Econceio1, Artigo - Regiane Souza - Capulanas 11 Paginas - Final

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Revista Eletrônica Discente História.com, Cachoeira, v. 7, n. 14, p. 75-86, 2020.

Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
ISSN 2317-6989

“CAPULANA E A MODA EM MOÇAMBIQUE”

Regiane Marques Souza1

Resumo

O presente artigo é parte da experiência do intercâmbio do Projeto Arquivo


Brasil/Moçambique (2018-2109), um convênio entre a Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, por iniciativa do NEAB, e a Universidade Pedagógica de Moçambique, com
financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- CAPES.
Essa investigação se propõe a pensar sobre a História de Moçambique em uma breve
discussão sobre moda, especificamente sobre o que as “capulanas falam”. Capulana é um
tecido de algodão com uma grande diversidade de cores e estampas, mas que se diferencia
de outros tecidos para a sociedade moçambicana, pois carregam historicamente um valor
simbólico e tradicional, por meio das formas do uso em especial pelas mulheres.

Palavras-chave: História de Moçambique. Capulanas. Moda.

Recebido em 20 de outubro de 2020 e aprovado para publicação em 15 de dezembro de 2020

1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Correio eletrônico: [email protected].
Introdução

Entre os dias 05 a 09 de dezembro de 2018, aconteceu na cidade de Maputo, capital


de Moçambique, o Mozambique Fashion Week edição – 2018, um evento que acontece
anualmente e é considerado o maior evento de moda do país, um espaço dedicado a
estilistas nacionais e internacionais que trazem em suas criações tendências e inspirações de
moda. Um cenário ideal para se analisar o que os inspiram, bem como, para perceber como
vem se desenvolvendo gradativamente o mercado da moda em Moçambique.
Dando ênfase às inspirações e ao mercado da moda moçambicana, antes dos desfiles
sempre ocorriam conversas sobre diferentes assuntos ligados ao mundo da moda, os
chamados Sunset Talks. Em um desses bate papos, mais precisamente no dia 03 de dezembro
de 2018, que teve como tema: Arte, Cultura, Poesia, Música e Fotografia, cujo objetivo
também era refletir as experiências e vivências dos artistas, músicos, poetas, fotógrafos e
estilistas Moçambicanos, o debate sobre a moda moçambicana ganhou destaque.
Dialogando com os artistas e o público ali presente, a mediadora Sónia Sultuane (que
também é artista plástica e poetisa moçambicana), trouxe ao debate uma fala, já
mencionada em outro evento do estilista M’Whandro Mangoba, criador da marca 76
moçambicana BacoBaco, na qual ele ressalta: “Não existir uma moda Moçambicana”. Sónia
Sultuane salientou essa fala a fim de dialogar com o estilista e o público ali presente, quais
são as análises do estilista para chegar a tal afirmação. Mangoba então fundamentou a sua
resposta trazendo alguns elementos históricos. Ele acredita que não podemos dizer que existe
uma moda moçambicana, “pois o maior símbolo de representação da moda em
Moçambique são as capulanas, tecido esse que não é de origem moçambicana e que sua
fabricação também não é feita no país”2. A estilista moçambicana Shaazia Adam, que
também fazia parte da mesa convidada, compartilha dessa mesma ideia. Assim sendo,
surgiu o seguinte questionamento: Existe uma moda moçambicana e como se pensa a moda
em Moçambique?
Tendo como base a fala do estilista, uma análise do contexto histórico de
Moçambique e como objeto central dessa pesquisa o tecido capulana, essa investigação se
põe a pensar como “as capulanas falam” sobre esse processo, bem como a comercialização
desse tecido e a sua importância socioeconômica e cultural em Moçambique, podendo ser
pensada também, como pano de fundo para dialogar com essas representações e suas
problemáticas. Todavia, o que ou como podemos pensar as capulanas no território

2Fala do estilista durante a conversa no Sunset Talkno, que teve como tema: Arte, Cultura, Poesia, Música e
Fotografia. Maputo - Moçambique. 03 dez. 2018.

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moçambicano? A fim de responder esses e outros questionamentos, será usado como recurso
teórico-metodológico a revisão de literatura referentes à temática, e análise de matérias da
Revista Tempo dos anos de 1973 a 1984. A partir dessas análises será discutido um breve
conceito sobre moda e alguns aspectos sobre a História de Moçambique.

1. Conceito de moda

A priori, é interessante pensar em um breve conceito sobre o que é moda e suas


subjetividades. No Minidicionário da Língua Portuguesa3, moda significa: “Maneira”;
“costume”; “uso geral”; “artigos de vestuário feminino”. Moda também pode ser
caracterizada pelo o que é consumido, o que é tendência, o que representa determinada
cultura ou grupo social. Sendo composta também por elementos que refletem os contextos
sócio político, socioeconômico e sociocultural.

Oriunda do latim modus que significa maneira, a moda é denominada como


maneira, modo individual de fazer, ou uso passageiro que regula a forma dos
objetos materiais, e particularmente, os movíeis, as vestimentas e a coqueteria. Mais
genericamente, maneira de ser, modo de viver e de se vestir.4
77
A moda pode ser pensada para além do vestuário, e em especial, que classifica uma
determinada elite, ou grupo, a fim de determinar apenas o status social. A reflexão a partir
da definição do que engloba o conceito moda, nos faz dialogar com uma moda que
representa sujeitos e suas especificidades, e não apenas sujeitos que representam uma moda.

Se por um lado a moda é vista como uso, hábito, estilo geralmente aceito, variável
no tempo e resultante de determinado gosto, idéia ou capricho, ou das influências
do meio; bem como fenômeno social ou cultural, mais ou menos coercitivo, que
consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade
de conquistar ou manter, por algum tempo determinada posição social; modo
significa maneira, feição, forma, jeito, sistema, prática, via, habilidade e em alguns
casos, processo de aculturação.5

Mas a forma de pensar moda é algo subjetivo, pois ainda é um espaço no qual
podemos notar uma reprodução de elementos que classificam, enaltece alguns grupos, suas
culturas e padrões estéticos, ao mesmo tempo em que segregam grupos, especialmente os
que foram historicamente marginalizados.

Expressão das maneiras de pensar, desejar e agir de uma comunidade ou grupo, a


cultura midiática e a comunicação, também por meio das constituições da moda e

3 BUENO, Silveira, Minidicionário da língua portuguesa. Ed. rev. e atual-São Paulo: FTD, 2000. p. 518.
4 CIDREIRA, Renata Pitombo. “Os sentidos da moda: Vestuário, Comunicação e Cultura.” São Paulo:
Editora Annablume, 2005. p. 30.
5 Ibidem, p. 30-31.

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da aparência, constroem realidades e subjetividades. Como esfera de manipulação
de elementos de representação da ideologia dominante, seus textos, linguagens e
discursos nos orientam a reproduzi-los de maneira acrítica e ao consequente reforço
da superioridade de características dos grupos privilegiados socialmente e
impositores de um discurso machista, sexista, misógino, racista, lesbo-homo-
transfobia e heteronormativo.6

Conceituar moda, no entanto, ultrapassa a simples definição por um dicionário, pois


a palavra em si carrega uma conotação social e histórica que remetem a códigos sociais pré-
estabelecidos e que são, de longe, uma simples tarefa defini-lo.

Considerados isoladamente, tais elementos estão privados de valor; no entanto,


adquirem no momento em que são ligados por um conjunto de normas e regras
coletivas. Nesse sentido, o costume é essencialmente um fenômeno de caráter
axiológico, isto é, refere-se a uma escala de valores ideais aos quais os membros de
determinado contexto histórico-social e cultural tendem a assemelhar-se ao
máximo. Ora, quando a paixão pelo novo, pelo recente, pelo requinte pela
elegância etc, e a renovação das formas tornam-se um valor, quando a
mutabilidade dos feitos e dos ornamentos não constitui mais uma exceção, mas se
torna uma regra estável, um hábito, e uma norma coletiva - isto é, um costume -,
então se pode falar de moda.7

Assim sendo, é muito relevante o cuidado e a sensibilidade nas análises sobre moda, pois
entender moda como costume pode ser também problemático, se partirmos do simples
questionamento: quem são os sujeitos e os costumes que sempre foram colocados como 78
representantes da moda? Para Barreto e Soares, (2014):

Ao revisitar a história da moda e da indumentária poderemos observar que


padrões que hoje representam o feminino e o masculino como antagônicos,
manifestam-se de maneira completamente diferentes até o século XVIII na Europa
(LEVER,1993). Importando referências de tais padrões de excelência de gênero e
sociabilidade europeus, a sociedade brasileira se constitui a partir de tais
parâmetros e assim passa a definir condições de existências diversas aos sujeitos –
mais ou menos privilegiadas – à medida que dominem tal linguagem da aparência
(não apenas roupa, mas mobiliário, arquitetura, hábitos de consumo, gestual,
comportamento etc.) sobre os quais serão debruçados seus investimentos em status
social a partir sempre de definições eurocentradas e heteronormativas na eleição
desses padrões.8

2. Contexto Histórico

Moçambique é um país do continente africano que está localizado na costa oriental


da África Austral e banhado pelo oceano Índico9. Torna-se importante ressaltar a
imensurável História desse país, que também sofreu com a severa e longa colonização e
exploração portuguesa. Mas, mesmo antes da colonização portuguesa, não muito diferente

6 BARRETO, Carol; SOARES, Leandro. Gênero, Cultura e Linguagem: narrativas da aparência. Salvador:
Enecult -2014. p. 4.
7 CALANCA, Daniela. História Social da Moda. 2a edição, São Paulo: Editora Senac, 2011.
8 BARRETO, SOARES, op. cit., p. 2.
9 Veja mais em: https://www.sadc.int/about-sadc/. Acesso em: 20 mar. 2021.

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de outros países da África, já existiam, nesse território, grandes civilizações que possuíam
complexa organização social, política, econômica e cultural.
Consequentemente com a chegada dos portugueses em 1498, no território hoje
chamado Moçambique e, com o auge do colonialismo, estabeleceram-se novos aspectos no
contexto das relações econômicas e comerciais. Essas relações foram fundamentadas na
escravização de moçambicanos e na produção de culturas como, cana de açúcar, sisal e o
algodão, sendo estes os principais geradores de lucros para os europeus10.
A escravização de africanos, devendo-se destacar aqui os moçambicanos, bem como
a produção de culturas forçadas, como a cana de açúcar, sisal e do algodão em Moçambique
pode ser mencionada como um marco histórico no que diz respeito ao comércio e economia,
tanto interna, como externa, apesar de toda a problemática histórica relacionada e
atualmente sabida.
Contudo, devemos notar e destacar que, além do comércio de ouro e marfim, a mão 79
de obra escravizada e o desenvolvimento dessas culturas se tornaram importantes elementos
de câmbios e, depois da exportação para países europeus que expandiu as fronteiras
comerciais, assim como a ampliação comercial para o novo mundo11.
O cultivo de algodão no período colonial estabeleceu, em Moçambique, algumas
indústrias com o objetivo de expandir o comércio do algodão. No período da Segunda
Guerra Mundial, Moçambique teria sido um dos principais exportadores de algodão,
arrecadando grandes lucros: “então, em 1942, os jornais de Lisboa orgulhavam-se ao
anunciar que a produção do algodão colonial passará a cobrir mais de 90 por cento das
necessidades portuguesas, comparada com os 40 por cento dos dois anos anteriores, sendo a
maior parte produção moçambicana”12.
A História de Moçambique sediou grandes acontecimentos históricos, entre eles vale
destacar a independência do país em 1975. “Derrotado nas guerras coloniais em África, o

10 As discussões sobre os processos coloniais portugueses e suas implicações em Moçambique são múltiplas e
bastante complexas. Para esse fim, confira: WAGNER, A. P. A administração da África Oriental Portuguesa na
segunda metade do século XVIII: Notas para o estudo da região de Moçambique. História Unisinos, Rio
Grande do Sul, v. 11, n. 1, p. 72-83, jun. 2007.; DIAS, Jill. História da Colonização - África (Séc. XVII-XX). Ler
História, Universidade Nova de Lisboa, n. 21, p. 128-145, 1991.; FOLADOR, Thiago de Araujo. Os africanos
escolhem o que vão levar: os tecidos indianos no comércio de marfim e escravos. Rev. Hist. (São Paulo), São
Paulo, n. 177, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
83092018000100502&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 18 ago. 2019.
11 Como nos demonstrou Alberto da Costa e Silva, no caso das Américas, notadamente com o Brasil, em suas

obras: SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. 5.
ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.; SILVA, Alberto da Costa e. O Brasil, a África e o Atlântico no século
XIX. Estudos avançados, São Paulo, v. 8, n. 21, p. 21-42, ago. 1994. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141994000200003&lng=en&nrm=iso. Acesso
em: 3 ago. 2019.
12 DAVID, Hedges. História de Moçambique, Vol. 3, Moçambique no auge do colonialismo, 1930-1961. Maputo:

Ed. Universidade Eduardo Mondlane, 1993. p. 92.

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regime fascista português caiu em 1974, no ano seguinte Moçambique tornou-se
independente e a FRELIMO formou o governo. O país iniciou o processo de reconstrução
nacional”13.
Entre 1964-1974, Moçambique vivenciou o processo de luta armada contra o
colonialismo Português. A luta pela libertação de Moçambique foi liderada pela Frente de
Libertação Nacional- FRELIMO em 25 de junho de 1962, que originou por meio da união de
três movimentos nacionalistas: União Democrática Nacional de Moçambique - UDENAMO;
Mozambique African National Union – MANU, e a União Africana de Moçambique
Independente- UNAMI14. Assim sendo, ocorreram mudanças na estrutura econômica do país
e reformas com o objetivo de revitalizar o sistema econômico moçambicano, bem como o
resgate de aspectos culturais do referido povo.
Com o objetivo de construir mecanismos de reestruturação do país, a educação e a
valorização da cultura foram pautas que estavam na lista de prioridades do líder político e
primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Machel, que acreditava em um
projeto de educação transformadora. “Por isso a FRELIMO definiu a educação e a cultura 80
como uma fase decisiva no contexto geral da luta de libertação nacional”15.
Em 1977 a FRELIMO tornou-se o partido Marxista- Leninista, nesse mesmo ano deu-
se início também aos conflitos como a Resistência Nacional de Moçambique- RENAMO,
conflito esse, que oficialmente teve fim em 1992, após muitas tentativas para empatar as
negociações, foi assinado o acordo de cessar-fogo dependente da realização de eleições16.

3. Capulanas em Moçambique

A capulana representa tudo, é elevada a símbolo. E é um símbolo


gritante da luta contra o jugo colonial, para todo o continente,
porque se aqui se chama capulana, e lá se chama kanga ou pano, é
sempre ela que representa o todo envolvente.17

13 Manifesto - OMM. Organização da Mulher Moçambicana. Arquivo Histórico de Moçambique.


Moçambique, 1973. p. 9.
14 Essas informações podem ser consultadas no sítio do governo moçambicano. Disponível em:

http://www.portaldogoverno.gov.mz/. Acesso em: 25 ago. 2019.


15 Ministério dos combatentes. Samora Marchel na Memória do Povo e do Mundo volume II. Maputo, 2016. p.

57; NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. Bloomington: Indiana University Press, 1995. p. 489.
16 NEWITT, Malyn. A history of Mozambique. Bloomington: Indiana University Press, 1995. p. 489
17 Malangatana, África grita. Poema retirado do livro: TORCATO Maria de Lurdes. ROLLETTA, Paola.

“Capulanas e lenços”. Edição: missanga ideias e projetos Lda. Editora Kauri Resort, Maputo 2011.

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Capulana é um tecido de fibra de algodão, estampado em uma variedade de cores
e padrões, tendo cerca de 1,10m X 1,80m de dimensões18 e, podem ser comprados em
Moçambique em unidades e/ou peças. Segundo Torcato e Rolletta:

Na África oriental onde se fala suaíli, diz-se que este modo de vestir surgiu em
meados do século XIX, quando as mulheres começaram a comprar lenços (em suaíli
diz-se leso) de tecido de algodão estampado e colorido, trazido pelos mercadores
portugueses do Oriente para Mombaça. Em vez de comprar um a um, mandavam
cortar seis quadrados de uma vez, dividiam este pano ao meio e coziam o lado
mais comprido fazendo uma “capulana” de 3x2 lenços. Depois era só envolver o
corpo, amarrar com mais ou menos estilo e a moda impunha-se à medida que
cada vez mais mulheres faziam o mesmo. 19

Não se sabe de forma efetiva a origem do nome ou de onde veio esse tecido, muitos
países do continente africano fazem uso de tecidos, que se assemelham às capulanas, mas os
mesmos também são nomeados de forma diferente, como aborda TORCATO e ROLLETTA,
2011:

Noutros países estes panos podem ter outros nomes. No Quénia chamase “kanga”.
Na África Ocidental, no Congo ou no Senegal, chamam-lhe “pagne”. Muitas línguas 81
moçambicanas têm nomes vernáculos para estes retângulos de tecido. Mas
“capulana” é o nome mais usado, desde de norte a sul, de leste a oeste, em
Moçambique. Hoje o nome faz parte do léxico da língua portuguesa mas não é
uma palavra de idêntica origem.20

Mas, ainda que distintas as nomeações dadas a esse tecido, o que chama à atenção
é a forma como se usa em Moçambique. No dia a dia são utilizadas de diferentes formas,
tais como: para carregar o bebê, nas machambas, como parte da indumentária, para
cerimônias religiosas, fúnebres, nos ritos de iniciação, noivados, lobolos, 21 bem como em datas
comemorativas de diferentes categorias, a qual “fala de forma singular sobre cada uma
delas”.
Tempo destaca que muitas mulheres em todo país principalmente nas províncias de
Nampula e Maputo guardavam “ricas coleções de capulanas em malas e velhos baús”. A
dona só poderia se "desfazer em caso de extrema necessidade financeira" em que poderia
vender, ou repassar para as mulheres da família como um tipo de herança ou como prenda
de casamento". Revelando também que as mulheres que usam esse tecido sempre têm
histórias para contar “nota importante, falara antes o nome da capulana”22.

18 HENRIK, Ellert. Mosaico Moçambique. Editora. Kapicua Livros e multimídia, lda. 2016.
19 TORCATO; ROLLETTA. op. cit., p. 1.
20 Idem.
21 São comparados a dotes pagos pelo noivo à família da noiva. Veja mais em: SANTANA, Jacimara Souza.

Mulheres de Moçambique na revista Tempo: o debate sobre o lobolo (casamento). Revista de História, v. 1,
n. 2, p. 82-98, maio. 2009.
22 Revista Tempo, 395, 22. 05. 1978. p. 38. Disponível em: Arquivo Histórico de Moçambique: Maputo. Acesso

em: 2018.

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Para a Revista Tempo “As capulanas falam”. A revista publicou um artigo com esse
tema, com a finalidade de analisar os significados que o tecido carrega para a sociedade
moçambicana nesse período, segundo a mesma, “as capulanas são mil histórias verdadeiras
em cores garridas”23.

É que as capulanas têm nome. Por isso <<falam>>. O nome que usam é-lhes
atribuído por associação com um determinado acontecimento político, social
(porvezes de fundamentos supersticiosos) ou por associações com um determinado
fenómeno da natureza. Assim, grande parte dos acontecimentos coloniais que
marcaram a memória do povo – prisão de Ngungunhana segundo nos frisaram, as
rivalidades territoriais entre os portugueses e os alemães aquando da II guerra
mundial a propósito dos limites entre Moçambique e o então Tanganyca, a
obrigatoriedade da pose, a praga de gafanhotos que assolou o centro de
Moçambique em 1934, as doenças de impacto social etc, tudo isso ficou registrado
através da atribuição de nomes a capulanas postas à venda no mercado na mesma
altura em que estes fenômenos se davam. 24

A capulana é mais que um simples tecido, além de ser caracterizada como parte da
indumentária dessas mulheres, carrega representatividade, que mesmo não sendo
originalmente de Moçambique, se tornou símbolo de representação e expressão sociocultural 82
e socioeconômica. “São o relato materializado da potência recriadora das mulheres
moçambicanas, revelando a presença destas no mundo e as interações entre gênero,
colonização, independência, tradição e modernidade, entre outros”25.
Nesse sentido, podemos tomar como exemplo o dia da Mulher Moçambicana. Em
Moçambique todo ano, no dia 07 de abril acontece uma grande festa, como forma de ato
político; em que as mulheres vão às ruas para celebrar a emancipação das moçambicanas;
a força e bravura demonstrada por Josina Machel26, que faleceu em 07 de abril 1971, devido
a problemas de saúde, mas deixou um legado de força política e resistência feminina,
tornando-se também símbolo de representação da luta dessas mulheres.
O 07 de abril é marcado também pelo uso das capulanas. Nesse dia muitas
moçambicanas vestem-se com esse tecido de diferentes cores e estampas. Alguns grupos

23 Revista Tempo, 395, 22. 05. 1978, p. 37. Disponível em: Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo. Acesso
em 2018.
24Revista Tempo, 395, 22. 05. 1978. p. 3. Disponível em: Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo. Acesso em

2018.
25 SANTOS, Denise do Nascimento. Baú de Capulanas: utilização da capulana na construção de um material

didático sobre o feminino em Moçambique. 2017. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em História
da África) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, 2017. p. 22.
26 SANTOS, Amanda Carneiro. Lute como uma mulher: Josina Machel e o movimento de libertação em

Moçambique (1962-1980). 2018. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-13052019-113230/pt-br.php. Acesso em: 21 jul. 2019.

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gostam de comprar uma peça de capulana e dividir com as suas companheiras, outras com
mussiros27 em seus rostos, vão às ruas para celebrar o Dia da Mulher Moçambicana.
No campo das representações socioculturais a capulana marca um contexto muito
particular, pois pode ser usado de diferentes formas, não sendo pensado apenas, como um
tecido que serve para cobrir o corpo, mas que socialmente se criou códigos, que são
repassados por gerações e, que são reforçados por meio dos diferentes usos deste.

4. Capulana e a Moda em Moçambique


Sobre a moda em Moçambique, de acordo com o estilista moçambicano Nivaldo
Thierry, que já ganhou vários prémios e que é muito reconhecido em Moçambique, bem
como já representou Moçambique em passarelas de Macau, Angola, Portugal e Itália, pelo
seu trabalho e em particular por sua linha de acessórios (Única) que são feitos em capulanas.
Segundo o mesmo:

A moda cá em Moçambique eu acho que está a crescer, tá no bom passo a cada


dia surge um novo estilista com um novo conceito e isso é muito importante para o
mercado da moda, principalmente cá em Moçambique que o mercado ainda é
emergente. Há necessidade de se ter mais estilistas para se criar competitividade no
83
mercado, por que todos nós acabamos a ganhar, o consumidor acaba tendo mais
opções, acaba tendo mais preferências. 28

Sobre as capulanas como referências de inspiração em suas peças, Thierry destaca


suas impressões, relatando que:

A capulana na verdade tem um poder incrível, diferente dos outros tecidos,


especialmente cá em África, se calhar, por ser um tecido colorido, então acaba nos
identificando, um bocado, e eu busco sempre essa energia da capulana é que cada
capulana conta uma história, cada capulana é única, e para mim, todas as
capulanas são especiais, cada capulana tem seu potencial, eu acredito muito no
poder da capulana e por isso eu tenho essa linha de acessórios e que muita gente
conhece, que se chama Única. Eu acho que a capulana tem um potencial de se
internacionalizar como qualquer outro tecido a nível internacional, por ser algo
nosso, por ser algo que identifica muito a África e que facilmente qualquer estilista
pode se internacionalizar, especialmente os africanos usando a capulana, eles
podem furar o mercado internacional, por que é diferente, pois sempre que levo a
capulana para fora as pessoas ficam impressionadas com a estampa e o poder que
a própria capulana tem.29

A fala de Nivaldo Thierry é muito significativa no sentido de se perceber a ligação


que a capulana estabelece com a moda moçambicana. A representatividade das capulanas

27 Creme que se obtém friccionando o caule descascado dessa planta numa pedra com algumas gotas de água
e que depois pode ser aplicado na pele (ex; o mussiro é usado como máscara facial). Disponível em
https://dicionario.priberam.org/mussiro. Acesso em: 19 ago. 2019.
28 Entrevista com o estilista Nivaldo Thierry no Mozambique Fashion Week - MFW -2018. Entrevista feita por

Regiane Marques no ano de 2018 em Maputo - Moçambique. Essa entrevista faz parte do meu arquivo pessoal.
29 Idem.

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perpassa uma ideia preestabelecida sobre moda, não podemos dizer que a capulana é
apenas uma moda, mas que muitas tendências de moda, seja em Moçambique, ou no
exterior utilizam esse tecido como fonte inspiração para suas criações, por entenderem a
potencialidade em que o tecido carrega, bem como a versatilidade em se criar peças, que
vão desde o vestuário a objetos de decoração.
Nesse sentido, pode-se até considerar esse tecido como um objeto símbolo de um
patrimônio imaterial ou material30 de Moçambique, pois tem um valor histórico cultural e
simbólico muito marcante e que dialoga sobre diferentes vertentes da História de
Moçambique, podendo tecer experiências únicas desse país.
Falar de capulana não é falar apenas sobre moda, mas sobre identidade e
pluralidade, é falar sobre a História de Moçambique.
Segundo Haal, (2015):

Assim, identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de


processos inconscientes e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre “em processo’’, sempre’’ sendo
formada.31
84
Seguindo o que é colocado por Hall, as capulanas podem ser pensados como um
elemento cultural que transitam nesse espaço do tempo e se reconfiguram, reproduzindo a
identificação que se tem para a sociedade moçambicana, e permanecem como um
componente marcante na História do país, pois até os dias atuais é impossível visitar
Moçambique e não se encantar com as diferentes e distintas formas de uso desse tecido.

Considerações finais
Moçambique, assim como o Brasil, foi destruído pelo processo de colonização
portuguesa, não roubaram apenas suas riquezas materiais, mas vidas e consequentemente
suas culturas foram dizimadas. Mesmo após o processo de independência dos países, a
construção de elementos culturais foi e é um processo que exige um certo esforço, pois existe,
e sempre existiu, uma predisposição em aceitar a cultura e consequentemente a moda
eurocêntrica, que diante da opressão colonial foi vista como padrão de beleza e tendência
a ser seguida.

30Como pode ser visto em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234. Acesso em: 16 fez. 2021.
HALL, Stuart. “A identidade cultural na pós-modernidade”. Rio de Janeiro: Ed: 11ª. Editora DP&A,
31

2005. p. 38.

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Pensar as capulanas como um elemento representativo da História de Moçambique
é interessante a partir do ponto em que esse tecido dialoga com diferentes estruturas de
poder, pois não se trata apenas de um elemento da indumentária, mas de um tecido que
por meio das cores, estampas, comercialização e seus inúmeros usos, dialoga sobre a
sociedade moçambicana e suas pluralidades e particularidades.
No Brasil os tecidos que representam as culturas africanas são usados como parte da
moda afro brasileira e são (re)pensadas em um patamar de resistência, pois a indumentária
se coloca como um ato de posicionamento em valorização a estética preta, bem como um
ato de representação cultural afrodescendente, que também não cabe numa simples
definição de moda, pois é colocada como um fio condutor parte da luta antirracista e de
ativismo político.
Sendo assim, o mundo da moda, bem como da escrita acadêmica pode ser pensado
como um espaço de representação; escrever, produzir moda ainda é uma atividade
complexa, que infelizmente ainda é um monopólio de uma elite econômica e cultural que
sobejam o mercado com “sua moda” e suas literaturas de uma forma
unilateral/colonial/capitalista, etc, enquanto os afrodescendentes e africanos, são excluidos
do processo, é importante ocupar esses espaços em autoafirmação, repensando esses 85
conceitos e protagonizando uma nova era na moda africana, afrodescendente e
consequentemente na História do mundo, trazendo para o diálogo as nossas representações
e nossos anseios enquanto estilistas, mulheres, homens negros, pois nos foi negado social e
historicamente esses espaços, é que nos urge a conscientização do nosso povo quanto a sua
importância histórica e cultural.
Através da indumentária é possível se analisar muitos contextos históricos. E estando
em Moçambique, um país da África, é perceptível a cada dia como é importante os debates
sobre essas temáticas. Sendo relevante prosseguir em escrever a história da África
incorporando as sugestões de Joseph Ki-Zerbo, que tratou de sugerir que o método de
tratamento dos relatos e fontes históricas sobre este continente precisa ser feito a partir de
suas próprias fontes, documentos e historiadores. Ki-Zerbo propunha que “para não substituir
um mito por outro, é preciso que a verdade histórica, matriz da consciência desalienada e
autêntica, seja rigorosamente examinada e fundada sobre provas” 32. Como os usos dados a
um elemento tipicamente cultural dos moçambicanos como as capulanas, por exemplo, e
que sejam divulgados a partir de uma óptica negra que perceba os processos históricos que
puseram o continente na situação em que hoje ele está. Desse modo quando nossa história

KI-ZERBO, J. Introdução Geral. p. XXXIII. in: KI-ZERBO, J. História Geral da África. Vol. I. 2ª ed. rev. Brasília:
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Unesco, 2010. p. 33.

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seja contada, tenham grandes representações de nós mesmos, pois o mundo da moda,
acadêmico, da música, do cinema entre tanto outros, precisam ser (re)pensados também
com uma importante ferramenta para se (re)construir mentalidades, quebrar preconceitos,
paradigmas e estereótipos.

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