Dogma Da Imaculada
Dogma Da Imaculada
Dogma Da Imaculada
Introdução:
1
Cf. R. LAURENTIN, A questão marial, Ed. Paulistas, Lisboa, 1966. K. RAHNER – M. DIRKS, Per un
nuovo amore a Maria, Morcelliana, 1968, E., SCHILLEBEECKX, Maria mãe da redenção, Vozes,
Petrópolis, 1968. J. RATZINGER, La figlia di Sion, Jaka Book, Milano, 1978.
2
Documento de Puebla n. 301. O Papa Paulo VI por sua vez ensina : “Não se pode falar da Igreja sem que
esteja presente Maria”, cf. in Marialis Cultus, n.28.
1
fundamental3 em Mariologia tornou-se importante, e o próprio Vaticano II indica este
caminho, ao inserir seu ensinamento sobre Maria na Lumen Gentium. Sem destronar o
princípio fundamental da maternidade divina, hoje a tendência parece estar na consideração
de um princípio cristológico-eclesiológico qual seja o de Maria como modelo de
discipulado para toda a Igreja. Discípula perfeita, tal é este princípio: Maria via e ouvia
tudo o que acontecia com Jesus e meditava em seu coração (Lc 2,51). Assim, ressalta-se a
relação de Maria com o Pai, ao dizer seu sim, com o Espírito Santo, que instrui o coração
dos fiéis convidando-os à fidelidade.
Este princípio indica uma mariologia cristo-pneumatológica, tudo nela é devido a
Cristo e por causa de Cristo4. Todos os títulos mariológicos são consequentemente títulos
eclesiológicos: ela é tipo e ícone da Igreja.
O documento de Paulo VI, Marialis Cultus (1974), pode ser considerado uma
espécie de “diretório” do culto a Maria, correspondente ao capítulo VIII da Lumen
Gentium. Os Ensinamentos do Vaticano II a respeito de Maria estão em vigor. Mas hoje
sente-se em certos ambientes teológicos saudades de algumas orientações anteriores ao
concílio. Sente-se renascer inclusive em parte do povo católico uma nostalgia das práticas
devocionais marianas tradicionais, apesar do grande esforço que se faz em muitos lugares
de peregrinação Mariana, para educar a fé e a valiosa religiosidade do povo.5
As Igrejas da Reforma não desenvolveram uma mariologia, nem culto e nem
devoção a Maria; no entanto, se nota uma crescente aceitação do falar sobre Maria, como a
serva fiel expressa no Magnificat6. De maneira sóbria e comedida se introduzem hoje,
menções a Maria nos cânticos e celebrações das Igreja Evangélicas. Isto se deve aos
estímulos do ecumenismo católico, à teologia feminista, à espiritualidade de comunidades
evangélicas nas quais Maria é observada com simpatia.
O que constatamos é que a teologia evangélica está percebendo que, para o futuro,
não poderá esquivar-se do tema mariológico. Redescobre-se também que em Lutero e nos
reformadores, Maria não é ela mesma um tema importante de controvérsia teológica; a
polêmica de Lutero gira no essencial sobre a práxis do culto exagerado e até falso a Maria.7
Aqui o tema específico é o terceiro dogma, da Imaculada Conceição de Maria. É um
tema complexo e vasto, para não dizer polêmico. Pode-se abordá-lo por muitos ângulos,
porém, é necessário frisar dois pontos importantes, à maneira de introdução ao tema, ou
pressuposto.
Em primeiro lugar, a “Imaculada Conceição” é solenidade do ano litúrgico,
reconhecida pela reforma litúrgica do Vaticano II e celebrada pelos fiéis de maneira toda
especial no Brasil, onde a padroeira é Nossa Senhora da Imaculada Conceição “Aparecida”.
3
Roschini explica o primeiro princípio ou principio fundamental de várias maneiras, cf. in G. M. ROSCHINI,
Mariologia, v. I, Ed. Belardetti, Roma, 1947, pp. 323-324.
4
“La géneration ou conception virginale de Jésus n’est pas d’abord un mistère concernant Marie. C’est une
donée christologique qui vise en premier lieu la personne de Jésus. Ce n’est que dans un temps second,
comme par un choc en retour, que sa réalité clairement affirmée s’est retourné en source d’honneur et de
gloire pour la Vierge Marie”, B. SESBOUÉ (org.), Histoire des dogmes V. III- Les signes du salut, Desclée,
Paris,1994, p.573.
5
Sobre a evangelização nos santuários marianos, cf.: C. I. GONZALES, Maria evangelizada e
evangelizadora, Ed. Loyola e CELAM, S. Paulo, 1990, pp. 353-367. Cf. tb.: Pontifício Conselho para a
Pastoral dos migrantes e itinerantes, Santuário. Memória, Presença e Profecia do Deus vivo, Paulinas, S.
Paulo, 1999.
6
Cf. LUTERO, Martim, Magnificat. O louvor de Maria, Ed. Sinodal & Ed. Santuário, Aparecida, 2015.
7
Cf. MARON, G., Maria na teologia protestante, in Concilium 188 (1983) p. 69.
2
É de se notar que a festa litúrgica de Nossa Senhora da Conceição foi estendida à Igreja
Universal por Clemente XI já em 1708, nove anos, portanto, antes do encontro da imagem
de Nossa Senhora Aparecida nas águas do rio Paraíba aqui no Brasil. Encontro que
completa 300 anos neste ano de 2017 e que estamos celebrando com solenidade, inclusive
com o Ano Mariano especial para o Brasil por causa desta data.
No entanto, permanecem dificuldades em aceitar esse mistério. Muitas vezes a
Imaculada Conceição é confundida com a concepção virginal de Jesus ou virgindade de
Maria ou, senão, vista como ausência total das tendências e impulsos sexuais. Há ainda os
que relacionam a Imaculada Conceição de Maria à sua concepção por parte de seus pais, ela
teria sido concebida somente segundo a carne, mas não segundo o espírito. Deve-se excluir
este erro ao querer afirmar que a concepção de Maria se deu à maneira da concepção
virginal de Jesus (outro dogma mariano). Há ainda quem julgue exorbitante este privilégio
que afastaria Maria dos fiéis, gerando desânimo e fatalismo dado à impossibilidade de
imitá-la.
Em segundo lugar, a Imaculada Conceição é envolvida na discussão teológica sobre
o pecado original e constitui-se em ponto de atrito no diálogo ecumênico com os
protestantes e ortodoxos, pois teme-se que esta doutrina subtraia Maria do fato de ser
redimida por Cristo juntamente com toda a humanidade, já que sendo imaculada desde o
início de sua existência, ela estaria fora da influência do pecado.8
Quanto ao tema aqui proposto, a questão fundamental é a seguinte: seria necessário
proclamar um dogma para afirmar que Maria, perfeitamente redimida por Cristo, nunca
provou o pecado?
Aqui se torna necessária uma consideração sobre o dogma, já que toda a seriedade
e – por que não – polêmica acerca do tema tratado é derivada do fato de se constituir em
uma declaração dogmática e não somente em uma opinião teológica9.
Dogma no sentido estrito é uma verdade revelada, vinculante e declarada
formalmente pelo Magistério pastoral. Em sentido amplo, indica qualquer verdade de fé. O
dogma deve ser uma verdade contida na Revelação (elemento material); deve ser também
uma verdade que a Igreja formulou expressamente e propôs expressamente como objeto de
fé (elemento formal).
Os dogmas não têm outro sentido que indicar o caminho da salvação e a salvação é
Jesus. No dogma e na sua interpretação teológica, deve-se considerar a fidelidade ao
passado, mas também a abertura ao futuro da fé.10 Desde o início da Igreja, o dogma tem
importância porque mostra a consciência da Igreja em poder e dever decidir sobre assuntos
crusciais na unidade do Espírito Santo (cf. At 15,28). Assim o dogma não aparece como
distinção à fé geral da Igreja, mas antes como a expressão normal da fé. A função positiva
do dogma é expressar em linguagem teológica aquilo que na liturgia se expressa na
linguagem de hinos.
8
Cf. S. De FIORES, Imaculada, in S. De FIORES- S. MEO (org.), Dicionário de Mariologia. Paulus, S.
Paulo, 1995, p. 598-599.
9
Essa opinião pode ser chamada de teologumeno (nota explicativa).
10
LADÄRIA, L. F., O que é um dogma. O problema do dogma na teologia atual, in Karl H. Neufeld (org.),
Problemas e perspectivas de Teologia Dogmática, Loyola, S. Paulo, 1993, 98.
3
É sabido que nem toda declaração dogmática tem a mesma importância. Pode-se
dizer que existem dogmas centrais, nos quais se expressam os fundamentos da fé cristã. E
dogmas periféricos, cuja verdade e sentido estão relacionados com os dogmas centrais.
Nestes primeiros, estão os dogmas mariológicos – exceto o dogma da maternidade divina,
mais intimamente relacionado a Jesus Cristo.
Uma declaração ou formulação dogmática é a expressão do fim de um processo de
conhecimento na busca de compreender melhor o dado da fé. A declaração dogmática
requer uma interpretação. Porém, mesmo quando a afirmação histórica torna razoável a
afirmação litúrgico-devocional, não lhe tira o caráter de mistério.11
Hoje se sabe da repulsa a tudo que possa significar uma declaração autoritativa em
matéria de religião. Religião que, mesmo com seu reflorescimento nas concentrações de
massa, é relegada na pós-modernidade para o terreno dos assuntos privados e particulares.
O que pensar dos dogmas? É certo que o dogma pode degenerar em dogmatismo, e
isto é contraproducente. Porém, deve-se admitir que a existência dos dogmas é uma
necessidade e, corretamente entendido, é algo sumamente valioso para a Igreja12. Carl
Gustav Jung, que não era teólogo, se expressa de maneira curiosa sobre os dogmas:
“Uma teoria científica logo é superada por outra, ao passo que o dogma perdura
por longos séculos. O Homem-Deus-Sofredor deve ter pelo menos cinco mil anos de
existência, e a Trindade talvez seja mais antiga. O dogma constitui uma expressão da alma
muito mais completa do que uma teoria científica, pois esta última só é formulada pela
consciência. Além disso, através de seus conceitos abstratos, uma teoria mal consegue
exprimir o que é vivo, enquanto o dogma, utilizando-se da formula dramática do pecado,
da penitência, do sacrifício e da redenção, logra exprimir adequadamente o processo vivo
do inconsciente”. 13
Por mais rica que seja sua verdade intrínseca, o dogma – reduzido, de certa maneira,
a formulas identificatórias breves, digitais e estáticas – é dotado, por assim dizer, de um
poder instrumental salvador. Como se, mesmo sem solucionar problema algum humano, os
solucionasse todos de uma vez, colocando o homem, quase que por encanto, numa
existência diferente donde todas as questões de sentido desaparecem.14
Disto aufere-se que um povo e igualmente uma Igreja nunca se identificam pela
exatidão de um fato material, mas por um sentido constitutivo, por algo no que se crê. “A fé
conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio amor traz uma luz...Sem o
amor, a verdade torna-se fria, impessoal, pesada para a vida concreta da pessoa”.15
11
SOBRINO J., Cristologia a partir da América Latina, Vozes, Petrópolis, 1983, p.. 334
12
IDEM, in op. cit., pp.320-335
13
Psicologia e religião, Vozes, Petrópolis, 1990, p. 51.
14
SEGUNDO J. L., El dogma que libera – Fé, revelación y magistério dogmático, Sal Terrae, Santander,
1989, p. 194. Esclarecedor o que escreve Clodovis Boff : “Os dogmas não são barreiras para o pensamento,
mas ao contrário, são corrimão que, por um lado, protegem e, por outro, apoiam a ascensão para o mais
alto”, in Teoria do Método teológico, Vozes, Petrópolis, 1998, p. 47.
15
Papa Francisco, Lumen Fidei, n. 27
4
complementar dos dogmas marianos junto aos dogmas cristológicos, isto é o
aprofundamento dos dogmas cristológicos e eclesiológicos.
A Igreja Católica conhece quatro dogmas marianos, sendo que os dois primeiros
(maternidade e virgindade) são herdados da Igreja antiga e não foram contestados pela
reforma luterana. O terceiro dogma mariano (Imaculada Conceição) data de 1854 e o quarto
(Assunção) de 1950. Aqui como já foi sinalisado se fará a tratativa do terceiro dogma. A
Imaculada Conceição de Maria assume particular relevo na teologia e na vida eclesial, tanto
pela complexidade de sua história, como pelo seu entrelaçamento com a problemática
teológica, ecumênica e pastoral.
Este dogma foi proclamado pelo papa Pio IX em 8 de dezembro de 1854 com a
“bula” Ineffabilis Deus. Ele se constitui em uma declaração solene na qual se afirma a
imunidade de Maria do pecado. Assim fica emitido um juízo infalível, próprio das
declarações dogmáticas como verdade de fé vinculante. A formula que o define diz:
• “Depois de oferecer sem interrupção a Deus Pai, por meio de seu Filho,
com humildade e penitência, nossas orações privadas e as orações públicas
da Igreja, para que se dignasse dirigir e corroborar nossa mente com a
virtude do Espírito Santo, implorando o auxílio de toda corte celeste, e
invocando com gemidos o Espírito Paráclito, e inspirando-nos Ele mesmo,
para honra da Santa e indivisa Trindade, como decoro e ornamento da
Virgem Mãe de Deus, para a exaltação da fé católica e incremento da
religião cristã, com a autoridade e Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-
aventurados apóstolos Pedro e Paulo e nossa, nós declaramos,
proclamamos e definimos que a foi revelada por Deus a doutrina, segundo
a qual a beatíssima Virgem Maria, ao primeiro instante de sua conceição,
foi preservada incólume de toda mancha de pecado original, por causa de
especialíssimo privilégio de graça do Deus onipotente, em vista dos méritos
de Jesus Cristo, o Salvador do gênero humano, e portanto, deve ser sólida
e constantemente crida por todos os fiéis. Portanto, aqueles que
presumirem em seu coração contra o que nós acabamos de definir, que
Deus tal não o permita, fiquem sabendo e entendam que estão se
condenando por sua própria conta, que naufragaram na fé, e que se
separaram da unidade da Igreja, e que ademais, se ousarem manifestar
com palavras ou por escrito ou de outra qualquer maneira externa, o que
sentem em seu coração, pelo mesmo motivo fiquem sujeitos às penas
estabelecidas por direito.16
16
Epist. Apost. “Ineffabilis Deus”, versão bilíngue latim-espanhol in H. MARIN (org.), Doctrina
Pontifícia v. IV – Documentos Marianos, BAC, Madrid, 1954, p. 190-191, cf. tb. DS 2803.
5
Deus não a houvesse preservado desde o primeiro instante da sua conceição por
privilégio particular fundamentado nos méritos redentores de Cristo.
É pertinente registrar que esta definição dogmática que vai encontrar ferrenhos
opositores17 foi levada avante por Pio IX ante os insistentes pedidos que chegavam a
Roma de várias partes da Igreja. O papa submeteu a doutrina a um último estudo, e fez
a declaração somente depois de consultar todos os bispos (uma espécie de concílio por
escrito), recebendo parecer favorável (546 sobre 603), no sentido de declarar esta
verdade como “verdade revelada”, e da oportunidade de proceder à definição.
Também convém registrar que outros atos menos importantes e solenes precederam
esta declaração solene de Pio IX. Recordemos o Concílio Lateranense IV (649) que
chama Maria de “sempre Virgem e Imaculada”; o Concílio de Constança (1416) e o de
Basileia (1439) cujos decretos em favor da Imaculada Conceição foram aprovados,
mas não entraram em vigor, pois o papa anulou as decisões deste concílio. E por fim, o
Concílio de Trento, o qual declara não ser sua intenção incluir a “bem-aventurada
Imaculada Virgem Maria” no decreto concernente à universalidade do pecado. Atribui,
portanto a Maria, o apelativo de Imaculada. Os papas posteriores fizeram eco à
declaração de Pio IX: Pio X com a bula Ad diem illum, no quinquagésimo ano da
declaração (1904), e Pio XII no centenário (1954), com a encíclica Fulgens corona.
17
Entre os opositores enumeram-se os Velhos Católicos da Baviera (Dolinger, Schulte) e vários outros
grupos mais próximos do racionalismo e dos modernistas: A Harnack, L. Durand, H. Réville, Cf. in
Enciclopédia Mariana Teotócos, Ed. Massimo, Milano, 1957, 2a. ed. P.338.
18
Cf. Lumen Gentium n. 12. Cf. tb. Comissão Teológica Internacional, O Sensus Fidei na vida da Igreja,
Paulinas, S. Paulo, 2015.
19
Santo Agostinho, no entanto, declara que, para honra de Deus, não quer falar de Maria quando trata do
pecado, porque acredita que ela recebeu de Deus todas as graças necessárias para não incorrer nele (cf. De
natura et gratia, 36,46). Alguns escritores atribuem a Maria certa falta de firmeza na fé quanto à missão de
seu Filho como p. ex.: Orígenes em Omelie in Luca,17; S. Basílio, Epistulae, 260,9; S. Cirilo, Commentario
in Giov., 21,2. Já o Proto-evangelho de Tiago, apócrifo do séc. II, que teve grande influência na liturgia grega,
vai advogar uma concepção miraculosa para Maria, embora seja um escrito à margem da Tradição Apostólica.
6
uma concepção imaculada. Alguns símbolos de fé desta época a chamam, no entanto, de
Santa.20
No final do século VII aparece no Oriente a festa litúrgica da Conceição de Maria,
que veio na perspectiva do anúncio do nascimento de Jesus e de João Batista. Ela é
chamada “santíssima” e “puríssima”, cuja festa é celebrada dia nove de dezembro.21 O
primeiro testemunho conhecido, acerca da concepção de Maria sem pecado original, é de
Juliano de Eclana no século V, pelagiano combatido por Santo Agostinho, ao qual acusou
de colocar Maria no rol dos pecadores. Agostinho o combate alegando que, em Maria, a
ausência do pecado é um privilégio único de preservação do pecado por meio da graça de
Cristo. Ele mesmo não duvida em afirmar que “a piedade impõe que se reconheça Maria
sem pecado”.22 Esta polêmica de Agostinho com os pelagianos vai fazer com que, por
muitos séculos no ocidente, a ideia da Imaculada Conceição de Maria seja um assunto
conflitivo, o que não ocorreu no oriente.23
A festa da Imaculada Conceição de Maria chega ao ocidente através do sul da Itália
trazida por monges ortodoxos e depois à Inglaterra, trazida provavelmente pelos cruzados
que regressaram. Desaparece por um tempo e renasce na Europa após o ano 1127. A
difusão da festa, antes celebrada somente nos mosteiros, fez surgir uma grande controvérsia
em torno da Imaculada Conceição. Quando a Igreja de Lyon (França) quis celebrar esta
festa, levanta-se para protestar ninguém menos que S. Bernardo (+1153), que endereçou
uma carta ao cabido de cônegos de Lyon, alegando que a festa é ignorada no ritual da Igreja
que vigorava então. Não poderia ser aprovada pela razão de ser ignorada da antiga
Tradição, pelo que não se pode fazer frente aos Santos Padres da Igreja.
São Bernardo achava que bastaria afirmar a santificação de Maria no seio materno
antes de seu nascimento, não havendo necessidade de afirmar sua isenção do pecado desde
o momento de sua concepção. Esta oposição de Bernardo visava a não excluir Maria da
redenção alcançada por Cristo. São Bernardo gozava de muita autoridade e encontrou
muitos adeptos, mas também opositores.24
A partir do século XI, por influência de S. Anselmo, a teologia começou a superar a
explicação material da transmissão do pecado original vinculada ao prazer sexual
generativo. A explicação se orientou para a solidariedade moral e jurídica com o primeiro
homem Adão, o que facilitava a admissão de uma exceção. Restava outro obstáculo a ser
superado quanto à fé na universalidade da redenção operada por Cristo: não teria Maria
sido também ela redimida por Cristo? Esta era a razão pela qual muitos escolásticos se
opunham à Imaculada Conceição. Entre eles S. Tomás de Aquino (+1274) e São
Boaventura (+1274).
Embora na questão do dogma da Imaculada tenha precedência a intuição da devoção
popular do povo cristão, o qual como que “por instinto”, compreendeu que em Maria
20
“La santidad personal de Maria viene afirmada comúnmente en el siglo II como un corolário natural de su
misión maternal y de su missión soteriológica” , ALDAMA J. A., Maria en la Patristica de los siglos I y II,
BAC, Madrid, 1970, p. 370
21
R. LAURENTIN, Breve trattato su la Vergine Maria, Ed. Paoline, Milano, 1987, p 89-90. Cf. tb., E.
LODI,Os santos do calendário romano, Paulus, S. Paulo, 2001, pp.586-587.
22
Cf. in De natura et gratia, 42, PL 44, 267.
23
R. LAURENTIN, Idem, pp.74-75. Cf. Tb. J. M. CARDA PITARCH, El misterio de Maria, Ed. Atenas,
Madrid, 1986, pp. 58-59
24
Enciclopédia Mariana, Teotocos, Ed. Massimo, Milano, 1957, 2. ed. P. 56.
7
jamais poderia haver sombra de pecado, a teologia também ofereceu sua contribuição25. O
primeiro tratado de que se tem notícia é do teólogo beneditino Eadmer de Canterbury
(+1134), discípulo de Santo Anselmo, intitulado Tractatus de Conceptione Sanctae Marie.
Ele defende a intuição do povo cristão e demonstra a possibilidade através da distinção
entre: concepção ativa (no pecado) e concepção passiva (sem pecado). Porém é Duns
Scotus (+1308) quem vai apresentar um argumento forte que por fim vai prevalecer, o
argumento da “redenção preservativa”.
Duns Scotus, ensinava em Paris, onde o ambiente era desfavorável à ideia da
Imaculada Conceição. Ele vai aproveitar uma intuição de seu mestre Guilherme Ware.
Scotus vai explicar que o privilégio de Maria Imaculada não só não atenta contra a
universalidade da redenção, mas inclusive manifesta sua eficácia “preservando-a” do
pecado original. O argumento apresentado salienta o fato de que a Imaculada Conceição
não é uma exceção à redenção de Cristo, mas um caso de ação salvífica perfeita e eficaz do
único salvador Jesus Cristo:
25
Leve-se em conta que mesmo sem ser declarado como dogma, por volta do século XII, a Imaculada
Conceição já estava institucionalizada, cf. LE GOFF, J., Em busca da Idade Média, Civilização Brasileira,
Rio, 2005, p. 202.
26
D. SCOTUS, Ordinatio 3, d. 3, q.1.
27
Cf. G. MIEGGE, A Virgem Maria, ensaio de história do dogma, Ed. Presbiteriana, S. Paulo, 1962, p.129.
8
É de se notar a manifestação de Alexandre VII publicando a bula Sollicitudo Omnia
Ecclesiarum (1661), na qual se declara favorável à Imaculada Conceição de Maria e
proibindo que seja atacada de qualquer forma. Também Clemente IX determinou em 1708
que a data de 8 de dezembro fosse festa obrigatória.
A discussão sobre o assunto estava serenada quando o papa Pio IX, em 1848,
constitui uma comissão teológica para examinar o assunto. A comissão considera
“moralmente segura” a crença na imaculada conceição de Maria, mas aconselha o papa a
consultar os bispos. O papa então consulta o episcopado através da encíclica Ubi primum
(1849). O resultado é uma grande convergência a favor da definição dogmática. O papa
manda preparar a bula da definição dogmática a qual passa por oito redações, até a redação
definitiva proclamada no dia 8 de dezembro de 1854, na basílica de S. Pedro, em Roma.
A Sagrada Escritura não fala da origem histórica de Maria e nem fala de nenhum
privilégio quanto a sua concepção. Porém a Igreja anteviu de forma germinal em algumas
passagens bíblicas a verdade definida no dogma. Do Antigo Testamento, a citação mais
substancial é o Protoevangélio de Gn 3, 15: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua
descendência e a dela”. Neste oráculo os Santos Padres viram prefigurados tanto Cristo
Redentor como sua mãe.
No Novo Testamento, a citação mais usada é de Lucas 1,28: “Alegra-te, cheia de
graça”. A estas duas citações seguem-se inúmeras outras que aparecem na própria bula
Ineffabilis Deus. A bula ensina que a Escritura Sagrada, lida com os olhos da fé da Igreja,
revela uma plenitude de sentido que ultrapassa a formulação do texto, isto é, a letra.
A Igreja, guiada pelo Espírito Santo, sondou e acolheu a riqueza das palavras
bíblicas a respeito de Maria e conclui pela sua santidade sem mácula. A Bíblia retrata a
ação purificadora e libertadora de Deus em seu Povo, para executar seu projeto: uma nova
humanidade redimida, santa e imaculada como ele projetou: “Em Cristo o Pai nos escolheu
antes da fundação do mundo, para sermos santos e imaculados, diante da sua face na
caridade (Ef 1,4)” e “Sede perfeitos, como vosso Pai é perfeito” (Mt 5,48).
Maria é personificação deste Povo Santo, Morada de Deus, Esposa Imaculada e
Filha de Sião. Desta forma a Imaculada Conceição é o início que traz em si a antecipação
do fim. Maria nos mostra no tempo de nossa peregrinação o que seremos na consumação da
humanidade em Deus. Virá um dia em que Deus poderá dizer a toda a humanidade
prefigurada em Maria Imaculada: “Tu és toda bela e não há mancha nenhuma em ti” (Ct.
4,7).
O argumento bíblico na declaração dogmática da Imaculada Conceição não fica
sozinho valendo por si só, mas é englobado pela Tradição. O argumento bíblico é
desenvolvido à medida que os Padres e Escritores eclesiásticos interpretam as Escrituras a
favor da santidade de Maria livre do pecado em vista de sua missão. Aqui não serve a
simples dedução racional fundada em dados e evidências textuais contidos em passagens
bíblicas.
O progresso da inteligência da Revelação não se realiza na Igreja necessariamente
por deduções lógicas a partir de determinados lugares da Sagrada Escritura. Serve para
reflexão neste sentido o que escreveram duas teólogas:
9
• “O dogma de fato não é uma repetição da Escritura, não é tampouco uma
nova revelação: é um desenvolvimento homogêneo, percebido por instinto
de fé – de tudo que já se encontra no horizonte global da Revelação. Não é
suficiente, portanto, apoiar-se apenas sobre a pessoa de Maria, nem sobre
o ‘apriori’ de sua maternidade e virgindade, para daí deduzir a afirmação
de que esteve preservada do pecado, inerente à condição humana desde o
princípio. É preciso voltar os olhos sobre os dados da Revelação de que se
dispõe – por mais raros que sejam – e procurar fazer a ligação destes com
a intuição da fé popular que, desde o princípio, proclamou a absoluta
santidade da mãe de Jesus”.28
Professar que Maria é cheia de graça, como indica a Escritura Sagrada, significa que
Deus como bondade suprema, se autodoou a esta mulher predestinada. E o sentido último e
secreto da imaculada conceição não reside em Maria, mas no próprio Deus em sua vontade
encarnatória. Em Maria, Deus prepara a morada digna para o Verbo que se faz carne. A ela
coube a ação de colaborar na fé com inteira disponibilidade.
10
Na perspectiva acima, seria incorreto apresentar a Imaculada Conceição como
privilégio ou exceção ou condição isolante do resto da humanidade. Menos ainda podemos
dizer que é uma graça condicionada à fidelidade e merecimento de quem a recebe. A
salvação é ato livre e soberano de Deus, exclui toda e qualquer autojustificação. A
Imaculada Conceição é um sinal da graça de Deus que se realiza mesmo antes da resposta
positiva da criatura sinalizada na fé e na liberdade orientadas para Deus, e nas obras. É
absoluta iniciativa do Pai na qual impera somente a graça (sola gratia).32 Jesus é a graça
que faz de Maria a criatura mais bem relacionada com Deus Pai, Filho e Espírito Santo.
Sendo a salvação-santidade a participação na vida da Trindade, a Imaculada
Conceição evidencia a santidade ímpar de Maria como o exprime o Vaticano II ao afirmá-la
“...imune de toda mancha de pecado, plasmada e feita nova criatura pelo Espírito Santo,
enriquecida desde o primeiro instante de sua concepção com o esplendor de uma santidade
inteiramente singular”33.
Por outro lado, o ponto de partida da teologia da Imaculada Conceição não é Adão
nem o pecado original, mas Cristo, pois “só se pode compreender Maria partindo de
Cristo”.34 Jesus é o único salvador e redentor; é também o salvador e redentor de sua mãe:
ela “foi preservada do pecado em vista dos méritos de Jesus Cristo salvador do gênero
humano”, esclarece a bula Ineffabilis Deus, e foi, portanto, “redimida de modo mais
elevado”.
A Imaculada Conceição é caso de redenção antecipada e perfeita, por causa do valor
retroativo do mistério pascal de Cristo e de sua aplicação máxima à sua mãe. Podemos
dizer que Maria é a “maior perdoada”, pois, recebeu uma remissão tão plena que a
resguardou de toda a culpa: “A Imaculada Conceição é o maior perdão de Deus”.35 A razão
última da Imaculada Conceição continua sendo o amor gratuito de Deus e o seu
fundamento próximo é a prerrogativa de mãe de Jesus que inclui uma santidade
proporcional à união com seu Filho.
A atribuição da Imaculada Conceição a Maria se harmoniza com sua missão de Mãe
de Deus e colaboradora na obra da redenção. É um exemplo de redenção por pura graça,
que provoca nela uma resposta de fé total no Deus santo que a santificou. É começo de um
mundo novo com um fruto não envenenado pela serpente. Maria, a cheia de graça, é a única
pessoa que dá condição humana para que a plenitude da graça salvadora possa assumir a
nossa condição humana, através de seu filho Jesus.
Dizer que Maria é preservada e isenta de todo pecado implica admitir que Maria,
como todo ser normal, sentia as distintas paixões da vida com suas implicações, mas a
diferença é que ela conseguiu orientar tudo num projeto santo, a ponto de ser plenamente
filha de Deus, irmã de todos e livre senhora do mundo. Mostrando-nos que o paraíso não
está perdido e que o Reino não é algo do futuro, mas já está presente em Cristo seu Filho.
Maria Imaculada mostra que o projeto de Deus é a graça original na qual ele criou o
ser humano: “Maria é imaculada, ela mostra-nos, no tempo da peregrinação, o que seremos
32
“A Imaculada Conceição é um triunfo somente da graça de Deus: sola gratia”,cf. in R. LAURENTIN, in
op. cit., p. 183.
33
Lumen gentium 56. Cf. tb. R. LAURENTIN et aliis in Nossa Senhora na Lumen Gentium, Paulinas, Caxias
do Sul, 1969.
34
K. RAHNER, L’immacolata concezione, in Saggi di Cristologia e Mariologia, Paoline, Roma, 1965, p.416.
35
S. de FIORES, in op. cit., p. 611.
11
na consumação da humanidade em Deus... Enfim emergiu na criação um ser que é só
bondade: o deserto é fértil” 36.
O papa Paulo VI notava em 1974 que, no culto a Maria, devido a seu caráter
eclesial, se reflete a preocupação da Igreja em relação à unidade dos cristãos. A Mariologia
tem uma dimensão ecumênica.37 No diálogo ecumênico com outras denominações cristãs,
o dogma da Imaculada Conceição representa uma questão espinhosa. Considerando tal
situação, existem teólogos católicos que chegam até mesmo a propor uma “revisão” do
dogma.38
Á época da declaração dogmática, houve uma clara recusa à posição romano-
católica, expressa principalmente na obra do luterano Eduard Preuss,”39 se bem que houve
também algumas “amáveis adesões”. Estes dois pólos continuam existindo no
protestantismo: “compreensão calorosa e rígida recusa da mariologia”.40 Os protestantes
reconhecem a santidade de Maria na comunhão dos santos, mas não aceitam que por isso se
deva chegar, a partir da fé em Cristo, a uma declaração dogmática.
Entre os ortodoxos, a Imaculada Conceição só pode ser elogiada e não
dogmatizada.41 A passagem da fé expressa na piedade e no louvor ao dogma solenemente
definido constitui hoje um capítulo sério do contencioso ecumênico. Seu conteúdo, sua
formulação e seu fundamento suscitam sérios debates.
Os cristãos da Reforma objetam com a falta de base escriturística para o dogma e os
ortodoxos veem este dogma baseado numa visão demasiado jurídica da redenção, segundo
a qual Maria se benificiaria antecipadamente dos méritos de Cristo.
O diálogo ecumênico dará aqui a oportunidade aos católicos de colocarem em
prática o princípio da “hierarquia das verdades” como foi formulado pelo Vaticano II na
Unitatis Redintegratio n. 11.42 O diálogo ecumênico deverá examinar, em último caso, até
que ponto o dogma da Imaculada Conceição constitui, não uma novidade introduzida pelos
católicos, mas uma interpretação de um dado da fé cristã, cujo último fundamento é a
Sagrada Escritura, como acreditam os católicos.
O diálogo ecumênico, quanto à discussão sobre o papel de Maria no mistério da
salvação, deve prosseguir harmonizando as várias vertentes de compreensão. Deus
necessita da fé de Maria que acolhe sua Palavra. Ela é a grande crente, como destaca o
protestantismo; Deus, porém, necessita igualmente de sua resposta criadora, sua
36
cf. L. BOFF, O rosto materno de Deus. Ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas.
Petrópolis, Vozes, 1995, pp. 142-143.
37
Cf. Marialis Cultus, n.32.
38
“As duas definições modernas sobre Maria feitas na Igreja católica precisam ser redefinidas. Essa
redefinição deveria ser feita num âmbito ecumênico, de tal forma que toda a tradição cristã contribua para
ela”, G. H. TAVARD, As múltiplas faces da Virgem Maria, Paulus, S. Paulo, 1999, p. 263. Nesta mesma obra
o autor à página 251 diz ser o dogma da Imaculada Conceição uma arma do papado contra a modernidade.
39
Cf.: A doutrina romana da Imaculada Conceição exposta de acordo com as fontes e refutada pela palavra
de Deus (1865).
40
G. MARON, Maria na Teologia Protestante, in Concilium 188 (1983) 981.
41
Cf. N. Nissiotis, Maria na Teologia Ortodoxa, Idem, p. 963.
42
GRUPPO DI DOMBES, Maria nel disegno di Dio e nella comunione dei santi, Ed. QiQajon-Comunità di
Bose, Magnano, 1998, pp. 122-123.
12
colaboração pessoal, como destaca o catolicismo e, assim, Maria se torna lugar da
transparência do Espírito Santo como destacam os ortodoxos.
43
Cf. PAULO VI, Marialis Cultus, n. 24. Cf. tb., Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos, Diretório sobre piedade popular e liturgia – princípios e orientações, Paulinas, S. Paulo, pp.
157-178.
44
E. D. PIVA, A Imaculada na piedade popular luso-brasileira, in S. R.da COSTA, Imaculada Maria do
Povo, Maria de Deus, Vozes, Petrópolis, 2004, p. 175.
45
Portugal foi conhecido como Terra de Santa Maria. D. Afonso Henriques, fundador da dinastia portuguesa
em 1139, dois anos após a fundação do Reino, em 1142, coloca a nação sob o amparo de Maria, invocando-a
como mãe e protetora de todos os portugueses. Em referência à Imaculada Conceição, em 1640, o rei D. João
IV, proclamou o patronato de N. Sra. da Conceição sobre o reino de Portugal, estabelecendo também que as
universidades de Coimbra e Évora concederiam o grau acadêmico somente àqueles que jurassem defender a
Imaculada Conceição da Virgem Maria. cf. in C. BOFF, Nossa Senhora e Iemanjá, Maria na cultura
Brasileira, Vozes, Petrópolis, 1995, pp. 9-11.
46
E.D. PIVA, in op. cit., p.182.
13
A imagem da Conceição Aparecida representa uma nova configuração da Imaculada
para o povo brasileiro, uma configuração que re-desperta a dignidade étnica e social dos
que mais tinham sofrido e sofrem, os escravizados de ontem e de hoje.47
A Imaculada é mãe, defensora, protetora, toda bela, santíssima. Ela espelha a beleza
de Deus em Jesus Cristo, no qual o Pai manifestou-se a nós. Quem ama está em Deus e
quem está em Deus é belo, é bela, cheio ou cheia de graça e, portanto, de verdade. Desta
maneira a piedade popular reconhece em Maria Imaculada um ícone da humanidade
reconciliada consigo mesma, com sua origem e destino. Reconhece nela a aurora do mundo
futuro, uma força revolucionária não só da história de Portugal e do Brasil, mas de toda a
humanidade.48 A Imaculada Conceição dá força ao projeto de vida plena para todos (Jo
10,10) e sustento à esperança do Povo de Deus.
Aqui cabem as palavras das teólogas ao escreverem sobre a Imaculada Conceição,
relacionando-a com o povo que na realidade brasileira é a maioria pobre e excluída:
14
população de escravos maior que a população branca e índia. Esta imagem negra de argila
recebeu o nome carinhoso de “Aparecida”, pois o povo via nela uma protetora e
intercessora em meio às aflições vividas cotidianamente. Na cidade de Aparecida-SP ergue-
se seu santuário frequentado por milhares de peregrinos que a veneram como padroeira do
Brasil.
Conclusão
A principal conclusão a que se pode chegar, no término de uma reflexão sobre o
dogma da Imaculada Conceição, talvez seja a constatação de que ele é fruto de um
dinamismo de fé que interessou a Igreja em todos os seus componentes através dos tempos.
Ele não é uma descoberta somente de teólogos, mas é um evento eclesial o qual está
envolto no sentido da fé do povo cristão. Este caminho, do sensus fidelium, é o caminho
que serve de leito para todos os outros caminhos na compreensão deste dogma. E sabe-se
que o senso da fé é a faculdade de perceber e desenvolver, no Espírito, as virtualidades
incluídas na Revelação. Este instinto sobrenatural, sem analogias com as ciências profanas,
coincide com a posse espiritual, intuitiva, pré-conceitual da verdade revelada,
progressivamente explicitada nas suas potencialidades.
A fé da Igreja, que se expressou em dado momento com o consentimento global dos
fiéis, foi a base válida e suficiente para a definição dogmática da Imaculada Conceição.52
O Concílio Vaticano II, tomando palavras da definição dogmática, repete que Maria
foi “preservada imune de toda mancha da culpa original” (LG 59), “em previsão dos
méritos de seu Filho” (LG 53) e em vista da missão que Deus lhe confiou “foi enriquecida
por Deus com os dons correspondentes a tão alta missão” (LG 56).
Assim a conceição imaculada não foi tão somente um privilégio, uma exceção ou
ornamento pessoal, mas muito mais uma condição para o cumprimento da missão para a
qual Deus a predestinara. Ela é o prelúdio, se assim podemos dizer, da nova criação que em
Cristo Deus está realizando, nova criação na qual deve prevalecer a inocência original.
A Imaculada Conceição não separa Maria da humanidade e nem da Igreja, porque a
Imaculada tem uma função tipológica para a comunidade cristã e para cada um de seus
membros. Trata-se de um privilégio não aristocrático, e sim em vistas ao povo de Deus, e,
em alguma medida, participável”.53 O mistério da Imaculada Conceição celebra o que ela
mesma disse de si : “O Senhor olhou para a baixeza de sua serva...e fez em mim grandes
coisas” (Lc 1,48-49). É o encontro da onipotência divina com a pobreza humana
necessitada de redenção, dependente da graça divina.
A Imaculada Conceição recorda o compromisso sério da luta contra o mal, o pecado
(mysterium iniquitatis 2Ts 2,7), que de muitos modos está em nós e na realidade que nos
cerca distanciando-nos de Deus. Neste embate devemos ter sempre presente que não é
somente nosso esforço que consegue nos inserir no plano da salvação, mas é a graça
redentora que age gratuitamente em nós. O maior engano do homem sem fé é achar que
pode prescindir da graça de Deus.
52
Cf. De FIORES, in op. cit., p. 604. O sensus fidelium sempre intuiu que “Maria entrou na existência como
um ser redimido”, cf. E. SCHILLEBEECKX, Maria, madre de la redención, Fax, Madrid, 1969, p.82.
53
J. CARDOSO, Imaculada: Maria do Povo, Maria de Deus, in S. R. da COSTA (org), Imaculada: Maria do
Povo, Maria de Deus, Vozes, Petrópolis, 2004, p. 172.
15
Na cultura tecnológica em que vivemos, elimina-se a ideia mesma da graça de Deus
na vida humana, já que se eliminou a ideia do pecado.54 A psicanálise ajudaria o paciente a
tomar consciência de seus complexos, dos quais, tomando-se consciência, estarão curados.
Tudo se resolve somente no plano humano eliminando-se o sobrenatural: “a psicanálise é a
confissão sem a graça”.55
A Imaculada Conceição é o tipo absoluto da graça conferida sem mérito algum e
antes de tudo por iniciativa de Deus. E Maria é por este fato o tipo perfeito da justificada
que tem na sua santidade mesma a razão de sua humildade. O fato de Maria ter
permanecido isenta do pecado original, desde o primeiro instante de sua concepção, pode
ser baseado unicamente em algo que está fora dela mesma. Nascer sem o pecado original,
por assim dizer, “por direito próprio”, foi possível somente para Jesus Cristo, devido à
unidade hipostática de sua humanidade com o Verbo.
O teólogo e agora bispo Bruno Forte faz uma observação que julgo importante, a
respeito do dogma da Imaculada Conceição: “O ‘espírito moderno’ constitui, embora
remotamente, o fundo polêmico da definição do dogma da Imaculada Conceição de Maria.
Contra a ideia do homem árbitro absoluto de seu destino e artífice único de seu progresso,
ressoa alta e pura a afirmação do absoluto primado da iniciativa de Deus na história da
redenção, o qual se manifesta de maneira singular na história da Virgem Mãe do
Senhor”.56
A busca de autonomia do humano na passagem dos séculos XVII ao XIX, não é só
em relação à Igreja, mas também em relação a Deus. O iluminismo, racionalismo,
subjetivismo, anticlericalismo – tendências denominadas no seu conjunto de modernismo –
traçarão novos rumos para a humanidade. Assim, a declaração do dogma da Imaculada
Conceição não é apenas mariológica, mas também eclesiológica e escatológica: Deus
preside à História de forma misteriosa, sem escravizar-se à razão humana. Assim, quem
quis Maria Imaculada foi o próprio Deus. É um desígnio de Deus em favor do homem, um
direito que lhe compete. A iniciativa da salvação é Dele.
Deve-se reconhecer que a definição do dogma da Imaculada Conceição veio ao
encontro das expectativas do povo cristão; a Igreja através da manifestação do Magistério,
soube ouvir a voz do Espírito Santo que age através da sabedoria dos humildes, Ele que é
pater pauperum, e não só através da erudição dos teólogos.
Podemos dizer que de fato, a Imaculada Conceição de Maria, em vista de sua
maternidade, que é o fundamento absoluto de sua dignidade, é a pedra fundamental sobre a
qual toda a vida de Maria vai ser fundamentada. É a primeira manifestação de Deus em sua
vida, plenificando-a com sua graça, por pura misericórdia e possibilitando-nos de chamá-la
com o anjo: “cheia de graça” (Lc 1,28).
Imaculada Conceição fala da ausência do pecado e presença da graça. Ser concebida
sem pecado é ser concebida na graça. Na Imaculada Conceição encontramos nosso
verdadeiro eu projetado por Deus sem o pecado. A partir daí podemos contemplar a graça
de Deus que é superior ao pecado e vencerá, afinal. Na Imaculada Conceição está também
54
A mentalidade contemporânea resiste a aceitar o pecado e muito mais o pecado original que seria um
pecado não cometido no exercício da liberdade pessoal, mas contraído por herança recebida com a natureza
humana. Aqui devemos afirmar que a incompreensão de uma verdade revelada não é razão suficiente para
negá-la.
55
R. CANTALAMESSA, in op. cit., p. 20.
56
B. FORTE, Maria, a mulher ícone do Mistério, Paulinas, S. Paulo, 1991, p. 122.
16
o destino profético da Igreja: ser “sem mancha, sem ruga, mas santa e irrepreensível”(Ef
5,57).
Enfim, penso que não haja palavras melhores para terminar este estudo que estas:
“Porque Deus preordenou encarnar-se em Cristo, a Mãe terrena de seu Filho foi também
preordenada: se ela não tivesse sido desejada como Santa e perfeitamente redimida, então o
próprio Cristo não teria sido desejado por Deus exatamente da maneira como está diante de
nós”.57
(sugestão : Poderia inserir aqui a Oração do papa Francisco à Imaculada in L’Oss.
Rom. 15 dez 2016 p. 2 ed. Portuguesa)
BIBLIOGRAFIA
57
COYLE, K., Maria tão plena de Deus e tão nossa, Paulus, S. Paulo, 2015, p.149
17
SCHILLEBEECKX, E.- HALKES, C., Maria, ieri, oggi, domani, Queriniana,
Brescia, 1995
SESBOUÉ, B., Histoire des Dogmes-Les signes du salut, v. III, Desclée, paris, 1994
SPIDLÍK, T., La madre di Dio, Lipa, Roma, 2003
SOL, G., Storia dei Dogmi Mariani, Las, Roma, 1987
THURIAN, M., Maria madre del Signore immagine della Chiesa, Morcelliana,
Brescia, 1987
VATICANO II, Lumen Gentium, 1965
18