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GT 9 – Museu, Patrimônio e Informação

ISSN 2177-3688

DIVERSIDADE EM MUSEUS: PROCESSOS COLABORATIVOS COMO METODOLOGIA DE AÇÃO

DIVERSITY IN MUSEUMS: COLLABORATIVE PROCESSES AS AN ACTION METHODOLY

Thainá Castro Costa - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Modalidade: Trabalho Completo

Resumo: Na Museologia contemporânea compreende-se a curadoria não como uma atividade em si,
mas como uma cadeia operatória que age sobre o objeto musealizado. Dentre as atividades
empreendidas nesta cadeia operatória nos interessa refletir sobre a que deliberadamente constrói e
veicula discursos: a curadoria. A Museologia brasileira, tem se organizado no último século como
espaço de construção de narrativas ligadas a branquitude e a consolidação de discursos
hegemônicos, no entanto temos visto a efervescência de novos museus e processos museológicos
não apenas questionando os discursos estabelecidos, mas principalmente desenvolvendo atividades
a partir de si e seus grupos, e colocando em disputa novos fazeres museológicos. Neste sentido, nos
interessa refletir como a mudança de perspectiva, a partir da diversidade, deflagrando novos
protagonismos nas atividades dos museus, pode se alicerçar na emergência de novo debate
epistemológico no campo. Para tanto, este artigo analisa dois processos museológicos a partir da
perspectiva da Diversidade e da aplicabilidade de métodos colaborativos, sendo eles a curadoria
expográfica e a documentação museológica. Como processos de construção de discursos
museológicos consideramos que ambos têm potencial de transformação social para inclusão de
novos protagonistas no debate dos museus atuais, independente de tipologias.

Palavras-chave: museologia; diversidade; curadoria; expografia; documentação museológica.

Abstract: In contemporary Museology, curatorship is understood not as an activity in itself, but as an


operative chain that acts on the musealized object. Among the activities carried out in this operative
chain, we are interested in reflecting on the one that deliberately constructs and conveys discourses.
Brazilian Museology has been organized in the last century as a space for conveying narratives linked
to whiteness and the consolidation of hegemonic discourses, however we have seen the
effervescence of new museums and museological processes not only questioning established
discourses, but mainly developing activities to from themselves and their groups, and putting new
museological practices into dispute. In this sense, we are interested in reflecting on how the change
of perspective, based on diversity, triggering new roles in museum activities, can be based on the
emergence of a new epistemological debate in the field. In this sense, this article analyzes two
museological processes from the perspective of Diversity and the applicability of collaborative
methods, namely exhibition curatorship and museological documentation. As construction processes
of museological discourses, we consider that both have the potential for social transformation for
the inclusion of new protagonists in the debate of current museums, regardless of typologies.

Keywords: museology; diversity; curatorship; expography; museum documentation.


XXIII Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação – ENANCIB
Aracaju-SE – 06 a 10 de novembro de 2023

1 INTRODUÇÃO

Existem milhões de toneladas de livros, arquivos, acervos, museus


guardando uma chamada memória da humanidade. E que humanidade é
essa que precisa depositar sua memória nos museus, nos caixotes? Ela não
sabe sonhar mais. Então ela precisa guardar depressa as anotações dessa
memória (KRENAK, 1992).

Os museus, como conhecemos hoje, são instituições fundadas no seio da


modernidade. O museu moderno, fundado na Revolução Francesa, tinha como princípio a
difusão de acervos ligados a específicas narrativas históricas, artísticas e científicas atreladas
ao conceito de estado-nação republicano emergente. Este modelo ocidental, europeu e
necessariamente branco, se consolidou historicamente não apenas como um processo
patrimonial eficiente, mas sobretudo como um aparelho político e ideológico de construção
de narrativas, aqui parafraseamos Otlet, quando aponta ver no museu moderno “forma e
um método”.
Para este autor o ‘trabalho museográfico’ demanda a escolha e reunião de
obras e objetos, sua identificação e classificação, a preparação de um
catálogo sobre elas, a disposição das obras e objetos para a apreciação do
público e o estabelecimento de intercâmbio com outras instituições. Otlet
defende que as coleções do museu não devem ser criadas de qualquer
forma, mas seguindo um método e uma sistematização na escolha das
peças que irão compor os acervos. A classificação das obras e objetos pode
ser feita seguindo diversos critérios – cronológicos; geográficos ou outros -,
dependendo das características e propósitos do museu e da natureza do
acervo. Num museu documentário, diz ele, o visitante encontrará os
objetos (LARA FILHO, 2009, p. 161-162).

Se no passado o sentido das exposições era apreendido mediante a feição de sua


apresentação - que, no século XVIII, pretendia representar o que era de interesse do Estado
e, em meados do século XIX, buscava expressar o que era socialmente progressivo -, à
soleira do século XX, o sentido das exposições dependeria de novas concepções de espaço e
montagem (CASTILLO, 2008, p. 38).
A pós-modernidade estimulou políticas aceleradoras do ver e exibir. O
leque de termos e linguagens que se abre na produção artística, somando
ao fortalecimento do mercado de arte e à formação de empresas culturais,
ampliaram os limites expositivos. Inerente ao contexto contemporâneo da
arte e suas diretrizes, a cultura das exposições relaciona-se com a história
da arte desde os anos 1950, sobretudo a partir da assimilação de uma
cultura capitalista de consumo, que reformulou o corolário do discurso
vanguardista histórico sobre a diminuição da distância entre arte e vida [...]
A partir dos anos 1980, “o papel do museu conservador e propagador de
uma narrativa histórica deu lugar ao de museu hospedeiro e propagador
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de pacotes expositivos”. Não se limitando a apresentar e representar


discursos culturais, a cultura das exposições sugeria transformações da
museologia tanto em razão de seu conteúdo e continente, quanto,
sobretudo, do seu público (CASTILLO, 2015, p. 23).

A museologia brasileira, fundada no século XX, é significativamente atravessada


pelas discussões patrimoniais francófonas, inobstante a sua localização geográfica há ainda
pouco diálogo e trocas acadêmicas entre a museologia brasileira e demais museologias sul
americanas. A fundação e desenvolvimento dos museus no Brasil está ligada a história das
elites econômicas, havendo uma predominância destes grupos tanto nos primeiros acervos
preservados quanto nas primeiras grades curriculares do curso de museus. É seguro afirmar,
então, que a museologia brasileira, serviu inicialmente a construção de narrativas políticas e
ideológicas de grupos hegemônicos, sob um referencial europeu e necessariamente branco.
No entanto, com as reformas universitárias e a expansão da Museologia em cursos
superiores no Brasil vimos significativas transformações. Atualmente no Brasil temos mais
de 3 mil museus (IBRAM, 2014) e 18 cursos de graduação em Museologia, o aumento de
cursos e museus se dá em decorrência da Política Nacional de Museus na década de 2000
onde um inédito investimento foi feito no campo, tendo como consequência também a
criação do Instituto Brasileiro de Museus em 2009. Além disso, o campo é regulamentado
por lei, 1984, tendo Conselho Federal e Conselhos Regionais em atuação. Este panorama
nos traz pontos importantes sobre as transformações sócio-políticas do campo dos museus
no Brasil nas últimas décadas, que muito além da expansão tem visto o surgimento de
novos museus e territórios musealizados, em uma mudança de perspectiva profunda, onde
alguns grupos sociais deixam de ser o “outro” para ser o “eu”. A mudança do tempo verbal
denota um protagonismo inédito de alguns grupos em relação aos museus, podemos citar,
por exemplo, os grupos indígenas, que nos últimos séculos foram alvos de sucessivas
expedições onde seus objetos foram incorporados a acervos de museus no Brasil e na
Europa representando esses indivíduos em exposição como “o outro”, marcando
simbolicamente o local de fala da branquitude como referencial. Este panorama é
importante para refletir sobre as, necessárias, mudanças epistemológicas do campo,
alinhadas a novos compromissos em relação aos discursos e protagonismos construídos nos
espaços museológicos. Tais transformações, muito debatidas no campo dos museus a partir
de eventos e princípios teóricos norteadores de boas práticas muitas vezes não alcançam o
cotidiano das instituições, portanto consideramos como debate fundamental a esse
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processo a reflexão acerca das metodologias colaborativas como ponto de partida para
novos fazeres museais.

2 PROCESSOS COLABORATIVOS EM DEBATE

O debate sobre processos colaborativos, embora tenha se difundido na última


década, tem origem em importantes reflexões na construção da Museologia enquanto
campo científico na segunda metade do século XX. Destacamos como momento histórico
impulsionador a mesa redonda em Santiago, no Chile em 1972, quando o conceito de museu
integral é cunhado. Em seus princípios de base destaca-se:
Eles [os membros da mesa redonda] consideraram que a tomada de
consciência pelos museus, da situação atual, e das diferentes soluções que
se podem vislumbrar para melhorá-la, é uma condição essencial para sua
integração à vida da sociedade. Desta maneira, consideraram que os
museus podem e devem desempenhar um papel decisivo na educação da
comunidade. [...] Considerando: Que o museu é uma instituição a serviço da
sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os
elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das
comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento
destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro
histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o
passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e
provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades
nacionais; Que esta nova concepção não implica na supressão dos museus
atuais, nem na renúncia aos museus especializados, mas que se considera
que ela permitirá aos museus se desenvolverem e evoluírem da maneira
mais racional e mais lógica, a fim de melhor servir à sociedade; que, em
certos casos, a transformação prevista ocorrerá lenta e mesmo
experimentalmente, mas que, em outros, ela poderá ser o princípio diretor
essencial; Que a transformação das atividades dos museus exige a mudança
progressiva da mentalidade dos conservadores e dos responsáveis pelos
museus assim como das estruturas das quais eles dependem; que, de outro
lado, o museu integral necessitará, a título permanente ou provisório, da
ajuda de especialistas de diferentes disciplinas e de especialistas de ciências
sociais. Que por suas características particulares, o novo tipo de museu
parece ser o mais adequado para uma ação em nível regional, em pequenas
localidades, ou de médio tamanho (UNESCO, 1972, não paginado).

Cabe ressaltar que um movimento como esse que vemos nos anos 1970 surge
também no contexto da década anterior, com a emergência dos debates dos movimentos
negro, feminista e hippie, provocando novas perspectivas e reflexões críticas sobre os
processos colonialistas e novos caminhos. No âmbito da Museologia após a década de 70
destacamos o ano de 1984 como um importante marco com o encontro - e declaração- de
Quebec, que de forma objetiva vai subsidiar o surgimento de uma Nova Museologia, porém
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não sem disputa: “A primeira década após a Declaração de Quebec foi marcada por uma
disputa acirrada entre os apoiadores da nova museologia e os defensores da museologia
tradicional, clássica ou ortodoxa, assim considerada a partir do ponto de vista dos seus
opositores” (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p. 11).
A década de 1990 é marcada pela Declaração de Caracas, em 1992, documento
oriundo de evento internacional comumente referenciado como importante releitura e
contribuição ao conceito de museu integral, no entanto:
Particularmente, consideramos que esse encontro não teve importância
conceitual e prática para o desenvolvimento da nova museologia; não
contribuiu para a mudança do panorama museal; o seu viés ideológico
neoliberal, ao contrário, investia na gestão profissional, na legislação e na
formação de lideranças voltadas para os museus, sem uma efetiva atenção
para os processos de desenvolvimento social, sem considerar o
protagonismo das comunidades e dos movimentos sociais. Muito mais
importante, em nosso ponto de vista, foi a Eco-92 e o I Encontro
Internacional de Ecomuseus, realizado em maio de 1992, no Rio de Janeiro,
que, diga-se de passagem, não teve a preocupação formal de produzir uma
carta ou uma declaração, ainda que tenha produzido um livro que registra a
memória do Encontro (CHAGAS; GOUVEIA, 2014, p. 13).

A mudança de perspectiva promovida por esses eventos históricos e organizada em


uma disputa epistemológica pela Nova Museologia vai propiciar a difusão de práticas
colaborativas como novos modos de fazer nos museus. E aí cabe explicitar que mesmo os
museus tradicionais atualmente se repensam nesse sentido. Nesta linha cronológica sobre as
mudanças teóricas do século XX o processo de musealização é questionado em seu sentido,
no que tange a função do objeto de museu (museália). Ora, se antes o objeto representava o
museu (instituição) com a mudança de paradigma aqui abordada este contexto se amplifica
cabendo ao patrimônio o sentido de ser suporte informacional e representando
grupos/contextos/histórias maiores que o museu em si.
[...]a transformação do objeto do museu em documento de modo a inseri-
lo no conjunto dos processos de conhecimento não tem um fim em si
mesmo. Pelo contrário, procura responder às novas perspectivas do museu
no sentido de, como instituição, observar as demandas ou mesmo propor-
se a criá-las, respondendo, assim, ao seu novo papel que combina a fruição
às funções sociais de desencadear processos de significação e de
conhecimento. Ao assumir as consequências da transformação do objeto
em documento, o museu trabalha não só com bens materiais, mas
simbólicos (LARA FILHO, 2009, p. 168).

Compreendemos como processos colaborativos todas as atividades onde o museu


compartilha o protagonismo com grupos sociais que o constroem geográfica ou
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discursivamente, no entanto ressaltamos que a pluralidade de termos sinônimos, advindos


dos debates nos campos da educação, artes e antropologia, de modo nenhum enfraquecem
a discussão.
Como definição destacamos o conceito de Museologia Colaborativa,
recorrentemente encontrada nos debates sobre museus antropológicos e etnológicos,
segundo Cury:
A colaboração vem se configurando, mesmo quando se coloca com outras
denominações, como “cooperação, colaboração, interatividade,
etnomuseologia, museologia colaborativa, museologia compartilhada,
curadoria compartilhada e outros termos que revelam novos pensamentos
e criativas práticas museológicas (CURY, 2019, p. 344).

A partir da análise de museus antropológicos Russi afirma que:


Acompanhamos, assim, processos museais colaborativos, denominados
genericamente pela expressão “museologia colaborativa” ou “museologia
compartilhada” que, como já assinalamos, refere-se a diferentes tipos de
processos museológicos que resultam de interação e troca entre
profissionais de instituições museológicas, e diferentes sujeitos, sobretudo
diferentes grupos ou comunidades que, de alguma maneira, mantêm
vínculos com o museu, entre outras relações (RUSSI, 2019, p. 23).

Independente do termo a ser utilizado cabe refletir que 1) os processos colaborativos


devem se organizar a partir da mudança de perspectiva epistemológica, apontando novos
caminhos de construção de discursos, e 2) não nos parece razoável afirmar que tais
processos sejam simples ou fáceis, mas são possíveis a todas as tipologias de museus.

3 CURADORIA(S)

O conceito de curadoria é atualmente discutido - e disputado - em diversos campos


do conhecimento, como é o caso das artes visuais e da arqueologia. Na Museologia temos
trabalhado com o desenvolvimento deste conceito atrelado a cadeia operatória do objeto
museológico (BRUNO, 2014), ou de forma interdisciplinar com outros campos, como tem se
mostrado a experiência dos museus de arte por exemplo. Com a expansão do conceito de
Museologia e o reconhecimento de novas tipologias de museus e processos museológicos as
montagens de exposição passaram também a abarcar outras questões, e temos visto uma
profusão de curadorias compartilhadas e autonarrativas expográficas ligadas a grupos
minoritários no Brasil. Com o desenvolvimento de novos museus, e a visibilização de novos
artistas, alguns impulsionados pelas redes sociais, temos acompanhado dois movimentos
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importantes: o primeiro relativo a grupos sociais que organizam suas próprias memórias em
museus de território (ou outras tipologias) e que tem elaborado discursos expográficos
sobre si, como o Museu da Maré (RJ), Museu dos Meninos (RJ), Acervo da Laje (BA), entre
outros. O segundo movimento se refere a entrada de artistas periféricos em museus
tradicionais e galerias de arte. A disputa sobre as curadorias se organiza como um processo
importante, uma vez que o curador detém o poder de construir a narrativa, é
necessariamente quem conta uma história.

Há outros dois aspectos importantes do trabalho de curadoria destacado


por Lisa Corrin na entrevista anteriormente referida: “os curadores não são
apenas ‘escolhedores’. Eles também contam histórias. Você faz escolhas de
por que isso e não isso, e às vezes você edita coisas, independentemente da
qualidade, porque não serve para a história. É também sobre compartilhar
o que você sabe com um público mais amplo, levando informações
complicadas e ajudando o público a compreendê-las (ZANELLA, 2017, p.
165).

Tanto os “novos museus” quanto os “novos artistas” que partem de um referencial


periférico e questionam ao campo dos museus o que seria Arte, História e Memória,
colocando como ponto de disputa suas histórias em um processo que aqui nomearemos de
auto-narrativas. Percebemos uma relação direta com o debate dos movimentos negros no
Brasil, pois a reflexão sobre auto-narrativa e disputa da perspectiva histórica acompanha os
debates de intelectuais como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento.
Como escreve o professor mestre em história Rodrigo dos Reis (2020, p. 12):

Beatriz do Nascimento foi inovadora ao apresentar África como um lugar


imaginário e, ao mesmo tempo, concreto, de onde são construídas
memórias e também de onde são produzidas histórias. A autora tem sido
contextualizada como uma das precursoras dos estudos pós-coloniais, pois
já apresentava uma noção de “perspectiva africana” dentro dos estudos
sobre África e Diáspora.

Acreditamos que os escritos de Beatriz Nascimento oferecem uma perspectiva sobre


história e memória que dialogam com as experiências contemporâneas que observamos nas
curadorias em que os artistas colocam sua narrativa como elemento de construção criativa e
também interferência no espaço institucionalizado pela branquitude nas curadorias.
Podemos dizer que tem se difundido nas leituras sobre patrimônio no Brasil uma perspectiva
decolonial, retomando o debate sobre narrativa e identidades. A mudança do tempo verbal
na construção dos discursos expográficos denota uma mudança de posicionamento no
campo dos museus, uma vez que ao promover processos curatoriais a partir dos
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grupos/artistas - e não apenas sobre eles - permite-se um protagonismo dos sujeitos sobre
suas próprias narrativas, de modo que o museu nesse caso é suporte.
O papel do curador, atualmente é bastante problematizado no campo das Artes, de
modo que nossa intenção nesta pesquisa se organiza na investigação de museus e artistas
negros, a fim de compreender como o conceito hegemônico que define a figura do curador
está - ou não- sendo redefinido nestes novos processos. Desta forma cabe ressaltar que:

O curador de arte, ao pé da letra, seria aquele que está incumbido de


cuidar, zelar e defender os interesses do artista e dos trabalhos de arte. O
curador, como se sabe, é o profissional que organiza, supervisiona ou dirige
exposições, seja em museus ou nas ruas, em espaços culturais ou galerias
comerciais. Essa função tem sido desempenhada em caráter temporário
por artistas, críticos, jornalistas, professores, historiadores, galeristas ou, de
modo mais sistemático, por profissionais especializados em curadoria
(ALVES, 2010, p. 43).

Compreendemos que a autonarrativa (CURY, 2019) como campo de protagonismo


dos sujeitos se potencializa na exposição como medida de democratização e reparação
histórica no que tange a construção de discursos museológicos. A organização curatorial a
partir de museus e/ou artistas negros por exemplo, coloca em perspectiva mais do que o
conceito de curadoria em si, mas o próprio processo comunicacional dos museus. Uma vez
fundados como aparelhos ideológicos, tendo servido e propagado discursos coloniais, os
museus são templos da branquitude, onde os discursos se organizam de forma hegemônica
para a manutenção de poder. A tomada da narrativa, através da curadoria, traz a tona o que
Kilomba (2019) problematiza sobre os silêncios, uma vez que se o sujeito colonial está sem a
máscara que lhe tapa a boca o sujeito colonizador terá de ouvir.
O medo branco de ouvir o que poderia ser revelado pelo sujeito negro pode
ser articulado com a noção de repressão de Sigmund Freud, uma vez que a
“essência da repressão”, segundo o mesmo: “Encontra-se simplesmente em
afastar-se de algo e mantê-lo à distância do consciente” (Freud, 1923, p.17).
Esse é o processo pelo qual ideias - e verdades - desagradáveis se torna
inconscientes, vão para fora da consciência devido à extrema ansiedade,
culpa ou vergonha que causam (KILOMBA, 2019, p. 41).

As exposições são, portanto, processos comunicacionais, mediados pela autorização,


de quem “pode falar” e de quem “será ouvido”, de modo que o pertencimento é categoria
essencial sobre poder falar - construir discursos - e ser ouvido - ser representado,
transformando as autonarrativas expográficas em um processo de subversão
comunicacional da ordem estabelecida.
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4 DOCUMENTAÇÃO MUSEOLÓGICA E POSSIBILIDADES DE AÇÃO

Para estes pequeninos grupos humanos, nossas tribos, que ainda guardam
esta herança de antiguidade, esta maneira de estar no mundo, é muito
importante que essa humanidade que está cada vez mais ocidental,
civilizada e tecnológica, lembre, ela também, dessa memória comum que os
humanos têm da criação do mundo, e que consigam dar uma medida para
sua história, para sua história que está guardada, registrada nos livros, nos
museus, nas datas, porque, se essa sociedade se reportar a uma memória,
nós podemos ter alguma chance. Senão, nós vamos assistir à contagem
regressiva dessa memória no planeta, até que só reste a história. E, entre a
história e a memória, eu quero ficar com a memória (KRENAK, 1992).

A Documentação do objeto museológico se apresenta inicialmente como uma


atividade normatizadora do processamento do acervo a partir do processo de musealização,
mas é importante ressaltar que estes movimentos se constroem sobretudo a partir de
processos ideológicos, afinal todo objeto tem potencial para ser musealizado, mas nem todo
objeto o será (CHAGAS, 1994), portanto o processo de seleção implícito a esta escolha
decorre de valorações sociais, que mesmo embasadas em normatizações, se apoia nas
crenças pessoais/institucionais, e principalmente no diálogo com o presente.
O que se coleciona diz muito mais sobre o museu do que sobre o objeto colecionado,
a Documentação Museológica é hoje uma importante ferramenta para implementar os
valores e propósitos dos museus, seja no que se escolhe colecionar, seja no que se escolhe
não colecionar, e sobretudo no processo de revisão e atualização contínua das informações.
A Documentação Museológica pode, portanto, ser uma eficiente ferramenta de
transformação social, na medida em que a salvaguarda de determinadas informações
disponibilizadas socialmente pode ser importante para a preservação de memórias de
grupos minorizados. O contrário também é possível, ao colecionar apenas objetos pautados
em lógicas eurocêntricas e colonialistas a Documentação Museológica pode se alicerçar
como ferramenta de supremacia na valoração de grupos sociais hegemônicos. O desafio
profissional é refletir eticamente sobre a função social desta importante atividade
museológica, e pactuar que valores estamos priorizando no processo documental no museu.
Como exemplo podemos imaginar que através da documentação museológica - bem como
de outros processos museológicos na instituição - um museu pode se organizar de maneira
antirracista, na mesma medida o contrário pode acontecer e o museu se posicionar como
supremacista em relação a branquitude.
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O processo de musealização é majoritariamente uma articulação de poder,


assim a seleção é agenciada pelo que deve ser lembrado e o que será
esquecido. Os museus, como espaços de memória, organizam essa
dinâmica de memórias e esquecimentos no seu cotidiano, e suas práticas
articulam ferramentas para isso. Nessa dinâmica do lembrar e esquecer
cabe o questionamento sobre quem faz essa seleção e a quem ela
representa. Nessa lógica de poder observamos a constituição histórica dos
museus ligados às elites econômicas, representando seus próprios corpos
de forma positivada, demarcando os museus como espaços de branquitude
(COSTA; PADILHA, 2022, p. 4)

Refletir sobre a função social da Documentação Museológica está intrinsecamente


ligado à própria função social do museu. A definição mais recente define que:
Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da
sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o
patrimônio material e imaterial. Os museus, abertos ao público, acessíveis e
inclusivos, fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Os museus
funcionam e comunicam ética, profissionalmente e, com a participação das
comunidades, proporcionam experiências diversas para educação, fruição,
reflexão e partilha de conhecimento (ICOM, 2022).

Embora o conceito não seja objetivo em relação a diminuição de desigualdades de


gênero e raça, é importante o destaque sobre diversidade, pela primeira vez introduzido na
definição de museu, muito necessário aos debates contemporâneos sobre a função social
destes equipamentos culturais. Um museu não precisa ser sobre sexualidade para trazer à
tona a reflexão sobre LGBTfobia, assim como não precisa ser museu afro para colecionar e
refletir sobre acervos negros, o debate sobre diversidade precisa estar amalgamado as
dinâmicas mais básicas das instituições museológicas, a fim de que se atualizem e
proporcionem reflexões atuais. É imprescindível que diversidade seja a base e também a
metodologia pela qual o museu baseia suas atividades, que organize como princípio
norteador das políticas a serem desenvolvidas.
Como trajetória possível para o desenvolvimento de boas práticas documentais nos
museus brasileiros consideramos interessante a implementação metodológica de processos
museológicos colaborativos. Por exemplo, um museu que possui uma coleção de peças de
um grupo indígena em sua Reserva Técnica poderia desenvolver projetos com o mesmo a
fim de: levantar novas informações sobre os ítens, levantar termos que identifiquem a peça
para o grupo e que porventura não esteja na catalogação, compartilhar informações sobre
objetos/técnicas que não existam mais no território do grupo, qualificar informações sobre
exposição e restauração respeitando a sacralidade das peças, entre outros. Neste sentido,
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destacamos como boa prática a experiência do MAE-USP com a exposição de curadoria


compartilhada “Resistência já! Fortalecimento e união das culturas indígenas – Kaingang, Guarani
Nhandewa e Terena”. Além da exposição Cury (2020) relata o processo de reconhecimento dos
grupos acerca dos objetos musealizados, a aproximação com a instituição e a organização de
processos técnicos colaborativos realizados em conjunto a equipe do museu.
A proposta de construção de processos documentais a partir de metodologias
colaborativas precisa considerar toda a cadeia operatória da atividade, de modo que em
alguns casos esse processo é natural, como por exemplo com os inventários participativos, e
em outros é necessário organizar para além das normatizações existentes, como no caso das
políticas de acervos. Todos os processos podem, em alguma medida, serem desenvolvidos
integral ou parcialmente de forma colaborativa, mas há que se analisar as especificidades de
cada atividade para definir metodologicamente o trajeto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de processos colaborativos da Museologia pode ser analisada a partir


de diferentes perspectivas, no entanto refletir como esse princípio metodológico pode ser
incorporado no cotidiano das instituições nos parece uma prioridade, uma vez que o
desenvolvimento de metodologias faz parte do processo. Neste artigo trouxemos a tona a
partir de apenas duas atividades: a curadoria expográfica e a documentação museológica.
Ambas as atividades são essenciais na construção de discursos sobre os objetos, com grande
potencial de transformação social caso sejam protagonizadas a partir da partilha de
conhecimentos e reunião de diferentes protagonistas. Compreendemos não ser um caminho
fácil ou simples, porém é possível construir outras epistemologias que não apenas as
coloniais. Os caminhos aqui apontados, importantes no que tange a transformação social e
produção do conhecimento, são também cenários de importantes debates informacionais,
principalmente no que tange a reflexão sobre os objetos enquanto documentos.

Na Ciência da Informação, essa perspectiva encontra-se inserida no


paradigma social que funda o conhecimento teórico num pré-
conhecimento prático tácito: a recuperação da informação –
acrescentaríamos, para os museus: como também a atribuição de sentido
na fruição – funciona como um tipo de conversação sustentada por um
andaime e o estudo de campos cognitivos está em relação direta com
comunidades discursivas (...). No caso dos museus, ao invés de promover a
reificação dos objetos baseando-se em categorias de objetos, os museus
têm de observar que operam nas dimensões do tempo e do espaço, com
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campos do conhecimento, com o simbólico, com os problemas humanos e,


enfim, com a articulação entre todos esses elementos (LARA FILHO, 2009, p.
169).

Refletir sobre novos processos metodológicos em museus, perpassa sobre a


compreensão acerca de sua função social, que como aqui mostrado foi mudando com o
tempo, assim como as sociedades e grupos em que essas instituições se inserem. Nesse
sentido, compreendemos que o potencial informacional de alguns processos museológicos,
como os aqui abordados: documentação e curadoria, podem (e devem) estar
comprometidos com revisões cotidianas para que sua aplicabilidade esteja comprometida a
transformações sociais. Mais importante do que recuperar informação no processo de
documentação museológica nos interessa saber para quem, e com que intuito.

REFERÊNCIAS

BRUNO, Maria Cristina Oliveira. A Pedagogia Museológica e a Expansão do Campo Científico


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