Método A Escuta Da Escuta Haydée Faimberg
Método A Escuta Da Escuta Haydée Faimberg
Método A Escuta Da Escuta Haydée Faimberg
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Haydée Faimberg1
Resumo: Com frequência, o material clínico é escutado a partir de um único pressuposto básico. Em
nossos grupos, procuramos não apenas escutar o apresentador e reconhecer os pressupostos básicos
com que escuta seu paciente, mas também reconhecer os nossos pressupostos básicos, aqueles com os
quais escutamos tal apresentação.
Usamos a função de “escuta da escuta”, originalmente proposta (Faimberg, 1981) para a escuta da ses-
são. Exploramos o impacto produzido pelos pressupostos básicos de cada participante (incluindo os do
apresentador), sobre a discussão em si.
Escutamos o hiato entre o que o participante acreditava dizer e como foi efetivamente escutado. Faz-se,
assim, possível explorar fontes de mal-entendido, bem como pressupostos básicos de cada um de nós.
Cocriar uma linguagem em comum aponta para o entendimento mútuo na discussão, respeitando a
alteridade de cada um. O projeto não consiste, portanto, em propor que, como analistas, trabalhemos
de maneira similar.
Palavras-chave: “a escuta da escuta”; “mal-entendido”; cocriação de uma linguagem; pressupostos teó-
ricos básicos; discussão clínica em grupo; alteridade.
Apresento, neste artigo, o método que fui criando e desenvolvendo (desde 2002) e
que é o fundamento do estilo de trabalho que caracteriza o “Fórum de Discussão Clínica”,
que se reúne durante a Conferência anual da Federação Europeia de Psicanálise (FEP).
A experiência que adquiri como codiretora (pelo lado francês), juntamente com
Anne-Marie Sandler (pela British Society), nos encontros clínicos anuais franco-britânicos
(desde 1993 até a atualidade), levaram-me a formular esta primeira pergunta-chave: A par-
tir de quais pressupostos teóricos escutamos, compreendemos e avaliamos o trabalho clínico
de um colega?
Esta pergunta metodológica ajuda a compreender o estilo de trabalho que proponho
e seu fundamento.
A resposta que me dei é que, com uma frequência muito maior do que imaginamos,
pensamos os materiais clínicos que escutamos a partir de uma teoria única, reconhecida
por nós ou não. Assim, julgamos se o colega trabalha ou não de acordo com essa nossa teo-
ria, sem perguntarmo-nos se o trabalho apresentado está baseado em pressupostos teóricos di-
ferentes, frequentemente desconhecidos para nós e que, às vezes, ignoramos desconhecer.
Dentro desta perspectiva, cheguei à conclusão de que, para poder avaliar um traba-
lho psicanalítico, faz-se necessário cumprir um requisito prévio: superar a opção entre “é
bom (porque trabalha como eu)/é ruim (tendo como único critério o de o analista trabalhar
diferentemente de mim)”. Na prática, não é possível superar de forma radical esta condição.
Faz-se necessário reconhecer, na escuta de cada apresentação clínica, em qual momento
este tipo de dilema2 oferece um obstáculo para a aceitação de diferenças. Isto não significa
que automaticamente aceitemos todas as diferenças em nome de um princípio: trata-se de
um princípio necessário, mas não suficiente.
O conceito de “alteridade”3 toma aqui toda sua importância.
Outra experiência que me levou a trabalhar nesta direção foi a de escutar a dis-
cussão de colegas de uma cultura psicanalítica comum, diferente da minha. Por exemplo,
a experiência de assistir ao “Encontro de West Point”, no qual o International Journal of
Psychoanalysis celebrou seu 75o Aniversário, neste caso considerando um caso dos Estados
Unidos.
Participei de um grupo no qual dialogaram as mentes mais finas e representativas da
cultura norte-americana. Eu não havia lido os trabalhos daqueles analistas que dialogavam
em muito alto nível, e, por outra parte, desconhecia muitos dos trabalhos estadunidenses
que, de forma implícita e por vezes explícita, contextualizavam a discussão. Ficou evidente,
para mim, que para poder participar a partir de uma cultura ou tradição psicanalítica, di-
ferente da que estava em jogo naquela circunstância, era-me necessário primeiro entender
profundamente o contexto da própria discussão. Em outros termos, esta discussão intracul-
tural pareceu-me ser o passo anterior a uma discussão intercultural, na qual fizesse sentido
minha participação no diálogo.
Daí surgiu certo projeto de se começar a organizar uma conferência, pelo marco
da Associação Psicanalítica Internacional, a qual foi chamada de “Diálogo intracultural e
intercultural”. Ocorreu em Paris, em julho de 1998.4
A partir destas duas experiências, a proposta de David Tuckett (então Presidente
da FEP), de que eu fosse chair de um primeiro (e então único) “Working Party on Clinical
Issues”/“Grupo de Trabalho sobre Questões Clínicas”, encontrou em mim uma recepção
entusiasta. É um grande privilégio poder pensar na melhor maneira de se difundir o di-
álogo entre as diferentes culturas que compõem a FEP, neste caso com base no estudo de
material clínico.
A primeira reunião do Grupo de Trabalho ocorreu em Praga, em 2001, e contou
com a participação de 120 colegas, distribuídos em 10 grupos. Cada grupo era composto
de um moderador e um relator. Durante dois dias inteiros discutiu-se o material clínico
apresentado por um colega. Um código ético que propusemos protegia, como necessário, a
confidencialidade profissional. Desde então, este tipo de atividade foi sendo desenvolvida
com entusiasmo.
O “Grupo de Trabalho sobre Questões Clínicas” teve como meta inicial estudar em
detalhe o trabalho analítico, tal como efetuado por analistas experientes. Propôs-se a re-
gra de buscar suspender a posição de supervisionar o colega que apresentava o trabalho,
e focalizar o interesse em compreender sua forma de trabalhar, efetiva em sua diferença,
respeitando-a como tal. Este objetivo, a meu ver, tem sido essencial.
2 Esta opção tem um fundamento metapsicológico (conceitualizado como “dilema narcísico”), que desenvolvo
desde o ponto de vista clínico nos capítulos 2 e 5 (6 na edição castelhana) (Faimberg, 2005-2007).
3 Tema que, tão oportunamente, propõe o Congresso da Fepal (Bogotá, 2010).
4 Depois de consultar os analistas participantes sobre qual era a cultura que poderíamos escolher, preferiram
a cultura francesa. Um traço bem definido dessa cultura pareceu impor-se: a temporalidade em psicanálise.
Enviamos os textos dos autores franceses que iríamos discutir (mas não ler publicamente) com um ano de
antecipação para que os participantes pudessem estudar em seus grupos de referência como cada autor francês
escolhido considerava a temporalidade. Depois de uma discussão intracultural, continuava uma discussão
intercultural numa plenária que se prolongava em numerosos pequenos grupos.
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A partir desta regra de base foram se perfilando duas tendências, já desde a organi-
zação da primeira reunião. Sempre em ambas as tendências, respeitou-se a recomendação
inicial.
Uma tendência foi alentada por David Tuckett, e tinha como objetivo formalizar o
que poderíamos chamar de tipologia das diferenças técnicas encontradas no trabalho efe-
tivo de diferentes analistas. Na seguinte Conferência da FEP (em Sorrento) esta tendência
funcionou como Strand 1 (modo 1), sempre no seio do Grupo de Trabalho, do qual conti-
nuei a ser chair. Tal Strand 1 foi dirigido por David Tuckett, que desejava desenvolver desde
o princípio uma grade (grid) para estudar o material das sessões apresentadas nos dez gru-
pos cuja estrutura (de moderadores e relatores) já havia sido previamente organizada.
A outra tendência (Strand 2), mais afinada com minha maneira de trabalhar nos
grupos de discussão (ou seja, também baseada no trabalho efetivo de diferentes analistas),
constituiu a base do método que apresento neste artigo.
Fiquei encarregada do Strand 2, com novos grupos formados por participantes que
se mostraram interessados em pôr à prova a orientação que ia se perfilando, sem recorrer
a uma grade (grid) que sistematizasse desde o começo de nossa pesquisa a leitura do ma-
terial.
Para introduzir o método, basta dizer, por ora, que naquele momento, no Strand 2,
começou-se a trabalhar no sentido de afinar nossa escuta analítica, tendo-se como objetivo
central:
Mais tarde, tive o privilégio de contar com um novo espaço para prosseguir a expe-
riência iniciada no primeiro Grupo de Trabalho, por convite de Evelyne Séchaud, em sua
Presidência da FEP, convite esse que foi renovado na atual Presidência de Peter Wegner.
Constituiu-se o que naquele momento se chamou de “Forum on Clinical Issues”
(Fórum sobre Questões Clínicas), do qual sou chair desde então. Atualmente tende-se a
designá-lo agregando o nome do método: “escuta da escuta”. Faz parte dos Grupos de Tra-
balho que foram se formando desde então e que começam a trabalhar em outras áreas
geográficas.5
Com o nome de Fórum de Discussão Clínica, e pelo método de “escuta da escuta”, de
Haydée Faimberg, funcionaram pela primeira vez em Bogotá (em setembro de 2010), num
Congresso da FEPAL, dois grupos coordenados por Cláudio Laks Eizirik e Sérgio Lewkovicz,
5 Experientes analistas da América do Norte e do Sul participaram da Conferência Anual da Federação, somando-
se assim aos colegas da Europa, Israel e Austrália (ou seja, das sociedades que compõem a Federação Europeia).
Graças à sua participação nos diferentes Grupos de Trabalho, puderam penetrar os diferentes métodos de
discussão de material clínico, e, por sua vez, contribuíram para enriquecer o intercâmbio.
No que concerne o método de “escuta da escuta”, este teve um espaço entre os Grupos de Trabalho da FEP que se
estavam dando a conhecer fora do âmbito europeu: no Congresso da IPA, Chicago, julho 2009; em Napsac, Nova
Iorque, janeiro de 2010; no Congresso da Fepal, setembro de 2010. Apresentamos, mesmo assim, este método
recentemente em Porto Alegre, em dezembro de 2009, pelo enquadre de CAPSA (iniciativa de Cláudio Eizirik
durante sua Presidência da IPA, destinada a propiciar o intercâmbio sobretudo clínico entre culturas). Durante
a visita à Argentina (à APA, APdeBA e SAP), efetuada também com os auspícios de CAPSA, além de oferecer
conferências e outras atividades clínicas, tive a oportunidade de apresentar o método, em novembro de 2006.
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6 Este subcapítulo está composto, na sua maioria, pelas respostas que proponho às perguntas formuladas por
Manuel Gálvez, com motivo da reedição de um artigo do qual sou autora (Faimberg, 2010).
7 Os artigos em que se baseia este estilo de abordagem da reflexão clínica são propostos como leitura para os
participantes. Estão publicados em inglês, castelhano, italiano e alemão: Em castelhano: capítulo 8 “Escuta de la
escuta y après-coup” (1993) e capítulo 9 “Malentendido y verdades psíquicas” (1995) (Faimberg, 2007). Para os
que consultam a edição original em inglês, são os capítulos 7 e 8 (Faimberg, 2005).
8 Para nossos desígnios, não diferenciamos aqui entre os diferentes modos de funcionamento psíquico
inconscientes.
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9 Por vezes o paciente escuta que o silêncio do analista lhe fala. Por exemplo, um paciente dedica boa parte da
sessão falando de uma conquista de que está orgulhoso. Para de falar e o analista permanece calado. Quando
volta a dizer algo, a seguir o longo silêncio, lembra-se das críticas do pai, que nunca estava de acordo com o que
o filho fazia. Podemos inferir que o paciente escutou o silêncio como uma crítica paterna.
10 Este subcapítulo está constituído em parte pela transcrição da carta que cada participante do grupo recebe
previamente, fazendo menção aos capítulos citados na bibliografia de leitura.
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Com esta finalidade, faz parte de nossos objetivos aprender a reconhecer não so-
mente os pressupostos básicos implícitos do apresentador, mas também nossos próprios
pressupostos a partir dos quais estamos escutando o apresentador e cada um dos demais
participantes.
Exploramos assim o impacto que os pressupostos teóricos de cada participante tem
sobre a discussão no grupo.
Para levar a cabo este tipo de diálogo, colocamos em jogo a função de “escuta da
escuta”, a que me referi no subcapítulo precedente e que, como vimos, inicialmente defini
somente para a escuta psicanalítica na sessão. Em outras palavras, escutamos como cada
intervenção na discussão do grupo é escutada pelos demais participantes.
A partir do hiato que existe entre o que o participante pensou que estava dizendo e
a maneira pela qual foi efetivamente escutado, começamos a cocriar uma linguagem. Por
meio do “escutar como cada participante escuta o outro”, podemos ir detectando o mal-
entendido que nos permitirá reconhecer os pressupostos básicos com que cada participante
escuta e intervém.
Deste modo, escutar o mal-entendido converte-se numa ferramenta privilegiada para
descobrir os diferentes pressupostos básicos que lhe dão origem e, assim, poder plenamente
escutar o apresentador, reconhecendo as diferenças e apreciando-as como tais.
É importante detectar dito inevitável mal-entendido e poder centrar nele o trabalho
de escuta, embora à custa de buscá-lo ativamente. Isto é assim porque em muitos casos o
mal-entendido fica tão latente quanto as hipóteses básicas que procuramos detectar.
Em cada encontro nos damos tempo (um dia e meio) para refletir sobre as maneiras
de compreender a articulação entre os modos de trabalhar do apresentador e os pressupos-
tos básicos subjacentes. A partir do que viemos dizendo, compreender-se-á a necessidade
dos participantes estarem presentes ao longo de toda a discussão.
“A escuta da escuta” é um dos métodos possíveis para cocriar uma linguagem co-
mum e centrar a reflexão no trabalho analítico detalhado apresentado por um colega.
O analista/apresentador na nossa modalidade de discussão, participa da discussão.
Pedimos-lhe que tolere a incerteza com que sua modalidade de trabalho e suas hipóteses
teóricas subjacentes vão sendo descobertas aos poucos. Podemos, assim, comparar como o
analista apresenta seu trabalho e como é escutado por cada um dos demais participantes.
O apresentador, por sua vez, também escuta como é escutado e participa na cocriação de
uma linguagem.
Ao deixar de lado uma posição de querer “defender” seu trabalho, por vezes ocorre
que seja o próprio analista/apresentador que vai descobrindo, junto com os outros par-
ticipantes, certas hipóteses de base que se desprendem do modo pelo qual seu estilo de
trabalho foi sendo compreendido.
O analista apresenta as sessões divididas em fragmentos.
No primeiro ano de experiência não cortávamos a sessão. Mas foi-me parecendo que
ter uma visão global da sessão favorecia certo tipo de confusão. Por exemplo, com frequên-
cia algum participante baseava sua opinião tirando conclusões do que o paciente dizia ao
final da sessão, sem levar em conta o fato de que, se o paciente podia pôr em palavras o que
acabava de dizer, era, entre outras coisas, precisamente porque o analista havia trabalhado
de seu modo. Quando fragmentamos a sessão, os participantes no grupo permanecem na
Método “a escuta da escuta” Haydée Faimberg 39
Recordemos, mais uma vez, as duas perguntas que elegemos para fundamentar o
estilo de nosso trabalho.
A partir de quais pressupostos teóricos escutamos, compreendemos e avaliamos o tra-
balho clínico de um colega?
Em caso de querermos sistematizar os resultados que o método de “escuta da escuta”
nos permite produzir, a partir de quais pressupostos teóricos estaria pensada esta sistemati-
zação?
11 Na realidade, minha ideia de fragmentação da sessão veio para facilitar a discussão de certo material clínico
meu, que eu havia apresentado previamente, num tempo demasiadamente breve e numa plenária da FEP. Para
afinar o método de discussão reunimo-nos num pequeno grupo. Um tempo depois, assistindo uma mesa cujo
tema central era a obra de Wolfgang Loch, descobrimos que tanto Loch como Balint haviam utilizado o corte na
apresentação das sessões em seus seminários clínicos.
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se descobriu que o corte de sessões era praticado por Loch e também por Michael Balint.
Isto nos pareceu confirmar que tal corte favorecia a cocriação de um tempo de discussão,
sem certezas preconcebidas.
Esse tipo de investigação sobre a filiação das ideias permite reconstruir e dar uma
dinâmica ao percurso da viagem das ideias, através da transmissão na análise pessoal, nas
leituras de seminários de formação, nas supervisões, nas reuniões internacionais, através
das migrações…
É um trabalho que propomos seja realizado como complemento de nosso método de
discussão.
O reconhecimento da dívida que temos na transmissão da psicanálise constitui parte
de nossos propósitos.
Referências
Faimberg, H. (1981). Une des difficultés de l’analyse: la reconnaissance de l’altérité: l’ écoute des
interprétations. Revue Française de Psychanalyse, 45, 1351-1367.
Faimberg, H. (2005). El Telescopaje de Generaciones: A la escucha de los lazos narcisistas entre generaciones.
Buenos Aires: Amorrortu.
Faimberg, H. (2007). The Telescoping of Generations: Listening to the Narcissistic Links between Generations.
London & New York: Routledge,
Faimberg, H. (2010). Una de las dificultades del psicoanálisis: el reconocimiento de la alteridad: la escucha
de las interpretaciones. Clássicos Revisitados, Revista de la Federación Psicoanalítica de América
Latina, 9, 99-112. Associação Psicanalítica Argentina – Sociedade Psicanalítica de Paris.
Haydeé Faimberg
[Sociedade Psicanalítica de Paris SPP]
[email protected]
15 Rue Buffon
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