso, ele sinaliza para a possibilidade real de não haver
uma forma padrão única de se registrar as palavras do primeiro filho de Maria.
A inserção de Tomé no quadro de testemunhos escritos acerca da mensagem
revolucionária de Jesus de Nazaré implicou, portanto, abordá-lo como um texto que poderia
conter tradições verdadeiramente autênticas. Em outras palavras, nada impediria que, dentre
258

os 114 Ditos que o compõe, houvesse, ao menos um, que tivesse sido proferido por Jesus.
Dentre esses, os candidatos mais prováveis estariam entre aqueles que guardassem estreita
semelhança com os Ditos encontrados nos evangelhos sinóticos.
Todavia, essa busca foi, em certa medida, obstaculizada em razão de ter prevalecido a
percepção de que Tomé era dependente daqueles evangelhos. Implica dizer, seu autor putativo
não teve, em hipótese alguma, contato com Jesus. Ou com discípulos de Jesus. Ou com
discípulos de discípulos. Ele fora, simplesmente, um copiador de textos e, ao mesmo tempo,
um editor que agiu com liberdade na hora de dispor as sentenças que coletou de Marcos,
Mateus, Lucas, João e tradições especiais de Mateus e de Lucas.
No entanto, os argumentos a favor da dependência literária de Tomé sobre os
evangelhos sinóticos foram definidos pela análise comparada de textos. Assim, quando eram
encontradas semelhanças textuais, Tomé teria copiado de suas fontes corretamente. Quando as
discrepâncias surgiam, Tomé teria intervido e modificado os textos que tinha diante de si.
Essas proposições, contudo, desprezaram as contribuições advindas dos estudos sobre
oralidade e sobre memória aplicados a história dos cristianismos. Com toda cautela possível
para não incorrer em exagero, dir-se-ia que foi deixada de lado, nos termos de E. P.
Thompson, a experiência concreta dos sujeitos que deram suas vidas pela causa do carpinteiro
de Nazaré.
Com efeito, a transmissão das tradições de e sobre Jesus não se deu sem interferências.
Não pode ter se dado sem alterações, para mais ou para menos, naquilo que ele disse e no que
fez. Não consta, por sinal, qualquer sugestão dada por Jesus para que seus seguidores
registrassem por escrito aquilo que eles testemunhavam. Pelo contrário, ele solicitava que eles
preservassem na memória.
De qualquer maneira, de Jesus até os evangelhos – canônicos e não canônicos – formou-
se uma cadeia de transmissão. Mesmo que tudo ou quase tudo tenha partido de testemunhas
oculares, isso, por si só, não é garantia de precisão no que é compartilhado verbalmente. Em
que medida mulheres e homens, se vistos pelo viés do gênero, são mais acurados na retenção
de palavras e de imagens? Em que medida a idade exerce alguma interferência nesse
processo? E, além desses aspectos, em que medida a resistência das audiências impactava a
maneira como as lembranças de Jesus eram transmitidas?
Quem pode dizer que esses e outros fatores não entraram em ação no decorrer da
disseminação da proposta de Jesus por seus seguidores? O capítulo 3 teve a intenção de
levantar e discutir essas indagações.
259

Por conseguinte, contando com os percalços da memória e da atividade comunicativa


que caracterizaram a expansão das ideias de Jesus, não há como insistir que existiu uma única
e verdadeira versão dos Ditos de Jesus. Ou antes, que uma parábola qualquer, tal como
redigida em Mateus, por exemplo, conserva palavras mais autênticas do que as que se leem no
evangelho de Lucas. Ou que um episódio de cura, tal como registrado em Marcos, por
exemplo, está mais de acordo com a realidade histórica do que a versão desse mesmo episódio
que se pode ler em João.
No nosso ponto de vista, a hipótese das múltiplas versões de uma mesma sentença de
Jesus de Nazaré, antes de instalar o caos, enriquece o cenário no qual foram transmitidas suas
falas e seus feitos. Assinala a necessidade de atualização permanente e correções pontuais do
que era entregue aos mais diferentes públicos. Revela, ao mesmo tempo, a adaptabilidade
daqueles portadores da Boa Nova.
Implica dizer, faz emergir um processo de disseminação mais dinâmico e menos
estático da proposta revolucionária de Jesus. Ora, se um missionário que se identificou com o
cristianismo tomesino reelaborou uma parábola no intuito de ser mais efetivo na missão a que
se confiou, isso é uma evidência de que aqueles sujeitos, qualquer que fosse seu cabedal
cultural, estavam atentos ao público para o qual se dirigiam.
A nosso ver, portanto, é a experiência plural que Jesus representa externando-se e sendo
materializada nos textos. De certa maneira, a comparação textual não ensejou descobrir “a”
versão original de uma ou outra sentença do filho de José. Ela, de fato, existiu. Todavia,
encontra-se irremediavelmente perdida.
Num certo sentido, deixa de ser relevante encontrar a ipsissima verba Jesu. Assim,
Mateus anota em seu evangelho (8:5-7):

Ao entrar em Cafarnaum, chegou-se a ele um centurião que o implorava e


dizia: “Senhor, meu criado está deitado em casa paralítico, sofrendo dores
atrozes”. Jesus lhe disse: “Eu irei curá-lo”.

E o Quarto Evangelho narra (4:46b-47):

Havia um funcionário real, cujo filho se achava doente em Cafarnaum.


Ouvindo dizer que Jesus viera da Judeia para a Galileia, foi procurá-lo, e
pedia-lhe que descesse e curasse seu filho, que estava à morte.

Para muitos pesquisadores, operando sob o paradigma literário e conforme a noção da


anterioridade de Mateus em relação ao Quarto Evangelho, o autor de João deve ter, por
260

questões de preferências pessoais, alterado a versão sinótica e substituído “centurião” por


“funcionário real” e “servo” por “filho”. Ora, admitir isso é vaticinar que a ordem cronológica
dos textos atesta maior ou menor grau de autenticidade.
Implica dizer que o episódio da alegada cura à distância foi narrado uma vez e, dali por
diante, sempre da mesma forma até ser grafado pelo autor de Mateus. Por conseguinte,
quando João redigiu seu evangelho achou por bem alterar essa versão construindo a sua
própria com as alterações assinaladas.
Advoga-se aqui, porém, que a tradição tinha vida, era dinâmica, maleável, contingente.
Os portadores da palavra não se sentiam constrangidos em dar sua contribuição ao que se
transmitia. Sagazes, captavam a ambiência na qual se movimentavam e atuavam da forma que
mais bem pudessem ser entendidos. Por outro lado, tudo indica que hierarquias ainda não
estavam estabelecidas, nem um corpo de censores instituído para tolher o que fosse
considerado desviante e pernicioso.
Sendo assim, as duas narrativas discrepantes sobre o nascimento e infância de Jesus de
Nazaré e mais as que estão registradas em outros documentos “apócrifos” acerca dos eventos
sobrenaturais que o cercam atestam, a mancheias, a polissemia de discursos sobre o
curandeiro da Galileia. Ainda nesse bojo de histórias contadas de diferentes maneiras,
ressaltando a variedade peculiar às sociedades de comunicação marcadamente oral, basta
recordar as duas narrativas do dilúvio bíblico e as duas descrições da criação do primeiro
casal humano.
Por tudo o que está sendo afirmado até aqui, pode-se aventar a suposição de que os
estudos sobre oralidade e performance solapam, de uma vez por todas, a busca do Jesus
histórico. Afinal de contas, se tudo o que os evangelhos, canônicos e não canônicos, atribuem
a Jesus de Nazaré e, debalde isso, mostram sinais de divergências não precisa ser,
necessariamente, descartado, para quê prosseguir com o escrutínio da documentação?
Muito longe dos objetivos dessa Tese postular conclusivamente tal noção. Seria voltar
ao tempo em que o teólogo alemão Rudolf Bultmann quase decretou o fim da busca
acadêmica pelo Jesus histórico, alegando que os textos do assim chamado Novo Testamento
não continham história, mas mitologia e que seus autores não tiveram a mínima preocupação
em descrever fatos.
Se se admite, como judiciosamente pondera Chevitarese, que a respeito de Jesus de
Nazaré conhecemos apenas a sombra por ele deixada, o que essa Tese pretendeu mostrar foi
que um Jesus plural – outra expressão cunhada por Chevitarese – só poderia engendrar um
cristianismo plural. Nesse sentido, muitas memórias emergiram ao longo do processo de
261

afirmação da proposta revolucionária de Jesus de Nazaré (se a revolução de sua mensagem foi
abrandada, domesticada e abafada é tema para outra Tese) e algumas delas tomaram corpo
nos diferentes evangelhos legados pelos seguidores do carpinteiro judeu.
Sendo natural, assim o cremos e o afirmamos, que as sentenças de Jesus se
multiplicassem e assumissem tonalidades distintas no decorrer desse processo, acentuando,
assim, a experiência dos sujeitos que a história denominaria de missionários cristãos. Em
certa medida, essa Tese, que desdobra as ilações da Dissertação de Mestrado, confirma as
conclusões ali obtidas mesmo com a inclusão de mais um evangelho.
Ou seja, não há como pensar a história social dos cristianismos primitivos sem que se
leve em conta seu aspecto interativo e comunal. Mais que isso, sem considerar que o coletivo
sobrepujava o individual. Assim, quais os nomes dos missionários que deambularam pela
bacia mediterrânica e além dela enfrentando as intempéries de sua empreitada?
Com exceção de um ou outro, nunca saberemos. Não ficaram famosos por sua retórica
cativante, não ganharam notoriedade por suas performances públicas acaloradas.
Possivelmente por que era esse o caráter essencial do movimento inaugurado por Jesus de
Nazaré. Um reino de iguais, não hierarquizado, no qual todos seriam um só e apenas um.
Proposta que se reforçava nas reuniões coletivas de congraçamento e solidificação dos laços
familiares. E que o tempo fez com que se perdesse.
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ZUURMOND, R. (1998). Procurais o Jesus Histórico? São Paulo: Edições Loyola.

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