A Campanha de Doação de Sangue "Matheus Vive" No Contexto Da Comunicação Entre Gestores Estaduais e Municipais Do Sus Na Região Do Oeste Paulista

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ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS

V Seminário Internacional de Pesquisa em Políticas Públicas e Desenvolvimento Social: Sociedade e


democracia em tempos de pandemia de Covid-19
UNESP
Franca/ 2023
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Reitor
Prof. Dr. Pasqual Barretti

Vice-Reitora
Profa. Dra. Maysa Furlan

Pró-Reitor de Pesquisa
Prof. Dr. Edson Cocchieri Botelho

Pró-Reitor de Extensão Universitária e Cultura


Prof. Dr. Raul Borges Guimarães

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

Diretor
Profa. Dra. Fernanda Mello Sant’Anna

Vice-Diretor
Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca Presidente


Profa. Dra. Fernanda Mello Sant’Anna

Membros
Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa
Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes
Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti
Profa. Dra. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira
Profa. Dra. Elisabete Maniglia
Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca
Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz
Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva
Prof. Dr. José Duarte Neto
Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira
Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille
Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina
Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges
Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira
Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida Biason
Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães
Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino
ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS

V Seminário Internacional de Pesquisa em Políticas Públicas e Desenvolvimento Social: Sociedade e


democracia em tempos de pandemia de Covid-19

Organizadores

Tatiana Noronha de Souza


Clauciana Schmidt Bueno de Moraes
Alexandre Marques Mendes

UNESP
Franca/ 2023
© 2023 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Franca
Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca - SP
[email protected]
Comissão Organizadora
Coordenação do V SIPPEDES - 2022 Lucimary B. Pedrosa de Andrade (UNESP) Giulia Malaguti Braghini Marcolini Martires
Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes Márcia Nascimento (SIMA) Daiane Cordeiro de Mattos Souza
(PAPP/UNESP) Márcia Pereira Cabral (UEMG) Marcelo Peraro de Sousa
Profa. Dra. Clauciana Schmidt Bueno de Márcio Balbino Cavalcante (UFPB) Clauciana Schmidt Bueno de Moraes
Moraes (PAPP/ UNESP) Maria Madalena Gracioli (UNESP) Alexandre Marques Mendes
Maria Luiza Pires Manfrenato (Orion
Comissão Organizadora Consultoria Ambiental) COMISSÃO CIENTÍFICA (APOIO)
Alexandre Marques Mendes (UNESP) Maria Lúcia Vannuchi (UFU) Wesley Wander Dos Santos Ferrarezi
Clauciana Schmidt Bueno de Moraes (UNESP) Miguel Amado (ULisboa/ Portugal) Flávia Pinheiro da Silva Colombini
Agnaldo de Souza Barbosa (UNESP) Muriel de Oliveira Gavira (UNICAMP) Amanda Lorena Leite
Vania de Fátima Martinho (UNESP) Mylene Cristina Santiago (UFJF) Giovana Alves Jordão
Genaro Alvarenga Fonseca (UNESP) Nalva Araújo Bogo (UNEB) Ariane Rodrigues de Lima Hirosse
Maria Madalena Gracioli (UNESP) Odaleia Telles Marcondes Machado Queiroz Cristiane de Souza Gomes
Stela Luiza de Mattos Ansanelli (UNESP) (ESALQ/USP) Marley de Fátima Morais Borges
Hélio Alexandre da Silva (UNESP) Paulo Gianolla (PDesign) Caroline Carvalho
Tatiana Noronha de Souza (UNESP) Priscila Alvarenga Cardoso Gimenes (UFU) Gabriela Vidotti Ferreira Magalhães
Elísio Estanque (CES - Coimbra/ Portugal) Renata Fantacini (Claretiano) Walmara Baldini
Stela Luiza de Mattos Ansanelli (UNESP) Alana Duarte dos Santos Boaventura
Comitê Científico - V SIPPEDES Tatiana Machiavelli do Carmo Souza (UFCT) Alexandre Marques Mendes
Adriana Maria Nolasco (ESALQ/ USP) Tatiana Noronha de Souza (UNESP) Clauciana Schmidt Bueno de Moraes
Agnaldo de Souza Barbosa (UNESP) Valéria Peres Asnis (UFU)
Alexandre Marques Mendes (UNESP) Vânia de Fátima Martino (UNESP) COMISSÃO CULTURAL
Alexandre Ricardo Machado (FATEC) Weber Antonio Neves do Amaral Elaine Cristina dos Santos Rosa
Amanda Ramalho Vasques (World (ESALQ/USP) Eveline Cristina da Fonseca
Environmental Conservancy - WEC) Willian Leandro Henrique Pinto (UNICAMP) Marley de Fátima Morais Borges
Antônio Marco Ventura Martins (FFCL – Ana Marta de Oliveira Alvares
Ituverava) Comissão Organizadora/ Apoio (Discentes) Rodolfo de Tarso da Silva
Aurora Mariana Garcia de França João Mamedio
Souza (FHO/UNIARARAS) COMISSÃO DE PATROCÍNIO/ PARCERIAS Alexandre Marques Mendes
Carlos Manuel Martins (ADP/ Portugal) Flávia Pinheiro da Silva Colombini Clauciana Schmidt Bueno de Moraes
Célio Bertelli (UNESP) Marcelo Peraro de Sousa
Christiano França da Cunha (UNICAMP) Laís Araújo de Paula Realização
Clauciana Schmidt Bueno de Moraes (UNESP) Wanessa Alves Carvalho Programa de Pós-graduação em
Claudia Vanessa dos Santos Corrêa (UNESP) Ariane Caus Donda Planejamento e Análise de Políticas Públicas
Edson José Vidal da Silva (ESALQ/ USP) Clauciana Schmidt Bueno de Moraes UNESP/ Franca.
Elias Antônio Vieira (UNESP) Alexandre Marques Mendes Departamento de Educação, Ciências Sociais e
Elísio Estanque (CES - Coimbra/ Portugal) Políticas Públicas - UNESP/ Franca.
Emiliano Lobo de Godoi (UFG) COMISSÃO DE COMUNICAÇÃO Faculdade de Ciências Humanas e Sociais –
Fabiana Borges Dias (UNICAMP) Guilherme Bernardo Vitoretti UNESP/Franca.
Fátima Coelho Gonini (FFCL – Ituverava) Elaine Cristina dos Santos Rosa
Fernando Altino Medeiros Rodrigues (UERJ) Larissa Prado Roitberg APOIO
Genaro Alvarenga Fonseca (UNESP) Kelen Careta Machado Laboratório de Políticas
Hilda Maria Gonçalves (UNESP) Jessica Teixeira Ribeiro (LAP/ FCHS/ UNESP/ Franca)
Humberto Catuzzo (UFVJM) Marcela Alves Gennari Mariano Grupo de Pesquisa em Direito e Mudança
José Alencastro de Araújo (UNIMEP) Eliane Cristina Felicio Sociais (DeMus/ FCHS/ UNESP/ Franca).
José Augusto de Oliveira (UNESP) Marília Cynttya Alexandre Silva Hotel Fazenda Areia que Canta -
Lady Virginia Traldi Meneses (CETESB) Elaine Cristina Pereira Brotas/ SP, Brasil.
Lauren Nozomi Marques Yabuki (UNESP) Adolfo Domingos da Silva Junior ACert - Auditoria, Certificação e
Leandro Mello Frota (FIURJ / IDP) Danielle Helena Guilherme Gerenciamento Socioambiental (Laboratório /
Lilian Bulbarelli Parra (UDESC) Lúcio Rangel Alves Ortiz Grupo de Pesquisa - CNPq - UNESP/UFSCar)

Anais de trabalhos completos do V Seminário Internacional de Pesquisa em Políticas


Públicas e Desenvolvimento Social : sociedade e democracia em tempos de
pandemia de Covid-19 / Tatiana Noronha de Souza, Clauciana Schmidt Bueno de
Moraes, Alexandre Marques Mendes (organizadores). – Franca : UNESP, 2023.
481 p.

ISSN: 2359-0858

1. Políticas públicas. 2. Gestão educacional. 3. Formação de professores.


4. Educação inclusiva. 5. Relações de trabalho. 6. Meio ambiente.
7. Sustentabilidade. 8. Direitos humanos. 9. Planejamento urbano I. Título.
II. Souza, Tatiana Noronha de. III. Moraes, Clauciana Schmidt Bueno de.
VI. Mendes, Alexandre Marques.

CDD – 350
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773
5

APRESENTAÇÃO

O SIPPEDES - Seminário Internacional de Pesquisa em Políticas Públicas e Desenvolvimento


Social é um evento interdisciplinar realizado a cada dois anos, sendo promovido pelo Programa de
Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas (PAPP) e pelo Departamento de
Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas (DECSPP), da Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais da UNESP/ Franca (Brasil).

O V SIPPEDES 2022 foi realizado nos dias 03, 04 a 05 de novembro de 2022, na Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da UNESP/ Franca (Brasil) no formato presencial e online. O evento
contou com palestras, mesas-redondas, apresentação de trabalhos científicos e outras atividades
envolvendo pesquisadores, acadêmicos e profissionais nacionais e internacionais de diversas áreas
do conhecimento como educação, políticas públicas, direitos humanos, planejamento urbano,
diversidade, saúde e meio ambiente. Todas as palestras foram transmitidas ao vivo pelo Youtube
do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas (PPG-PAPP –
UNESP).

O evento, mais uma vez se caracterizou como um espaço para interlocução de docentes e discentes
de graduação, pós-graduação, assim como profissionais de diferentes áreas, a fim de aprimorar a
reflexão teórico-prática no campo de estudos das políticas públicas. O Seminário promoveu um
diálogo interdisciplinar sobre investigações em diferentes campos de conhecimento, que foram
distribuídos em 11 eixos, que compõem a presente publicação, a saber:
1. Políticas públicas e gestão educacional
2. Políticas públicas e avaliação educacional
3. Políticas públicas e formação de professores
4. Políticas públicas e educação inclusiva
5. Políticas públicas e relações de trabalho
6. Políticas públicas e saúde
7. Políticas públicas, meio ambiente e sustentabilidade
8. Políticas públicas e direitos humanos
9. Políticas públicas e desenvolvimento econômico-social
10. Políticas públicas, planejamento urbano e ordenamento do território.
11. Políticas Públicas voltadas para a igualdade, diversidade, multiculturalismo, interculturalidade.

Esta publicação apresenta uma grande diversidade de trabalhos organizados em três grandes áreas
com os eixos temáticos do evento que vêm sendo desenvolvidos em diferentes áreas, e que trazem
para discussão problemáticas atuais. Oportuniza, também, a publicação de pesquisas oriundas do
Programa de Pós-graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais (UNESP/Franca), além de se constituir um espaço formativo para pós-
graduandos, em especial.
Agradecemos a todos aqueles que participaram e contribuíram para a realização do V SIPPEDES,
avaliações de trabalhos e publicações.

Os organizadores
6

INSTITUIÇÕES, CIDADANIA E POLÍTICAS SOCIAIS

1 Apontamentos sobre o desenvolvimento regional 12


Alan Elias Silva

2 Desenvolvimento regional: uma questão sempre atual 22


Alan Elias Silva

3 Relação entre saneamento básico e indicadores de saúde infantil 27


Igor Américo dos Santos, Marco Aurélio Marques Ferreira e Juliana Maria
de Araújo
4 Mulheres rurais no Brasil: impactos do desmonte de políticas públicas 36
durante a pandemia de Covid-19
Isabella Pizarro Tiburcio e Sofia Santos Vasques Simões de Carvalho

5 Plano viver sem limite: contribuições e dificuldades na consolidação de 45


políticas públicas voltadas para a tecnologia assitiva
Tatiane da Silva Nogueira e Leriane Silva Cardozo

6 Políticas públicas tributárias no cenário pós-pandêmico e a 51


redistribuição de riquezas
Nathan Gomes Pereira do Nascimento, Júlia Sêco Pereira Gonçalves e
Lívia Marinho Goto

7 A violência obstétrica em uma sociedade patriarcal e machista: um 60


avanço sobre o tema em Uberaba/MG
Marcela Alves Gennari Mariano, Valquíria Alves Mariano e Yuri
Emmanuelle Silva Mazeto

8 Os desafios do trabalho em rede no atendimento à crianças e 68


adolescentes
Marcela Alves Gennari Mariano e Valquíria Alves Mariano
9 Suposto ato infracional e privação de liberdade: reflexões iniciais a 75
respeito da internação provisória para adolescentes
Amanda Lorena Leite

10 O monitoramento e avaliação de serviços socioassistenciais executados 83


por organizações da sociedade civil
Elaine Cristina dos Santos Rosa e Jonas Rafael dos Santos

11 A campanha de doação de sangue “Matheus vive” no contexto da 91


comunicação entre gestores estaduais e municiais do SUS na região do
oeste paulista
Alana Duarte dos Santos Boaventura e Rodolfo Franco Puttini

12 A experiência do IFMUN como resultado da política pública de 97


educação brasileira: as simulações envolvendo temáticas de direitos
humanos
Gabriel Terra Pereira e Guilherme Bernardo Vitoretti da Silva

13 Mobilização social do direito: disputas e legitimação de interesses 105


Alecilda Oliveira

14 Pandemia, concentração de renda e políticas públicas: uma análise à 113


7

luz da agenda 2030


Anita Ferreira Contreiras e Luís Felipe Borges Taveira

15 Orçamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal, cortes nos 121


gastos sociais e neoliberalismo
Amanda Gabrielle Osório

16 Pobreza menstrual: políticas públicas de proteção dos direitos 129


fundamentais das mulheres brasileiras
Isabela Maria Valente Capato

17 O poder judiciário como revisor de políticas públicas à luz do 137


entendimento de desumanização de Edouard Machery: uma análise da
ADPF N. 635
Karine Jordana Barros Belém

18 O conceito de interseccionalidade e seu uso para análise da justiça social 145


nas políticas globais
Ana Júlia Diniz Neves do Lago

19 As políticas públicas nos conselhos municipais 153


Lucio Rangel Alves Ortiz

20 Políticas Públicas em tempos de pandemia: os impactos da Covid-19 no 161


desenvolvimento econômico e social do Brasil
Hélio Braga Filho, Murilo Cordero Leal e Jonatan Pousa

21 Lei nº 9.249/1995: a isenção dos lucros e dividendos como 171


fortalecimento do privado em detrimento ao orçamento e às políticas
públicas
Flávia Fernanda Benetti Castro

22 Implementação do auxílio emergencial durante a pandemia de Covid- 177


19 no Brasil: criação, resultados e problemas
Alexandra Valle Goi, Isabella Neves, Maria Yumi Buzinelli Inaba e Sarah
de Jesus Silva dos Santos

23 A importância da política pública na efetivação do direito à saúde 186


Danúbia Brito Rodrigues Silva
Carla Agda Gonçalves
Josiani Julião Alves de Oliveira
Pâmela Migliorini Claudino da Silva
Adriana Giaqueto Jacinto

24 Omissão estatal ante a regularização fundiária do sítio histórico e 194


patrimônio cultural Kalunga
Teruo Rosa Kuramoto, Carolina Oliveira Mesquita, Hansmüller Salomé
Pereira e Thais Gomes Abreu

25 Vivências de homens autores de tentativas de feminicídios 202


Tatiana Machiavelli Carmo Souza

26 Uma contribuição da metodologia do índice de progresso social para 210


fundamentação de políticas públicas que visem o desenvolvimento
8

sustentável dos municípios do estado de Goiás


Marcelo Ladvocat e Marcela Scalco Freitas

27 A violência doméstica contra a mulher em tempos de pandemia da 218


COVID-19: reflexões no âmbito do serviço social
Júlia Rosa Fábio

28 O desmonte institucional de políticas públicas durante a pandemia 225


Carlos Augusto Polidoro da Silva, Diego Malvasio Bertolin e Rafael
Bashiyo Baz

DESENVOLVIMENTO URBANO, RURAL, REGIONAL E


AMBIENTAL

29 Plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos: uma 237


abordagem dos objetivos de desenvolvimento sustentável no município
de Piracicaba/SP
Giulia Malaguti Braghini Marcolini Martires e Clauciana Schmidt Bueno
de Moraes

30 Irregularidade fundiária e expansão urbana desordenada: o caso de 247


Itapeva/SP
Mauro Ferreira e Juliane de Cássia Silveira Camargo

31 O conflito dos quartéis mineiro e paulistano no século XIX em 255


Ibiraci/MG
Célio Bertelli, Genaro A. Fonseca, José Limonti e Caroline C. Barbosa

32 Gerenciamento dos resíduos de construção e demolição (RDC): 263


diagnóstico e diretrizes para a gestão ambiental urbana
Leonardo Matheus de Oliveira , Clauciana Schmidt Bueno de Moraes,
Willian Leandro Henrique Pinto, Wilson Antonio Lopes de Moura e Giulia
Malaguti Braghini Marcolini Martires

33 Pagamento por serviços ambientais na Bacia dos rios Sapucaí– 271


Mirim/Grande como instrumento de proteção de recursos hídricos
Célio Bertelli, Caroline C Barbosa e Victor Hugo B. O Bolzan

34 A universidade enquanto pólo de desenvolvimento territorial urbano: 278


o caso da cidade de Maringá/PR
Lúcio P. A. Pires e William A. Borges

35 Gestão de resíduos sólidos contemporânea: estratégias internacionais e 287


brasileiras
Cristine Diniz Santiago, Ana Cristina Bagatini Marotti, Erica Pugliesi e
Wellington Cyro de Almeida Leite

36 Eficácia da gestão de risco, controle, fiscalização e políticas públicas em 296


Minas Gerais: o setor da mineração
Carolina Oliveira Mesquita, Amanda Barbosa Rêgo e Emiliano Lobo de
Godoi

37 Emendas ao plano diretor do município de Botucatu: uso de 305


agrotóxicos em zonas de conservação hídrica
9

Luiz César Ribas, João Pedro Zorzi Octaviano e João Paulo Pereira Duarte

38 Grandes estimadas de áreas verdes, áreas de preservação permanente, 313


áreas institucionais, patrimoniais e edificadas no perímetro urbano de
Franca/SP
Célio Bertelli, Estevão Urbinati, Tâmer de O. Faleiros e Pedro K. Bachur

39 Gestão de resíduos orgânicos no município de Araraquara/SP: uma 321


análise da situação da empresa minhocaria
Raissa Carvalho Ribeiro

POLÍTICA E GESTÃO NA EDUCAÇÃO

40 Currículo Paulista na educação infantil: um estudo da sua implantação 335


e execução
Eliane Cristina Felicio, Cristiane de Souza Gomes, Kelen Careta Machado,
Elaine Cristina de Sousa Pereira e Rodrigo da Silva Souza

41 Direito à saúde e à educação: impasses de adolescentes à políticas 344


públicas.
Letícia Lara de Souza Silva, Ailton de Souza Aragão, Beatriz Montoani
Masson, Bianca Helena Moraes Bergamo e Ana Carolina Aguiar de
Carvalho

42 Educação e processo formativo: compartilhar vivências e saberes nas 349


escolas municipais de Uberaba/MG
Marcela Alves Gennari Mariano, Ailton de Souza Aragão e Valquíria Alves
Mariano

43 As estratégias da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais 355


para a situação de pandemia: um estudo de duas escolas públicas
estaduais do município de Passos – MG
Fabiano Amorim Costa e Regina Aparecida Leite de Camargo

44 Os impactos da BNCC e a Educação do Campo a partir da perspectiva 363


do MST: algumas reflexões
Wanessa Alves Carvalho

45 Avaliação da qualidade do atendimento da creche: análise de um grupo 371


de profissionais de uma creche de Ribeirão Preto (SP)
Ariane Rodrigues de Lima Hirosse e Tatiana Noronha de Souza

46 Políticas Públicas na lei de cotas e seus impactos sociais 378


Alana Duarte Boaventura e Raquel das Neves Rafael Molina

47 A política de assistência estudantil na UFVJM-Campus Mucuri em 385


Tempos de Covid-19 e do ERE
Raquel Cristina Lucas Mota

48 Gestão democrática: avanços e desafios frente às mudanças propostas 393


pella Nova Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor
Lázara Regina de Morais Colombaroli e Vânia de Fátima Martino

49 A urgência de uma pedagogia crítico-reflexiva na educação básica: uma 403


10

experiência dos ginásios estaduais vocacionais do estado de São Paulo


(1962-1969), caminhos e possibilidades
Wesley Wander Dos Santos Ferrarezi e Vânia de Fátima Martino

50 Um estudo do planejamento estratégico situacional em uma instituição 412


de ensino: limites e possibilidades
Vinícius da Silva Argenti

51 A participação estudantil na gestão escolar do IFSP: a dimensão 420


pedagógica da gestão democrática
Kleber Chaves Pereira e Genaro Alvarenga Fonseca

52 (De) formação para o mundo do trabalho: reflexões sobre a lógica 430


neoliberal nos principais referenciais da educação brasileira a partir da
perspectiva Bakhtiniana
Josiane Paula Etelvino e Sebastião de Souza Lemes

53 A visão dos responsáveis de crianças pequenas em tempos de 439


pandemia: a importância educacional da creche
Rosilene de F. Rocioli Messias e João B Mamedio

54 Bullying e saúde mental: efeito da violência nas escolas 449


Thaís Silva Marinheiro de Paula e Soraya Maria Romano Pacífico

55 A lógica contraditória das práticas escolares integracionistas e 458


inclusivas: uma percepção durante a pandemia
Léa Aparecida de Carvalho Ribeiro e Vânia de Fátima Martino

56 A prioridade na educação de Darcy Ribeiro e a Agenda 2030 da ONU: 466


uma relação necessária para o futuro
Kelen Careta Machado

57 Judicialização da educação 475


Patrícia Alves Martins dos Santos
11

INSTITUIÇÕES, CIDADANIA E
POLÍTICAS SOCIAIS
12

APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Alan Elias Silva1


Introdução
O Brasil é um país de desigualdades. Possui um dos piores registros de desigualdade de
renda pessoal do mundo. O Coeficiente de Gini, baseado na pesquisa domiciliar “PNAD” de 1999,
é de 0,587, enquanto no México e nos EUA, para dados comparáveis, são 0,536 e 0,445,
respectivamente. Neste país, os 10% das pessoas mais ricas recebem 50% da renda total, enquanto
os 50% mais pobres recebem menos de 10% da renda total. Embora as estimativas variem,
cercade 30% da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza. A desigualdade regional
também éalta (KOVALESKI et al., 2019).
A renda per capita da região Nordeste, a mais pobre do país, é apenas um terço da do
Sudoeste, a mais rica. O primeiro concentra 58% do PIB nacional, enquanto o último apenas 13%,
implicando uma relação de renda per capita Nordeste-Sudeste de 46% em 2000. Isso é um pouco
melhor do queem 1970, quando a relação de renda per capita Nordeste-Sudeste era de 0,26, mas
desde 1985 a situação parou de melhorar. Em algumas dimensões, piorou: a participação total do
Nordeste no PIB nacional em 1985 era de 14%. Os vencedores aqui são as demais regiões,
principalmente o Centro-Oeste (LIMA, LIMA, 2010).
Os indicadores sociais da região Nordeste também estão significativamente abaixo da
médianacional. Sua taxa de analfabetismo é pelo menos 3 vezes maior que a de São Paulo, a
mortalidade infantil é duas vezes maior que a do Sudeste (54,5 por mil e 26,3 por mil,
respectivamente), a expectativa de vida é quatro anos menor e a desigualdade de renda é muito
pior. Nesse caso, o Coeficiente de Theil do Ceará, Bahia e Pernambuco é de 0,80 enquanto o de
São Paulo é de apenas0,55. Cinquenta por cento da população do Nordeste vive na pobreza.
A política regional no Brasil em sua forma moderna pode ser atribuída, inicialmente, ao
trabalho deCelso Furtado no “Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, GTDN
(“Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste”, Sudene (1967)) escrito no final dos
anos cinquenta. Inspirado nas teorias da Cepal e da Escola Estruturalista da América Latina, este
documento transpôs para o nível regional as ideias desse grupo para o relativo
subdesenvolvimentodos países do continente (CARLEIAL, 2014).
Usando o conceito de centro-periferia, a Cepal destacou que a pobreza na América Latina
era, em essência, um problema de desvantagem dos termos de troca que não permitiria aos países
da regiãoacumular recursos internos suficientes. Assim, os investimentos permaneceriam abaixo

1
Universidade Estadual de Goiás – UEG. Mestrando em Ambiente e Sociedade. Integrante do Grupo de
Pesquisa/CNPQ - Laboratório Interdisciplinar Sociedade, Ambiente e Direito (LISA-D), Piauí, Brasil. E-mail:
[email protected]
13

do necessário para produzir um crescimento rápido, a menos que houvesse alguma forma de
intervençãopública. O principal papel do governo deve ser a criação das condições necessárias
para a industrialização, dadas as carências estruturais da agricultura. Consequentemente, barreiras
à importação foram erguidas para aumentar a competitividade da produção nacional. Subsídios e
muitas formas de transferências para o setor manufatureiro foram, pelo menos temporariamente,
programas de investimento agressivos em infraestrutura e em setores estratégicos, principalmente
industriais e de utilidade pública, foram implementados (UDERMAN, 2008b).
Desta forma, o objetivo principal desta é pesquisa é apresentar as políticas de
desenvolvimento regional brasileiro. O trabalho se classifica como uma revisão de literatura
definida por Gil (2008) como aquela que utiliza textos (ou outro material intelectual impresso ou
gravado) como fontes primárias para obter seus dados. Neste trabalho foram utilizadas as bases
de dados governamentais,Scielo, Portal CAPES e Google Academics para a investigação.

Desenvolvimento
Desigualdades Regionais
Desde a consolidação das políticas regionais pela administração pública brasileira, em
meados do século 20, os debates sobre a problemática regional têm causado grande controvérsia.
Seja no âmbito da produção acadêmica ou da formulação de políticas públicas, alguns fatores se
destacam: a ausência de consenso sobre a definição e delimitação das regiões; a conceituação das
desigualdades regionais; e a seleção de indicadores capazes de avaliar sua dinâmica, bem como as
proposições contrastantes sobre as ações que devem ser realizadas para mitigar as desigualdades
regionais. Essas polêmicas mostram a complexidade do tema e alertam para os grandes desafios
que o país enfrenta para combater as desigualdades espaciais que o caracterizam (CAMPOS,
2012).
O fato de haver múltiplas interpretações sobre as desigualdades regionais no Brasil não é
um problema em si, mas sim a falta de consenso sobre os determinantes das desigualdades
regionais e aprópria essência das ações que devem ser tomadas para mitigá-las. Isso dificulta a
formulação de uma teoria mais sólida, que possa aumentar nosso entendimento sobre a dinâmica do
cenário regionaldo Brasil hoje, pois teorias e metodologias substancialmente divergentes tornam
impossível comparar essas pesquisas ou mesmo vê-las como complementares. Além disso, em um
ambiente político e institucional marcado pela instabilidade, descontinuidade das políticas
públicas, departamentalização, fragmentação e falta de cooperação entre os governos, a falta de
consenso sobre a problemática regional tem contribuído para a formulação de processos
fragmentados, desarticulados, conflitantes, concorrentes e políticas regionais contraditórias,
comprometendo a eficácia e eficiência do planejamento regional brasileiro (BRANDÃO, 2018).
14

A compreensão das desigualdades regionais no Brasil está fortemente fundamentada em


aspectos teóricos, metodológicos e políticos associados aos debates sobre as disparidades
socioeconômicas entre as regiões Nordeste e Sudeste do país, que estão no cerne da consolidação
do planejamento regional no âmbito do Estado brasileiro no segundo metade do século XX
(MENDES, NETO, 2012).
As desigualdades regionais do Brasil surgiram na primeira metade do século XX, no marco
de um processo de integração econômica e política das regiões, em decorrência da industrialização
do país.Até então, as regiões do país permaneciam desarticuladas, cada uma delas apresentando
maior ou menor crescimento de acordo com os ciclos econômicos que as impulsionavam, com
caráterfundamentalmente agrícola ou extrativista (CAMPOS, 2012).
Os padrões climáticos moldam o meio ambiente e as sociedades se adaptam a ele. Por sua
vez, as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento de edifícios e infraestrutura hidráulica
alteram os sistemas físicos, obrigando as sociedades a se adaptarem novamente às condições
modificadas. Mudanças nessas dimensões interdependentes delineiam a evolução dos modelos de
gestão da água usados pelas sociedades, e esse tem sido o caso no Nordeste. O avanço das políticas
públicas e do desenvolvimento econômico das regiões semiáridas refletem as tentativas da
sociedade de se adaptar a ambientes naturais e modificados em mudança. Esta seção apresenta
paradigmas, políticas públicas e ideias discutidas por líderes históricos desde o início da
colonização (BRANDÃO, 2018).
A integração do mercado nacional brasileiro trouxe as sementes da problemática regional,
ao replicar a mesma divisão geográfica do trabalho que viciaria o desenvolvimento de toda a
economia global, com suas metrópoles industrializadas e suas colônias produtoras de matéria-
prima. Como resultado desse padrão, à medida que a industrialização avançava, as desigualdades
no Brasil tenderiam a aumentar, porque a simultaneidade de um sistema industrial de base regional
e um conjunto de economias dependentes e subordinadas de base primária tendia a criar relações
econômicas exploradoras (MENDES, NETO, 2012).
Assim, no documento “Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”,
publicado em 1959, são apontadas as grandes disparidades nas taxas de renda entre o Nordestee o
Centro-Sul do Brasil, assim como o Brasil. O ritmo de crescimento mais lento da economia
nordestina tenderia a criar dois sistemas antagônicos no país, o que poria em risco sua integração
nacional. A inadequação das políticas macroeconômicas e industriais adotadas pelo Estado teria
contribuído para agravar o problema, já que o Meio-Sul industrializado era excessivamente
favorecido (CAMPOS, 2012).
As desigualdades regionais estão em um processo de malformação estrutural, que está no
cerne do subdesenvolvimento, no qual se entrelaçam as dimensões ecológica, econômica, social e
política. Em termos de estruturas, a heterogeneidade regional do Brasil em meados do século 20
15

criou uma infinidade de formas de subdesenvolvimento geradas no âmbito de um processo


histórico. Essa pletora de regiões com diferentes níveis de desenvolvimento, grande
heterogeneidade social e graves problemas sociais persiste até hoje (MENDES, NETO, 2012).
A problemática dos desequilíbrios regionais no Brasil decorre do processo de
desenvolvimento histórico de cada região. As causas dos desequilíbrios regionais foram a fraca
integração de uma economia exportadora de base primária com o mercado internacional em partes
do Brasil ao longo de sua história, um fato que rendeu menor crescimento e difusão econômica, e
um desenvolvimento abaixo do padrão das relações capitalistas de produção para a periferia
nacional (Brasil, excluindo o estado de São Paulo, e incluindo especialmente o Norte e Nordeste)
(BRANDÃO, 2018).
O aumento das disparidades regionais teria ocorrido no contexto do processo de
industrialização do país, como sinal e momento de integração nacional, em um movimento
dialético que destruiu as economias regionais para concentrar e centralizar capitais no que hoje é
a região sudeste, liderado por o estado de São Paulo. A integração, entendida como “um momento
do processo de nacionalização do capital”, ocorre quando as economias regionais, até então
diretamente conectadas aos mercados internacionais, passam a ser controladas pela região do país
que assume oprocesso de expansão capitalista no território brasileiro (ISMAEL, 2019).
Portanto, essas disparidades são o sinal do movimento diferencial de acumulação nas
relações entre as regiões, em um processo global que levou o sistema a uma implacável
“concentração de renda, propriedade e poder”, com a “substituição da propriedade rural, classes
no topo da pirâmide de poder pelas novas classes burguesas comerciais-industriais”, onde não
havia possibilidade de uma ruptura em favor das classes trabalhadoras.

Política de Desenvolvimento Regional


Para solucionar as desigualdades regionais no Brasil, no final do século XX, dois fatos
críticos ocorreram: o primeiro, a estabilização da economia (1994), que interrompeu a
hiperinflação. A segunda é um conjunto de ações voltadas para o desenvolvimento regional.
Dentre as ações em proldo desenvolvimento regional, podemos citar o Programa “Brasil em Ação”
(1996), que agrupa empresas das áreas social e de infraestrutura para solucionar problemas
estruturais do Brasil por meio do aumento da competitividade; a criação da Secretaria Especial de
Políticas Regionais (SEPRE), vinculada ao Ministério do Planejamento e Orçamento, que em 1999
será absorvida pelo Ministério da Integração Nacional (MIN), atual Ministério do
Desenvolvimento Regional. Ao MIN foi delegada a formulação de uma política de
desenvolvimento nacional integrada, a formulação de planos e programas de desenvolvimento
regional, a formulação de estratégias e diretrizes para a aplicação de recursos financeiros de fundos
16

constitucionais e outros fundos existentes para o desenvolvimento regional, defesa civil, anti-secas
obras, infraestrutura hídrica, entre outros (CARLEIAL, 2014).
Na perspectiva do MIN, a intervenção no processo de desenvolvimento regional teve dois
enfoques: o primeiro relacionado com as questões institucionais do Estado brasileiro (tributário,
previdenciário e educacional ...); a segunda ligada à distribuição das atividades econômicas em
nível regional por meio de eixos significativos, passíveis de intervenção e que estruturam a
integração nacional e internacional. Entre os eixos estavam Zona Franca de Manaus, corredor
Noroeste e corredor Norte; o litoral Nordeste; o semi-árido nordestino; a porção Centro-Leste e a
área geoeconômica de Brasília; a região Centro-Oeste e as fronteiras do Mercado Comum do Sul
(MERCOSUL); além de promover áreas deprimidas ou diferenciadas (LIMA, LIMA, 2010).
A partir de 2003, o planejamento regional foi retomado com a formulação da Política
Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), instituída pelo Decreto nº 6.047, de 22 de
fevereiro de 2007, abrangendo inicialmente os anos de 2008 a 2011. Esse período foi marcado
pelo enfraquecimento do neoliberalismo, à medida que o desenvolvimentismo ganha força, a partir
de uma leitura mais ideológica segundo a qual o Estado deve recuperar sua capacidade de
intervenção (BRANDÃO, 2018).
No século 21, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) foi apresentada
em 2007e reestruturada em 2019. A formulação de uma política nacional de estímulo e promoção
às regiões marcará uma mudança substancial na estratégia de desenvolvimento regional brasileira
até então concentrada em grandes obras públicas e políticas intervencionistas vindas do governo
federal em um movimento de cima para baixo. As diretrizes da PNDR marcarão o reconhecimento
dascapacidades regionais, as especificidades dos territórios e o empoderamento das lideranças
locaisna formulação de estratégias de desenvolvimento territorial. Em outras palavras, a PNDR
traz elementos de desenvolvimento territorial a partir de ações locais (CAVALCANTE, 2018).
A Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) tem como objetivo principal a
redução das desigualdades entre as regiões brasileiras, a promoção da equidade no acesso às
oportunidades de desenvolvimento e orienta os programas e ações federais no território
brasileiro. Para atingir esse objetivo, as estratégias são: estimular e apoiar processos e
oportunidades de desenvolvimento regional em múltiplas escalas; articular ações que, como um
todo, promovam uma melhor distribuição da ação e dos investimentos públicos no Território
Nacional, com foco particular nos territórios selecionados e nas ações prioritárias. Esses territórios
são listados na tipologia PNDR, que leva em consideração os níveis de renda e as variações do
Produto Interno Bruto (PIB) (AMARAL FILHO, 2011).
Em 2022 se completaram 15 anos desde que foi lançado o plano de Política Nacional de
Desenvolvimento Regional (PNDR) do Ministério da Integração Nacional (MI) que teve sua
institucionalização em 2007. A inovação da PNDR por apresentar um tratamento da questão
17

regional brasileira em mais de uma escala, ou seja, a questão regional é tratada em suas diversas
escalas geográficas: municípios, microrregiões, mesorregiões etc. Um tratamento dessa
modalidade faz com que se entenda melhor a complexa realidade do território brasileiro e, dessa
forma, se apliquem intervenções com uma possibilidade maior de serem eficientes para reduzir
contrastes regionais (BRITO, THEIS, DOS SANTOS, 2019).
No Nordeste, a intervenção governamental contribuiu para o crescimento ao conferir à
região vantagens artificiais de localização na forma de incentivos fiscais e financeiros.
Investimentos diretos de empresas estatais também foram realizados na região, especialmente em
bens intermediários (refino de petróleo e produtos químicos). Espaços regionais segmentados
também apareceram na região, fortalecendo o caráter dual da economia; áreas de intensa
modernização coexistem com estruturas econômicas tradicionais, relutantes a mudanças técnicas.
Por um lado, o Nordeste engloba polos regionais dinâmicos desenvolvidos a partir de
investimentos privados reforçados por incentivos governamentais, bem como de investimentos
governamentais. Entre eles estão o polo petroquímico de Camaçari, o polo têxtil e de confecção
de Fortaleza, o polo minero metal de Carajás, no Maranhão, que também abrange parte do Norte
do Brasil, e áreas dispersas da agricultura moderna. Por outro lado, as plantações de cana-de-
açúcar e cacau representam áreas resistentes às mudanças, incorporando métodos tradicionais de
cultivo da terra com baixos padrões de produtividade (CARLEIAL, 2014).
Em 2019, o governo do Brasil instituiu uma nova Política Nacional de Desenvolvimento
Regional (PNDR), por meio do Decreto Federal nº. 9.810, de 30 de maio de 2019. O objetivo geral
da nova PNDR é reduzir as desigualdades regionais, especialmente econômicas e sociais. Para
isso, estimular o crescimento econômico, gerar renda e melhorar a qualidade de vida da
população será a referência para as ações governamentais. A nova PNDR substitui a anterior
de2007, cujas ações eram focadas no desenvolvimento territorial, por um foco voltado para a
desconcentração e internalização do desenvolvimento beneficiando regiões com baixos
indicadores socioeconômicos, declínio populacional e consolidação de uma rede policêntrica de
cidades. Para isso, utilizará uma abordagem territorial, e nas escalas macro e sub-regionais
(BRITO, THEIS, DOS SANTOS,2019).
No Brasil, o debate sobre as disparidades regionais não é contemporâneo, mas faz parte da
atuação do governo federal desde o início do século XX. Entre as ações postas em prática ao longo
dos anos, os investimentos em energia e infraestrutura rodoviária, a criação da Zona Franca de
Manaus e a formação de corredores de desenvolvimento foram os principais instrumentos para
tentar melhorar a atratividade das regiões periféricas do Brasil. Com a Constituição Federal de
1988, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil estão a garantia do
desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades regionais e sociais. Nesse caso, o
desenvolvimento regional passou a ser um dos focos do governo federal, e em 2007 e 2019 os
18

decretos da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) foram apresentados como


um instrumento legal para nortear as ações em prol do desenvolvimento regional e redução
regional. disparidades que marcam o processo de desenvolvimento econômico brasileiro
(KOVALESKI et al., 2019).
Em termos de financiamento, a PNDR conta com fundos constitucionais para algumas
regiões específicas do Brasil. Os fundos constitucionais de financiamento das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste totalizaram R $ 2,5 bilhões em 1995. Como percentual do Produto Interno
Bruto (PIB)regional, representou 0,2% do PIB do Norte, 0,6% no no Nordeste e 0,2% no Centro-
Oeste. Em 2012, os valores foram da ordem de R $ 20 bilhões. Em participação relativa do PIB
regional, já representava 1,0% do PIB na Região Norte, 2,3% no Nordeste e 1,6% no Centro-
Oeste. Ou seja, para as macrorregiões mais pobres do Brasil, existem consideráveis recursos
constitucionais. Já as Regiões Sul e Sudeste, consideradas mais dinâmicas, apesar de apresentarem
áreas problemáticas em seu território, não têm acesso a fundos constitucionais específicos para o
desenvolvimento regional (CAVALCANTE, 2018).
Em relação à regionalização prioritária e diferenciada como foco de atuação, a PNDR
avanço uma abordagem territorial, na articulação intersetorial e na capacitação de lideranças locais
por meio dos fóruns de desenvolvimento de áreas prioritárias. Criou também a Câmara de
Políticas de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional, com as atribuições de estabelecer
diretrizes para a operacionalização das ações; promover a articulação com as demais políticas
setoriais e aconvergência de suas ações nas áreas definidas como prioritárias; propor critérios e
aprovar as diretrizes de aplicação dos instrumentos financeiros; e planos, programas e ações de
monitoramento (BRANDÃO, 2018).
Apesar do Decreto Federal nº. 9.810, de 30 de maio de 2019, ainda tramita no Senado
Federal do Brasil uma proposta de revisão da Política Nacional de Desenvolvimento Regional
(PNDR) de 2007. Essa proposta, denominada Projeto de Lei 375/2015, se baseia em uma nova
tipologia da dinâmica regional brasileira. A atualização da tipologia já é uma das atribuições do
Ministério da Integração Nacional, atual Ministério do Desenvolvimento Regional, dada a
necessidade de monitorar o desempenho das regiões brasileiras, incorporar dados recentes e traçar
parâmetros paraa aplicação dos recursos constitucionais para o Norte, Regiões Nordeste e Centro-
Oeste (KOVALESKI et al., 2019).
A PNDR é diferente das políticas anteriores porque tem várias representações regionais e
escalas espaciais diferentes, e também porque muda velhos paradigmas políticos, administrativos
e econômicos. Nesse sentido, destaca-se uma noção mais complexa de desenvolvimento, que
abarcou não só a esfera econômica, mas também a social e ambiental, bem como a escala local
(BRITO, THEIS, DOS SANTOS, 2019).
19

Com o objetivo de nortear a natureza das políticas que seriam implementadas, as


microrregiões utilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foram
classificadas por meiodo cruzamento das variável “renda familiar per capita” e “variação do
PIB per capita”, usando dados de 1991 e 2000. No entanto, essa tipologia foi pouco utilizada,
pois os esforços se concentraram nas seguintes representações regionais já existentes:
Mesorregiões Especiais, Territórios Rurais e Territórios Cívicos, todos relacionados com a
promoção do desenvolvimentopor meio da valorização dos bens e serviços sociais e do incentivo
à atividade econômica local. APNDR definiu essas regiões como espaços prioritários, junto com
outras representações regionais. Semelhante aos Polos de Desenvolvimento e ENIDs, o PNDR
teve implicações muito escassas para a superação das desigualdades regionais que permeiam o
cenário socioespacial brasileiro. Note-seque as políticas essencialmente regionais são atribuídas
ao Ministério da Integração Nacional. Noentanto, Territórios Cívicos e Territórios Rurais - ou
seja, dois dos três programas de governo que receberam mais atenção política da PNDR -
reportavam ao Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil e, portanto, tinham uma
abordagem mais específica. Além disso, os incentivosfiscais criados pela PNDR permaneceram
voltados para as grandes empresas privadas, que tendema aumentar a histórica concentração social
e espacial da riqueza do país. Assim, as propostas maisinovadoras desta política tiveram baixos
níveis de implementação, reduzindo muito a promoçãodos Arranjos Produtivos Locais, que
são mais diversos e têm impacto limitado nos contextosregionais e nacionais (BRITO, THEIS,
DOS SANTOS, 2019).

Conclusões
A leitura sobre a origem das desigualdades regionais está intimamente ligada à
identificação de seuselementos determinantes e, portanto, ao caráter das propostas, acadêmicas ou
governamentais, voltadas para sua superação. É imprescindível destacar que essas leituras e
propostas de intervenção na dinâmica socioespacial, inclusive na problemática regional, possuem
um conjunto próprio de ideologias e projetos políticos subjacentes, que podem ter maior ou menor
grau de aderência aos propósitos dos atores hegemônicos no poder.
Entender as desigualdades regionais como desequilíbrios / disparidades nas taxas de
crescimento econômico das diferentes áreas do país, sugere propostas que pretendem promover o
dinamismo econômico em regiões “atrasadas” / “estagnadas”. Do ponto de vista governamental,
essa aceitaçãoserviu em parte para subsidiar a criação de Polos de Desenvolvimento na década de
1970, realizados de forma política e espacialmente centralizada, além de burocrática, desvinculada
das demais políticas públicas e sem participação social. resultando assim no aumento das
desigualdades regionais no Brasil.
20

Compreender as desigualdades regionais do país em consequência da divisão regional do


trabalhoa nível nacional, resultante do processo de industrialização, como fazem Francisco de
Oliveira e Ruy Moreira, tende a implicar propostas relacionadas com um (re) ordenamento do
território, pois visam alterar a estrutura socioeconômica do território do país, incluindo as relações
inter-regionais, envolvendo regiões desenvolvidas/ centrais/ avançadas e regiões
subdesenvolvidas/ periféricas/ atrasadas. Nesse sentido, até o momento não existem políticas
públicas que visem a um verdadeiro (re) planejamento regional no Brasil, embora nossa
Constituição Federal, promulgada em 1988, estipule a imprescindível adoção de tal política no
âmbito de um Projeto Nacional, que, aliás, também é inexistente. Os Eixos Nacionais de
Integração e Desenvolvimento, com uma finalidade semelhante a uma política de (re)
planejamento territorial, aumentaram, em seu cerne, as desigualdades regionais existentes. Esse
fato está parcialmente associado às influências neoliberais arraigadas na esfera político-
econômica e às influências gerenciais na esfera político-administrativa.
Considerando a essência da Política Nacional de Desenvolvimento Regional,
consideramos que ela teria maior capacidade de combate à desigualdade regional, dado seu
conjunto de inovações teóricas e metodológicas e novos instrumentos financeiros e
administrativos, como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. No entanto, a resistência
política que surgiu contra a PNDR, por ter potencial para contribuir com a mudança estrutural
necessária ao desenvolvimento socioeconômico do país, acabou levando a graves déficits de
implementação e execução.
Isso mostra que a problemática regional está no cerne do subdesenvolvimento do Brasil,
porque estáem linha com a nossa "malformação estrutural". No entanto, para construir um país
mais igualitário, é preciso haver consenso sobre o escopo de um projeto nacional de longo prazo
em relação à problemática regional.

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22

DESENVOLVIMENTO REGIONAL: UMA QUESTÃO SEMPRE ATUAL

Alan Elias Silva2


Introdução
As implicações do desenvolvimento regional no território brasileiro perpassam dimensões
interdependentes, no que tange aos aspectos educacionais, socioambientais, socioeconômicas e
culturais. Tendo em vista a multidimensionalidade que a questão carrega consigo, é de salutar os
estudos investigativos sobre os impactos positivos e/ou negativos, no que se refere as políticas
públicas (DINIZ, 2009; CAVALCANTE, 2018).
As políticas são vistas por Frey (2000) como a análise da estrutura institucional que visam
abrir alternativas possíveis aos desafios de um Estado. Portanto, no campo das públicas, os
problemas são inúmeros. Em face desse argumento, aos olhos de Pessoa e Milani (2018) e Rocha
Neto (2020), o quadro de desequilíbrio inter-regional, com repercussões que influenciaram a
atuação do governo com relação à questão regional. Colocando em voga a necessidade de uma
política que a preconize.
O ponto de partida foi a inquietação central que moveu a escolha do tema, surgindo frente
ao cenário das desigualdades como uma experiência alocada resultante de uma política pública que
converge desenvolvimento regional. Neste contexto, o artigo buscou discutir as disparidades
regionais a partir de uma conversa entre políticas públicas e desenvolvimento regional.
A fim de cumprir com propósitos delineados, registre-se que a base desta pesquisa será
alicerçada em uma análise exploratória. Vergara (2007) descreve este momento da pesquisa a partir
de conteúdos publicados à disposição, como sendo composto por materiais impressos ou digitais,
permitindo aumentar a investigação em torno de um certo problema. Para Fonseca (2002) e Vergara
(2007) ao optar por fazer uso das produções encontradas, tende a ressaltar o conhecimento,
entendimento e aprofundamento dos aspectos teóricos e conceituais, possibilitando conhecer o que
já se estudou, as descrições dos métodos, e as técnicas utilizadas no caminho metodológico
escolhido e aplicado.

Desenvolvimento
Em termos gerais, nos últimos anos percebe-se um grande interesse no território das políticas
públicas. Souza (2006; 2007) evidencia as áreas saber – administração, economia planejamento
urbano e outras - que partilham de um incremento comum, depreendendo como as políticas públicas

2
Universidade Estadual de Goiás – UEG. Mestrando em Ambiente e Sociedade. Integrante do Grupo de
Pesquisa/CNPQ - Laboratório Interdisciplinar Sociedade, Ambiente e Direito (LISA-D), Piauí, Brasil. E-mail:
[email protected]
23

interferem no campo de atuação dessa ciência, como também implicam nas transformações pelas
quais a sociedade passa ao longo do tempo.
Antes de um aprofundamento na discussão, é importante trazer à tona do ponto de vista
teórico-conceitual, sobre o que define. Sendo, assim possível apontar um horizonte com base na
literatura, segundo o entendimento que as envolvem. Sob o olhar de Thomas Dye (2011) trata-se de
um conjunto de ações organizadas de um governo dentro de uma estrutura burocrática capaz de
afetar o comportamento social para atingir seus resultados esperados.
Caminhado a uma perspectiva histórica sob o enfoque conceitual do ponto de vista teórico,
Frey (2000) e Souza (2006) demonstram que enquanto área de conhecimento e disciplina
acadêmica, o seu surgimento nos Estados Unidos da América sob o rótulo de policy Science no final
da década 1950. Já na Europa, especialmente na Alemanha, intensificou-se a partir do início dos
anos 1970, período em que aconteceu a ascensão da social-democracia, com o planejamento das
políticas públicas, sob olhar preocupante de campos específicos setoriais, a ponto de serem
estendidos expressivamente em prol de solucionar os problemas sociais.
No mundo acadêmico americano, as políticas públicas emergiram buscando sentido nas
relações com as áreas do conhecimento, despertando o interesse por entender a sua real dimensão
interativa. Se por um lado, no território americano os seus estudos se voltaram diretamente com
ênfase na ação dos diferentes governos, por outro lado, no campo acadêmico europeu, esteve
fundamentada em desdobramentos baseados em teorias explicativas sob a análise do papel do
Estado com o seu conjunto de instituições que compõem a estrutura organizativa e suas ações
governamentais para atender as demandas sociais (SOUZA, 2006; FREY 2000).
Enquanto isso, no caso brasileiro, Frey (2000) percebeu que o campo das políticas no Brasil
esteve por muito tempo centrado na atuação do Estado, tendo como base a análise da estrutura
institucional. Paralelamente, recaindo com a caracterização dos processos políticos nos ditames de
negociação, com destaque das políticas públicas setoriais que visam abrir alternativas possíveis ao
cumprimento dos direitos específicos, principalmente no que se refere aos setores de educação,
saúde, alimentação, seguridade social, transporte, habitação, emprego e renda.
Dentro desse panorama, as políticas devem ser concebidas por um conjunto de atores que
deliberam sobre o que fazer, por que fazer, quando fazer e como fazer em relação ao problema
detectado. Logo, as políticas públicas são instrumentos que devem ser construídas a partir de
diversos atores que expressam sua heterogeneidade de uma democracia (SOUZA, 2006), o Estado
visa atender os múltiplos interesses da sociedade por meio da implementação destas (FREY, 2000).
É notório que a presença desses elementos elucida a necessidade de articulação entre si, a
partir de sua integração no processo de formulação da política pública, contemplando também a
questão do desenvolvimento regional. A questão regional tem pautado muitas discussões, uma vez
que o campo de estudo dessa temática é naturalmente nebuloso diante das suas complexidades no
24

que tange aos aspectos educacionais, socioambientais, socioeconômicas e culturais. Portanto, tendo
em vista a multidimensionalidade que a questão carrega consigo, é de salutar os estudos diante das
complexidades e características peculiares das regiões do país (DINIZ, 2009; CAVALCANTE,
2018). Nesse sentido, as ações para o desenvolvimento de cada região, embora sejam derivadas de
política pública federal - um tipo que se caracteriza uma intervenção -, devem ser consideradas sob
a interação alicerçada das variáveis de alocação de recursos e sua estrutura institucional e social.
Kingdon (2007) e Souza (2006) destacam isso como sendo a base de suas ideias sobre participação
ativa dos atores sociais.
Rocha Neto (2020) aponta as estratégias da equidade como caminhos de apoio aos
processos e acesso a oportunidades de desenvolvimento regional, tendo em vista que os objetivos
apresentados na Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), por meio do Decreto
Federal nº 9.810, de 30 de maio de 2019. Com esse instrumento legal que é a PNDR se busca
minimizar as assimetrias regionais, especialmente sociais e econômicas, o que pode ser notado
como objetivo comum de proporcionar o desenvolvimento.Para tanto, vislumbra-se que esse
conjunto, traria mais engajamento da ação pública, baseada em uma intervenção consciente acerca
da necessidade das questões referentes às desigualdades regionais ao somar forças para o
enfrentamento da questão. Nesse movimento, Da Silva, Kovaleski e Pagani (2019) ressaltam ecos
na visão ampla e multidisciplinar relacionada ao campo do desenvolvimento sob o escopo regional.
O que, por sua vez, para uma agenda de política pública política específica de desenvolvimento
regional, deve-se pensar as especificidades e peculiaridades de cada localidade, no bojo de atender
às diferenciações existentes, que Diniz (2009) e Cavalcante (2018) veem como alternativa das
assimetrias regionais.
Para que efetivamente se concretize o discurso, nas lentes teóricas de Feitosa e Aranha
(2020) deve-se estimular o desenvolvimento das regiões, tendo como pilares as ações
governamentais para a geração de trabalho, renda e melhoraria da qualidade de vida da população,
com a finalidade de diminuir a desigualdade social no Brasil. Ver-se no suporte legal e institucional,
um caminho sendo galgado em ações comandadas pelo setor público, na busca de diminuir as
distorções e desigualdades presente entre as regiões, visto que convergem para as regiões menos
dinâmica socioeconomicamente, que necessitam de maiores olhares públicos.
Assim, as políticas destinadas ao desenvolvimento regional como uma forma do Estado
atuar nesta região e subsidiar configurações de ações oficiais, no escopo de refletirem a uma
transição do pensamento de combate distorções regionais à convivência do homem com o contexto
regional. Nesse sentido, a PNDR entra em cena num discurso da possibilidade de um
desenvolvimento considerando além das dimensões econômica e social, as dimensões da
sustentabilidade, identidade cultural e a vocação local.
25

Conclusões
A inquietação central que moveu a escolha da temática, surgiu frente ao cenário que este
se constitui a política pública que converge desenvolvimento regional no patamar que visou tecer
de uma perspectiva holística para um conjunto de decisões contemplando diversos atores no
contexto de melhorar os resultados e consequentemente gerar maiores impactos no que diz respeito
a égide do desenvolvimento. Nesse bojo, tornar mais desenvolvida uma região no país, passa pela
instrumentalização de políticas públicas adequadas a realidade. Assim, acredita-se em uma legítima
atuação estatal em conjunto com outros atores sociais na busca de uma transformação da dinâmica
do espaço socioeconômico. E, com as particularidades que a região detém, atrair instituições no
apoio nas ações de desenvolvimento regional advindos a partir da concepção de espaços para essa
finalidade.
Dentro dessa contribuição crítica de base científica, promover uma compreensão da
política pública e sua uma contribuição beneficiadora na perspectiva regional, eleva como fator
justificante aos rebatimentos dos impasses que circundam a questão, destacando os impasses
presentes. À vista disso, tratar do tema é relevante devido, pois aludem os desafios enfrentados
pelos atores e instituições envolvidas no processo de implementação de políticas públicas sob o
foco do desenvolvimento regional, utilizando como premissa as disparidades socioeconômicas.

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27

RELAÇÃO ENTRE SANEAMENTO BÁSICO E INDICADORES DE SAÚDE INFANTIL


Igor Américo dos Santos 3
Marco Aurélio Marques Ferreira 4
Juliana Maria de Araújo 5
Introdução
A condição de saneamento é tão importante para a qualidade de vida e o desenvolvimento
humano que não é raro seu uso como proxy para a mensuração do nível de pobreza,
subdesenvolvimento e investimento no capital humano. Diversos trabalhos na literatura
internacional apontam, há décadas, a relação positiva entre saneamento, saúde pública e
desenvolvimento humano, embora haja inequívocas evidências de maior importância dessa temática
na agenda internacional de políticas públicas a partir dos anos 2000.
Existe uma relação direta entre desenvolvimento e saneamento (Heller, 1998), uma vez que
este está relacionado com a prosperidade financeira da população e do país, promove redução nos
gastos em saúde pública e contribui com o desenvolvimento econômico. De fato, para cada US$1
investido em ações de saneamento, há uma estimativa de redução com gastos públicos em saúde
entre US$5 e US$28, a depender das próprias características de cada região (HALLER; HUTTON;
BARTRAM, 2007).
Por conseguinte, “países com melhores coberturas por saneamento têm populações mais
saudáveis, o que por si só constitui um indicador de nível de desenvolvimento” (HELLER, 1998, p.
5). De modo contrário, regiões com piores índices de cobertura de saneamento ou que apresentam
baixa qualidade do setor também possuem populações mais vulneráveis socialmente. Assim sendo,
a parcela da população mais vulnerável corresponde justamente àquela excluída dos benefícios do
desenvolvimento (HELLER, 1998).
Diversos estudos sobre saneamento básico apontam a sua relação com a saúde (Oliveira;
Minayo, 2001; Teixeira; Gomes; Souza, 2012; Uhr; Schmechel; Uhr, 2016; Silva; Esperidião, 2017;
Paiva; Souza, 2018; Barrocas; Moraes; Sousa, 2019; Neto; Carcará; Silva, 2019), mas um número
reduzido vincula esta associação à temática do desenvolvimento humano (HELLER, 1998;
WOLFART, 2014). Além disso, os estudos sobre o tema em sua grande maioria concernem à área
epidemiológica e sanitária, sendo ainda incipientes análises sob o ponto de vista da gestão pública
e políticas públicas.

3
Universidade Federal de Viçosa. Graduando em Administração pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail:
[email protected]
4
Universidade Federal de Viçosa. Doutor em Economia Aplicada e Professor Titular da Universidade Federal de
Viçosa. E-mail: [email protected].
5
Universidade Federal de Viçosa. Mestra em Administração pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail:
[email protected]
28

Desse modo, este trabalho objetivou analisar os efeitos do saneamento sobre as condições
de saúde pública, especialmente de dimensões da atenção primária. Os indicadores de resultado
foram mensurados de acordo com indicadores infantis, uma vez que a morbimortalidade das pessoas
que se encontram nessa faixa etária está diretamente atrelada às questões sanitárias e suas
aplicações.
Como diferencial deste estudo, tem-se a análise de três modelos de extrema relevância para
a caracterização da saúde infantil, incorporando também variáveis referentes ao acesso à saúde,
cobertura da atenção básica, contexto socioeconômico e indicadores financeiros. É relevante
mencionar que ainda são escassos estudos sobre o tema que incorporam também questões
econômicas (TEJADA et al., 2019). Ademais, têm-se como recorte todos os municípios da região
sudeste, uma vez que esta é a região mais populosa e desenvolvida do país.
As descobertas deste estudo têm como repercussão o fomento da discussão dos efeitos do
saneamento básico sob outra perspectiva da saúde, desenvolvimento e qualidade de vida. Ademais,
permitem avançar na compreensão dos aspectos que podem favorecer o avanço da cobertura de
saneamento, assim como a revisão ou introdução de novas políticas públicas inclinadas para a
aceleração dos condicionantes de acesso, especialmente para a parcela mais vulnerável da
sociedade, historicamente à margem desse processo.
Além da introdução apresentada, o estudo conta com mais três sessões. A próxima seção
detalha a utilização dos métodos e técnicas de análise dos dados, sendo sucedida pelos resultados
do estudo e discussão contemplando o conhecimento já existente na área. Por fim, as principais
descobertas e suas inferências para o campo de conhecimento são sintetizadas na conclusão.

Desenvolvimento
Nesta sessão serão discutidos os procedimentos metodológicos adotados no estudo,
incluindo o detalhamento acerca das variáveis utilizadas e seu embasamento teórico, além das
técnicas empregadas.

Unidade de análise e variáveis utilizadas


Os dados coletados são referentes aos 1.668 municípios que compõem a região sudeste
brasileira, contemplando as 853 cidades de Minas Gerais, 78 do Espírito Santo, 92 do Rio de Janeiro
e 645 de São Paulo. Esta região é conhecida por seu dinamismo econômico e pelos grandes centros
populacionais, concentrando uma grande parte da dinâmica econômica nacional. Além disso, é uma
região marcada também por iniquidades diversas, com diversas cidades de menor expressividade
econômica e menor porte populacional. Dessa forma, a análise desta região permite compreender a
relação entre o saneamento e a saúde infantil em meio em uma grande diversidade de contextos
socioeconômicos e perfis populacionais.
29

Como variável de resultado, optou-se pela utilização de três indicadores que refletem
aspectos importantes da saúde infantil em diferentes etapas: óbitos fetais, óbitos evitáveis em
menores de cinco anos e taxa de mortalidade infantil. Portanto, estes elementos refletem as
condições de saúde em diferentes estágios, sendo indicadores importantes acerca da vulnerabilidade
infantil. O Quadro 1 contém a descrição das variáveis utilizadas.

Quadro 1: Variáveis utilizadas no estudo

Expectativa
Variável Descrição Ano Fonte
teórica
Número de óbitos fetais
ocorridos a cada mil Variável MS/SVS/CGIAE - Sistema de
ObFet 2018
nascidos vivos, por local de dependente Informações sobre Mortalidade - SIM
residência.
Óbitos por causas evitáveis
Variável 2018 MS/SVS/CGIAE - Sistema de
ObEv em menores de 5 anos a
dependente Informações sobre Mortalidade - SIM
cada mil nascidos vivos.
Elaborado a partir de MS/SVS/CGIAE -
Taxa de mortalidade infantil
Sistema de Informações sobre
(menores de um ano de Variável 2018
TMI Mortalidade - SIM e MS/SVS/DASIS -
idade) a cada 1.000 nascidos dependente
Sistema de Informações sobre Nascidos
vivos.
Vivos - SINASC
Proporção da população
- 2018
Tx_água coberta com abastecimento SNIS
de água. Em %
Proporção da população
2018
Tx_res coberta com a coleta de - SNIS
resíduos sólidos. Em %
Proporção da população
2018
Tx_es atendida com esgotamento - SNIS
sanitário. Em %
Número de médicos da Ministério da Saúde - Cadastro Nacional
2018
Med_AB Atenção básica a cada 3.450 - dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil
habitantes. - CNES
Transferências fundo a
2018 Elaborado a partir de Fundo Nacional de
Transf fundo para a área da saúde, -
Saúde e IBGE
per capita.
Ln das receitas correntes 2018
RecCorrente - Tesouro Nacional
municipais per capita.
Valores monetários do
2018
ICMS ICMS per capita. Em - Finbra
R$/habitante
Número de estabelecimentos Elaborado a partir de Ministério da Saúde
2018
EstabSaude de saúde a cada 1.000 - - Cadastro Nacional dos Estabelecimentos
habitantes de Saúde do Brasil - CNES e IBGE
Número de médicos que Ministério da Saúde - Cadastro Nacional
2018
Med_SUS atuam no SUS a cada 1.000 - dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil
habitantes. - CNES
Pib per capita. Em 2018
Pib - IBGE
R$/habitante
Número de beneficiários do
2018 MDS, Cadastro Único para Programas
BolsaFam Programa Bolsa Família a +
Sociais (CadÚnico) e IBGE
cada 1.000 habitantes.
Nota: alguns autores não utilizaram especificamente tais variáveis, mas seus estudos permitem inferir sobre a
influência das mesmas.

Fonte: Dados da pesquisa.


30

Como variáveis de interesse, têm-se três das quatro tipologias dos serviços de saneamento
básico, que foram consideradas de acordo com a especificidade de cada variável dependente. Para
os óbitos fetais, que estão relacionados à saúde materna, suas condições de vida e acesso ao sistema
de saúde (Barbeiro et al., 2015) acredita-se que sejam influenciados pelo esgotamento sanitário,
abastecimento de água e coleta de resíduos sólidos. Já os óbitos evitáveis em crianças menores de
5 anos e a taxa de mortalidade infantil estariam mais relacionados ao abastecimento de água e coleta
de resíduos sólidos, já que estão ligadas na maioria das vezes a pneumonias ou gastroenterites
(OLIVEIRA; MINAYO, 2001). Além disso, há evidências na literatura de que os serviços de
esgotamento sanitário prestados, por terem seus índices de acesso menores, não exercem influência
sobre os óbitos evitáveis e a TMI (WOLFART, 2014).

Técnicas de análise dos dados


As variáveis foram submetidas a três modelos de regressão linear múltipla (RLM),
contemplando os indicadores de saúde infantil com seus respectivos fatores condicionantes. Este
método é indicado para analisar a relação entre uma variável dependente e diversas variáveis
independentes ou explicativas.
A estimação do modelo se deu pelo Método dos Mínimos Quadrados, sendo utilizado o teste
F para análise da validade geral do modelo e testes t para análise individual da significância
estatísticas dos coeficientes. Para analisar se existia multicolinearidade entre as variáveis
independentes foi utilizado o teste VIF, além do teste de White para verificação da
homocedasticidade dos resíduos e teste de Assimetria/Curtose para análise da normalidade dos
mesmos. Diante da evidenciação de heterocedasticidade dos resíduos, foi executada a regressão
com correção robusta para eliminação de vieses de estimação.
Como os coeficientes da regressão são estimados na mesma unidade de medida da variável,
foi gerado também o beta padronizado de cada variável, que indica a força da associação entre as
variáveis. Assim, a dimensão das variáveis não interfere mais na magnitude do efeito, que passa a
ser passível de comparação.

Resultados e Discussão
Conforme discutido, foram estimados três modelos de regressão linear múltipla, abarcando
diferentes aspectos da saúde infantil e seus condicionantes. Os resultados obtidos, bem como o
coeficiente beta padronizado, constam na Tabela 1.

Tabela 1: Resultados da regressão linear múltipla com correção robusta

Coef. Erro-padrão. Valor t p-valor Beta


Óbitos fetais
Tx_água -0,0004240 0,0002139 -1,98 0,048 -0,096 R2 0,1538
2
Tx_es -0,0002939 0,0001391 -2,11 0,035 -0,096 R ajust. 0,1467
31

Tx_res -0,0001456 0,0000800 -1,82 0,069 -0,054 Teste F 21,770


Med_AB -0,0038927 0,0015975 -2,44 0,015 -0,094 Prob > F 0,000
Transf 0,0000920 0,0000296 3,11 0,002 0,124 Num. de Obs. 1.088
RecCorrente 0,0565974 0,0211672 2,67 0,008 0,198
ICMS -0,0000192 8.78e-06 -2,19 0,029 -0,117
EstabSaude -0,0204618 0,0037145 -5,51 0,000 -0,172
Med_SUS 0,0021379 0,0008773 2,44 0,015 0,080
Constante -0,2205199 0,1604423 -1,37 0,170 -

Óbitos evitáveis
Tx_água -0,0493228 0,0153442 -3,21 0,001 -0,108 R2 0,0535
2
Tx_res -0,0176154 0,0079648 -2,21 0,027 -0,063 R ajust. 0,0504
Med_AB -0,3111071 0,1607924 -1.93 0,053 -0,069 Teste F 17,120
Pip_percapita -0,0000375 6.38e-06 -5.87 0,000 -0,109 Prob > F 0,000
Constante 24,20978 1,203739 23,68 0,000 - Num. de Obs. 1.217

TMI
Tx_água -0,0316551 0,0163073 -1,94 0,052 -0,076 R2 0,0770
2
Tx_res -0,0136437 0,0075436 -1,81 0,071 -0,054 R ajust 0,0723
Med_AB -0,2455829 0,1454239 -1,69 0,092 -0,061 Teste F 16,165
Pib -0,0000269 5.24e-06 -5,14 0,000 -0,087 Prob > F 0,000
Transf 0,0068335 00024106 2,83 0,005 0,094 Num. de Obs. 1.169
BolsaFam 0,0088435 0,0034473 2,57 0,010 0,104
Constante 16,416510 1,816114 9,04 0,000 -
Fonte: Resultados da pesquisa

No primeiro modelo, que se refere aos óbitos fetais, percebe-se que os três serviços de
saneamento básico apresentaram coeficiente negativo, corroborando sua importância para a
melhoria deste indicador de saúde infantil. Este resultado é condizente com o esperado, confirmado
que o saneamento básico está relacionado à qualidade de vida e saúde das gestantes e,
consequentemente, à probabilidade de perda fetal.
Os estabelecimentos de saúde e médicos da atenção básica também apresentaram coeficiente
negativo, ou seja, afetam negativamente os óbitos fetais. Este resultado corrobora a revisão
sistemática elaborada por Barbeiro et al. (2015), indicando que esta classe de óbitos está relacionada
a deficiências no sistema de saúde, em especial na atenção pré-natal. Assim, ainda conforme os
autores, as causas dos óbitos fetais seriam ainda passíveis de prevenção e tratamento, o que poderia
ser realizado por meio de intervenções no sistema de saúde.
No entanto, o número de médicos do SUS apresentou coeficiente positivo, o que pode ser
indício de maior investimento no sistema único de saúde nas localidades em que o número de óbitos
fetais ainda é alto. O coeficiente positivo verificado para as variáveis receitas correntes e
transferências financeiras para a saúde também confirma essa tendência de investimento no sistema
de saúde. De fato, as referidas variáveis estão relacionadas ao custeio da prestação dos serviços
públicos, ou seja, são usadas para a manutenção da máquina pública.
Já a variável referente ao ICMS per capita apresentou coeficiente negativo, significando uma
influência negativa sobre o número de óbitos fetais. Este imposto representa a dinâmica econômica,
consistindo em uma das principais fontes de recursos dos estados e municípios para que possam
32

cumprir suas funções básicas (SOARES; GOMES; TOLEDO FILHO 2011). Dessa forma, os óbitos
fetais também estão relacionados aos indicadores econômicos locais, o que corrobora o estudo de
Bonfim (2020) ao afirmar que a questão econômica seria um dos mais importantes determinantes
da saúde de uma população.
É relevante destacar que as variáveis referentes aos estabelecimentos de saúde e receita
corrente apresentaram o maior valor para o beta padronizado. Isso indica que, dentre todas as
variáveis do modelo, estas seriam aquelas que possuem maior magnitude de influência. Assim,
ações mais efetivas para a diminuição dos óbitos fetais estariam relacionadas à ampliação da
capacidade financeira e do sistema de saúde municipal. Neste aspecto, o saneamento teria papel
primordial, tendo em vista a economia proporcionada com ações de saúde pública.
Em relação ao segundo modelo, que tem como variável dependente os óbitos evitáveis em
crianças de até cinco anos, os resultados são bastante semelhantes. Primeiramente, ressalta-se a
influência negativa dos serviços de saneamento básico, com foco no abastecimento de água e coleta
de resíduos sólidos. Estes resultados vão ao encontro de Kale et al. (2019) ao constatar que cerca
de um quinto das chances de sobrevida dos recém-nascidos até seu quinto ano de vida estaria
associada ao seu nascimento em situação de ameaça à vida. Ainda conforme os autores, a ameaça
à vida poderia ser reduzida através de intervenções no sistema de saúde, minimizando as causas de
mortalidade.
De fato, os resultados evidenciaram a influência negativa da cobertura de médicos da
atenção básica sobre a taxa de óbitos evitáveis em menores de cinco anos. Este resultado é
condizente com a literatura, uma vez que existem meios efetivos para a diminuição dessa tipologia
de óbitos, que geralmente estão ligados ao acesso ao sistema de saúde e às condições
socioeconômicas (BOING; BOING, 2008; KALE et al., 2019).
A respeito das condições socioeconômicas, ressalta-se o coeficiente negativo encontrado
para a variável PIB per capita, corroborando os resultados obtidos por Tejada et al. (2019) e
Teixeira, Gomes e Souza (2012). A referida variável apresentou a maior magnitude de efeito em
relação aos óbitos evitáveis, seguida do abastecimento de água, corroborando a relevância de ambas
para a melhoria das condições de saúde da população.
Os resultados para o terceiro modelo, referente à taxa de mortalidade infantil, refletem os
mesmos resultados do segundo modelo para as variáveis referentes ao saneamento básico, cobertura
dos médicos da atenção básica e pib per capita. Além do mais, eles corroboram outros estudos que
apontam que o saneamento básico seria um dos fatores determinantes da saúde (Teixeira et al.,
2012). Dessa forma, o investimento nos serviços de saneamento e atendimento médico à população
contribuem para a minimização da TMI, que também está atrelada à dinâmica econômica local.
Assim como no primeiro modelo, a variável referente às transferências financeiras para a
saúde apresentou coeficiente positivo, indicando uma associação positiva direta com a TMI. Isso
33

que sugere que os municípios com maior taxa de mortalidade fetal e na infância possam estar agora
expandindo seu sistema de saúde para uma maior capacidade de atendimento à população. Esta
preocupação com a garantia do acesso à saúde seria, de fato, necessária uma vez que a literatura
aponta que as causas da mortalidade infantil e fetal ainda seriam passíveis de intervenção por meio
da expansão do acesso à saúde, com ênfase na gestante e crianças em seus primeiros dias de vida
(Teixeira et al., 2019).
Já no que se refere à população beneficiária do Bolsa Família, os resultados evidenciaram
uma relação positiva com a TMI, divergindo dos resultados encontrados por Silva e Paes (2019) ao
analisarem 1.133 municípios do semiárido brasileiro. Assim, os recursos do Bolsa Família ainda
estariam associados ao aumento na mortalidade infantil, o que é compreensível do ponto de vista
de que eles são destinados às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza.

Considerações Finais
Os resultados demonstraram que os indicadores de saúde infantis utilizados ainda
correspondem a fatores evitáveis por meio do investimento no sistema de saúde e através da garantia
do acesso ao saneamento básico. A redução desses índices poderia ser alcançada com o melhor
acompanhamento da mulher durante a gestação e no parto e com a expansão do acesso à saúde
básica à população em geral.
Os resultados também evidenciam a importância da expansão do acesso ao saneamento
básico, sendo a ausência deste serviço um importante indicador de vulnerabilidade social que coloca
em risco as gestantes e crianças em todas as faixas etárias. Os resultados evidenciaram que o acesso
a estes serviços exerce efeito negativo sobre os três indicadores analisados, corroborando a
importância do saneamento para as crianças em quaisquer faixas etárias e para a prevenção dos
óbitos fetais.
Esse estudo avança em relação à literatura por desvelar a relação entre o acesso ao
saneamento básico e diversos indicadores de saúde de um estrato específico da população sob a
perspectiva do desenvolvimento humano. Apesar dos avanços já verificados através das políticas
públicas de ampliação do acesso aos serviços à saúde, priorizando áreas mais remotas e com
menores indicadores socioeconômicos, a saúde infantil e materna ainda requerem atenção. Não
obstante a recente preocupação com as parcelas mais vulneráveis da população, é inegável que ainda
há uma considerável mortalidade por comorbidades evitáveis com a garantia de serviços básicos
com qualidade. Portanto, são necessárias políticas públicas voltadas a esse aspecto, majorando os
níveis de qualidade de vida, acesso à saúde e desenvolvimento humano.

Referências
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34

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35
36

MULHERES RURAIS NO BRASIL: IMPACTOS DO DESMONTE DE POLÍTICAS


PÚBLICAS DURANTE A PANDEMIA DE COVID - 19

Isabella Pizarro Tiburcio6


Sofia Santos Vasques Simões de Carvalho7

Introdução
As desigualdades geradas pelo modelo de desenvolvimento rural no campo brasileiro são
ainda mais agravantes quando tratamos sobre as mulheres que nele vivem e trabalham. Estas que,
muitas vezes sobrecarregadas pelo exercício de triplas jornadas de trabalho, têm sua atuação na
atividade rural invisibilizada e diminuída, ora tanto pelo próprio núcleo familiar, devido a divisão
sexual do trabalho, ora pelo Estado, que se faz insuficiente na elaboração e implementação de
políticas públicas que atendam de forma devida esse recorte social específico (LIMA, LIMA,
SILVA, 2016).
Com a pandemia de Covid-19 e a má gestão governamental brasileira nesse período, as
desigualdades sociais que já se faziam eminentes na história do país, tornaram-se ainda mais agudas.
Nesse sentido, as mulheres rurais eram um grupo em situação de vulnerabilidade e que sofria com
a retirada de direitos desde 2016 - estes que já eram poucos; foram profundamente afetadas pelos
impactos da crise sanitária e não puderam contar com políticas e auxílios que assistissem às suas
necessidades. Diante da problemática trazida, esse artigo tem por objetivo analisar se houve a
manutenção e/ou o desenvolvimento de políticas públicas voltadas às mulheres trabalhadoras rurais
no Brasil, antes e, principalmente, durante a pandemia de Covid-19; portanto, no governo do
presidente Jair Messias Bolsonaro.
Para tal, os procedimentos metodológicos que embasaram as análises e discussões desse
artigo, foram três, de caráter bibliográfico:
1. Revisão bibliográfica de artigos científicos, dissertações e teses com temas transversais aos
trazidos aqui;
2. Revisão de documentos oficiais de interesse ao trabalho, tais como leis, decretos e portarias;
3. Análise e comparação de dados relativos ao tema.
Em relação a estrutura, o artigo foi organizado em três partes, sendo a primeira dedicada a
um breve resgate da situação das mulheres rurais no Brasil no que diz respeito a criação de políticas
públicas específicas que atendessem esse recorte social; na segunda tratamos sobre o momento que
se inicia a desconstrução institucional e política desses direitos; na terceira e última abordamos,

6
Graduação em Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil(2021)
Bolsista CAPES - Mestrado em Geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho , Brasil
7
Graduação em Bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil(2022)
Mestranda em Geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho , Brasil
37

mais especificamente, o período da pandemia de Covid-19 e os impactos da atuação governamental


neste momento, assim como buscamos enaltecer as mobilizações em resistência aos ataques
evidenciados pelo negligência estatal.

Mulheres rurais no Brasil: breve resgate histórico dos direitos conquistados


Tendo em vista as desigualdades sociais que marcam a realidade brasileira, as
vulnerabilidades presentes no campo sobressaem-se às dinâmicas apresentadas nas tramas urbanas.
A elaboração de políticas públicas voltadas às cidades desde seu início avança de forma mais
acelerada do que às relacionadas ao campo. Exemplo dessa disparidade é o fato de que tanto a
elaboração de políticas públicas, quanto dos direitos trabalhistas para os trabalhadores rurais foram
efetuadas muito tardiamente, “enquanto a legislação trabalhista urbana data dos anos 40, apenas no
final dos anos 60, cerca de 30 anos depois, é promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural”
(HEREDIA, CINTRÃO, 2006, p. 2).
Destacando-se o recorte de gênero dentro da realização destas políticas públicas, a
discrepância se torna ainda maior quando tratamos sobre os direitos das mulheres rurais.
Historicamente, a primeira vez em que se foi apontado especificamente políticas para esse recorte,
foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornando um marco para a história dessas
mulheres, uma vez que documento que reconheceu o direito da mulher rural de se tornar beneficiária
da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária e o direito de se aposentar.
As políticas sociais para a agricultura familiar passam a surgir no cenário público
verdadeiramente a partir dos anos 1990, nesse sentido, incluindo-se tanto as políticas relacionadas
a crédito rural, quanto a educação do campo, além do reconhecimento identitário e cultural dos
povos tradicionais - no sentido de raça e etnia, assim como de geração de trabalho e renda, e de
gênero, buscando considerar suas multiplicidades, complexidades e diversidades como expressões
do mundo rural (CASTELLS, 1999).
Ao analisar o acesso das mulheres rurais à previdência social, que mesmo garantida na
constituição de 1988, se tem um cenário em que, “apenas em 1991, como consequência de
mobilizações dos movimentos das trabalhadoras rurais que levaram ao estabelecimento de leis
complementares” (HEREDIA e CINTRÃO, 2006, p. 12).
O espaço institucionalizado com gestão participativa só foi criado a partir da ascensão de
governos de esquerda, no caso do Brasil, especificamente com o governo do presidente Lula, do
Partido dos Trabalhadores, no ano de 2003 (HORA, 2015). Nesse sentido, um dos maiores
destaques foi a instituição do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado pelo artigo 19 da
Lei nº 10.696 de 02 de julho de 2003, que tinha como principais objetivos a promoção do acesso à
alimentação e o incentivo à agricultura familiar.
38

A partir desse momento, as subjetividades e especificidades da mulher e do campo começam


a ser levadas em consideração na elaboração de políticas públicas, ocorre uma guinada dos direitos
femininos e rurais.
No período de 2003 a 2015 as mulheres ganharam mais espaço na agenda política
do governo federal através do desenvolvimento de políticas públicas com enfoque
de gênero que visavam à inclusão social, participação política e acesso a direitos e
bens e recursos econômicos para mulheres camponesas. O reconhecimento do
protagonismo, trabalho e direitos das mulheres pelo Estado se deu a partir do
desenvolvimento de políticas públicas para as mulheres camponesas através da
Diretoria de Políticas para as Mulheres Rurais (DPMR) e do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA). (RAPOZO, 2019, p. 11)

Com a instituição do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Diretoria de Políticas


para as Mulheres Rurais, os caminhos das mulheres rurais tomam novos rumos, uma vez que suas
demandas passam a ser ouvidas, já que:
O MDA e a DPMR em diálogo com os movimentos de mulheres e sociedade civil
desenvolveram um conjunto de ações e políticas públicas voltadas especificamente
para as mulheres camponesas, tais como; Políticas de Participação Social no
Desenvolvimento Territorial; Programa Nacional de Documentação da
Trabalhadora Rural (PNDTR); Programa Nacional de Organização Produtiva de
Mulheres Rurais; Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) para Mulheres,
Titulação Conjunta da Terra; Pronaf Mulher e outros. (RAPOZO, 2019, p. 10)

Assim, a trajetória da conquista de direitos e melhorias das condições de vida e trabalho


dessas mulheres passam a seguir um novo rumo, de extrema importância política, em razão de

As políticas públicas de gênero para o campo podem ser entendidas como políticas
públicas contra-hegemônicas no contexto atual das relações entre estado e
sociedade civil, vinculadas às ideias de desenvolvimento da autonomia econômica
das mulheres, participação política e cidadania em interface com as discussões
voltadas para o desenvolvimento rural sustentável e solidário presentes na agenda
pública do país (FILIPAK, 2017, p. 149).

Assim, a garantia dessas conquistas contra-hegemônicas seguia no rumo da busca de uma


sociedade mais justa e igualitária, ao passo que atuavam de forma a diminuir cada vez mais os
abismos das desigualdades sociais que formavam nossa sociedade. Entretanto, poucos anos depois,
essa ascensão passa a ser interrompida.

Início do desmonte no governo Temer: o avanço neoliberal

O cenário descrito até então começou a se modificar nos últimos anos, principalmente a
partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), ocorrido em 2016. Nesse momento, o
Brasil passa a vivenciar um profundo e acelerado processo de “desconstrução de marcos jurídicos,
institucionalidades, referenciais e instrumentos de políticas públicas que orientaram a ação estatal
39

desde a aprovação da Constituição Federal de 1988” (LOURENÇO, GRISA, SCHMIDTT, 2022,


p. 9).
Nesse sentido, para exemplificar esse processo, podemos citar o desmonte do Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA), citado anteriormente, de suma importância para buscar a
erradicação da fome no país através do incentivo a agricultura familiar, principal responsável pela
produção dos alimentos que são disponibilizados para o consumo da população brasileira. Sobre o
desmonte do PAA

[...] percebe-se que tem sido capitaneado por atores ligados à agenda neoliberal
que, presentes nos últimos governos federais, de Michel Temer e de Jair Bolsonaro,
também têm executado o desmonte em outras políticas e instituições ligadas à
agricultura familiar – o desmonte está condicionado por motivações políticas-
ideológicas. Todo o arcabouço institucional da agricultura familiar, construído
durante os governos de centro-esquerda, está ameaçado sob a tutela do discurso de
integração da agricultura familiar à agricultura patronal – pregado por atores
políticos ligados ao agronegócio. (MACEDO, 2022, p.105).

Quando focamos nas políticas diretamente relacionadas às trabalhadoras rurais, o Governo


Temer extingue as principais políticas brasileiras dirigidas às mulheres camponesas: o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) e a Diretoria de Políticas para Mulheres Rurais (DPMR)
(RAPOZO, 2019). Dessa forma, o golpe de 2016 aponta nitidamente para um momento em que o
ultraconservadorismo neoliberal passa a avançar,

[...] consequente perseguição e criminalização dos governos democráticos e


populares, como também o desmonte de políticas sociais, e retirada dos direitos
que atendem parte da população mais vulnerável social e economicamente e que
durante muito tempo foi deixada às margens pelo Estado. O governo neoliberal
que assumiu o poder após a tomada do poder da presidenta Dilma Rousseff não
reconhece o importante papel da agricultura familiar camponesa e das mulheres
para a produção de alimentos, geração de renda e emprego no campo. Nesse
contexto, as mulheres tiveram políticas, ministérios e secretarias extintas, assim
como os direitos trabalhistas historicamente conquistados pelas camponesas e
trabalhadoras rurais estão sob ameaça de extinção. (RAPOZO, 2019, p. 12)

Nesse sentido, tais transformações, tanto institucionais como políticas, iniciadas nesse
período, sinalizam “uma profunda reorientação nas prioridades do Estado” (LOURENÇO, GRISA,
SCHMIDTT, 2022, p. 9). Estas, capazes de aprofundar ainda mais as desigualdades sociais no
Brasil, exatamente como ocorreu nos anos posteriores com o governo do presidente Jair Messias
Bolsonaro, trazendo consequências ainda mais sérias devido a má gestão durante a pandemia de
covid-19, como abordaremos de forma mais ampla no próximo item.

Governo Bolsonaro e os impactos da pandemia de COVID-19


40

Ocupando a presidência da república desde 2019, Jair Messias Bolsonaro, antes mesmo de
assumir o cargo, no período de pré-candidatura - ao longo do ano de 2018; já aparecia na mídia
incitando o ódio contra a categoria mulher. Esse discurso, além de incentivar a opressão e o
desprezo, legitima a violência contra mulher. E no campo, local em que os índices de violência de
gênero já eram altos - como mencionado anteriormente; aumentaram ainda mais a partir desse
período, como pode ser visto no gráfico 1.
Gráfico 1: Violência contra mulheres no campo brasileiro (2009 a 2018)

Fonte: Elaborado por Gênero e Número, 2019.

Assim, não foi surpresa a concretização dessa narrativa em ações diretas durante seu
mandato. Nesse sentido, a revista AzMina fez um estudo, em 2021, constatando que Bolsonaro não
usou nem um terço dos recursos aprovados para políticas para mulheres desde 2019:

Entre janeiro de 2019 e julho de 2021, o Planalto não gastou R$ 376,4 milhões dos
R$ 1,1 bilhão disponíveis para 10 rubricas que têm as mulheres como público-alvo
no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e no Ministério da Saúde. É
um terço do total de recursos previstos no orçamento da União, carimbados
especificamente para este conjunto de políticas públicas e com emprego autorizado
pelo Congresso Nacional. O dinheiro, porém, não foi usado para a sua finalidade
e possivelmente retornou ao caixa único, abastecendo outros ministérios ou mesmo
servindo para fomentar o toma lá dá cá que sustenta o apoio do Centrão ao
presidente da República. (REVISTA AZ MINA, 2021)

Já no período pandêmico, ao pensarmos sobre os primeiros desdobramentos gerados pelos


impactos diretamente relacionados ao campo - e que, portanto, não afetaram somente às mulheres,
mas aos agricultores como um todo (REGO; PAULA, 2021); a execução das ações necessárias de
distanciamento e isolamento social, seguindo as orientações propostas pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), comprometeram notadamente as populações que já se encontravam em situação
de vulnerabilidade econômica e social, no que se refere à oferta suficiente de alimentos frescos e
41

pouco processados, em sua maioria provenientes da agricultura familiar (SILVA, et. al, 2020, p.
3.424). Além disso,

Diversos agricultores viram os canais de comercialização serem suspensos, seja


pelo fechamento temporário de restaurantes, seja pela paralisação das aquisições
pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), ou, ainda, em virtude
da redução (e, em diversos casos, fechamento) da comercialização nas feiras livres
e nos mercados. Outros vivenciam dificuldades de comercialização (de alimentos,
produtos, artesanato, mão de obra etc.) em virtude de medidas que têm limitado os
deslocamentos intermunicipais ou restringido o transporte público. (SILVA, et. al,
2020, p. 3.424)

Como consequência desses processos, o aumento da desigualdade social no país, que já era
um abismo, acentuou drasticamente as situações de vulnerabilidade vividas pela população. Estas,
agravadas ainda mais pela insuficiência e, em muitos casos, inexistência de políticas públicas por
parte do governo federal, fizeram com que o Brasil voltasse para o mapa da fome em 2022, segundo
relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). De acordo
com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19
(2021), no segundo semestre de 2021 mais de 33 milhões de brasileiros estavam passando fome e
mais 125 milhões de pessoas estavam convivendo com algum grau de insegurança alimentar no
país.
Entretanto, ao fazermos o recorte de gênero “outros elementos, como, por exemplo, a divisão
sexual do trabalho e a consequente sobrecarga do trabalho doméstico, fazem com que as mulheres
sejam mais afetadas” (REGO; PAULA, 2021, p.92).
Posto isto, as mulheres rurais, além de serem parte essencial dessa produção de alimentos e
serem afetadas mais intensamente com os efeitos da pandemia e do desmonte de políticas públicas,
são constantemente reconhecidas como semelhantes, sem terem suas individualidades levadas em
consideração, o que afeta diretamente na idealização e discussão de políticas que devem envolver
tais subjetividades. Desta forma,

Ao falar de mulheres rurais não estamos nos referindo a um “sujeito universal”


Mulher e sim Mulheres desde suas especificidades, e as interseccionalidades que
marcam suas trajetórias, como as questões de classe, raça, etnia, idade, sexualidade
e práticas sociais diversas. São mulheres que desenvolvem diversas atividades e
que estão inseridas em culturas distintas e que vivem, sentem e reproduzem esse
modo de ser a partir de seus corpos e trajetórias, da sua relação com a natureza,
com a biodiversidade, suas práticas de trabalho, culturais e espirituais. (JALIL et,
al., 2021)

Logo, quando consideradas estas diversas intersecções que percorrem suas trajetórias,
considera-se a vulnerabilidade estrutural desse grupo intensificado para além do já descrito aqui, ao
levar em conta o que não pode ser ocultado: a violência estrutural interseccional. Essa, intimamente
relacionada tanto ao racismo quanto ao patriarcado, marcando seus corpos racializados e
42

sexualizados e expondo suas vidas; “quanto às formas de precariedade material, física, emocional
em decorrência do impacto da COVID-19” (JALIL et, al., 2021).
Ainda no tocante às mulheres rurais, no período da pandemia, o percentual dos trabalhos de
cuidado aumentaram 62% em relação as mulheres urbanas que relataram um aumento de 50%,
segundo relatório elaborado pela revista Gênero e Número junto com a Sempreviva Organização
Feminista (SOF) (2020). Nele também é trazido o debate sobre as dificuldades observadas pelas
mulheres rurais, as quais concordaram que a pandemia ofereceu maior risco à sustentação de suas
casas, o que envolveu, tanto as dificuldades de custeio de contas bancárias, como o acesso a
alimentos (GÊNERO E NÚMERO, SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA, 2020).
Cenário este que, consequentemente, também afeta a saúde mental destas mulheres. Haja vista as
discussões aqui propostas, cabe apontar que pactuamos com a consideração trazida no relatório do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de que:
A eleição de Jair Bolsonaro e a nomeação de Damares Alves como ministra das
mulheres, da família e dos direitos humanos representam uma mudança na direção
das políticas públicas desenvolvidas em prol das mulheres e da igualdade de
gênero. Não apenas institui-se um movimento de desmonte das políticas ainda
existentes como se inicia a construção de uma ‘nova política para as mulheres’,
baseada em uma moralidade religiosa, na centralidade da família tradicional
nuclear e heteronormativa, no resgate de valores tradicionais de gênero e no
embate direto com as pautas e movimentos feministas. (IPEA, 2022, p. 2)

Evidencia-se assim um contexto político de grande ameaça à democracia e aos direitos


conquistados pelas mulheres brasileiras, manifestando o viés neoliberal e, portanto, mercadológico,
assumido pelo Estado nos últimos governos, transparece-se a priorização ao lucro, deixando a
população à mercê de seus próprios meios para sobrevivência.
Todavia, para finalizar, é imprescindível destacar que em todos os momentos aqui tratados
a mobilização popular sempre se fez presente. Nesse sentido, também por meio da atuação
fundamental dos movimentos sociais rurais sempre em luta. Essa resistência é explicitada na maior
ação de mulheres do campo, das florestas e das águas da América Latina, que ocorre a cada 4 anos,
em Brasília (DF): a Marcha das Margaridas. Em síntese, as quatro primeiras edições reivindicaram
desde o acesso das mulheres às políticas públicas voltadas à agricultura familiar, quanto ao
reconhecimento de seu trabalho - por parte do Estado e da sociedade; além da superação da pobreza
vivida por elas, assim como o enfrentamento da violência (MENEZES; GAMA, 2013, p. 6). A
edição de 2019 foi ainda mais significativa, uma vez que denunciou a conjuntura de desmontes e
reafirmou o protagonismo delas na luta por direitos sociais.
Por último, ressaltamos o poder da ação coletiva dos movimentos socioterritoriais em prol
de ações de solidariedade, durante a pandemia, auxiliando “na garantia de direitos básicos a diversos
grupos, especialmente no combate à fome, por meio do acesso a alimentos de qualidade” (VINHA,
et. al, 2021, p. 276), mantendo a soberania alimentar como pressuposto fundante.
43

Conclusões
A partir deste trabalho foi possível compreender que, seja em momentos de progresso ou de
retrocesso, a luta sempre se fará presente. As mulheres rurais brasileiras, além de fonte essencial
para a sobrevivência do país, são exemplos de enfrentamento e resiliência. A coletividade que molda
os ideais de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e Movimento
das Mulheres Camponesas deve servir de exemplo para as demais lutas. Coletividade esta, que vêm
ao longo dos anos buscando diminuir a desigualdade de gênero, reformulando padrões enraizados
na sociedade.
Os dados e trajetórias expostos até aqui, moldaram este artigo que, para além de escrita
acadêmica, deve ser lido como denúncia. Denúncia à conjuntura neoliberal de desmonte de políticas
públicas e, portanto, em oposição a esse direcionamento, buscamos também destacar dinâmicas que
confrontam tal cenário, visando fortalecer estruturas efetivamente democráticas. Sendo assim,
espera-se que em 2023, com uma nova guinada progressista, a recuperação dos direitos perdidos e
a implementação de novas políticas alinhadas com uma sociedade mais justa e igualitária, sejam de
fato instituídas, porque ainda há muito o que ser feito. Apesar de um futuro mais esperançoso, a luta
não para e as mulheres rurais brasileiras devem ser vistas, caso contrário, não é apenas o campo que
morre, mas sim o país inteiro.

Referências
BRASIL, Código Civil, artigo 19 da Lei nº 10.696. Brasília, DF, 02 de julho de 2003.
CASTELLS, M. O Poder da Identidade. v.2. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
FILIPAK, A. Políticas públicas para mulheres rurais no Brasil (2003-2015): análise a partir da
percepção de mulheres rurais e de movimentos sociais mistos. Tese de doutorado, UNESP, Marília,
SP, 2017.
GÊNERO E NÚMERO. Fora e dentro de casa, mulheres são vítimas de múltiplas violências no
campo. Disponível em <https://www.generonumero.media/reportagens/fora-e-dentro-de-casa-
mulheres-sao-vitimas-de-multiplas-violencias-no-campo/#index_4/> Acesso em: 14 dez. 2022.
GÊNERO E NÚMERO; SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Sem parar: o trabalho
e a vida das mulheres na pandemia. Disponível em: < http://mulheresnapandemia.sof.org.br/>.
Acesso em: 14 dez. 2022.
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Revista NERA – ano 9, n. 8 – Presidente Prudente, janeiro/junho de 2006.
HORA, K. Políticas Públicas para Mulheres Rurais. Mimeo, Brasília, 2015.
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Igualdade de Gênero. Políticas sociais:
acompanhamento e análise. Governo Federal, Brasília, 2022.
JALIL, L. M; COSTA, M. A. G; SILVA, L. OLIVEIRA, M. S. L. O impacto da covid-19 na vida
das mulheres rurais do Nordeste do Brasil. Cadernos de Agroecologia - Diálogos Convergências
e divergências: mulheres, feminismos e agroecologia - v. 16, no 1, 2021.
44

LOURENÇO, A. V; GRISA, C; SCHMIDTT, C. J. Políticas públicas voltadas às/aos


trabalhadoras/es do campo, das florestas e das águas: precedentes e desmontes. In: Brasil, do
flagelo da fome ao futuro agroecológico: uma análise do desmonte das políticas públicas federais e
a agroecologia como alternativa. ANA - Articulação Nacional de Agroecologia, 2022.
MACEDO, A. C. Desmonte do PAA: efeitos na vulnerabilidade social da agricultura familiar.
Dissertação de Mestrado, Faculdade de Engenharia Agrícola - Unicamp, 2022.
MENEZES, E. F; GAMA, A. N. A busca pela visibilidade: a Marcha das Margaridas e a trajetória
de conquistas para mulheres rurais. Anais do Colóquio Nacional do NEER, Cuiabá, 2013.
RAPOZO, B. M. S; Programa nacional de documentação da trabalhadora rural: desafios para a
superação das desigualdades de gênero no campo brasileiro. XIII ENANPEGE. São Paulo, 2019.
REDE PENSSAN. II VIGISAN: 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no
Contexto da Pandemia da Covid-19. Relatório Final, São Paulo, 2022.
REGO, J. M; PAULA, H. M. M. Covid-19, mulheres rurais e abandono: desdobramentos sociais
do período pandêmico. Revista Antígona, Vol. 1, N. 2, 2021.
SILVA, R. C. R. et. al. Implicações da pandemia COVID-19 para a segurança alimentar e
nutricional no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 25(9):3421-3430, 2020.
VINHA, J. F. S. C. ROSSI, R. C. SILVA, R. S. LOPES, J. P. A. Reinventando as lutas na pandemia
de covid-19: movimentos socioterritoriais e a construção da soberania alimentar no Brasil. In:
Geografia e Covid-19: reflexões e análises sobre a pandemia. Org. VASCONCELOS, D. B.[et. al.]
São Paulo, FFLCH/USP, 2021.
45

PLANO VIVER SEM LIMITE: CONTRIBUIÇÕES E DIFICULDADES NA


CONSOLIDAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS PARA A TECNOLOGIA
ASSISTIVA

Tatiane da SilvaNogueira8
Leriane Silva Cardozo9

Introdução
As discussões sobre as políticas públicas voltadas para a Tecnologia Assistiva (TA)
surgiram recentemente no Brasil, influenciadas pelo movimento, nas últimas décadas, de inclusão
das pessoas com deficiência, possibilitando conquistas e avanços na promoção dos direitos das
pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida. Estima-se que há mais de 1 bilhão de pessoas
no mundo que tenham alguma deficiência, conforme Organização Mundial de Saúde (OMS),
enquanto que no Brasil, esse número chega a 45 milhões de habitantes com alguma deficiência
(física, visual, auditiva ou intelectual), conforme Censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Recentemente, houve a publicação do Decreto nº 10.645, de 11
de março de 2021, que regulamentou o art. 75 da Lei nº 13.146, de 6 julho de 2015, para dispor
sobre as diretrizes, os objetivos e os eixos do Plano Nacional de Tecnologia Assistiva (PNTA).
Registra-se que o conceito de TA passou por grandes transformações, sendo gradativamente
construído e sistematizado (GALVÃO FILHO, 2022). Após debates e estudos, o Comitê de Ajudas
Técnicas/ Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (CAT/SEDH)
aprovou o termo “Tecnologia Assistiva” como sendo o mais adequado, e passa a considerar “Ajuda
Técnica” como sinônimos devido às legislações anteriores trazerem essa nomenclatura
(BERSCH,2017).
Considerando a relevância do tema e cientes da problemática acerca do desenvolvimento de
ações voltadas para atender a população com alguma deficiência, questiona-se como as ações do
Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver Sem Limite, do Governo Federal,
estão alinhadas aos propósitos orientados pela PNTA. O Plano Viver Sem Limite objetiva a
articulação de políticas governamentais de acesso à educação, inclusão social, atenção à saúde e
acessibilidade. Neste sentido, o presente estudo visa demonstrar as contribuições e dificuldades do
Plano Viver Sem Limite, por meio do desenvolvimento de ações voltadas aos eixos atenção à saúde
e acessibilidade.

8
Mestranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Oeste
da Bahia (PPGCHS), UFOB - BA. E-mail: [email protected]
9
Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Oeste da Bahia
(PPGCHS), UFOB - BA. Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC). E-mail: [email protected]
46

Em estudo se insere no contexto de avaliação ex-post de políticas públicas (BAPTISTA;


REZENDE, 2015), cujo percurso metodológico assume natureza qualitativa, exploratória, com
coleta de dados secundários. Os resultados apontam que o Plano Viver Sem Limite cumpriu, em
grande parte, as metas estipuladas para o ciclo 2011-2014 e que há perspectivas de crescimento.

Metodologia
Os procedimentos metodológicos usados, inicialmente, foram uma pesquisa bibliográfica de
cunho exploratório para compreensão da problemática do estudo. Segundo Lakatos (2021), a
finalidade da pesquisa bibliográfica é colocar o pesquisador em contato com todo o material
disponível sobre o tema, permitindo explorar novas áreas em que o problema ainda não foi
solidificado. Quanto à abordagem metodológica, este estudo se insere no contexto de avaliação ex-
post de políticas públicas (BAPTISTA; REZENDE, 2015), cujo percurso metodológico assume
natureza qualitativa, exploratória, com coleta de dados secundários.

A tecnologia assistiva
No Brasil, a TA vem de um período de quase desconhecimento total da população e das
instituições nacionais sobre a relevância e os significados da TA (GALVÃO FILHO, 2022). Ela
ainda é considerada nova, porque só nos últimos anos ela vem ganhando visibilidade, passando a
estar presente em diferentes agendas governamentais. Segundo Bersch (2017), o termo Tecnologia
Assistiva surgiu em 1988, nos Estados Unidos da América (EUA), como importante elemento
jurídico dentro da legislação norte-americana, “conhecida por Public Law 100-407, que compõe,
com outras leis, o ADA– American with Disabilities Act” (BERSCH, 2005). A TA não é apenas
para se referenciar a recursos e serviços usados por pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida,
mas sim uma área de conhecimento interdisciplinar (BERSCH, 2017).
Em 2007, foi instituído o Comitê de Ajudas Técnicas (CAT), um comitê permanente, no
âmbito da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República - SEDH/PR, com
o intuito de traçar um plano de trabalho de curto, médio e longo prazo, bem como conceituar a TA,
fomentar a pesquisa, desenvolvimento e inovação através da proposição de políticas públicas. O
CAT formulou o seguinte conceito:
Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica
interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias,
práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à
atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade
reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão
social. (BRASIL - SDHPR. – Comitê de Ajudas Técnicas – ATA VII, 2007)

De acordo com Bersch (2017), uma das integrantes do CAT, para chegar a essa conceituação
foram necessárias pesquisas bibliográficas e documental nas legislações nacionais e internacionais,
para que subsidiassem de forma completa a elaboração das políticas públicas brasileiras. O CAT,
47

também propôs que “tecnologia assistiva” e "ajudas técnicas" sejam entendidas como sinônimas,
porque ainda têm normas vigentes que usa o termo "ajudas técnicas", ao falar sobre os recursos e
serviços usados por pessoas com deficiência. Definiram também que a expressão Tecnologia
Assistiva seja utilizada sempre no singular, por referir-se a uma área de conhecimento e não a uma
coleção específica de produtos. (BRASIL, 2009).
Galvão Filho (2022), afirma que a conceituação de TA, ainda passa por diferentes fases de
construção e sistematização, por ser um conceito muito amplo que abrange diversas áreas
concedendo um caráter interdisciplinar. O autor afirma que essa amplitude “favorece, fundamenta
e incentiva as pesquisas, o desenvolvimento e a inovação em TA nas diferentes áreas, e o
aperfeiçoamento de políticas públicas de fomento, produção, disponibilização e concessão de TA”
(GALVÃO, 2013, p.23). Contudo, por outro lado, ele ressalta que o conceito de TA precisa ser
continuamente estudado, uma vez que, com o crescimento e a multidisciplinaridade da área, abrem-
se brechas para distorções do seu real significado. Essas distorções não estão só relacionadas a
questões filosóficas e metodológicas, mas também, possuem implicações econômicas.
Com a ampliação no número de editais e chamadas públicas de projetos,
específicos para o incentivo à pesquisa, desenvolvimento, inovação,
produção e comercialização da TA no país, políticas públicas importantes,
com significativos investimentos de recursos econômicos na área, cresce
também o risco da ocorrência de distorções e a necessidade de uma maior
precisão conceitual que, ao mesmo tempo em que se apoie numa concepção
e conceituação ampla e interdisciplinar de TA, igualmente distinga as
fronteiras, percebendo e buscando identificar com crescente clareza
também o que não é TA. (GALVÃO, p. 23, 2013)

Dessa forma, Galvão entende que com essa abrangência conceitual os recursos destinados
para a TA sejam redirecionados para outras áreas que não estejam ligadas como serviços ou
produtos para as pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida.
Um marco importante para a área, segundo Galvão Filho (2022), é o Plano Nacional da
Pessoa com Deficiência - Viver sem Limites (VSL), instituído pelo Decreto 7.612, de 17 de
novembro de 2011, estabelecendo as diretrizes para a formulação de políticas setoriais, dentro de
quatro eixos: acessibilidade, inclusão social, acesso à saúde e à educação. Esse Plano conseguiu
atender grande parte das propostas apresentadas na primeira e segunda Conferência Nacional dos
Direitos das Pessoas com Deficiência e ratificou o compromisso do Brasil com as prerrogativas da
Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência realizada pela Organização
das Nações Unidas (ONU), em 2006, em que a validação se deu a partir de 2008, quando o texto da
Convenção foi incorporado ao ordenamento jurídico com status de Emenda Constitucional pelo
Decreto Legislativo nº186/2008 e promulgada pelo Decreto nº6.949/2009.
Após esse Plano VSL, em 2015, foi promulgada a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) ou
Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, da qual os artigos 74 e 75
48

faz menção a criação de plano específico para a Tecnologia Assistiva, a fim de melhorar as questões
relacionadas à autonomia, mobilidade pessoal e qualidade de vida das pessoas com deficiência e/ou
com mobilidade reduzida.
Como forma de regulamentar o artigo 75 da LBI, criou-se o Plano Nacional de Tecnologia
Assistiva (PNTA), instituído pelo Decreto 10.645 de 11 de março de 2021, estabelecendo diretrizes,
objetivos e eixos a serem seguidos, com a participação de diversas pastas ministeriais. O PNTA
encontra-se com consulta pública em aberto para a atualização da lista de bens e serviços da
Tecnologia Assistiva passíveis de financiamento para Pessoas com Deficiência.

O Plano Viver sem Limites


O Plano Viver Sem Limite teve metas a serem alcançadas dentro de quatro anos, de 2011 a
2014, objetivando a articulação de políticas governamentais de acesso à educação, inclusão social,
atenção à saúde e acessibilidade. Partindo de uma avaliação de políticas públicas ex post, que pode
ocorrer durante ou após a implementação da política (BAPTISTA e REZENDE, 2015), avaliou-se
a implementação e os resultados dos programas através dos dados disponibilizados pelos relatórios
de gestão (de 2014-2021) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), e do
Ministério da Saúde (MS), bem como pela Cartilha Viver sem Limite, elaborada em 2013, pela
Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), comparando o
que foi planejado com o que foi realizado para a área da TA, dentro dos eixos acessibilidade e
acesso à saúde.
Os principais programas direcionados a TA estão dentro do eixo acessibilidade, a partir dos
dados coletados, verificou-se que as metas estipuladas para esse eixo foram alcançadas dentro do
previsto, a saber: o VSL previa a implementação do Programa Nacional de Inovação em Tecnologia
Assistiva, com a criação de linha de subvenção econômica à inovação em TA, linha de
financiamento reembolsável para inovação em TA e linha de subvenção econômica para inovação
em equipamentos de esportes paraolímpicos, essas linhas de créditos ficaram disponíveis dentro do
prazo e permanecem até hoje através da Financiadora de Estudos e Projetos(FINEP). O Centro
Nacional de Referência e Tecnologia Assistiva (CNRTA), junto com a criação de vinte Núcleos
Interdisciplinares de Tecnologia Assitiva (NITA), também estavam previstos no VSL; de acordo
com a cartilha do VSL (BRASIL, 2013) o CNRTA foi inaugurado em julho de 2012, vinculado ao
Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) e com base no relatório de gestão do
MCTI, em 2014, já tinham sido criados 50 (cinquenta) núcleos. Ainda dentro do eixo acessibilidade
tinha o microcrédito com a criação de linha de financiamento para aquisição de produtos de TA,
disponível dentro do período estipulado (2011-2014) e continua atualmente para contratação no
Banco do Brasil.
49

No eixo acesso à saúde, no que se refere a TA foram estipulados a criação de 45 (quarenta


e cinco) Centros Especializados em Reabilitação (CER) e a entrega de 88 (oitenta e oito) veículos
adaptados, ao final do período (2014) já tinham sido implementados 123 (cento e vinte e três) CER
e entregue apenas 44 (quarenta e quatro) veículos adaptados (BRASIL, 2013). Nesse mesmo eixo
foram estipuladas metas para a implementação de sete oficinas ortopédicas fixas e seis itinerantes
fluviais, das oficinas fixas foram implementadas 24 (vinte e quatro) e das itinerantes fluviais 13
(treze) até o final de 2014. Das oficinas ortopédicas qualificadas, protesistas e ortesistas capacitados
não foi possível encontrar informações a respeito.
O Plano Nacional de Tecnologia Assistiva numa perspectiva de planejamento
governamental e gestão pública, expressa as iniciativas e metas a serem alcançadas nos próximos
quatro anos e visa orientar as ações voltadas à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico, à inovação
e à disponibilização de recursos e serviços de TA. Dessa forma, está alinhado aos propósitos
orientados pelo Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver Sem Limite, de
modo a atender as demandas das pessoas com deficiências, possibilitando igualdade de condições,
autonomia e inclusão social através da TA, entre outros meios de atendimento.

Conclusões
Neste artigo, pretendeu-se responder a problemática de pesquisa através da contextualização
do que é a TA e da avaliação do Plano Viver sem Limites. A TA é uma área nova, isso pode ser uns
dos fatores que dificulta a proposição de políticas públicas, porém, já é notório o seu crescimento e
o surgimento de novas políticas, como o PNTA.
Os resultados apontam que o Plano Viver Sem Limite cumpriu, em grande parte, as metas
estipuladas para o ciclo 2011-2014 e que há perspectivas de crescimento. Dessa forma, com base
nos dados e análises, conclui-se que o Plano Viver sem Limites apresenta resultados favoráveis ao
desenvolvimento de políticas públicas na área, contribuindo para atender as prerrogativas da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, ratificada pelo Brasil com
equivalência de Emenda Constitucional.

Referências

BAPTISTA, Tatiana W. de F., REZENDE, Mônica de; A ideia de ciclo na análise de políticas
públicas. Caminhos para Análise das Políticas de Saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2015. Cap. 5.
p. 221-258.
BRASIL. Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Comitê de
Ajudas Técnicas. Tecnologia Assistiva . – Brasília: CORDE, 2009. 138 p
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos-SDH. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da
Pessoa Com Deficiência-SNPD (ed.). Viver sem limite: plano nacional dos direitos da pessoa com
deficiência. 4. ed. Brasil, 2013. 96 p.
50

BRASIL. Decreto nº 10.645, de 11 de março de 2021. Regulamenta o art. 75 da Lei nº 13.146, de


6 julho de 2015, para dispor sobre as diretrizes, os objetivos e os eixos do Plano Nacional de
Tecnologia Assistiva. Decreto Nº10.645. Brasil, Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/decreto/D10645.htm. Acesso em: 25
out. 2022.
BERSCH, Rita. Introdução à Tecnologia Assistiva. Porto Alegre, 2017. 20 p. Assistiva,
Tecnologia e Educação
CAT, 2007. Comitê de Ajudas Técnicas. Ata da Reunião VII de dezembro de 2007, Secretaria dos
Direitos Humanos da Presidência da República – 2007. Disponível em
http://www.galvaofilho.net/CAT_Reuniao_VII.pdf Acesso em 02/11/2022
GALVÃO F Revista Entreideias, Salvador, v. 2, n. 1, p. 25-42, FILHO, Teófilo Alves. A
construção do conceito de Tecnologia Assistiva: alguns novos interrogantes e desafios. Jun. 2013.
GALVÃO FILHO, Teófilo. Tecnologia assistiva: um itinerário da construção da área do Brasil/
Teófilo Galvão Filho – Curitiba: CRV, 2022. 146 p.
LAKATOS, Eva M. Fundamentos de Metodologia Científica. Rio de Janeiro-RJ: Grupo GEN,
2021. 9788597026580. Disponível em:
https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597026580/. Acesso em: 01 jul. 2022.
51

POLÍTICAS PÚBLICAS TRIBUTÁRIAS NO CENÁRIO PÓS-PANDÊMICO E A


REDISTRIBUIÇÃO DE RIQUEZAS

Nathan Gomes Pereira do Nascimento10


Júlia Sêco Pereira Gonçalves11
Lívia Marinho Goto12

Introdução
O surgimento do novo coronavírus no final de 2019 e sua rápida disseminação pelo mundo
nos anos seguintes teve repercussões inimagináveis até então. Verifica-se que, mesmo com o
desenvolvimento e aplicação da vacina em massa, os efeitos decorrentes do Sars-CoV-19 em
diversos setores foram tão significativos que perdurarão durante muito tempo. Constatou-se uma
drástica queda na arrecadação tributária em tempos de pandemia devido ao arrefecimento da
economia nacional (FUJIWARA et al, 2020, p. 87). Esse cenário, inclusive, torna-se ainda mais
preocupante graças à crescente demanda por serviços públicos (principalmente na área da saúde), o
que resultou no aumento do gasto estatal, não obstante a redução da atividade fiscalizatória e o
desaquecimento da economia supramencionado (FUJIWARA et al, 2020, p. 88).
O presente trabalho, pois, almeja discutir a possibilidade de aplicação de determinadas
políticas públicas tributárias, notadamente, a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)
e a tributação sobre a renda de templos religiosos no contexto pós-pandêmico. Para confecção da
presente, foi realizado um amplo levantamento bibliográfico sobre o tema. Através do método
dedutivo-bibliográfico, então, os materiais coletados foram analisados sob uma perspectiva
contemplativa e crítica. Em um momento anterior às considerações minuciosas dispostas,
outrossim, foi feita uma ampla exposição para melhor compreensão da realidade socioeconômica
brasileira atual.
A partir dos dados obtidos, desenhou-se o problema a ser discutido, qual seja: a falta de
políticas públicas tributárias efetivas de caráter distributivo aptas a coibir a intensificação da
desigualdade social durante a crise sanitária vivenciada. Logo, a pertinência temática do trabalho
em questão reside nos novos e persistentes desafios econômicos, sociais, políticos e tributários
deixados pelo Covid-19, os quais obstaculizam a busca por uma justiça fiscal e a concretização da
dignidade da pessoa humana, de acordo com a Magna Carta brasileira.

10
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – UNESP, Camp. Franca. Mestrado em andamento em Direito
pela UNESP. Email: [email protected]
11
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – UNESP, Camp. Franca. Bacharel em Direito pela UNESP.
Email: [email protected].
12
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – UNESP, Camp. Franca. Bacharel em Direito pela UNESP.
Email: [email protected].
52

Para o devido enfrentamento de crises sanitárias e humanitárias é imprescindível a existência


de boa gestão pública que responda, rapidamente, às adversidades que se colocam. O Brasil ficou
extremamente vulnerável à pandemia do coronavírus pelo contexto econômico modesto, pelos
baixos investimentos em setores como saúde e educação e também pela política fiscal vigente que
favorecia apenas uma parcela da população (LIMA et al, 2020, p. 03). Em verdade, no cenário
pós-pandêmico, conclui-se que é necessário o estabelecimento de políticas tributárias que mitiguem
os efeitos da desigualdade socioeconômica deixados pela pandemia, tendo-se em vista que “Mesmo
nas grandes catástrofes, o infortúnio nunca é distribuído de forma igual” (LIMA et al, 2020, p. 03).

Políticas públicas tributárias no enfrentamento da crise econômica e sanitária atual


Ante a crise econômica e sanitária atual, a necessidade de recompor a arrecadação tributária
cumulada ao reconhecimento do alto grau de regressividade da tributação no Brasil, de acordo com
Buffon; Menegussi (2020, p. 283), indicam o aumento da cobrança dos tributos sobre a renda e o
patrimônio, e, em contrapartida, a diminuição dos tributos sobre o consumo, de modo a resultar
numa penalização proporcionalmente maior sobre os cidadãos que possuem uma menor condição
financeira, constituindo, inclusive, na parcela que mais sofre com os reflexos da pandemia. Nesse
contexto, Buffon; Menegussi (2020, p. 284) asseveram que a alteração legislativa tributária
igualitária cumpre o papel central de adequar a tributação à efetiva capacidade contributiva do
cidadão, buscando observar a não incidência de tributação sobre o mínimo existencial, bem como
fortalecer o Estado social e combater a desigualdade através do emprego da progressividade e da
justiça fiscal. Nesse sentido, Bernardi; Di Creddo (2020, p. 62) apontam os tributos e as medidas
compulsórias de arrecadação de verbas públicas como medidas aptas a desempenhar o objetivo de
custear as políticas públicas capazes de promover a superação dos gastos gerados pela pandemia do
COVID-19. A Justiça Fiscal é de suma relevância para a distribuição de renda e promoção de
políticas públicas que satisfaçam os interesses sociais, pois visa instituir novas formas de auferir
recursos financeiros e, por conseguinte, evita a concentração de todo o peso da contribuição nos
setores econômicos já sobrecarregados pelas consequências da crise. (BERNARDI; DI CREDDO,
2020, p. 62)
De acordo com o estudo divulgado pela OECD (2020, p. 42 apud BERNARDI; DI
CREDDO, 2020, p. 66), os tributos terão papel fundamental na restauração das finanças públicas,
tanto em relação às receitas, quanto da estruturação fiscal, que poderá ser adaptada ao período pós-
Covid. Na teoria, Afonso (2020, p.1 apud BERNARDI; DI CREDDO, 2020, p. 67) vislumbra como
ideal a implementação de medidas fiscais extraordinárias para fazer frente à condição excepcional
trazida pela crise do Covid-19, ressaltando, desse modo, a necessidade de se criar um conjunto de
regras fiscais e contas públicas que integrem um regime extraordinário e apartado do
ordinário. Nesse sentido, a OECD (2020, p. 42-43 apud BERNARDI; DI CREDDO, 2020, p. 67)
53

aponta como sugestões de soluções excepcionais a instituição de normativas fiscais sobre o preço
do carbono, a tributação especial sobre eventuais aumentos de ganhos durante a pandemia, a
consideração de bases fiscais novas e subutilizadas e tributação diferenciada a empresas
multinacionais. Nessa toada de excepcionalidade, iremos tratar brevemente duas medidas tributárias
como alternativas de obtenção de recursos, quais sejam a adoção de impostos sobre a fortuna e
empréstimos compulsórios sobre renda de templos de qualquer culto.
Uma das soluções apresentadas pelo governo de alguns países sul-americanos para resolver
a crise econômica provocada pelas medidas de isolamento social em razão do COVID-19 é a
tributação sobre as grandes fortunas. (FERREIRA; DE JESUS; NETO, 2021, p. 61) No caso do
Brasil, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) está previsto expressamente no art. 153, VII da
CRFB/88, cuja base tributária são as grandes fortunas e que deve ser instituído nos termos de lei
complementar. (QUINTELA; SÉRGIO, 2018). Aponta-se que, apenas no ano de 2020, foram
criadas dezesseis propostas de lei complementar da Câmara dos Deputados para a regulação do
Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) e, ainda, três propostas de lei complementar no Senado,
tendo como justificativa o combate aos efeitos econômicos negativos causados pelo COVID-19.
(FERREIRA; DE JESUS; NETO, 2021, p. 61) As três propostas de lei complementar para tributar
as grandes fortunas que tramitaram no Senado foram: PLP 38/2020, PLP 50/2020 e PLP 213/2020.
O PLP n° 38/2020, de autoria o Senador Reguffe, tinha como objetivo instituir o Imposto
Extraordinário sobre Grandes Fortunas durante o período de calamidade pública causada pelo
COVID-19, tributando as pessoas físicas cujo patrimônio líquido exceda a 50.000 salários-mínimos
com a alíquota de 0,5%. (SENADO, 2020a apud FERREIRA; DE JESUS; NETO, 2021, p. 80)
Da mesma forma, o PLP n° 50/2020, de iniciativa da Senadora Eliziane Gama, visa instituir
temporariamente o Imposto sobre Grandes Fortunas e Empréstimo Compulsório para financiar a
proteção social em face do COVID-19, ambos incidentes sobre o patrimônio líquido que exceda o
valor de 12.000 vezes o limite mensal de isenção para pessoa física, sendo que o empréstimo
compulsório seria restituído ao contribuinte no próximo exercício fiscal, na forma de abatimentos
do próprio IGF. (SENADO, 2020b apud FERREIRA; DE JESUS; NETO, 2021, p. 81) Por fim, a
PLP 213/2020 tem por finalidade o programa Renda Básica da Primeira Infância, ao mesmo tempo
que regulamenta o IGF como fonte de financiamento (SENADO, 2020c apud FERREIRA; DE
JESUS; NETO, 2021, p. 81) Por outro lado, cabe assinalar que na Câmara dos Deputados
promoveram dezesseis propostas de lei complementar para tentar instituir a tributação sobre grandes
fortunas em razão da COVID-19, quais sejam: PLP 49/2020, PLP 59/2020, PLP 63/2020, PLP
77/2020, PLP 82/2020, PLP 95/2020, PLP 103/2020, PLP 123/2020, PLP 188/2020, PLP 201/2020,
PLP 215/2020, PLP 258/2020, PLP 112/2020, PLP 190/2020 e PLP 193/2020. Esses projetos,
segundo Ferreira; De Jesus; Neto (2021, p. 82), apresentam em comum a falha da vinculação entre
a vigência da exação à efemeridade da pandemia ou de outra circunstância (vigente tão somente
54

durante o período de calamidade pública no Brasil) e a destinação da arrecadação às necessidades


dela decorrentes, qual seja, ações de saúde, assistência social e previdência social decorrentes dos
impactos sanitários e econômicos da pandemia de covid-19.
De acordo com Martins e Massau (2021, p. 310), os defensores do IGF alegam que uma
estrutura tributária progressiva permitiria tanto alcance dos objetivos da República Brasileira, como
também permitiria uma maior segurança econômica para o país. Ademais, o IGF atenderia a uma
tributação proporcional à capacidade contributiva, ante a eficiência na aplicação de recursos e na
busca de se fomentar o desenvolvimento das atividades produtivas, bem como promoveria a
redistribuição de riquezas com o propósito de reduzir a concentração de renda e desigualdades e,
ainda, seria capaz de incentivar a utilização mais produtiva do capital. (QUINTELA; CARVALHO,
2018, p. 53 apud MARTINS; MASSAÚ; 2021, p.310)
De outro lado, Martins; Massaú (2021, p.310) asseveram que existem pessoas que defendem
que o estabelecimento do IGF iria causar uma fuga de capitais do país, assim como uma falta de
investimento por parte das empresas e das pessoas físicas que transferirem seus investimentos e
bens móveis para outro domicílio. O argumento, porém, não merece prosperar, uma vez que o Brasil
possui tributação sobre renda e herança em percentuais menores que dos países vizinhos
(QUINTELA; SÉRGIO, 2018, p.53 apud MARTINS; MASSAU; 2021, p.310) Dessa forma,
Martins; Massaú 2021, p.311) afastam as alegações de que o IGF traria prejuízos à arrecadação
fiscal brasileira e ressaltam que esse imposto traria diversos os benefícios em função da adequação
do IGF aos objetivos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Cumpre ressaltar que o
objetivo da redução das desigualdades socioeconômicas a partir da instauração do IGF é alcançado
sob a orientação do Princípio da Solidariedade, encontrado topograficamente no art. 3º, III da
CF/88, que impõe ao Estado tarefas relacionadas à estrutura econômico-social.
Destarte, segundo Quintella; Sérgio (2018, p. 55), o governo federal tem o dever de instituir
mecanismos de solidariedade federativa para a redução das desigualdades em prol de uma sociedade
fraterna e coesa, devendo articular com os governos estaduais e municipais para a consecução deste
fim. Nesse sentido, entende-se em consonância com Martins; Massaú (2021, p. 312) que, através
da instauração do IGF para enfrentamento da crise econômica causada pelo Covid-19, a
solidariedade seria concretizada em sua forma direta, pois o Estado exigiria um comportamento
solidário por parte daquele que possui grandes fortunas em compartilhá-lo com outras pessoas
através da redistribuição de riquezas através de políticas públicas. Portanto, o IGF se apresenta
como um instrumento efetivo para o enfrentamento à desigualdade social acentuada pela crise
financeira e sanitária decorrente da pandemia de COVID-19, em decorrência da sua potencialidade
em arrecadação, bem como ao contrapor os gastos voltados ao enfrentamento da Covid-19.
(MARTINS; MASSAÚ; 2021, p.315) O inciso VI do artigo 150 da Constituição prevê imunidades
tributárias em relação a entes, entidades e objetos específicos, revelando uma proteção
55

constitucional a interesses e valores fundamentais da sociedade. (CARRAZZA, 2012, p. 3 apud


BERNARDI; DI CREDDO, 2020, p. 69).
Dentre as hipóteses de imunidade, segundo Bernardi; Di Creddo (2020, p. 69), está a
proibição de instituir impostos sobre os templos de qualquer culto, evidenciando que a liberdade de
crença religiosa e o livre exercício de cultos são verdadeiros pilares da dignidade da pessoa humana,
que devem ser garantidos até mesmo em face da arrecadação de recursos financeiros para o próprio
Estado.
Entretanto, em tempos de calamidade pública nos quais o governo busca estabelecer novas
formas de arrecadação para os cofres públicos, Bernardi; Di Creddo (2020, p. 70) apontam que as
propostas de renúncia de receita com imunidade total ou isenção total de tributos não parecem ser
as mais adequadas. Nesse diapasão, o prevalecente entendimento em relação a alínea “b” do art.
150, inciso VI da CF/88 é o da interpretação literal em que se veda a instituição de impostos sobre
os templos de qualquer culto e, por conseguinte, não alcança as demais espécies tributárias.
(BERNARDI; DI CREDDO, 2020, p. 70) Em outras palavras, a imunidade religiosa não se aplicaria
às taxas, à contribuição de melhoria, às contribuições sociais e aos empréstimos compulsórios.
Assim, partindo-se do pressuposto de que a imunidade religiosa é cláusula garantidora da liberdade
de culto, resta evidente que a instituição de empréstimo compulsório sobre os templos de qualquer
culto, de acordo com Bernardi; Di Creddo (2020, p. 71-72) além de não contrariar a norma
imunizante do art. 150, também não tem o condão para atentar contra a liberdade de culto, tendo
em vista se tratar de uma espécie tributária restituível e, por conseguinte, a entidade religiosa poderá
repetir todo o valor pago a título do empréstimo compulsório.
Se, por um lado, a garantia de devolução do valor recolhido pode assegurar os interesses dos
templos religiosos, por outro, a instituição dessa espécie tributária em tempos de pandemia mostra-
se fortemente recomendável em decorrência da agilidade da transposição dos valores dos cofres dos
templos ao erário público, uma vez que o empréstimo compulsório decorrente de calamidade
pública não se submete às anterioridades de exercício e nonagesimal, nos termos do disposto no §
1º, III do art. 150, da CF/88, podendo ser instituído e cobrado no mesmo exercício, não necessitando
aguardar a "vacatio legis" de noventa dias. (BERNARDI; DI CREDDO, 2020, p. 72) Vale apontar,
ainda, que o tipo de fato gerador dessa espécie tributária não é especificado pelo texto
constitucional, podendo ser vinculado ou não vinculado e, por conseguinte, Bernardi; Di Creddo
(2020, p. 73) sugerem que o fato gerador do empréstimo compulsório frente a uma situação de
calamidade gerada pela pandemia de COVID-19 consista na renda obtida pelas entidades religiosas,
fixando-se alíquota capaz de respeitar os princípios da capacidade contributiva e do não
confisco. Portanto, os empréstimos compulsórios sobre a renda de templos religiosos surgem como
possível alternativa para o governo atender a despesas extraordinárias e imprevisíveis causadas pela
pandemia, tendo como uma de suas finalidades a redução das desigualdades de renda e,
56

consequentemente, favorecendo a instituição de um sistema tributário mais justo. (BOMTEMPO;


SILVA, 2020).

Conclusões
Durante o período pandêmico constatou-se uma drástica queda na arrecadação tributária.
Dessa forma, foi possível constatar uma nítida diminuição da receita pública no âmbito estadual e
municipal, visto que referidos entes da federação sustentavam-se, principalmente, pelo
recolhimento do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e do Imposto sobre
Serviços (ISS). (LIMA; FREITAS, 2020, p. 20). Diante do exposto, segundo Buffon; Menegussi
(2020, p. 288), verificou-se a necessidade iminente do aparato estatal tomar medidas aptas a retomar
a higidez da arrecadação tributária frente à crise econômica causada pela pandemia do Covid-19,
de modo a não somente a recuperar a capacidade de arrecadar recursos financeiros ao Estado, mas
também estimular e desestimular comportamentos com vistas à promoção de uma tributação
igualitária.
É fato que, em decorrência da imprevisibilidade da situação socioeconômica atual, mostra-
se necessário adotar soluções arrecadadoras inusitadas para fazer frente ao aumento de gastos
advindos da pandemia, como a instituição do IGF e do empréstimo compulsório sobre a renda dos
templos de qualquer culto.
No tocante ao IGF, assevera-se em conformidade com os ensinamentos de Martins; Massaú
(2021, p. 314) que a sua instituição acarretaria numa verdadeira adequação aos objetivos da
República Federativa Brasileira, principalmente no que tange à busca pela redução da desigualdade
social e valorização da solidariedade concretizada de forma direta mediante ação legislativa e
administrativa. Do mesmo modo, foi possível reconhecer a instituição dos empréstimos
compulsórios sobre a renda dos templos de qualquer culto como outra medida inovadora para
enfrentar a atual crise brasileira, uma vez que, segundo Bernardi; Di Creddo (2020, p. 74), referida
medida não encontraria óbice na imunidade religiosa como decorrência do seu caráter restituível,
fato este suficiente para garantir a plena liberdade de culto no País e, ainda, consistir numa espécie
tributária eficiente e ágil para transposição dos valores dos cofres públicos por não necessitar
submeter-se às anterioridades de exercício e nonagesimal.
Restou demonstrado, portanto, a viabilidade da instituição do IGF e do empréstimo
compulsório sobre a renda dos templos de qualquer culto como medidas de tributação especial
constitucionalmente garantidas para fazer frente aos gastos públicos decorrentes do estado
pandêmico, promovendo o incremento da arrecadação tão necessário nesse momento e, ao mesmo
tempo, sendo capazes de adequar a tributação à efetiva capacidade contributiva do cidadão e ao
combate da desigualdade social.
57

Referências
AFONSO, José Roberto. Orçamento de guerra e quarentena fiscal. Revista Conjuntura
Econômica, Rio de Janeiro, v. 74, n. 4, p. 24- 27, abr. 2020. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rce/article/view/81588. Acesso em: 10 nov. 2021
BERNARDI, Renato; DI CREDDO, Raquel de Naday.ARRECADAÇÃO EM TEMPOS DE
PANDEMIA: A INSTITUIÇÃO DE EMPRÉSTIMOS COMPULSÓRIOS SOBRE A RENDA
DOS TEMPLOS DE QUALQUER CULTO. Revista de Direito Tributário e Financeiro.
Encontro Virtual, v. 6, n. 2, p. 60 - 78, Jul/Dez. 2020. Disponível em:
https://www.indexlaw.org/index.php/direitotributario/article/view/7101/pdf Acesso em: 10 nov.
2021
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei Complementar n. 38, de 2020. Busca instituir, durante o
período de calamidade pública no Brasil, o Imposto Extraordinário Sobre Grandes Fortunas. 2020a.
Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
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2021

______. Senado Federal. Projeto de Lei Complementar n. 50, de 2020. Busca instituir o imposto
sobre grandes fortunas e empréstimo compulsório, para financiar necessidades de proteção social
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60

A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA EM UMA SOCIEDADE PATRIARCAL E MACHISTA:


UM AVANÇO SOBRE O TEMA EM UBERABA/MG

Marcela Alves Gennari Mariano 13


Valquíria Alves Mariano 14
Yuri Emmanuelle Silva Mazeto 15
Introdução
O assunto violência obstétrica tem ganhado notoriedade nos últimos anos na sociedade.
Isso se dá pela mobilização que as mulheres e grupos feministas vêm realizando, notadamente pela
disseminação de informações de maior qualidade, além da retomada do protagonismo feminino,
através do empoderamento, da autonomia de seus próprios corpos e da luta conjunta com
profissionais defensores dos atendimentos respeitosos e humanizados. Em Uberaba foi aprovado
recentemente um projeto de lei que trata da violência obstétrica, trazendo em seu texto legal
exemplos de condutas violentas, como forma de ampliar o trabalho de conhecimento acerca do tema
à toda a sociedade, inclusive aos julgadores, que porventura, possam se deparar com assuntos
específicos como este.
No Brasil não se tem legislação especial que criminalize esta prática e, por isso, fica cada
vez mais difícil a obtenção de decisões que entendam as práticas médicas como criminosas e
violentas, especialmente considerando uma sociedade que tem arraigado em si uma cultura
estrutural de machismo e violência. Não só isso, ainda se tem a maioria de juízes do sexo masculino
e que buscam o conhecimento a partir de perícias técnicas realizadas que, nem sempre, serão
satisfatórias no que diz respeito às condutas violentas, uma vez que frequentemente as enquadram
em necessidade urgente, ou como sendo a melhor medida adotada para aquele momento. Por isso,
discutir sobre práticas que envolvem todas as mulheres que passaram e passarão por gestações é de
grande relevância, mormente por saber-se que todo mundo nasceu de uma mulher e toda a criação
de uma sociedade depende desta figura capaz de gerar em seu próprio corpo a vida. Ninguém quer
ser violentado, torturado ou maltratado em um cenário que, naturalmente, deve ser de alegria pela
de chegada de um bebê. Todavia, o que se vivencia na prática é o desejo de os médicos tomarem o
protagonismo dos partos para si próprios, invisibilizando as mulheres e criando argumentos
falaciosos que as colocam em cirurgias desnecessárias ou que as empurram para um sistema de
partos normais de extrema violência, capazes de causar traumas nas mais diversas formas.

13
Universidade Estadual de São Paulo. Especialista em Direito de Família e Sucessões e Mestranda no Programa de
Análise e Planejamento de Políticas Públicas. E-mail: [email protected];
14
Universidade Estadual de São Paulo. Mestra em Serviço Social pela Unesp Franca. E-mail:
[email protected];
15
Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triangulo Mineiro. Mestre em Serviço Social pela PUC/ Goiás.
[email protected].
61

O presente trabalho visa esclarecer as origens desta violência, bem como o que tem sido
feito no âmbito municipal de Uberaba (Minas Gerais), especialmente em relação a esta busca pelo
respeito e por práticas baseadas em evidências científicas que respeitem a fisiologia do corpo
feminino.

Violência estrutural: como o patriarcado e o machismo acentua a violência contra a mulher


Iniciando a discussão, este tópico trata da violência contra a mulher como uma expressão
da desigualdade constituída em uma sociedade patriarcal, monogâmica e machista. Inserida no
contexto da violência estrutural a violência contra a mulher é um exemplo da opressão e controle
das mulheres pelo patriarcado, controle endossado muitas vezes pelas instituições como as igrejas,
o Estado e a família. Segundo Saffioti (2011, p.44) o patriarcado é o regime da dominação e
exploração das mulheres pelos homens. Neste sentido, não só em seu lar, a mulher era e ainda é tida
como um objeto, tendo seus corpos e suas vidas ficado a mercê do outro, e a violência contra a
mulher é um exemplo dessa tentativa de dominação.
A desigualdade social, de oportunidade de trabalho e de baixos salários (principalmente
falando sobre as mulheres pretas e pardas) é outro meio que incide nas condições objetivas e de
vida das mulheres, fazendo com que muitas convivam com a violência como única saída para a
sobrevivência. Desta forma, é necessário pontuar que a violência contra a mulher é também uma
manifestação de poder historicamente constituída entre homem e mulher e que perpassa outros
âmbitos do cotidiano desta mulher, como em seu espaço de trabalho e nos atendimentos em
instituições de saúde, pública ou privada. Vale lembrar que, anteriormente ao “descobrimento do
Brasil”, os povos nativos tinham culturas naturalistas, em que era comum a nudez, bem como o
primitivismo nas gestações e partos, seguindo os instintos animais que o próprio corpo humano gera
nestas situações.
Com o passar do tempo e com a evolução do desenvolvimento de outros países, a ciência
tomou espaço na vida das pessoas e invadiu locais que, anteriormente, eram exclusivamente
femininos, como o parto. Não é raro conversar com pessoas mais velhas e ouvir que as mulheres
ganhavam bebês com parteiras e na presença de familiares mulheres, que também já haviam passado
por esta experiência de parto. Neste cenário os homens ficavam afastados, apenas aguardando a
notícia do nascimento, enquanto as mulheres se reuniam para apoiar a parturiente.
Estas parteiras hoje são conhecidas como obstetrizes e enfermeiras obstétricas, enquanto
que, as mulheres que apoiavam a parturiente, são conhecidas como doulas. Ambas as profissionais
voltaram a ganhar espaço na vida das mulheres recentemente, após terem sido substituídas por
médicos. Essa substituição ocasionou a inserção de diversos procedimentos e intervenções
obstétricas que objetificaram a mulher e o processo da gestação e do parto, fazendo com que a
mulheres desacreditassem de seus corpos e da capacidade de parir, incidindo uma cultura de
62

industrialização do parto e de demonização da dor do parto. Além do que a inserção da figura do


homem no cenário de parto contribuiu significativamente no que atualmente a sociedade conhece
como violência obstétrica, termo que será muito utilizado no decorrer deste artigo. As práticas
administradas pelos então obstetras tinham como foco o controle social, trazendo para os
atendimentos intervenções tecnológicas consideradas mais eficientes e inquestionáveis, não
permitindo à parturiente a tomada de decisões no momento que antecede o parto, durante e no pós-
parto.
O parto, na sociedade moderna, é visto como um desafio em meio às facilidades impostas
por essa cultura industrial. Enquanto um parto normal dura horas ou dias, uma cirurgia de cesariana
dura em torno de uma hora e meia, situação em que o médico escolhe o seu melhor dia e horário na
agenda, deixando de pontuar todos os riscos e benefícios das vias de nascimento ao longo da
gestação.
Para Rattner,
A assistência a nascimentos, ainda que "dar à luz não seja uma doença ou processo
patológico" (Wagner, 1982, p.1207), também seguiu o padrão industrial, e algumas
maternidades que agendam cesarianas como se fosse uma linha de produção de
nascimentos, por conveniência de profissionais e das instituições, ostentando taxas
de 70% e até 100% de cesáreas, são bons exemplos dessa interpretação de
economia de tempo e produtividade. Por outro lado, um estudo epidemiológico
mostrou clara associação entre a variação de indicadores econômicos e
mercadológicos, como o potencial de mercado e agências bancárias por habitantes,
e a variação das taxas de cesárea (Rattner, 1996), sugerindo que este procedimento
cirúrgico também adquiriu características de bem de consumo. (RATTNER, 2009)

Pontuamos acima que a mulher é por vezes objetificada em nossa sociedade, não tendo
direito por exemplo à liberdade de escolha e liberdade de seus próprios corpos. Trazendo esta
discussão para um dos momentos mais sublimes da mulher, que é em seu pré-parto, parto e pós-
parto, podemos dizer que a violência obstétrica é uma expressão cruel da violência contra a mulher,
pois, se trata de uma violência institucionalizada e reproduzida muitas vezes por profissionais da
saúde, muitas vezes mulheres que trabalham na saúde e que reproduzem posicionamentos machistas
e opressores.

Violência obstétrica: reflexões e apontamentos


A violência obstétrica não acontece igualmente entre mulheres brancas e mulheres pretas,
mulheres ricas e periféricas. A violência obstétrica é mais comum às mulheres pretas e pardas pois,
está intrinsicamente ligada a desigualdade e exclusão social. Para Cisne e Santos,
Ao analisarmos os dados levando em consideração a raça/etnia, vemos que as
mulheres negras são as que têm seus direitos mais negados. De acordo com Paixão
et al. (2010, p.107), o acesso aos exames de pré-natal entre as mulheres negras e
as mulheres brancas se mostra da seguinte maneira: o número de consultas
realizadas está entre os intervalos de 1 e 3 consultas e 4 e 6 consultas,
respectivamente mulheres negras e pardas supera o número de mulheres brancas.
Com relação ao número de mulheres que nunca fizeram o pré-natal temos: 1,0%
63

das mulheres brancas não realizam, contra 2,8% das mulheres negras e pardas.
Com relação a consultas de pré-natal, das mulheres que realizaram mais de 7
consultas pré-natais, 71% das mulheres brancas têm acesso, contra 42,6% das
mulheres negras e pardas. Ou seja, as mulheres negras têm menos acesso ao direito
ao acompanhamento do pré-natal do que as brancas, o que confirma a interferência
do racismo no fenômeno. (CISNE, SANTOS, 2022)

Pode-se observar que o acesso ao pré-natal é um indicador de falta de acesso à saúde durante
a gestação, o que pode ser considerado uma violência obstétrica, já que este acesso é um direito a
todas as mulheres independente de cor ou classe social.
Além da negligência ao pré-natal, as mulheres que se submetem ao parto pelo Sistema
Único de Saúde (SUS) muitas vezes são empurradas para violências que já são institucionalizadas
e rotineiras. Muitas das práticas de violência ocorrem de forma corriqueira, sendo normalizado no
meio médico e multidisciplinar, retirando o direito de autonomia e protagonismo da mulher e
assumindo um papel de detentor do saber científico, tratando a gestante e puérpera como absoluta
desconhecedora do processo fisiológico e de tomada de decisões.
No âmbito particular não é diferente. Os médicos cooperados dos planos de saúde possuem
diversas indicações de cesariana que são conhecidas como mitos na ciência obstétrica, mas que
levam aquela paciente a se sentir insegura com uma via de parto normal e acaba sendo vítima de
uma cirurgia desnecessária e que engloba riscos à saúde da mulher.
O Instituto Nascer, por meio da médica obstétrica Melania Amorim (2021), traz em um de
seus textos do blog as reais indicações de cesárea e as fictícias. E, de maneira surpreendente, tem-
se que apenas seis são as causas de indicações absolutas da cirurgia, enquanto que as demais são
criadas para que as mulheres se submetam à indústria do parto. As reais indicações são: prolapso
de cordão, descolamento prematuro de placenta, placenta prévia, apresentação córmica, ruptura de
vasa prévia e lesão ativa de herpes genital. Outras podem ser derivadas de urgências intraparto,
como a frequência não tranquilizadora e a desproporção céfalo-pelvica (condição rara). As demais,
são meras desculpas.
Em 2012, a Rede Parto do Princípio realizou um dossiê completo sobre a realidade
obstétrica nacional, trazendo dados estarrecedores do quadro violento a que as mulheres são
submetidas. Este dossiê foi intitulado como “Parirás com dor”. Nele consta o resultado da pesquisa
da Fundação Perseu Abrano, realizado em 2010, em que 25% (vinte e cinco porcento) das mulheres
entrevistadas sofreram algum tipo de violência obstétrica. Isso sem levar em consideração a
quantidade de subnotificações, até mesmo pela falta de informação da população em relação a esta
violência que já está enraizada na sociedade brasileira e na indústria médica. Por isso é possível
dizer que a violência estrutural fez originar a violência presente no cenário obstétrico, por ser reflexo
da reprodução do machismo e patriarcalismo que silenciam as mulheres e as mantém em condição
de subserviência, sem qualquer controle de seus desejos e corpos.
64

As práticas mais comuns de violência são relacionadas a procedimentos desnecessários


como a tricotomia (depilação genital), uso de ocitocina (hormônio sintético conhecido como
“sorinho”) de rotina, rotura de bolsa amniótica, obrigar a parturiente ou o acompanhante a assinarem
documentos que discordam do teor, realização excessiva de toques, procedimentos desnecessários
para fins acadêmicos, utilização de termos e expressões inadequados (“na hora de fazer não gritou”,
“não grita”, “você está atrapalhando/assustando outras mulheres”, “daqui uns meses você estará
aqui de novo”), jejum forçado, puxo dirigido (mandar fazer força), negar atendimento, dentre
outras. Percebe-se, pois, que as formas de violência colocam a mulher parturiente como submissa
da equipe que a atende, silenciando-a ou causando dores e desconfortos que podem, inclusive, ser
enquadrados como tortura.
No Brasil a violência obstétrica, como já pontuamos anteriormente, também tem cor.
Assim como a exploração dos povos negros, exercida de forma muito clara pelo capitalismo e
racismo estrutural, as mulheres pretas sofrem na pele os traumas desta espécie de violência.
Ao verificar os dados de mortes maternas, contidos no site da Secretaria de Vigilância em
Saúde, em 2021 tiveram 2.946 óbitos maternos declarados e notificados. Deste total, 2.730
ocorreram dentro de hospitais, enquanto que os demais ocorreram em outros estabelecimentos de
saúde, em domicílio, via pública ou outros. Ademais, 1.815 mulheres negras (pardas e pretas)
faleceram do total. Ou seja, significa dizer que 61,6% das mulheres eram negras, enquanto que
36,7% eram brancas.
Grande parte dos óbitos maternos ocorrem justamente pela má assistência prestada, pela
negligência dos profissionais e por intervenções realizadas em cascata. Geralmente, quando uma
intervenção é iniciada, outras serão necessárias posteriormente, levando a mulher a riscos. Como se
vê pelos índices acima, as mulheres negras morrem mais, por isso, a busca pelo parto adequado,
respeitoso e humanizado é uma questão de vida ou morte.

Uberaba em movimento contra a violência obstétrica


Observamos que com a crescente onda de partos cesáreos e com a intensificação das
violências obstétricas, a mídia tem sido uma grande aliada para a luta contra essa violência
opressora. Recentemente uma famosa blogueira trouxe à tona seu relato de parto, que mais parece
um relato de tortura. Em 2022, Shantal Verdelho relatou, em entrevista disponibilizada pelo canal
G1, que só entendeu que sofreu violência obstétrica após assistir ao vídeo de seu parto, que
inicialmente ela já havia se incomodado com a manobra de Kristeller, prática já superada pela OMS
(Organização Mundial da Saúde). Outro fato que indignou a referida blogueira é que durante o parto
o médico a xingou, dizendo palavras pesadas tais como “porra, faz força. Filha da mãe, ela não faz
força direito. Viadinha. Que ódio”. E depois do parto, o nomeado e abusador obstetra chamou o
esposo de Shantal e expondo-a disse “Olha aqui, toda arrebentada. Vou ter que dar um monte de
65

pontos na perereca dela”. Isso ocorreu com uma blogueira de sucesso, branca e rica, podemos assim
imaginar o que acontece com as usuárias do SUS, pretas, pobres e marginalizadas. Neste sentido a
denúncia de Shantal se faz necessária, pois em uma sociedade tão excludente mulheres oprimidas
começam a ser ouvidas após denuncias públicas como esta.
A discussão de tal tema é recente, e, como foi dito anteriormente ainda está se fortalecendo.
Um grande avanço na discussão sobre o tema em âmbito municipal, em 2016, a lei 12.338, que
dispõe sobre a presença de doulas durante o parto, nas maternidades no município de Uberaba traz
que
Art. 1. As maternidades, casas de parto e os estabelecimentos hospitalares
congêneres, da rede pública e privada, localizados no município de Uberaba, são
obrigados a permitir a presença de doulas durante todo o período de trabalho de
parto, parto e pós-parto imediato, sempre que esta for solicitada pela parturiente
(2016).

A presença da doula acompanhando a paciente não tira o direito da mulher ter um


acompanhante, seja o pai da criança, seja outra pessoa da confiança da parturiente. É mais que
comprovado que a presença de outras pessoas no momento que cerca o parto fortalece a mulher,
além de prevenir violações de direitos ao parto humanizado. Como a própria nomenclatura diz, o
termo “doula” significa “mulher que serve outra mulher”, sendo a responsável pelo
acompanhamento durante toda a gestação da mulher, com encontros que trazem informações sobre
a fisiologia do parto, mitos, fases do trabalho de parto, riscos das vias de nascimento, situações de
urgência, cesariana, dentre outros. O trabalho ainda vai além, com o acompanhamento integral
durante todo o trabalho de parto e parto da mulher, cuidando da ambientação em que a mulher fica,
de forma que fique confortável, com músicas que essa mulher goste, com aromas, cromoterapia,
chuveiro, massagem, uso de bolas, posicionamentos.
A importância do trabalho da doula pode ser verificada a partir de estudos realizados por
Phyllis Klaus e Jhon Kennel (1995), que mostram que a presença destas profissionais é responsável
por diminuir em 50% os índices de cesáreas, 25% a duração do trabalho de parto, 60% os pedidos
de analgesia peridural, 30% o uso de analgesia peridural, 40% o uso de ocitocina e 40% o uso de
fórceps. O apoio emocional proporcionado por elas também gera uma experiência satisfatória de
trabalho de parto, uma vez que trabalham com o empoderamento e o protagonismo feminino,
devolvendo a elas o lugar que jamais poderiam ter perdido.
Outra evolução no que diz respeito ao direito da mulher em Uberaba foi a recente lei n.
13.640, de 2022, que trata sobre a implantação de medidas de informações a gestantes e parturientes
de Uberaba. A referida lei visa a proteção das gestantes e parturientes contra a violência obstétrica,
e entre seus artigos podemos destacar o art. 2º: “Considera-se violência obstétrica todo ato praticado
institucionalmente que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em trabalho de
parto, em situações de abortamento, ou, ainda, no período de puerpério”.
66

No artigo 3º, a lei ainda exemplifica condutas consideradas como violência obstétrica e no
artigo 4º traz a obrigatoriedade da divulgação da lei, para que a mulher tenha acesso a lei e em
consequência ao direito de não sofrer violência obstétrica nos estabelecimentos de saúde.

Conclusão
Observa-se que houve avanço no debate sobre a violência contra a mulher e violência
obstétrica. No município de Uberaba esse avanço é perceptível, principalmente por meio das leis
supracitadas. No entanto, no que diz respeito à saúde da mulher, numa concepção de igualdade em
acesso às políticas públicas, ainda temos muito a evoluir. Lutar para a desconstrução de práticas
machistas, retrógradas e degradantes à saúde da mulher é um dever não só dos profissionais de
saúde, é um dever de todos, tendo útero ou não. O atendimento à mulher tem que ser humanizado,
como preconiza o projeto de reforma sanitária do país, para que esta sinta-se potente, autônoma,
dona do seu próprio corpo.
Podemos contar com o direito internacional que também tem caminhado, trazendo
inovações e novas concepções de humanidade e respeito ao âmbito de vida das mulheres,
favorecendo e ampliando novos debates e a mobilização social e do direito, de forma que a violência
estrutural seja minimizada e combatida. Neste sentido nossa luta deve ser coletiva almejando que a
exploração e apropriação do corpo feminino seja superado. Devemos desnaturalizar a violência e a
inferiorização da mulher, seja no trabalho, em seu lar e em sua hora de parir. O combate à violência
contra a mulher é cotidiano e é importante que as práticas violentas sejam denunciadas e que a
vítima seja atendida e inserida nas políticas públicas que a auxiliem a sair do ciclo de violência.
A violência obstétrica e/ou institucional deve contar com agentes vigilantes que realizem
denúncias ou que empoderem as mulheres em fazerem essas denúncias. Só assim superaremos,
conjuntamente com as políticas públicas e legislações pertinentes, com as práticas massacrantes e
violentas que acometem as mulheres em momentos tão especiais de suas vidas.

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informações a gestantes e parturientes, e dá outras providências. Disponível em:
https://dosp.com.br/exibe_do.php?i=MjcxOTY4 Acesso em 06 de dezembro de 2022.
68

OS DESAFIOS DO TRABALHO EM REDE NO ATENDIMENTO À CRIANÇAS E


ADOLESCENTES

Marcela Alves Gennari Mariano 16


Valquíria Alves Mariano 17
Introdução
O presente artigo provoca o pensar as políticas públicas que envolvem a família,
especialmente crianças e adolescentes em situação de risco, com o objetivo de compreender o lugar
ocupado pela rede de proteção, garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, de
forma a fortalecer a interdisciplinaridade entre os órgãos e entidades que acompanham e atendem
essas famílias, proporcionando a autonomia nos contextos familiares e o protagonismo do público
alvo dessa rede, qual seja, as crianças e adolescentes que em virtude de várias situações e ineficácia
das políticas públicas tiveram seus direitos negligenciados. Esta rede é conhecida como Rede de
Proteção que, segundo FILHO (2014, p. 168) deve ser pautada no princípio da confiança, sendo
imprescindível a integração dos órgãos, secretarias e fundações envolvidos.
O princípio de confiança emerge também internamente da Rede de Proteção. O
atendimento prestado por ela depende da integração e da relação de confiança entre cada um dos
atores individuais que compõe o conjunto. Mais do que a integração dos órgãos, secretarias e
fundações, a união desses profissionais é essencial. A confiança promove o engajamento individual
de cada um dos seus membros, e a consciência de que o trabalho em rede facilita a integração dos
serviços que são oferecidos às crianças e aos adolescentes, sendo possível oferecer um atendimento
adequado a cada um dos casos atendidos. Nesse contexto, essa rede só se sustentará e terá condições
objetivas de prestar um atendimento de qualidade, se seus membros atuarem em sintonia entre si,
com as famílias, com os serviços prestados no município. Não é raro, durante os atendimentos, que
determinada demanda seja encaminhada a outro órgão da rede, ficando aquele espaço que fez o
encaminhamento, com a sensação de que uma vez encaminhado o usuário do serviço passa a ser
público do órgão demandado, quando na realidade ele é público de todos os espaços que compõem
essa rede, em menor ou maior grau de necessidade desse ou aquele serviço.
Essa compreensão de que o usuário não deixa de ser da política de educação quando em
terminado momento ele necessitou também da política de assistência por exemplo, é o diferencial
do chamado trabalho em rede.

Identificando o trabalho da rede de proteção à criança e ao adolescente

16
Universidade Estadual de São Paulo. Especialista em Direito de Família e Sucessões e Mestranda no Programa de
Análise e Planejamento de Políticas Públicas. E-mail: [email protected];
17
Universidade Estadual de São Paulo. Mestra em Serviço Social pela Unesp Franca. E-mail:
[email protected];
69

Identificar as situações de risco em que crianças e adolescentes estão inseridos é


fundamental para que os atendimentos sejam prestados da forma mais adequada, o que requer a
capacitação dos profissionais que lidam diretamente com este público, por meio de abordagens
assertivas, proporcionando a adesão dos atores envolvidos nesse contexto, numa tentativa de que
enquanto sujeitos de direitos, identifiquem suas reais necessidades a partir das demandas elencadas.
Somando-se a isso, é condição imprescindível que as políticas públicas estejam voltadas à promoção
de dignidade da família toda, como forma de também proteger a vida e a integridade da criança e
do adolescente.
O artigo 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, traz como um dever da família,
da comunidade, da sociedade em geral e do poder público que seja assegurada, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária da criança e do adolescente. Para isso este individuo precisa ter acesso aos
direitos acima citados em sua totalidade. No entanto, o que se experencia é o claro descumprimento
ao que o ECA preconiza, em que crianças e adolescentes se encontram desassistidos em seus
direitos, sendo por vezes expostos à situações de violências e negligências, seja por seus
responsáveis, seja pela rede de proteção, quando o contexto sócio familiar não é considerado,
quando os espaços de atendimento são desconhecidos pelos profissionais que atuam com esse
público, quando o trabalho preventivo não foi prioridade, quando falta recursos na execução da
política entre outros motivos.
Essa desproteção e vulnerabilidade social está intrinsecamente relacionada à questão social
e desigualdade social. As famílias pobres e vulneráveis são as que mais sofrem com a violência
estrutural, que viola cotidianamente os direitos das crianças e dos adolescentes.
A questão social é expressão do processo de produção e reprodução da vida social
na sociedade burguesa, da totalidade histórica concreta. A perspectiva de análise
da questão social aqui assumida recusa quaisquer reducionismos econômicos,
políticos ou ideológicos. Ao contrário, o esforço orienta-se no sentido de captar
as dimensões econômicas, políticas e ideológicas dos fenômenos que expressam
a questão social, resguardando a fidelidade à história. Em outros termos,
apreender o processo social em sua totalidade contraditória, reproduzindo, na
esfera da razão, o movimento da realidade em suas dimensões universais
particulares e singulares. (IAMAMOTO; 2000, p. 114).

A fim de fortalecer um olhar cuidadoso, de proteção às crianças e aos adolescentes no


Município de Uberaba, os setores e serviços de atendimento a este público-alvo identificaram a
necessidade de estabelecer um sistema de garantia de direitos que trabalhe em parcerias,
comunicando entre si de forma responsável, primando por um atendimento de qualidade com foco
na diminuição dos fatores de risco a que estão expostas crianças e adolescentes e consequentemente
suas famílias. Esse trabalho é desenvolvido por meio das rodas de conversas que ocorrem
mensalmente com datas agendadas previamente, cada mês em uma instituição diferente para que se
70

possa conhecer o trabalho de cada espaço da rede de garantia de direitos, onde a dinâmica consiste
em, contar com a participação de toda a rede, nas discussões de políticas que contribuam para a
efetiva garantia do acesso aos serviços destinados ao nosso público-alvo. Nessas rodas de conversa,
foram estabelecidos fluxos de atendimentos às várias demandas recebidas pelos diversos espaços
de atendimento ao público tratado neste artigo tais como: violência sexual até e após 72 horas, fluxo
de trabalho infantil, fluxo de atendimento mental, dentre outros.
No município de Uberaba/MG ainda existe um envolvimento muito significativo por parte
do judiciário, concentrado no juiz da Vara da Infância e Juventude, que busca se fazer presente e
ativo nas reuniões setoriais, provocando a interação do trabalho em rede e o próprio Poder Público,
no sentido de que essas engrenagens estejam funcionando cada vez melhor e de forma mais eficaz.
Este trabalho é feito justamente por perceber os desencontros contidos na Rede, que muitas vezes
camufla ou omite a má assistência, o que gera maiores números de judicializações da infância e
juventude, evidenciando sobremaneira os gargalos existentes no sistema.
Outro importante equipamento social nesse contexto, são as reuniões territoriais que
acontecem nos 08 (oito) CRAS que compõem o Município, a fim de que possam ser discutidos os
casos comuns à rede de proteção, possibilitando a tomada de decisão por parte dos profissionais,
resguardadas as competências e especificidades de cada um. O objetivo é construir instrumentais
cujas avaliações se complementem, com vistas a diminuir a prática do encaminhamento pelo
encaminhamento, para dar lugar a encaminhamento e acompanhamento ético, de qualidade, que de
fato contribua para a mudança da realidade de nossas crianças e adolescentes e familiares, de forma
a beneficiá-los com relação a seus direitos, seja no âmbito da saúde, educação, habitação,
assistência, previdência, entre outros.
A pandemia do novo Corona vírus de covid-19, que assolou o Brasil e o mundo, impactou
intensamente a vida de toda a população. Prematuro dizer que vivenciamos um período pós
pandêmico quando na realidade ainda somos assombrados pelo aumento de novos casos de pessoas
contaminadas, além de lidarmos com sequelas graves dessa terrível doença. Esse contexto refletiu
diretamente no cotidiano de crianças e adolescentes, evidenciando o quão necessário essa rede de
proteção precisa ser atuante, evitando-se assim preconizada.
Dentro da rede de educação municipal, percebeu-se diversas refrações sociais, fruto de um
sistema capitalista, agravado pelo caos do momento pandêmico, trazendo para o interior das
unidades de ensino, demandas sociais que comprometem e por vezes inviabiliza o aspecto
pedagógico como: fome, violência de toda natureza, o desemprego dos pais ou responsáveis, o óbito
de pais e ou responsáveis, o adoecimento psicológico, a falta de atendimento por profissionais
especializados, a falta de medicação, o rompimento de tratamentos, entre outros.
A política de saúde é outra porta de entrada para as mais variadas violações de direitos.
Sejam nas unidades básicas de saúde, pela equipe que realiza atendimento domiciliar, sejam nos
71

atendimentos de média e alta complexidade, a violência contra a criança e ao adolescente é latente


e é observada como uma expressão da questão social, tal como a fome, o desemprego, o uso de
substâncias psicoativas. Todas essas fazem parte do cotidiano de boa parte da sociedade brasileira
que vive marginalizada e excluída como classe subalternizada.
A área de saúde tradicionalmente atende as crianças e os adolescentes vítimas das mais
variadas violências, no entanto, a política de assistência social também é uma área que vivencia este
cotidiano. Os Centros de Referencias de Assistência Social por exemplo, que são espaços que
atendem as famílias mais vulneráveis tem que possuir profissionais capacitados para o
conhecimento e intervenção dessas demandas. É necessário que os profissionais que atendem em
espaços como este possuem um olhar acolhedor e atento frente o cotidiano dos usuários da referida
política.
Pode-se contar também com uma casa que atende as famílias violentadas. A citada casa de
acolhimento é uma instituição vinculada a prefeitura de Uberaba e atende as famílias que são
encaminhadas pela Polícia Militar, pela Patrulha de Proteção e Prevenção a Violência Doméstica e
pela Delegacia de Orientação e Proteção a Família.
Em que pese a ideia de que essa rede vem se consolidando a cada encontro, a cada discussão
a cada atendimento, pensar nos dificultadores impulsiona a busca de alternativas capazes de dirimir
os reflexos dessas mazelas sociais na vida das crianças e adolescentes.

O contexto da judicialização: da proteção à violação dos direitos


Pode parecer estranho, num primeiro momento, a inversão das características enunciadas
neste subtítulo, em que menciona a proteção em primeiro lugar e a violação de direitos como uma
consequência. No entanto, o que se percebe na prática judiciária, a partir de uma visão profissional
da advocacia no município de Uberaba/MG, é que os direitos preconizados no Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA) deveriam ser absolutos e prioritários, através das políticas públicas que
englobam a rede de proteção à criança e ao adolescente. Em que pese a existência deste aparato
estatal para a proteção dos direitos, os serviços prestados pelo município, estado e união, são
insuficientes diante de tamanha demanda, ocasionando o afastamento das famílias e do público
infanto-juvenil do acesso a estes atores sociais e à possíveis resoluções dos problemas que os
envolvem.
Exatamente por este motivo houve a inversão no título, pensando justamente em falhas
ocorridas no interior da própria rede, independentemente do local e serviço em que se deu, que
resultou na violação grave do direito daquela criança ou adolescente, sendo necessária a intervenção
do judiciário, pela criação de um risco que passa a ser presente na vida dessa pessoa, demandando
um cuidado maior e mais “invasivo” e traumático, deixando explicito que não há um trabalho
72

preventivo que evite as violações aqui mencionadas, necessitando sempre de intervenções de


urgência, oriundas de um trabalho em rede que não funcionou adequadamente.
É importante mencionar que o trabalho do judiciário, notadamente relacionado às
demandas da infância e juventude, possuem um viés voltado quase que exclusivamente à criança,
esquecendo, por diversas vezes, as vulnerabilidades e fragilidades que envolvem todo o contexto
social que aquele ou aquela assistida convive. Isso reduz drasticamente as possibilidades de se
reverter os quadros de risco que nortearam aquele processo judicial, porque o trabalho
multidisciplinar e intersetorial deveria ter ocorrido anteriormente, de forma a contemplar todas as
necessidades daquele sujeito de direitos.
E sobre as políticas públicas, para Cunha e Cunha (2002, p.12), “As políticas públicas têm
sido criadas como resposta do Estado às demandas que emergem da sociedade e do seu próprio
interior, sendo expressão do compromisso público de atuação numa determinada área a longo
prazo”. Desta forma, elas assumem essa característica de fidelidade com o usuário dos serviços,
devendo ser desenvolvido de forma eficaz e efetiva.
Corriqueiramente, também se percebe a culpabilização dos responsáveis pela criança e
adolescente em diversas situações, dentro do judiciário e dos serviços da rede, mesmo que o caso
não tenha ocorrido da forma como dita pelos atores. Muitas vezes os entendimentos são de que,
alguma figura que deveria zelar pela criança ou adolescente, agiu com negligência, criando
oportunidade de risco. Esta figura, na maioria expressiva das vezes, se concentra na mãe, envolta
por vulnerabilidades sociais e econômicas. Por isso, quando se fala da preocupação da
judicialização, isso ocorre porque quando a situação demanda pronunciamento judicial, a origem
dos desafios nem sempre é lembrada ou evidenciada, portanto, podem até elucidar algumas
situações, mas geralmente permanecem ou reincidem ao longo do tempo. Isso leva a um efeito
cascata de intervenções que podem, inclusive, desaguar na destituição de poder familiar, por
completo desequilíbrio causado àquela estrutura e arranjo familiar.
Uma criança ou adolescente pode ser retirada do convívio familiar por um período, como
forma de afastar o risco, sendo feito acompanhamento em um abrigo apropriado. Entretanto, se a
família não for devidamente acolhida e acompanhada – em razão de os familiares também estarem
inseridos em um ambiente desfavorável –, não haverá que se falar em efetividade, inclusive do
processo judicial. Mesmo havendo uma equipe multiprofissional do tribunal, responsável pelas
análises dessas situações, não há que se falar em um atendimento e acompanhamento adequados,
porque os atendimentos são pouquíssimo frequentes, além de não haver um número ideal de
profissionais em relação à demanda, o que ocasiona um congestionamento nos processos e um
tratamento cada vez menos pessoalizado com as famílias.
Sobre a conduta dos profissionais do judiciário Fávero (2007, p. 161) ensina que,
73

Esse poder, dependendo da visão de mundo e profissional e de seu (des)


compromisso ético, pode ser direcionado tanto para a garantia de direitos dos
sujeitos envolvidos na ação – na medida em que intervém no sentido do
desvendamento e da denúncia dos mecanismos objetivos e subjetivos que
contribuem, como no presente estudo, para que a pessoa se veja sem condições de
criar seus filhos – como pode contribuir para o controle social e o disciplinamento,
de cunho moralizante, culpabilizando as pessoas, individualmente, pelas condições
socioeconômicas precárias em que vivem. A culpabilização pode traduzir-se, em
alguns casos, em interpretações como negligência, abandono, violação de direitos,
dentre outras, deixando submerso o conhecimento de determinações estruturais ou
conjunturais, de cunho político e econômico, que condicionam a vivência na
pobreza por parte de alguns sujeitos envolvidos com esses supostos atos.

Por isso, quando se analisa as políticas públicas que envolvem as crianças e adolescentes,
é preciso entender que o contexto é complexo e que qualquer nó estrutural que envolve essas
políticas é capaz de desestruturar todo ou boa parte do sistema que deveria prezar e proteger esses
sujeitos. Fazer juízo de valor das situações é muito fácil e simples quando aquilo não afeta a cada
ser individual, mas sim ao outro, distanciando essa realidade daquilo que deveria ser o ideal e
normalizando situações que devem ser tratadas com atenção e sensibilidade.
As crianças e os adolescentes são o futuro dos povos, das comunidades, das sociedades e
devem ser cuidadas e respeitadas como merecem, com dignidade, com afeto, com respeito e dando
a elas o protagonismo das escolhas e daquilo que julgam como o melhor, dentro de uma equidade
de oportunidades, o que ainda está longe de ser alcançado.

Conclusão
A verdadeira rede de proteção é aquela formada por profissionais competentes, éticos,
capacitados, que atuem em espaços de trabalho adequados, com vistas a um trabalho articulado e
integrado em que as ações sejam pensadas na resolutividade do público-alvo do seu atendimento,
fortalecendo a interdisciplinaridade entre os órgãos e entidades que atendem essas famílias. É
necessário que todos os partícipes dessa rede, consigam estabelecer uma linguagem única, com
propriedade da matéria, debatendo e somando entre si, com a troca constante de conhecimento,
identificando alternativas concretas e duradouras para as situações atendidas.
Outro aspecto de suma importância está centrado no constante e adequado monitoramento
e aperfeiçoamento dos fluxos estabelecidos na e pela rede, enquanto responsabilidade de todos os
membros que a compõe, devendo primar por resultados que garantam o efetivo acesso aos direitos
preconizados no ECA
No entanto, há a clara percepção de que, por vezes, o trabalho advindo de políticas públicas
poderia ser mais eficaz na resolutividade das demandas apresentadas, evitando-se assim, o grande
número de judicialização de casos, em virtude do não eficaz funcionamento da chamada rede de
proteção.
74

Referências
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990ª.
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SALES, F. (Org.). Políticas públicas. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
FÁVERO, Eunice Teresinha. Questão Social e Perda do Poder Familiar. São Paulo: Veras
Editora, 2007.
FILHO, Paulo Roberto Araujo Cruz. Governança e Gestão de Redes na Esfera Pública Municipal:
O Caso da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência em
Curitiba. Ciências em Debate: Cadernos Interdisciplinares do Núcleo de Pesquisa ORD/UFSC.
Florianópolis: v.1, n.1, p. 158-178. 2014.
IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação
profissional. 3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2000.
75

SUPOSTO ATO INFRACIONAL E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: REFLEXÕES


INICIAIS A RESPEITO DA INTERNAÇAO PROVISÓRIA PARA ADOLESCENTES

Amanda Lorena Leite18

Introdução
Este trabalho tem como objetivo apresentar algumas considerações a respeito de projeto
de pesquisa que tem como tema a internação provisória de adolescentes que supostamente
praticaram algum ato infracionais no Estado de Minas Gerais. À vista disso, traz algumas reflexões
iniciais que justificam e orientam a pesquisa que ainda encontra-se em fase inicial.
Uma vez que há poucas produções científicas críticas a respeito da internação provisória;
que os indicadores do estado não abarcam as especificidades da medida cautelar; que o sistema
utilizado pelo Estado para coleta de dados dos adolescentes privados de liberdade não abrange
coleta de informações a respeito do perfil dos adolescentes no provisório; e que ainda exista pouco
conhecimento dos equipamentos que compõem o sistema de direitos da criança e do adolescente a
respeito da internação provisória, torna-se extremamente necessário pesquisar sobre o tema, a fim
de mapear e conhecer a realidade que permeia a especificidade desse tipo de acautelamento e, a
partir disso, construir coletivamente, enquanto rede de direitos, ações assertivas em curto, médio e
longo prazo. Além disso, há grande fortalecimento na sociedade Brasileira da onda conservadora
“anti-ECA”, isto é, a favor do retrocesso com relação aos direitos da infância e adolescência
conquistados com tanta luta. Isso apenas reforça a necessidade da realização de pesquisas na área a
fim de contestar o estigma com relação aos adolescentes envolvidos com algum tipo de ato
infracional e enfatiza a relevância da temática colocada inicialmente no projeto.
Ainda abordando essa perspectiva conservadora, Mario Volpi coloca que alguns juízes da
infância e promotores ainda utilizam antigas categorias do Código de Menores como a “vadiagem”
e a “perambulação” como razão para a privação de liberdade, desrespeitando os princípios de
excepcionalidade, brevidade e condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (VOLPI,
2015).Além disso, a inexistência de parâmetros objetivos para medir a dimensão quantitativa da
chamada “delinquência juvenil” é substituída por avaliações tendo como base a moral e as opiniões
pessoais.
Com relação a isso, Michel Foucault coloca a delinquência como “condição que o sistema
submete o indivíduo, estigmatizando-o e controlando formal ou informalmente, inclusive após ter

18 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas - PAPP/UNESP. Diretora de
Atendimento no Centro de Internação Provisória (CEIP) de Araxá/MG. Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual
Paulista "Julio de Mesquita Filho" - Campus Franca/SP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Políticas Públicas para
Infância e Adolescência - GEPPIA/Unesp/ Franca - SP. Membro do Laboratório de Análise de Política (LAP) - Unesp/Franca. E-
mail: [email protected]
76

cumprido a pena” (FOUCAULT, 1996 apud VOLPI, 2015). Volpi atribui isso à dificuldade ainda
existente em reconhecer no agressor um cidadão, o que para muitos é até mesmo inapropriado. No
entanto, é essencial que os profissionais inseridos na política pública socioeducativa reconheçam e
busquem garantir esses direitos, tanto no cotidiano de trabalho como através da realização de
pesquisas.
No Brasil, crianças e adolescentes “representam a parcela mais exposta às violações de
direitos pela família, pelo Estado e pela sociedade” (VOLPI, 2015, p. 10), mesmo sendo colocados
pela legislação como destinatários de proteção integral. Essas violações são ainda mais acentuadas
nos casos de adolescentes privados de liberdade, uma vez que, apesar de as medidas socioeducativas
constituírem-se em condição especial de acesso aos direitos sociais, políticos e civis, não é o que
efetivamente ocorre em muitos Centros Socieoducativos. Além disso, as medidas têm (ou ao menos
deveriam ter) a missão de proteger e realizar um processo educativo de maneira que o adolescente
tenha oportunidade de se reinserir na vida social fora dos muros da instituição, o que só ocorrerá
através de um conjunto de ações que vão para além do que a instituição em si pode oferecer, haja
vista a incompletude institucional e necessidade de um trabalho intersetorial.
Este trabalho intersetorial com o sistema de garantia de direitos possui desafios, sobretudo
quando é necessário trabalhar com diferentes redes de diferentes municípios, haja vista a origem de
adolescentes de diversas localidades em uma mesma unidade. Para compreender o porquê da
dificuldade de efetivação desses processos, é preciso investigar o motivo dessa dicotomia existente
entre teoria e prática (RIZZINI, 1993).
De acordo com Volpi
A aplicação de medidas socioeducativas não pode acontecer isolada do contexto
social, político e econômico em que está envolvido o adolescente. Antes de tudo,
é preciso que o Estado organize políticas públicas para assegurar, com prioridade
absoluta, os direitos à convivência familiar e comunitária, à saúde, à educação, à
cultura, esportes e lazer e demais direitos universalizados, será possível diminuir
significativamente a prática de atos infracionais cometidos por adolescentes
(VOLPI, 2015, p.54).

Fica evidente, à vista disso, a necessidade de estudar sob quais condições e particularidades o
acautelamento provisório ocorre.

Desenvolvimento
A internação provisória está prevista no Art. 108 do Estatuto da Criança e do Adolescente -
ECA (1990), possui natureza cautelar e pode ser aplicada antes da sentença pelo prazo máximo de
quarenta e cinco dias, além disso, deve ser baseada em indicativos de autoria e materialidade, os
quais precisam demonstram a necessidade impreterível da medida. Conforme Art. 108 do ECA:
77

Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo
máximo de quarenta e cinco dias.
Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios
suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da
medida (BRASIL, 1990)

Esta medida segue os mesmos princípios da medida socioeducativa de internação previstos


no Art. 121 do ECA, que são: brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento (SUASE, 2013), entretanto apresenta particularidades que não são
evidenciadas nos índices existentes.
Enquanto diretora de atendimento de uma unidade socioeducativa de caráter provisório
localizada no interior do Estado de Minas gerais, é possível identificar algumas questões que se
apresentam como problema do projeto de pesquisa, tais como: a carência de investigações que
estudam e analisam a socioeducação em Minas Gerais, sobretudo as especificidades da internação
provisória; os desafios de articulação com a rede de direitos de diferentes municípios, haja vista a
alta rotatividade de adolescentes de diferentes localidades do estado e o período máximo de
acautelamento de 45 dias; os desafios na garantia do direito à convivência familiar, uma vez que a
maioria das famílias são de municípios distantes e não possuem condições de se locomover para as
visitas familiares e para participação em atividades propostas pelas equipes; a ausência de índices
publicizados específicos da internação provisória; entre outras particularidades que nem sempre são
levadas em consideração.
É relevante destacar que é recente a criação de um sistema extremamente importante de
monitoramento e que oferece subsídios para a avaliação da política socioeducativa no Estado de
Minas Gerais, como o Painel SUASE, assim como o compartilhamento da gestão das unidades
socioeducativas com uma Organização da Sociedade Civil, a qual teve início no ano de 2021 e tem
apresentado como resultado uma melhoria significativa nos índices das medidas socioeducativas
quando comparados com os índices dos centros geridos pela administração direta.
Entretanto, os indicadores nem sempre conseguem expressar a realidade por trás dos
números, quais os desafios e particularidades de determinadas medidas. Por isso, a pesquisa
realizará estudo e análise da internação provisória em Minas Gerais, buscando conhecer os desafios
em comum e algumas particularidades das cinco unidades exclusivas de internação provisória do
estado, além de socializar possibilidades de garantia de direitos aos jovens acautelados, mesmo que
em curto período de tempo.
De acordo com a Metodologia de Atendimento (SUASE, 2013), a internação provisória está
envolta de alguns eixos, são eles: abordagem familiar e sócio-comunitária; educação escolar na
vertente de acompanhamento pedagógico; atividades artísticas, culturais, esportivas e de lazer;
atendimento à saúde; atendimentos individuais; articulação de rede; construção e estudo de caso;
orientações sobre relatórios; festividades e comemorações. Esses eixos exigem o trabalho de uma
78

equipe multidisciplinar que trabalhe, sobretudo, na perspectiva interdisciplinar (LEITE, 2021).


Dentro desse contexto e colocando o público-alvo da política pública – os adolescentes -no centro
da questão, é necessário ressaltar o histórico da visão em relação à infância e à adolescência no
Brasil a fim de compreender a atual conjuntura.
Essa visão sofreu muitas mudanças ao longo da história, no início do período Republicano,
por exemplo, cria-se um discurso salvacionista, no qual era necessário salvar a criança para
transformar o Brasil (RIZZINI, 2008). Dentro disso, é importante ressaltar o surgimento de uma
nova categoria, a do “menor”, que era sujeito às seguintes metas de salvação: prevenção (vigiar as
crianças), educação (voltada para moldar os pequenos ao hábito do trabalho e à submissão),
recuperação (recuperar o menor vicioso que era considerado desajustado tendo em vista uma
concepção positivista) e repressão (conter o menor delinquente).
Ademais, ainda nesse período, a justiça estabeleceu uma aliança com a assistência com o
objetivo de criar um “sistema de proteção aos menores” que resultava na seguinte intervenção:
retirada dos filhos das famílias “sem moral” e das ruas, tanto os “perigosos” quanto os perigosos
em potencial, ou seja, os filhos dos pobres eram sujeitos passíveis de intervenção judiciária
(RIZZINI, 2008). Com isso, eram submetidos a internações em ambientes insalubres e superlotados
que desrespeitavam os direitos humanos e tinham como objetivo o afastamento dessa população
pobre, em especifico crianças e adolescentes, do restante da sociedade e a reprodução da força de
trabalho, fatos históricos que ainda são muito presentes na atualidade.
Dentro disso, devido à pressão dos movimentos sociais na década de 1980, foi instituída e
entrada em vigor uma nova lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei nº 8069, de 13
de julho de 1990), a qual reconhece as crianças e os adolescentes como cidadãos possuidores de
direitos e sujeitos em desenvolvimento que necessitam de proteção integral. Diante disso, essa lei
rompe com a Doutrina da Proteção Irregular (Lei 6679 – Código de Menores) e a substitui pela
Doutrina da Proteção Integral, em que torna dever do Estado, da família e da sociedade assegurar
às crianças e aos adolescentes os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária.
De acordo com o Artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, há seis medidas
socioeducativas que devem ser aplicadas por autoridade competente: a advertência, a obrigação de
reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime
de semiliberdade e a internação em estabelecimento educacional. Nesta última, o objetivo principal
não deve ser a punição, mas sim trabalhar a cidadania e a reintegração social dos jovens privados
de liberdade através de uma política educacional eficiente. Com isso em mente, a medida aplicada
deve considerar a gravidade da infração, as circunstâncias e a capacidade dos adolescentes em
cumpri-la. No entanto, nem sempre é o que ocorre e, em muitos casos, as medidas socioeducativas
79

são aplicadas de maneira inadequada, de forma que a internação se torna banalizada e transforma-
se na primeira medida, quando deveria obedecer aos princípios de excepcionalidade, brevidade e
respeito à condição peculiar do adolescente, que é a de pessoa em desenvolvimento (VOLPI, 2015).
É de fundamental importância, portanto, compreender o importante papel da equipe
interdisciplinar junto aos adolescentes privados de liberdade, que tem como papel preparar o jovem
para a cidadania e para um futuro ainda incerto, no caso da internação provisória, uma vez que este
ainda aguarda uma sentença. Para isso, essa equipe “têm a missão de proteger (garantir direitos) e
educar de forma que o adolescente tenha oportunidade de se reinserir na vida social” (VOLPI, 2015,
p. 17) e isso deve ocorrer através de “um conjunto de ações que propiciem a educação formal,
profissionalização, saúde, lazer e demais direitos assegurados legalmente” (VOLPI, 2015, p. 17).
Na aplicação da privação de liberdade em jovens com menos de 18 anos, o que de fato ocorre
é uma proteção da sociedade, não do adolescente, o qual é considerado pelo senso comum como
um “desajustado social”, isto é, não vive conforme os padrões sociais impostos pela ideologia
burguesa, portanto precisa ser afastado do convívio social a fim de ser recuperado e em seguida
reincluído (VOLPI, 2015, p. 11). No entanto, essa “recuperação” nem sempre ocorre conforme o
Estatuto da Criança e do Adolescente, em que “os regimes socioeducativos devem constituir-se em
condições que garantam o acesso do adolescente às oportunidades de superação de sua condição de
exclusão, bem como de acesso à formação de valores positivos de participação na vida social”
(VOLPI, 2015, p. 25). O que dá base para essas condições é o acesso às políticas públicas
intersetoriais, como: assistência social, saúde, educação, cultura, esporte, lazer, habitação,
segurança alimentar, etc, as quais precisam dialogar com as instituições de internação e raramente
o fazem. Essas políticas públicas de proteção à infância e adolescência são limitadas, conhecidas de
forma fragmentada, quando não são inexistentes e, apesar de existirem documentos legais que
garantam direitos, eles nem sempre são efetivados fora dos muros institucionais. No entanto,
acredita-se que mesmo diante dessa conjuntura, é possível que as equipes interdisciplinares atuem
junto aos adolescentes e às famílias, trabalhando para um processo de garantia de direitos, desde
que amparados por políticas públicas efetivas.
Também é preciso considerar o contexto neoliberal em que estamos inseridos para
compreender o cenário exposto acima, contexto este que é considerado por Octavio Ianni como a
“reprodução ampliada do capital em escala global” e momento em que “o poder Estatal é liberado
de todo e qualquer empreendimento econômico ou social que possa interessar ao capital privado
nacional e transnacional.” (IANINI, 2004, p. 314-316). Além disso, o autor coloca o contexto como
um divórcio entre Estado e sociedade, cujo resultado é um desenvolvimento desigual e contraditório
que opera em escala global.
O papel da mídia também é abordado por Ianni, em que afirma que ela “opera decisivamente
como ‘intelectual orgânico’ dos grupos e classes sociais ou blocos de poder dominantes em todo o
80

mundo, em âmbito nacional e global” (IANINI, 2004 p. 324). Dessa forma, restam poucos espaços
de organização, conscientização e mobilização às classes sociais ou setores e coletividades
subalternos. Ademais, a indústria cultural é responsável pela exarcebação da violência através da
manipulação da imagem com filmes, reportagens e novelas, isto é, surge um processo chamado por
ele de “estetização da violência”.
Ainda segundo o autor, o neoliberalismo é, portanto, uma guerra contra tudo que contenha
um pouco de “social”, priorizando tudo que é econômico. Com isso, “o mundo todo revela-se
atravessado pelo desemprego estrutural, as subclasses, o pauperismo, a lumpenização, a xenofobia,
o etnicismo, o racismo, o fundamentalismo, o terrorismo de Estado, a criminalização de setores
sociais subalternos, a satanização dos ‘outros’” (IANNI, 2004, p. 342), o que explica a
marginalização e esquecimento da juventude periférica e preta, a qual é lembrada apenas pela
criminalidade e violência, sem levar em consideração a violência estrutural que ela sofre.
À vista desta realidade, a pesquisa tem como objetivo geral realizar um estudo a respeito da
internação provisória para adolescentes que supostamente cometeram ato infracional no Estado de
Minas Gerais. Como objetivo específico buscará conhecer o perfil dos adolescentes em internação
provisória; mapear os desafios e possibilidades das Unidades Provisórias no processo de garantia
de direitos dos adolescentes privados de liberdade conforme previsão do ECA e SINASE; realizar
uma análise comparativa entre as unidades de internação provisória da administração direta, da
gestão híbrida e da cogestão.
A investigação terá como orientação teórico metodológica o método crítico dialético, uma
vez que buscará analisar a totalidade complexa do objeto de estudo, sem a pretensão de esgotá-lo.
Além da pesquisa bibliográfica, será realizada pesquisa documental e de campo, em que serão
aplicados questionários aos diretores de atendimento das unidades provisórias do Estado de Minas
Gerais a fim de incluí-los e considerar suas perspectivas do trabalho realizado com adolescentes
acautelados. Espera-se como resultado desta pesquisa contribuição para o aprimoramento da
execução da medida provisória no estado.

Conclusões
Diante do que foi apresentado e da carência de pesquisas voltadas para as medidas
socioeducativas, fica evidente a necessidade de se pesquisar sobre a temática apresentada, visto que
são poucas as produções críticas a respeito da infância e da adolescência, principalmente das
medidas socioeducativas, e ainda mais sobre a privação da liberdade provisória. É preciso
compreender a realidade a fim de contribuir para a construção, avaliação e desenvolvimento da
política socioeducativa no estado de Minas Gerais.

Referências
81

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http://www.seguranca.mg.gov.br/socioeducativo/2013-07-15-23-12-47. Acesso em: 20 jan 2022.
83

O MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO DE SERVIÇOS SOCIOASSISTENCIAIS


EXECUTADOS POR ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL

Elaine Cristina dos Santos Rosa19


Jonas Rafael dos Santos20

Introdução
O presente trabalho tem como tema o monitoramento e avaliação de serviços
socioassistenciais executados por organizações da sociedade civil por meio de parcerias com a
Administração Pública sob a luz da Lei Federal n.º 13.019/2014 na área da Assistência Social nos
termos de colaboração. A ênfase do trabalho é a implementação da regulamentação da Lei n.º
13.019/2014 e seus aspectos no acompanhamento das parcerias estabelecidas entre a Administração
Pública e o Terceiro Setor por meio das OSCs - Organizações da Sociedade Civil.
Nos municípios a obrigatoriedade da aplicação da legislação citada data de janeiro de 2017,
na qual estabelece o Chamamento Público como modalidade para celebração de parcerias entre a
Administração Pública e as OSCs – Organizações da Sociedade Civil. O Chamamento Público é
uma forma de seleção de propostas que permitem o cumprimento de princípios constitucionais
como: da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade,
da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e
dos que lhes são correlatos. Esses princípios garantem a “concorrência” na apresentação da melhor
proposta para atendimento do interesse público no desenvolvimento de serviços vinculados a
Políticas Públicas.
A Lei nº 13.019/2014, com a redação alterada pela Lei nº 13.204/2015, define
princípios, diretrizes e critérios para a escolha de atividades e projetos de interesse
público desenvolvidos por organizações da sociedade civil (OSCs) em âmbito
nacional. Estabelece também três modalidades de parceria: termo de colaboração,
termo de fomento e acordo de cooperação. Além disso, a lei fixa as cláusulas
essenciais dos instrumentos de parceria e as formas de avaliação e monitoramento,
subordinando as etapas de celebração, execução e prestação de contas a diversos
instrumentos de transparência, participação e controle .(SOUZA, et al, 2020, p. 27)

Essa legislação passa da lógica do controle financeiro para a lógica de controle de resultados,
sendo essencial o monitoramento e avaliação dos serviços pactuados com as OSCs, portanto a
Prestação de Contas deve demonstrar o cumprimento dos objetivos e metas estabelecidos no Plano
de Trabalho aprovado previamente pela Administração Pública.
O fato é que ainda se trabalha com a lógica do controle de meios por ausência de
parâmetros e critérios que possam estabelecer segurança suficiente. Tornar
possível a priorização dos resultados exige que se construa cada vez mais, no
âmbito dos órgãos públicos, o conhecimento necessário sobre custos, métodos e

19
UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Mestranda. Email: [email protected].
20
UNESP - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Doutor. Email: [email protected].
84

indicadores. O preço justo e adequado deverá ser sempre uma premissa; mas, para
isso, cada política ou programa, com sua peculiaridade, deverá estabelecer um
padrão de valores que respeite a realidade regional e local de mercado. Assim,
quanto mais se institucionalizam os meios, mais será possível o exercício do
controle de resultados das parcerias. (LOPES, SANTOS, BROCHARDT, 2014, p.
113-114)

A Administração Pública promoverá obrigatoriamente o monitoramento e a avaliação do


cumprimento do objeto da parceria por meio de acompanhamento das parcerias e a emissão de
relatórios e pareceres por meio de Gestor da Parceria e Comissão de Monitoramento e Avaliação,
que serão constituídos por meio de ato normativo.Segundo Lopes, Santos, Brochardt (2014, p. 110)
no monitoramento e a avaliação “apoio e acompanhamento constantes da execução da parceria
devem aprimorar procedimentos, unificar entendimentos, solucionar controvérsias, padronizar
objetivos, custos e indicadores e fomentar o controle de resultados”.
Para compreender o papel do monitoramento e avaliação é primordial realizar uma análise
dessa questão, relacionada aos serviços pactuados, resultados identificados e levantar o perfil dos
profissionais que atuam (aturam) em comissão de monitoramento e avaliação e dos técnicos
responsáveis pela execução dos serviços nas organizações da sociedade civil. A análise do papel do
monitoramento e avaliação nas parcerias dos serviços socioassistenciais com o terceiro setor sob a
luz da Lei nª 13 019/2014 possibilita reflexões sobre a efetividade da política pública na relação de
acompanhamento das parcerias.

A assistência social e o terceiro setor: legitimização de parcerias com a administração pública


por meio do monitoramento e avaliação
A Assistência Social é política pública reconhecida pela Constituição Federal de 1998 e
pela Lei n.º 8.742/1993, a LOAS - Lei Orgânica da Assistência Social. Em seu Artigo 1º a LOAS
define a Assistência Social da seguinte forma: “A assistência social, direito do cidadão e dever do
Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada
através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o
atendimento às necessidades básicas”.
Sua trajetória veio da benesse, de favores, da filantropia, de doações, focalismo, tutela e
imediatista, dando respostas ao sistema capitalista no enfrentamento das desigualdades e na
tentativa de minimizar os impactos da questão social. Com as mudanças no sistema capitalista a
Assistência Social sofreu alterações e impactos diretos na questão social. Todos esses impactos
acentuam a questão social, atingindo diretamente os vulneráveis, pois com o neoliberalismo
ocorrem desmontes dos direitos e aumentam as desigualdades e a exclusão.
Para Montaño (2010) o período da reforma gerencial trouxe leis e incentivos para as
organizações sociais, filantropia empresarial, voluntariado e outras atividades com cunho de
parcerias com o Estado, em contraponto essas parcerias representam a desresponsabilização com a
85

questão social, ou seja, o Estado transfere suas responsabilidades para o terceiro setor. E
consequentemente essa relação trouxe a redução dos custos com a atividade social, associada a
precarização, focalização e localização dos serviços, com redução dos direitos. Mestriner (2001)
refere-se ao final do século XX o papel do Estado mínimo norteado pelo neoliberalismo e assim o
dever do Estado é transferido como obrigação ao cidadão, família, comunidade e sociedade.
A desresponsabilização do Estado fortalece a figura do Terceiro Setor e crescem as parcerias
com as organizações para execução de atividades voltadas para as Políticas Públicas, principalmente
na Assistência Social. Couto (2010) destaca que no caso brasileiro a responsabilidade na garantia
dos direitos sociais é uma lacuna na qual a atenção aos vulneráveis tinha papel secundário e era
atendida pelas entidades privadas e/ou filantrópicas.
Segundo Mestriner (2001, p. 17) “a assistência social se desenvolveu mediada por
organizações sem fins lucrativos ou por voluntários, num obscuro campo de publicização do
privado, sem delinear claramente o que nesse campo era público ou era privado”.
Segundo Bernardinis (2017, p. 47), o nascimento do terceiro setor está relacionado ao
associativismo, com papel principal da Igreja no século XVI.

No século XVI, ocorreram os primeiros estímulos ao associativismo, decorrentes


da aceleração das relações comerciais que começam a ocorrer neste período.
Paralelamente a isto, ainda no Estado Absolutista, todas as atividades que não
estavam direcionadas ao benefício do soberano foram assumidas por outros entes
da sociedade, tendo a Igreja assumido o papel principal de prestar a assistência aos
desamparados. (BERNARDINIS, 2017, p. 47)

O Terceiro Setor é formado por organizações sem fins lucrativos que atuam junto ao Estado
na execução de Políticas Públicas, com vista em gerar impacto positivo na sociedade, com suas
ações de interesse público, para minimizar a desigualdade.

Em geral, o terceiro setor representa a superação da dicotomia público versus


privado, em uma concepção de algo novo que viria a trazer soluções que o Estado
não pode dar e que o mercado não procura e nem quer dar. Isto porque, as
organizações que o compõem exploram as atividades próprias da sociedade e,
neste sentido, atividades consideradas públicas, ao mesmo tempo em que não
possuem natureza mercantil. (BERNARDINIS, 2017, p. 52)

Segundo Montaño (2010) existem conceitos que alimentam uma teoria na qual o terceiro
setor veio para solucionar a dicotomia entre o Público e o Privado, ou seja, o Estado e o Mercado,
uma relação liberal, para dar respostas as necessidades sociais, entre a crise do Estado e o lucro do
Mercado nasce o terceiro setor.
Essa estrutura entre o Estado, a Política Pública e a Sociedade Civil, com os impactos do
capitalismo veem nas parcerias com o Terceiro Setor uma alternativa para minimizar as
desigualdades e possibilitar acessos a direitos. Segundo Andrade (2015) é preciso compreender o
surgimento e expansão das ONGs e sua relação com as políticas do Estado brasileiro, pois existe o
86

reajuste de mínima intervenção do Estado e o domínio dos interesses do capital. Couto, Yasbek e
Raichelis trazem os impactos das reformas neoliberais na direção privatizadora e focalizadora das
políticas sociais na ordem da mundialização e financeirização do capital.
A pressão do Consenso de Washington, com sua proposição de que é preciso
limitar a intervenção do Estado e realizar as reformas neoliberais, a presença dos
organismos de Washington (FMEI, Banco Mundial) responsáveis por estabelecer
as estratégias para o enfrentamento da crise por parte dos países periféricos, e a
redução da autonomia nacional, ao lado da adoção de medidas econômicas e do
ajuste fiscal são características desse contexto que, no campo da Proteção Social,
vai se enfrentar com o crescimento dos índices de desemprego, pobreza e
indigência. (COUTO, YASBEK e RAICHELIS, 2012, p. 57)

Para o estabelecimento de recursos financeiros da Administração Pública e as organizações


do terceiro setor eram estabelecidos auxílios e contribuições; subvenções sociais; convênios;
contratos de gestão; termos de parcerias. Anteriormente as parcerias eram celebradas por meio de
Convênios, regulamentadas pelo Artigo 116 da Lei de Licitações – Lei n.º 8.666/1993. Essa
estrutura vem acompanhada das mudanças provocadas pela lei do capital, que proporciona a
reforma do Estado e com isso a privatização de responsabilidades e redução dos gastos. As
legislações são mecanismos de controle para a regulação do sistema.
Essas parcerias entre a Administração Pública e o Terceiro Setor, eram estabelecidas por
meio de celebração de convênios e subvenções. Não eram acompanhadas, não havia controle e
consequentemente não havia parâmetros para mensurar resultados quanti e qualitativos na execução
dos serviços pactuados, o foco era apenas o financeiro.
A partir de 2017 foi obrigatório em território nacional nos municípios a aplicação da Lei n.º
13.019/2014 nas relações de ajustes entre a Administração Pública e as Organizações do Terceiro
Setor, no qual é estabelecido um novo procedimento para celebração de parcerias. Essa lei apresenta
mudanças na relação de formalização de parcerias entre as Organizações da Sociedade Civil e a
Administração Pública, ela cria ferramenta e/ou mecanismos para garantir transparência e
legalidade na aplicação dos procedimentos.
Segundo Lopes, Santos, Brochardt (2016, p. 21) o Marco Regulatório é um norteador que
cria um parâmetro nacional para a celebração desses ajustes com validação em todas as
esferas: municipal, estadual, distrital e federal. As mudanças do Marco Regulatório significam
segurança jurídica a todos nas parcerias, principalmente por promover a parametrização da relação
jurídica e por permite a autonomia na regulamentação da lei nos municípios e estados, o gera o
atendimento as necessidades locais. Segundo Lopes, Santos e Brochardt (2016, p. 22) “São
instituídas as relações de Fomento e de Colaboração, por meio de instrumentos específicos, que
reconhecem de forma inovadora essas duas dimensões de relacionamento entre as OSCs e o poder
público”. Essa legislação trata da obrigatoriedade da realização do processo de seleção de
organizações para execução de serviços, sendo o Chamamento Público a regra para formalização
87

dos ajustes. Ela estabelece critérios e indicadores para a seleção, ou seja, fornece parâmetros. A
realização do Chamamento Público é estabelecida pelo Artigo 23 da lei, que apresenta a definição
de objetivos, metas, custos e indicadores.
O chamamento público é um procedimento semelhante à licitação e a sua função é selecionar
a melhor proposta a ser executada por uma OSC que responda aos critérios da Lei n.º 13.019/2014.
Toda proposta apresentada à Administração Pública está vinculada ao Plano de Trabalho, que deve
conter: descrição da realidade vinculada a proposta a ser executada; previsão de receitas e despesas;
formas de execução e metas; definição de parâmetros para aferir resultados, ou comprimento das
metas. Após a homologação da parceria, caberá a Administração Pública promover e garantir meios
para a efetividade do monitoramento e avaliação, sendo indicado servidores públicos para sua
realização por meio de designação da comissão de monitoramento e avaliação e do gestor da
parceria.
O monitoramento e avaliação tem como obrigatória a sua realização, devendo a
Administração Pública oferecer condições para que seja efetivo. A Administração Pública e o gestor
da parceria possuem obrigações estabelecidas na lei. Os Artigos 58 a 60 da Lei n.º 13.019/2014
trazem os norteadores do monitoramento e da avaliação.
O gestor deverá emitir Parecer Técnico de análise de prestação de contas da parceria
celebrada. Além dos relatórios e parecer técnica, outro instrumento importante no monitoramento
e avaliação são as visitas in loco durante a execução da parceria, o qual também deve ser
apresentado por meio de relatório. Outro instrumento importante é a realização de pesquisas de
satisfação em parcerias acima de um ano. Segundo Alves (2007, p. 23) “teoricamente, a
avaliação é uma das etapas das políticas sociais, destinada a indicar sua reformulação, seja
depois”. Alves (2007, p. 27) apresenta o seguinte conceito: “à avaliação é atribuído um caráter
funcional, sendo tomada como um mecanismo de construção de variáveis que representem
“situações sociais-problema”, tratadas no nível do “ajustamento”, da “integração”, sem sequer fazer
referência aos fatores estruturais determinantes”.
Para análise do monitoramento e avaliação é primordial o estabelecimento de critérios sobre
o cumprimento do objeto, em relação a execução de atividades, metas e demonstração de resultados,
relacionados ao custo-benefício da proposta. O monitoramento e avaliação analisará a execução da
parceria por meio da prestação de contas, visita in loco e reuniões com a organização. No Artigo 66
é tratada a apresentação dos relatórios de execução do objeto e execução financeira para a prestação
de contas, sendo destacado os resultados alcançados e a alimentação de plataforma eletrônica. Esse
artigo pauta-se na obrigatoriedade da parceria demonstrar: os resultados já alcançados e seus
benefícios; os impactos econômicos ou sociais; o grau de satisfação do público-alvo; a
possibilidade de sustentabilidade das ações após a conclusão do objeto pactuado.
88

A prestação de contas deve demonstrar o cumprimento do objeto, seus resultados e benefício


social.
A prestação de contas apresentada pela OSC deverá possibilitar que o gestor
público avalie o cumprimento do objeto a partir de verificação se as metas previstas
foram alcançadas. O relatório de execução do objeto deverá conter a descrição das
atividades ou projetos desenvolvidos para a realização da parceria e comparativo
das metas propostas e dos resultados alcançados. Nele, devem ser anexados todos
os documentos que comprovem a realização das ações, tais como listas de
presença, fotos, vídeos, etc (LOPES; SANTOS; BROCHARDT, 2016, p. 58)

Diante do exposto tem-se como problemática o papel do monitoramento e avaliação de


parcerias da Assistência Social com Organizações da Sociedade Civil, com vistas a compreender
as mudanças que ocorreram nas parcerias após a implantação da Lei n.º 13.019/2014 e a sua
efetividade em acompanhar os resultados das parcerias.
A análise da relação entre a Assistência Social e as OSC visa levantar informações e o perfil
dos responsáveis pelo Monitoramento e Avaliação, sendo membros de comissões e gestores de
parcerias, e das equipes de execução das organizações. Visa também levantar e conhecer os recursos
usados para mensurar resultados durante a execução da parceria e como são analisadas as
informações coletadas. As comissões de monitoramento e avaliação são compostas por servidores
públicos e as organizações participaram profissionais das áreas de serviço social, psicologia,
pedagogia e terapia ocupacional.

Conclusões
A Administração Pública deve determinar providências para fiscalização, monitoramento e
avaliação das parcerias celebradas com as Organizações da Sociedade Civil. No monitoramento e
avaliação da ação deve ser o acompanhamento dessas parcerias, visando olhar para os resultados de
sua execução.
A lei obriga a designação de gestor da parceria e da comissão de monitoramento e avaliação,
sendo assim é primordial refletir sobre o perfil e a capacidade técnica desses profissionais, como
também como a Administração Pública promove a qualificação desses servidores, prezando pela
eficiência. Portanto a compreensão das ações e procedimentos utilizados no monitoramento e
avaliação permite a Administração Pública condições de verificar a execução das atividades, o
cumprimento ou descumprimento das metas e a ocorrência de irregularidades, possibilitando dessa
forma sanar as intercorrências e adequar a proposta. A legislação apresenta alguns procedimentos
como Parecer Técnico; Relatório de Monitoramento e Avaliação; Visita in loco; Pesquisa de
Satisfação. Mas a partir de planejamento podem ser lançados outros aparatos que auxiliem no
acompanhamento da parceria, como a utilização de recursos tecnológicos.
O monitoramento e avaliação permitem mensurar o quanto os envolvidos diretamente
apresentam capacidade técnica para a sua efetivação em prol da análise do cumprimento de metas
89

e apresentação de resultados nas parcerias. O papel do monitoramento e avaliação é fundamental


para apresentação de informações e dados sobre o cumprimento das metas estabelecidas no Plano
de Trabalho e os resultados alcançados durante a execução da proposta, bem como os benefícios
sociais para a sociedade. É através do acompanhamento da parceria que poderão ser sanadas
questões como descumprimento de metas, atividades ineficientes ou inadequadas a demanda
atendida e uso adequado do recurso público, como também se os valores repassados são suficientes
para garantir o pagamento das despesas dessa parceria. O que possibilitará uma análise sobre a
necessidade das parcerias e o seu custo-benefício.

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91

A CAMPANHA DE DOAÇÃO DE SANGUE “MATHEUS VIVE” NO CONTEXTO DA


COMUNICAÇÃO ENTRE GESTORES ESTADUAIS E MUNICIPAIS DO SUS NA
REGIÃO DO OESTE PAULISTA

Alana Duarte dos Santos Boaventura21


Rodolfo Franco Puttini22
Introdução
O sangue é fluido vital para a vida do ser humano, e mesmo com o avanço da medicina, o
homem ainda não conseguiu criar uma substância capaz de substituir o tecido sanguíneo em sua
totalidade. Atualmente no Brasil apenas 1,6% da população é doadora de sangue, estando bem
abaixo do índice ideal estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de 3% a 5%
(FIOCRUZ, 2021).
O fato é que o brasileiro não tem a cultura de doar sangue, o que é um dos fatores que
contribuem para a baixa adesão às campanhas de doação. Portanto, diante desta realidade, o presente
artigo científico estudará sobre a “Campanha de Doação de Sangue ‘Matheus Vive’” que surgiu de
uma vivência pessoal com Matheus Boaventura na cidade de Castilho/SP.
Matheus Boaventura foi diagnosticado com um câncer raro e agressivo em janeiro de 2019,
e iniciou seu tratamento no Hospital de Amor, localizado em Barretos/SP, em fevereiro do mesmo
ano. Durante seu tratamento recebeu várias bolsas de sangue e de plaquetas e a cada transfusão
Matheus sentia uma enorme gratidão pelos doadores espontâneos do município e região (mesmo
sem conhecê-los), nutrindo uma enorme vontade de realizar campanhas de doação de sangue
quando estivesse curado. Após alguns meses de tratamento, em outubro, a doença se espalhou para
uma metástase óssea. Em novembro de 2019 ele não estava bem, e no dia 11 de novembro estando
internado e recebendo bolsa de sangue, gravou um story nas redes sociais pedindo para as pessoas
doarem sangue. No dia seguinte ele entrou em óbito. Logo após o seu falecimento, os seus
seguidores começaram a enviar mensagens de homenagens. Nesse contexto recente, ainda em luto,
com apoio da minha família e da namorada do Matheus, Raysna, foi dada continuidade à ideia
primordial do Matheus sobre uma possível campanha de doação de sangue, por meio do
relacionamento nas redes sociais. Em memória ao Matheus, mantendo o legado revivido entre os
seus seguidores.

21
Professora de Direito na Fundação Educacional de Andradina/SP. Mestranda em Políticas Públicas na Unesp em
Franca/SP. Graduada em Direito na UFMS em Três Lagoas/MS. Especialista em Direitos Humanos UEMS/MS.
Endereço eletrônico: [email protected].
22
Professor Associado do Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual
Paulista - UNESP / Campus de Botucatu. Livre-Docente em Sociologia e Antropologia da Saúde pela UNESP. Docente
do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas (UNESP Franca). Endereço
eletrônico: [email protected].
92

A partir desse primeiro momento estruturante, foram realizadas enquetes no Instagram e no


Facebook interagindo com perguntas do tipo: “Você quer doar sangue?”, estruturando assim um
grupo de potenciais doadores, através do qual há comunicação e divulgação da campanha via grupo
de WhatsApp com aproximadamente 150 seguidores, que aderiram à mobilização. Desde então, há
no grupo 192 (cento e noventa e duas) pessoas interessadas na campanha de doação de sangue
periódica, que acontece de forma trimestral da cidade de Castilho à cidade de Araçatuba. Até o
momento já aconteceram 16 (dezesseis) campanhas com pessoas doadoras do município de
Castilho.
A “Campanha de Doação de Sangue ‘Matheus Vive’” foi criada, portanto, na cidade de
Castilho, sendo formada a primeira turma de 40 pessoas moradores da cidade de Castilho,
conformada ao limite de passageiros no ônibus que levaria ao Hemocentro da cidade de Araçatuba,
cidade de quase 200 mil habitantes, onde está localizada a sede mais próxima do Hemocentro
regional, distante 126 km da cidade de Castilho. A problemática envolvida neste artigo consiste na
ausência de suporte por parte dos municípios do interior do Estado de São Paulo em oferecer
mecanismos para a população chegar até o hemocentro mais próximo e doar sangue. Em Castilho,
a história de Matheus motivou possíveis doadores da cidade de Castilho, porém o incentivo às
políticas públicas de doação de sangue por parte do município era inexistente.
O objetivo deste artigo científico será analisar a experiência exitosa de dezesseis caravanas
organizadas pela “Campanha de Doação de Sangue ‘Matheus Vive’” e apresentá-la como um caso
particular significativo e representativo para o conjunto de políticas públicas regionais no contexto
do planejamento de hemocomponentes e serviços hemoterápicos da Rede de Hemocentro de
Ribeirão Preto.
O presente artigo justifica-se, pois, a pesquisa tem a relevância de trazer resultados
esperados, de auxiliar no pensamento da Saúde Coletiva, de trazer novas perspectivas para pensar
a política regional de hemoderivados. Também afirmamos que esta pesquisa trará novos horizontes
para a área da Saúde Coletiva, especificamente para a organização das regiões de saúde, bem como
será exequível, uma vez que dispõe de documentos públicos (primordialmente oriundos das redes
sociais) para análise de um estudo de caso. E, por fim, é grande a oportunidade para atender aos
interesses de utilidade pública e das organizações não governamentais, que atuam de modo
suplementar ao SUS.

Desenvolvimento
Falar de doação de sangue é falar de vida. O direito à vida, por sua vez, é direito humano
previsto na ordem internacional e é direito fundamental constante do texto constitucional pátrio. A
doação de sangue também envolve o direito à saúde, que por ser um direito humano e fundamental
social, concretiza-se por meio de normas programáticas e que tem como característica fundamental
93

estabelecer princípios e diretrizes a serem cumpridas pelo Poder Público através de programas que
promovam os objetivos sociais do Estado.
As normas programáticas estão impossibilitadas de atingir eficácia plena, visto que são
“normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementadas pelo Estado, ou
que contêm determinadas imposições de maior ou menor concretude dirigidas ao Legislador”
(SARLET, 2010, p. 309). Dessa forma, o incentivo à doação de sangue é uma forma de concretizar
o direito à saúde, através da formulação de políticas públicas nas áreas da saúde a respeito do
assunto.
No contexto da organização da saúde pública no Estado de São Paulo, existe a Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) que é responsável pela formulação da Política Estadual de
Saúde e de suas diretrizes, norteada pelos princípios do Sistema Único de Saúde - SUS, que tem
como propósitos promover a saúde priorizando as ações preventivas, democratizando as
informações relevantes para que a população conheça seus direitos e os riscos à sua saúde. Nesse
sentido, ao se pensar em políticas públicas de incentivo à doação de sangue, salutar destacar a Lei
n. 8.080/90 (Sistema Único de Saúde), a Lei n. 10.205/01 (Política Nacional de Sangue,
Componentes e Hemoderivados), a Lei n. 10.936/01 (Institui e regulamenta o Sistema de Sangue,
Componentes e Derivados do Estado de São Paulo).
Ademais, há uma Hemorrede no Estado de São Paulo, criada pelo Decreto nº 32.849, de
23 de janeiro de 1999, para o desenvolvimento das ações especificadas no Plano Nacional do
Sangue e Hemoderivados, pelo Programa Estadual de Hematologia-Hemoterapia da Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo, que nos fornece este informe:
O decreto nº 49.343, de 24 de janeiro de 2005, incorpora a Hemorrede ao Departamento
de Sangue, Componentes e Derivados, subordinado à Coordenadoria de Ciência,
Tecnologia e Insumos Estratégicos da Saúde – CCTIES da Secretaria de Estado da
Saúde, com as seguintes atribuições:
I – coordenar, em consonância com as normas emanadas pelo Ministério da Saúde, a
gestão do Sangue do Estado;
II – harmonizar e implementar as ações relacionadas ao Sangue, Componentes e
Derivados, no Sistema Único de Saúde – SUS/SP;
III – garantir a qualidade dos insumos obtidos nos organismos operacionais e centros de
produção de hemoderivados da rede estadual;
IV – fomentar, em conjunto com os Centros de Vigilância Sanitária e Epidemiológica,
ações de proteção das atividades hemoterápicas; e
V – coordenar as atividades dos hemocentros no Estado de São Paulo.

A SES-SP é também responsável pela articulação e pelo planejamento de ações desenvolvidas


pelos 17 Departamentos Regionais de Saúde (DRS) distribuídos pelo Estado. Além disso, a SES-
SP também administra três fundações:
1. Fundação do Remédio Popular (FURP), que pesquisa, desenvolve, fabrica e distribui
medicamentos;
2. Fundação Oncocentro de São Paulo (FOSP), que se constitui basicamente na instância de apoio
à SES-SP para assessorar a política de câncer no Estado;
94

3. Fundação Pró-Sangue Hemocentro de São Paulo, que além do desenvolvimento de pesquisas a


partir de padrões internacionais de referência, fornece hemocomponentes e serviços
hemoterápicos.

Outras atividades igualmente importantes, também alvo constante de atenção do SUS,


devem ser destacadas, como o controle da ocorrência de doenças, seu aumento e propagação,
desenvolvidas principalmente pela Vigilância Epidemiológica, o controle da qualidade de
medicamentos, exames, alimentos, higiene e adequação de instalações que atendem ao Oi público,
área de atuação da Vigilância Sanitária e o controle de endemias no território paulista a partir da
Superintendência de Controle de Endemias - SUCEN.
O controle social e a participação da comunidade na definição de prioridades e necessidades,
no acompanhamento e avaliação das ações executadas são garantidos a partir das
instâncias Conselho Estadual de Saúde (CES) e Comissão Intergestores Bipartite (CIB).

Os Departamentos Regionais de Saúde


Há uma outra divisão administrativa da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, que se
faz através dos Departamentos Regionais de Saúde - DRS, atendendo ao Decreto DOE nº 51.433,
de 28 de dezembro de 2006. Por meio deste Decreto o Estado foi dividido em 17 Departamentos de
Saúde, que são responsáveis por coordenar as atividades da Secretaria de Estado da Saúde no âmbito
regional e promover a articulação intersetorial, com os municípios e organismos da sociedade civil.
O mapa apresentado a seguir mostra a divisão do Estado nos Departamentos Regionais de Saúde.
Mapa 1: Estado de São Paulo segundo Departamentos de Saúde (2012)

Fonte: https://saude.sp.gov.br/ses/institucional/departamentos-regionais-de-saude/regionais-de-
saude
95

A estrutura do Hemocentro de Ribeirão Preto


Embora uma estrutura regional de saúde perfaz a região, foi pela estrutura Rede Hemocentro
de Ribeirão Preto. que concretizamos dezesseis caravanas de doação de sangue da “Campanha
‘Matheus Vive’, destinada ao Núcleo de Hemoterapia de Araçatuba.
O Hemocentro de Ribeirão Preto é um dos mais importantes centros de hemoterapia e
hematologia do país. A Fundação foi criada em 1990 para atuar como referência nacional em
assistência, ensino e pesquisa. São mais de 200 cidades e 110 hospitais atendidos pelo Hemocentro
RP, numa região onde moram mais de quatro milhões de habitantes.
Há duas perguntas orientadoras: enquanto Matheus teve a sorte de ser atendido pelo Hospital
de Amor em Barretos (em outra Regional de Saúde fora da região de Araçatuba), e que possui um
Hemocentro próprio para o fornecimento de bolsas de sangue para o próprio hospital e hospitais da
região, tendo havido a necessidade particular de campanhas diárias para chamar as pessoas doarem
sangue, perguntamos: como os hospitais que não possuem hemocentro próprio atuam para captação
de sangue? Como os pacientes são afetados no local de atendimento quando há necessidade de
sangue insuficiente?
Problematizando: se há uma estrutura formada com a DRS II (Araçatuba) - um dos dezessete
Departamentos Regionais de Saúde (DRS) que atua de modo organizado no Estado de São Paulo -
, no entanto carece de uma política pública de captação de sangue para cobrir regiões de diferentes
logísticas organizadas por mapeamentos diversos, como descrito acima: um mapa das Regionais de
Saúde, outro mapa dos Hemocentros do Estado de São Paulo.
Portanto, entendemos que esta pesquisa se enquadra no momento de formulação de uma
política pública de captação de sangue na Secretaria do Estado de São Paulo, especialmente na Rede
de Hemocentro de Ribeirão Preto, uma vez que há carência do serviço específico de organização de
caravanas para campanhas de doação de sangue.

Conclusão
A existência de leis que determinam a criação de políticas públicas de incentivo à doação
de sangue é um fato, porém observa-se que não são suficientes para fomentar a doação de sangue
nos municípios do interior e mais distantes do hemocentro. Com relação aos municípios não há
especificações legais de como deve ser esta movimentação para a efetivação de campanhas de
doação de sangue.
A ausência de Políticas Públicas de incentivo à doação de sangue por parte dos municípios
é um fator muito preocupante. Potenciais doadores deixam de doar sangue por falta de
conhecimento e incentivo e os estoques dos hemocentros estão sempre abaixo do nível mínimo de
segurança. A maioria dos municípios não se atentam à importância deste tema, demonstrando
descaso e medo e falta de conscientização, por não ter uma cultura de doação de sangue. Não se
96

pode, todavia, negar o fato de que a doação de sangue depende muito da vontade de uma pessoa em
se tornar doadora de sangue, porém isso só acontecerá a partir do momento em que o poder público
entender a importância e fomentar a cultura de conscientização, o fato é que a importância dessa
conscientização se torna indiscutível quando se almeja o abastecimento dos hemocentros.
Acreditamos que a descrição das campanhas de doação de sangue ‘Matheus Vive’ sirva
como parâmetro para uma forma de comunicação entre gestores estaduais e municipais do SUS na
região do oeste paulista, cuja organização no SUS valorize potenciais pessoas a exercerem a doação
como um exercício de cidadania.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 15 jan. 2022.
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em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10205.htm. Acesso em: 15 out 2022.
____. Lei n. 10.936/01 - Institui e regulamenta o Sistema de Sangue, Componentes e Derivados do
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http://www.legislacao.sp.gov.br/legislacao/dg280202.nsf/ae9f9e0701e533aa032572e6006cf5fd/99
7865c01d833aa703256d1f00740418?OpenDocument. Acesso em: 15 out 2022.
FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro. Bancos de sangue estão com o estoque
baixo na pandemia. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/bancos-de-sangue-estao-
com-estoque-baixo-na-
pandemia#:~:text=De%20acordo%20com%20dados%20do,%2C6%25%20da%20popula%C3%A
7%C3%A3o%20brasileira.> Acesso em 21 jan. 2022.
SANTOS, Luiza de Castro; MORAES, Cláudia; COELHO, Vera Schattan P. Os anos 80: a
politização do sangue. Revista de Saúde Coletiva, v. 2, n. 1, 1992. Disponível em:
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xt=Al%C3%A9m%20do%20descontrole%2C%20muitos%20s%C3%A3o,cada%20entidade%20p
romove%20a%20sua)>. Acesso em: 10. Out. 2022.
_____. A Hemoterapia no Brasil de 64 a 80. PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva. v. 2, n. 1, 1991.
Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/physis/a/PLQsDHkLjWNw9W9cCjhgNbC/abstract/?lang=pt>. Acesso
em: 10. Out. 2022.
SÃO PAULO. DECRETO Nº 49.343, DE 24 DE JANEIRO DE 2005. Dispõe sobre as
Coordenadorias da Secretaria da Saúde. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2005/decreto-49343-24.01.2005.html.
Acesso em: 01 dez 22.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10. ed. rev. atual. e ampl. 2. tir.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2010.
97

A EXPERIÊNCIA DO IFMUN COMO RESULTADO DA POLÍTICAPÚBLICA DE


EDUCAÇÃO BRASILEIRA: AS SIMULAÇÕES ENVOLVENDO TEMÁTICAS DE
DIREITOS HUMANOS

Gabriel Terra Pereira23


Guilherme Bernardo Vitoretti da Silva24

Introdução
No Brasil é a Constituição Federal (BRASIL, 1988), quem irá nortear e auxiliar a formulação
e implementação das políticas públicas na área educacional. Este campo foi marcado historicamente
pela exclusão e desigualdade no que se refere à participação de homens e mulheres no acesso, por
exemplo, à escolarização, bem como a outras oportunidades similares (PALMA FILHO, 2010).
Nesse sentido, no final da primeira década do século XXI, a criação da Rede Federal de Educação
Profissional e Tecnológica permitiu não apenas uma espécie de rompimento com este legado e
passado, mas a criação de novas oportunidades de trabalho entre as instituições de educação, suas
comunidades e seus territórios.
Neste texto apresentam-se a construção e trajetória do projeto de Extensão do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo Câmpus Catanduva intitulado “IFMUN”
e alguns de seus resultados envolvendo as simulações de comitês da Organização das Nações
Unidas (ONU) acerca de temas envolvendo os Direitos Humanos e a política internacional. O
trabalho vem sendo realizado desde 2019 através da parceria com escolas na região de Catanduva
de modo a proporcionar o contato com uma ação - produto de uma política pública - educacional
transformadora. O texto que segue traz elementos para a compreensão do conceito de políticas
públicas (PPs) e a trajetória do IFMUN ao longo dos anos.

Desenvolvimento
O conceito de políticas públicas surgiu nos Estados Unidos entre os anos de 1945 e 1991,
com ênfase nos estudos sobre os governos, a partir do pressuposto analítico de que a ação
governamental é passível de ser formulada cientificamente e analisada por pesquisadores
independentes (SOUZA, 2006). Ela aparece no contexto de Guerra Fria (1945-1991), onde se
valorizava a tecnocracia, entendida como o governo exercido pelos técnicos, que em tese,
controlariam os meios de produção e, consequentemente, superariam o poder político.
Não existe uma única definição sobre o que seja uma política pública. A definição mais
conhecida continua sendo a de Laswell (1936), onde decisões e análises sobre elas implicam em

23
IFSP Câmpus Catanduva. Doutor. [email protected]
24
FCHS/Unesp-Franca/ IFSP Câmpus Catanduva, Mestrando PAPP. [email protected]
98

responder às seguintes questões: quem ganha o quê, por que e que diferença faz? Mead (1995)
utiliza-se da definição de que as políticas públicas são como um campo dentro do estudoda política
que analisa o governo à luz de grandes questões públicas. Já para Lynn (1980) é umconjunto de
ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986) compreendeque a política
pública é a soma das atividades dos governos que agem diretamente ou através de delegação, e
que influenciam a vida dos cidadãos. Por sua vez, Dye (1984) nos sugere que a definição de política
pública é o que o governo escolhe fazer ou não fazer. Para Secchi (2016),qualquer definição de
políticas públicas é arbitrária, sendo que o autor ainda aponta alguns nósconceituais, os quais são
necessários debates antes da formulação de uma definição. Por exemplo, é preciso pensar se as
PPs são elaboradas exclusivamente pelo Governo e qual é o peso dos atores não estatais neste
processo.
Há autores que defendem ser o Estado como centralizador das ações (perspectiva
estadocêntrica), em que a definição de “públicas” em PPs se concentra na exclusividade de um
governo elaborar as leis e fazê-las cumprir. Já os autores da vertente intitulada “multicêntrica”
defendem que as organizações privadas e não governamentais juntamente com o Estado fazem
também PPs. Após esta reflexão parte-se para o segundo nó conceitual, em que Secchi (2016)
questiona as PPs como produtos de omissão ou à negligência. Esta questão foi abordada quandoDye
afirmou que uma política pública “é tudo aquilo que os governos escolhem fazer ou não fazer”
(1984, 1). E por último existe o terceiro nó conceitual que instiga a pensar se apenas diretrizes
estruturantes são políticas públicas ou diretrizes operacionais também podem assim ser
consideradas.
Secchi (2016) afirma existirem teóricos que defendem que somente as diretrizes
estruturantes (macrodiretrizes) são consideradas PPs. Os programas, planos e projetos são apenas
elementos operacionais, não sendo considerados por si só PPs. Para o autor, tanto as diretrizes
estruturantes quanto as operacionais são consideradas PPs. Considerados os nós conceituais de
Secchi (2016), chega-se a uma definição para políticas públicas. Elas atendem micro e macro
diretrizes estratégicas, sendo que estas ações são deliberadamente realizadas ounão realizadas por
representantes de quaisquer setores da sociedade, com o Estado se destacando, para atender aos
interesses públicos.
A partir da Lei nº11892, de 29 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008) foi instituída a
chamada Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, na qual se alocaramos
Institutos Federais. Embora e ao longo do século XX houvessem outras institucionalidades
relativas à educação profissional no Brasil, a partir da referida data ocorreu uma transformação
significativa na política pública deste setor, haja vista que esta rede passou a representar um
conjunto amplo de possibilidades na formação de cidadãos integrando saberes historicamente
99

segregados, articulando a formação intelectual e a preparação para o mundo do trabalho


(NASCIMENTO, CAVALCANTI e OSTERMANN, 2020, p.123).
Entre as características da Rede Federal e suas finalidades estava – no artigo 6º da lei de
criação dos institutos – as dimensões do ensino e da pesquisa associadas aos arranjos
produtivos, à sociedade e à cultura local, bem como no desenvolvimento de programas de
extensão com vistas à divulgação científica e tecnológica (BRASIL, 2008).
No Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), aExtensão
foi inicialmente regulamentada pelas portarias nº3067/2010 e nº3314/2011. Ambas foram
substituídas pela portaria nº2968/2015, que atualmente conceitua e regulamenta as ações de
Extensão na instituição. Segundo esta normativa a Extensão é definida como:
As ações de extensão são uma via de mão dupla com a sociedade, que proporciona
a relação de diálogo entre conhecimentos acadêmicos e conhecimentos
tradicionais, enriquecendo o processo educativo e possibilitando a formação de
consciência crítica tanto da comunidade interna do IFSP (docentes, discentes e
técnicos-administrativos), quanto dos diversos atores sociais envolvidos (IFSP,
2015, p.2).

Entre as possibilidades de atuação da Extensão no IFSP existem os programas, os projetos,


os cursos, os eventos e a prestação de serviços. Neste texto abordar-se-á a noção de projeto, que
representa um conjunto de ações multidisciplinares “visando à interação transformadora entre a
comunidade acadêmica e a sociedade” (IFSP, 2015, p.3).
O projeto de extensão no IFSP, entendido como uma ação dialógica e com objetivos
determinados, representa uma possibilidade concreta de diálogo com o público historicamente
excluído das políticas públicas de educação, bem como do seu potencial transformador. Partindo-
se desse pressuposto, no final de 2018 foi realizado um mapeamento dos indicadores
socioeconômicos da região de Catanduva, São Paulo, no sentido de compreender a dinâmica do
território e suas especificidades. Àquela altura, o Câmpus do IFSP localizado nacidade e criado
em 2010, possuía um contingente significativo de estudantes oriundos dos municípios vizinhos
que procuravam a instituição para continuar seus estudos após o Ensino Fundamental II.
Entre alguns resultados encontrados estava o IDH semelhante, a dependência do plantioda
cana-de-açúcar e das usinas a ela relacionadas25. Este cenário, combinado às visitas às escolasque
enviavam seus estudantes ao IFSP Câmpus Catanduva foi determinante para a elaboração do
projeto que veio à luz como “Jovens Embaixadores” (PEREIRA, 2019). O propósito era o de
formar um grupo de estudantes do IFSP que pudesse dialogar com a comunidade externa,
notadamente àquela que porventura poderia integrar os cursos regulares do Câmpus no futuro.A

25
À época os seguintes dados foram encontrados sobre a população e o IDH de alguns municípios: Itajobi:
15226 hab./ 0,730 IDH; Pindorama: 16877 hab./ 0,737 IDH e Santa Adélia: 15397 hab./ 0,760 IDH.
100

temática norteadora era o debate sobre o funcionamento da Organização das Nações Unidas
(ONU) e o trabalho com as simulações.
As simulações ou modelos ONU são propostas de trabalho pedagógico há algum tempo
estabelecidas no mundo e em especial no Brasil. Os primeiros trabalhos estão localizados na
década de 1980 na Universidade de Brasília (UnB), passando nas décadas seguintes a outras
instituições e níveis de ensino até chegarem ao Ensino Médio. Embora não haja uma pesquisaque
unifique estatísticas sobre a temática, o Brasil conta hoje com eventos espalhados pelo território
que ocorrem com sistematicidade, destacando-se o AMUN na mesma UnB, aMiniOnu da PUC-
Minas, o UN SP da Unesp-Franca e o SiEM, organizado pela UFSC. Inicialmente restritas aos
cursos de graduação de Relações Internacionais, educadores foram incorporando as simulações
para finalidades que iam desde o aprofundamento dos debates sobre um conteúdo disciplinar na
área de humanidades ao aperfeiçoamento de questões como a argumentação e a oratória dos
estudantes (GODINHO, 2015).
Na Rede Federal um dos trabalhos mais antigos e publicizados é o realizado por
servidores no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG) desde 2016, que tem suas
experiências relatadas no interior daquele estado (COSTA, MARTINS e PALHARES, 2019).
Nesse sentido, em 2019 o projeto foi submetido e aprovado via edital do IFSP Câmpus Catanduva,
possibilitando o fomento de duas bolsas a estudantes regularmente matriculados.Logo de início
o projeto contou com uma ampla procura por parte dos estudantes, formandouma equipe com
cerca de 15 integrantes. No primeiro semestre foram desenvolvidas oficinasrelativas à temas de
política internacional, além de contribuições esporádicas de professores do Câmpus sobre
conversação em inglês e sobre o Esquema de Argumentação de Toulmin(TOULMIN, 2001),
além de uma simulação do Conselho de Segurança da ONU em trêscomitês de debates: a
Guerra do Vietnã (1955-1975), a utilização de armas químicas na Síria(2018) e o ingresso da
Palestina na ONU. Já no segundo semestre, o projeto a partir de contatoprévio com as escolas da
região, visitou sistematicamente escolas em Santa Adélia ePindorama, além de oficinas pontuais
em Itajobi e em Tabapuã. As visitas tinham por objetivocompartilhar o conteúdo aprendido no
primeiro semestre, bem como fomentar debates erealizar uma simulação com os estudantes
interessados. Todas as atividades contaram com aanuência e participação das equipes gestoras
das escolas. No final do mesmo ano ainda foirealizada nova simulação entre os extensionistas
com a temática “Educação de Qualidade e a
Agenda 2030”, no contexto dos ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU.
A repercussão positiva entre os integrantes do projeto e das comunidades por ele afetadas permitiu
uma nova submissão em 2020, contando inclusive com nova aprovação parabolsas em edital do
Câmpus. Contudo, o advento da pandemia de Covid-19 alterou a dinâmica de todo o trabalho
previsto. Em meio à incerteza de como e quando as atividades presenciais retornariam e
101

posteriormente a escassez de recursos tecnológicos necessários para o ensino remoto emergencial,


optou-se pelo cancelamento da ação em 2020. Contudo, em substituição foi proposta a ação
intitulada IFDH: Juventude e Direitos Humanos no território do IFSP Câmpus Catanduva. O projeto
contou com seis bolsas de Extensão além de auxílio conectividade aos participantes, tendo como
objetivo promover o debate e o mapeamento da situação de alguns Direitos Humanos em Catanduva
e região. Temas como o mundo do trabalho, a educação, o meio ambiente, questões de gênero e
racismo, violência e o acesso às artes, cultura e a ciência foram discutidos, tendo se chegado a um
documento informativo à comunidade microrregional (PEREIRA et al., 2021).
No ano de 2021, o projeto foi submetido e aprovado com recursos pela Pró-Reitoria de
Extensão do IFSP. Em razão da manutenção do isolamento social decorrente da pandemia, as ações
foram todas feitas remotamente. Para as reuniões da equipe foi utilizada plataforma Kumospace,
conforme imagem abaixo:

Imagem 1: O IFMUN em 2021 via plataforma Kumospace

Fonte: autoria própria.

Entre os temas discutidos em 2021 estiveram “o meio ambiente e a questão climática”,“os


refugiados na atualidade” e “nacionalismos e crise humanitária”. Destaca-se que o projetocontou
com cerca de 44 integrantes entre estudantes regulares, egressos e comunidade externa.
Com o retorno das atividades presenciais em 2022, o IFMUN foi planejado para retornaràs
escolas da região. Com uma nova submissão, o projeto foi novamente contemplado com
recursos do IFSP e da Pró-Reitoria de Extensão. Diferente dos anos anteriores, em 2022 foi
realizado o curso de Extensão “Nossa Humanidade: o ódio e o preconceito sob a ótica
interdisciplinar”, além de oficinas sobre política internacional e Direitos Humanos. A dinâmicafoi
semelhante à de 2019: no primeiro semestre foram realizadas atividades formativas e nosegundo
as visitas sistemáticas às escolas da região em Cândido Rodrigues e em Santa Adélia.
102

As atividades em Cândido Rodrigues foram feitas durante o mês de agosto, contando com
reuniões periódicas sobre a importância dos Direitos Humanos, além do levantamento detemas
que os estudantes consideravam relevantes. No encerramento das ações no município foirealizada
uma simulação da Assembleia Geral da ONU com o tema “racismo no mundo contemporâneo”,
entrelaçando extensionistas do IFMUN e da escola, que protagonizaram os debates.

Imagem 2: Encerramento da atividade em Cândido Rodrigues

Fonte: autoria própria.

Em Santa Adélia, a dinâmica foi similar, ocorrendo no mês de setembro. Destaca-se que a
colaboração da Escola Municipal Adelino Honorato Bertolo se iniciou em 2019 e alguns
participantes tornaram-se estudantes do Instituto Federal e do IFMUN, voltando à própria
escola três anos depois para as oficinas e simulação sobre a Declaração Universal dos Direitos
Humanos e sua importância histórica.
103

Imagem 3: Encerramento da atividade em Santa Adélia

Fonte: autoria própria.

Conclusões
O IFMUN está, ao fim, inserido no contexto de fortalecimento das políticas públicas na
área da educação brasileira das últimas décadas, tendo sido fundamental a criação da Rede
Federal de Educação Profissional e Tecnológica em 2008. A potencialidade gerada pelos projetos
de Extensão é um exemplo do quão relevante é o tema na formação de sujeitos históricos
conscientes dos Direitos Humanos e sua dinâmica na realidade brasileira. Considerando-se a
perspectiva do território de atuação do IFSP Câmpus Catanduva, o IFMUNtem se tornado uma
referência para a sua comunidade, alargando as suas perspectivas para os próximos anos.

Referências
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Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível
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TOULMIN, Stephen Edelston. Os usos do argumento. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
105

MOBILIZAÇÃO SOCIAL DO DIREITO: DISPUTAS E LEGITIMAÇÃO DE


INTERESSES

Alecilda Oliveira26

Introdução
O trabalho em questão consiste em um exercício de reflexão em que se procura examinar a
relação entre movimentos sociais, direito e o Poder Judiciário. O que instiga é a busca por entender
as instituições jurídicas, especialmente no último período, como um campo fecundo para a
mobilização social, disputas e legitimação de interesses.
No Brasil ainda temos um campo de análise tímido para o que se denomina como
mobilização social do direito. E como conjectura podemos pensar se a popularização da categoria
judicialização da política não tem ocasionado confusões ou mesmo precipitações nesse
sentido. Nosso país vive uma crise das instituições democráticas em que o Judiciário ora está sendo
cobrada por uma postura enérgica contra os próprios elementos democráticos, ora se vê denunciado
como ativistas que intervém em decisões políticas. O modo como o Tribunal Superior Eleitoral
precisou estabelecer campanhas demonstrando a legitimidade das urnas eletrônicas, a importância
de o voto como dever cívico etc. serve como exemplo. E o próprio fato de o STF ter se tornado tão
conhecido pela população e tratado pela opinião pública.
Há uma busca, nesse percurso, em estabelecer uma separação entre os Poderes colocando
o Judiciário preterido do debate e das decisões políticas. Mas muitos direitos só são reconhecidos e
efetivados quando setores se organizam por essa via, uma vez que tais demandas ficam “truncadas”
nos poderes legislativo e executivo.
Se buscarmos traçar o processo de emergência do debate em torno da mobilização social do
direito, veremos que o debate surge nos Estados Unidos – tornando-se cada vez mais profícuo no
ambiente acadêmico através de uma corrente teórica em que o grande expoente é Michael Mccann.
O fenômeno, nos anos 1950, da garantia de direitos à população negra ocorreu por meio de uma
luta coletiva. Essas seriam as primeiras características da mobilização social do direito, quais sejam,
uma luta coletiva e a garantia de direitos de abrangência coletiva e não apenas a concessão a alguns
indivíduos.
Reforça-se, portanto, que se trata da “promoção de valores maiores e de interesses difusos
como justiça social, direitos humanos, mudança estrutural e acesso à justiça. Nesse sentido, diz
tratar-se de casos orientados para causas, em oposição aos casos orientados para clientes” (GOMES,
2019 p. 398). Logo, as decisões judiciais nessa perspectiva deixam de ser “vistas como atos isolados

26
Professora na Universidade Estadual de Minas Gerais. Estudante de Doutorado no PPGS da Universidade Federal de
São Carlos. Mestre em Ciências Sociais. E-mail: [email protected]
106

que produzem efeitos restritos aos litigantes de cada caso, mas também como produtoras de efeitos
indiretos que afetam as pautas de movimentos sociais” (BARCAROLLO, 2020, p.75). Em
consequências disso, torna-se possível uma leitura “de baixo para cima”, centrada nos movimentos
sociais e não nas atividades judiciárias, que obviamente tem sua importância e continua a ser uma
leitura hegemônica.
Para tanto, é importante não desconsiderar que o potencial emancipador do litígio
estratégico em direitos humanos deve ser observado em contexto, tanto na sua dimensão prática
(para que seja efetivado) quanto na sua dimensão teórica (para que seja analisado de maneira
crítica). Há que se considerar que “isso não significa, contudo, que o litígio estratégico em direitos
humanos terá sempre um viés progressista ou emancipador” (GOMES, 2019, 392). Ou seja, “tanto
o instrumento do litígio estratégico pode ser (como vem sendo) usado para fins conservadores, como
a própria noção de direitos humanos ‘pode liberar ou limitar a imaginação do possível; pode
revolucionar ou conservar’” (GOMES, 2019, 392).
Como forte tendência, no Estado brasileiro, a concentração da mobilização social se
estabeleceu em esferas de Poder que não o Judiciário, com táticas como a ocupação de órgãos do
Executivo ou os lobbies no Legislativo, por meio dos quais grupos de pessoas ou organizações
buscavam influenciar, aberta ou ocultamente, as decisões do poder público, especialmente do
Legislativo. Todavia, as instituições jurídicas tem sido, especialmente no último período, também
um campo fecundo para a mobilização social, disputas e legitimação de interesses.
Realizou-se, para tanto, uma análise da mobilização social do direito como uma das
dimensões dos movimentos sociais. Os objetivos estipulados foram a) explorar o(s) sentido(s) da
expressão “mobilização do direito”; b) os setores sociais que fazem uso dessa forma de mobilização;
e c) seus limites e possibilidades demonstrando as disputas e legitimação de interesses. Como
escolha metodológica, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, com mapeamento do referencial teórico
face ao fenômeno em análise.

O(s) sentido(s) da “mobilização do direito”: participação social e acesso à Justiça


O processo de mobilização social é um aspecto fundamental na busca por reconhecimento,
efetivação e consolidação de direitos. Na transição democrática brasileira, este fenômeno cumpriu
papel para a conformação da última Constituição Federal e a consideração da participação popular
em seu texto. Houve os avanços no que concerne às mobilizações sociais, ao expandir “a previsão
normativa de direitos, de instrumentos processuais e da legitimação de organizações civis e agentes
políticos seja para a proposição de ações judiciais [...] seja para a intervenção direta nos processos
como consultores técnicos na condição de amicus curiae” (MACIEL, 2011, p. 98-99). Como forte
tendência, no Estado brasileiro, a mobilização social ocorre em esferas dos Poderes Legislativo e
Executivo, com táticas como a ocupação de órgãos ou por lobbies por meio dos quais grupos de
107

pessoas ou organizações buscam influenciar, aberta ou ocultamente, as decisões do poder público,


especialmente do Legislativo.
Temos, ainda, no que concerne à participação social o papel das instituições híbridas, como
conselhos e conferências, configurando espaços participativos e/ou deliberativos em uma relação
entre Estado e Sociedade Civil (Avritzer e Pereira, 2005). São vários os sentidos para a mobilização
social. Temos desde conflitos de interesses que mobilizam setores diversos, como também a busca
por reconhecimento e efetivação de direitos. Para a motivação há o tratamento dado em
consequência de uma leitura baseada em direitos constitucionais fundamentais e outra com base em
direitos humanos.
Koerner (2003) demonstra de que modo, ao longo dos anos 1990, houve mudanças
conceituais e institucionais no que concerne aos direitos fundamentais da Constituição, indicando a
estruturação destes a partir dos direitos humanos. Estas mudanças se deram a partir de processo de
internacionalização da economia, da ampliação “de instâncias multilaterais, como a ONU, e de
instituições supranacionais, com a formação de blocos políticos (União Europeia) e econômicos
(NAFTA, Mercosul)” (KOERNER, 2003, p. 144). Por mais que tenhamos passado por muitas
transformações ao longo dos vinte anos desde a publicação, a abordagem de Koerner (2003)
continua pertinente.
No que concerne a participação social, nos anos 1990 se efetivam mobilizações relacionadas
às “pautas civilizatórias” – em defesa dos direitos de determinados setores definidos como minorias
(no que diz respeito a garantia de direitos) e/ou movimentos de pautas setorizadas, tais como de
defesa do meio ambiente e desenvolvimento sustentável, de combate à fome, entre outros. Temos,
ainda, fenômenos transnacionais que impactam as mobilizações sociais, como ampliações e quedas
demográficas, migrações internacionais e refugiados, conflitos bélicos, narcotráfico, concorrência
em termos econômicos e de ampliação tecnológica. Koerner (2003) já citava alguns desses, que
ganharam ainda mais profundidade ao longo dos anos.
Considera-se “processos que atravessam fronteiras e escapam à autoridade ou ao controle
dos Estados” (KOERNER, 2003, p. 144). Em sua leitura, Koerner (2003) demonstra, portanto, que
uma abordagem dos direitos humanos como direitos constitucionais não exprime as mudanças do
direito nas democracias contemporâneas, com temas em disputa em fóruns internacionais. Como
um dos sentidos temos ainda a disputa em torno do fenômeno. Essa situação de ocorre, inclusive,
no espaço acadêmico. No que concerne às mobilizações coletivas feitas às instituições jurídicas
temos “judicialização” e “mobilização social” como possíveis leitura.
De acordo com Veronese (2009, p. 253), o conceito de Judicialização da Política,
desenvolvido por C. N. Tate e T. Vallinder, corresponde a uma das “ramificações” de pesquisas que
objetivavam alargar os estudos acerca da “relação entre o Poder Judiciário e os demais conjuntos
do sistema político”. Gerou-se, a partir dele, diversas análises na teoria social, sendo parte delas
108

críticas ao apontar suas insuficiências. Conforme Maciel (2011, p. 99), para Tate e Vallinder haveria
“duas (supostas) tendências do processo político contemporâneo” para explicar o fenômeno.
Primeiramente a promoção do “deslocamento de conflitos da esfera da política para a esfera da
justiça que seria expresso pelo crescimento de ações levadas aos tribunais” e, em seguida, a
expansão do Poder Judiciário que possibilita o ativismo judicial, em que de operadores do direito
fazem uso de seus valores e preferências políticas.
Em decorrência de uma ênfase institucionalista poucos estudos dão atenção à atuação da
sociedade civil nos processos políticos decisórios, buscando compreender a relação entre
movimentos sociais, direito e Poder Judiciário (CARDOSO; FANTI, 2019). Por outro lado,
identifica-se em Cardoso; Fanti (2019), assim como em Losekann; Bissoli (2019), haver um
profícuo debate no ambiente acadêmico estadunidense e em países europeus. Os dois trabalhos
serão ponto de partida para compreendermos como se originou a mobilização social do direito.
Conforme apontam Losekann; Bissoli (2019), entre os anos 1970 e 1990, houve duas
movimentações em torno do fenômeno da mobilização social nos Estados Unidos: de um lado
aqueles que “depositaram muitas expectativas de mudança institucional e social na via litigância”
e, em oposição, aqueles que “argumentaram que as instituições dificilmente mudam através dos
tribunais e que os grupos sociais mais excluídos ou marginalizados não teriam os recursos
necessários para usar esse tipo de estratégia” (LOSEKANN; BISSOLI, 2019, p.1).
Como uma terceira via ao debate, surge então a expressão mobilização do direito a fim de
compreender o fenômeno em busca de acesso aos direitos. Trata-se, portanto, de uma expressão de
origem estadunidense advinda da Legal Mobilization Theory (TLM) e que tem sido um objeto de
análise das Ciências Sociais, especialmente da Sociologia do Direito (LOSEKANN; BISSOLI,
2019). O principal expoente dessa perspectiva teórico-analítica é Michael McCann. De modo
crítico, a mobilização do direito pretende “analisar a relação entre movimentos sociais, direito e
Poder Judiciário a partir de uma perspectiva ‘de baixo para cima’” (CARDOSO; FANTI, 2019, p.
277). Ou seja, consiste em uma análise centrada nos movimentos sociais e em suas demandas ao
direito.
Há aspectos muito interessantes na leitura de McCann, sendo um deles “o de que o direito
deve ser entendido como uma prática social, como um mediador das relações sociais, cujo papel na
sociedade vai muito além do âmbito das instituições estatais” (CARDOSO; FANTI, 2019, p.
277). Para MCcan “mobilizar o direito não é só usar estrategicamente a lei, envolve interações com
atores do campo jurídico e implica a constituição de um repertório específico de ação coletiva”
(LOSEKANN; BISSOLI, 2019, p.4).
Ou seja, trata-se de uma perspectiva que promove uma ampliação do conceito de direito. E
sua análise, de forma complexa, considera aspectos antes desconsiderados por outras abordagens,
demonstrando que o direito pode ser ferramenta de luta política, presente nas relações cotidianas,
109

para promoção de mudanças sociais. O trabalho de Losekann; Bissoli (2019) realiza uma leitura em
que temos uma genealogia da TML. De acordo Junqueira (1996), no Brasil esse debate começa
tardiamente. E isto talvez se explique pelo fato de que, diferentemente dos Estados Unidos e Europa,
nossa demanda não era pela expansão do Estado de bem-estar social, mas pela efetivação de uma
série de direitos básicos aos quais ainda não tínhamos acesso em decorrência de uma tradição
liberal-individualista que operava o ordenamento jurídico-político brasileiro.
Considera-se, ainda, em Junqueira (1996) o episódio em que adentrávamos em um processo
político e social de abertura política. Portanto, não se explica na movimentação internacional a
assimilação de temas como acesso à Justiça e mobilização social do direito em nosso país. Ocorreu
tardiamente “pela exclusão da grande maioria da população de direitos sociais básicos, entre os
quais o direito à moradia e à saúde” (JUNQUEIRA, 1996, p. 2). Partindo do pressuposto de que “as
reflexões brasileiras possuíam outra matriz organizadora” (JUNQUEIRA, 1996, p.3) para o debate
de acesso à Justiça e mobilização social do direito, trata-se agora de compreender de que modo a
relação entre sociedade civil e Poder Judiciário se estabelece no Estado brasileiro.
Uma das produções a serem consideradas é a de Boaventura de Sousa Santos (1998) com a
expressão pluralismo jurídico. É por meio da análise do pesquisador português que nos torna
possível observar, para além do estabelecimento de uma espécie de estado paralelo ao direito oficial,
a impossibilidade de resolução de conflitos de uma comunidade por parte do ordenamento jurídico
e suas instâncias. Esta inacessibilidade demonstra contradições e fraturas sociais e o papel do
Judiciário brasileiro como uma das instituições sociais mantenedoras dessa ordem. Os casos de
ocupação urbanas são os primeiros, de acordo com Junqueira, a abrir os diálogos acerca do acesso
à Justiça, mas os direitos sociais difusos e coletivos “a cultura jurídica dominante, de caráter liberal
e individualista, não consegue lidar com o novo padrão de conflitualidade emergente no Brasil”,
sendo direcionados a outras arenas políticas (JUNQUEIRA, 1996, p.3).

Mobilização social do direito: limites e possibilidades


O foco do trabalho agora será pelo prisma de que as instituições jurídicas tem sido,
especialmente no último período, também um campo fecundo para a mobilização social, disputas e
legitimação de interesses. Com o processo de redemocratização, foram garantidas autonomia e
importância a diferentes estruturas institucionais do Estado brasileiro na defesa de direitos difusos
e coletivos. Exemplo disso, no que concerne ao acesso à Justiça, foi a autonomia ao Ministério e a
criação, em 1985, da Lei da Ação Civil Pública (ACP) (LOSEKANN, 2013). Essa ampliação de
canais de mobilização é fundamental, uma vez que ainda temos muitas pautas que não encontram
permeabilidade em canais participativos e que são prejudicadas pela formação de representantes do
Legislativo que se distanciam ou se colocam como oposição a elas.
110

Losekann (2013) demonstra como a crescente mobilização do direito em relação aos


conflitos socioambientais pode ser vista como um “sintoma” dessa impermeabilidade da agenda em
outros poderes, uma vez que a incorporação das pautas do ambientalismo afeta interesses de setores
econômicos “com vínculos fortemente estabelecidos no sistema político brasileiro” (LOSEKANN,
2013, p.). Portanto, o acionamento do direito passa a ser visto como uma ferramenta de
enfrentamento e busca por garantias de interesses coletivos.
Sobre a questão ambiental, especialmente, o Brasil se encontra em 2022 em uma situação
bastante crítica. Em resposta a essa situação o Supremo Tribunal Federal de uma só vez se dispôs a
analisar sete pautas questionando ações do atual governo federal acerca da temática. Denominado
“Pacto verde”, dentre os tivemos a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
760 e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 54 que tratam do desmatamento
na Floresta Amazônica. Outro elemento de discussão foi a exclusão de representantes da sociedade
civil no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). Demonstra-se, desse
modo, como pautas sensíveis à sociedade civil pode ser debatida pelas instâncias jurídicas.
Considerando, ainda, que desde 2016 temos uma onda de retrocessos no que concerne à
garantia de direitos por parte do Executivo e à participação dos movimentos sociais, com a ascensão
de ideologias conservadoras em relação aos costumes, a judicialização se tornou uma estratégia para
pautas de movimentos relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos, bem como os direitos a
serem garantidos à população LGBTIAQPN+. Portanto, há que se considerar que o espectro político
e ideológico de governos à direita também promove prejuízos que levarão tais grupos, e outros, a
ver o Judiciário como saída (PEREZ, LIMA, 2022). Temos, ainda, inúmeros exemplos, como
direitos sexuais e reprodutivos, acesso às drogas para uso medicinal e/ou recreativo, demandas por
moradia, reforma agrária, dentre outros que poderiam ser trabalhados.

Considerações finais
É preciso partirmos do entendimento de que, por mais que todos os litígios não tenham
sucesso, há um papel importante exercido pelas instâncias jurídicas e seus agentes nos dias de hoje.
E que conforme apontaram diferentes pesquisadores(as) no texto, essa relação entre Estado e
sociedade civil passou a ser possível após a redemocratização ocorrida no final dos anos
1980. Outro aspecto fundamental é observarmos o direito para além da “lei”, em sua potencialidade
de mobilização coletiva para diferentes interesses. Mobilizar o direito deve ser encarado, como
apontam, mais do que estratégia de reivindicação, mas interação e a construção de um repertorio de
ação coletiva, que busca acesso à justiça, garantia e efetivação de direitos.
Observando, ainda, a atuação do Poder Judiciário, assim como o Executivo e o Legislativo,
deve ser compreendida como arena de conflitos. Isso significa que “respostas” conservadoras
podem ser dadas aos litígios e que também podemos ter situações em que movimentos com um viés
111

conservador utilizando do litígio estratégico. Essa ressalva é fundamental para não traçarmos uma
perspectiva maniqueísta acerca da atuação das instituições jurídico-políticas.

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Participação e Instituições Híbridas”. Teoria e Sociedade, número especial, p. 16-41.
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112
113

PANDEMIA, CONCENTRAÇÃO DE RENDA E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE


À LUZ DA AGENDA 2030.

Anita Ferreira Contreiras27


Luís Felipe Borges Taveira28

Introdução
O aumento significativo da desigualdade social no Brasil está na contramão dos pactos globais
para a redução da pobreza e das violações humanas dela resultantes. Desse modo, a incorporação de
políticas e estratégias nacionais de planejamento é necessária para a materialização dos objetivos
sustentáveis, a fim de, definitivamente, reduzir a desigualdade social e melhorar o desenvolvimento
socioeconômico local e, por consequência, viabilizar o exercício de direitos sociais que ainda não
foram consolidados. Com vistas a enfrentar esse desafio, a Agenda 2030 da Organização das Nações
Unidas, da qual o Brasil é signatário, atribui, em um de seus “Objetivos para o Desenvolvimento
Sustentável”, à responsabilidade dos países a adoção de “políticas, especialmente fiscal, salarial e de
proteção social, e alcançar progressivamente uma maior igualdade”.
Embora tenha iniciado sua vigência em 2015, estudos demonstram os avanços e retrocessos
dos pactos firmados na Agenda, conforme será apontado neste trabalho. Os índices que demonstram o
aumento da concentração de renda no espectro brasileiro, junto às políticas públicas, norteiam a
demanda por soluções imediatas e a longo prazo. Como consequência, a variação negativa da renda
dos mais pobres, o aumento da pobreza e da insegurança alimentar, na última década, apresentaram
dados conflitantes com o acordado internacionalmente e com a responsabilidade conjunta sobre a
melhoria socioeconômica.
Conforme mensurado pelo índice de Gini, realizado a partir de dados do Banco Mundial, a
concentração de renda no país aumentou de modo considerável, assim como a desigualdade social.
Com a pandemia e seus reflexos socioeconômicos, o índice alcançou níveis que não eram vistos desde
2004, o qual vinha sendo gradativamente abrandado, após a implementação de políticas de
transferência de renda paliativas, elaboradas pelo Poder Legislativo, como o Auxílio Emergencial, tal
como apontam os resultados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

27
UNESP. Graduanda pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), campus Franca. e-mail [email protected]. Lattes iD http://lattes.cnpq.br/7357094335974796, Orcid
iD https://orcid.org/0000-0002-3302-2201, instituição financiadora: COPE.

28
UNESP. Mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), campus Franca, e-mail [email protected], Lattes iD http://lattes.cnpq.br/2784572759156523, Orcid iD
https://orcid.org/0000-0002-0104-6276, instituição financiadora: CAPES. O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. This
study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Finance Code 001.
114

A referida pesquisa expõe que o pico de desigualdade aconteceu durante a pandemia, no entanto
foi observada uma redução no índice, no ano de 2021. Já no primeiro trimestre do ano seguinte, o
índice para a renda domiciliar do trabalho alcançou o nível de 0,51 e para a renda individual, 0,481
(IPEA, 2022).
No entanto, o exame qualitativo por trás desses dados revela cotidianos de famílias em que
indivíduos estão submetidos a rotinas degradantes, escanteados à realidade sob a qual a mera leitura
dos índices referidos não é capaz de traduzir. Conforme elucida Hoffmann (2020, p. 3), a tendência de
alguns dos problemas socioeconômicos apontados já era de piora, antes mesmo do advento da
pandemia: “a insegurança alimentar de qualquer grau em 2017 e 2018 supera até mesmo o valor
observado em 2004”, revertendo os resultados satisfatórios alcançados entre 2004 e 2013, quando a
insegurança alimentar regrediu no país. No entanto, circunstâncias excepcionais mais recentes
culminaram no atual cenário conflitante com o objetivo de desenvolvimento sustentável (“ODS”)
assumido pelo país. Desse modo, é necessário investigar os desenhos jurídicos das políticas públicas
que almejam viabilizar o cumprimento do ODS supracitado, a fim de compreender se as oscilações
visualizadas nos índices utilizados para a captação de dados para esse fim. Assim, adotando-se uma
pesquisa qualitativa, busca-se examinar, por meio de técnicas documentais, normativas e
bibliográficas, os instrumentos jurídicos utilizados pelo Estado brasileiro, desde a vigência da Agenda
2030, para viabilizar o alcance progressivo de maior igualdade econômica e redução da miséria,
resultando na análise comparativa entre as iniciativas e arquiteturas jurídicas disponibilizadas ao
respectivo público-alvo desde 2015.

Concentração de renda no Brasil e a agenda 2030: políticas públicas redutoras de


desigualdade social e a pandemia
A função alocativa do capital no país tem relação direta com a redistribuição de renda e a
redistribuição fiscal que, por meio das transferências orçamentárias, permite corrigir a desigualdade
das rendas produzida pelas iniquidades oriundas das forças do mercado (PIKETTY, 1997, p. 85).
Assim, para que a dignidade humana seja preservada, apesar das dinâmicas de mercado, e os direitos
sociais e fundamentais sejam materialmente alcançados, os programas de transferência de renda são
postos como instrumentos para tal.
Tendo como objetivo assegurar o exercício de direitos fundamentais e sociais para a população
vulnerabilizada, foram criados programas governamentais no Brasil, os quais são identificados como
os principais responsáveis pela redução da pobreza extrema no século XXI e, ademais, pela saída do
Brasil do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas em 2014 (JUNIOR; PONTES, 2018).
O Programa Fome Zero (“PFZ”) consistiu na articulação das políticas estruturais (transferência
de renda, reforma agrária, emprego, dentre outras); emergenciais (as de combate à fome e a miséria) e
locais (ações locais de combate à pobreza), para combater a fome e a pobreza (YAZBEK, 2004).
115

Embora o programa seja datado previamente à Agenda, seu desenho, posteriormente unificado,
conduziu à estruturação do Programa Bolsa Família (YAZBEK, 2004), que esteve em vigência no
início da Agenda 2030.
Este último, caracterizado como o programa capaz de conduzir o Brasil à satisfação dos
objetivos da Agenda 2030 (YAZBEK, 2012), articulou a transferência de renda para as famílias em
situação de vulnerabilidade social, unificando programas já existentes, como o Bolsa Alimentação,
Auxílio Gás e o Bolsa-Escola. Esta política adotou o mecanismo de condicionalidade para que a
permanência dentro do programa fosse continuada.
Desse modo, condicionadas pelo art. 3º da Lei n. 10.836, de 9 de janeiro de 2004, as famílias
devem assumir obrigações escolares e de saúde para a manutenção de sua condição de beneficiários
(BRASIL, 2004).
A concessão dos benefícios dependerá do cumprimento, no que couber, de
condicionalidades relativas ao exame pré-natal, ao acompanhamento nutricional,
ao acompanhamento de saúde, à frequência escolar de 85% (oitenta e cinco por
cento) em estabelecimento de ensino regular, sem prejuízo de outras previstas em
regulamento (BRASIL, 2004).

Notadamente, parte da literatura indica que devem ser adotadas medidas para o enfrentamento
da desigualdade social que superem os resultados a curto prazo, sendo idealizado o acesso universal
ao benefício, conforme defende Safatle (2008), em consonância com a Lei nº 10.835/2004, que
determina a constituição de uma etapa do processo gradual e progressivo de implementação da
universalização da renda básica de cidadania. Outro programa que merece reflexão sobre os efeitos
diretamente relacionados à Agenda é o Benefício de Prestação Continuada (“BPC”), estabelecido pela
Lei nº 8.742/93, prestado pelo INSS, como um direito da política de Assistência Social, que integra a
Proteção Social Básica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Durante a pandemia, todavia,
tal lei foi alterada, por meio da Lei nº 13.979/20, objetivando criar parâmetros adicionais de
caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao BPC, além de
estabelecer medidas excepcionais de proteção social adotadas durante o período de enfrentamento da
emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, originando o “Auxílio Emergencial”.
Para o enfrentamento da pandemia e, devido à urgência que o contexto determinou, com 16
parcelas pagas, cada uma com o valor de R$600,00, o Auxílio Emergencial não impôs
condicionalidades para sua renovação, sendo uma política pública de assistência com um desenho
jurídico original. Logo, criado para famílias em situação de vulnerabilidade durante a pandemia,
deveriam ser cumpridos os seguintes requisitos: (i) maioridade etária; (ii) não ter emprego formal
(inclusos autônomos, desempregados, contribuintes informais e MEI); (iii) renda familiar de até meio
salário mínimo per capita; (iv) não ser beneficiário de benefício previdenciário, assistencial ou de
transferência de renda federal (exceto Bolsa Família); (v) estar na faixa de isenção de Imposto de Renda
da Pessoa Física (BRASIL, 2020).
116

A configuração jurídica e legislativa como “medida excepcional” permitiu, exponenciada pela


Emenda Constitucional 109/2021, que o auxílio emergencial fosse financiado com créditos
extraordinários, que não são limitados pelo Teto de Gastos e podem ser abertos por Medida Provisória
(MARIA, 2022). Assim, “A emenda oferece ao Poder Executivo uma ‘cláusula de calamidade’,
garantidora de pagamento do auxílio emergencial, com justa contrapartida, com regras fiscais
compensatórias”, tal como discursado pelo Presidente do Senado Federal Rodrigo Pacheco (SENADO
FEDERAL, 2021).
Tal programa emergencial influenciou a criação do denominado “Auxílio Brasil”, pela Lei nº
14.284. Este novo programa estabelece como critério de elegibilidade: (i) ser previamente cadastrado
no Programa Bolsa Família, o qual foi extinto em outubro de 2021, ou estar na fila de espera de tal
programa; (ii) estar em situação de pobreza ou extrema pobreza; (iii) para as famílias em situação de
pobreza, é necessário que apresentem, em sua composição, gestantes, nutrizes, crianças, adolescentes
ou jovens entre 0 e 21 anos incompletos (CAIXA, 2022). Para a manutenção do Auxílio, as
condicionalidades vinculadas a este exigem a realização do pré-natal, o acompanhamento do
calendário nacional de vacinação, o acompanhamento do estado nutricional, uma frequência escolar
mínima e matrícula em estabelecimento de ensino regular para jovens entre 18 e 21 anos (CAIXA,
2022).
A inserção de mais famílias no Auxílio Brasil, por sua vez, esteve diretamente vinculada à
discussão orçamentária, sob um viés político e jurídico. Isto porque o valor do Auxílio Brasil é, em sua
completude, de R$600,00, além de outros benefícios de valores inferiores derivados do Auxílio,
encontrados na Seção II da norma supracitada. Enquanto, por sua vez, a média dos valores pagos pelo
Programa Bolsa Família era de, no máximo, R$190,00 até seu último reajuste em 2018, originando
uma lacuna orçamentária relevante, a qual não poderia mais ser suprimida pela “excepcionalidade”
reconhecida na Emenda Constitucional 109/2021. Por tal razão, foi aprovada a Emenda Constitucional
nº 114, que propôs o parcelamento das dívidas da União em até dez anos, para que houvesse a liberação
de espaço no orçamento anual para o pagamento do valor adicional prometido para um maior número
de pessoas (BRASIL, 2021).
Nota-se, assim, que, embora a situação de retorno da vulnerabilidade alimentar e financeira de
um grande contingente populacional, conforme anteriormente descrito, fosse visualizada a partir de
2018, a pandemia foi necessária para que tais pessoas voltassem a ser reconhecidas como titulares de
direitos fundamentais e sociais. A adoção da justificativa jurídica como “circunstância excepcional”,
admitida apenas com a EC 109/2021, expõe a escolha política por limitar o acesso e a execução de tais
direitos à população que efetivamente convive com tal situação de excepcionalidade há muito tempo,
em notório conflito com os objetivos assumidos pelo país na Agenda 2030.

Mecanismos jurídicos para a viabilidade das iniciativas fiscais e assistenciais


117

Mecanismos jurídicos se relacionam com as iniciativas fiscais e assistenciais para a redução da


desigualdade social. Durante o mais recente período da história brasileira, tornaram-se evidentes as
características neoliberais das políticas sociais, face às necessidades fundamentais da população, como
as já supracitadas características compensatórias e seletivas, centrada em “situação-limite” em termos
de sobrevivência e seus direcionamentos aos mais pobres, muitas vezes incapazes de competir no
mercado ante ao aparato preestabelecido:
Todavia, o Brasil é permeado por um capitalismo que concentra a renda em uma
minoria, o que produz e reproduz as desigualdades sociais. Para minimizar tais
impactos, foram instituídas políticas, de organismos públicos e/ou privados, para gerir
determinadas ações para a classe operária, identificados como pobres e desamparados
(SPOSATI, 1998).

Neste sentido, o aparato normativo destinado a efetivar tais políticas resultam em implicações
jurídicas relevantes. No âmbito global, as orientações político-econômicas, durante a pandemia,
abrangeram instruções para utilização de medidas extraordinárias, inclusive de cunho fiscal,
recomendando o aumento de gastos públicos em âmbito social, para que os direitos fundamentais
tivessem suas violações abrandadas. O FMI (Fundo Monetário Internacional), durante a pandemia,
realizou sugestões acerca das decisões a serem tomadas pelos países em desenvolvimento e
emergentes, como o Brasil:

Among emerging markets and developing economies, all countries face a health crisis,
severe external demand shock, dramatic tightening in global financial conditions, and
a plunge in commodity prices, which will have a severe impact on economic activity
in commodity exporters (IMF, 2021).

Tal instituição estabeleceu seu posicionamento a partir de um comparativo entre os países


“emergentes/em desenvolvimento” e os países “desenvolvidos”. Assim, como os países europeus e os
Estados Unidos detinham fácil relação ante à liquidez do mercado, devido aos seus planejamentos
fiscais e emergenciais, além de uma já vasta experiência com a gestão de crises, a sua relação com o
fundo seria de manutenção das políticas já previamente estabelecidas (FMI, 2020. p, 10).
No entanto, em relação aos países emergentes e em desenvolvimento, o cenário apresentou-se
distinto: a falta de recursos financeiros para o alcance de objetivos políticos junto ao aumento da
demanda para gerir a crise oriunda da pandemia, com gastos em saúde pública de modo emergencial,
além do suporte às populações vulneráveis, mais prejudicadas pelas sequelas do Coronavírus, fez com
que instituições internacionais tomassem um posicionamento de fortalecimento multilateral, pautado
na cooperação internacional e facilitação do acesso desses países aos fundos internacionais, como foi
o caso brasileiro.
Even so, some emerging markets and developing economies may soon be
overwhelmed by crisis costs. External support for them will be crucial. Strong
multilateral cooperation is therefore essential, including to help financially
constrained countries facing twin health and funding shocks (FMI, 2020, p. 10).
118

Portanto, a disposição acerca das recomendações internacionais para o enfrentamento da crise


demonstra apoio financeiro aos países emergentes. Tal indicação é uma ruptura relevante com a
tradicional política econômica recomendada pelo FMI as economias em desenvolvimento: o Consenso
de Washington, inequivocamente internalizado nas orientações e condicionalidades do Fundo (IMF,
1997), sugere outro modo de enfrentamento dos desafios sociais, com severas restrições ao aumento
do gasto público. No Brasil, contudo, mesmo no contexto pré-pandêmico, os laudos do GT da ONU já
apontavam o crescente aumento da pobreza e da fome no país, em contraponto à Agenda 2030. São
trazidas as informações como reflexos de um instrumento político e jurídico antagônicos às metas
preestabelecidas e assinadas pelo Brasil, a demonstrar o modo pelo qual o Grupo reuniu dados, desde
2015, sobre os impactos socioeconômicos relativos aos dependentes da Assistência Social.

Até 2014, o Brasil foi exitoso ao atingir antecipadamente o Objetivo do


Desenvolvimento do Milênio de reduzir a fome e a pobreza. Nos últimos
anos, porém, o cenário começou a mudar, com o enfrentamento
equivocado do déficit fiscal acumulado e o descaso com problemas
estruturais como a reforma tributária, levando o país a uma crise
econômica e agravando o desemprego. No início de 2017, batemos o
recorde da série histórica, com 14,2 milhões de trabalhadores
desempregados (AGENDA 2030, 2017, p. 8).

Ainda, conforme os relatórios, o observado retrocesso brasileiro no âmbito sócio-econômico,


nota-se a negligência ante às problemáticas vislumbradas, dado o retrocesso da meta 10.4 com o
compromisso internacional assumido pelo país.

Considerações finais
O fito deste trabalho era investigar de que modo os objetivos da Agenda 2030 repercutem na
arquitetura jurídica dos programas sociais inaugurados pelo Brasil desde 2015. O objetivo específico
era examinar se as mudanças nos desenhos jurídicos dos programas de combate à miséria são a
explicação para as oscilações do coeficiente de Gini no Brasil, a partir de quatro vertentes: (i) quais os
programas de combate à fome vigentes no país desde 2015?;(ii) qual o critério de elegibilidade em
cada um deles?; (iii) há mecanismos de condicionalidade?; (iv) quais as justificativas políticas e os
impactos daquela arquitetura jurídica escolhida?
Em um primeiro momento, observou-se que o Bolsa Família, o Auxílio Emergencial e o
Auxílio Brasil são notoriamente os programas de combate à miséria com maior amplitude de acesso
no país. Embora tais programas sejam caracterizados como a continuação do anterior, é notável as
particularidades na arquitetura jurídica entre eles.
Enquanto o Bolsa Família adota como critérios de elegibilidade a renda per capita familiar de
até R$ 120,00, o Auxílio Emergencial também adotou tal critério, embora tenha alterado o valor
máximo para meio salário mínimo per capita, além de ser obrigatório que o beneficiário estivesse na
faixa de isenção do IR. De modo similar, o Auxílio Brasil também reforça tal critério, ainda que tenha
119

situado o valor máximo em R$210,00 de renda familiar per capita. As maiores diferenças, no entanto,
estão relacionadas ao mecanismo de condicionalidade: no Auxílio Emergencial, não foi exigido
nenhuma condição para a continuidade do recebimento do benefício, ao passo que tanto no Bolsa
Família, quanto no Auxílio Brasil, tais exigências estão presentes.
A caracterização dos programas sociais, apesar de contarem com desenhos jurídicos
notoriamente parecidos, culminaram na decrescente capacidade do Estado brasileiro em cumprir os
compromissos firmados sob o âmbito da Agenda 2030. Seja em decorrência dos critérios de
elegibilidade, seja devido às filas de usuários não atendidos pelos programas, inequivocamente há uma
necessidade de releitura de tais programas. O apelo da Agenda 2030, conjuntamente com as sugestões
e recomendações inovadoras do Fundo Monetário Internacional e a conjuntura jurídico-brasileira
abriram as portas para um repensar sobre os programas de transferência de renda e combate à
miserabilidade.
Apesar disso, as justificativas e discursos políticos nos encaminhamentos e aprovações do
Auxílio Emergencial e Auxílio Brasil mencionam a "excepcionalidade" da situação, como se fosse
desconhecida a realidade de desrespeito diuturno aos direitos fundamentais e sociais básicos de um
grande contingente de cidadãos que se submetem às condições de miserabilidade. Tal constatação deve
ser encarada como lembrança diária sobre a realidade rotineira, não "excepcional", de tais pessoas.

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Constitucionais Transitórias; acrescenta à Constituição Federal os arts. 164-A, 167-A, 167-B, 167-C,
167-D, 167-E, 167-F e 167-G; revoga dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
e institui regras transitórias sobre redução de benefícios tributários; desvincula parcialmente o
superávit financeiro de fundos públicos; e suspende condicionalidades para realização de despesas com
concessão de auxílio emergencial residual para enfrentar as consequências sociais e econômicas da
pandemia de Covid-19. [S. l.], 4 mar. 2021. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2272137. Acesso em:
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121

ORÇAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL EM CONTEXTO DE AJUSTE FISCAL,


CORTES NOS GASTOS SOCIAIS E NEOLIBERALISMO

Amanda Gabrielle Osório29


Introdução
Ao analisar o panorama geral das políticas públicas e sociais brasileiras, visualiza-se que de
forma gradual, as mesmas vem sendo desfinanciadas e sofrendo um grande impacto no que tange
sua efetivação. Para tanto, é preciso entender de que forma se dá esse desfinanciamento e os
mecanismos que o cercam. Entendendo que o Brasil segue um modelo econômico neoliberal e está
imerso a estrutura capitalista de produção, é essencial perpassar pelas diretrizes que circundam o
direcionamento de sua economia, mesmo que sinteticamente, para que possa ser possível concernir
o porquê de as políticas públicas, sobretudo sociais, estão apresentando rebatimentos no tocante ao
seu financiamento.
Parar isso é fundamental iniciar a discussão se referindo ao atual modelo econômico
brasileiro, pautado pelo Capitalismo de Estado, que segue a ideologia neoliberalista, vislumbrada
por um modelo socioeconômico criado na Europa, impulsionado, principalmente, pelas
consequências da segunda guerra mundial na economia, tendo como base o liberalismo clássico. O
neoliberalismo, para além de muitos estudos acerca de seu conceito, se refere a um termo que abriga
uma vasta variedade de fenômenos, tendo em seu interior reformas de cunho econômico, visando o
desenvolvimento da sociedade e atribuindo-lhe ideologias e paradigmas acadêmicos (ANDRADE,
2019). Contudo, para melhor compreendê-lo, se faz necessário entender o funcionamento da atual
sociedade contemporânea, e a lógica do capital. Para tanto, autores como Karl Marx e Thomas
Pikkety são fundamentais para compreensão do cerne do capitalismo, seus mecanismos, e a
consequente economia desigual que é gestada pelo mesmo.
São muitos os autores que podem contribuir para melhor compreensão acerca do
neoliberalismo, como por exemplo Bourdieu, Perrry Anderson, Dominique Lévy, Gérard Dúmenil,
entre outros. Mas essa discussão sobre o conceito de neoliberalismo não será aprofundada nesse
estudo, apenas mencionada, brevemente, para que o leitor entenda do que se trata o mesmo. Dessa
forma, sucintamente, o neoliberalismo adveio do liberalismo, e preconiza a intervenção mínima do
Estado na economia, visando a não interferência no mercado. Com ele advém algumas diretrizes,
e, são seguidas com objeções realizadas, principalmente, pelo Banco Central (BC) e pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI).

29
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) - Unesp/Franca. Graduada em Serviço Social e Mestranda pelo
Programa de Planejamento e Análises de Políticas Públicas (PPG-PAPP) - Unesp/Franca. [email protected].
122

No Brasil, o neoliberalismo ganhou destaque após os anos de 1995, onde o então presidente
Fernando Henrique Cardoso (FHC) passou a seguir com maior “obediência” as recomendações do
Consenso de Washington que visou combater as crises sistêmicas do capital e diminuir a
miserabilidade dos países subdesenvolvidos. Segundo Kerstenetzk (2012), FHC seguiu as
recomendações como um “bom aluno”, o que acarretou em uma maior intensificação do
neoliberalismo no Brasil. E, seguindo este pressuposto, ao instaurar no país um neoliberalismo de
forma mais abrupta, gerou-se um efeito rebote, que se traduz em reações causadas pela sua
implementação. Ao seguir um neoliberalismo, que a cada ano se tornou, gradativamente, mais
intenso, possibilitou a também entrada de cortes sociais, maiores ajustes fiscais, e,
consequentemente, desmantelamento da muito jovem seguridade social brasileira. Inserido em um
crescente avanço neoliberal, o sistema de seguridade social, apregoado pela Constituição Federal
(CF) de 1988, vem sofrendo um verdadeiro desfinanciamento no que tange seu orçamento.
Perseguindo um ideário de políticas de austeridade fiscal e ampliando o corte com gastos sociais, o
orçamento da seguridade social (OSS), que está previsto pela Constituinte, inicia um processo de
colapso.
Todavia, para entender de que forma este processo se dá, foi analisado os documentos legais
que dispõem sobre a fixação da base orçamentária do sistema, perpassando os Planos Plurianuais
(PPA), as Leis Orçamentárias Anuais (LOA), assim como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)
de alguns governos. Ademais, será ressaltado o papel do fundo público para o financiamento das
políticas sociais e seu abocanhamento pelo capital portador de juros da dívida pública brasileira.
Importante mencionar que o maior destaque analítico se dará após o ano de 2016, onde ocorreu
maiores ações voltadas para impulsionar o neoliberalismo e reforçar as recomendações das
instituições financeiras, como o BM e o FMI. Por último, este estudo se justifica na medida em que
o sistema de seguridade social brasileiro se encontra em um contexto de desfinanciamento, e o
consequente aumento das desigualdades sociais se torna cada vez mais evidente. Sendo assim:
Em contexto de agudização da crise do capital, as políticas sociais são os principais
alvos da mercantilização, da focalização, da privatização, da transformação de
bens e serviços em mercadorias destinadas a manter aquecido o consumo e a
competitividade. As contrarreformas implementadas no Brasil nas últimas
décadas, e agravadas a partir de 2016, que atingem diretamente a seguridade social,
expressam a ofensiva capitalista em sua permanente busca por superlucros.
(BOSCHETTI & TEIXEIRA, 2019, p. 17)

Desenvolvimento
Buscando visualizar, ao final da pesquisa realizada, como de fato se encontra o OSS e os
impactos que afligem o mesmo, foi feita uma revisão bibliográfica e documental, e, posteriormente,
os dados coletados foram analisados. Dessa forma, será possível verificar os resultados obtidos
através das duas sessões a seguir.
123

Implementação e Desenho do Sistema de Seguridade Social Brasileiro


O sistema de seguridade social foi introduzido a sociedade brasileira por meio da CF de
1988, sendo assim estabelecida pelo Art. 194, que diz ser a mesma “um conjunto integrado de ações
de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a segurar os direitos à saúde, à
previdência e à assistência social” (BRASIL, 1988). Prosseguindo em seu parágrafo único, pode-se
observar os seus objetivos:

I - universalidade da cobertura e do atendimento;


II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas
e rurais;
III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV - irredutibilidade do valor dos benefícios;
V - eqüidade na forma de participação no custeio;
VI - diversidade da base de financiamento;
VII - caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa, com a
participação
da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.
(BRASIL, 1988)

E, para dar conta de suprir esses objetivos, o sistema dispõe de financiamento próprio, assim
como trás o Art. 195:
A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta,
nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições
sociais:
I - dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro;
II - dos trabalhadores;
III - sobre a receita de concursos de prognósticos. (BRASIL, 1988)

Sendo assim, é notório que este sistema tem como principal diretriz assegurar os direitos
dos cidadãos no tocante as políticas de saúde, previdência e assistência de forma universal,
sobretudo para as políticas que abrigam os direitos contributivos e não contributivos, como é o caso
da assistência e da saúde. Além disso, a CF de 1988 trás de forma clara e objetiva o desenho de
financiamento do sistema, e de quais fontes advém seus recursos.
Seguindo essa premissa, a seguridade social foi implementada no Brasil para buscar atribuir
ao Estado brasileiro um caráter de Estado Social, não conseguindo, como bem pontua Kerstenetzk
(2012), chegar ao patamar de Estado de bem estar social (EBES), pensado e gestado, à priori por
Willian Beveridge em meados de 1940 na Grã-Betanha, e implementado nos demais países de forma
heterogênea, abarcando as prioridades e singularidades de cada um, havendo assim modificações
no tocante ao Plano original.
No caso do Brasil não foi diferente dos demais países, e o governo, através da Carta Magna,
buscou implementá-lo atendendo as possibilidades disponíveis na época e contexto brasileiro,
apresentando assim uma seguridade mais restrita contemplando apenas três políticas sociais. Dessa
forma, o que os autores e autoras, como o caso de Kerstenetzk (2012) querem dizer ao pontuar que
124

no Brasil não ocorreu um EBES, é que de fato não ocorreu uma seguridade que permitisse abranger
todas as políticas públicas e sociais, visando um sistema integrado de ações que buscassem atender
a todos os direitos sociais. Ademais, o sistema, logo após sua implementação, foi assolado com a
intensificação do modelo econômico adotado pelo País, que teve um maior destaque nos governos
pós Constituição, e que vem a se acentuar após o ano de 2016, como será visto em breve.

Orçamento da Seguridade Social (OSS) em contexto de ajuste fiscal, corte nos gastos sociais e
ultra neoliberalismo
Como observado anteriormente, o OSS está disposto na CF de 1988, e conta com recursos
próprios. Contudo, esses recursos estão em constante ameaça, sobretudo após o ano de 2016, onde
ocorreu a ampliação de 20% para 30% da Desvinculação dos Recursos da União (DRU), e foi
promulgada a Emenda Constitucional (EC) nº 95, que atribuiu um teto nos gastos sociais e o
congelando do mesmo durante o período de 20 anos, ou seja, estabeleceu um Novo Regime Fiscal
no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade.
Não obstante, juntamente a essas medidas, o Fundo Público, responsável por alocar os
recursos destinados para a seguridade social, vem sendo abocanhado para o pagamento e
amortização dos juros da dívida pública. Imerso em um sistema e sociedade capitalista, o Fundo
Público está no “olho do furacão”, e segundo Salvador (2010) sua disputa ocupa lugar central na
discussão da extrema direita, a qual vem se preocupando com a maior intensificação da política de
austeridade fiscal, e a permanente contrarreforma do Estado.
Após o golpe de Michel Temer, é possível visualizar um neoliberalismo mais ferrenho,
chamado por muitos autores, como Boschetti (2019), de ultraneoliberalismo ou neoliberalismo mais
radicalizado, onde a sua face mais violenta se apresenta, extraindo da sociedade as conquistas
afiançadas pela Constituição. E, por meio do atual governo, de Jair Bolsonaro, ficou ainda mais
evidente a tentativa de subsumir o neoliberalismo, o conservadorismo, e a política de ajuste fiscal
em detrimento do social. Sendo um importante meio de articulação das políticas sociais e também
da reprodução do capital, o Fundo Público vem sendo uma questão estrutural do capitalismo, e
atendendo ora aos direitos sociais, por meio do financiamento das políticas sociais, ora ao capital
portador de juros, através do pagamento de juros e amortização da dívida pública (SALVADOR,
2012).
Somado os efeitos da EC 93, DRU, da EC 95, do abocanhamento do Fundo Público, da
investida neoliberal, e da política de austeridade fiscal, onde a falácia dos superávits primários
justificam a redução dos gastos públicos e sociais, o desenho de seguridade social, tal qual está
posto na CF de 1988, vem sendo desconstruído. Através da tabela abaixo, pode-se melhor visualizar
esta afirmação, a partir da análise, de forma deflacionada, dos dados orçamentários dos anos de
2016 a 2020.
125

TABELA 1- Variação nominal e real do OSS no período de 2016 a 2020

Evolução do Índice
Variação Valores corrigidos Variação
Ano OSS (R$) de Preços
nominal (R$) real
- Ano base: 2010
2016 865.771.529.873 8,62% 1,5037 575.742.699.503,43 2,19%
2017 948.425.754.351 9,55% 1,5481 612.651.223.558,01 6,41%
2018 1.005.077.128.389 5,97% 1,6061 625.806.639.211,12 2,15%
2019 1.056.238.798.947 5,09% 1,6752 630.512.106.585,82 0,75%
2020 1.189.674.499.357 12,63% 1,7509 679.471.313.129,16 7,76%
Fonte: Loa de cada ano analisado. Elaboração da autora.

Os anos analisados estão com a evolução do índice de preços com base no ano de 2010, para
ser visualizada a década por completo. Contudo, a nível deste estudo, ressalta-se os anos de 2016 a
2020, tendo em vista o avanço neoliberal, como já mencionado.
Dessa forma, é possível observar que, nominalmente, o OSS aumentou. Porém, ao
deflacionar os dados por meio dos índices do IPCA para cada ano, visualiza-se que a variação real
dos anos é bem menor do que a nominal, sendo o ano de 2019 o menor valor, seguido pelo ano de
2018 e 2016. Se comparada a variação nominal de 2016 para a real do mesmo ano, a variação caiu
pela metade, permanecendo, em quase todos os anos, com a mesma tendência de queda. Contudo,
é importante destacar os dados para que o leitor compreenda que é fácil dizer que o OSS ampliou
de 2016 a 2020, mas sem deflacioná-los não será verdadeira a afirmação. O aumento foi muito
baixo de ano a ano se observado a variação real, o que traduz tudo que já fora falado até aqui,
expressando o impacto do corte nos gastos sociais de maneira mais acentuada desde 2016.
Continuando na análise orçamentária, se examinada a Lei Orçamentária Anual da última
década, há um aumento, também de forma nominal dos seus valores. Mas, o que chama atenção é
que desses valores, a maior parte fica para o Refinanciamento da Dívida Externa, seguido do
Orçamento Fiscal, e por último se encontra o OSS.
Do valor desembolsado para o OSS, observa-se os valores distribuídos para cada uma das
três políticas que compõem o sistema, sendo a previdência responsável por receber o maior valor,
seguido da saúde, e por último a assistência social. Este fato tem implicações relevantes para a
última política, em que pese além de receber o menor valor repassado, tem seus programas de
transferência de renda (PTR) focalizados na extrema pobreza, indo na contramão do posto pela CF
de 1988 e reforçado por sua legislação própria, que preconiza que todos os seus programas,
benefícios e ações desempenhadas sigam um caráter universalizante, abrangendo a todos os direitos
sociais de todos os cidadãos brasileiros. Já a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) dos anos
analisados, sobretudo do segundo mandato do governo Lula até o primeiro mandato do governo
Bolsonaro, tem como meta principal atingir o superávit primário. Sendo assim, no que tange o
social, a ênfase maior se dá nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), compreendidos por
126

Lula e Dilma, havendo uma menor preocupação, no que se refere a LDO, e ao Plano Plurianual
(PPA), nos governos posteriores.
No concernente ao PPA dos governos FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, principais
governos analisados para este estudo, nota-se que de FHC a Dilma houve uma tentativa de priorizar
o campo social, sobretudo no governo Lula, onde através de um maior impulsionamento dos PTR
conseguiu-se atingir a pobreza extrema e mudar a realidade aquisitiva dessa população, de modo a
inseri-los no mercado consumidor.
É importante frisar que nenhum dos governos estudados rompeu com o capitalismo e
neoliberalismo, mas, sobretudo nos governos do PT, ocorreu uma tentativa de acoplar o social ao
econômico, realizando, principalmente no governo Lula, políticas sociais economicamente
orientadas, e políticas econômicas socialmente orientadas (MENDOSA, 2012). Além do mais, os
governos Temer e Bolsonaro buscaram se desvincular da herança herdada pelos governos
anteriores, e criaram programas, no caso do governo Temer, como o Programa Criança Feliz, (PCF)
para “complementar” os PTR como o Programa Bolsa Família (PBF) por exemplo. E, no governo
Bolsonaro, ocorreu a substituição do último programa mencionado pelo Programa Auxílio Brasil.
Em ambos os governos ou desgovernos, como o leitor preferir chamar, houve uma tentativa
de criar o “inédito” para marcar o governo. Entretanto, especialmente no governo Bolsonaro, que
pegou no seu segundo ano de mandato uma das maiores crises sanitárias e econômicas do mundo,
por meio da COVID-19, a área social sofreu um maior impacto, mesmo que o governo tenha criado
o Auxílio Emergencial para suplementar a renda da população empobrecida em período
pandêmico.
Acontece que os recursos desembolsados para o pagamento do auxílio foram negociados
através dos ativos do Tesouro Direto, e através dessa medida pegou-se dinheiro emprestado dos
bancos e dos investidores, com a “famosa” e já muito conhecida promessa de devolvê-lo com juros
e correção monetária.
Mas qual o problema disso? O maior problema se dá no fato de que, ao fim e ao cabo, que
irá pagar essa dívida contraída para beneficiar a população empobrecida são os próprios pobres
brasileiros, conhecidos como classe trabalhadora. Essa classe, conforme argumenta Salvador
(2020), é historicamente mais onerada pelos impostos e tributos, havendo o que se chama de
tributação regressiva, onde quem ganha mais, paga menos, e quem ganha menos, paga mais.
Deste modo, ao se apropriar do Fundo Público, compromete-se o financiamento das
políticas sociais, e, consequentemente impede-se ações para sair das crises cíclicas, inerentes ao
capitalismo. Tendo em vista esses fatos, o sistema de seguridade social, e a garantia de direitos
universais para todos, fica cada vez mais distantes, permitindo a entrada, em seu lugar, de intensos
ajustes fiscais, cortes nos gastos sociais e disputa pelo Fundo Público, reflexos de um
ultraneoliberalismo e de um beneficiamento do capital portador de juros.
127

Conclusões
Entende-se que o sistema de seguridade social brasileiro, conquistado a duras penas no ano
de 1988, vem sofrendo um desmantelamento, sobretudo após 2016. E se faz necessário compreender
este debate, principalmente no que se refere ao seu orçamento, pois a tendência é que esta situação
piore e haja um agravamento maior para o campo social.
Não é ser pessimista, mas é entender que em meio a um neoliberalismo desenfreado, que
presa por ajustes ficais justificados pela busca de superávits primários, que incentiva o
desfinanciamento das políticas sociais, seja pela apropriação do Fundo Público, seja pelas Emendas
Constitucionais absurdas, DRU e teto dos gastos, não há como não notar que o desenho esboçado
pela Constituinte não permanece o mesmo. Também não tem como dizer que esse efeito não é
próprio do capitalismo, pois, gestado em seu cerne, o neoliberalismo vislumbrará a autonomia do
mercado em primazia do campo social, e isso é um fato.
Por hora, cabe compreender em que pé estão as ações promovidas pelo governo, seja para
enfrentar e solucionar problemas, seja através de seus planos e metas para combater as
desigualdades sociais. O que não pode haver é a não visualização de que um sistema criado e
implementado para suprir as necessidades de modo universal, tem atendido de maneira focalizada,
e, para piorar seu desempenho, tem sido gradativamente desfinanciado.

Referências
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Sociedade e Estado, v.34, n.1, jan./abr. 2019. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/se/a/RyfDLystcfKXNSPTLpsCnZp/?lang=pt. Acesso em: 01 nov 2022.
BOSCHETTI, I. Tensões e possibilidades da política de assistência social em contexto de crise do
capital. In: Revista Argumentum, v.8, n.2, p.16-29, maio/ago. 2019. Disponível:
https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/12800. Acesso em: 22 fev 2020.
BOSCHETTI, I.; TEIXEIRA, S. O. O fardo do radical ajuste fiscal a classe trabalhadora sob a ótica
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Pesquisadores em Serviço Social, v. 16, n.1, mai 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufes.br/abepss/article/view/22082. Acesso em: 01 nov 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro
Gráfico, 1988.
KERSTENETZK, C. L. O Estado do bem estar social na idade da razão: A reinvenção do estado
social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
MENDOSA, D. Gênese da política de assistência social no governo Lula. Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-
14012013 142845/publico/2012_DouglasMendosa.pdf. Acesso em: 01 fev 2022.
SALVADOR, E. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
_____________.Fundo público e financiamento das políticas sociais no Brasil. Serviço Social
em Revista (on-line), v. 14, p. 422, 2012. Disponível em:
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http://www.uel.br/eventos/orcamentopublico/pages/arquivos/I%20Simposio/Fundo%20Publico%
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______________.Disputa do fundo público em tempos de pandemia. Youtube, 13 nov 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FUtFb-OiAWU. Acesso em: 01 nov 2022.
129

POBREZA MENSTRUAL: POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS DAS MULHERES BRASILEIRAS

Isabela Maria Valente Capato30


Introdução
A função que o Estado desempenha na sociedade brasileira sofreu várias transformações ao
longo do tempo. Antigamente, no século XVIII e XIX, seu principal objetivo era a segurança
pública e a defesa externa em caso de ataque inimigo, porém, com o aprofundamento e expansão
da democracia, as responsabilidades do Estado passaram a abranger a promoção do bem-estar social
(AMARAL; CALDAS; LOPES, 2008, p.5). O Estado Democrático de Direito, instituído com base
na Constituição Federal de 1988, se destaca, como afirma J.J. Canotilho (2001, p.459) pela
‘’inserção da lei fundamental do Estado Democrático nas estratégias de justiça política’’. Em outras
palavras, tornou-se parte dos deveres do Estado brasileiro a proteção e promoção dos direitos
fundamentais dispostos na Constituição, uma premissa afirmada no artigo 3ᵒ do documento, que
determina como objetivos da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e
solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1998).
Para, portanto, cumprir com as suas responsabilidades sociais, o Estado se utiliza de políticas
públicas, que podem ser definidas como a totalidade de ações, metas e planos que os governos
(nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse
público (AMARAL; CALDAS; LOPES, 2008, p.5). Desde o início, os estudos em políticas públicas
foram dedicados à investigação de problemas enfrentados pelos governos, os chamados problemas
públicos (CAPPELA, 2018, p.14). Um problema de saúde pública e saneamento básico que se
manteve fora das agendas de elaboração das políticas do país até recentemente foi a questão da
pobreza menstrual, que acarreta a violação de diversos direitos fundamentais.
De acordo com o relatório ’Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de
direitos’’, lançado em 2021 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a pobreza
menstrual é um fenômeno complexo, transdisciplinar e multidimensional, caracterizado pela falta
de acesso a recursos, infraestrutura e conhecimento sobre higiene menstrual (UNICEF, 2021, p.5),
consistindo em uma violação dos direitos sexuais e reprodutivos, do direito à saúde, à água, da
equidade de gênero e da autonomia corporal das meninas, mulheres, meninos trans e pessoas não
binárias que menstruam afetados por essa carência (UNICEF, 2021, p.4).

30
Graduanda em Direito na Unesp. Email: [email protected].
130

Apesar de atingir mais arduamente indivíduos em situação de vulnerabilidade social, a


pobreza menstrual acarreta consequências negativas para toda a sociedade brasileira. Além dos
sofrimentos emocionais que dificultam o desenvolvimento do pleno potencial da pessoa afetada, a
negligência de necessidades menstruais resulta na intensificação de outros problemas de saúde
pública, como a ocorrência de alergias e irritações e até mesmo de doenças fatais (UNICEF, 2021,
p.6). Ademais, a situação de pobreza menstrual do país agravou-se consideravelmente devido à
pandemia da Covid-19 e seus percalços econômicos. De acordo com a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), organizada pela IBGE, a taxa de desemprego das mulheres
no quarto trimestre de 2021 foi de 13,9%, tendo sido maior do que a média nacional (11,1%), um
dado alarmante por si só, mas indicador de uma crise de dignidade menstrual quando contraposto
com o outro dado, obtido no relatório ‘’Livre Para Menstruar’’, elaborado pelo movimento
feminista Girl Up, também em 2021, de que uma brasileira que menstrua gasta, em média, entre
três mil e oito mil reais ao longo de sua vida com a compra de absorventes.
Foi nesse contexto pandêmico de dificuldades econômicas e crise nacional sanitária que
políticas públicas pioneiras de amparo para mulheres sujeitas à pobreza menstrual foram elaboradas,
com destaque para a Lei 14.214/21, aprovada pelo Congresso Nacional em março de 2021, que
instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. Dessa forma, as intenções desse
artigo, desenvolvido com base em uma pesquisa teórica associada a uma análise de dados
socioeconômicos e de documentos jurídicos, são: examinar juridicamente as políticas públicas em
âmbito nacional voltadas para a erradicação da pobreza menstrual aprovadas nos últimos dois anos,
com destaque para o processo de aprovação da Lei 14.214/2021; expor com maior profundidade as
violações de direitos humanos ocasionadas pela negligência desse problema por parte do Estado; e
estudar a relação existente entre a maior representatividade feminina no âmbito político e a
elaboração de medidas que cessem tal negligência, buscando reafirmar a importância da proteção
da dignidade menstrual e do direito à saúde das mulheres brasileiras.
Pobreza menstrual: uma questão de direitos fundamentais
Como afirmado anteriormente, o relatório da Unicef sobre pobreza menstrual no Brasil
caracterizou tal problema como um fenômeno transdisciplinar e multidimensional. Isso significa
dizer que esta carência vai além da privação de recursos materiais, se relacionando com diversas
estruturas sociais e econômicas da sociedade brasileira e violando vários direitos fundamentais
afirmados na Constituição Federal de 1988.
Aponta-se, primeiramente, a violação do direito igualitário à saúde, assegurado no artigo
196 da Constituição Federal, que dita que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, que
deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem o acesso universal às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). Até muito recentemente,
absorventes e demais materiais de higiene menstrual, como copos coletores ou absorvente internos
131

(OBs), não eram considerados produtos de higiene básica pela lei brasileira, permanecendo fora das
cestas básicas distribuídas pelo governo através do programa do Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (Sisan), o que se configura como uma clara violação das disposições
constitucionais. A falta de acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais e o
desprovimento de serviços médicos também adentra as violações da pobreza menstrual (UNICEF,
2021, p.11). O carecimento desses recursos e o consequente manejo insuficiente ou inadequado da
menstruação, além de incutir sobre as mulheres prejudicadas o desconforto de uma situação anti-
higiênica, também podem levar a outros problemas fisiológicos, como alergia e irritação da pele e
mucosas, infecções urogenitais como a cistite e a candidíase, e até uma condição que pode levar à
morte, conhecida como Síndrome do Choque Tóxico (UNICEF, 2021, p.12).
Segundo o relatório da Unicef, um dos fatores também relacionados à pobreza menstrual é
a falta de acesso a banheiros seguros e em bom estado de conservação, à água encanada,
esgotamento sanitário e coleta de lixo (UNICEF, 2021, p.11), ou seja, ao direito ao saneamento
básico assegurado formalmente na Lei Nᵒ 11. 445/07, que estabelece que a prestação de serviços de
saneamento básico no Brasil deve ser universal (BRASIL, 2007, art. 2ᵒ, I). O mesmo relatório
constatou que 713 mil meninas brasileiras não possuíam banheiros em seu domicílio à época da
pesquisa (UNICEF, 2021, p.22) e outras 321 mil frequentavam escolas que não apresentavam
banheiros em condições de uso (UNICEF, 2021, p.18).
Outra chave importante de impactos da pobreza menstrual é a violação do direito dos
afetados à educação, garantido no artigo 205 da Constituição Federal. Segundo um outro estudo,
realizado pela Ensino Social Profissionalizante (ESPRO) em 2021, uma parcela de 20% das jovens
entre 14 e 24 anos entrevistadas já havia faltado à escola por não ter absorvente, demonstrando o
prejuízo que a pobreza menstrual pode causar na formação educacional e profissional das jovens.
A falta de conhecimento sobre o ciclo menstrual também consiste em uma violação do
direito à educação e pode ser tão prejudicial quanto a falta de recursos higiênicos. Dados do mesmo
estudo apontaram que 10% das entrevistadas não havia recebido orientações sobre a menstruação
antes da menarca (ESPRO, 2021), o que comprova uma ausência de discussões a respeito desse
assunto nos meios educacionais do país. O manejo inadequado das necessidades corporais em
decorrência da falta de informações pode gerar ou agravar os problemas fisiológicos já citados e
ocasionar impactos psicológicos negativos nas mulheres e meninas, fortalecendo tabus misóginos
que minam a autoestima das afetadas. Mitos e expressões estigmatizantes fazem com que 20% das
mulheres sintam vergonha por estarem menstruadas enquanto outras 38% se sintam ‘’sujas’’
(ESPRO, 2021). O melhor meio de combate a esses tabus é a educação menstrual e sexual, que deve
ser promovida de maneira a incentivar o desenvolvimento pleno das pessoas que menstruam.
É essencial ainda ressaltar que o fenômeno da pobreza menstrual é intensificado por outras
variáveis envolvendo a desigualdade racial, social e de renda. O relatório da Unicef apontou uma
132

desigualdade gritante entre mulheres brancas e negras afetadas pela precariedade de saneamento
básico ao constatar que a chance destas não possuírem banheiro em casa é quase três vezes maior
do que daquelas, e que 13% a mais de garotas negras do que de brancas vivem em espaços sem
esgotamento sanitário (UNICEF, 2021). A população carcerária, vítima da negligência estatal,
também sofre fortemente impactos da pobreza menstrual. Juliana Santos Garcia, fundadora do
coletivo integrante ao movimento de luta pela dignidade menstrual Nós Mulheres, em entrevista à
Carta Capital, explicou que o Estado não provém os recursos necessários para o adequado manejo
menstrual, o que leva as presas a recorrerem a produtos improvisados, como miolos de pão, jornais
e pedaços de tecido para conter os sangramentos e limparem-se (BASILIO, 2022), um retrato do
puro abandono estatal e desconsideração da dignidade humana.
Fica evidente, portanto, a capacidade de impacto da pobreza menstrual na qualidade de vida
dos cidadãos brasileiros que menstruam, mostrando-se ser este um grave problema de
descumprimento de direitos fundamentais e de crise de saúde generalizada. Basta compreender
agora como se deu o processo, ainda em andamento, de elaboração de políticas públicas de
erradicação de tal problema.
Pobreza menstrual: um problema público
Como afirma Leonardo Secchi (2016, p.5), o problema público está para a doença como a
política pública está para o tratamento. Configura-se como finalidade de uma política pública o
enfrentamento, a diminuição e a resolução desses problemas. Contudo, existem alguns fenômenos
sociais, tais como a pobreza menstrual, que se mantiveram fora do foco de elaboração das políticas
públicas por um longo tempo, ainda que gerem sérios danos ao bem-estar da sociedade brasileira.
Para compreender a razão por trás dessa contradição, primeiro é necessário esclarecer de que
maneira uma questão social é reconhecida como um problema público e passa a ser alvo da gestão
estatal.
Segundo Ana Paula Capella (2018, p.28), o conjunto de discussões políticas que avaliam
quais questões merecem a atenção do sistema estatal é chamado de agenda. Os estudiosos do campo
de políticas públicas explicam que existem diferentes tipos de agenda, com destaque para a
sistêmica, a governamental e a decisória. Os estudos de Roger Cobb e Charles Elder (1972, p.85)
definem a agenda sistêmica como o conjunto de questões que recebem a atenção da opinião pública
e são entendidas como assuntos de competência das autoridades governamentais. Nem todos os
assuntos que se manifestam na agenda sistêmica compõem a agenda governamental, que englobam
as questões consideradas relevantes pelos tomadores de decisão, seja em plano nacional, estatal ou
municipal (CAPELLA, 2018, p.28). Já a agenda decisória, abordada posteriormente nos estudos de
John Kingdon, se trata de um subconjunto da agenda governamental que reúne as questões que
estão prontas para uma decisão ativa (2003, p.4).
133

Nota-se, dessa forma, que o processo de formação das agendas de políticas públicas envolve
uma série de decisões, que, por mais tautológico que possa soar, são puramente políticas. Assim, os
grupos inseridos na esfera pública desempenham um papel importante na seleção dos temas sociais
dignos da atenção governamental. Acontece que as mulheres permaneceram fora da esfera de
tomada de decisões públicas por muito tempo. Como explica a autora Carole Pateman, a mulher
não foi considerada um ser político ativo durante a construção das bases do Estado Moderno (1993,
p.16). Ela foi interpretada como um objeto e relegada à esfera civil da vida, permanecendo sem o
direito à participação política por anos (PATEMAN, 1993, p.21), o que esclarece o fato de questões
relacionadas ao seu corpo e a sua saúde não terem sido entendidas como problemas de saúde
pública.
Contudo, com o avanço dos movimentos feministas e o desenvolvimento do campo dos
direitos fundamentais, a mulher passou a lutar pelo seu espaço na esfera política e a exigir medidas
por parte do Estado capazes de promover e assegurar sua condição de vida digna. É graças a essas
mudanças que a pobreza menstrual passou a ser discutida e encarada, inicialmente pela população
e pelos meios científicos, e posteriormente por órgãos governamentais, como um problema público.
Como afirma o economista e sociólogo francês, Alfred Sauvy (1959, p.7-8, apud BONAVIDES,
2000, p. 590), a opinião pública constitui o foro íntimo de uma nação, podendo atuar como um
árbitro, uma consciência ou um tribunal, e, nesse caso, foi a sua força expressa a responsável por
pressionar o campo do direito para que este se abrisse para a participação feminina e a desencadear
o processo de avanço do tema da pobreza menstrual das agendas sistêmicas de políticas públicas
rumo às decisórias.
Nesse sentido, nos últimos dois anos (2020-2021), a partir da pressão de grupos feministas
e movimentos sociais, políticas públicas voltadas ao combate à pobreza menstrual foram criadas ao
redor do país. Destaca-se, em âmbito estadual, as leis aprovadas nos estados do Rio de Janeiro,
Minas Gerais, São Paulo e Paraíba e, em âmbito nacional, o grande destaque é a lei 14.214,
sancionada em 6 de outubro de 2021, que instituiu o Programa de Proteção e Promoção da Saúde
Menstrual. A exigência de elaboração de políticas públicas que tratassem da dignidade menstrual
por parte do governo federal já causava repercussões no campo das lutas sociais há algum tempo,
como demonstrado pela expedição da Recomendação Nᵒ 21 do Conselho Nacional de Direitos
Humanos (CNDH), em dezembro de 2020, que recomendava ao Presidente da República, ao
Presidente da Câmara dos Deputados e ao Presidente do Senado Federal a criação de um marco
legal para a superação da pobreza menstrual e a garantia de isenções de impostos aos produtos de
higiene menstrual. A Recomendação levava em consideração os Objetivos 3 e 5 de
Desenvolvimento Sustentável elaborados pela ONU e a Cartilha da UNICEF ‘’Menstruação na
pandemia e + outras coisinhas’’, que reconhecia a saúde menstrual como um direito fundamental
para todas as mulheres (CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 2020).
134

O projeto que deu origem à lei 14.214, o PL 4.968/19, era de iniciativa da deputada federal
Marília Arraes, do partido Solidariedade. O projeto foi aprovado ainda em 2020 no Senado, todavia,
seis de seus trechos foram vetados pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, incluindo o artigo 1ᵒ da
lei, que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos femininos, e o artigo 3ᵒ, que
apresentava a lista de beneficiadas, que incluía essencialmente mulheres em situação de
vulnerabilidade social (AGÊNCIA SENADO, 2021). O presidente alegou como justificativas para
o veto a falta de previsão de fontes de custeio e incompatibilidade com a autonomia dos
estabelecimentos de ensino (AGÊNCIA SENADO, 2021).
A atitude do presidente Jair Bolsonaro foi abertamente criticada nos meios midiáticos e
políticos. No ano seguinte, o presidente assinou um decreto que prevê a proteção da saúde menstrual
e a distribuição gratuita de absorventes e outros itens de higiene, porém, os parlamentares preferiram
ainda assim derrubar o seu veto e assegurar, por meio da lei, a atenção estatal ao problema em
questão (AGÊNCIA SENADO, 2021). Dessa maneira, a lei 14.214 foi sancionada, com seus artigos
1ᵒ e 3ᵒ restituídos. O Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual prevê a oferta sem
custos de produtos higiênicos femininos e outros cuidados básicos de saúde menstrual, tendo em
vista combater a precariedade menstrual, oferecer garantia de cuidados básicos de saúde e
desenvolver meios para a inclusão das mulheres em ações e programas de proteção à saúde
menstrual (BRASIL, 2021). Entre as beneficiadas, estão inclusas: estudantes de baixa renda
matriculadas em escolas da rede pública de ensino; mulheres em situação de rua ou em situação de
vulnerabilidade social extrema; mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do
sistema penal; e mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa
(BRASIL, 2021).
Apesar do importante avanço legislativo em relação à proteção dos direitos fundamentais
das mulheres que tal lei proporcionou, é preciso salientar que ela não toca todos os aspectos
relacionados à pobreza menstrual. A lei 14.214/21 não entra nos pormenores da promoção da
educação sexual nem na ratificação dos problemas sanitários interligados à questão da precariedade
menstrual. É importante, portanto, lembrar que a eficácia deste programa depende não somente da
concretização dos objetivos por ele propostos, como também da combinação entre esta e outras
políticas de saneamento básico, de saúde e educacioais, de maneira a combater a pobreza menstrual
em toda a sua complexidade e multidisciplinaridade.
Conclusões
A pesquisa realizada neste artigo demonstra as violações de direitos fundamentais das
mulheres brasileiras por parte da pobreza menstrual, um fenômeno complexo e multifacetado que
reflete diversas desigualdades sociais presentes na estrutura da nação. O processo demasiadamente
recente de reconhecimento da pobreza menstrual como um problema público e de elaboração de
políticas que visem combatê-lo é outro reflexo da desigualdade de gênero, que se manifestou por
135

muito tempo na esfera social e pública brasileira. Os avanços obtidos a partir da promulgação de
políticas públicas municipais, estaduais e nacionais é deveras bem-vindo e apreciado, contudo, deve
ser complementado com outras políticas, que englobem outras facetas da questão da precariedade
menstrual além da falta de acesso a recursos materiais. No geral, a luta pela dignidade menstrual
ainda deverá se perpeturar no âmbito político brasileiro, ecoando em si a força dos movimentos
sociais no Estado de Democrático de Direito vigente e consolidado.
Referências
AMARAL, Jefferson Ney; CALDAS, Ricardo Wahrendorff; LOPES, Brenner. Políticas Públicas:
conceitos e práticas. Volume 7. Belo Horizonte: Sebrae/MG, 2008.
AGÊNCIA SENADO. Promulgada lei para distribuição de absorventes às mulheres de baixa
renda. Publicado em 18 de março de 2022. Seção Sanções/Vetos. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/03/18/promulgada-lei-para-distribuicao-de-
absorventes-as-mulheres-de-baixa-renda. Acesso em: 22 de agosto, 2022.
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direitos humanos. Carta Capital. Publicado em 22 de fevereiro de 2022. Seção Sociedade.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/por-que-a-pobreza-menstrual-deve-ser-
enfrentada-como-uma-violacao-de-direitos-humanos/. Acesso em: 22 de agosto, 2022.
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22
de agosto, 2022.
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saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico; altera as Leis n os 6.766,
de 19 de dezembro de 1979, 8.666, de 21 de junho de 1993, e 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; e
revoga a Lei nᵒ 6.528, de 11 de maio de 1978. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/L11445compilado.htm. Acesso em:
22 de agosto, 2022.
BRASIL. Lei 14.214, de 6 de outubro de 2021. Institui o Programa de Proteção e Promoção da
Saúde Menstrual; e altera a Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, para determinar que as cestas
básicas entregues no âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan)
deverão conter como item essencial o absorvente higiênico feminino. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2021/Lei/L14214.htm#:~:text=L14214&text=Institui%20o%20Programa%20de%20Prote%
C3%A7%C3%A3o,essencial%20o%20absorvente%20higi%C3%AAnico%20feminino. Acesso
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dezembro de 2020. Recomenda ao Presidente da República, ao Presidente da Câmara dos
136

Deputados e ao Presidente do Senado Federal, a criação de um marco legal para superar a pobreza
menstrual e a garantia de isenções de impostos de produtos. Disponível em:
https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-
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em:https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-
unfpa_maio2021.pdf. Acesso em: 22 de agosto, 2022.

O PODER JUDICIÁRIO COMO REVISOR DE POLÍTICAS PÚBLICAS À LUZ DO


ENTENDIMENTO DE DESUMANIZAÇÃO DE EDOUARD MACHERY: UMA ANÁLISE
DA ADPF N. 635

Karine Jordana Barros Belém31


Introdução
Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, um cidadão pode reivindicar
seus direitos perante o Estado, que deve trabalhar de forma a proteger e garantir os direitos
fundamentais e garantias individuais de seus titulares, abstendo-se de violá-los na hipótese de
direitos de caráter negativo, e trabalhando na criação de políticas públicas quando se tratar de
direitos sociais que necessitem de uma atuação estatal positiva.

31
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus Franca. Aluna Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Análise de Políticas Públicas (PAPP). [email protected]
137

Uma vez constatada a falha na condução de uma política pública, considera-se, nesta
pesquisa, a materialização de uma restrição ao exercício de um direito fundamental imposta pela
entidade que deveria garantir sua efetividade. A partir do momento que o Estado chama para si a
responsabilidade ou competência para o fornecimento de um direito, e apresenta erros na execução
da política pública adotada que ultrapassam as contingências naturalmente esperadas, a essência do
direito fundamental passa a ter um viés defensivo, contra a violação perpetrada pelo Estado.
Seguindo a premissa de respeito ao ser humano como ser digno de proteção e titular de
direitos, o texto “Dehumanization and the loss of moral standing”, escrito pelo filósofo Edouard
Machery é um exemplo de estudo a respeito de um dos efeitos da desconsideração da dignidade: a
desumanização, que é a ação de tratar um indivíduo como não-humano, deficientemente humano
ou menos humano do que outrem. A desumanização pode se dar de maneira explícita (gritante) ou
implícita (sutil), e em determinada medida pode contribuir para a instauração de eventos sociais
dramáticos (genocídios) ou comuns, além de ser um dos fundamentos para discriminações ou
comportamentos tendenciosos (MACHERY, 2021, p. 145-158).
Os conceitos e reflexões apresentados no estudo de Machery referentes à retirada da posição
moral dos indivíduos como aspecto essencial da desumanização podem ser conectados com a ideia
de proteção da dignidade da pessoa humana, reconhecida como inerente a todos os seres humanos
e o “fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” segundo a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (UNITED NATIONS, 1948).
Estudar a valoração moral que os indivíduos atribuem a si mesmos e a outros permite
entender fatos sociais que tem por núcleo a desconsideração do indivíduo como sujeito de direitos
e passível de proteção, o que consequentemente levará à elaboração de políticas públicas cujo
objetivo não se limita à manutenção da ordem estatal, mas cumprirá a finalidade do Estado de
salvaguardar as liberdades individuais e de uma vida digna.
Ao considerar as políticas públicas como o mecanismo utilizado pelo Poder Público que tem
como finalidade a efetivação, no plano fático, de direitos sociais previstos expressamente, ou não,
na Constituição de 1988, cujo núcleo essencial necessariamente demanda prestações positivas do
Estado, eventualmente será necessário um “controle de qualidade” da política pública à luz do texto
constitucional, o que no Brasil é feito pelo Poder Judiciário, na medida que atua como intérprete da
vontade do legislador traduzida na lei.
A pesquisa decidiu por analisar a política pública de segurança do Estado do Rio de Janeiro,
com o recorte temporal limitado aos seis primeiros meses do período em que se instalou no Brasil
o estado pandêmico causado pela disseminação da Covid-19, uma vez que se tratou de um período
atípico no País, com desafios em todas as esferas do Poder Público.
No que tange à política de promoção da segurança pública e diminuição da violência e da
criminalidade, a falha na condução desta política pública se visualiza por meio do “terror causado
138

pelas chamadas incursões policiais”, o que decorre de um “processo de militarização que substituiu
a ostensividade das armas, antes na mão dos grupos criminosos e hoje nas mãos do braço armado e
legal do Estado, que possui o poder do uso da força” (FRANCO, 2018, p. 91).
Essa situação vivida pela população do Rio de Janeiro, combinada com os efeitos sociais
decorrentes das medidas de contenção do vírus causador da Covid-19, fez com que chegasse ao
Supremo Tribunal Federal, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 635/DF (ADPF
das Favelas), ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB em conjunto com a Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro e diversas organizações não-governamentais, coletivos e
entidades representativas de movimentos sociais ao final do ano de 2019 (ADPF DAS FAVELAS,
2019).
Dentre os 25 pedidos cautelares e de mérito expostos na petição inicial, a ação que ainda
não teve seu mérito julgado, busca, em resumo, a reestruturação da política pública de segurança
do Estado do Rio de Janeiro, com vistas à redução da letalidade policial e controle de violações de
direitos humanos.
Recorrendo a critérios de racionalidade procedimental/instrumental, a pesquisa se prestará
a um breve estudo da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de observar
há uma extrapolação de limites no campo da judicialização das políticas públicas, mediante uma
possível invasão de competência do Poder Judiciário como corregedor ou, até mesmo, gestor por
usurpação.
Aqui se confundem problema e objetivo de pesquisa, posto que a problemática da análise da
ADPF n. 635 gira em torno de uma tentativa de mensurar a potencialidade da intervenção do Poder
Judiciário na política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro mediante a interpretação de
normas constitucionais e quais os critérios para essa atuação progressivamente ativa.
Foram utilizados os métodos de pesquisa bibliográfica e documental, com posterior análise
de conteúdo dos dados reunidos, por se tratar de pesquisa teórica majoritariamente qualitativa, ao
menos no campo bibliográfico de estudos das referências e conceitos teóricos que embasam o tema
escolhido, e em parte do campo documental de análise dos critérios de fundamentação das decisões
judiciais.

Desenvolvimento
Dentre outros aspectos que retiram a humanidade do sujeito, Edouard Machery busca em
seu texto observar a desumanização a partir do ponto de vista da retirada da posição moral dos
indivíduos. Em síntese, o autor entende que a desumanização envolve, entre outras coisas, uma
negação da posição moral dos indivíduos desumanizados. A posição moral apenas é atribuída a algo
que possa ser moralmente lesado. A retirada da posição moral levaria à desconsideração da
139

qualificação de humanidade do indivíduo, e a consequente desumanização permitiria uma “licença”


para prejudicar os indivíduos desumanizados (MACHERY, 2021).
Segundo o filósofo, pesquisas recentes atribuem a posição moral dos indivíduos a dois
pilares centrais: agência e experiência. A desumanização, portanto, se materializaria pela negação
da agência ou da experiência de um indivíduo. Resumidamente, a experiência é entendida como a
capacidade de sentir dor e prazer, ao passo que a agência é a capacidade de ter uma vida inteligente
e complexa.
Nos dizeres parafraseados de Machery (2021), a desumanização acontece frequentemente
em relação a uma concessão de licença para causar danos a alguém; ainda, quando algum indivíduo
não é reconhecido como dotado de posicionamento moral, seus interesses tendem a não ter qualquer
significado ou relevância quando outros decidem o que fazer com aquele indivíduo.
A leitura dos conceitos e reflexões apresentados no estudo de Machery referentes à retirada
da posição moral dos indivíduos como aspecto essencial da desumanização permite uma conexão
com a ideia de proteção da dignidade da pessoa humana, reconhecida como inerente a todos os seres
humanos e o “fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” segundo a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (UNITED NATIONS, 1948).
Na estrutura do ordenamento jurídico brasileiro, a dignidade humana é tratada como um dos
fundamentos diretos da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º, III da Constituição,
e como a origem e base principal dos direitos fundamentais. Este princípio preconiza que “a vida
de qualquer ser humano tem uma valia intrínseca, objetiva. Ninguém existe no mundo para atender
os propósitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade” (BARROSO, 2010, p.
69-104). Este importante princípio pode ser considerado a base da humanidade, evitando que o
homem tenha sua vida instrumentalizada, ao passo que cada vida humana deve ter seus valores e
objetivos respeitados e possa se autodeterminar perante a sociedade.

A dignidade, a partir da ideia de autonomia soberana da vontade, transforma o


homem em um fim em si mesmo, e não em meio para a obtenção de fins alheios.
Com a autonomia da vontade e, por conseguinte, com a dignidade, o ser humano é
elevado a árbitro do seu próprio destino, “capitão da sua própria alma”, buscando
sua felicidade sem interferências injustificadas de terceiros. Todos são livres e
iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direito (e não como simples
objetos de direito) (LOPES DA ROCHA, 2014, p. 25).

O entendimento kantiano de moral mencionado no texto de Machery e de dignidade também


estão diretamente correlacionados. No texto sobre a desumanização, é mencionada a tradição
kantiana que reconhece a capacidade de autodeterminação como fundamento para a atribuição de
posição moral a um indivíduo, além de considerar todo ser humano como um fim em si mesmo (e
não do Estado), dotado de direito a viver com dignidade.
140

Geoffrey P. Goodwin (2015, p. 914-926), na obra “Experimental approaches to moral


standing”, também estuda a conexão entre posicionamento moral e a desumanização, para entender
as valorações dadas às posições morais entre entidades humanas do ponto de vista da capacidade
de sofrimento, inteligência e de interesses. Na argumentação de Goodwin, há a necessidade de se
pesquisar se o posicionamento moral do sujeito influencia em seu comportamento, para
compreender a relação entre a moral e as interações sociais entre “entidades humanas” e “entidades
não humanas”, visto que tais fatores indicarão o que os indivíduos entendem como “mundo moral”.
Estudar a valoração moral que os indivíduos atribuem a si mesmos e a outros permite
entender fatos sociais que tem por núcleo a desconsideração do indivíduo como sujeito de direitos
e passível de proteção, o que consequentemente levará à elaboração de políticas públicas cujo
objetivo não se limita à manutenção da ordem estatal, mas cumprirá a finalidade do Estado de
salvaguardar as liberdades individuais e de uma vida digna.
Assim como o respeito aos posicionamentos morais, a dignidade humana se apresenta como
o pilar de qualquer estrutura estatal, nas esferas legislativa, administrativa e judicial. O que se
observa nos exemplos citados pelo texto de Edouard Machery é que a “coisificação” ou
animalização dos indivíduos (em alguns casos pelo próprio Estado), seja pela negação da agência,
da experiência, ou dos dois, se dá pela retirada do véu da dignidade.
É a dignidade que garante a proteção material e normativa ao ser humano, impedindo
violências arbitrárias do Estado e/ou horizontais no âmbito privado. Por ser inata à natureza humana,
é o pilar fundamental que bloqueia a propagação de atos que levam à desumanização (pelo não
reconhecimento da agência e da experiência), bem como a permissibilidade de qualquer prejuízo,
posto que, à luz desse princípio, todos são seres humanos plenos, titulares de direitos e dirigentes
de seus próprios planos e projetos de vida.
A Constituição Federal de 1988 garantiu ao Poder Judiciário, especificamente ao Supremo
Tribunal Federal, ampliados mecanismos de controle do poder político e de proteção a direitos
fundamentais, principalmente no que tange às minorias vulneráveis, que sofrem violações de
direitos intrínsecos não apenas por particulares, mas também pelo Estado. Antes um tribunal tímido,
a Suprema Corte vem ampliando as fronteiras de sua atuação, e revendo seu papel de velar pela
proteção da dignidade humana, aderindo ao “discurso legitimador de tribunais constitucionais como
instituições desenhadas para limitar maiorias legislativas e proteger direitos fundamentais no
contexto do pós-guerra” (ARGUELHES, 2021, p. 1536).
No exercício desse não tão novo controle político, o Supremo Tribunal Federal foi
provocado, por meio do ajuizamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 635.
O agravamento da letalidade policial e das violações de direitos humanos infligidos sobre as
populações vulneráveis do Estado do Rio de Janeiro durante o período em que vigoraram medidas
de isolamento social para contenção da pandemia de Covid-19 fez com que organizações e
141

movimentos sociais questionassem o Poder Judiciário a se manifestar a respeito da condução da


política pública de segurança do Estado do Rio de Janeiro.
Sob a relatoria do ministro Edson Fachin, os ministros deram parcial provimento aos pedidos
cautelares apresentados na inicial, destacando-se as seguintes determinações: a restrição da
utilização de helicópteros blindados com plataformas de tiro (caveirão aéreo) nas operações
policiais apenas nos casos de observância da estrita necessidade; orientações aos agentes de
segurança e profissionais de saúde do Estado do Rio de Janeiro de preservação dos vestígios de
crimes cometidos em operações policiais, documentação fotográfica das provas periciais produzidas
em investigações de crimes contra a vida, observação de diretrizes específicas em casos de
operações policiais em escolas, creches, hospitais ou postos de saúde (excepcionalidade da medida,
adoção de protocolos específicos, proibição do uso de estabelecimentos educacionais ou de saúde
como base operacional); atribuir ao MPRJ a competência para a investigação de infrações penais
que tenham por suspeitos agentes policiais, devendo ser seguidas as instruções do Protocolo de
Minnesota; suspensão da eficácia do art. 1º do Decreto 46.775/2019, que impôs alterações na
letalidade policial (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020).
Posteriormente, a liminar concedida foi referendada pela Corte, que determinou a proibição
da realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro enquanto perdurar a
pandemia de Covid-19. Excetuam-se a esta regras os casos excepcionais, desde que haja a devida
justificação pela autoridade competente e prévia comunicação ao MPRJ; a adoção de cuidados e
protocolos excepcionais com vistas a minimizar os riscos à população, à prestação de serviços
públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2020).

Conclusões
A essência dos julgamentos liminares da ADPF n. 635 é um exemplo claro da atuação ativa
do Poder Judiciário na esfera organizacional das políticas públicas. Embora a criação e condução
dessas políticas sejam atribuídas à Administração Pública (Poder Executivo), em determinados
casos serão constatadas falhas ou desvios no ciclo de uma determinada política pública, o que
demandará a retomada do equilíbrio da influência intrínseca entre Estado - aqui leiam-se os Três
Poderes - e sociedade para combater os prejuízos causados pela demora na concretização dos
direitos fundamentais.
O contexto que levou à propositura da ADPF das Favelas foi de um quadro grave
de violações de direitos humanos pelas polícias do estado do RJ, decorrentes de
uma política de segurança pública baseada no confronto armado, e que atingem
especialmente a população negra e pobre moradora de favelas, sem investigação
ou respostas efetivas pelo sistema de justiça local. Uma realidade de rotinização
do uso da violência, com armamentos e procedimentos de guerra, que produz
142

mortes cotidianamente, além do fechamento habitual de escolas e postos de saúde,


inviabilização do trânsito e invasão de domicílios (OSMO; FANTI, 2021, p.
2117).

Cabe apenas ao Poder Público solucionar a questão da violência e, consequentemente, da


letalidade policial, posto que este último é problema causado pelo próprio aparato estatal, que detém
a exclusividade do poder punitivo e do uso repressivo da força. A partir do momento em que a
violência e os danos à vida e a integridade física e moral dos cidadãos são perpetrados pelas
instituições governamentais, não há apenas uma desvirtualização do fim precípuo da política
pública e da atividade estatal, mas uma efetiva violação e desrespeito aos direitos fundamentais pelo
ente responsável por protegê-los.
Assim como reconhecido por Machery, todas as entidades humanas claramente são dotadas
de posicionamento moral e, assim, podem ser moralmente lesionadas. Suas propriedades podem ser
roubadas, sua integridade pode ser ferida injustificadamente e sua liberdade pode sofrer injustas
restrições. Quando um indivíduo é reconhecido como possuidor de posicionamento moral, merece
consideração moral ou preocupação dos agentes morais (SYTSMA; MACHERY,2012). Para tanto,
mostra-se útil o ciclo de políticas públicas, que pode ser compreendido como um conjunto de
esquemas de visualização e interpretação que visam ajudar a entender e resolver um problema
público. Embora seja importante que se organizem as prováveis fases sequenciais de uma política
pública, um aspecto importante do ciclo é a avaliação da política pública, por ser a verdadeira etapa
que permite vislumbrar a necessidade de melhorias, destinação de mais recursos, alterações de
gestão, bem como a tomada de decisões como um todo, com vistas ao alcance das metas que se
propuseram alcançar com a política.
(...) Desde que a ADPF 635 entrou em vigência, em 5 de junho de 2020, 59
chacinas deixaram 250 mortos durante ações e operações policiais na Região
Metropolitana do Rio, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado. Na
classificação realizada a partir das notificações recebidas pelo sistema, chacina é
quando acontecem três ou mais mortes na mesma ocorrência.
No entanto, números da plataforma demonstram queda significativa nos
indicadores de violência armada desde que a medida passou a valer.
No período de um ano e cinco meses, houve 1.693 tiroteios em ações e operações
policiais na Região Metropolitana do Rio. O número representa uma queda de 38%
em comparação ao período de um ano e cinco meses anterior à ADPF, quando
houve 2.715 registros.
(...) A Defensoria Pública do Estado do Rio aponta que, de 2013 a 2019, a Região
Metropolitana do Rio viveu um aumento de 313% das mortes por intervenção de
agente de Estado. Ainda de acordo com a defensoria, essa tendência foi revertida
somente em 2020, com a restrição das operações policiais pelo STF, resultando na
maior redução da letalidade policial dos últimos 15 anos (34%) (COELHO;
BRASIL, 2021).

A atuação, ainda que excepcional, do Poder Judiciário na esfera organizacional das políticas
públicas precisa ser vista além de seu caráter interventivo. A manifestação judicial pode ser
considerada um instrumento que permite vislumbrar a necessidade de melhorias, de destinação de
143

mais recursos, alterações de gestão, bem como a tomada de decisões como um todo, com vistas ao
alcance das metas que se propuseram alcançar com a política, razão de ser deste instituto.
Seguindo o disposto na Constituição, o que se mostra necessário é a garantia de eficiência
material das instituições. Em outras palavras, só é possível o alcance da eficácia completa dos
direitos fundamentais que decorrem estruturalmente do princípio da dignidade humana mediante a
soma da eficiência normativa e a consequente concretização fática, com a ressalva de que a
independência descrita no princípio da separação dos Poderes serve à questão organizacional, não
implicando, necessariamente, na ausência de correlação total entre o funcionamento desses
poderes.

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144

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Medida Cautelar na Arguição de


Descumprimento de Preceito Fundamental n. 635 – Rio de Janeiro. ADPF 635 MC/RJ. Relator:
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Referendo em Tutela Provisória
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– Rio de Janeiro. ADPF 635 MC-TPI-Ref / RJ. Relator: Min. Edson Fachin. Julgamento:
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145

O CONCEITO DE INTERSECCIONALIDADE E SEU USO PARA ANÁLISEDA


JUSTIÇA SOCIAL NAS POLÍTICAS GLOBAIS

Ana Júlia Diniz Neves do Lago32

Introdução
O campo de estudo deste trabalho consiste em explorar a temática da interseccionalidade
enquanto ferramenta de investigação e práxis críticas envolvida no contexto político internacional,
o qual reverbera internamente na dinâmica política nacional dos Estados. Sendo assim, esse ensaio
é um dos resultados obtidos com a pesquisa de Iniciação Científica que foi desenvolvida sob o edital
PIBIC 2021/2022. Portanto, a problemática trabalhada é: tendo como objeto de análise a obra
Interseccionalidade (2016) de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, qual o alcance da
interseccionalidade, enquanto ferramenta de análise investigativa e práxis crítica, nos estudos sobre
neoliberalismo e identidade política?
A emergência dessa temática está na importância que a interseccionalidade alcançou nas
últimas décadas, desde sua formalização acadêmica, marcando presença em debates internacionais
sobre direitos humanos, meio ambiente e outros. Assim, estudar no que consiste essa ferramenta e
em quais âmbitos ela atua se faz de extrema importância, especialmente no contexto de expansão
do neoliberalismo como sistema que intensifica as múltiplas formas de opressão que os indivíduos
experienciam. Sendo assim, o objetivo deste trabalho consistiu em investigar a atuação da
interseccionalidade enquanto ferramenta de análise investigativa e práxis críticas no contexto
internacional atual, a saber, o de predominância do neoliberalismo como racionalidade do
capitalismo contemporâneo. Mais especificamente, dessa forma, foram investigados os contornos
estruturantes do conceito de interseccionalidade, de neoliberalismo e de identidades políticas para,
então, pensar a inserção da interseccionalidade na dinâmica de políticas globais.
Para tanto utilizou-se de obras completas, capítulos de livros e artigos para compor o
desenvolvimento da pesquisa, visando, através de uma metodologia qualitativa de revisão
bibliográfica, responder aos objetivos expostos. Dessa forma, foi priorizado uma leitura crítica
sobre os materiais, articulando-os entre si. Tendo isso em vista, a obra principal a ser consultada foi
Interseccionalidade (2021) de Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, mas também recorreu-se a obras
como A nova razão do mundo (2017) de Christian Laval e Pierre Dardot para a compreensão do
neoliberalismo e artigos fundamentais de Kimberlé Crenshaw para situar o surgimento da
interseccionalidade e sua aplicação, sendo eles Mapping the Margins: Intersectionality, Identity
Politics, and Violence against Women of Color (1991) e Demarginalizing the Intersection of Race

32
1 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP). Graduanda em Relações Internacionais. [email protected]
146

and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist
Politics (1989).

Desenvolvimento
A interseccionalidade, como proposta por Patricia Hill Collins e Sirma Bilge em
Interseccionalidade (2021), é uma ferramenta de investigação e práxis críticas que busca
compreender a realidade social em sua complexidade. Portanto, parte do pressuposto de que as
pessoas estão submetidas a múltiplos sistemas de poder, os quais as oprimem de forma simultânea.
Assim sendo, essa ferramenta promove um modo de pensar com um olhar interseccional, ou seja,
deve-se interpretar as relações sociais desiguais como entrelaçadas e emaranhadas, especialmente
em meio ao contexto atual de avanço do neoliberalismo, sendo este não só sistema econômico,
mas também norma geral de vida (DARDOT; LAVAL, 2016). Nesse âmago, o debate
interseccional ganha espaço nas últimas décadas em discussões internacionais e se faz essencial
para localizar a dinâmica opressiva dentro da conjuntura mencionada. Isso implica em
compreender essa face do capitalismo como responsável por engendrar e moldar as desigualdades
sociais, as quais não se limitam ao aspecto exclusivamente econômico.
Dessa maneira, a conceitualização da interseccionalidade se fez de extremaimportância,
pois possibilitou sua mobilização enquanto ferramenta e permite, assim, sua aplicação tanto para
a análise da realidade, quanto para sua utilização prática na sociedade, como na incorporação por
políticas públicas. Nesse viés, resgata-se que a essência do pensamento interseccional remonta
séculos antes de sua formalização acadêmica, já sendo identificado por Carla Akotirene (2019) no
período colonial das Américas, no qual a mulher negra já articulava as noções de gênero, raça,
classe e nação. Posteriormente, entre as décadas de 1960 e 1970, Collins e Bilge (2021) apresentam
como essas mesmas estruturas foram contestadas em meio a efervescência de movimentos sociais
nos Estados Unidos da América. Isso leva à evocação dosprincipais conceitos que foram depois
alocados no conceito de interseccionalidade,como desigualdade social, poder, relacionalidade,
contexto social, complexidade e justiça social (COLLINS; BILGE; 2021, p. 90). É necessário
pontuar que esse momento exerce influência significativa para a formalização da
interseccionalidade que se sucedeu após algumas décadas.
Nesse âmago, situa-se o surgimento da interseccionalidade no bojo do feminismo negro,
o que se deve à posição ocupada pelas mulheres negras, as quais não se sentiam contempladas nem
pelo feminismo branco liberal – o qual tinha pautas focadas nas necessidades de mulheres brancas
de classe média –, nem pelo movimento negro - que não abarcava questões de gênero em suas
discussões. Com isso, a necessidade de um pensamento que abarcasse essas reivindicações leva
Kimberlé Crenshaw a cunhar o termo interseccionalidade entre o final da década de 1980 e início
147

dos anos de 1990. Ressalta-se, no entanto, que ao longo das décadas que se seguiram, esse conceito
se expandiu e passou a abarcar outras relações para além do gênero e da raça, como já mencionado.
À vista disso, a interseccionalidade aparece como novidade porque distingue-se de teorias
produzidas anteriormente, uma vez que não utiliza-se de apenas uma lente de análise, mas sim de
múltiplas. Entretanto, isso não significa que haja o completo descarte das contribuições fornecidas
por essas outras teorias, mas há a articulação de pontos relevantes para formar uma compreensão
da complexidade da realidade social. De tal modo, é fundamental investigar as relações de raça,
classe, gênero, etnia, sexualidade, status migratório, capacidade, idade e tantas outras mais que
forem necessárias e suas interligações para compreender a desigualdade social e a opressão. Como
postulado por Kimberlé Crenshaw (1989), somente trabalhando-as dessa maneira é possível
alcançar a justiça social, já que analisar essas opressões como problemas separados representa um
fracasso enquanto tentativa de solução desses impasses.
Mais do que adotar a aplicação da interseccionalidade como ferramenta prática,é preciso
assimilá-la como forma de interpretação social, a fim de, dessa forma, romper com o padrão
normativo e com a visão descritiva da sociedade (CRENSHAW, 1989). Assim, é necessário
compreender a interseccionalidade na indissociabilidade de suas duas faces: a da investigação e a
da ação, ambas feitas de modo crítico. Isso significa que, em seu âmbito investigativo, busca
pensar a conjuntura na qual determinadas opressões se manifestam, considerando os aspectos
histórico-sociais específicos e partindo de uma análise das estruturas interseccionais. Dessa forma,
possibilita-se,ainda, a revisão de debates feitos anteriormente por meio da incorporação das lentes
interseccionais, as quais produzem novas interpretações sobre as mesmas questões. Por outro lado,
seu âmbito prático apresenta uma possibilidade de resolução de problemas, ou seja, a partir da
análise de determinada situação, propor sobre ela um caminho para a justiça social, de modo a
combater as diversas desigualdades de modo conjunto e simultâneo. Além disso, é imprescindível
que ambas as faces sejam encaradas de maneira crítica, o que implica não só em questionar as
leituras hegemônicas existentes e a forma como políticas são aplicadas baseadas nas relações
sociais, mas questionar a interseccionalidade em si mesma, enquanto ferramenta, incluindo seus
pressupostos e a forma como vem sendo aplicada.
Nesse sentido, ao promover a investigação e ação críticas, há uma aproximação com os
indivíduos. Isso acontece devido ao diálogo entre os aspectos individuais e coletivos das
desigualdades sociais, de modo que as opressões passam a ser vistas comoproblemas que atingem
todo um grupo de pessoas e tem efeitos em variadas camadas. Dessa forma, como resgatado por
Collins (2022, p. 44), desde que cunhou a interseccionalidade, Crenshaw reconhecia que há uma
influência direta tanto dos arranjos estruturais sociais de poder e das experiências coletivas e
individuais, quanto os efeitos subjetivos ocasionados pela marginalidade política. Tendo essa
contextualização do conceito de interseccionalidade em vista, é importante situar seu debate e
148

inserção no contexto de neoliberalismo como política dominante do globo. Assim, aqui tem-se
neoliberalismo como definido por Pierre Dardot e Christian Laval em A nova Razão do Mundo
(2017), como sendo um “conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo
modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (DARDOT;
LAVAL, 2016, p.17). Portanto, esse sistema é a racionalidade que guia o capitalismo
contemporâneo, sendo responsável por produzir relações sociais e interferir diretamente na forma
como os indivíduos experienciam a realidade social. Com essa lógica normativa (DARDOT;
LAVAL, 2016), é propagada uma crescente individualização na sociedade, resultado do sistema
concorrencial implementado de maneira exacerbada e que é incorporado subjetivamente. Aqui
destaca-se um traço fundamental para compreensão do neoliberalismo: ele ultrapassa as barreiras
do trabalho e, por extensão, os limites da dinâmica exclusivamente econômica, pois se expande
para os âmbitos subjetivos e interpessoais.
Assim, em torno de uma luta pela sobrevivência dentro do mercado, a organização social
passa a ser cada vez mais individualista e implica em mudanças na própria forma de pensar dos
indivíduos, que se torna mais fragmentada. As consequências de um raciocínio fragmentado
reverberam na maneira sobre a qual as interligações e relacionalidades na dinâmica social tornam-
se cada vez mais imperceptíveis.
Por sua vez, notando-se que as opressões advindas desse sistema não se limitam às relações
exclusivas de classe e agem de maneira subjetiva e interpessoal, é importante ressaltar que há
múltiplos sistemas de poder que operam simultaneamente e se intensificam sob o neoliberalismo.
Assim compreender que “essa ordem mundial neoliberal repousa sobre um sistema capitalista
global modulado por relações desiguais de raça, gênero, sexualidade, idade, deficiência e
cidadania” (COLLINS; BILGE, 2021, p.161) significa entender que apenas um olhar que abarque
todas essas relações é capaz de promover uma análise satisfatória da complexidade da realidade
social. Situar o debate interseccional no neoliberalismo sinaliza, portanto, que o combate de todas
as opressões geradas pelos diversos sistemas de poder implica no combate do capitalismo como
sistema dominante.
Nesse sentido, os desafios que se apresentam às lutas sociais e, por extensão, ao alcance da
justiça social residem no combate da racionalidade individualista promovida pela lógica
concorrencial do neoliberalismo. Dessa forma, é imprescindível uma ação que vá de encontro com
a subjetividade propagada e incorporada pelos indivíduos que gera a fragmentação do pensamento
e impossibilita uma organização mais eficiente das pessoas. Condição essa que se dá pela
atribuição do caráter individual às opressões, ou seja, estas deixam de serem vistas como resultado
de uma série de mecanismos estruturais que as provocam e passam a ser analisadas apenas como
casos isolados e particulares. É nesse ponto que a interseccionalidade surge como uma ferramenta
de grande valia, já que promove não apenas um pensamento relacional e interligado –
149

compreendendo as questões sociais como imbricadas –, mas também um entendimento profundo


dos fenômenos sociais – de modo a pensar suas estruturas e contextos específicos – o que impede
propor suas superações dessa maneira fragmentada.
Além disso, é preciso destacar a emergência da reivindicação de identidades políticas por
parte de grupos submetidos a opressões interseccionais. A importância disso reside na formação
de coalizões políticas que se manifestam em prol de seus direitos, possibilitando, por meio de
ligações políticas heterogêneas, o estabelecimento de uma luta coletiva. Nesse âmbito, a
interseccionalidade age como uma ferramenta queanalisa de maneira mais amplas relações dessas
identidades e da ação política (COLLINS; BILGE, 2021, p.188). Isto posto, nota-se a relevância
de trazer à tona a incorporação da interseccionalidade para a interpretação da realidade social e
para o pensar da ação política. Desse modo, ela já vem sendo levada a debates fora do âmbito
acadêmico e abarcada em pautas sobre direitos humanos e políticas globais (COLLINS; BILGE,
2021), especialmente com a visibilidade alcançada nas últimas décadas. Nesse segmento, ao
considerar que as políticas públicas feitas no interior dos Estados recebem influência da dinâmica
internacional, é preciso reconhecer que os sistemas de poder fortalecidos pelo neoliberalismo
atuam ativamente em âmbitos micro e macro. Assim, com o auxílio da interseccionalidade, é
possível notar
[...] que a virada coercitiva dos Estados neoliberais incidiu fortemente sobre as
populações desfavorecidas em razão de raça, classe, gênero, sexualidade,
deficiência, religião e status migratório (COLLINS; BILGE, 2021, p.173).

Isso indica como a forma com a qual as políticas públicas são feitas podem propiciar
desigualdades sociais. A razão para isso reside no fato de que a organizaçãodo poder direciona
sua ação para grupos específicos. Desse modo, para que o combate às desigualdades sociais seja
mais efetivo, é necessário que as opressões sejam identificadas como problemas coletivos e não
individuais ou isolados, o que vai de encontro com a lógica concorrencial neoliberal, como já
discutido anteriormente.
Assim, a interseccionalidade aparece como uma ferramenta que pode possibilitar tanto um
repensar das políticas que vêm sendo feitas, quanto propor novaspossibilidades de combate às
opressões. Novamente, no contexto neoliberal, utilizar-se da interseccionalidade como maneira de
agir em diversas frentes simultâneas em busca da justiça social apresenta uma possibilidade de
alcance da justiça social significativa, pois apresenta a indispensabilidade de pensar sobre gênero,
raça, classe, idade, status migratório, etc de forma indissociável. Atua, nesse sentido, de modo a
incentivar o pensamento sobre políticas de inclusão, igualdade e desenvolvimento, uma vez que
visa reduzir as desigualdades sociais abarcando todas as formas de opressão ao mesmo
tempo. No entanto, tendo em vista que a discussão acerca da interseccionalidade é recente e ainda
persistem meandros a serem explorados, alguns pontos necessitam ser mais acentuados, como sua
150

aplicação prática na formulação de políticas públicas. Isso porque incluir a amplitude de formas
de opressão que são experienciadas sem que haja uma perda de importância de cada uma delas e,
ao mesmo tempo, que não se torne medidas específicas demais, apresenta um desafio de aplicação
teórica.
No entanto, esses obstáculos não devem ser decisivos para o descarte da
interseccionalidade. Pelo contrário, apontam para um momento em que a interseccionalidade deve
se desdobrar e consolidar seu espaço. Como afirma Collins (2022), enquanto ferramenta crítica,
não só deve analisar a realidade e agir de maneira crítica, mas também deve olhar para si mesmo
de maneira a refletir sobre si mesma e expandir seus horizontes. Ademais, em meio a um cenário
tão complexo quanto o que o capitalismo neoliberal proporciona, além da própria diversidade
contida nas vivências humanas, questionar a realidade social como ela é através do uso de uma
ferramenta com grandes horizontes, como disposto pela interseccionalidade, se faz de extrema
importância para visar o alcance da justiça social.

Conclusões
A conceituação da interseccionalidade com suas premissas de investigação e de práxis
apresenta uma possibilidade de interpretação da realidade social que busca abranger toda sua
complexidade. Isso porque presume analisar os múltiplos sistemas de opressão de maneira
relacional, uma vez que os entende como emaranhados e imbricados. Para tanto, ao contrário de
outras teorias, utilizaconjuntamente de várias lentes de interpretação para compreender as relações
de raça, classe, gênero, status migratório, idade, etc, sem privilegiar nenhuma, pois entende que
todas, em suas especificidades, devem ser tratadas igualmente. Com isso, sendo uma ferramenta de
investigação e de práxis críticas, atua de maneira simultânea e indissociável nessas duas frentes.
Dessa forma, apresenta um olhar com maior profundidade sobre a dinâmica das relações sociais e,
assim, coloca o objetivo máximo de alcance da justiça social como ponto central em todo seu
desenvolvimento. Por isso, ainda que tenha questões a responder e aspectos a desenvolver, a
interseccionalidade aparece no contexto do neoliberalismo como uma forma de luta ante esse
sistema. Ou seja, por meio de sua aplicação, a interseccionalidade combate a lógica estabelecida
e globalmente disseminada por essa face do capitalismo, enxergando as interconexões dos
múltiplos sistemas de opressão sobre os indivíduos e buscando combatê-los de maneira simultânea.
Portanto, a interseccionalidade representa a necessidade de questionar não só a realidade
social que é vivenciada, mas a própria forma como ela e, por consequência, as opressões nela
contidas, são enfrentadas. Sendo uma nova possibilidade de interpretaras relações sociais, é
também uma nova maneira de pensar o caminho da justiça social, principalmente, na emergência
atual, por meio de políticas públicas de inclusão, igualdade e desenvolvimento.
151

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153

AS POLÍTICAS PÚBLICAS NOS CONSELHOS MUNICIPAIS

Lúcio Rangel Alves Ortiz33

Introdução
Inicialmente, o desenvolvimento local é algo que precisa se verificar uma mudança de
paradigma do município, e que para isso, é preciso entender o sentido de concepções e posturas
no estabelecimento de uma nova cultura de desenvolvimento, o que requer um pressuposto
humanitário, sustentável, inovador, mediante uma estrutura política, social e econômica, que deve
ser constatada, e requerer empreendimento e capacidade de mudança de estrutura e conjuntura para
uma mudança melhor de qualidade de vida dos habitantes. Assim, inicia-se o presente trabalho
com uma proposta humanística e até, holística, no sentido de buscar a essência do
desenvolvimento local, conforme entende Martins (2002),o que requer uma reflexão e busca de
novo paradigma cultural.
Por óbvio, o desenvolvimento local, ora municipal, geralmente, é associado ao acúmulo
material e econômico, seja monetarista, financeiro industrial, produtivo no agronegócio, no
comércio e na prestação de serviços, mas que pode ser auxiliado pelas políticas públicas de cunho
participativo, como os conselhos municipais, o que se pretende então propiciar o presente estudo.
Ora, o desenvolvimento não é só material, mas também, cultural, social e de satisfação de escala
humana, o que então pretende provocar a devida inovação de paradigma conceitual e os resultados
obtidos, atualmente, são parciais, de modo que se observou que tais mecanismos proporcionam
mudança de qualidade de vida da população participante do governo local.
A Constituição Brasileira proporcionou, de modo inédito, a estimular a participação
popular na tomada de decisões sobre políticas públicas, o que deflagrou leis e institucionalizações
de planejamento municipal com participação direta da população, como é o caso das audiências
públicas e dos conselhos municipais. No caso da participação da população na gestão das políticas
públicas, através dos conselhos municipais, observou-se que há consensos nos colegiados dos
referidos conselhos, ou seja, um acordo entre conselheiros representantes da administração pública
municipal e conselheiros representantes da sociedade civil, o então que pode se considerar uma
relação de democratização das políticas públicas, mas ao mesmo tempo, se tais conselhos estavam
de acordo com a representação e os anseios das suas populações locais.
Os objetivos do presente trabalho são:
1. Conhecer e estudar a respeito o que são os conselhos municipais e como funcionam
e se podem promover maior participação social nas políticas públicas municipais;

Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”. Mestre em Planejamento e Análise de


33

Políticas Públicas. E-mail: [email protected]


154

2. Levantar hipóteses da questão do desenvolvimento local, do protagonismo


participativo cidadão, do desenvolvimento político democrático social e ressaltar a importância
dos conselhos municipais para implementação, execução e fiscalização das políticas públicas.

O que são Conselhos Municipais?


Os conselhos municipais, segundo TCU (2022), são conselhos gestores de políticas
públicas como canais efetivos de participação, e que permitem estabelecer de que a sociedade
exerça sua cidadania como direito em realidade, fortalecendo a participação democrática da
população na formulação e implementação de políticas públicas.
De acordo como IBGE (2022), em 1999, o Brasil contava com 26.900 mil Conselhos
Municipais, sendo que em 2012, 99% (noventa e nove por cento) dos municípios brasileiros
possuíam conselhos municipais da Saúde, da Assistência Social e dos Direitos da Criança e
Adolescente, e 50% (cinquenta por cento) dos municípios possuíam Conselhos de Direitos da
Pessoa Idosa, de Cultura e de Meio Ambiente e 30% (trinta por cento) dos municípios possuem
Conselhos de Segurança Alimentar, de Direitos da Pessoa com Deficiência e de Direitos da
Mulher. Logo, conhecer o mecanismo de controle social dos Conselhos Municipais é fundamental
para viabilizar a participação da sociedade, segundo Mendonça e Franceschinelli (2015). Assim,
quanto mais há conselhos municipais funcionando no país, maior será a participação social. Pelo
portal do TCU (Tribunal de Contas da União, 2022), os conselhos municipais proporcionam
obrigação constitucional que cada município deve criar, a fim de proporcionara participação
popular e a gestão democrática, uma vez que a existência de tais conselhos é mandamento legal,
pois a gestão pública deve ter o devido controle social e como devefuncionar.

Funcionamento dos Conselhos Municipais


Os Conselhos Municipais, segundo TCU (2022), devem funcionar para proporcionar a
devida participação social na elaboração, execução e controle de políticas públicas, a fim de que
o cidadão possa se relacionar com o Poder Público, municipal, no caso.
Os cidadãos devem ser estimulados, como representantes de entidades da sociedade civil
ou em seu nome próprio como eleitores das suas cidades para participarem dos Conselhos
Municipais, através de escolha pelas referidas entidades ou se candidatarem por processo seletivo,
a fim de serem analisados por comissão paritária se tem os requisitos necessários, e podem ser
Conselheiros Municipais, em nome da sociedade municipal, da qual pertencem.
Na Cartilha Fiscal da Secretaria da Comunicação do TCU (2022), consta as principais leis
que possibilitam criações de conselhos municipais, que são:
• Lei 12.257/2011 – Lei de Acesso às Informação da Gestão Pública;
• Lei 8.142/1990 – Lei de Participação da Comunidade no SUS (Sistema Únicode
155

Saúde);
• Lei 13.460/2017 – Lei de Participação dos Direitos do Usuário dos Serviços
Públicos da Administração Pública;
• Lei 11.947/2009 – Lei de Participação do Cidadão, Pais e Alunos no Programa
Nacional de Alimentação Escolar.
Diante disso, observa-se que os conselhos municipais são importantes que funcionempara
que possam realizar suas devidas funções de criação, implementação, execução, controle e
avaliação de políticas públicas que possam ser efetivadas para prestação de serviços aos cidadãos.

Revisão da Literatura
Em primeiro lugar, Bresser-Pereira e Spink (1998), de modo teórico na busca da
compreensão metodológica, abordam a crise do modelo burocrático de administração pública de
modo crítico, o que gerou a crise do Estado e fez de as pessoas, ora cidadãs, demandarem políticas
de eficiência, eficácia e efetividade, principalmente, na prestação de serviços públicos, que
proporcionem resultados satisfatórios, mediante do que se percebeu com o tempo, a necessidade
de participação social nas políticas de descentralização, principalmente, advindos de movimentos
populares, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e da Educação Popular por
exemplo. Bresser-Pereira e Spink (1998) defendem que a participação social é um marco da
construção de uma cidadania ativa, o que fez ressurgir a democracia participativa, o que
proporcionou o chamado “princípio participativo” da população na implementação de políticas
públicas, principalmente, municipais.
Empiricamente e especificamente, no plano local, a década de 1990 correspondeu ao
período da instituição da consulta da população, nos casos de orçamentos participativos, que fez
de associações, sindicatos e empresas participarem no processo de formulação de projetos de
políticas públicas, que propiciaram o desenvolvimento local. Zaluar (1997) abordou a respeito do
fenômeno da desigualdade social, decorrente da globalização, o que gerou processo de
fragmentação social, principalmente, em países periféricos, o que precisou retomar a chamada
“marginalização social” e atentar a segmentos da sociedade civil como público alvo para propor
políticas públicas no sentido de se combater a exclusão social e promoção de inclusão de
oportunidades para pessoas mais vulneráveis da sociedade. Milani (2008), observa que, no Brasil,
a participação das pessoas na elaboração de políticas públicas, é um elemento central no processo
de reforma democrática do Estado, que foi proporcionado desde a Constituição Federal de 1988.
Constatou-se que as experiências de orçamento participativo municipal pelo Brasil,
principalmente, nas regiões Sudeste e Sul, apresentaram com o tempo melhores indicadores
sociais, bem como constatou padrões de comportamento político participativo da população, o que
proporcionou um diferencial em comparação ao resto do país.
156

Nogueira (2001) aborda que todo o debate da década de 1970 e 1980 foi decorrente da
ditadura militar que houve no Brasil, e que as pessoas reivindicavam maior liberdade e democracia
nas suas vidas, para atender melhor as demandas da sociedade, principalmente, naorganização dos
trabalhadores e movimentos populares. Foi diante disso que surgiu partidos políticos que até hoje
fazem parte do espectro como decisivos atores políticos, como é o caso do Partido dos
Trabalhadores, do Movimento Democrático Brasileiro, além de outros que surgiram no decorrer
da redemocratização, que culminou na Constituição Federal de 1988 eas eleições diretas para
Presidente da República, que houveram, a partir de 1989.
Há de ressaltar que as políticas públicas, pós-Constituição de 1988, surgiram decorrentes
das demandas dos movimentos populares, como o SUS (Sistema Único de Saúde), pois tais
movimentos reivindicavam políticas de saúde, moradia, educação, entre outras, o que fez a
sociedade organizar sindicatos, partidos, movimentos de Igreja, como as CEBS (Comunidades
Eclesiais de Base) da Igreja Católica, o que proporcionou a mobilização de lideranças que se
tornaram políticos e políticas, representantes importantes desses segmentos. Diante disso, os
conselhos municipais foram decorrentes deste período histórico, que tiveram papel importante para
proposição, implementação e execução de políticas públicas locais, mas com o tempo, houve
mobilização diante das lideranças de movimentos populares, que depois se tornaram políticos no
Executivo e no Legislativo Contudo, com tal situação, houve desmobilização das bases porque
seus líderes se distanciaram, enquanto que o Estado passou por várias crises econômicas, o que se
verificou depois dificuldades de crises sociais e políticas. Nogueira (2001) analisou a perspectiva
política dos cidadãos com os políticos e percebeu que os tecnocratas (burocratas do Poder Público)
buscaram convencer a população de racionalizar os recursos públicos nas suas alocações
orçamentárias, o que provocou um debate a respeito da participação da população, de como deveria
resolver problemas de conflitos de necessidades públicas diante do Estado, ora gerencial, ora
burocrático, que só buscava atender as demandas da imprensa ou de determinados segmentos
sociais de cidadãos, contudo, desde que tivesse a devida responsabilidade fiscal em buscar
resultados de modo racionalista para utilização dos referidos recursos públicos.
Silva (2009) aborda que questões importantes para o país entre a década de 1980 a 1990,
fez da participação social influenciar a gestão pública e a democratização de políticas locais pelos
conselhos municipais, o que democratizou no atendimento das demandas populares, mas o Estado
não absorveu, totalmente, tais demandas, por estar aparelhado por pressões de lobbyes políticos,
principalmente, dos grupos econômicos neoliberais e de políticos reacionários, o que gerou uma
controvérsia, mas que se deve constatar de que houve uma nova relação qualitativa dos cidadãos
com o Poder Público, ou seja, no sentido de que houve uma dimensão política da cidadania e de
alguns grupos que buscavam privilégios, obviamente, provocou conflitos e enfrentamentos em
várias cidades.
157

Segundo Sanchez (2020, p. 26):


A participação da sociedade na definição de políticas públicas dependerá de uma
sociedade ativista, pois de nada adianta o poder público disponibilizar os meios e
condições legais e formais para a participação popular se a sociedade não ocupar
esse espaço. Portanto, deve-se considerar que as bases da participação social e
da cooperação na discussão de políticas públicas estejam alicerçadas no
„animus‟ do agente político, quanto da sociedade em valores republicanos.

Logo, a sociedade, ao se fazer representar pelos Conselhos Municipais, pode nortear as


políticas públicas municipais, quando a Constituição Federal e as leis assim propiciam (inclusive
Constituição Estadual e Lei Orgânica Municipal), o que proporciona ação de regulamentação e
formalização de espaços públicos para e pela participação popular, que orientarão políticas de
interesse da população local.

Metodologia
Metodologicamente, a proposta maior é bibliográfica de buscar literatura a respeito sobre
políticas públicas de participação social, amparadas em conceitos de políticas públicas, ciência
política e ciências sociais. As políticas públicas com possíveis participações sociais nos conselhos
municipais têm tido uma literatura a respeito dos desafios em sistematizarem informações com
tais experiências e desenvolverem uma dinâmica de composição e funcionamento, uma vez que
tais conselhos existem, no Brasil, desde 1990.
O trabalho proposto tem referência bibliográfica e sua literatura é pertinente para o devido
estudo com a metodologia proposta bibliográfica e os resultados a serem apresentados são parciais,
na análise de como os conselhos municipais podem ajudar na escolha e participação de políticas
públicas nos municípios. Na pesquisa bibliográfica, consultou-se os livros: Bresser Pereira e
Spink, 1989; Nogueira, 2001; Sanchez, 2020; Silva, 2009; Teixeira, 2001; artigos dos seguintes
autores: Cohn, 2011; Martins, 2002; Milani, 2008; Ribeiro e Grazia, 2003; Zaluar, 1997 e o Portal
do TCU (2022).

Discussão e resultados
Diante da problemática proposta e da importância dos conselhos municipais, aponta- se
principais discussões e resultados:
1ª) A questão da noção de desenvolvimento
158

O desenvolvimento, geralmente, é associado ao progresso material, econômico e


tecnológico, contudo tal concepção se esquece das questões sociais, humanas e culturais, o que
requer revisão conceitual no sentido de demandar a valorização da pessoa humana na promoção
de políticas públicas neste sentido, e que para isso, a via de gestão democrática ou participativa
seria um melhor caminho para atender as demandas da sociedade, e que portanto, o
desenvolvimento além de ser econômico e social, deve ser político, de atender a maioria das
pessoas, no caso, de desenvolvimento político participativo.
2º) O protagonismo participativo
Conforme Martins (2002), para criar condições, que atendam a comunidade de forma
efetiva, o protagonismo dos cidadãos, é importante para proporcionar o desenvolvimento local,
o exercício da cidadania participativa e, por consequência, de identificação sociocultural e
territorial, na qual a pessoa pertence. No caso, de as pessoas participarem no município onde
moram, como protagonistas de políticas públicas municipais.
3º) Desenvolvimento político democrático
O caráter político democrático e participativo tornou-se algo intrínseco para o
desenvolvimento político em si. E a participação política é considerada essencial na tomada de
consciência social com devido senso crítico e sensibilidade, o que propicia o desenvolvimento
da própria democracia em si. Portanto, o desenvolvimento político participativo só faz sentido se
for, obviamente, democrático.
4º) Importância dos Conselhos Municipais
Os conselhos municipais são muito importantes porque ajudam as administrações
públicas municipais em várias áreas temáticas, sejam na área da educação, da saúde, da criança
e do adolescente, na assistência e previdência social, e que por isso, espera-se com o tempo uma
cultura política local de participação direta. Com o tempo, tal situação cultural em muitas cidades
não alcançou um nível de participação necessária. Daí, a importância dos conselhos municipais
serem criados, implantados, a fim de proporcionarem espaços públicos para os cidadãos serem
mais participativos e agentes de tomadas de decisão mais democrática e plural. Tal cultura de
participação é necessária para a devida compreensão da relevância dos conselhos municipais, que
podem ser incentivados pelo estudo e prática do Estatuto das Cidades (Lei Federal nº
10257/2001), e assim, proporcionarem maior qualidade de vida e desenvolvimento sustentável
nos municípios.

Considerações finais
Vários estudos mostram experiências específicas, que demonstram participantes dos
conselhos municipais como membros da sociedade civil são caso de pessoas envolvidas em
159

movimentos ou organizações sociais, o que demonstra a importância do acesso ao espaço da


participação pelos referidos conselhos de cidadania.
Percebe-se, também, que vários conselhos têm certa dificuldade de funcionamento e falta
de capacitação com seus titulares e suplentes, uma vez que precisam emitir seus pareceres e
fiscalizarem a execução de determinadas políticas públicas nos municípios. Tal situação
constada, busca-se na democratização da gestão do Estado, a capacitação dos conselheiros
municipais, a fim de serem voluntários efetivos capazes de mediarem, conciliarem e negociarem
conflitos de interesses, uma vez que na realização de suas atribuições, podem emitir pareceres
consultivos, deliberativos e fiscalizatórios sobre determinadas ações e políticas públicas nos
municípios. Os pareceres consultivos podem ser indicativos para as políticas públicas municipais.
Os pareceres deliberativos são determinantes no caso. E os pareceres fiscalizatórios podem
ensejar medidas administrativas em relação às autoridades públicas ou até medidas de caráter
civil e penal, quando devidamente, encaminhados para órgãos responsáveis como Ministério
Público Federal, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Polícia Civil, Varas Cíveis e Varas
Criminais das Comarcas vinculadas a um Tribunal de Justiça estadual ou até a Justiça Federal,
seja na esfera cível e criminal. Ora, os conselhos municipais envolvem pessoas interessadas em
participar para poderem contribuir, fiscalizar e opinarem em possíveis decisões de políticas
públicas, de caráter participativo, o que então requer a democratização do Poder Público.
Com a problematização de crescente desinteresse de cidadãos em participarem nos
conselhos municipais, requer-se de movimentos e organizações sociais, bem como movimentos
políticos de usarem uma linguagem mais acessível e reuniões em formato de oficinas ou palestras
para divulgar a importância dos conselhos nos municípios a fim de serem efetivos em atender e
representar as demandas populacionais locais.

Referências
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gerencial. São Paulo: FGV, 1998.
COHN, Amélia. Participação Social e Conselhos de Políticas Públicas. Escritório no Brasil.
Textos para Discussão CEPAL-IPEA, 29. Brasília: CEPAL, 2011. Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/1421. Acesso em 3 nov. 2022.
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metodológicas. Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 3, N. 5, p. 51-59, Set.
2002.
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Pragmatismo Político. In: BRASIL, Participação em Foco – 2015. Disponível em:
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institucional/conselhos/1218-o-que-e-um-conselho-municipal>. Acesso em 3 nov. 2022.
MILANI, Carlos. O princípio da participação social na gestão de políticas públicas locais: uma
análise de experiências latino-americanas e europeias. Revista de Administração Pública. 42(3).
551-79. Mai. Jun. Rio de Janeiro: FGV/EBAPE, 2008. Acesso em:
160

https://www.scielo.br/j/rap/a/w8Sd7tHxv3dHcLmgW5DrpZs/abstract/?lang=pt. Acesso em 3
nov. 2022.
NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. São Paulo: Ed. Senac, 2001.
RIBEIRO, Ana Clara torres; GRAZIA, Grazia de. Experiências de orçamento participativo no
Brasil (período de 1997 a 2000). Fórum Nacional de Participação Popular. Petrópolis: Vozes,
2003.
SANCHEZ, Ricardo L. Impacto da Tecnologia na Democracia: avaliando o aumento ou
alteração na participação social na elaboração de políticas públicas municipais. Dissertação.
Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos:
UFSCar, 2020.
SILVA, E. R. A. Participação social e as conferências nacionais de políticas públicas: reflexões
sobre os avanços e desafios no período de 2003-2006. Rio de Janeiro: Ipea, 2009. (Texto para
Discussão n. 1.378).
TCU – TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Secretaria da Comunicação. A importânciados
conselhos municipais na melhoria da gestão pública. Disponível em: <
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melhoria-da-gestao-publica.htm>. Acesso em 1 nov. 2022.
TEIXEIRA, E. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. São Paulo:
Cortez; Salvador: UFBA; Recife: Equip, 2001.
ZALUAR, A. Exclusão e políticas públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, 12 (35), p. 29-47, 1997.
161

POLÍTICAS PÚBLICAS EM TEMPOS DE PANDEMIA: OS IMPACTOS DA


COVID-19 NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DO BRASIL.

Hélio Braga Filho34


Murilo Cordero Leal35
Jonatan Pousa36
Introdução
A crise sanitária global deflagrada pelo COVID-19, atestou, mais uma vez, que os países
ainda dependem da forte presença do Estado na atuação e regulação de suas economias. Além disso,
a crise sanitária expôs o trade-off entre Capitalismo e Democracia. No Brasil, o autoritarismo central
provocou sérios danos à sociedade. O objetivo da pesquisa foi examinar os efeitos provocados pela
pandemia na condução das políticas públicas nas áreas econômicas e social. A metodologia da
pesquisa baseou-se em consulta bibliográfica em livros, artigos acadêmicos e relatórios, acrescida
de uma pesquisa quantitativa na qual obteve-se, em fontes secundárias oficiais de dados estatísticos,
seleto conjunto de indicadores econômicos e sociais. Contando com esta breve introdução, o artigo
contou com três seções. A primeira seção procurou apresentar alguns argumentos teóricos
pertinentes à política econômica e social. Em seguida, abordamos o desenvolvimento econômico e
social brasileiro no período da pandemia de COVID-19. Finalmente, a última seção foi reservada
às nossas considerações finais.

Argumentos teóricos
Nem sempre a economia, compreendida enquanto atividade humana opera em condições de
normalidade, pois, certas perturbações podem ocorrer provocando desvios da sua trajetória de
normalidade. Sendo assim, diferente ordem de motivos pode contribuir para a ocorrência de
disrupções que afetam diretamente a atividade econômica, tal, como: diminuição do consumo das
famílias; retração dos investimentos; pressões inflacionarias; desequilíbrios do balanço de
pagamentos; choques de oferta etc., as quais, por sua vez, requerem a ingerência do Estado de modo
a reconduzir a economia na direção da estabilidade. Para isto, o Estado, através dos seus respectivos
instrumentos de ação econômica – política fiscal/tributária, política monetária e cambial – tem por
objetivo promover a estabilidade econômica, o crescimento e o desenvolvimento econômico.
Os movimentos de expansão e de contração da atividade econômica são monitorados e
submetidos à correção pelos policy makers, ou seja, formuladores de políticas. Contudo, nem

34
UNI-Facef – Centro Universitário de Franca. Doutor em Serviço Social.
35
UNI-Facef – Centro Universitário de Franca. Mestrando em Desenvolvimento Regional.
36
UNI-Facef – Centro Universitário de Franca. Mestre em desenvolvimento Regional.
162

sempre as medidas corretivas de política econômica são colocadas em curso no timing correto, além
do que, nem mesmo o efeito desejado das mesmas acontece no timing desejado, pois entre as
mesmas, há uma certa defasagem temporal.
Acrescenta-se ainda, o fato de que:

Devido às defasagens de reconhecimento, de ação e de impacto, é possível que os


ajustamentos pretendidos pelas políticas econômicas tornem as coisas ainda piores.
Atitudes expansionistas que tentem atacar a recessão do ponto C podem se somar
ao surto inflacionário posterior do ponto E. Da mesma forma, políticas que
pretendam restringir um surto inflacionário podem tornar contração seguinte ainda
pior (WONNACOTT, CRUSIUS, 1982, p.356)

Independente das medidas adotadas pelos policy makers, notadamente aquelas relacionadas
às flutuações de curto prazo – dos níveis de emprego, do nível geral de preços e dos desequilíbrios
externos - necessária se faz a intervenção do Estado de modo a restaurar a estabilidade da economia,
nos fundamentos do receituário keynesiano:
[...], em economias capitalistas modernas, não se pode esquecer a ação do Estado,
que informa e coordena a ação dos agentes econômicos, assegurando-lhes a
manutenção das condições “normais” dos negócios. Todos estes fatores
“ambientais e dos negócios” são suficientes para criar uma estrutura estável, na
qual os agentes podem elaborar uma imagem de “normalidade” sem referência aos
valores de equilíbrios de longo período, que não são operacionais no âmbito
comportamental [...], normalidade keynesiana é uma característica do curto
período, e não do longo. (CARDIM DE CARVALHO, 2003, P.55)

Importante assinalar também, que além da ingerência do Estado na economia para corrigir
as flutuações econômicas de curto prazo, cabe a ele, principalmente, promover objetivos de longo
prazo, como o crescimento e o desenvolvimento econômico. Embora a economia ocupe posição
privilegiada e estratégica no âmbito da política pública, convém registrar que a política econômica
é tão somente um compartilhamento da política pública.
[...], ela se integra em um quadro mais amplo, a que Watson dá a denominação
abrangente de política pública, “uma expressão usada em sentido amplo
envolvendo todos os fins e aspirações gerais de uma sociedade moderna, [...]. Esta
ampla expressão inclui a política das relações externas, a política de defesa
nacional, a política social, e todo um conjunto inter-relacionado de ações públicas
dentro do qual se situa a política econômica (ROSSETTI, 1987, p.28)

Não podemos esquecer que o mantra keynesiano fora, já faz algum tempo, substituído pela
corrente neoliberal, a qual, por seu turno, contraria radicalmente as proposições defendidas pelo
Welfare State, tendo em vista que a primeira defende redução do tamanho e do papel do Estado,
redução do déficit das contas públicas através de meta fiscal, abertura da economia,
desregulamentação, privatizações, entre outras. Assim, em diversos países, a rigidez da política de
gastos convergente com a meta fiscal, acaba prejudicando outros objetivos da própria política, entre
os quais podemos destacar aqueles de cunho social como assistência e proteção social, ciência e
tecnologia, meio ambiente, segurança pública etc.
163

Além do mais, devemos considerar, como é o caso do Brasil, que na ausência de um plano
estratégico de Estado, a política pública submete-se à descontinuidade gerencial e administrativa
dos governos.
A agenda política corresponde ao conjunto de assuntos e problemas que os gestores
públicos e a comunidade política entendem como mais relevantes em dado
momento e, não necessariamente, a lista de preocupações da sociedade ou os
destaques da imprensa [...]. Afinal, o reconhecimento de uma questão social como
problema de governo ou Estado não é um processo simples e imediato, que
responde automaticamente às estatísticas disponíveis, por mais reveladoras que
sejam da gravidade da questão, [...]. Não é a vontade de um técnico do setor
público, um pesquisador acadêmico ou governante eleito, com conhecimento
empírico consistente da realidade ou visão ousada, que garante imediatamente sua
incorporação na agenda formal de governo (JANNUZZI, 2011, p.260)

Além do mais, no Brasil, concomitante à desigual repartição de renda no país, um amplo


leque de problemas urbanos e sociais ainda comprometem as condições de vida – sobretudo nas
áreas metropolitanas – de milhares de habitantes, sobressaindo a população de baixa renda.
Acrescenta-se ainda, o fato de que milhares de pessoas residentes nas aglomerações subnormais,
carecem dos serviços públicos de esgotamento sanitário, coleta de lixo, água potável, segurança
pública, isto sem contar com a precariedade e limitado acesso aos serviços públicos de saúde,
educação, transporte e infraestrutura urbana. A estes problemas, devemos também incluir a
existência de acentuados desequilíbrios regionais e de um enorme distanciamento da renda entre os
mais ricos e os mais pobres, motivo pela qual, o desenvolvimento socioeconômico não foi capaz de
alcançar milhões de brasileiros.
[...] a política social tem papel estratégico como força motriz do desenvolvimento
nacional mediante seus resultados na ampliação da justiça social, na distribuição
da renda e no crescimento da economia, reafirmando-se como indispensável e
estratégico não apenas para enfrentar situações conjunturais adversas, como
também para criar os alicerces da construção de uma nação econômica e
socialmente mais forte e democrática. (ABRAHÃO DE CASTRO, 2013, p.193)

Em relação à política social, podemos compreendê-la através do seu recorte setorial


constituído pela política social e de promoção social, e das denominadas políticas transversais.
Entretanto, o governo federal foi obrigado a adotar um conjunto de medidas restritivas necessárias
para conter a continuidade do seu resultado fiscal primário (déficit), como também a expansão do
seu endividamento interno, pois, entre os anos de 2007 até 2016, pagou pelo serviço da dívida
(juros) o total de R$ 2.614 trilhões (RAMOS, 2018).
Em 2015 e 2016, mesmo com as medidas adotadas pelo governo no âmbito do
chamado ajuste fiscal, não só a crise econômica se intensificou, mas também as
contas públicas pioraram. Apesar desse quadro recessivo, o governo manteve um
conjunto de medidas econômicas muito restritivo, sendo pró-cíclico, e uma aposta
de retomada da confiança dos agentes econômicos. Diante desse quadro recessivo
a e da deterioração fiscal, o governo elaborou e aprovou o novo regime fiscal, o
qual determina um teto para gastos públicos por 20 anos. (RAMOS, 2018, p.2).
164

Assim, as medidas adotadas pelo governo federal de acordo com o Novo Regime Fiscal
(Emenda Constitucional 95) impactariam direta e negativamente os investimentos públicos, como
também as áreas da saúde e da educação. Afinal, o ajuste fiscal previa o congelamento dos gastos
públicos para um período de vinte anos (2016 – 2036). Diante disso, se as políticas sociais
avançaram durante os governos petistas, com a aprovação e implantação do NRF as mesmas
estariam sujeitas à regressão.
Com a aprovação da Emenda Constitucional 95, que define o teto dos gastos
públicos por 20 anos e a ascensão de um governo de extrema direita, com a
proposta em tramitação no congresso para a reforma da previdência, são colocados
desafios complexos à política de assistência social. Se a modernização
conservadora permitiu, nos seus limites, saltos à diante, a ofensiva conservadora
em tela se encaminha para intensiva regressão dos direitos relativos à política de
assistência social brasileira (MENDES da SILVA, 2019, p.426.).

Entretanto, mesmo com o ajuste fiscal, a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) mais que
dobrou, pois de R$ 2.313 trilhões em agosto de 2010, aumentou para R$ 5.804 trilhões em 2018. A
dívida líquida interna total – inclui o Governo Federal, mais o Banco Central, os governos Estaduais
e Municipais e as Empresas Estatais – como porcentagem do PIB, aumentou de 40,2% em 2016,
para 63,4% em 2018. (Banco Central do Brasil - BACEN)

O desenvolvimento econômico e social brasileiro em tempos de pandemia de COVID


– 19.
Após ter alcançado uma excepcional expansão do PIB de 7,5% em 2010, a economia
brasileira ingressou doravante num ciclo de baixo crescimento econômico e de desemprego elevado,
além do que, com a deterioração das contas públicas o governo federal foi obrigado a adotar rígida
disciplina fiscal (2014), a qual, por sua vez, combinada com o esgotamento do modelo de
crescimento econômico baseado no consumo, limitaria ainda mais a possibilidade de crescimento
econômico para dentro. Assim, em virtude do ajuste fiscal e com o esgotamento do crescimento
baseado no consumo:
a) Economia do país sofreu forte retração no consumo: 2015 – 2016, acumulando no
período uma recessão de -3,5% a.a e -3,2% a.a respectivamente; (IPEA – Carta de
conjuntura de outubro de 2022);
b) Taxa de desocupação aumentou de 7,4% em 2015, para 11,2% em 2016; (IPEA –
Carta de conjuntura de outubro de 2022);
c) Inflação medida pelo INPC oscilou entre a mínima de 5,5% a.a (2013) para a máxima
de 11,2% a.a em 2015; (IPEA – Carta de conjuntura de outubro de 2022);
d) Dentre os componentes do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o item
alimentação, em 12 meses, acumulou taxa de variação de 10,45 a.a em 2010 e, de
165

12,0% a.a em 2015, reduzindo desta forma o poder de comprar das classes de renda
mais baixa; (IPEA – Carta de conjuntura de outubro de 2022) e
e) Participação da indústria de transformação no PIB, após ter atingido o seu ápice de
35,9% (1985), reduz-se apenas 12,2% (2018) (IPEA).
É oportuno acrescentar, também, que em se tratado do setor externo da economia brasileira
em porcentagem das exportações totais de mercadorias, os produtos industrializados que
respondiam por 51,9% em 2000, reduziram a sua participação para 34% em 2019, contudo, os
produtos primários que no ano de 2000 representavam 22,3%, aumentaram a sua participação para
34,9% em 2019 (IPEA – SERIES ESTATISTICAS CONJUNTURAIS)
A quantidade de pessoas de 14 anos ou mais de idade, desocupadas na força de trabalho,
aumentou em dezembro de 2012 de 6,7 para 12,4 milhões de pessoas em dezembro de 2018. (IPEA
– SÉRIES ESTATISTICAS CONJUNTURAIS). De acordo com o Instituto de Estudos do Trabalho
em Sociedade (IETS), a população brasileira em situação de pobreza no país havia reduzido de 58,7
milhões em 2004, para 27,0 milhões de pessoas em 2014, das quais, 10,1 milhões residiam nas áreas
metropolitanas. Entre outros indicadores, a desigualdade socioeconômica ainda existente no país
pode ser examinada através da quantidade de pessoas possuidoras de plano de saúde entre 2017-
2018 (IBGE – Pnad Contínua):
a) em relação à população total, apenas 25,9%;
b) entre os residentes na área urbana 29,2%;
c) entre os residentes na área rural 7,1%; e
d) da raça/cor branca 35,7% e, da raça/cor preta/parda somente 17,9%.
A desigualdade socioeconômica também registra sua presença, quando se compara o
rendimento mensal real efetivamente recebido em todos os trabalhos por raça/cor.

Tabela 1: Brasil, rendimento mensal real das pessoas de 14 anos ou mais de idade, efetivamente recebido
em todos os trabalhos por cor ou raça: 2012 e 2018.
Ano Variação %
Raça/Cor
2012 2018 2012/2018
Branca 3.156 3.467 9,8
Preta 1.822 1.943 6,6
Parda 1.795 1.964 9,4
Total 2.472 2.660 7,6
Fonte: IBGE – PNAD Contínua, Elaboração dos autores

Como se não fosse suficiente, coexistindo com a expressiva desigualdade pessoal/família


da renda, podemos ainda vislumbrar outras faces da desigualdade, como é o caso da regional,
quando examinada sob o prisma do acesso aos serviços de saneamento básico. É visível a
166

discrepância entre as regiões da federação brasileira, sobretudo quando se compara a região


Sudeste-Sul com as demais grandes regiões.

Tabela 2: Proporção de pessoas residentes em domicílios sem acessos aos serviços de


saneamento básico – 2018
Ausência de abastecimento
Ausência de coleta direta Ausência de abastecimento
Região de água por rede geral
ou indireta de lixo (%) de água por rede geral (%)
(%)*
Norte 21,3 41,8 79,3
Nordeste 18,6 20,7 57,1
Sudeste 3,3 7,7 11,8
Sul 5,7 11,5 33,8
C.Oeste 7,2 12,5 45,3
FONTE: IBGE/ Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Elaboração dos autores
*Esgotamento sanitário por rede coletora pluvial ou fossa ligada a rede.

Enfim, diante de um crescimento econômico anêmico, elevada taxa de desemprego, fraco


desempenho e baixo crescimento da indústria de transformação, exportações de produtos primários
(commodities) superando as exportações de produtos industrializados, elevado nível de
endividamento do Governo Federal, baixos salários convivendo com maior instabilidade dos
preços, entre tantas outras questões, assumia o comando do governo um novo presidente. Nem bem
assumira o cargo de Presidente da República do Brasil, a liderança e a capacidade de gestor público
de Jair M. Bolsonaro seriam testadas severamente com a deflagração de uma grave crise sanitária
global provocada pelo COVID-19, tanto que, em comunicado à imprensa “O COVID-19 lança a
Economia Mundial na Pior Recessão desde a Segunda Guerra Mundial “ de 8 de junho de 2020, o
Banco Mundial afirmara que:
The blow is hitting hardest in countries where the pandemic has been the most
serve and where there is heavy reliance on global trade, tourism, commodit
expports, and external finacing. While the magnitude of disruption will vary from
region to region, all EMDEs have, vulnerabilities that are magnified by external
shocks. Moreover, interruptions is schooling and primary healthcare access are
liked to have lasting impacts on human (WORLD BANK, 2000).

Este cenário não seria tão diferente para o Brasil, posto que, além dos problemas
mencionados anteriormente (ainda que resumidos), o país estaria sob o comando de um ex-militar
liberal negacionista.
Esse negacionismo que foi adotado pelo atual governo já na campanha eleitoral,
com seu desprezo pelas universidades, pela pesquisa cientifica, pelas comunidades
indígenas, LGBT, populações de rua, mulheres em situação de violência etc,
agrava-se em tempos de pandemia, quando existe maior necessidade de um Estado
presente que garanta o exercício dos direitos (CAPONI, 2020, p.210 – 211).

No jornal da USP de 22/02/2021 (sítio eletrônico) matéria publicada por Júlio Bernardes
intitulada “Tensões políticas levaram Brasil a fracassar no combate à covid-19” menciona relatório
167

produzido por pesquisadores de 16 países incluindo pesquisadores da Unicamp e da USP, o qual,


concluirá que:
O Brasil é um dos maiores fracassos no combate à covid-19, ao lado dos Estados
Unidos. [...], as tensões políticas levaram a polêmicas sobre o isolamento social e
uso de medicamentos e causaram danos extensos e profundos no combate à doença
e agora prejudicam o planejamento da vacinação. (BERNARDES, 2021).

Enfim, nos últimos quatro anos (2019-2021):


a) O total de pessoas mortas no país por COVID-19 somou 616.018 pessoas;
b) Entre março de 2019 a março de 2020, a quantidade de pessoas em situação de rua
aumentou de 202.631 para 221.869, segundo a Sociedade Brasileira para a
Solidariedade;
c) Mais de 33 milhões de pessoas encontravam-se entre 2021-2022 em situação de
Insegurança Alimentar Grave e 32 milhões de pessoas foram identificadas na situação
de Insegurança Alimentar Moderada (PENSSAN, 2022);
d) O valor da cesta básica apurado pelo DIEESE em março de 2022 era de R$ 761,19 em
São Paulo e R$ 750,71 no Rio de Janeiro;
e) A taxa de desemprego caiu de 12,8% em 2019 para 8,7% em 2022, contudo, o
rendimento médio do trabalhador reduziu-se de R$ 3.002 entre jan-mar 2020, para R$
2.737 entre jul-set de 2022;
f) Em % do PIB, a Dívida Bruta do Governo Central aumentou de 68,7% em 2019 para
74,3% em 2021.
Assim, podemos verificar que a economia brasileira já apresentava variado leque de
problemas, assim como, a área social, também delineava uma situação deveras inquietante e, com
a pandemia da Covid-19, este quadro parece-nos ter se agravado.

Considerações finais
A pesquisa apresentada demonstra os graves e profundos desafios que se impõe ao Brasil no
período pós-pandemia de COVID-19, resultado de um processo econômico-social iniciado anos
antes com medidas econômicas muito restritivas que acabaram ocasionando em aprofundamento
dos sérios problemas fiscais enfrentados em meados dos anos 2015-2016, além de deteriorar o
desenvolvimento social obtido anos antes. O fato é que as medidas neoliberais implementadas pelo
Estado não foram eficazes na resolução dos problemas que se apresentavam naquele momento à
sociedade brasileira.
Já gravemente afetado por esse contexto, o Brasil se deparou com as emergências sanitárias
impostas pela pandemia de COVID-19, tendo no comando do país um governo que gerou inúmeras
turbulências durante um processo que já se apresentava bastante doloroso. Isso porque a postura
política adotada pelo governo central foi de total descrédito da gravidade da COVID-19, o que
168

ocasionou a perda de milhares de vidas e fez com o Brasil figurasse dentre os países de maior
fracasso no combate à pandemia. Os dados secundários demonstraram que essa postura, que na
prática se traduziu pela total ausência de políticas públicas sociais eficazes, gerou diversos
retrocessos na sociedade brasileira, como o aumento de 10% na população de rua entre os anos de
2019 e 2020, a drástica elevação no número de pessoas com algum tipo de insegurança alimentar
etc.
Soma-se a isso a filosofia neoliberal capitaneada pelo ministro da fazenda Paulo Guedes,
que trabalhou pela construção e fortalecimento do dilema entre economia x saúde, como se a escolha
de uma dessas realidades excluísse a outra e vice-versa. Tal discurso mostrou-se contraditório e
ineficaz, sendo que as decisões tomadas pelo governo central no sentido de privilegiar a economia
não tiveram os efeitos positivos aventados, ao contrário: os números da economia brasileira
pioraram, com considerável elevação da dívida pública, precarização do emprego, o que fica
demonstrado pela retração na renda média do trabalhador brasileiro no período e, ainda, piora
acentuada dos índices de inflação, sobretudo nos itens da cesta básica.
Essas reflexões apontam na direção da insuficiência e ineficácia de medidas de cunho
neoliberal para a geração de desenvolvimento social e econômico em momentos de atipicidades,
conforme o que vivenciamos durante a pandemia. Nesse contexto, ficou demonstrado que o Estado
deve exercer seu protagonismo para a identificação dos problemas públicos que são, de fato,
emergentes e que devem ser prioritariamente colocados na agenda de políticas públicas para serem
enfrentados com tempestividade, de modo que o bem-estar das pessoas, a justiça social, o equilíbrio
econômico e a sustentabilidade ambiental estejam preservadas. Aventar que o mercado possui
condições de criar ambiente propício para o restabelecimento do equilíbrio necessário para o
desenvolvimento social e econômico de uma sociedade é um despropósito. Os anos de pandemia
no Brasil demonstraram que, se o Estado não está fortalecido para atuar com políticas públicas
maduras, eficazes e centradas no ser humano, a desigualdade social aumenta, pois em momentos de
crise o mercado atua para se proteger e fortalecer as estruturas de capitais mais consolidadas,
retraindo investimentos e protegendo-se em títulos da dívida pública que irão aprofundar os gastos
com pagamento de juros pelo Estado, aumentando a concentração de renda e causando ainda mais
desequilíbrios na medida em que retira recursos do circuito produtivo, de geração de emprego, renda
e desenvolvimento.

Referências
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Econômico. São Paulo: Editora Fundação Persy Abramo, 2013.
BACEN: Banco Central do Brasil. Séries Temporais. Brasília: BACEN, 2022. Disponível em:
https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=
prepararTelaLocalizarSeries. Acesso em: 8 dez. 2022.
169

BERNARDES, Júlio. Tensões políticas levaram Brasil a fracassar no combate à covid-19,


aponta relatório. Jornal da USP, São Paulo, 22 fev 2022. Ciências. Disponível em:
https://jornal.usp.br/ciencias/tensoes-politicas-levaram-brasil-a-fracassar-no-combate-a-covid-19-
aponta-relatorio/. Acesso em: 8 dez. 2022.
CAPONI, Sandra. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Instituto de
Estudos Avançados, São Paulo, 34 (99), p. 209-223, jul. 2020. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ea/a/tz4b6kWP4sHZD7ynw9LdYYJ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 8
dez. 2022.
CARDIM DE CARVALHO, Fernando. Keynes e o Longo Período. IN: LIMA, Gilbert Tadeu;
SICSÚ, João (org.). Macroeconomia da empresa e da renda: Keynes e o Keynesianismo,
organização de Gilbert Tadeu Lima e João Sicsú – Barueri, SP: Manoele, 2003.
MENDES DA SILVA, Mossicleia. O Plano Brasil sem miséria e a modernização conservadora
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DIEESE: Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Cesta básica de
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Domicílios – Pnad Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, 2022. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-
domicilios-continua-mensal.html?=&t=destaques. Acesso em: 8 dez. 2014.
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. PEAD/Dimac Séries Estatísticas
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Acesso em: 8 dez. 2022.
170

WONNACOTT, Paul. Economia. Tradução de Yeda Rorato Crusius et al. São Paulo: Mc Graw –
Hill do Brasil, 1982.
171

LEI Nº 9.249/1995: A ISENÇÃO DOS LUCROS E DIVIDENDOS COMO


FORTALECIMENTO DO PRIVADO EM DETRIMENTO AO ORÇAMENTO E
ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS
Flávia Fernanda Benetti Castro37

Introdução
Verificar as lacunas no orçamento público, especialmente se observarmos um período em
que o país atravessou crises sanitárias e sistêmico-econômicas com a SARS-CoV-2 (COVID-19), é
elementar para desvendar as razões dos profundos impactos na renda, na saúde, no saneamento e
na segurança pública da maioria dos brasileiros. Em suma, não há como analisar o desenvolvimento
político, econômico e social do Brasil, pós-redemocratização ou ainda, como dito, particularmente
nos últimos anos, sem perpassar por uma investigação crítica e à raiz do problema, qual seja: a
desigualdade social ímpar que é perpetrada e incentivada pelas leis vigentes que a fomentam ao
invés de dizimá-la.
Um destes exemplos legislativos é a Lei nº 9.249/1995 (BRASIL, 1995) que isenta
dividendos e abranda a tributação sobre os lucros, vigente em nosso ordenamento jurídico desde
dezembro de 1995, ininterruptamente. O sistema tributário brasileiro é complexo e mereceria, por
si só, uma análise particular. Entretanto, cabe pontuar algumas de suas características para que se
comece a compreender as problemáticas em torno da lei ora trabalhada, sendo elas: a equidade, a
progressividade e a capacidade contributiva. Estes são princípios que, teoricamente, conforme
preveem a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e o Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966),
devem permear toda e qualquer norma que regulamenta a instituição e a cobrança do Imposto sobre
a Renda da Pessoa Física e da Pessoa Jurídica. Porém, como será perquirido, são princípios ausentes
na lei que isenta de tributação os dividendos – que são ganhos auferidos pelas pessoas físicas no
rateio dos lucros.
É necessário examinar, ainda, o porquê esta lei permanece vigente há quase trinta anos, e
assim continuou mesmo nos momentos em que o Estado mais precisou abastecer seus cofres para
fomentar políticas públicas de transferência de renda e de garantia de acessos básicos a direitos
sociais. Para isso, a problemática em torno da lei de isenções deve percorrer análises sobre Estado
e agenda política prioritária a fim de levantar hipóteses reais e materiais aptas a responder estes
questionamentos. Com isso, a partir de uma perspectiva jurídica sobre os princípios e elementos
que rondam o direito tributário brasileiro e, sobretudo, o Imposto sobre a Renda, paralela a um
levantamento bibliográfico e literário sobre conceitos de Estado e governança, é que se cumprirá o

37
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) - Unesp/Franca. Graduada em Direito e Mestranda pelo Programa
de Planejamento e Análises de Políticas Públicas (PPG-PAPP) - Unesp/Franca.
[email protected].
172

objetivo de compreender o porquê da permanência da Lei nº 9.249/1995 (BRASIL, 1995) e seus


ideias de manutenção de desigualdade em aprofundamentos neoliberais de modos relacionais por
todos esses anos. A necessidade dessa compreensão se pauta em uma urgência histórica, pós crise
(crise esta ainda em curso, mesmo em menor grau), de apanhar todos os fatores que poderiam ter
amenizado seus impactos, mas, por escolha legislativa e prioridade de governo e Estado, não se fez.

Desenvolvimento
Supõe-se que esta análise totalizante, atrelada às teorias de Estado e aos princípios jurídicos-
tributários, encontrará razões técnicas, conceituais e legais que fundamentam a crítica à Lei nº
9.249/1995 (BRASIL, 1995). Assim, o problema a ser investigado é ainda mais estrutural: o porquê
a lei de isenção fiscal de dividendos permanece na estrutura do Estado desde 1995, mesmo sem
supostas razões? Quando analisados o conceito de Estado dentro da estrutura capitalista como forma
política de perpetuação da ordem dominante, possíveis respostas saltam aos olhos. Ainda que
existam diferenças consideráveis e elementares entre os governos federais dos últimos vinte anos,
um fator os unem: todos operaram dentro da ordem.

Da Lei nº 9.249/1995
Publicada em dezembro de 1995, a Lei nº 9.249/1995 “altera a legislação do imposto de
renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e dá outras
providências” (BRASIL, 1995). Em trinta e seis artigos alcança o objetivo delimitado na ementa,
mas é no artigo 10 que dispõe:
Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do
mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com
base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do
imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda
do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.
(BRASIL, 1995).

Com isso, há, pelo menos, dois imbróglios a serem atravessados no artigo acima transcrito:
a forma como a Lei nº 9.249/1995 (BRASIL, 1995) institui a tributação sobre os lucros e, ainda, a
isenção que recai sobre os dividendos. O primeiro sustentaria tese própria. É sobre o segundo
imbróglio que recai este texto. Os dividendos, enquanto parcela do lucro embolsada pelos
beneficiários, sejam eles donos, sócios ou acionistas, não sofrem nenhuma tributação no instante
em que se concebem como renda de pessoa física. Embora devam ser declarados, enquadram-se
como “rendas não tributáveis” no “informe de rendimento isento”, desde 1996, com a produção de
efeitos da lei. Em síntese: o capital de uma empresa ou investidora, quando não reinvestido, ou seja,
quando não retorna à própria pessoa jurídica na forma de capital constante (parte do valor do capital
empregada na compra de meios de produção, como maquinarias, tecnologias, galpões) ou de capital
173

variável (fração do capital que é despendida na compra de mais força de trabalho, responsável pela
reprodução ampliada do capital) (MARX, 2011), mas passa a integrar a renda física do dono, sócio
ou acionista, chama-se dividendo e não é tributado, mesmo enquadrando-se no conceito de “renda
de pessoa física”. Dividendos também não sofrem nenhuma tributação pelo Imposto sobre a Renda
da Pessoa Jurídica.
A possibilidade de tributação dos dividendos pelo Imposto sobre a Renda da Pessoa Física,
além de compor uma necessidade social em correspondência aos objetivos das políticas públicas e
sociais, encontra respaldo técnico-jurídico. Isto porque não ocorreria em bitributação, vez não haver
nenhum outro tributo que incida sobre eles, bem como pela consonância dos próprios princípios
tributários que preveem justiça fiscal pautada na progressividade (quanto maior a renda, maior a
incidência) e na capacidade contributiva (incidência a cada qual conforme suas possibilidades)
(CANAZARO, 2015). No mais, diferente da imunidade tributária, que é constitucional e só pode
ser reavaliada em uma nova Constituição, a isenção é opção legislativa que pode ser retirada do
ordenamento a qualquer tempo. Mas, se mesmo havendo necessidade histórica de fortalecimento
dos cofres públicos, acompanhada de possibilidades jurídicas para tal, por qual razão a Lei nesta
seção apresentada permanece vigente há quase trinta anos, incluindo períodos críticos de crises
sistêmicas e sanitárias? É a partir de uma análise sobre estrutura de Estado que tal questão se faz
compreendida.

Do Estado
Para os fins deste artigo, considera-se que o Estado, ao lado de elementos como a ideologia,
a cultura, a família, a igreja e o direito, por exemplo, mantém a ordem da categoria fundante a nossa
sociedade capitalista (que é a exploração do trabalho e a sobreposição da acumulação de capital),
ou, ainda, nas palavras de Karl Marx, “religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte, etc.,
são apenas formas particulares da produção e caem sob sua lei geral” (MARX, 2004, p. 106). Ou
seja, diferente das divergências elementares que perpassam governos, o Estado, no âmbito da
sociedade capitalista, mantém-se no objetivo principal de manutenção do abismo social e na
apropriação da desigualdade social como forma de manter a riqueza na mão dos poucos e já
historicamente conhecidos.
Ainda em Marx, na “Ideologia Alemã”, ao lado de Friedrich Engels, o Estado se apresenta
como a expressão de uma forma social, ou seja, o Estado é um produto da sociedade e não contrário
(ENGELS; MARX, 1998). Com isso, todas e quaisquer ações estatais, incluindo a agenda de
políticas públicas e as legislações vigentes, compõem um projeto maior, sendo, o Estado, mediador
da concretização de uma ordem dominante. A despeito:
A forma através da qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os
seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época,
conclui-se que todas as instituições públicas têm o Estado como mediador e
adquirem através dele uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa sobre
174

a vontade e, melhor ainda, sobre uma vontade livre, desligada da sua base concreta.
O mesmo acontece com o direito que é por sua vez reduzido à lei. (MARX;
ENGELS, 1998, p.124).
Neste sentido, é por esta razão que o aparelho do Estado perpassa as figuras do governo,
mantendo-se intacto, apesar das diferenças que etapas governistas trazem, em especial, em suas
agendas políticas. O sistema tributário nacional é exemplo vivo disto, vez que se mantém quase que
intocável desde a vigência do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966) e da Constituição
Federal (BRASIL, 1988). Assim, são mais de décadas de governos que não têm o condão de alterar
uma superestrutura estatal de fiscalização regressiva, como também a exemplo da isenção dos
dividendos pela Lei nº 9.249/1995 (BRASIL, 1995). Nas palavras do professor e jurista Alysson
Leandro Mascaro (MASCARO, 2013):
O Estado de revela como um aparato necessário à reprodução capitalista,
assegurando a troca das mercadorias e a própria exploração do trabalho. As
instituições jurídicas que se consolidam por meio do aparato estatal – o sujeito de
direito e a garantia do contrato e da autonomia da vontade, por exemplo –
possibilitam a existência de mecanismos apartados dos próprios explorados. (...)
Não é apenas um aparato de repressão, mas sim de constituição social. (...) O
Estado, majorando impostos, mantém a lógica do valor (MASCARO, 2013, p.
18/20).
Assim, a decisão política de isentar dividendos, deixando de abastecer os cofres públicos
com orçamento que poderia ser destinado à ampliação, criação ou fomento de políticas públicas - a
tal da natureza social das finanças trabalhada pela professora Maria Chaves Jardim (JARDIM, 2011)
- é condizente com a forma mercantil operante.

Do fortalecimento do privado em detrimento ao orçamento e às políticas públicas


A partir da definição de Estado adotada é que se torna possível compreender os papeis
exercidos por esta instituição, dentre eles o de promoção de bem-estar social, desenvolvimento
socioeconômico e criação ou fomento de políticas públicas e sociais.
Como elaborado na seção acima, o Estado brasileiro atua ativamente, junto ao direito e
outras instituições, na superestrutura para manutenção da ordem vigente e não pode ser modificável
radicalmente apenas com a alteração de figuras governamentais. A partir disso, a promoção do bem-
estar social e o desenvolvimento socioeconômico estão atrelados à limitação desta figura estatal
desenhada. Políticas e agendas públicas podem ser pouco ou melhor valorizadas, priorizando ou
não acesso a direitos sociais básicos, a depender do plano de governo do executivo ou legislativo
em mandato. Entretanto, o que se pretende destacar é que, ainda com excelência em programa, a
estrutura do aparelho estatal, por si só, pela forma como opera dentro do modo de produção atual,
barra alterações estruturais.
A Era Neoliberal que atinge com mais força o Brasil a partir da década de 90, que coincide
com políticas legislativas como a de criação da Lei nº 9.249/1995 (BRASIL, 1995), ruma à primazia
das empresas transnacionais; à privatização; à retirada de direitos trabalhistas com o
175

aprofundamento da miséria; às flexibilizações dos contratos de trabalho; ao sucateamento de bens


básicos à sobrevivência; ao achatamento dos salários e da capacidade de consumo; à deterioração
ambiental; e, principalmente, ao enxugamento e enfraquecimento da máquina pública. Isso tudo
reforça ainda mais a figura do Estado ora trabalhada.
Nas palavras da economista Tatiana Brettas (BRETTAS, 2020):
Para chegarmos às particularidades do neoliberalismo no Brasil, guardadas as
devidas proporções em cada local que o neoliberalismo foi ganhando
materialidade, as mudanças implicaram, para além da adoção de medidas
privatizantes e liberalizantes, um reforço à busca por saídas individuais, no
aumento da exploração da força de trabalho e a um tratamento fragmentado das
expressões das questões sociais, privatizando também das formas de
enfrentamento dados a esta. (...) Aos Estados dependentes, cabia uma
reconfiguração que passava pelo aumento da dívida pública como forma de
justificar sucessivos ajustes fiscais, alimentando a rentabilidade financeira e
legitimando a canalização de recursos do fundo público para o capital, a condução
de contrarreformas e a contenção de gastos sociais. (BRETTAS, 2020, p. 159).

Assim, com a ascensão e instalação do modelo neoliberal, uma nova concepção de


desenvolvimento nacional – ou seja, neodesenvolvimentismo – resta resumida e limitada às mazelas
que carrega em si, o que respinga no modo de encarar os gastos sociais, como transcrito
anteriormente. Prova disso, é que a escolha pelo esvaziamento dos cofres públicos através da não
tributação sobre os dividendos, compõe uma forma-política e jurídica convergente ao
neoliberalismo alastrado em território brasileiro há mais de três décadas.
A partir desta escolha legislativa, pautada numa estrutura estatal subserviente, é que se
verifica o fortalecimento do capital privado daqueles que recebem montantes de dividendos nunca
tributados em detrimento ao orçamento público e, consequentemente, às políticas públicas. Com
uma estimativa levantada em audiência pública no Senado Federal, foi possível esboçar que o Brasil
deixa de arrecadar R$43bi (quarenta e três bilhões) ao ano com a Lei nº 9.249/1995 (BRASIL,
1995). Esta quantia apenas fortalece os capitais privados, fomenta e especula dívidas públicas e, na
contramão, dentro dos princípios neoliberais de Estado, enfraquece políticas mínimas – ainda que
reformistas – de equidade social. Pode-se constatar, assim, que dentre tantos suspeitos crimes
públicos durante a condução da pandemia pela COVID-19, um deles, com certeza, foi a manutenção
da lei que isenta dividendos no ordenamento jurídico brasileiro, enquanto políticas de renda foram
escassas, insuficiência, pormenorizadas, subestimadas e dizimadas.

Conclusões
Alicerçado em análises totalizantes e multidisciplinares sobre direito tributário, Estado e
orçamento público, foi possível compreender que a lei que isenta dividendos e abranda a cobrança
dos lucros tem razões históricas e materiais de ser – por isso permanece no ordenamento jurídico
brasileiro há quase trinta anos. Dentro de um pacote de políticas neoliberais, a Lei nº 9.249/1995
176

(BRASIL, 1995) auxilia no desequilíbrio da balança entre público e privado, sobrepondo os


interesses de capital às necessidades urgentes e imediatas da maioria social, das políticas públicas
e do acesso a direitos sociais. Com isso, faz-se urgente a retirada da lei de isenções do sistema
tributário nacional, para que se inverta o equilíbrio da agenda política de prioridades e para que a
incidência do Imposto sobre a Renda volte a pautar-se nos princípios constitucionais que a constitui
(progressividade, capacidade contributiva, justiça social, equidade tributária).
Por fim, embora se reconheça que apenas uma mudança estrutural na sociedade possua
condão de inversão radical na ordem de prioridades do público com o privado, alterações
legislativas já são boas formas de iniciar reparações históricas, transferência de renda,
fortalecimento de sistemas coletivos e gratuitos e achatamento da desigualdade social abismal
existente em nossa sociedade.

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177

IMPLEMENTAÇÃO DO AUXÍLIO EMERGENCIAL DURANTE A PANDEMIA


DE COVID-19 NO BRASIL: CRIAÇÃO, RESULTADOS E PROBLEMAS

Alexandra Valle Goi38


Isabella Neves39
Maria Yumi Buzinelli Inaba40
Sarah de Jesus Silva dos Santos41

Introdução
O presente artigo pretende analisar em detalhes o auxílio emergencial, apontar os seus
desdobramentos, implementação e efeitos, para compreender qual a sua capacidade de proteção
social no contexto da Pandemia de COVID-19 no Brasil, sendo este o objetivo final do trabalho.
No processo de indicar a efetividade e o resultado do auxílio emergencial, são averiguados os
impactos positivos da medida, os seus benefícios à população brasileira, assim como as dificuldades
de sua aplicação e os problemas que surgiram com ela, com a exposição, dessa forma, do caráter
dual da transferência de renda. Além disso, a metodologia empregada no texto consiste da crítica-
analítica, embasada em dados jornalísticos e numéricos e também em artigos científicos, de estudo
reflexivo e profundo sobre as informações obtidas.
Sobre o auxílio emergencial, o estudo parte da análise sobre o papel assumido ao Estado,
como torna-se interventor e protetivo da população em situação calamitosa, a fim de que descalabro
social não persista, contudo, subsistam a harmonia, bem-estar e coerência sociais. Isso diante do
histórico de negligência do Estado em agir e reparar as desigualdades e os graves problemas da
sociedade, em norma de visão neoliberal, de isolamento do Estado. Então, o programa discutido
assume relevância e essencialidade em nome do princípio da dignidade da pessoa humana, que está
contemplado no inciso III, artigo 1º, da Constituição Federal. Uma vez que são asseguradas
plenitude, felicidade e cidadania aos cidadãos, não pode ser negado o mínimo existencial para que
tenham condições de viverem com dignidade. O auxílio emergencial é imperativo, portanto, por dar
o mínimo para famílias sem renda, sem condições de subsistência, para aqueles em trabalho
informal, em posição vulnerável devido à COVID-19, e para os desempregados.

38
Graduanda em Direito pela UNESP. Email: [email protected].
39
Graduanda em Direito pela UNESP. Email: [email protected].
40
Graduanda em Direito pela UNESP. Email: [email protected].
41
Graduanda em Direito pela UNESP. Email: [email protected].
178

Um sério problema do auxílio emergencial é a sua brevidade e lentidão, isto é, a duração


limitada da política, além da ocorrência de fraudes no sistema e inacessibilidade em função das
plataformas digitais. Outro problema consiste da dificuldade em identificar os trabalhadores
informais, um dos grupos a receber o benefício. Por fim, também entende-se que, sem o auxílio
emergencial, o Norte e o Nordeste teriam sofrido perda de renda maior do que as demais regiões,
razão pela qual foi fundamental a esta categoria demográfica. Ademais, a Pandemia de COVID-19
tornou as relações de trabalho mais precarizadas, com o aumento da informalidade e das
desigualdades sociais, de forma que o auxílio emergencial contribuiu na tutela dos novos
marginalizados neste cenário.

Desenvolvimento
Em 2020, instituiu-se a Lei nº 13.982, a qual impôs o seguinte: “medidas excepcionais de
proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto
de 2019” (BRASIL, 2020). No texto da Lei, consta que deverá receber auxílio emergencial, por três
meses, no valor de R$ 600,00, o trabalhador que estiver em situação informal; com renda familiar
mensal per capita de até 1⁄2 salário-mínimo; que estiver na condição de MEI (microempreendedor
individual), de autônomo ou desempregado, sem receber seguro-desemprego; e os contribuintes
individuais da Previdência Social. Aqueles inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) e beneficiários
do Bolsa Família, desde que não recebessem outro tipo de transferência de renda, também poderiam
usufruir do auxílio emergencial. Além disso, foram concedidos R$1.200,00 às mães chefes de
família. É relevante ressaltar, como a própria Lei o faz, que o programa citado foi implementado
em virtude de um contexto pandêmico, o da Pandemia da Covid-19 (MOREIRA; PINHEIRO,
2020). Esta consistiu de situação epidemiológica de grave contágio e inúmeras mortes, em que
medidas de prevenção, de proteção e de contenção tiveram de ser adotadas pelo Estado brasileiro.
Diante de um contexto epidemiológico trágico, uma calamidade pública, o Estado não
poderia ficar inerte e inativo: a fim de apaziguar graves problemas, foi obrigado a agir, a ser
interventor, com medidas como o auxílio emergencial. Como disse Laura Carvalho (2020, p. 6),
houve “a valorização súbita dos sistemas públicos de saúde, das redes de proteção social, das
políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico e, de forma geral, do papel do Estado na
alocação dos recursos”. A partir disso, tanto no Brasil quanto fora dele, houve uma subversão do
Estado mínimo, que não reage às desigualdades, não protege a população e não propõe ações
positivas. Na visão de Carvalho (2020), um Estado de bem-estar social oferece serviços de educação
e saúde gratuita e universal, programas de assistência e de seguridade social. Em face da crise
sanitária, tornou-se difícil escapar deste modelo, porque caso o Estado não admitisse políticas de
subsídio para que a população ficasse em casa, para que os desfavorecidos tivessem alguma renda,
179

a sociedade entraria em colapso, com a dispersão ainda maior da crise. Ainda pode-se argumentar
que um Estado que cuide das desigualdades e dos problemas sociais não é importante apenas para
amenizar crises e calamidades, mas pelo princípio da dignidade. A fim de que todos vivam de forma
plena, sejam felizes e exercitem a cidadania, é necessário que tenham o mínimo e que tenham como
enfrentar os problemas postos, com o auxílio do Estado se for o caso. Quanto ao auxílio
emergencial, Laura Carvalho (2020, p. 67) afirma que, diante dos desafios da Covid-19, da
necessidade de quarentena e dificuldade dos mais pobres de ficarem sem trabalhar, da quantidade
muito alta de informais no país, das inúmeras mortes e risco de colapso do sistema de saúde, da
maior pobreza e fome, não havia outra saída senão a “combinação de medidas restritivas e a garantia
de uma renda mínima que garanta a subsistência”.
Sob a óptica do aparato legislativo, a dignificação laboral, de acordo com Gabriela Neves
Delegado (2015) possuiu um ensejo normativo e axiológico previsto no art. 1o, inciso III, da
Constituição Federal (BRASIL, 1988). Portanto, o valor fundamental do “direito ao trabalho digno”
está, formalmente, disposto no paradigma constitucional, no entanto, materialmente, a plenitude do
ofício é obstada pela informalidade agravada pelo cenário pandêmico. Em meio às turbulências
desiguais afloradas pela crise sanitária, a Lei 13.998/20 foi aprovada com o intuito de enfrentar, ao
menos minimamente, os nocivos efeitos da Pandemia, ressonantes no cotidiano dos empregados,
por meio do Auxílio Emergencial (BRASIL, 2020).
Nesse diapasão, o Auxílio Emergencial consolidou frutos benéficos às famílias
marginalizadas pelas instabilidades pandêmicas. Sendo assim, o artifício financeiro foi
imprescindível para a organização fiscal do mercado, bem como, principalmente, para ofertar
condições mínimas de dignidade aos trabalhadores e mães que vivem nas fronteiras da extrema
pobreza. No âmbito da Economia, Pedro Bresser, em entrevista para o Invest News, afirma que o
Auxílio Emergencial, quando vinculado à contrapartida fiscal, pode fruir impactos positivos no
mercado, tendo, como consequência, a queda das taxas de juros no futuro. Além disso, Rossano
Oltramari, sócio da 051 Capital, também reforça as prospecções favoráveis do dispositivo
emergencial, reiterando que a ininterrupção do Auxílio é profícua à bolsa nacional, haja vista que o
benefício agrega mais capital na economia e corrobora a fortificação da esfera em pauta
(TREVIZAN, 2021).
Do mesmo modo, é indiscutível a necessidade do Auxílio Emergencial em prover dignidade
e recursos aos trabalhadores informais e aos núcleos familiares segregados, os quais, por exemplo,
são chefiados por mães solo pretas. Assim, segundo a Nota de Política Econômica efetuada por
Luiza Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Ana Luíza Matos de Oliveira, o AE foi indispensável para
mitigar as decorrências econômicas da Pandemia e para atenuar a vulnerabilidade estrutural
feminina, sendo o único benefício que alentece as desigualdades de gênero, na vertente financeira,
fomentadas pela COVID-19 (NASSIF-PIRES, et Al. 2021). Logo, o artifício supracitado foi capaz
180

de medir os indicadores de pobreza e de pobreza extrema, ensejando índices nacionais


historicamente baixos.
Diante disso, o perfil das pessoas beneficiadas pelo auxílio e, consequentemente, as não
beneficiadas também, baseia-se nos preceitos contidos na Constituição Federal de 1988, com
destaque para o Art 6° que assegura direitos sociais como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer,
a segurança, a previdência social e a assistência aos desamparados (BRASIL, 1988). Logo, a Renda
Básica Emergencial atua como não apenas como um recurso provisório instaurado em tempos de
crise, mas seu objetivo principal está ligado com a mitigação de um problema estrutural que
perpassa a realidade brasileira há muito tempo: a desigualdade econômica e social.
No que diz respeito às dificuldades enfrentadas pelo auxílio, a rapidez de chegada aos grupos
mais afetados, sendo eles os trabalhadores informais, desempregados e famílias pobres ocupa
posição central na discussão (MARINS, 2021). Um modelo capaz de alcançar as classes mais
vulneráveis considerando suas particularidades e diferentes realidades regionais. Dessa maneira, o
governo federal identifica
três grandes grupos de beneficiários: as famílias cadastradas no Cadastro Único
para Programas Sociais; os beneficiários do Bolsa Família; e os trabalhadores
autônomos, informais e microempreendedores que não estão na base de dados do
CadÚnico (MARINS, 2021).

Como consequência dessa classificação, os dados demonstram que até o dia 14 de dezembro
de 2020, 67,9 milhões de pessoas haviam sido beneficiadas diretamente com o Auxílio Emergencial,
representando 1/3 da população brasileira. Desse total, 44% tinham entre 18 e 34 anos e 55% eram
mulheres. Entretanto, 57% dos beneficiários que solicitaram o auxílio via aplicativo eram homens
(GOV.BR, 2021). Ademais, um levantamento feito pelo Instituto Locomotiva revela que, entre as
pessoas negras que requisitaram o auxílio, 74% tiveram o pedido concedido. Entre as pessoas não
negras, a taxa de aprovação foi de 81% (TUON, 2020).
Segundo o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, ainda
que o Auxílio Emergencial não tenha sido criado como uma política exclusiva para o recorte de
gênero, a proteção das mulheres, especialmente mulheres negras, foi uma das consequências
positivas do benefício. Além disso, baseado em dados da Pnad Covid, do IBGE, o Centro releva
que, antes da pandemia, a renda do trabalho per capita de famílias chefiadas por homens brancos
era aproximadamente 2,5 vezes maior do que a de famílias lideradas por mulheres negras. Em
agosto de 2020, decorrente do auxílio, essa relação havia diminuído para 2,1 (FERNANDES, 2021).
Apesar da fundamentalidade do papel exercido pelo auxílio no período pandêmico, existem
pontos de ressalva acerca de seu funcionamento e estrutura que merecem maior atenção. Um dos
pontos de maior fragilidade da medida é referente à questão dos trabalhadores informais: o benefício
visava amparar esse grupo de trabalhadores que, com a paralisação dos mais diversos tipos de
atividade econômica, ficaram em situação de vulnerabilidade, incluindo, entre eles, os
181

microempreendedores individuais (MEIs), os contribuintes individuais do regime de Previdência


Social e os trabalhadores informais de baixa renda (SCHYMURA, 2020). Contudo, a dificuldade
de identificação desses trabalhadores, em especial do último grupo, evidencia um limbo da atuação
estatal quanto ao conhecimento e quantificação desses sujeitos, implicando em um descompasso
entre a realidade concreta e a formulação de políticas públicas. Esse grupo de “invisíveis” perante
ao Estado encontra-se principalmente na lacuna dos trabalhadores não formais e não vinculados a
programas sociais, como o Cadastro Único, estimados entre 15 e 20 milhões de brasileiros (CNN,
2020). Em uma perspectiva histórica, percebe-se as raízes dessa problemática no Brasil a partir da
década de 90, em que o neoliberalismo avançou e dificultou a implementação de certos direitos
sociais; houve um retrocesso quanto aos direitos trabalhistas, com jornadas de trabalho mais
difíceis, menos prerrogativas e mais informalidade, o que dá ensejo às disputas na sociedade entre
grupos para a definição do que o Estado fará para proteger ou não os mais vulneráveis (BRITO et
al, 2020). Dessa forma, a conjuntura pandêmica, resultante do pernicioso agravo da COVID-19, não
só expôs como a crise sanitária consumou um desigual estado de calamidade, mas também
intensificou a anomia subserviente à precarização do trabalho, fomentando, de acordo com
Bacchiegga, relações como, por exemplo, a informalidade, o empreendedorismo individual, o
trabalho autônomo e a terceirização (BACCHIEGGA et. Al., 2022). Nesse sentido, o nulo contato
social e presencial obstaculiza o exercício laboral íntegro de trabalhadores, os quais, segundo Marco
Natalino e Marina Brito Pinheiro, detêm uma renda informal condicionada pelas vias públicas
(NATALINO, et. Al., 2020). Consequentemente, o advento do estado de calamidade da Pandemia
suscitou intempéries inusitadas aos indivíduos mais vulneráveis, urgindo a tutela estatal em
reconhecê-los como sujeitos de direitos sociais. Sob a égide do paradigma estrutural urbano,
Bacchiegga afirma que tanto a especulação imobiliária como a gentrificação simbolizam fenômenos
exortados pela pandemia, os quais exteriorizam as construções desiguais no âmbito social. Ademais,
tendo em vista a emergente imprescindibilidade de reforçar o isolamento social e a reclusão
residencial, torna-se um entrave efetivar medidas sanitárias em detrimento de uma esfera nacional
demarcada por um elevado déficit habitacional. Logo, as discrepâncias citadinas, vinculadas ao
inerte amparo salarial dos trabalhadores precarizados, salientam como não só a pobreza, mas
também a pobreza extrema ressoam na realidade hodierna brasileira.
Graça Druck, em sua obra “Precarização e terceirização: faces da mesma realidade”,
caracteriza a Precarização Social do Trabalho como um fenômeno social, econômico e político que
foi respaldado pela dinamização do mercado capitalista em face da esfera neoliberal. Sendo assim,
a crise sanitária inflamou as relações laborais negligenciadas e, por consequência, atenuou a
proteção social dos trabalhadores, os quais, marginalizados pelas discrepâncias socioeconômicas,
recorrem ao auxílio financeiro como artifício uno de sobrevivência familiar (DRUCK et. Al., 2016).
Desse modo, faz mister apelar pela intervenção do Estado como agente tutelar responsável por
182

prover recursos econômicos, como, por exemplo, o Auxílio Emergencial, aos sujeitos de direitos
trabalhistas.
Da mesma forma, a dificuldade de operacionalização da transferência de renda à essa parcela
da população é reflexo da complexidade de se criar toda uma nova plataforma de programa social
efetiva e em tempo hábil à situação emergencial, já que, diferentemente dos beneficiados pelo
Auxílio que já estão cadastrados em outros programas sociais, não há uma base de dados sólida e
atualizada da população em situação de informalidade, não sendo os registros do MEI e as
contribuições do INSS suficientes nesse cenário, por não terem sido “bases de dados desenhadas
para dar suporte a programas sociais” (artigo 1). Essa situação apenas evidenciou o despreparo do
Estado em reconhecer e balizar uma recente tendência de fragilização das relações de trabalho, a
partir da informalidade e da terceirização.
Ainda quanto a questões logísticas, observou-se a dificuldade de se criar um sistema de
prevenção de fraudes eficaz e robusto no pouco tempo disponível (SCHYMURA, 2020), além do
destaque a uma das problemáticas mais basilares do Auxílio: a questão do acesso. Como consta na
Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de abril de 2020, (NATALINO,
PINHEIRO, 2020, p. 9) “[...] cerca de 34% da população abaixo da linha da pobreza não têm
nenhum tipo de acesso à internet, seja ela fixa ou móvel”. Nesse sentido, é nítido que a priorização
das plataformas digitais para cadastramento, atualizações e mesmo pagamento do benefício em
questão, apesar de aparentemente em conformidade com as medidas sanitárias do contexto
pandêmico, também escancara uma complexa teia de desigualdades.
Além da evidente problemática do aspecto material necessário para o acesso a esse serviço,
quanto à disponibilidade de internet e de dispositivos eletrônicos, há também um aspecto não
concreto: é necessário certo conhecimento e técnica, um “letramento digital”, para que se
compreenda e se consiga interagir com a plataforma, muitas vezes uma dificuldade em especial para
os mais idosos, de tal forma que “Muitas dessas pessoas enfrentam dificuldades em obter
informações necessárias à manutenção dos seus benefícios em situações normais, perdendo os
prazos para revisão cadastral e tendo seus benefícios bloqueados ou mesmo suspensos”, assim como
“[...] determinados aspectos da burocracia estatal são um grande obstáculo ao acesso a benefícios”
(NATALINO, PINHEIRO, 2020, p. 9).
É possível que as despesas sociais a mais e os programas pensados para lidar com a
desigualdade e com a vulnerabilidade no contexto pandêmico inspirem a tomada de políticas para
além dele, de forma a romper com ideologias neoliberais, que apregoam a existência mínima e
invisível do Estado, sem ações econômicas. O auxílio emergencial foi uma vitória dos movimentos
sociais e dos partidos políticos de esquerda, para oferecer mais proteção social à população,
entretanto, não é uma política emancipadora ou definitiva, por ser emergencial apenas, de caráter
insuficiente para garantir a manutenção da vida, e conformista, em razão de não romper com a
183

estrutura de sujeição e miséria de parcela da sociedade (BRITO et al, 2020). O que se espera, dessa
maneira, é que uma medida de assistência social, relevante para o momento ao qual foi destinada,
motive a criação de políticas cada vez mais emancipadoras, que combatam a desigualdade e a
pobreza no país.

Conclusões
Somente a partir desse panorama amplo pode-se compreender como resultado o aspecto
fundante do Auxílio: este, ao mesmo tempo, constitui e reflete a contradição social e histórica da
sociedade brasileira. Como se observou, ao mesmo tempo em que se nota sua fundamentalidade e
essência mobilizadora, observa-se sua frágil estruturação; ao mesmo tempo em que o Estado
percebe a necessidade de cuidar de seus vulneráveis, constata que não sabe nem ao menos identificá-
los, que ele próprio os negligencia; ao mesmo tempo em que a República Brasileira tem como um
de seus fundamentos a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das
desigualdades (art. 3º, inciso III da CF), é estruturada sobre estas exclusões.
Em síntese, tem-se que “efetivamente, as desigualdades (sociais, econômicas, políticas e
outras) na América Latina não podem ser analisadas exclusivamente como uma consequência do
sistema econômico, mas também como uma das causas estruturais de sua manutenção.” (DIEHL,
Rodrigo, p. 5, grifos nossos). Como resultado, só é possível a coexistência dual do caráter protetivo
fundamental desempenhado pelo Auxílio e sua incompletude, que descortina problemas mais
profundos da sociedade brasileira ao indicar a carência de medidas estruturais.

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Invest News, 11 fev. 2021. Disponível em: <https://investnews.com.br/financas/auxilio-
emergencial-em-2021-o-que-muda-e-quais-os-impactos-para-o-investidor/>. Acesso em: 4 nov.
2022.
185

TUON, Ligia. Negros pediram mais auxílio emergencial, mas brancos tiveram maior sucesso.
Exame, 2020. Disponível em: <https://exame.com/brasil/negros-pediram-mais-auxilio-
emergencial-mas-brancos-tiveram-maior-sucesso/>. Acesso em: 14 dez. 2022.
186

A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA PUBLICA NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO A


SAÚDE
Danúbia Brito Rodrigues Silva42
Carla Agda Gonçalves43
Josiani Julião Alves de Oliveira44
Pâmela Migliorini Claudino da Silva45
Adriana Giaqueto Jacinto46
Introdução
Esse trabalho é fruto de estudos e pesquisas desenvolvidas pelas autoras cujo foco perpassa
na discussão sobre os fundamentos das políticas públicas, com foco na política de saúde. Para tanto,
objetiva nesse artigo, apresentar breves considerações acerca das discussões sobre política pública
na perspectiva da efetivação ao direito, tendo como particularidade as políticas de saúde no contexto
brasileiro. Com isso, apresentaremos, inicialmente, uma breve contextualização da definição de
políticas públicas para diferentes autores, adentrando no debate sobre alguns apontamentos na
efetivação da política de saúde como um direito.
De acordo com Benedito e Menezes (2013) Políticas Públicas são ações e programas que
são desenvolvidos pelo Estado para garantir, dando materialidade aos direitos; na realidade
brasileira previstos na Constituição Federal promulgada em 1988, bem como regulamentada por
uma série de leis. Contudo, ao fazermos um retrospecto sócio-histórico das Políticas Públicas, seu
surgimento, ocorreu nos Estados Unidos com uma visão holística dos problemas sociais, tendo a
atuação do poder público na resolução de tais problemas.
As contradições da realidade demarcam que as Políticas Públicas trazem a concepção
eclética acerca da gestão pública sobre problemas sociais setoriais, em que o Estado é reconhecido
como o local de debate e resolução dos problemas existentes em uma determinada sociedade e, a
política pública é responsável pela identificação, planejamento e solução destes problemas através
de uma ação estratégica que envolva sociedade e Estado. (BENEDITO; MENEZES,2013). Neste
sentido, é uma forma de execução das decisões tomadas em sede de planejamento econômico, isto
é, como mecanismo de implementação das decisões sobre os rumos do desenvolvimento de um país
ou outro ente federado.

42
Especialização em Gestão Estratégica na Área da Saúde pela Faculdade Educacional da Lapa, Brasil(2020)
agente comunitária de saúde do Itaberaí , Brasil.
43
Doutorado em Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social PUC/SP pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, Brasil(2013) Professora Associada da Universidade Federal de Goiás , Brasil.
44
Doutorado em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho de Franca, Brasil(2004)
Professor Assistente Doutor CLT da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho de Franca , Brasil
45
Mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal de São Carlos, Brasil(2016)
analista de promotoria I - assistente social do Ministério Público do Estado de SP - Promotoria de Justiça Ribeirão Preto
, Brasil.
46
Doutorado em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil(2004)
Professor Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho , Brasil.
187

Vale ressaltar que este estudo é de natureza qualitativa, versado pela pesquisa bibliográfica
e pela pesquisa documental. Tendo como categorias, a priori, políticas públicas, política de saúde e
direitos advindo de autores clássicos e contemporâneos. A primeira sustentou-se na leitura e na
análise de livros, artigos científicos, teses e dissertações, disponíveis em meios impressos e
eletrônicos. No que tange à pesquisa documental, foram utilizadas leis, decretos, entre outras
normativas e documentos de domínio público, advindo de fontes primarias e secundarias

Breve contextualização sobre políticas públicas

As políticas públicas tem sua grande importância a partir do momento que o Estado passa a
ter como responsabilidade de proporcionar o bem-estar social; definindo princípios e diretrizes com
objetivo a garantir a efetivação de direitos socias fundamentais – mesmo diante todas contradições
para que essa efetivação ocorra diante da lógica societária, frente ao modo de produção capitalista.

Assim, do ponto de vista teórico-conceitual, a política pública em geral e a


política social em particular são campos multidisciplinares, e seu foco está nas
explicações sobre a natureza da política pública e seus processos. Por isso, uma
teoria geral da política pública implica a busca de sintetizar teorias construídas no
campo da sociologia, da ciência política e da economia. As políticas públicas
repercutem na economia e nas sociedades, daí por que qualquer teoria da política
pública precisa também explicar as inter-relações entre Estado, política,
economia e sociedade. Tal é também a razão pela qual pesquisadores de tantas
disciplinas – economia, ciência política, sociologia, antropologia, geografia,
planejamento, gestão e ciências sociais aplicadas – partilham um interesse
comum na área e têm contribuído para avanços teóricos e empíricos. Pode-se,
então, resumir política pública como o campo do conhecimento que busca, ao
mesmo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável
independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas
ações (variável dependente). A formulação de políticas públicas constitui-se no
estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e plataformas
eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no
mundo real. (SOUZA, 2006, p. 25)

De acordo com Freire Júnior (2005, p. 47), a expressão políticas públicas “pretende
significar um conjunto ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar
efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito”. Vale ressaltar que as
autoras deste artigo compreendem que a implanação das polítcas públicas, sobretudo as políticas
sociais, não são gestadas única e exclusivamente pelo interesse do Estado em enfrentar as
expressões da questão, obretudo as desigualdades e suas decorrências. Mas, são ações que
demarcam a centralidade do Estado a partir de mobilização e tensões da sociedade civil.
Para Souza (2006, p. 7) as políticas públicas são “o campo do conhecimento que busca, ao mesmo
tempo, colocar o governo em ação e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor
mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente)” evidente dque dentro dos desígnios da ordem
188

estabelecida. Diante de análises que demarcam convergências e divergências, faz-se necessário empreender outros
debates, motivo o qual trazemos outra autora que analisa que a política pública “implica sempre, e simultaneamente,
intervenção do Estado, envolvendo diferentes atores (governamentais e não governamentais), seja por meio de
demandas, suportes ou apoios, seja mediante o controle democrático” (PEREIRA, 2009, p. 96). Desta forma, as
políticas públicas passam a ser compreendidas como autênticos programas de Estado, que intentam,
por meio da articulação eficiente e eficaz dos atores governamentais e sociais, cumprir objetivos
vinculantes da Carta, em ordem a assegurar, com hierarquizações fundamentadas, a efetividade do
complexo de direitos fundamentais das gerações presentes e futuras (FREITAS, 2014).
Esse mesmo autor argumenta, ainda, que as políticas públicas não podem ser consideradas
apenas como programas governamentais e apresenta os elementos caracterizadores das políticas
públicas, quais sejam:
(a) são programas de Estado Constitucional (mais do que de governo), que
reclamam motivada formulação entre alternativas constitucionalmente
defensáveis, (b) processados por atos de cognição e de vontade dos múltiplos
atores políticos, no intuito de solver problemas sociais concretos, e que (c) devem
consubstanciar, na prática governamental, prioridades cogentes, geradoras de
benefícios excedentes aos custos diretos e indiretos (FREITAS, 2014, p. 148).

Segundo Pereira (2009), as políticas públicas condizem com os direitos sociais pelo fato
de esses direitos terem como perspetiva a equidade, a justiça social, e permitirem à sociedade
exigir atitudes eficaz e ativas do Estado para transformar esses valores em realidade. Denota-se,
portanto, que a administração publica, está vinculado à Constituição, e às normas
infraconstitucionais. para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social
constitucional, ou seja, com a finalidade, o bem-estar e a justiça social, comprometendo
[...] à Administração Pública efetivar os comandos gerais contidos na ordem
jurídica e, em particular, garantir e promover os direitos fundamentais em caráter
geral. Para isso será necessário implementar ações e programas dos mais
diferentes tipos e garantir a prestação de determinados serviços. Em suma: será
preciso implementar o que se descreveu acima como políticas públicas. É fácil
perceber que apenas por meio das políticas públicas o Estado poderá, de forma
sistemática e abrangente, realizar os fins previstos na Constituição (e muitas
vezes detalhados pelo legislador), sobretudo no que diz respeito aos direitos
fundamentais cuja fruição direta dependa de ações (BARCELO, 2008, p.8).

O Estado, ao executar as políticas públicas necessárias à concretização dos direitos sociais,


tem que disponibilizar recursos públicos suficientes para a execução de seus programas de proteção
social. Ao interpretar os Direitos Constitucionais faz-se imprescindível ter conhecimento da
realidade dos elementos jurídicos, sendo eles as condições financeiras e materiais de realização da
norma (SALVADOR, 2021).
Segundo Benedito e Menezes (2013) as Políticas Públicas possuem um processo de
formação de longo e médio prazo, consistentes nas fases de reconhecimento do problema público;
189

formação de uma agenda pública; formulação da Política Pública em si; processo política de tomada
de decisão de implementação da Política Pública; execução da Política Pública; acompanhamento,
monitoramento e avaliação da Política Pública e; por fim, a decisão sobre a continuidade,
reestruturação ou extinção da Política Pública. Pelo exposto, denota-se que o debate das políticas
públicas, em especial as políticas socias, é abrangente e requer adentrar em outras especificidades,
não enfatizadas aqui dada o foco das exigências postas para esse congresso. Conquanto, é impreioso
ter a dimensão que as mesmas são repletas de contradições em seus fundamentos e elementos
garantidores de uma política com garantia de Estado e direito da/o cidadão/ã.
Denota-se, com isso, que as políticas são contitutivas e constituintes da correlação de forças
estabelecidas no interior da sociedade sob ethos burguês, sofendo as insurgências culturais,
econômicas, políticas e sociais, adensadas com a lógica histórica expressa na realidade de cada país.
E, no caso brasileiro, um fator histórico marcado por uma sociedade patrimonialista, patriarcal,
coronelista dentre outros fatores que a constitui como um mix de arcaíco e moderno. Arcaíco por
reproduzir e fatores que visam a manutenção do status quo, ações conservadores que tem como fio
condutor garantir os interesses de uma elite dominante. Moderno porque mesmo diante de tantas
advrsidades, a realidade demonstra que essas implementações não são feitas sem contestações,
tensionamentos e lutas por parte da sociedade civil, em que essas contradições possibiltam a
conquista de direitos, mas que o tempo todo atacado.
A política de saúde, em sua trajetória expressa bem essa realidade de mandonismo, de
controle em atender as relações entre capital e trabalho, mas nestas imposições e configurações, a
sociedade civil nunca a pôs esmorecer, ao contrário, sempre empreendeu forma de lutas e
resistências, com vistas à configuraçã da mesma ser garantida como dever de Estado na Constituição
Federal de 1988. Nesse sentido cabe ao Poder Público, a gestão e implementação de políticas
públicas inerente a necessidades sociais, dentre ela a política de saúde, que será abordada no
próximo tópico.

A política de saúde como um direito universal


De acordo com Cohn e Elias (2005), com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
desdobraram importantes avanços no sistema de proteção social. Substituindo o sistema de Seguro
Social, pela Seguridade Social, compostos de ações para a garantia de direitos referentes à
Previdência Social, Assistência Social e Saúde tripé que evidencia tais garantias. Segundo
Gonçalves (2006) esse novo contexto de saúde, que define a saúde como um direito de todos e dever
de Estado objetivou uma nova concepção de saúde, mediante os princípios que regulamentam o
SUS através das leis n0 8.080 e 8.142 de 1990. Sendo estabelecido, dentre outras, a participação
popular na gestão do sistema de saúde, aflorando uma nova compreensão de saúde, deixando de ser
como ausência de doença, passando a ser vista e pensada como qualidade de vida.
190

Esta mesma autora enfatiza, ainda, que as leis de regulamentação do SUS possuem a
participações das três esferas de governo com a competência de definir, junto com os/as usuários/as,
as ações e atividades, como metas, financiamento e também a fiscalização ao poder público com o
intuito de inibir ações inadequadas no uso dos recursos públicos (GONÇALVES, 2006).
Assevera-se que, mesmo com todas as debilidades que se presentificam na materialização
do SUS, essas leis de regulamentação expressam avanços diante do modelo médico-assistencial que
veio se gestando desde a década de 1930. Vale ressaltar que essas leis Orgânicas de Saúde (LOS)
foram regulamentadas em 1990, sob o número 8080 e 8.142, em que a primeira estabeleceu três
princípios norteadores no funcionamento do SUS, sendo eles: Universalidade, Equidade e
Integralidade.
No que se refere à Universalidade, a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas
e cabe ao Estado assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido
a todas as pessoas, independente de sexo, raça, ocupação, ou outras características sociais ou
pessoais. Já a Equidade pressupõe diminuir desigualdades. Apesar de todas as pessoas possuírem
direito aos serviços, elas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. Em outras palavras,
equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior.
No que compete a Integralidade, este princípio considera as pessoas como um todo,
atendendo a todas as suas necessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo
a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. O princípio de
integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, para assegurar uma
atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de
vida dos indivíduos.
O Sistema Único de Saúde (SUS), além dos princípios citados são compostos também por
diretrizes como a Descentralização, a Regionalização e Hierarquização e a Participação
Popular – este último regulamentado com mais veemência na lei nº 8.142, também de 1990,
garantindo o funcionamento desse sistema.
Quanto à descentralização, a gestão do sistema implica a transferência de poder de decisão
sobre a política de saúde do nível federal (MS) para os estados (SES) e municípios (SMS). Essa
transferência ocorre a partir da redefinição das funções e responsabilidades de cada nível de governo
com relação à condução político-administrativa do sistema de saúde em seu respectivo território
(nacional, estadual, municipal), com a transferência, concomitantemente, de recursos financeiros,
humanos e materiais para o controle das instâncias governamentais correspondentes.
A Regionalização implica a delimitação de uma base territorial para o sistema de saúde,
que leva em conta a divisão político-administrativa do país, mas também contempla a delimitação
de espaços territoriais específicos para a organização das ações de saúde, subdivisões ou agregações
do espaço político-administrativo.
191

A Hierarquização, por sua vez, diz respeito à possibilidade de organização das unidades
segundo o grau de complexidade tecnológica dos serviços; isto é, o estabelecimento de uma rede
que articula as unidades mais simples às unidades mais complexas.
O processo de estabelecimento de redes hierarquizadas pode, também, implicar no
restabelecimento de vínculos específicos entre unidades, de distintos graus de complexidade
tecnológica que prestam serviços de determinada natureza, como, por exemplo, a rede de
atendimento a urgências/emergências.
No que se refere à Participação Popular, representa a garantia da participação da sociedade
por intermédio de suas entidades representativas na construção de diretrizes, prioridade para sistema
de saúde e fiscalização dos cumprimentos normativos do Sistema Único de Saúde. Assim, é
importante o monitoramento e avaliação das ações de serviços realizados nas diferentes esferas de
governos. A concretização desse princípio, é constituída pelos conselhos de saúde e pelas
realizações das Conferências de Saúde, que possibilitam um diálogo constante entre gestores,
profissionais e a sociedade (LIMA, MACHADO & NORONHA, 2012).
Sendo assim, houve a criação de uma nova institucionalidade democrática, originando
espaços para colegiados e decisões, como Conselhos, Conferências e Comissões entre outros. Tais
direcionamentos resultaram na participação da sociedade na fiscalização, gestão e controle
democrático, a saúde passou a ser vista como uma dimensão política com vinculação a democracia
(GONÇALVES, 2006).
De acordo com Lima, Machado e Noronha (2012), as definições para garantia do SUS, traz
também, quando a disponibilidade não for suficiente na garantia da cobertura à saúde para
determinada região, a possibilidade de ocorrer convênio com prestadores da iniciativa privada –
explicitada como rede complementar de saúde (garantida pelas regulamentação e financiamento do
Estado (através de consórcio, convênios dentre outras configurações para garantir o direito ao
acesso da população na garantia de uma saúde em sua totalidade.
Vemos, com isso, que o SUS não é composto por órgão exclusivo da esfera pública, mas
contando com serviços complementares, e uma ampla rede de serviços privados quando necessários
para garantir o direito universal dos seus usuários, permitindo “[...] que o acesso a ações e serviços
do SUS não esteja condicionado à capacidade de pagamento prévio das pessoas” (LIMA,
MACHADO, NORONHA, 2012, p.367).
Esses convênios da esfera privada estão vinculados, principalmente, às unidades de
diagnósticos, terapias e hospitais pagos com verbas tributárias destinadas a área da saúde. O
financiamento proveniente das diversas receitas levantadas pela União, Estados e Municípios
(sofrendo à fatia maior de gastos aos municípios). Daí decorre muitas contradições que recaem
diretamente à população, posto que a debilidade a realocação dos recursos – regulamentados
legalmente – à outras políticas fazem com que não haja verba suficiente para o atendimento da
192

população (sobretudo aos exames e serviços de média e alta complexidade). Muitas vezes, a
população precisa judicializar o direito diante da negativa do acesso aos exames e às medicações,
uma vez que os entes públicos justificam a falta de verba sob o discurso princípio da reserva do
possível. Este princípio faz com que o acesso à saúde seja condicionado à uma série de elementos
para sua efetivação. Muitos desafios se apresentam ao direito de garantia das políticas de saúde,
particularmente à política de Saúde brasileira – conquistadas por lutas e tensionamento da sociedade
civil, culminando no SUS. Reitera-se, ainda, que as políticas não são construções fechadas, prontas
e acabadas, caso contrárias não estariam, perderiam seus fundamentos; deve ser apreendida como
um processo legalmente garantido a partir de construções sócio-históricas que podem ser garantidas
e/ou suprimidas frente à correlação de forças estabelecidas no interior da sociedade que se gesta.

Considerações finais
Neste sentido as políticas públicas no Brasil decorrem de ações tendo o Estado como campo
de reconhecimento de discussões e resoluções dos problemas existente em uma determinada
sociedade e, a política pública é responsável pela identificação, planejamento e solução destes
problemas através de uma ação estratégica que envolve sociedade civil e Estado.
Desta forma, percebe-se que a introdução da Seguridade Social como sistema de proteção
social é um marco no avanço do campo de direitos sociais no país, trazendo, assim, a
responsabilidade do Estado na garantia da cobertura das necessidades sociais da população. Na
particularidade da política de saúde, depreende-se que o SUS é considerado como uma das maiores
conquistas do povo brasileiro após intensas lutas de movimentos sociais e sanitaristas, desde a
Constituição de 1988. Seus princípios apontam a democratização nas ações e serviços de saúde, que
deixaram de ser restritos e passaram a ser universalizados, da mesma forma que deixaram de ser
centralizados e passaram a nortear-se pela descentralização, bem como a equidade, universalidade
e integralidade.

Referências
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fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de
Direito do Estado, [s. l.], nº 3, 2008.
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PAPEL DAS EMPRESAS Revista Ética e Filosofia Política – Nº 16 –Volume 1 – junho de 2013,
p. 57-76
CHN, A.; ELIAS, P. E. Saúde No Brasil - Politicas E Organização De Serviços. Editora Cortez,
2005.
FREIRE JÚNIOR, A. B. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005
193

FREITAS, J. Políticas públicas e controle judicial de prioridades constitucionais. Revista da Escola


da Magistratura do TRF da 4. Região, v. I, n. I. Porto Alegre: Tribunal Regional Federal da 4.
Região, 2014. p. 141-157.
GONÇALVES, C. A. Direitos à saúde: um estudo sobre as práticas dos assistentes sociais das
unidades de saúde de Sorocaba – SP – 2006. 2006. 120 f. Dissertação (mestrado em Serviço Social)
- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2006.
LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; NORONHA, J.C. PolÍticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2.
ed. rev. e amp / organizado por Lígia Giovanella, Sarah Escorel, Lenaura de Vasconcelo Costa
Lobato et al.- Lobato et al.- Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2012.
PEREIRA, P. A. Discussões conceituais sobre política social como política pública e direito de
cidadania. In: BOSCHETTI, Ivanete; BEHRING, Elaine Rossetti; SANTOS, Silvana Mara de
Morais dos; MIOTO, Regina Célia Tamaso (Coord.). Política Social no Capitalismo: Tendências
contemporâneas, 2009, 2ª edição, Cortez Editora.
SOUZA, C. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16,
jul/dez 2006, p. 20-45.
SALVADOR, K.D.E. de F. DIREITO À SAÚDE DA PESSOA IDOSA– EFETIVAÇÃO PELO
PODER JUDICIÁRIO. Dissertação (Mestrado)- PUC Goiás, 2021, p. 1-107.
194

OMISSÃO ESTATAL ANTE A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DO SÍTIO


HISTÓRICO E PATRIMÔNIO CULTURAL KALUNGA

Teruo Rosa Kuramoto47


Carolina Oliveira Mesquita48
Hansmüller Salomé Pereira49
Thais Gomes Abreu50

Introdução
Este artigo procura defender a diversidade, o multiculturalismo e a interculturalidade da
comunidade quilombola Kalunga, que devem ser efetivadas por meio de políticas públicas. Partindo
do pressuposto de que o direito ao território, para as comunidades quilombolas, é o alicerce dos
direitos supracitados, tivemos como hipótese de pesquisa que o Estado não está garantido à
comunidade quilombola Kalunga o direito ao território, que é resguardado por normas nacionais e
internacionais. Tendo como metodologia a pesquisa documental, utilizando como fonte material a
ação civil pública promovida pelo MPF sobre o direito territorial dos Kalungas, concluímos que de
fato a União, o Estado de Goiás e o INCRA estão sendo omissos quanto ao direito exclusivo dos
Kalungas ao território.

Direito à diferença, multiculturalismo e diversidade


Levando em consideração o processo de colonização do continente americano, abordaremos
sobre o “direito de ser diferente” dentro do Estado Nacional. Com o início da modernidade,
embalada pelo racionalismo europeu a partir da filosofia do iluminismo, a teoria do Estado começa
a sofrer grandes mudanças, pois foi sob essas influências que se deram as revoluções liberais no
final do século XVIII e no início do século XIX na Europa e nos Estados Unidos, dando origem ao
Estado moderno.
Junto do Estado moderno criou-se o constitucionalismo, “fundado na necessidade de se
garantir maiores liberdades ao indivíduo à ação do governante e na existência de igualdade entre
todos os submetidos à soberania estatal” (BERNARDO, p. 75, 2012). Uma das falhas no surgimento
do Estado democrático reside justamente na sua distorcida noção de igualdade, que foi perpetuada
por meio da ideia de “povo” e nação, que desconsiderou as minorias “desiguais”, pois com a
“confusão conceitual entre povo e nacionalidade dentro do Estado, não se reconhecem as diferenças
entre as culturas e as formas de organização entre grupos minoritários” (BERNARDO, p. 75, 2012).

47 Mestrando em direito agrário - UFG. E-mail: [email protected]


48 Mestranda em direito agrário - UFG. E-mail: [email protected]
49 Mestrando em direito agrário - UFG. E-mail: [email protected]
50 Mestranda em direito agrário – UFG. E-mail: [email protected]
195

A noção de igualdade imposta pelos europeus se deu, primeiro, na submissão dos grupos
minoritários ao interesse da maioria dominante dentro do Estado Nacional, e segundo, na
“propagação dos valores racionais ao restante da humanidade” (BERNARDO, p. 75, 2012) através
da colonização, em que a “dominação dos países europeus sobre suas colônias americanas se deu
de forma devastadoras, sem qualquer respeito às populações aqui existentes, muito menos àquelas
trazidas para este continente sob a condição de escravo" (BERNARDO, p. 76, 2012).
A colonização da américa, que coincide com o surgimento do Estado moderno, aconteceu
de forma impositiva, pautado na superioridade dos valores europeus, implicando na destruição e
exclusão de culturas não hegemônicas. No Brasil, essa exclusão representou a caça e assassinato
dos povos indígenas e quilombolas, trazendo reflexos até os dias atuais, como afirmou Leandro
Ferreira:
Indígenas, escravos e seus descendentes que ainda se organizam em quilombos,
comunidades extrativistas e outras formas organizacionais não hegemônicas não
encontraram, ao longo dos séculos, qualquer espécie de reconhecimento e, muito
menos, de proteção, e a sua persistência deu-se a despeito da ação dos grupos
hegemônicos e à custa de várias lutas e mortes. (BERNARDO, 2012, p. 84)

O direito à igualdade e “a ideia de Estado como representação de uma nação não resiste à
realidade e à pluralidade de grupos culturais existentes dentro de um único Estado” (BERNARDO,
p. 83, 2012), fazendo-se necessário a defesa do direito à diferença, como garantia da coexistência e
desenvolvimento de grupos e culturas minoritários, como os povos indígenas e os quilombolas, por
meio do multiculturalismo.
O multiculturalismo é a materialização do reconhecimento formal dos grupos e culturas não
hegemônicos. No Brasil, ele possui um papel além da garantia à diversidade e interculturalidade,
por isso, deve ser aplicado de forma incisiva por meio de políticas públicas voltadas a grupos como
os camponeses, comunidades indígenas e quilombolas, que historicamente foram excluídos.
Sobre o direito dos grupos minoritários e o multiculturalismo, pontuou Franco (2014, p. 52)
que: “Nesse contexto de não reconhecimento de grupos (negros e índios, notadamente), ditos
‘diferentes’ [...], o multiculutralismo apresenta-se como perspectiva teórica adequada à discussão
dos direito humanos e fundamentais das comunidades quilombolas[...]”. Portanto, devemos partir
do multiculturalismo para tratar dos direitos das comunidades quilombolas, que deve ser efetivado
pelo Estado através das políticas públicas.
As garantias do multiculturalismo, da diversidade e da interculturalidade estão diretamente
relacionadas com o universalismo dos direitos fundamentais, pois como nos ensina Ferrajoli (2011,
p. 107), “[...] O universalismo dos direitos fundamentais, em verdade, exatamente porque os direitos
são do indivíduo, e não das culturas, não somente se opõe ao multiculturalismo, mas lhe representa
a principal garantia”.
196

Se os direitos fundamentais são as principais garantias do multiculturalismo, o direito ao


território dos quilombolas é base desses direitos fundamentais, por isso o Estado deve focar suas
políticas públicas na garantia da regularização fundiária dos territórios quilombolas.
Afirmamos isso pelo fato da terra ser pressuposta para a existência de diversos outros
direitos dos quilombolas, como leciona o Sarmento (2006, p. 83), “não é exagero afirmar que
quando se retira a terra de uma comunidade quilombola, não se está apenas violando o direito à
moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se está cometendo um verdadeiro etnocídio”.
Assim sendo, o território, para os quilombolas, se trata “do elo que mantém a união do grupo, e que
permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação
da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica” (SARMENTO, 2006, p.
83).

Regularização fundiária quilombola como garantia da diversidade, multiculturalismo e


interculturalidade
Historicamente, o Estado tem falhado nas políticas públicas voltadas aos quilombolas que
possuem dificuldades no reconhecimento de sua identidade cultural, pois, como afirma Franco
apud Souza Filho (2014, p. 51), as leis e as políticas públicas voltadas ao direito das minorias, por
muito tempo, se propuseram a cumprir a vontade do Estado Nacional de “[...] integrar os povos
como cidadãos, sujeitos de direito, capazes de negociar juridicamente, sem reconhecer seus direitos
coletivos”. Ou seja, ao buscar “integrar os povos” sem antes reconhecer seus direitos coletivos, o
Estado agia de forma antagônica aos valores do multiculturalismo e da interculturalidade, como
afirmam Sparemberger e Kretzman:
Os povos ditos “diferentes” encontram muitas dificuldades no reconhecimento na
valorização de sua identidade cultural, peculiar e imensamente importante para a
concretização dos ideais de proteção do meio ambiente para sobrevivência física
desses povos. Essa multiplicidade étnica e cultural é por vezes ignorada pelo
Estado, que se mostra ineficiente no desenvolvimento de políticas públicas em prol
desses grupos. Em nome de liberdade e igualdade de todos os indivíduos, o que
ocorre é a cegueira do Estado diante da diferença, dos direitos coletivos de grupos
que merecem atenção e respeito. (SPAREMBERGER; KRETZMANN, 2008)

Antes de analisar a atuação do Brasil frente à regularização fundiária do território Kalunga,


atual maior quilombo do país, iremos abordar brevemente a história da ocupação dos Kalungas no
nordeste de Goiás, que se deu ainda no século XVIII como uma forma de resistência ao sistema
escravista da época. Os Kalungas encontraram nas serras e vãos da chapada dos veadeiros um lugar
de refúgio, onde poderiam exercer sua cultura e, principalmente, serem livres, não é atoa que
Kalunga na língua banto significa lugar sagrado, de proteção51.

51 Afirma Vercilene Francisco Dias: “Kalunga significa, na língua banto, uma das línguas faladas pelos negros
trazidos na diáspora, sobretudo de Angola, Congo e Moçambique, lugar sagrado e de proteção” (DIAS, 2019, p. 52).
197

O artigo 68 ADCT52 é muito objetivo ao afirmar que: “Aos remanescentes das comunidades
dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988), neste sentido, também existe a
legislação estadual e a convenção 169 da OIT53 que garantem aos Kalungas a propriedade definitiva
do seu território, que desde 1991 é demarcado e recebe o título de sítio histórico e patrimônio
cultural.
Em 1986, o Estado de Goiás, por meio do extinto IDAGO54, deu início ao processo
discriminatório judicial do território Kalunga. Esse processo terminou em 2017, quando se
constatou que a maioria dos imóveis particulares dentro do sítio histórico e patrimônio cultural
Kalunga, são títulos ilegítimos ou são terras devolutas, ocupadas de forma ilegal por agentes
externos à comunidade.
A partir do direito territorial dos quilombolas e da ação discriminatória do território
Kalunga, o objetivo deste artigo é analisar as ações dos órgãos competentes para efetivar a sentença
da ação judicial e a consequente regularização fundiária do território Kalunga. Para fazer essa
análise, utilizaremos como fonte material de pesquisa documental a ação civil pública nº 1002560-
50.2021.4.01.3506, promovida pelo Ministério Público Federal em 2021, que tem como assunto a
Desapropriação para Regularização de Comunidade Quilombola/Dec. 4887/2003.

Ação civil pública sobre o território Kalunga


O Ministério Público Federal propôs a “AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE OBRIGAÇÕES DE
FAZER E NÃO FAZER COM PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA”, na Vara
Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Formosa – Goiás, em face da União, por meio
da Procuradoria Federal no Estado de Goiás, do Estado de Goiás, através da Procuradoria-geral do
Estado de Goiás, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, por meio da
Superintendência Regional do Distrito Federal e Entorno, da Fundação Cultural Palmares e de
pessoas incertas e ainda não identificadas, detentoras, possuidoras ou invasoras de terras kalungas.
A demanda foi fundamentada para garantir aos kalungas a titulação definitiva de todas as
terras que constituem o seu território, garantindo a essa comunidade quilombola a integridade
territorial e o direito de permanecer na posse de seu território, bem como preservar a dignidade de
identidade e da cultura. Ab initio, cumpre salientar que a Lei Ordinária Estadual nº 11.409, de 21
de janeiro de 1991, e a Lei Complementar Estadual nº 19, de 05 de janeiro de 1996, reconheceram
a Comunidade Quilombola Kalunga como sítio patrimônio cultural. No que concerne ao título de
reconhecimento de domínio dessa comunidade foi efetuado pela Portaria nº 07/2005. Por fim, o

52 ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.


53 OIT - Organização internacional do trabalho.
54 IDAGO - instituto de desenvolvimento agrario de goias.
198

Decreto Presidencial de 20 de novembro de 2009 declarou o interesse social, “para fins de


desapropriação, os imóveis abrangidos pelo ‘Território Quilomba Kagunga’, situado nos
Municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre, Estado de Goiás”.
Nesse ínterim, foi elaborado o Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTID) do
Território Kalunga por um grupo de técnicos criado pela Fundação Cultural Palmares, tendo sido
aprovado por despacho pelo seu Presidente e publicado no Diário Oficial da União nº 154, no dia
13 de outubro de 1998. Assim sendo, as fronteiras do território kalunga foram devidamente
reconhecidas e delimitadas pelo Poder Público.
Entretanto, as funções de delimitação, demarcação e titulação que eram atividades
desempenhadas pela Fundação Palmares, foram transferidas ao INCRA, pelo Decreto nº 4.887 de
2003, que passou a analisar de forma lenta o processo administrativo nº 54.700.000189/2004-12,
que tinha como intuito a titulação definitiva das terras kalungas55, justificando a falta de suporte
técnico, de profissionais especializados e de recursos financeiros, que seriam destinados ao
pagamento das indenizações.
Dessa forma, a demanda jurídica destaca o descaso e omissão ilícita do INCRA, que alegou
“atividade[s] nova[s]” para a autarquia, pois lhe foram transferidas ‘apenas’ em 2003 (pelo Decreto
n. 4.887/2003) e, por isso, “não dispõe de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação para
nortear o trabalho e nem de um conhecimento prévio da realidade ali existente, para um melhor
planejamento e execução mais eficaz do objeto proposto” (Ofício n. 54933/2020/SR9280DFE-
G/SR9280DFE/INCRA INCRA, de 15/9/2000). Porém, o próprio INCRA, no bojo do Ofício n.
54933/2020/SR9280DFE-G/SR9280DFE/INCRA-INCRA, de 15/9/2000, reconheceu que “a
função do INCRA SR/28, como posto, é fazer a obtenção e desintrução do território Kalunga, ou
seja, retirar os não quilombolas da área”.
Ademais, outro ponto apontado na petição inicial foi que os kalungas não conseguem barrar
os esbulhos em razão da agressividade imposta pelos esbulhadores/invasores, que desmatam a área.
Tal situação se agravou com a pandemia ocasionada pelo coronavírus. As invasões/esbulhos ainda
não solucionados e não judicializados são:
(1) Fazenda Pé do Morro, a (2) Fazenda Panorama Gleba 2, a (3) Fazenda Saco
Gleba 2 Lote 3, a (4) Fazenda Vista Linda Gleba 4, a (5) Fazenda Bonito Gleba 3,
a (6) Fazenda Larga da Boa Vista, a (7) Fazenda Pequi e a (8) Fazenda Alagoas,
sem poder precisar ao certo as datas das invasões.

Além de ter sido ajuizadas pela Associação Quilombo Kalunga (AQK) as seguintes ações
possessórias:

55 As terras kalungas possuem cerca de 262 mil hectares, sendo 160.500 hectares provenientes de propriedades
privadas, tendo sido 22.490 titulados; 101.500 hectares oriundos de terras devolutas, dos quais 11.508 foram titulados,
todos os dados correspondem a data em que a Ação Civil Pública foi proposta.
199

(9) n. 5124027-21.2018.8.09.0031 – ajuizada em face de José Vieira da Silva e


Outros, visando à reintegração na posse da Fazenda Engenho do Santo Antônio;
(10) n. 5167461-89.2020.8.09.0031 – ajuizada em face de José Iremar Viana Leal
e Irisvan Batista Ribeiro, visando à imissão na posse da Fazenda Santo Estevão;
(11) n. 5479748-45.2019.8.09.0031 – ajuizada em face de Olinda Aparecida
Abreu, visando à imissão na posse da Fazenda Paciência; e (12) n. 5356699-
30.2020.8.09.0031 – ajuizada em face de Domingo Bispo dos Santos, visando à
reintegração na posse da Fazenda Buracão (Fazenda Círculo R e L); (13) n.
1000207-37.2021.4.01.3506 – ajuizada em face de Josemir de Torres e Outros,
visando evitar a iminência de turbação/esbulho na posse da Fazenda Capivara
(tutela inibitória). Em relação a esta, a associação noticiou também que o particular
esbulhador proferiu ameaças em face do ocupante quilombola; e (14) n. 4187-
58.2011.4.01.3506 – ajuizada em face de Manuel Lourenço Ramos, visando à
reintegração na posse da Fazenda Incavidade.

Verifica-se que existem ao menos catorze conflitos possessórios em andamento que são
pertinentes a pessoas não quilombolas com a pretensão de fixar posse em terras kalungas,
argumento que evidencia o risco que essa comunidade está submetida, consequência da demora na
conclusão do processo de titulação por parte do INCRA. No que concerne aos argumentos jurídicos,
constata-se que foi apontado que a matéria versada na demanda está diretamente ligada à cultura
negra, no seu patrimônio cultural e nos valores imateriais e materiais das tradições afro-brasileiras,
além de afetar a subsistência dos kalungas.
A peça exordial também apresentou que foram infringidos os artigos 215 e 216 da
Constituição Federal, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Lei
Ordinária Estadual nº 11.409 de 1991, a Lei Complementar Estadual nº19 de 1996, ambas do Estado
de Goiás, bem como a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho 56 e o Decreto
nº 4.887 de 2003 e a Instrução Normativa INCRA nº57 de 2009. Nesse contexto, o Ministério
Público Federal requereu os seguintes pedidos:

6.1 – a concessão de tutela provisória de urgência, em caráter liminar inaudita


altera pars, nos termos vindicados no tópico 5 desta peça vestibular, fixando-se
multa diária em desfavor da UNIÃO, do ESTADO DE GOIÁS, do INCRA e da
FUNDAÇÃO PALMARES para o caso de descumprimento do prazo fixado para
adoção das providências necessárias para efetivar a reintegração de posse e
exercício permanente de atos fiscalizatórios, bem como multa individual para cada
novo esbulho/invasão ocorrido no Território Kalunga (até a integral e definitiva
titulação) noticiado aos réus e não remediado no prazo de 30 (trinta) dias; 6.2 – a
intimação da Associação Quilombola Kalunga, na pessoa de seu Presidente, para
prestar o auxílio e o suporte necessários à UNIÃO, aoESTADO DE GOIÁS, ao
INCRA e à FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, identificando-se os
invasores/esbulhadores e mapeando-se as áreas invadidas/esbulhadas, a fim de
viabilizar o cumprimento da ordem de reintegração de posse; 6.3 – a citação dos
réus, nos endereços acima mencionados, para, querendo, contestarem a ação, sob
pena de revelia. Registre-se que a citação dos réus PESSOAS INCERTAS E NÃO
IDENTIFICADAS deve ser feita após a devida identificação deles pela UNIÃO,
pelo ESTADO DE GOIÁS, pelo INCRA e pela FUNDAÇÃO CULTURAL
PALMARES; 6.4 – ao final, seja julgada procedente a pretensão ora deduzida, para

56 Internalizada no ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto nº 5.051 de 2004, tendo status de norma supralegal.
200

o fim de: 6.4.1 – confirmar os pedidos liminares objetos do item “6.1” e deferir em
caráter definitivo a reintegração da Comunidade Quilombola Kalunga na posse das
áreas invadidas/esbulhadas de seu Território; 6.4.2 – condenar os réus PESSOAS
INCERTAS E NÃO IDENTIFICADAS à obrigação de fazer, consistente em
cessar os atos de esbulho/invasão praticados no interior do Território Quilombola
Kalunga (TQK) e à obrigação de não fazer consistente em absterem-se da prática
de novos ilícitos de turbação e esbulho/invasão; 6.4.3 – condenar os réus UNIÃO,
ESTADO DE GOIÁS, INCRA e FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES à
obrigação de fazer para que, em comunhão de esforços, adotem providências
administrativas necessárias para conferir efetividade à ordem judicial de
reintegração de posse e para resguardar a integridade do Território Quilombola
Kalunga contra novos atos de esbulho/invasão até a conclusão da titulação integral
e definitiva, sob pena de multa; 6.4.4 – condenar o ESTADO DE GOIÁS à
obrigação de fazer para que, em prazo razoável a ser fixado pelo juízo, adote as
providênciasnecessárias para transferir e, de fato, transfira à Associação Quilombo
Kalunga a titularidade e a propriedade definitiva das terras devolutas incrustadas
no Território Quilombo Kalunga, segundo delimitação constante do Relatório
Técnico de Identificação e Delimitação (RTID); 6.4.5 – condenar o INCRA à
obrigação de fazer para que conclua, em prazo razoável, a ser fixado pelo juízo,
o(s) processo(s) administrativo(s) que visa(m) à titulação definitiva das terras
inseridas no Território Quilombo Kalunga, segundo delimitação constante do
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID); 6.5 – a condenação do
réu pelos ônus da sucumbência, nos termos da legislação processual civil; e 6.6 –
a juntada da íntegra dos autos do Inquérito Civil n. 1.18.002.000141/2020-74.

Por fim, também foi exposto o desejo pela realização da audiência preliminar de
conciliação/mediação, nos termos do artigo 334 do Código de Processo Civil. Assim, atribuiu-se à
causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Considerações finais
Demonstramos no primeiro tópico a importância de se garantir aos povos quilombolas o
“direito à diferença”, face a equivocada noção de “igualdade” imposta pelos Europeus no Brasil, e
a garantia desse direito, se expressa por meio do multiculturalismo, que “apresenta-se como
perspectiva teórica adequada à discussão dos direitos humanos e fundamentais das comunidades
quilombolas”. Desse modo, para os quilombolas, a garantia do multiculturalismo, da diversidade e
da interculturalidade são pré-requisitos para a garantia do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana. Concluímos que a base dos direitos fundamentais dos povos quilombolas é a garantia ao
território, pois como afirmou Sarmento, esse direito é tão relevante que seu descumprimento pode
significar o fim do grupo quilombola, ou seja, um verdadeiro etnocídio. Portanto, é obrigação do
Estado garantir o direito territorial aos quilombolas, por meio da regularização fundiária,
removendo os agentes externos à comunidade para que os afrodescendentes possam exercer sua
cultura e perpetuar seu modo de vida de forma digna.
No segundo tópico, analisamos o processo de luta e ocupação do sítio histórico e patrimônio
cultural Kalunga. O direito dos quilombolas ao território é resguardado por norma constitucional
federal, por leis estaduais e por legislação internacional. A área onde residem os Kalungas foi objeto
de um longo processo discriminatório, em que o Estado de Goiás concluiu que grande parte dos
201

proprietários de terras não quilombolas possuem títulos de propriedade ilegítimos, contudo, isso
não foi o suficiente para solucionar a disputa pela propriedade territorial do quilombo.
No último tópico do trabalho, analisamos a Ação Civil Pública promovida pelo Ministério
Público Federal contra as autarquias que, em tese, deveriam resguardar os direitos dos quilombolas,
mas, como elencou o promotor na referida ação, os órgãos responsáveis estão sendo omissos quanto
ao direito territorial dos Kalungas, agindo contra a Carta Magna de 1988 e contra a Convenção nº
169 da OIT, em nítido desrespeito a preceitos fundamentais, como o princípio da dignidade da
pessoa humana.
Os Kalungas estão em um longo processo de luta pela terra, apesar de haver diversas leis
que garantem a exclusividade do território aos quilombolas. Assim, concluímos, a partir do caso
Kalunga, que os afrodescendentes continuam tendo seus direitos violados por quem deveria
protegê-los, o Estado. Portanto, justificamos a necessidade e a importância de se garantir o direito
à terra aos quilombolas, que é pressuposto do multiculturalismo, da dignidade da pessoa humana e
da própria existência da comunidade, mas que, infelizmente, a União, o Estado de Goiás e o INCRA,
não garantem, visto que parecem seguir os mesmos ideais dos europeus quando chegaram no Brasil.

Referências
AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL n. 1002560-50.2021.4.01.3506, de 16/08/2021. Proposta pelo
Ministério Público Federal (Procuradoria), que trata da desapropriação para Regularização de
Comunidade Quilombola / Dec. 4887/2003. Brasil, 2021. Disponível: <https://apublica.org/wp-
content/uploads/2021/11/acao-civil-encurralados-pela-grilagem.pdf>. Acesso em: 01 de outubro de
2022.
BERNARDO, L. F.. Acesso a terra e multiculturalismo : uma análise da atuação estatal na
garantia dos direitos das comunidades culturalmente diversas no Brasil. Dissertação (Mestrado
em Direito). Faculdade de direito Pontifícia Universidade Católica. Paraná, p. 127. 2012.
BRASIL. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 5 de outubro de 1988. Diário
Oficial da União - Seção 1 - 5/10/1988, Página 27 (Publicação Original). Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/conadc/1988/constituicao.adct-1988-5-outubro-1988-
322234-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em: 20 de outubro de 2022.
DIAS, Vercilene Francisco. Terra versus território: uma análise jurídica dos conflitos agrários
internos na comunidade Quilombola Kalunga de Goiás. 2019. 131 f. Dissertação (Mestrado em
Direito Agrário) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.
FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2011.
KRETZMANN, Carolina Giordani; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana. Antropologia,
multiculturalismo e Direito: o reconhecimento da identidade das comunidades tradicionais no
Brasil. In: Thais Luzia Colaço (org.). Elementos de Antropologia Jurídica. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2008,
SARMENTO. A GARANTIA DO DIREITO À POSSE DOS REMANESCENTES DE
QUILOMBOS ANTES DA DESAPROPRIAÇÃO. Revista de direito do Estado: RDE / Instituto
de Direito do Estado e Ações Sociais. Imprenta: Rio de Janeiro, Renovar, 2006.
202

VIVÊNCIAS DE HOMENS AUTORES DE TENTATIVAS DE FEMINICÍDIOS

Tatiana Machiavelli Carmo Souza57

Introdução
Os feminicídios são homicídios que ocorrem pela condição do gênero feminino das vítimas,
pela discriminação e/ou ódio dos autores das agressões, podendo estar atrelados à violência
doméstica e/ou familiar (BRASIL, 2015). Trata-se de grave fenômeno social que fere os direitos
humanos e individuais das mulheres. Usualmente, os feminicídios ocorrem após longas vivências
de violência e tornam-se mortes prenunciadas para as mulheres (BANDEIRA; MAGALHÃES,
2019; MENEGHEL; PORTELLA, 2017).
A compreensão dos feminicídios envolve reflexões sobre a realidade social, histórica e
cultural de desigualdades sócio-históricas que marcam as relações entre o masculino e o feminino.
Toneli, Beiras e Ried (2017) ressaltam a importância de analisar a perspectiva dos homens autores
de violência (HAV): as intencionalidades, as motivações, a forma como compreendem e percebem
a violência e as relações de gênero. Esses elementos permitem a construção de intervenções que
possam resultar em mudanças nas concepções e atitudes desses homens.
Nesse campo, Bernardes e Mayorga (2017) enfatizam a relevância de compreender os
estereótipos que engendram as concepções acerca dos HAV. A literatura aponta que, geralmente,
esse homens são ex-parceiros das vítimas e possuem as seguintes características: pais, trabalhadores
remunerados, brancos, baixa escolaridade e renda familiar em torno de um salário-mínimo; ou seja,
são pessoas comuns, não são monstros como prevalece no imaginário social (SANTOS et al., 2021;
GEDRAT; SILVEIRA; ALMEIDA NETO, 2020; SCOTT; OLIVEIRA, 2018).
Garcia e Beiras (2019), em estudos com HAV, verificaram nos discursos a responsabilização
das mulheres pelas violências sofridas, além de justificativas pautadas no uso de substâncias, como
o álcool. Os autores enfatizam que valores culturais, sociais e históricos de dominação, de virilidade,
de controle e de poder dos homens sobre as mulheres foram recorrentes na perspectiva dos HAV.
As pesquisas sobre os feminicídios tem abordado os impactos desse fenômeno na vida das
mulheres, contudo, poucas são aquelas que evidenciam as perspectivas, vivências e concepções dos
feminicidas. Nessa direção, este estudo pretende investigar os feminicídios a partir das perspectivas
dos HAV. Assim, a presente pesquisa teve como objetivo investigar as vivências de autores de
tentativas de feminicídios acerca das relações de gênero e das violências contra as mulheres.

Metodologia

57
Doutorado em Programa de Pós-graduação em Serviço Social pela Unesp/Faculdade de História, Direito e Serviço
Social, Brasil(2012) Avaliadora de Cursos Graduação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira , Brasil
203

O estudo faz parte do projeto de pesquisa integrado “Violência, Gênero e Família:


Implicações na Psicologia e Sociedade”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos da Universidade Federal de Goiás, sob o parecer de número 5.271.943. Trata-se de
pesquisa qualitativa pautada nos estudos da subjetividade (REY, 2005).
Participaram três (3) homens autores de tentativas de feminicídios. Foram critérios para
participação: ter idade igual ou superior a 18 anos; identificar-se como homem; estar em cárcere em
Goiás; ter praticado tentativa de feminicídio ou feminicídio consumado contra a (ex)parceira após
a implementação da Lei 13.140, conhecida como Lei do Feminicídio (Brasil, 2015).
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, vídeo-gravadas e, posteriormente, transcritas
na íntegra. Elas foram realizadas no formato online, pela plataforma Zoom, a partir de link criado
pela direção da unidade prisional em que o participante estava recluso. Todos os procedimentos
éticos foram seguidos e os entrevistados consentiram a participação na pesquisa por meio de Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram utilizados nomes fictícios a fim de resguardar
a identidade e o anonimato dos participantes. As entrevistas foram analisadas a partir do
materialismo histórico-dialético à luz da Psicologia sócio-histórica (BARROS et al., 2009) e das
Teorias Feministas e de Gênero.

Resultados e discussão
Os participantes possuíam idades entre 26 anos e 62 anos, com média de 43 anos. Um
entrevistado se identificou como branco, um como pardo e o outro não soube responder. Um
participante tinha ensino fundamental completo e os outros possuíam ensino fundamental
incompleto. Com relação a profissão, um era agricultor, outro carpinteiro e outro pedreiro. Um dos
entrevistados afirmou estar divorciado, um em união estável e o outro solteiro. Se autoidentificaram
como homens cisgêneros e heterossexuais. Eram os provedores das suas famílias, sendo que dois
possuíam filhas/os/es e eram religiosos, se denominando como evangélicos. Como a literatura
aponta, eram pessoas comuns e não “monstros”, contrariando o senso comum sobre os HAV
(SANTOS et at., 2021). Durante a entrevista permaneceram retraídos e calmos, nenhum se
considerou culpado ou responsável pelas tentativas de feminicídios, as quais resultaram em suas
reclusões.
Dois entrevistados, Gustavo e Pedro, no momento da entrevista, não possuíam
relacionamento afetivo-sexual. Já Matheus, mantinha relacionamento com a mulher contra quem
ele havia praticado a tentativa de feminicídio. O entrevistado afirmou gostar da parceira, desejar
concluir sua pena e cuidar da família, buscando ser mais compreensível com ela e evitando as brigas.
Entretanto, em vários momentos elencou as discussões do relacionamento como oriundas do
temperamento e de atitudes dela.
204

Foi bom, não tenho nada a reclamar dos anos que eu passei com ela não, tive uma
filha com ela, foi tudo perfeito, certinho, só que a gente brigava muito ela é muito
estressada, muito alterada e...acabava gerando muito briga, eu “tava” trabalhando
muito, né?! (Matheus)

Ao relataram as experiências de violências na relação conjugal, ora os participantes


sinalizavam que desentendimentos e agressões eram intrínsecas aos relacionamentos, ora
responsabilizavam as (ex)companheiras pelas violências cometidas, revelando contradições. Ao se
referirem às tentativas de feminicídios, as descreveram como acidentais, como situações geradas
pela tensão do momento de conflito. De modo particular, um participante negou que tivesse ferido
a companheira, afirmando estar recluso, inocentemente, por uma ação que não realizou. Percebeu-
se, inclusive, postura vitimista dele frente às diversas violências que culminaram nas tentativas de
feminicídio.
Foi conflito não, foi por acidente mesmo, eles colocou que eu tentei matar ela, mas
eu tentei não. A gente estava bebendo em um bar [...] ela começou a me atentar,
brigar comigo porque eu tinha feito aquilo, e já tinha passado a raiva dela e eu
fiquei estressado, né! Aí eu fui arrumar o som do meu carro “pra” poder distrair aí
ela foi lá, não sei o que ela foi fazer lá, brincar comigo e eu tava com a faca de
serrinha e acertou nela sem querer quando eu mandei o braço e assustei, acertei
nela sem querer, mas eu não tive intenção de matar ela não, tanto é que a gente está
bem, tá tranquilo (Matheus).
[...] eu, eu tava com um tal, de um canivete na, na, uma faca na cintura e aí os caras
vieram em cima de mim e ela entrou na frente, aí...quando os caras viram, viram
que eu, o pau pegava mesmo ela entrou na frente e...fez, efetuei uns cortes no braço
dela [...] (Pedro).

No relato de Pedro, notou-se o ciúme como elemento central que o levou a ferir
“acidentalmente”, em seu ponto de vista, a (ex)companheira. Bandeira e Magalhães (2019) apontam
que a associação entre o ciúme e os feminicídios faz com que a violência letal seja equivocadamente
entendia como “crime da paixão”. As autoras salientam que “[ ...] a situação que serve de
‘justificativa’ ao crime deixa em aberto a causa central que não é o ciúme, mas a situação de
naturalização das desigualdades presentes na condição de gênero” (BANDEIRA; MAGALHÃES,
2019, p. 44).
Outro elemento que engendrou os relatos dos participantes é a masculinidade. Pedro indicou
que sua intenção era agredir os outros homens que acompanhavam a (ex)companheira e não ela
propriamente. Identificou-se que encontrar a companheira na presença de outros homens feriu sua
masculinidade, sua potência e virilidade; o que também pode ser entendido como o exercício de
dominação masculina, controle e poder sobre o corpo feminino. Na sociedade patriarcal, as
mulheres são “objetos de posse masculina”. A validação social enquanto homem perpassa o olhar
e reconhecimento do outro, isto é, os homens demostram poder perante outros homens por meio do
poder financeiro, da heterossexualidade, das relações hierárquicas com as mulheres e com outros
homens (GARCIA; BEIRAS, 2019; WELZER-LANG, 2001).
205

Ela não, ela eu, como se diz o outro, eu gosto muito dela, sabe?! Ah, mas os caras
seriam o alvo do, do, do projeto, sabe?! [...] Ah, me, me senti muito ofendido,
muito ferido, mercê entendeu?! Aí, aí, aí, aí...a casa caiu, porque nessa hora aí eu
fiquei, como se diz o baiano, fiquei cego da, da, da...entendeu?!” (Pedro).

Na sociedade patriarcal-capitalista-racista-colonialista, as mulheres ainda são


compreendidas como propriedade masculina, de modo que os homens devem deter o poder e
controle sobre elas. Muitas vezes, ao ver as (ex)companheiras com outro parceiro, os homens
sentem sua masculinidade diminuída ao perceberem que perderam o poder sobre aquele corpo e a
violência pode emergir como uma afirmação da sua masculinidade perante outros homens
(BANDEIRA; MAGALHÃES, 2019; MENEGHEL; PORTELLA, 2017).
Os entrevistados enfatizaram que as brigas e discussões eram comuns e esperadas em um
relacionamento conjugal, elemento constitutivo das dinâmicas do casal. Disseram desconhecer
relacionamento onde não houvesse conflitos. Percebeu-se a naturalização das violências morais,
psicológicas e financeiras, entendidas por eles como elementos corriqueiros e cotidianos da relação.
Saffioti (1999) aponta que uma das características da violência doméstica é sua rotinização, ou seja,
a violência torna-se parte da rotina e da dinâmica do casal.
[...] ela veio preguntar pra mim se eu acharia ruim, se eu tinha ciúmes dela sair
para trabalhar, eu falei olha eu, ciúmes eu tenho, mas só que o problema é esse, se
ela, se o que eu ganho não tá dando pra nós pagar o aluguel [...] (Pedro)
Um casal que não tenha discussão verbal eu preciso saber qual deles não tenha,
porque de vez em quando tem, não tem jeito. Mas assim, são pequenas palavras...
que não agredindo um ao outro, mas tem... (Gustavo)
Bem pouco, se eu entendo mais é questão de vida de casal mesmo essas coisas
mesmo que acontece, né?! Normal mesmo, assim, eu fico sabendo, mas eu mesmo,
entendo muito não (Matheus)

Ademais, percebeu-se que os participantes reconheciam a família burguesa, patriarcal e


nuclear como modelo ideal, no qual os homens deveriam ser os provedores e as mulheres
responsáveis pelos cuidados de filhas/os/es e da casa, ou seja, pelo trabalho doméstico não
remunerado. Dessa forma, notou-se que para os participantes o trabalho na esfera pública estava
atrelado a masculinidade; o sustento da família deveria ser dever do homem. As (ex)companheiras
deles não trabalhavam, pois, não consentiam. Nessa perspectiva, para eles o trabalho remunerado
era uma tarefa exclusivamente masculina. Por conseguinte, quando as funções domésticas não eram
realizadas pelas (ex)companheiras como os entrevistados esperavam surgiam brigas e discussões
justificadas pela quebra na expectativa sobre o comportamento.
Para Bandeira e Magalhães (2019, p. 44), “no geral, prevalece ainda o fato de que se o
homem sustenta a mulher/família, esta lhe pertence, na mesma proporção de qualquer outro bem,
como o automóvel, por exemplo”. Nessa perspectiva, as autoras salientam que o sentimento de
propriedade destinado às mulheres pode legitimar os homens na prática das violências, inclusive a
violência letal contra as mulheres.
206

Toda vez que eu chegava em casa do serviço na hora do almoço aí ela enrolava um
pouco para fazer almoço aí eu falava para ela que ela tinha que adiantar um
pouquinho porque eu precisava de almoçar e voltar para o serviço, durante a tarde
quando eu chegava, eu queria que ela tivesse é...e vamos supor ela tinha lavado a
roupa tinha pegado a roupa do arame eu tinha que chegar, eu chegava 17h30 do
serviço e tinha que chegar 18h30 no outro e aí eu cobrava dela, que ela tinha, né,
que recolhido as roupas, tal, e aí começava essas briguinhas bobas, aí eu ia
trabalhar no outro serviço com a cabeça quente e aí quando chegava em casa ela já
‘tava’ me esperando para discutir de novo. E aí ficava nessa. (Matheus)
Olha...era meio conturbada como se diz o outro, a gente na situação...a situação
financeira, eu sempre trabalhei, eu sempre ganhei só um salário mesmo, sabe?! E
ela era bastante dinherista, sabe?! E é só o problema que existia entre a gente era
isso aí, era só a situação financeira, entendeu?! ( Pedro)

Nessa conjuntara patriarcal, com papéis sociais e sexuais definidos, o contexto financeiro
apareceu como um elemento que fomentou as tentativas de feminicídio. Para Pedro, os gastos da
(ex)companheira eram uma das principais justificativas dos seus conflitos. O controle financeiro
por parte dos homens está associado às funções masculinas e o sentimento de fracasso pode ser
vivenciado por eles quando não as cumpri, uma vez que o gerenciamento financeiro pode envolver
controle e poder (CENCI; PAULI; FOLLE, 2018).
Os participantes pareciam ter consciência sobre o que caracteriza as violências contra
mulheres, indicando que elas envolvem situações desde uma discussão até o assassinato. Mesmo
demostrando compreender que agressões verbais também são formas de violências, eles entendiam
que elas eram inevitáveis no relacionamento. Gustavo, por exemplo, demostrou ter conhecimentos
sobre as múltiplas violências contra as mulheres, desde a violência verbal, a qual pode ocorrer por
meio da violência psicológica, moral e patrimonial, até o seu ápice, os feminicídios.

Uma violência contra uma mulher é...eu acredito que ela comece desde uma
palavra grosseira até hum...até um assassinato digamos assim, é pesado? É, mas
acho, acredito eu do meu ponto de vista, a violência começa por aí seja uma palavra
grosseira, uma palavra deselegante, pra mim já é uma violência, porque pode ser
psicológica, que pode causar um trauma, até um assassinato, que é um dos piores,
que eu não desejo pra ninguém. (Gustavo)
E ela começar a gritar, a falar alto, querer meio que assim a neném querer acordar
e tudo e ela gritava demais, falava alto demais, aí acabava que eu também me
alterava também e para evitar uma possível agressão minha ou dela também,
porque ela já chegou a me agredir também, a me avançar e tudo e eu já cortei isso
retinho, aí tentava evitar, né?! Para não chegar nesse ponto, por isso eu falava para
ela, eu vou embora para evitar, e eu ia embora pra minha mãe, isso quantas vezes
(Matheus)

Ainda que não soubessem explicar conceitualmente os feminicídios, os entrevistados


demostraram conhecimentos e reconheciam a gravidade deles, demostrando que as violências
podem se agravar e acarretar a morte das mulheres. Como indica a psicologia sócio-histórica, o
conhecimento sobre algo, embora importante, não é suficiente para que atitudes de uma pessoa
207

sejam modificadas, é preciso que esse conhecimento alcance a dimensão dos sentidos e significados
(BARROS et al., 2009).
Os entrevistados não se reconheceram como (re)produtores das violências. De acordo com
Garcia e Beiras (2019), ao narrarem suas histórias, os HAV tendem a desmistificarem as
preconcepções de que são violentos e agressivos, utilizando premissas reconhecidas e valorizadas
na cultura para pautarem seus argumentos. Do mesmo modo, os participantes ao valorizarem e
enaltecerem o trabalho remunerado, os cuidados e preocupação com a família parecem estar
almejando serem reconhecidos por valores sociais positivos e socialmente enaltecidos, negando as
violências praticadas. Outrossim, ao serem questionados sobre as crenças e expectativas acerca
dos homens na sociedade, surgiram perspectivas hierárquicas sobre o gênero, além de concepções
patriarcais sobre as famílias. O referencial de masculinidade para eles se centrava no exercício do
trabalho remunerado.
Olha o que eu entendo é isso que o homem tem que suprir a casa e a mulher
não trabalhar, entendeu?! (Pedro)
É, olha, em geral eu não sei, mas o meu mesmo era seguir minha vida
honestamente, eu já tinha mudado de cabeça, cuidar da família, viver sem
prejudicar ninguém, é algo do tipo, é eu não sei responder direitinho.
(Matheus)
É em termos de...como que eu posso porque se eu trabalho, a senhora
também trabalha, eu fico até sem jeito de responder essa pergunta [...]
(Gustavo)

Todavia, Gustavo ao se deparar com duas mulheres entrevistadoras-trabalhadoras, não


soube como justificar o papel-lugar dos homens. Para ele, afirmar que o papel do homem se encontra
no trabalho remunero estaria incorrendo em contradições perante as pesquisadoras, que também
estão inseridas no mundo de trabalho, na arena pública. Pareceu, então, que a interação do
participante com as pesquisadoras provocou deslocamentos em suas percepções e interpretações do
mundo e da realidade que o permeia, indo ao encontro da perspectiva assinalada por Rey (2005): o
ato de pesquisar é um processo que constituído na relação é produto de saberes localizados
socialmente.
Ao relatarem sobre suas vidas e rotinas com as (ex)companheiras, os participantes não
enfatizaram momentos de afetos com elas, ao contrário, a tônica esteve sob o trabalho remunerado
que exerciam. Uma das possíveis razões para essa não demonstração de afetos e valorização do
trabalho remunerado pode estar situada em aspectos da socialização masculina. Os homens, no seu
processo de socialização, geralmente não são ensinados e incentivados a demostrarem seus
sentimentos, usualmente vinculado à noção de fragilidade. São ensinados a se afastarem do que
possa ser considerado feminino, dominá-lo, demostrarem virilidade e poder (Welzer-Lang, 2001).
Desse modo, esses elementos podem se constituir em uma das justificativas para que os
208

participantes não elucidassem suas emoções e sentimentos pelas (ex)companheiras e ressaltassem


o trabalho remunerado e o sustento financeiro das famílias.

Considerações finais
A investigação das vivências de autores de tentativas de feminicídios acerca das relações de gênero
e das violências contra as mulheres permitiu compreender que os participantes sabiam identificar essas
violências em suas diferentes formas. Reconheciam a gravidade delas, entretanto, afirmavam que
eram inerentes aos relacionamentos. Assim, não se percebiam como autores de tentativas de
feminicídios, denotando que as violências letais praticadas contra as (ex)parceiras eram fruto do
acaso.
A masculinidade hegemônica, o desejo de demonstrar, possuir e usufruir do poder e
virilidade advindos da dominação masculina, a naturalização das violências, a falta de demonstração
de afetos pelas mulheres, a subalternidade dos trabalhos domésticos, a valorização do trabalho
remunerado foram os principais elementos sinalizados pelos participantes como intrínsecos aos
homens. Esses fatores interseccionados (re)produziram e foram mantenedores de contextos de
violência e tentativas de feminicídios.
As informações aqui apresentadas são fruto de pesquisa decorrente das investigações
realizadas a partir da interlocução entre o grupo de pesquisas de uma instituição pública de ensino
(envolvendo docente e graduanda) e um Juizado de Violência Doméstica e Familiar (articulando a
participação de uma psicóloga). Essa relação entre universidade e instituição que compõe a rede
intersetorial de enfrentamento à violência contra mulheres, no contexto de Goiás, tem fortalecido a
implementação das políticas públicas de gênero. Frente aos inúmeros estereótipos que contribuem
para a cristalização de papéis de gênero, especialmente no que concerte os HAV, e considerando a
gravidade e complexidade dos feminicídios esse estudo buscou avançar na compreensão do lugar e
papel dos homens nos contextos de violências.

Referências
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feminicídio/femicídio no Brasil e em Portugal. Revista da Defensoria Pública do Distrito
Federal, Brasília, v. 1, n. 1, p. 29-56, 2019. Disponível em: https://repositorio-
aberto.up.pt/bitstream/10216/123178/2/361526.pdf. Acesso em: 20 jul 2022.
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epistemológicas e suas implicações para a investigação psicológica. Psicologia & Sociedade, v.
21, n. 2, p. 174-181, 2009. https://doi.org/10.1590/S0102-71822009000200004.
BERNARDES, João Paulo.; MAYORGA, Claudia. Um Estudo Sobre Intervenções Junto A
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n. 1, p 1-15. 2017. https://dx.doi.org/10.5354/0719-0581.2017.46691
209

BRASIL. Decreto-lei, n°13. 104, de 9 de março de 2015. Brasília-DF. 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em: 02 mar.
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CENCI, Cláudia Maria Bosetto; PAULI, Jandir; FOLLE, Patrícia Daiane. Conjugalidade
negociada: elementos para compreensão do significado que casais atribuem ao dinheiro.
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https://dx.doi.org/10.15517/ap.v32i124.28392
GARCIA, Ana Luíza Casasanta.; BEIRAS, Adriano. A psicologia social no estudo de justificativas
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GEDRAT, Dóris Cristina.; SILVEIRA, Eliane Fraga.; ALMEIDA-NETO, Honor. Perfil dos
parceiros íntimos de violência doméstica: uma expressão da questão social brasileira. Serv. Soc.
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MENEGHEL, Stela Nazareth; PORTELLA, Ana Paula. Feminicídios: conceitos, tipos e cenários.
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WELZER-LANG. D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Estudos
Feministas. Florianópolis, v. 9, n. 2. p. 460-482, 2001. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ref/a/WTHZtPmvYdK8xxzF4RT4CzD/. Acesso em: 30 set. 2021.
210

UMA CONTRIBUIÇÃO DA METODOLOGIA DO ÍNDICE DE PROGRESSO


SOCIAL PARA FUNDAMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS QUE VISEM
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DOS MUNICÍPIOS DO ESTADO DE
GOIÁS

Marcelo Ladvocat58
Marcela Scalco Freitas59
Introdução
Para Haddad e Mota (2010) o orçamento público é uma forma de se materializar o
planejamento almejado, ou seja, é a forma discriminada de se prever todas as fontes e as aplicações
dos recursos obtidos com impostos. A própria constituição, em seu artigo 37, norteia os princípios
de governança do orçamento público, seja pela administração direta ou indireta de qualquer um dos
Poderes (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) quando impõe que devem ser obedecidos
os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. No Brasil, apenas
duas pastas60 tem mínimo obrigatório de gasto por imposição legal. No que tange a pasta da saúde,
mesmo a despeito de qualquer análise do binômio necessidade x possibilidade, a Lei Complementar
nº 141, de 13 de janeiro de 2012, em seu art. 7º impõe ao gestor público que se destine anualmente
o mínimo de 15% (quinze por cento) da receita total do município. Já para o tema educação, a
Constituição Federal em seu artigo 212 estabelece o mínimo de 25% (vinte e cinco por cento) da
receita resultante de impostos arrecadados para a manutenção e desenvolvimento do ensino.
Independentemente do valor mínimo , ou até mesmo do valor total investido, o resultado deste
investimento é o grande benefício para a população.
Desde que importantes índices econômicos como o PIB (produto interno bruto, criado em
1937 pelo economista Simon Kuznets) surgiram no mundo, o homem busca maneiras de medir o
desenvolvimento e o bem-estar social. Devido às mudanças que ocorrem constantemente na
sociedade, é cada vez mais importante a identificação de novos conjuntos de indicadores globais,
nacionais, estaduais e até mesmo locais que permitam avaliar o progresso na perspectiva do
desenvolvimento sustentável. Avaliar o Progresso Social é avaliar se o dinheiro público está sendo
investido de forma responsável, se as necessidades básicas humanas estão sendo satisfeitas, se
temos segurança, se o progresso é sustentável (STERN; EPNER, 2019).

58
Doutorado em Economia pela Universidade Católica de Brasília, Brasil(2014) Coordenador Mestrado do
Faculdades Alves Faria Ltda , Brasil [email protected]
59
Mestrado Profissional em Desenvolvimento Regional pelo Faculdades Alves Faria, Brasil (2023)
[email protected]
60
No âmbito da demonstração pública brasileira nomeia-se pasta o setor de atuação, como por exemplo , pasta da
saúde , economia, educação e etc...
211

Neste contexto de eficiência dos gastos públicos, onde se demandam dados e índices
fidedignos para atendimento da necessidade da população, o presente artigo se propõe a demonstrar
como a propositura de um Índice de Progresso Social Goiano em nível municipal pode ser de
grande auxílio na gestão pública.

O índice de progresso social (IPS): um índice multidimensional


O Índice de Progresso Social foi elaborado por acadêmicos de grandes centros de pesquisa
como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Universidade de Harvard (Estados Unidos)
e a Universidade de Oxford (Reino Unido) e está sendo adotado em diversos países e territórios
subnacionais do mundo (SANTOS et al., 2018). Desde 2013, data de sua divulgação em escala
mundial, seu fundamento é medir até que ponto os países atendem às necessidades ambientais e
sociais de seus cidadãos, sendo que este vem sendo atualizado anualmente. O IPS foi o primeiro
índice global para mensurar Progresso Social que independe do PIB, mas é complementar a ele.
Oferece uma fundamentação sistemática e empírica para guiar estratégias para crescimento
inclusivo (BASSALO; TORKOMIAN, 2017). Além disso, o IPS é um método robusto com
capacidade de integrar uma ampla gama de indicadores sociais espacialmente distribuídos e
comparáveis e apresentá-los de maneira didática. Isso permite orientar os esforços do governo, setor
privado e sociedade em geral para a melhoria do Progresso Social (SANTOS et al., 2018).
Diferente de outros índices que medem o desempenho social na região, por exemplo, o
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o IPS é obtido apenas por meio de indicadores sociais
e ambientais, não se atendo apenas a indicadores econômicos. Além da exclusão de variáveis
econômicas, se utiliza de medidas de resultados, em vez de insumos, para garantir os resultados
(PULICI; MOURA; MOSANER, 2017). Isso permite avaliar melhor os indicadores obtidos no
Progresso Social e em seguida compará-los aos demais (SANTOS et al., 2018).
O Índice de Progresso Social, da forma que é proposta pelo SPI- Social Progress Imperative
mede um leque abrangente de componentes de desempenho socioambiental, agregando em uma
única estrutura. O índice foi desenvolvido com base em amplas discussões com partes interessadas
de todo o mundo sobre o que falta quando os legisladores se concentram no PIB, tendo em sua
estruturação quatro princípios fundamentais: Indicadores exclusivamente sociais e ambientais,
Resultados em vez de dados ; holístico e relevante para todos os países; e factível. Segundo o
relatório do Social Progress Imperative 2022 o índice que até então era estruturado em 12
componentes e 52 indicadores distintos em 2022 foi o mais extenso realizado pela instituição até
agora utilizando-se de 60 indicadores para medir o desempenho social de 169 países totalmente e
outros 27 países parcialmente. A estrutura permite não somente fornecer uma pontuação e um
ranking agregados para os países, mas também permite fazer análises detalhadas de pontos fortes e
212

fracos específicos. A transparência da medição usando uma estrutura abrangente permite aos
agentes da mudança identificar os problemas mais urgentes em suas sociedades.

AS COMPETÊNCIAS DO MUNÍCIPIO BRASILEIRO

A elevação dos municípios à ente Federativo foi considerado por diversos estudiosos como
um dos grandes marcos da Constituição de 1988. Nesta ocasião a Constituição promove uma
descentralização dos poderes ampliando a responsabilidade do gestor Municipal pela execução das
políticas sociais, o que anteriormente cabiam tão somente às esferas Estaduais e Federal. Coube ao
município solucionar as demandas da população por serviços e obras. A constituição de 1988 traz
as obrigações inerentes a cada ente Federativo em diversos artigos, no entanto no Art. 30 se descreve
o que compete aos Municípios a legislar sobre assuntos de interesse local.

Tabela 1: Obrigações do Ente Federativo Municipal

Artigo Da
Pasta Constituição
Pública Federal Obrigação da Esfera Municipal Leis e/ou Normativas adicionais

§ 2º Os Municípios atuarão
prioritariamente no ensino
Educação fundamental e na educação infantil.
(Redação dada pela Emenda
Art. 211. Constitucional nº 14, de 1996)

Portaria Nº 3.925, de 13 de novembro de


1998 /A Lei nº 8.080 - administração
VII - prestar, com a cooperação municipal assume gradativamente a
técnica e financeira da União e do responsabilidade de organizar e
Estado, serviços de atendimento à desenvolver o sistema municipal de
saúde da população; saúde, onde insere-se o conjunto de
ações que caracterizam a ATENÇÃO
Saúde Art. 198 BÁSICA.

Resolução Normativa ANEEL nº 414, de


V - organizar e prestar, diretamente ou
9 de setembro de 2010, no art. 218 .Art.
sob regime de concessão ou
149-A -A Os Municípios e o Distrito
permissão, os serviços públicos de
Federal poderão instituir contribuição, na
interesse local, incluído o de
Bem Estar forma das respectivas leis, para o custeio
transporte coletivo, que tem caráter
/Iluminção do serviço de iluminação pública,
essencial;
Publica Art. 30. observado o disposto no art. 150, I e III.

§ 8º Os Municípios poderão constituir


guardas municipais destinadas à
proteção de seus bens, serviços e
Segurança Art. 144 instalações, conforme dispuser a lei.

Fonte: Elaboração Própria.


213

Parametrização e adaptação em nível municipal


Segundo Da Silva e Ladvocat (2021), são poucos os trabalhos envolvendo a aplicação do
IPS em níveis regionais, tem-se apenas três utilizações do método em nível subnacional : Rio de
Janeiro, Santa Catarina e Amazônia. No anexo 1, é possível correlacionar as variáveis propostas
pela Amazônia, Rio de Janeiro e Santa Catarina com os utilizados pelo índice mundial. Até aonde
se estendeu esta pesquisa soma-se aos 03 citados municípios o IPS GOIANA, também de nível
subnacional, realizado pela instituição Avina em parceria com a Universidade Federal da Paraíba
(UFPB) onde foram mapeadas cinco diferentes regiões do município de Goiana localizado na região
Metropolitana de Recife em Pernambuco, objetivando produzir um diagnóstico local mais
aprofundado com indicadores construídos com base em metas de longo prazo, inspiradas nos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Após o entendimento sobre as atuações de cada esfera, uma vez que a propositura é de um
índice para utilização em nível subnacional na esfera municipal, o IPS Goiano idealizado propõe a
manutenção das 03 dimensões com 27 indicadores levantados para 246 municípios do Estado de
Goiás parametrizados e adaptados conforme disponibilidade de dados e que faça sentido na atuação
do ente municipal conforme demonstrado no Anexo 1 com a dimensão Necessidades Humanas
Básicas .

Conclusões
A utilização do método se mostrou eficiente em nível subnacional quando as adaptações
propostas para utilização ranqueiam e demonstram onde os municípios tem sua fragilidade e devem
atuar.

Tabela 2: Dois primeiros e dois últimos colocados no ranking do IPS Goiano -Dimensão necessidade Humana
Básica

Localidade Nota Ranking IPS

Goiânia 83 1
Itumbiara 82,23 2
São Domingos 69,1 245
Cavalcante 65,54 246

Fonte: Elaboração Própria.

Na tabela 2 por exemplo percebe-se que os municípios de São Domingos e Cavalcante tem
índices compatíveis com países Argélia e Guiana necessitando de mais atenção à políticas públicas
que visem a melhoria dos parâmetros utilizados nesta dimensão tais como: Cobertura vacinal
tetravalente, taxa de mortalidade, subnutrição, atendimento de água e esgoto
214

Referências
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 10 de outubro de
2022.
BASSALO, Gisa Helena Melo; TORKOMIAN, ALV. Inovação e Progresso Social na América
Latina: Uma Visão Sintética. 2017.
DA SILVA, Alysson Dias; LADVOCAT, Marcelo. SOCIAL PROGRESS INDEX IN BRAZIL AT
SUBNATIONAL LEVEL: LITERATURE REVIEW. Revista Baru-Revista Brasileira de
Assuntos Regionais e Urbanos, v. 7, n. 1, p. 15, 2021.
HADDAD, Rosaura Conceição; MOTA, Francisco Glauber Lima. Contabilidade pública, 2010.
PULICI, Andrea; MOURA, Danilo Carvalho; MOSANER, Marcelo Sette. Índice de Progresso
Social para o Rio de Janeiro. IPS RIO - Resumo Executivo. 2017. Disponível em:
https://s3.amazonaws.com/ipsrio/publicacoes/relatorio-metodologico.pdf
SANTOS, Daniel et al. Índice de Progresso Social na Amazônia brasileira: IPS Amazônia 2018.
Belém: Imazon. Social Progress Imperative. 2018. Disponível em:
https://imazon.org.br/publicacoes/indice-de-progresso-social-na-amazonia-brasileira-ips-
amazonia-2018/
STERN, Scott; EPNER, Tamar. Social Progress Index, Methodology Summary, Social Progress
Imperative. 2019. Disponível em:
Https://www.socialprogress.org/assets/downloads/resources/2019/2019-Social-Progress-Index-
Methodology-Report.pdf

ANEXO 2 – ADAPTAÇÕES DO INDÍCE DE PROGRESSO GOIANO NA DIMENSÃO


NECESSIADDE HUMANA BÁSICA

IPS Municipal Adaptação proposta


Goiano INDEX Mundial pelo IPS Goiano Justificativa da Adaptação
Obrigação de esfera municipal dados
Mortes por doenças Cobertura vacinal existentes e de responsabilidade do
infecciosas tetravalente Município
Taxa de Mortalidade Obrigação de esfera municipal dados
Infantil (por 1.000 existentes e de responsabilidade do
Nutrição e
Taxa de mortalidade infanti nascidos vivos) Município
cuidados
médicos Criança com nanismo Retirado Indisponibilidade de Dados
Necessidades Humanas Básicas

básicos Taxa de mortalidade


neonatal precoce (por mil
nascidos vivos) (por 1.000 Obrigação de esfera municipal e dados de
Taxa de mortalidade materna nascidos vivos) responsabilidade do Município
Percentual de nascidos
Subnutrição vivos com baixo peso (%) Obrigação de esfera municipal .

Apesar de uma obrigação Estadual , serve


Acesso a saneamento Percentual da População de parâmetro para que o município pleiteie
melhorado Atendida com Esgoto (%) melhoria junto ao Estado.
Água e
Apesar de uma obrigação Estadual , serve
saneamento
Acesso a fonte de água Percentual da População de parâmetro para que o município pleiteie
melhorada Atendida com Água (%) melhoria junto ao Estado.
Água insegura, saneamento e
mortes atribuíveis à higiene Retirado Indisponibilidade de Dados

Abrigo Mortes atribuíveis à poluição


do ar doméstico Retirado Indisponibilidade de Dados
215

Insatisfação com a
acessibilidade da habitação Retirado Indisponibilidade de Dados

Apesar de uma obrigação Estadual /Federal


Cobertura da rede de , serve de parâmetro para que o município
Acesso a eletricidade energia elétric pleteie melhoria.
Uso de combustíveis limpos
e tecnologia para cozinhar Retirado Indisponibilidade de Dados
Mortes por violência Óbitos por agressões
interpessoal (número)
Mortes relacionadas ao Óbitos por acidente de
Segurança transporte transporte (número)
pessoal Homicídio Doloso Apesar de uma obrigação Estadual /Federal
Criminalidade percebida (número) , serve de parâmetro para que o município
Assassinatos políticos e pleiteie melhoria junto ao Estado ou
tortura Retirado implemento de Guarda Civil.

ANEXO 1 – COMPARAÇÃO ENTRE OS ÍNDICES EM NÍVEL SUBNACIONAL PROPOSTOS PELO RIO


DE JANEIRO , AMAZÔNIA E SANTA CATARINA
Comparativo de
Index IPS
Brasileiros x
Mundial INDEX MUNDIAL RJ SC AM
Internações
infantis por crise
Mortes por doenças respiratória Mortalidade por doenças
infecciosas aguda infecciosas
Taxa de mortalidade Mortalidade
infantil Infantil Mortalidade infantil até 1 ano

Criança com nanismo Mortalidade por desnutrição

Nutrição e Taxa de mortalidade Mortalidade


cuidados materna materna Mortalidade materna Mortalidade materna
médicos Baixo peso ao Baixo peso ao
básicos Subnutrição nascer nascer Subnutrição
Acesso a saneamento Acesso a Domicílios com
melhorado Banheiro: banheiro Saneamento rural
Necessidades Humanas Básicas

Acesso a fonte de água Acesso à Água Abastecimento de


melhorada Canalizada: agua no domicílio Abastecimento de água
Água insegura, Acesso a
saneamento e mortes Esgotamento Rede de esgoto no
atribuíveis à higiene Sanitário: domicílio Esgotamento sanitário
Água e
saneamento Lixo coletado
Mortes atribuíveis à
poluição do ar
doméstico Máquina de lavar Coleta de lixo
Insatisfação com a Adensamento Adensamento
acessibilidade da Habitacional Habitacional
habitação Excessivo: Excessivo Moradia adequada
Acesso à Energia Acesso à energia
Acesso a eletricidade Elétrica elétrica Acesso à energia elétrica

Uso de combustíveis Pessoas Vivendo


limpos e tecnologia em Favelas
Abrigo para cozinhar NãoUrbanizadas Geladeira
Mortes por violência Taxa de
interpessoal Homicídios Taxa de homicídio Homicídios
Mortes relacionadas ao Taxa de lesão
transporte corporal dolosa Mortes no trânsito
Segurança Criminalidade Taxa de roubo de
pessoal percebida Roubos de Rua rua Assassinatos de jovens
216

Assassinatos políticos e
tortura Taxa de latrocínio
Mulheres sem
escolaridade
Acesso igual à Distorção idade-
Analfabetismo
educação de qualidade série
Qualidade do
Matrícula na escola Ensino
Alfabetização Acesso ao ensino fundamental
primária Fundamental,
anos iniciais
Qualidade do
Escolaridade Ensino Nota média IDEB -
Qualidade da educação
secundária Fundamental, Anos iniciais
anos finais
Acesso ao Abandono
Paridade de gênero no Nota média IDEB -
Conhecimento Escolar no
ensino médio Anos finais
Básico Ensino Médio
Acesso à governança
online
Conexão de dados de internet
usuários de internet Acesso à internet Internet
móvel
Fundamentos do bem-estar

Censura da mídia

Acesso a Acesso a
Assinaturas de telefone
informações e Telefone Celular Telefone Conexão de voz
celular
comunicações ou Fixo:
Expectativa de vida aos
Focos de dengue Expectativa de vida ao nascer
60
Mortes prematuras por Mortalidade por
Mortalidade
doenças não Doenças Casos de hanseníase
por doenças crônicas
transmissíveis Crônicas
Acesso igual a cuidados Incidência de Casos de sífilis em Mortalidade por doenças
de saúde de qualidade Dengue gestante respiratórias
Mortalidade por
Acesso a serviços Casos de hepatite
Tuberculose e Obesidade
essenciais de saúde viral
HIV
Saúde e bem Suicídio
estar
Mortes atribuíveis à Taxa de recuperação
poluição do ar exterior materiais recicláveis Áreas Protegidas
Mortes por exposição Massa per capita de Desmatamento
ao chumbo materiais recicláveis acumulado
Poluição por material Coleta Seletiva
Desmatamento recente
particulado de Lixo recolhidos
Degradação de
Proteção de espécies
Áreas Verdes Arborização Área degradada
Qualidade Desperdício de água*
ambiental
Taxa de homicídios
Tempo Médio de
Acesso à justiça por intervenção
Deslocamento:
policial Mobilidade urbana
Homicídios por
Liberdade de expressão
Ação Policial Pessoas ameaçadas
Oportunidade

Tempo
Mobilidade
Liberdade de religião deslocamento casa -
Urbana:
trabalho
Participação
Direitos políticos Eleitores faltosos
Política: Diversidade partidária
Direitos Direitos de propriedade
pessoais para mulheres
Procura satisfeita de
contracepção
217

Percepção de corrupção
Vulnerabilidade familiar
Gravidez na Gravidez na Gravidez na infância e
Casamento precoce
Liberdade e Adolescência: Adolescência adolescência
escolha Jovens que não Bibliotecas, museus,
pessoal Índice de Acesso
estudam, trabalham ou teatros e centros
à Cultura
treinam culturais Acesso à cultura, lazer e esporte

Emprego vulnerável Trabalho Infantil Trabalho infantil


Trabalho infantil
Igualdade de poder Violência Contra Taxa de violência
político por gênero a Mulher contra mulher
Igualdade de poder
político por grupo
social Violência contra indígenas
Igualdade de poder
Vulnerabilidade Vulnerabilidade
Inclusividade político por posição Desigualda- de racial na
Familiar Familiar
socioeconômica educação
Discriminação e
Homicídios de
violência contra
Jovens Negros:
minorias Violência contra a mulher
Aceitação de gays e
lésbicas

Documentos citáveis

Pessoas com Pessoas com ensino


Liberdade acadêmica
Ensino Superior: superior Pessoas com ensino superior
Acesso à Negros e Pessoas pretas,
Mulheres com
educação Indígenas com pardas ou indígenas
educação avançada
avançada Ensino Superior com ensino superior Educação feminina
Anos esperados de Frequência ao Frequência ao
escolaridade superior Ensino Superior ensino superior Frequência ao ensino superior
Universidades de
qualidade ponderada

Qunatidade de
indicadores 53 36 39 42
218

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER EM TEMPOS DE PANDEMIA DA


COVID-19 – REFLEXÕES NO ÂMBITO DO SERVIÇO SOCIAL

Júlia Rosa Fábio61


Carmem Lúcia Cruz Ravagnani 62
Introdução
Entende-se como violência doméstica contra a mulher (PENHA, 2006) “qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial”. Além disso, abrange vários aspectos na vida da mulher vitimada e toda
a estrutura social na qual ela está inserida. Um dos fatores constitutivos desse problema é a formação
histórico-econômica do Brasil que foi estruturada pelo sistema patriarcal, machista e escravocrata.
Objetiva-se com este estudo dialogar sobre a violência doméstica em contexto da pandemia do
covid-19 e o que foi discutido no Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) nos anos de 2020,
2021 por meio de levantamento bibliográfico das publicações sobre o tema no seu site.
Considera-se, neste diálogo, que o contexto de pandemia aprofundou as refrações da questão social,
dessa maneira pressupõe-se um agravo nos casos de violência doméstica, sendo denunciados ou
não. Pressupõe-se também que as publicações sobre o tema no site do CFESS pontuam o
posicionamento do governo vigente e da categoria de assistentes sociais que entra em desacordo
com os objetivos éticos do Serviço Social.

Violência doméstica no Brasil


O Brasil possui em sua formação histórico-econômica particularidades que se manifestam
nas relações sociais e são ainda reproduzidas devido ao processo de colonização que perpassa não
apenas a exploração econômica, mas se fez presente também nas relações interpessoais entre
colonos e colonizados. A síntese dessas relações pode ser traduzida em dominação sobre o outro
ser humano, seja na cultura, no direito à propriedade ou no direito ao seu corpo. Neste processo,
pontua-se também a escravidão que subtraiu dos seres humanos escravizados, não apenas o direito
à liberdade, à propriedade, mas também o direito sobre o seu próprio corpo e a vida. Para Cisne O
entendimento da exploração de classe no Brasil, portanto, não pode desconsiderar a exploração da
população negra e indígena na economia colonial do país, desenvolvida pelo trabalho forçado e
elações de apropriação sobre o corpo e a vida desses povos, destacada e diferenciadamente sobre as
ulheres que, além do trabalho forçado, tiverem seus corpos apropriados para exploração sexual.
(CISNE, 2021 p.133)

61 Universidade Federal de Uberlândia. Graduanda em Serviço Social. [email protected]

62 Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em Serviço Social. [email protected]


219

A exploração sobre o corpo feminino acontece na medida em que a escravidão e a colonização


se consolidam na sociedade brasileira, o machismo assim se caracteriza como problema estrutural
no Brasil. Sendo assim, a violência se justificava pela propriedade sobre outro ser humano,
principalmente sobre as mulheres, tornando-se natural partindo da premissa de que o homem
branco, detentor de terras e de escravas se utilizava desses corpos para satisfazer seu ímpeto sexual,
pois, para ele, as mulheres negras e indígenas escravizadas não eram seres humanos, apenas corpos
que lhes pertenciam e podiam ser utilizados da forma como quisesse. Dessa maneira, a violência
sexual e as demais violências contra a mulher tornam-se naturalizadas.
Em manutenção a essa violência contra a mulher, a legislação brasileira perpetua essa
naturalização, com o primeiro código criminal de 1830, o qual tinha como atenuante a crimes
segundo os artigos 4º “Ter o delinquente commettido o crime em desaffronta de alguma injuria, ou
deshonra, que lhe fosse feita, ou a seus ascendentes, descendentes, conjuge ou irmãos”. (BRASIL,
fl. 39 do liv. 1º, 1830) Assim, este artigo permitia a quase isenção do crime chamado hoje de
feminicídio63 com o argumento de que o assassinato da companheira foi justificado pela desonra
que a parceira cometeu ao trai-lo, reafirmando assim a dominação legal do homem sobre a mulher.
A realidade de violência contra a mulher, somada a nenhum amparo do Estado brasileiro até
o ano de 1930, seja pela lei ou por serviços de acolhimento e combate contra a violência doméstica
faz emergir na sociedade uma demanda social, que começa a ser mobilizada e questionada pelos
movimentos sociais, em específico o feminista. Para SOUZA (2019, p. 2) “O processo das políticas
públicas se constitui de movimentos que não seguem uma linearidade de etapas, sendo movimentos
interdependentes e articulados que devem ser compreendidos na sua totalidade”. Ao
compreendermos a violência contra a mulher como um problema social, compreendemos também
que o enfretamento se inicia na sociedade a partir da mobilização social sendo um dos resultados
da reivindicação popular a criação das políticas públicas.
As políticas públicas para as mulheres foram, em sua maioria, articuladas por movimentos
feministas que alcançaram, aos poucos, conquistas como: a reformulação de leis, elaboração de
planos nacionais voltados à saúde da mulher, criação de serviços de combate à violência contra a
mulher e de acolhimento às mulheres vitimadas. Dentre estas conquistas ressalta-se duas: uma que
consiste na criação da Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM), um dos
principais equipamentos de repressão à violência contra a mulher, em 1985; outra é a Lei 11.340 de
7 de agosto de 2006, Lei Maria da Penha que tipifica, penaliza e cria mecanismos para o
enfrentamento aos crimes de violência contra a mulher.

63 O neologismo surgiu para nominar os assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero. No Brasil, a Lei do
Feminicídio entrou em vigor em 2015 e o colocou na lista de crimes hediondos, que têm penas mais altas. A palavra
vem do termo “femicídio”, cunhado em 1976 pela socióloga sul-africana Diana Russell, que sentiu a necessidade de
diferenciar o homicídio de mulheres em razão do gênero (TJ-MG .Justiça pela Paz em Casa: entenda o que caracteriza
o feminicídio, acesso em 22/11/22).
220

É perceptível quando nos atentamos às datas dessas duas conquistas que existiu certa
morosidade nos avanços relacionados ao combate à violência doméstica, principalmente se
levarmos em consideração que a Lei Maria da Penha foi promulgada apenas em 2006; antes da
promulgação desta lei, no Brasil não existia nenhuma lei que tipificasse, penalizasse e criasse
mecanismos para o enfrentamento aos crimes de violência contra a mulher, como a lei Maria da
Penha. Para Barsted
A partir de1995 até 2006, registrava-se um conflito legislativo tendo por um lado a Convenção
de Belém do Pará, que considera a violência contra as mulheres como violação de direito humanos,
e a Lei 9.0995/95 que, em grande medida, considerava esses atos como crimes de menor potencial
ofensivo. A Lei Maria da Penha, de 2006, ao sanar esse conflito legislativo, teve como objetivo não
apenas a punição dos autores das agressões, mas, principalmente, a proteção das mulheres em
situação de violência (BARSTED, 2012, p.107)
Como dito anteriormente, uma das explicações para a dificuldade em se obter uma lei que
ampare a mulher vitimada de violência doméstica é que o Brasil possui em sua formação um
histórico de dominação patriarcal sobre o corpo feminino, naturalização da violência contra a
mulher e manutenção dessa violência pela legislação brasileira, o que torna complexo o combate à
violência contra a mulher por esses e outros fatores estruturais. para além de fatores conjunturais,
regionais, culturais, e não menos, os fatores emocionais e psicológicos que dificultam e/ou impedem
o enfrentamento pelas próprias mulheres vítimas dessa violência.

Violência doméstica no contexto da pandemia de covid-19


A Covid-19, segundo o Ministério da Saúde, é uma infecção respiratória aguda causada pelo
Coronavírus SARS-CoV-2, potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de circulação
global que, a partir de março de 2020 foi elevado a grau de pandemia. Em abril do mesmo ano, o
Conselho Nacional de Saúde recomenda no Brasil o isolamento social, como forma de enfretamento
ao novo Coronavírus, não apenas o Brasil, mas o mundo adotou essa recomendação que partiu da
Organização Mundial de Saúde (OMS) como tentativa de diminuição de novos casos da doença.
A partir desse momento, as pessoas foram orientadas a ficar em casa por meio de decretos
estaduais e municipais, o comércio e a maioria dos serviços não essenciais precisaram fechar as
portas, com isso o Estado brasileiro precisou tomar medidas urgentes para prestar assistência à
população que estava impossibilitada de trabalhar. Além disso, no Brasil, se existia a população
desempregada e desalentada que previamente necessitava do auxílio das instituições públicas para
se ter o mínimo de subsistência, nessa perspectiva, a diminuição da renda e o isolamento social
somados a uma política de desmonte de serviços públicos fizeram com que a questão social se
acentuasse no país, por isso também se pressupunha o aumento do número de casos de violência
doméstica.
221

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 que quantifica os dados de


violência no Brasil por 100 mil habitantes, informam o aumento de 62.514 mil novos casos de
violência doméstica se comparamos os anos de 2019, ano que precede a pandemia, com o ano de
2021 quando a pandemia ainda permanecia, porém com o início de algumas flexibilizações no final
do segundo semestre, devido ao início de vacinação da população, ao regredirmos a comparação
para o ano de 2016 quando o pais estava sobre o final do governo do presidente Michel Temer,
obtém-se o aumento de novos casos de violência doméstica ainda maior totalizando 208.024 mil
novos casos registrados no país.
Entre os anos 2016 e 2021, ocorreram no país algumas mudanças, dentre elas estão a
mudança do governo do presidente Michel Temer para o governo de Jair Bolsonaro. O governo
Temer agrava o processo de desmonte às políticas públicas em geral e principalmente a rede de
enfrentamento à violência contra a mulher 64, pois no ano de 2016 foi aprovada a Emenda
Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, que limita o aumento dos gastos públicos à
variação da inflação e ataca diretamente a atuação da rede de enfrentamento, pois, para se articular
os equipamentos da rede e garantir o funcionamento de qualidade é necessário o direcionamento de
verbas públicas para o pagamento do salário dos funcionários de cada equipamento, manutenção e
ampliação das estruturas físicas e recurso para desenvolvimento de projetos para as mulheres
vitimadas de violência que são acolhidas pelos equipamentos de média e alta complexidade.
Em conseguinte ao desmonte à rede de enfrentamento da violência contra a mulher, soma-
se a perspectiva do enfrentamento à violência doméstica não totalizadora, pelo governo federal
vigente, no período de 2020 a 2021 que é percebida nos programas propostos pelo Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Em levantamento sobre programas e projetos do atual
governo que agregam a rede de enfrentamento à violência doméstica, obtém-se como proposta
inovadora o programa piloto Salve uma Mulher, que consiste em capacitar e informar a população
para denunciar e acolher a mulher vitimada de violência doméstica, não levando em consideração
a possibilidade de se fortalecer na rede já existente de enfrentamento a violência doméstica. Os
demais programas como Programa Mulher Segura e Protegida, antigo Mulher, viver sem Violência,
criado em 2013, e Maria da Penha vai à Escola, são continuação de programas já executados por
governos anteriores.
Conjuntamente, em estudos bibliográficos levantados no site do Conselho Federal de
Serviço Social (CFESS) nos respectivos anos de 2020 e 2021, acessamos o informativo que aborda

64 O conceito de rede de enfrentamento à violência contra as mulheres diz respeito à atuação articulada entre as
instituições/ serviços governamentais, não-governamentais e a comunidade, visando ao desenvolvimento de estratégias
efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento e construção da autonomia das mulheres, os seus
direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência.
(SPM ,2011)
222

o tema de violência doméstica, CFESS Manifesta 65(2017-2020), Manifesto: Março de Lutas que
discute a relação do governo atual com a violência doméstica, o qual destaca o agravamento das
desigualdades históricas pelo desmonte voraz dos direitos sociais. Para Ferreira,
Os discursos e anúncios cotidianos que apelam à valorização da família nuclear burguesa, à
abstinência sexual para adolescentes e as iniciativas da bancada religiosa e fundamentalista de
impor legislações que agravem a criminalização e interditem o direito das mulheres ao aborto, são
parte de uma tentativa de redomesticação das mulheres que, se aparecem sob a forma desvario
conservador, repousam em um interesse material concreto: manter as mulheres em lugares
subordinados que são funcionais à reprodução do sistema. São a contraface do desmonte de políticas
e da expropriação de direitos. Nesse contexto, a violência contra as mulheres recrudesce. Aumentam
os números de violência sexual, e do estupro corretivo contra as mulheres lésbicas. Os crimes de
feminicídio crescem. (FERREIRA, 2020, p.116.)
O discurso do atual governo de valorização da família nuclear burguesa e as teorias
infundadas conservadoras como tentativa de manter as mulheres em lugares que são subordinados
e funcionais à reprodução do sistema capitalista resulta no aumento da violência de todos os tipos
contra a mulher, pois recorre ao pilar do patriarcalismo machista brasileiro para naturalizar a
violência contra mulher e assim justificar o desfinanciamento das políticas públicas. Esse
delineamento apontado por Verônica Ferreira, liga-se diretamente ao entendimento da relação de
apropriação sobre o corpo feminino abordado por Mirla Cisne, trabalhado nesse estudo,
confirmando a complexidade do problema e o descaso do Estado brasileiro na abordagem do
enfrentamento à violência doméstica.
Nossos estudos são acrescidos, para além das publicações no site do CFESS: Assistente
Social no Combate ao Preconceito, caderno 06- Machismo, que discorre sobre as reflexões da
profissão do Serviço Social, no qual discute o machismo abarcando transversalmente a violência de
gênero. A autora Emilly Marques Tenório demonstra como o Serviço Social está associado com a
questão de gênero, quando levamos em consideração a predominância feminina da profissão. Para
Tenório (2019, apud Cisne, 2015) ao abordar o Serviço Social como uma profissão, afirma que é
quase exclusivamente ocupada por mulheres, destacando o caráter inicial conservador e vinculado
a igreja católica, não reconhecido dessa maneira como um trabalho especializado, mas sim como
atividade desenvolvida por atributos “naturalmente” femininos.
Por meio do material selecionado sobre o tema pudemos acessar e trazer a reflexão sobre a
discussão dessa temática pela categoria de assistentes sociais por meio do Conselho Federal de
Serviço Social nos anos de 2020 a 2022. O periódico CFESS Manifesta, traz a compreensão acerca

65 A gestão do CFESS apresenta, à categoria e à sociedade, mais um livro que reúne todos os textos teóricos e políticos
da publicação regular e já bem conhecida dos nossos informativos CFESS Manifesta, organizada pela Comissão de
Comunicação. (CFESS. CFESS Manifesta. acesso em 15/11/2022)
223

do desacordo do discurso moralizador do governo atual com os objetivos e lutas do Serviço Social
contra violência doméstica, infere-se também que esse posicionamento interfere na categoria do
serviço social, na medida em que representa um retrocesso para o usuário e para a trabalhadora
assistente social ao reforçar o viés ideológico assistencialista da profissão, desvinculando assim a
perspectiva de direitos pela qual trabalha.
Considerações finais
O presente artigo discute a naturalização histórica da violência contra a mulher e reflete
sobre a manutenção desse problema pelo Estado brasileiro ao longo dos anos e como essa demanda
social precisou de mobilização de movimentos sociais para entrar na pauta do governo como
problema que deve ser combatido, desculpabizando dessa maneira a mulher vitimada.
A reflexão sobre a gama de fatores que dificultam o enfrentamento da violência doméstica
dialogam com o posicionamento dos livros publicados pela categoria de assistentes sociais, uma
das profissões que historicamente tem se atuado e se posicionado pela defesa de todos os direitos
das mulheres. As obras abordam a divergência entre discurso e ações do governo e os objetivos e
princípios do Serviço Social e da rede de enfrentamento à violência, além do desfinanciamento a
programas que combatem a violência contra a mulher, direcionando para a população a
responsabilidade que é do Estado, como exemplo o programa piloto Salve uma Mulher. Conclui-se
que a temática é de difícil resolução, pois possui uma gama de fatores que interferem em seu
enfretamento, no entanto, a falta de atenção do Estado brasileiro dificulta ainda a mais a tratativa.

Referências
BARSTED, LÉLIA. O Avanço Legislativo Contra a Violência de Gênero: a Lei Maria da Penha,
Rio de Janeiro. disponível em:
https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista57/revista57_90.pdf, acesso em
11/12/2022.
BRASIL. Constituição (1830). Criminal nº fl. 39 do liv. 1º, de 16 de dezembro de 1830, disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm, acesso em 20/10/2022.
BRASIL. Constituição Federal: Emenda constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016,
Brasília. disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm, acesso em
09/12/2022
BRASIL. Lei Maria da Penha: Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, Brasília. disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm, acesso em: 20/10/2022.
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Código de Ética do/a Assistente Social Lei
8662/93, Brasília, disponível em: https://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf,
acesso em 14/11/2022.
CISNE, MIRLA; SANTOS, SILVANA. Feminismo, Diversidade Sexual e Serviço Social.
Cortez, 2021.
FERREIRA, VERÔNICA. CFESS Manifesta: Manifesto Março de Lutas! Brasília, disponível
em: http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS2020-ManifestaEdeBatalhas2017-2020.pdf, acesso
em 20/10/2022.
224

RENACH, SOFIA.et.al. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, disponível em:


https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5, acesso em
13/12/2022.
SOUZA, ANA PATRÍCIA. O Movimento Feminista no Brasil e a Agenda Das Políticas
Públicas Para As Mulheres: uma análise a partir da década de 1980. disponível em:
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2019/images/trabalhos/trabalho_submissaoId_1445_14
455cc9ea4d7d46e.pdf, acesso em 20/10/2022.
TENÓRIO, EMILY. Assistente Social no Combate ao Preconceito: machismo. disponível em:
http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESS-Caderno06-Machismo-Site.pdf, acesso em 20/10/2011.
225

O DESMONTE INSTITUCIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS DURANTE A


PANDEMIA DE COVID-19: Reflexos (in) diretos no bem-estar social da população

Carlos Augusto Polidoro da Silva66


Diego Malvasio Bertolin67
Rafael Bashiyo Baz68

Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil, bebendo das influencias europeias do
pós-segunda guerra mundial, é, em grande parte, influenciada pelo modelo de Estado denominado
welfare state ou conhecido como Estado de bem-estar social, tal que a grande premissa deste é
almejar produzir uma versão do capitalismo que procura incluir os vulneráveis e excluídos,
promovendo a seguridade social para todos. Para isso, o alicerce primordial desta são as
denominadas políticas públicas, isto é, atuações setoriais, feitas em conjunto, que buscamresolver
um ou mais dos problemas da sociedade.
Assim, NOBRE (2013) dispôs em sua obra que antes da retomada democrática, os mais
pobres eram severamente golpeados pela inflação, estando indefesos e de que não eram incluídos
no debate, conforme:
A ditadura militar deu continuidade, à sua maneira, ao nacional-
desenvolvimentismo. A inflação funcionava como importante mecanismo de
manutenção, tendo sido como que oficializada pelo golpe de 1964 por meio do
instituto da correção monetária, que a incorporou aos contratos e aos preços de
maneira geral como elemento permanente. Em uma economia fechada, a
inflação se amoldou ao objetivo de promover rápido crescimento (e, com ele,
uma melhora geral, dos padrões de vida) sem alterar os padrões historicamente
desiguais da distribuição de renda do pais. Ao contrário dos mais ricos, os
mais pobres não tinham como se proteger dos efeitos deletérios da inflação.
(NOBRE, p. 30 e 31, 2013).

Com a retomada gradual, por meio do processo de intensa mobilização popular, a


Constituinte de 1988 possuía novas e velhas demandas, a muito suprimidas, segundo NOBRE:
A redemocratização liberou uma impressionante quantidade de novas e velhas
demandas por serviços públicos, participação política e acesso ao fundo
público, um amplo leque de movimentos e demandas sociais reprimidos pela
ditadura, que surgiram também como resultado das transformações sociais e
econômicas de grande magnitude ocorridas entre os anos 1960 e 1980.
(NOBRE, p. 36, 2013)

66
Estudante da graduação em Direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual
Paulista (UNESP). Bolsista PIBIC-UNESP Ciclo 2022/2023 E-mail: [email protected] Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3353148479070862
67
Estudante da graduação em Direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual
Paulista (UNESP) E-mail: [email protected] Bolsista FAPESP Formação Técnica Ciclo 2022- 2024 Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9410052463042437
68
Estudante da graduação em Direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual
Paulista (UNESP) E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/3701119722252451
226

A partir da previsão legal na Carta Magna de 1988, a luta dos cidadãos foi pela
implementação destas políticas, o que somente ocorreu de forma mais intensa no limiar entre ofinal
do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002) e o salto exponencial de inclusão
e avanços nos Governos Lula (2003-2010) e Dilma 1 (2011-2014). Com a severa crise econômica,
política e social que explodiu no Governo Dilma 2 (2015-2016), a influência de movimentos
supostamente políticos e apartidários, além da perseguição e ampla utilização do direito como
ferramenta política, um traumático processo de impeachment que teve como consequência o
governo neoliberal de Temer, muitos dos avanços humanitários obtidos nas duas últimas décadas
se perderam.
O processo de erosão dos programas sociais iniciaram-se com Temer e aprofundou-se com
Bolsonaro (2019-2022). Com isto, nosso objeto de estudo é vislumbrar os impactos desta erosão
nas políticas públicas de caráter permanente e mensurar as políticas transitórias adotadasdurante a
pandemia de COVID-19.

Desenvolvimento
As políticas públicas emergenciais sob a COVID-19
O ineditismo de um vírus de fácil difusão, como a SARS-COVID-19, e contágio
exponencial, e no qual não havia ainda um medicamento eficaz ou vacina desenvolvida para
trata-lo, levou o mundo à uma situação não vivenciada desde um século antes com a pandemia da
Gripe Espanhola (1918-1920). Com isto, diversos Governos, ao redor do globo, começaram a
adotar diferentes programas para mitigar os impactos econômicos e sociais à sua população.
Assim, o Estado brasileiro adotou, de forma tardia e descontinuada, o isolamento social
como forma de evitar o contágio, tal que, enquanto os países europeus eram noticiados na mídia,tais
como a Itália, a Espanha, dentre outros, as autoridades não se prepararam, de forma satisfatória,
para o custo humano que essa pandemia custaria à sociedade. Com isto, o Ministério da Saúde não
possuía os insumos médico-hospitalares suficientes para atender a umademanda tão repentina de
internações, fora o descaso das autoridades com a vida e as vítimas desta doença, amplamente
noticiados pela mídia. Outrossim, as políticas públicas demoraram muito a ser implementadas ou
liberadas à população, tal que a primeira legislação, a Lei n° 13.979/2020, apesar de ser de
fevereiro do referido ano, só começou a ser efetivamente utilizada quando a partir de abril de 2020
com a implementação de políticas públicas.
A mais importante medida desse período, fruto de muita luta dos agentes da sociedadecivil,
foi o denominado “auxilio emergencial”, responsável por conceder dinheiro paraamortecer à
queda de renda propiciada pelo isolamento social, em especial dos trabalhadoresinformais. Esta
iniciou seu calendário de pagamento em abril/2020 para os beneficiários já inscritos no
227

CadÚnico (Cadastro Único) do Governo Federal. Entretanto, o cadastro de novosbeneficiários,


pela demora da coleta de dados pelos órgãos governamentais, demorousignificativamente em
cerca de um mês. O principal escopo deste era o de ofertar uma quantiade R$ 600,00 para cada
pessoa e de R$ 1.200,00 para mães solteiras. Cabe ser ressaltado quetal auxilio realizou o
pagamento de 6 parcelas de R$ 600,00 a R$ 1200,00 entre maio esetembro, sendo prorrogado
pelo “Auxilio Emergencial Extensão”, que perdurou entresetembro a dezembro de 2020 pagando
metade do valor anterior: R$ 300,00, em três parcelas.
Com o agravamento da segunda onda da COVID-19, mais 7 parcelas foram pagas entreabril
de 2021 e outubro de 2021, com valores entre R$ 150,00 a R$ 375,00. O custo desse auxilio
foi da ordem de R$ 359 bilhões de reais entre os dezessete meses que vigorou tal politicapública.
Ainda assim, a quantidade de pessoas contempladas foi reduzida a cada novo encerramento de
ciclo do auxílio. Nas 6 primeiras prestações, cerca de 67 milhões de cidadãosforam beneficiados,
reduzindo para o número de 34,4 milhões de beneficiários. Não havendo uma transmutação
imediata dos beneficiários a serem contemplados pelo denominado Auxilio Brasil, antigo Bolsa
Família.
Ao passo que essa política pública foi implementada, cabe ser ressaltado o aumento no
custo da cesta básica ao cidadão mais vulnerável e a corrosão do poder de compra. Segundo o
Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), de 2020 para 2021, o preço dos alimentos subiu
cerca de 15%, o triplo da inflação oficial, mensurada pelo IBGE. E entre 2021 a 2022 o acréscimo
no custo de vida foi próximo a 8%. Nesse sentido, o poder de compra foi corroído em quase 23%
num período de anos e houve uma ampliação na situação de pessoas em insegurança alimentar e
em situação de vulnerabilidade. Ou seja, tal política pública apesar de importante para mitigar a
corrosão de compra, aoser reduzida com o tempo, ocasionou uma sensação de desespero para os
mais vulneráveis queviram os benefícios minguarem e a atividade econômica brasileira retrair-se
4,1% em 2020, fechando postos de trabalho e diminuindo o consumo.
Outras políticas públicas vieram da própria legislação, tais como a Lei nº 14.010/2020 que
promoveu um regime jurídico emergencial das relações jurídicas de direito privado. Dentre as
medidas ali propostas são a de que locadores inadimplentes, de áreas urbanas e rurais, além de
ocupações irregulares, assentamentos, dentre outros, em que não seriam despejados enquanto
durassem o período pandêmico, situação está mantida com amparo legal e também dereiteradas
liminares proferidas pelo Min. Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal, até o dia 31
de outubro de 2022. Na fundamentação da ADPF 828, o magistrado pontuou que cerca de 145 mil
famílias poderão ficar desabrigadas na eminencia do fim dos efeitos da liminar,gerando insegurança
para cerca de 900 mil pessoas.
Outra medida voltada à proteção do emprego foi o Programa Emergencial de Manutenção
do Emprego e Renda, instituído em 2020 pela Medida Provisória N° 936/2020 e continuado em
228

2021 pela Medida Provisória N° 1045/2021, e que tem como objetivo proteger os trabalhadores e
manter seus postos de trabalho, por meio de subsídios do governo federal aos trabalhadores. Desta
forma, o programa prevê que na hipótese de acordo entre trabalhadores ou empregadores, que
ensejassem redução proporcional de jornada de trabalho e de salários nospercentuais de 25%, 50%
ou 70%; ou de suspensão temporária do contrato de trabalho, o Governo Federal, com recursos
do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), paga uma porcentagem da parcela do seguro-
desemprego que o empregado teria direito se fosse despedido. A duração de cada um desses
acordos não pode ser superior a 120 (cento e vinte) dias. Segundo a Agencia Brasil, o primeiro
programa auxiliou 10 milhões de trabalhadores emacordos de adesão de 1,5 milhão de empresas e
na segunda edição foram 2,5 milhões de trabalhadores e acerca de 632,9 empregadores.

Análise setorial do orçamento público sob a Covid-19


O que se depreende da análise da atuação do governo brasileiro durante o período
pandêmico é um quadro devastador para a população brasileira, que se agrava, sobretudo, em 2021,
o pior ano da pandemia em mortalidade. Naquele ano, os recursos para enfrentar a Covid-19 caíram
79% em relação a 2020. A saúde perdeu 10 bilhões de reais em termos reais entre 2019 e 2021
quando subtraídas as verbas destinadas ao Sars-CoV-2; a habitação de interesse social não gastou
qualquer recurso entre 2020 e 2021; a área de assistência para crianças e adolescentes perdeu 149
milhões de reais entre 2019 e 2021, esse valor equivale a 39% do quefoi gasto em 2021; a educação
infantil viu seu orçamento diminuir mais de quatro vezes em apenas três anos, apesar da demanda
por equipamentos eletrônicos-didáticos nessa etapa do ensino.
Todos esses dados estão presentes no Relatório Geral de 2022: A Conta do Desmonte, feito
pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), cuja missão é cumprir para o aprimoramento
dos processos democráticos visando à garantia dos direitos humanos.
Com base nesse e em outros estudos científicos, como o Relatório da CPI da Pandemia
(2021), do Senado Federal, o Relatório sobre o Impacto da Pandemia de Covid-19 nos ODS (2021),
do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, e estudos do Cepedisa/USP, orientados pela
professora doutora Deisy Ventura (USP), teria existido uma proposital atuação do governobrasileiro
para/com o desmonte do Estado e sua entrega para forças privatizantes, bem como aexclusão de
pessoas, comunidades e povos historicamente marginalizados – mulheres, negros, indígenas,
quilombolas, camponeses, jovens periféricos, entre outros –, além de uma clara drenagem de
recursos orçamentários para estruturar eleições de aliados e para financiarorçamentos paralelos,
como o Orçamento Secreto, que executou, segundo dados da Câmara dosDeputados, apenas em
2021, 16 bilhões de reais (seis vezes as despesas desse mesmo ano como Meio Ambiente).
O Orçamento Secreto consiste na utilização das emendas de relator-geral do orçamento
anual para uma possível “compra” de apoio parlamentar ao Planalto. Para piorar, é notória a
229

incompetência de determinadas autoridades totalmente despreparadas para os cargos que


ocuparam, graças à infeliz decisão presidencial de nomear militares e religiosos, sem seguir
critérios técnicos e racionais, como afirma Carmela Zigoni, autora do relatório da INESC. Nesse
engodo, nomearam-se pessoas que não entendiam do assunto que deveriam zelar. Esse foi o caso
da equipe que comandava o Ministério da Saúde, na figura de generais que nadacompreendiam da
complexidade estrutural e logística do SUS e que geriram muito mal os recursos da pasta,
desembocando numa Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado, cujo relatório é fonte deste
estudo; da equipe gestora do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob a
figura de pastores e pastoras que desconheciam os direitos humanos e que, portanto, não
conseguiam sequer gastar as poucas verbas que lhes eram alocadas (AVRITZER, 2021); das
autoridades do Ministério da Cidadania que acabaram com a política de segurança alimentar e
nutricional, justamente quando a fome atingiu 61,3 milhões de pessoasno Brasil, em 2021, segundo
a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura(FAO); da equipe que conduziu
o Ministério da Educação que comprometeu o Enem e lançou uma reforma do ensino médio
amplamente criticada, como aponta do pesquisador Celso João Ferretti (2018); e, por fim, da
incapacidade de gastar os recursos destinados ao enfrentamento da pandemia de Covid-19: já que
sobraram 129,6 bilhões de reais em 2020 e 27,7 bilhões de reais em 2021, segundo o Portal da
Transparência, algo absurdo diante das terríveis consequências econômicas e sociais decorrentes
da crise sanitária.
Não bastasse tudo isso, o desmonte das instituições públicas pode ser percebido pelo
sistemático subfinanciamento das políticas públicas resultantes das drásticas medidas de
austeridade fiscal: assim, por exemplo, a execução financeira para promoção da igualdade racial,
medida alocada no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, diminuiu mais de
oito vezes entre 2019 e 2021; os recursos gastos com ações voltadas para as mulheres, do mesmo
ministério, caíram 46% de 2021 para 2020; e, a execução das verbas destinadas ao sistema
socioeducativo, que não eram muitas, encolheram 70% entre 2019 e 2021, fato demonstrado no
relatório concebido pelo TCE-SP.
Em outros casos, até existem verbas, ainda que insuficientes, mas os meios para gastá- las
não são disponibilizados passando a falsa sensação de que a área não funciona. Esse é o casodo meio
ambiente que teve dificuldades para executar o orçamento disponível nestes últimos quatro anos
como resultado da falta de pessoal, da nomeação para cargos de confiança de pessoas sem
experiência e capacidade para conduzir a política de fiscalização ambiental, comoestudado pela já
citada professora doutora Deisy Ventura. Para a pesquisadora, a melhor expressão desse
deliberado processo de desmonte pode ser vista nas celebrações do governo federal pelos
resultados obtidos em relação ao déficit fiscal, que diminuiu em mais de dez vezeso que se esperava
alcançar.
230

Com efeito, havia-se calculado um valor negativo de 331,6 bilhões de reais em 2021, mas
atingiu-se, de fato, um saldo negativo de 35,1 bilhões de reais naquele ano. Isso às custas do
sofrimento do povo brasileiro e da PEC dos Precatórios que rolou inquestionáveis dívidas
brasileiras para serem pagas nos próximos anos, provavelmente por outros governantes.

Da invisibilização da (in)dignidade da pessoa humana e a desgraça pública da existência digna


A dignidade da pessoa humana é um termo que recorre a natureza do próprio direito como
norma de convívio e regulação social, conforme discorreu Thomas Hobbes no título do Capitulo
XIII de sua obra “O Contrato Social” de 1762:
CAP. XIII - Da condição natural da humanidade relativamente a sua felicidade e
miséria - Os homens iguais por natureza - Da igualdade deriva a desconfiança -
Da desconfiança, a geena - Fora dos estados civis, há sempre guerra de todos
contra todos
– Os inconvenientes de uma tal geena - Numa tal guerra, nada é injusto – As
paixões que levam os homens a tender para a paz (HOBBES, 1762)

Sendo assim, ante o estado de conflito e insegurança decorrente da inexistência de limiares


para garantir a integridade e sobrevivência dos seres humanos, constituiu-se as normasmais básicas
e centrais conforme apresenta o jurista brasileiro Ingo Wolfgang Sarlet:
A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor
do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas
para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com
os demais seres humanos. (SARLET, 2001)

Sendo assim, a disposição da dignidade da pessoa humana como fundamento, conforme


observa-se no Art. 1, inciso III da Constituição Federal é como apresenta o Juiz de Direito André
Gustavo Corrêa de Andrade:
Por essa razão, todos os princípios constitucionais encontram sua razão e
origem no homem, fundamento de todo o dever-ser. E, justamente por ser
fundamento, o homem não constitui, em si, um princípio, pois o “fundamento
não é um princípio, mas a justificação radical dos próprios princípios.” A
humana condição não fundamenta e justifica o que é, mas o que deve ser, tanto
no campo da moral como no do direito. (ANDRADE, 2003)

Ante o acima elencado, observamos que existem direitos intrínsecos a natureza humana
visando a vida digna e a paz entre os iguais, conforme suscitado na Carta Magna em seu Art. 1º,
III e parágrafo único:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
III - a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 1988)
231

Posto isso, tem-se que o Estado Brasileiro como instrumento do poder do povo tem a
obrigação de garantir a dignidade da pessoa humana, sendo assim lhe cabe a ação social,
humanitária e justa para fins do cumprimento do contrato social e da proteção a existência decente.
Por conseguinte, ao apresentado a ausência, a ignorância ou o descaso à situação humana resvala
na obrigação primordial do Estado brasileiro de prover os direitos humanos e reduzir as
desigualdades sociais conforme as disposições da Carta Magna de 1988.
Prova da disposição acima, se exemplifica com a fome, o desalento, situação de rua, o
desemprego e o subemprego, entre outras, que respectivamente afligem os brasileiros: 33,1
milhões de pessoas de acordo com o “Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentarno
Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil”; 4,3 milhões segundo a “Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) Trimestral”; 184.638 pessoas estão emsituação
de rua segundo dados de maio de 2022 do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo
Federal (CadÚnico); 9,5 milhões de desempregados, conforme dados da “Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) Trimestral”, porém vale observar que a
redução decorre da aceitação de empregos com salário menor e precários conforme estudo do
economista Bruno Imaizumi que demonstra que os postos de trabalho criados se concentraram em
vagas com rendimentos de até um salário mínimo. Ante a desgraça pública faz-se público e notório
a observação da utilização dos recursospor parte do governo, para tanto a transparência é pontual,
fato parcialmente garantido pela Lei 12.527 de 2011. Assim, podemos observar que os orçamentos
destinados a assistência social, saúde, segurança pública e educação são constantemente
contingenciados e desviados:

FONTE: Portal da Transparência (2022)

Ou seja, é pontual observar que os valores repassados pelo Estado aos diversos setorescom
exceção do ano de 2020 estão aquém do orçamento inicial em valores absolutos:
232

Orçamento Valor em Reais Valor Pago de Valor em Reais


Inicial de Despesas (R$) despesas por ano (R$)
por
ano
2018 330.329.830.441,00 2018 238.138.188.362,28

2019 343.320.171.790,99 2019 248.137.259.082,26

2020 342.686.975.936,00 2020 592.996.625.055,08

2021 361.778.060.205,00 2021 355.543.492.419,58

2022 455.924.569.281,00 2022 293.698.601.418,00

FONTE: Portal da Transparência (2022)


Em vias de comparação a totalidade do Orçamento Total do Governo Federal
foi de:

FONTE:
Portal da Transparência (2022)
Portanto, observamos que estes setores vitais constituem aproximadamente 10% da
participação dos gastos públicos, com grandes reduções quando comparados com a totalidade. No
mais, vale ressaltar que no período de janeiro de 2018 a setembro de 2022 o Índice de Preçosao
Consumidor Amplo (IPCA) sofreu aumento de 28,57% conforme dados do IBGE, ou seja, o poder
de compra de R$ 1.000,00 (hum mil reais) em 2018, em setembro de 2022 só seria possível
com a quantia de R$ 1.295,72 (hum mil duzentos e noventa e cinco reais e setenta e dois centavos).
Logo, os gastos governamentais em assistência social, educação, saúde e segurança pública nem
ao menos foram corrigidos pela inflação, deduzindo ainda mais a forçae potência das ações sociais.

Considerações finais
Portanto, fica explicito que os objetivos do presente foram atingidos, uma vez que a
hipótese da tese central deste estudo foi atingida: a omissão dos Governos na continuidade das
políticas públicas essenciais à população e seu desmonte paulatino. Nesse sentido, foi abordado,
inicialmente, as ações temporárias e transitórias adotadas durante a COVID-19, tal que foi
demonstrado que as mesmas iniciaram com mais recursos e atingindo mais cidadãos, dentre estes
trabalhadores informais, no ano de 2020 e foram reduzidas progressivamente em 2021.
233

Isto posto, confere que as mesmas acabaram desamparando diversas pessoas durante o
agravamento da 2ª onda pandêmica e também da questão da dificuldade de auxiliar os mais
vulneráveis. Ademais, quando iniciada a visualização das políticas públicas de caráter permanente,
tais como habitação social, as áreas prioritárias da saúde e da educação, pela redução destas no
Orçamento Público é significativa, fato este demonstrado por diversos pesquisadores, tais como
Deisy Ventura, o relatório emblemático do INESC, além de dados das próprias agências
governamentais, como o IBGE, e o IPCA, do Ministério da Economia.
Esta atitude das autoridades competentes para as áreas demonstram a entrega do governo
para forças privatizantes e que não possuem compromisso com a diminuição da desigualdade
social, privilegiando seus próprios interesses. Cabe ressaltar que, conforme a tendência explicitada
pelo Portal da transparência, a peça orçamentária do governo possui previsões de despesa para
cada área, havendo o contingenciamento desta para malabarismos contábeis em outras áreas, sendo
empenhada volume inferior ao previsto, criando um saldo a pagar para o próximo ano. Logo, a
atuação errática do Estado prejudica as pessoas mais vulneráveis, pois os interesses dos
invisibilizados não são atendidos ou representados, levando estas pessoas, que dependem das
políticas públicas, a ficarem a própria sorte. Esta realidade foivista na pandemia, quando em 2021
houve redução das verbas para o combate à COVID-19.

Referências
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA
DIGNIDADE HUMANA E SUA CONCRETIZAÇÃO JUDICIAL. Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro, 2003. Disponível em:AVRITZER, Leonardo. Política e antipolítica: a crise do
governo Bolsonaro. Todavia, Edição Única, 2021.
Brasil. Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527). Planalto, 2011. Disponível em:
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BRASIL. Medida Provisória nº 936, de 1 de abril de 2020. Institui o Programa Emergencial de
Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para
enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20
de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá outras
providências. Brasilia: Diário Oficial da União (D.O.U), p. 1, 1 abr. 2020. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv936.htm. Acesso em: 21 out.
2022.outubro de 2022.
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Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do
coronavírus (Covid-19). Brasília: Diário Oficial da União (D.O.U), p. 1, 12 jun. 2020.
Disponívelem: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
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0%2CFN06%2CFN12&colunasSelecionadas=ano%2CorgaoSuperior%2CorgaoVinculado%2Cf
u
ncao%2CsubFuncao%2Cprograma%2Cacao%2CcategoriaEconomica%2CgrupoDespesa%2Cele
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235

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Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001.
TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (TCE-SP). Relatório sobre o
Impacto da Pandemia de Covid-19 nos ODS. Relatório Final, 2021.
VENTURA, Deisy de Freitas Lima et al. Desafios da pandemia de COVID-19: por uma agenda
brasileira de pesquisa em saúde global e sustentabilidade. Cadernos de Saúde Pública, v. 36,
p. e00040620, 2020.
236

DESENVOLVIMENTO URBANO,
RURAL, REGIONAL E
AMBIENTAL
237

PLANO MUNICIPAL DE GESTÃO INTEGRADA DE RESÍDUOS SÓLIDOS: UMA


ABORDAGEM DOS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO
MUNICÍPIO DE PIRACICABA/SP

Giulia Malaguti Braghini Marcolini Martires69


Clauciana Schmidt Bueno de Moraes70

Introdução
Das questões ambientais que afetam a sociedade Pós-Industrial, pode-se destacar a gestão
de resíduos sólidos urbanos como um dos problemas que melhor representam o dilema da sociedade
contemporânea. Um dos principais desafios da gestão ambiental urbana é a mensuração dos
impactos da atividade humana. Neste sentido, os indicadores de sustentabilidade são tidos como
uma ferramenta aliada da administração pública nos processos de planejamento e avaliação de
políticas públicas (JACOBI; BESEN, 2011; GUTBERLET, 2021).
Para o enfrentamento das questões ambientais, em 2012, a Conferência das Nações Unidas
sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20) teve como produto a proposição dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Eles compõem
uma agenda mundial, a Agenda 2030, que conta com 17 objetivos (Quadro 1), cujo cumprimento
deve ser monitorado e orientado por meio de indicadores globais, nacionais e regionais.
Quadro 1. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
ODS Título ODS Título

1 Erradicação da pobreza 10 Redução das desigualdades

2 Fome zero e agricultura sustentável 11 Cidades e comunidades sustentáveis

3 Saúde e bem-estar 12 Consumo e produção responsáveis

4 Educação de qualidade 13 Ação contra a mudança global do clima

5 Igualdade de gênero 14 Vida na água

6 Água potável e saneamento 15 Vida terrestre

7 Energia limpa e acessível 16 Paz, justiça e instituições eficazes

8 Trabalho decente e crescimento 17 Parcerias e meios de implementação


econômico

9 Indústria, inovação e infraestrutura - -

69
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas.
[email protected].
70
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora Ass. Doutora (UNESP). Pós-doutorado Empresarial em
Ciências Ambientais - CNPq. Doutora e Mestre em Ciências da Engenharia Ambiental - EESC/USP. Administradora -
UNIP e Geógrafa - UNESP. [email protected]
238

Fonte: Baseado em Nações Unidas Brasil (Acesso em 2022). Elaborado pelas autoras (2022).

Para melhor compreender a intersecção dos ODS com a temática dos resíduos sólidos, foi
necessário estudar os instrumentos legais aplicáveis no contexto de estudo. No Estado de São Paulo,
o descarte inadequado de resíduos é proibido nos termos da Lei Estadual n° 12.300/2006, que
estabelece a Política Estadual de Resíduos Sólidos (PERS). A nível nacional, essa proibição foi
reforçada com a promulgação da Lei n° 12.305/2010, que institui a Política Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS). Ela define instrumentos e diretrizes para a gestão integrada dos resíduos e
estabelece o princípio da responsabilidade compartilhada, o qual atribui aos três entes federados, ao
setor produtivo e à sociedade a participação na disposição ambientalmente adequada (BRASIL,
2010).
A PNRS exige o dispêndio de recursos públicos como incentivo às prefeituras para se
adequarem às normas, com base na prerrogativa dos impactos associados à disposição irregular e à
má gestão dos resíduos. São impactos que colocam em risco não apenas a qualidade ambiental, mas
podem também ser considerados um problema de saneamento e colocam em risco a saúde da
população; isso significa a mobilização de recursos para a manutenção desses ambientes e da saúde
pública.
Para tal, dentre as atribuições da PNRS, pode-se citar a criação e obrigatoriedade do Plano
Municipal de Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos (PMGIRS), a fim de que os municípios tenham
acesso a recursos da União destinados a ações e programas que envolvam limpeza urbana e manejo
de resíduos sólidos. Neste trabalho, foi analisado o PMGIRS do Município de Piracicaba/SP, de
forma a verificar a sua conformidade com os ODS, por meio das diretrizes, metas e ações municipais
para a gestão de resíduos sólidos.

A gestão de resíduos no município de Piracicaba-SP


O Município de Piracicaba está localizado no interior do Estado de São Paulo (latitude S 22º
42'30''; longitude W 47º 38'01'' e altitude de 554m), a aproximadamente 160 km da capital. No ano
de 2021, segundo a estimativa do IBGE, apresentou uma população estimada de 410.275 habitantes
e densidade demográfica de 264.47 hab/km², ocupando a posição de 16º município mais populoso
do Estado de São Paulo (IBGE, 2021).

A Região Metropolitana de Piracicaba (Figura 1) é composta por 24 municípios que somam


1.501.903 habitantes, dos quais 96% vivem em área urbana. Ela abriga 3,4% da população paulista
e é responsável por 3,4% do PIB estadual (SÃO PAULO, 2021).
239

Figura 1. Região Metropolitana de Piracicaba/SP

Fonte: São Paulo, 2021.

Legislação referente aos resíduos sólidos em Piracicaba

O primeiro marco legal a tratar sobre a gestão de resíduos sólidos no Município de


Piracicaba foi o Plano de Saneamento de Resíduos Sólidos de Piracicaba, elaborado em 2009. Em
2011, através do Decreto Municipal nº 14.206/2011, ele foi publicado sob o novo título de Plano de
Saneamento Básico do Município de Piracicaba.
Em 2014, em atendimento ao nome dado pela PNRS, o documento foi atualizado e recebeu
o novo nome de Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos de Piracicaba. Essa
atualização visou “fortalecer a necessidade de uma política municipal de resíduos, vislumbrando
elaborar, aprimorar e disciplinar procedimentos de controle e processos de formação voltados à
realidade do município” (PIRACICABA, 2019, p. 16).
Foram desenvolvidos mecanismos de participação popular, dentre os quais destacam-se a
Comissão de Revisão do PMGIRS, composta por representantes de diferentes entidades; a
realização de conferências, fóruns e palestras; a colaboração de pesquisadores e profissionais da
área; a realização de associações de bairros e audiências públicas. Assim, o documento sintetiza os
resultados dos primeiros quatro anos da implementação do PMGIRS, além da revisão das suas
diretrizes, ações e metas (PIRACICABA, 2019).
O Quadro 2 sintetiza essa evolução da legislação municipal em direção à sua adequação aos
requisitos mínimos exigidos pela PNRS.
240

Quadro 2. Legislação que aborda os resíduos sólidos em Piracicaba

Legislação Ementa

Decreto Municipal nº 14.206/2011 Aprova o Plano de Saneamento Básico do Município de Piracicaba.

Aprova a revisão do Plano Municipal de Resíduos Sólidos, parte integrante do


Decreto Municipal nº 15.935/2014 Plano de Saneamento Básico do Município De Piracicaba, de que trata o
Decreto nº 14.206/2011.
Institui e nomeia membros para compor a comissão de acompanhamento da
Decreto Municipal nº 16.124/2015 execução do Plano Municipal de Resíduos Sólidos, parte integrante do decreto
nº 15.935/14.
Nomeia membro para compor a comissão de acompanhamento da execução do
Decreto Municipal nº 17.998/2019
plano municipal de resíduos sólidos.
Substitui e nomeia representantes junto à comissão de acompanhamento da
Decreto Municipal nº 18.101/2019 execução do plano municipal de resíduos sólidos, nomeada pelo decreto nº
17.998/2019.
Aprova a revisão do plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos,
Decreto Municipal nº 18.364/2020 parte integrante do plano de saneamento básico do município de Piracicaba e
revoga o decreto nº 15.935/2014.
Nomeia membros para compor a Comissão de Acompanhamento da Execução
Decreto Municipal nº 18.879/2021 do Plano Municipal de Resíduos Sólidos, instituída pelo Decreto n°
16.124/2015 e revoga os Decretos n° 17.998/2019 e n° 18.101/2019.

Fonte: Baseado em Piracicaba, 2019. Elaborado pelas autoras, 2022.

Análise do Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos

A versão de 2019 do PMGIRS foi estruturada em cinco capítulos: (i) caracterização do


município, no qual ele apresenta uma atualização dos dados demográficos, geográficos e
econômicos; (ii) diagnóstico, que compreende uma atualização das informações relacionadas à
gestão de resíduos, incluindo uma apresentação de estudo gravimétrico realizado em 2015; (iii)
resultados da implementação do PMGIRS, que apresenta os avanços na implementação das
diretrizes previstas para o período de dezembro de 2014 a dezembro de 2018; (iv) apresentação das
diretrizes e metas revisadas e das novas diretrizes propostas; e (v) gestão do plano, que indica
aspectos relevantes como a periodicidade da revisão, formas de monitoramento e avaliação,
participação social e projeções para as próximas duas décadas (PIRACICABA, 2019).
O Plano apresenta 24 diretrizes, compostas por justificativas, metas e ações previstas para o
período de 2019 a 2024. Elas foram concebidas após a análise dos quatro anos anteriores de
implementação do Plano, em consonância com os requisitos mínimos para um PMGIRS, conforme
o Artigo 19º da PNRS. Para tal, adotou-se a seguinte estrutura: justificativa, metas, estratégias,
responsabilidades, prazos, resultados esperados e indicadores para acompanhamento das metas
(PIRACICABA, 2019).
Além disso, durante o evento “Encontro dos Municípios de Pequeno Porte do Estado de São
Paulo”, realizado em março de 2020 no Município de Cordeirópolis, a Secretaria de Infraestrutura
e Meio Ambiente (SIMA) divulgou que a sua Coordenadoria de Meio Ambiente faria revisões em
cada plano, programa e projeto municipal, com o objetivo de verificar o cumprimento da política
241

estadual de atendimento à Agenda 2030 da ONU. Desta forma, a Comissão do PMGIRS de


Piracicaba decidiu pela inclusão de uma abordagem dos ODS nas diretrizes, metas e ações do Plano,
já na atual revisão (PIRACICABA, 2019).
O Quadro 3 oferece uma visualização dos itens do PMGIRS, que atendem aos requisitos da
PNRS e podem contribuir para o cumprimento da Agenda 2030 por meio dos ODS. Ressalta-se que
os dados foram organizados no quadro pelas autoras deste trabalho. Entretanto, nenhuma
informação foi incluída ou excluída do quadro contido originalmente no Plano.

Quadro 3. Diretrizes do PMGIRS em atendimento à PNRS e aos ODS

Conteúdo mínimo do PMGIRS (Conforme o Itens do PMGIRS Piracicaba


ODS
Art. 19 da PNRS)

“I - diagnóstico da situação dos resíduos sólidos CAPÍTULO 1: Caracterização do Município


gerados no respectivo território, contendo a
12: Consumo e
origem, o volume, a caracterização dos resíduos
produção responsáveis CAPÍTULO 2: Diagnóstico
e as formas de destinação e disposição final
adotadas;”

“II - identificação de áreas favoráveis para Volume I – página 120


disposição final ambientalmente adequada de 11: Cidades e
rejeitos, observado o plano diretor de que trata comunidades Volume II - ANEXO 04 - Mapa de
o§ 1o do art. 182 da Constituição Federal e o sustentáveis localização - CTR Palmeiras
zoneamento ambiental, se houver;”

“III - identificação das possibilidades de Diretriz 23: Promover ações integradas entre
implantação de soluções consorciadas ou os municípios da Aglomeração Urbana de
11: Cidades e
compartilhadas com outros Municípios, Piracicaba (AU-Piracicaba), visando a gestão
comunidades
considerando, nos critérios de economia de adequada dos resíduos sólidos urbanos,
sustentáveis
escala, a proximidade dos locais estabelecidos e conforme previsto na PNRS
as formas de prevenção dos riscos ambientais;”

Diretriz 1: Desenvolver, implementar e


monitorar o Sistema de Cadastro dos PGRS
(Plano de Gerenciamento de Resíduos
“IV - identificação dos resíduos sólidos e dos Sólidos).
geradores sujeitos a plano de gerenciamento
específico nos termos do art. 20 ou a sistema de Diretriz 15: Requerer junto aos responsáveis
9: Indústria, inovação e
logística reversa na forma do art. 33, observadas
infaestrutura pelos acordos setoriais que implementem, no
as disposições desta Lei e de seu regulamento,
bem como as normas estabelecidas pelos órgãos município, os serviços de destinação dos
do Sisnama e do SNVS;” resíduos da logística reversa, conforme o que
dispõe a Política Nacional de Resíduos
Sólidos

Diretriz 10: Desenvolver ações visando


reduzir a geração per capita de resíduos
sólidos urbanos domiciliares no município de
3: Saúde e bem-estar
Piracicaba.
“V - procedimentos operacionais e
7: Energia acessível e
especificações mínimas a serem adotados nos Diretriz 11: Acompanhar as atividades da
limpa
serviços públicos de limpeza urbana e de manejo Central de Tratamento de Resíduos Palmeiras
de resíduos sólidos, incluída a disposição final
11: Cidades e e encerramento do Aterro Sanitário do Pau
ambientalmente adequada dos rejeitos e
comunidades Queimado.
observada a Lei nº 11.445, de 2007;”
sustentáveis
Diretriz 12: Aprimorar a gestão dos Resíduos
de Construção Civil (RCC) e incentivar a
utilização dos resíduos reciclados em sua
242

totalidade.

Diretriz 16: Cumprir as legislações vigentes


referente a coleta dos Resíduos de Serviço de
Saúde no município de Piracicaba.

Volume I - página 176

Diretriz 9: Elevar a porcentagem do resíduo


sólido domiciliar coletado no município de
Piracicaba, de 99,8% para 100%.

Diretriz 13: Melhorar a eficiência do serviço


de varrição, o desempenho da limpeza pública
de Ecopontos e de “pontos viciados” de
11: Cidades e descartes irregulares e minimizar as
comunidades demandas através das solicitações pelo SIP
“VI - indicadores de desempenho operacional e sustentáveis
156.
ambiental dos serviços públicos de limpeza
urbana e de manejo de resíduos sólidos;” 13: Ação contra a
Diretriz 14: Aprimorar os programas de
mudança global do
clima destinação adequada dos resíduos da
supressão e poda de árvores, capinação e
limpeza de bueiros e córregos.

Diretriz 17: Manter o serviço de coleta de


bens inservíveis - Programa Catacacareco de
recolhimento dos bens inservíveis mediante
solicitação do SIP 156 e realizar a correta
destinação dos resíduos recolhidos.

Diretriz 01: Desenvolver, implementar e


monitorar o Sistema PGRS – Plano de
Gerenciamento de Resíduos Sólidos

Diretriz 12: Aprimorar a gestão dos Resíduos


de Construção Civil (RCC) e incentivar a
utilização dos resíduos reciclados em sua
totalidade.

Diretriz 13: Melhorar a eficiência do serviço


de varrição, o desempenho da limpeza pública
2: Fome zero e de Ecopontos e de “pontos viciados” de
agricultura sustentável descartes irregulares e minimizar as
“VII - regras para o transporte e outras etapas do demandas através das solicitações pelo SIP
3: Saúde e bem-estar 156.
gerenciamento de resíduos sólidos de que trata o
art. 20, observadas as normas estabelecidas pelos
11: Cidades e
órgãos do Sisnama e do SNVS e demais Diretriz 14: Aprimorar os programas de
comunidades
disposições pertinentes da legislação federal e destinação adequada dos resíduos da
sustentáveis
estadual;” supressão e poda de árvores, capinação e
12: Consumo e limpeza de bueiros e córregos.
produção responsáveis
Diretriz 16: Aprimorar o gerenciamento dos
Resíduos de Serviço de Saúde no município
de Piracicaba.

Diretriz 17: Manter o serviço de coleta de


bens inservíveis - Programa Catacacareco de
recolhimento dos bens inservíveis mediante
solicitação do SIP 156 e realizar a correta
destinação dos resíduos recolhidos.

Diretriz 19: Implementar melhorias no


243

sistema de gerenciamento de resíduos


cemiteriais.

Diretriz 20: Elaborar e implementar planos de


gerenciamento de resíduos para o terminal
rodoviário e aeroporto municipal.

Diretriz 21: Elaborar e implementar um


programa de gestão dos resíduos
agrossilvopastoris.

9: Indústria, inovação e
“VIII - definição das responsabilidades quanto à Diretriz 01: Desenvolver, implementar e
infraestrutura
sua implementação e operacionalização,
monitorar o Sistema PGRS – Plano de
incluídas as etapas do plano de gerenciamento de
11: Cidades e Gerenciamento de Resíduos Sólidos.
resíduos sólidos a que se refere o art. 20 a cargo
comunidades
do poder público;”
sustentáveis

3: Saúde e bem-estar
Diretriz 02: Fomentar projetos de educação
4: Educação de ambiental em resíduos sólidos urbanos.
qualidade
“IX - programas e ações de capacitação técnica Diretriz 03: Desenvolver e articular processos
voltados para sua implementação e 11: Cidades e
de comunicação ambiental para o
operacionalização;” comunidades
sustentáveis gerenciamento de resíduos sólidos urbanos no
município de Piracicaba.
12: Consumo e
produção responsáveis

2: Fome zero e Diretriz 02: Fomentar projetos de educação


agricultura sustentável ambiental em resíduos sólidos urbanos.

3: Saúde e bem-estar Diretriz 03: Desenvolver e articular processos


de comunicação ambiental para o
4: Educação de
“X - programas e ações de educação ambiental gerenciamento de resíduos sólidos urbanos no
qualidade
que promovam a não geração, a redução, a município de Piracicaba.
reutilização e a reciclagem de resíduos sólidos;”
10: Redução das
desigualdades Diretriz 10: Desenvolver ações visando
reduzir a geração per capita de resíduos
11: Cidades e sólidos urbanos domiciliares no município de
comunidades Piracicaba.
sustentáveis

“XI - programas e ações para a participação dos Diretriz 05: Apoiar e fortalecer a Cooperativa
grupos interessados, em especial das do Reciclador Solidário e incentivar o
cooperativas ou outras formas de associação de 1: Erradicação da desenvolvimento de outras cooperativas e/ou
catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis pobreza associações de catadores de materiais
formadas por pessoas físicas de baixa renda, se reutilizáveis e/ou recicláveis no município.
houver;”

Diretriz 05: Apoiar e fortalecer a Cooperativa


do Reciclador Solidário e incentivar o
desenvolvimento de outras cooperativas e/ou
associações de catadores de materiais
8: Trabalho digno e reutilizáveis e/ou recicláveis no município.
“XII - mecanismos para a criação de fontes de crescimento econômico
negócios, emprego e renda, mediante a Diretriz 06: Promover a inclusão dos
valorização dos resíduos sólidos;” 10: Redução das catadores autônomos nos programas de
desigualdades gerenciamento de resíduos reutilizáveis e/ou
recicláveis do município.

Diretriz 07: Incentivar, apoiar e fomentar


novos negócios, geração de emprego e renda
244

relacionados às atividades de gerenciamento


de resíduos realizadas no município, através
da articulação da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Econômico, Trabalho e
Renda, da Secretaria Municipal de Meio
Ambiente e Secretaria Municipal de
Assistência e Desenvolvimento Social.

“XIII - sistema de cálculo dos custos da Volume I Capítulo 3 - página 121


prestação dos serviços públicos de limpeza 11: Cidades e
urbana e de manejo de resíduos sólidos, bem comunidades
Volume II
como a forma de cobrança desses serviços, sustentáveis
observada a Lei nº 11.445, de 2007;”

Diretriz 2: Fomentar projetos de educação


ambiental em resíduos sólidos urbanos.
Diretriz 04: Implementar projetos educativos
visando a redução da geração e valorização de
resíduos sólidos nas instituições públicas
“XIV - metas de redução, reutilização, coleta 12: Consumo e
municipais.
seletiva e reciclagem, entre outras, com vistas a produção responsáveis
reduzir a quantidade de rejeitos encaminhados
para disposição final ambientalmente 6: Água potável e Diretriz 18: Reduzir a quantidade de resíduos
adequada;” saneamento a serem aterrados no município.

Diretriz 09: Elevar a porcentagem do resíduo


sólido domiciliar coletado no município de
Piracicaba, de 99,8% para 100%.

Diretriz 01: Desenvolver, implementar e


monitorar o Sistema PGRS – Plano de
Gerenciamento de Resíduos Sólidos
“XV - descrição das formas e dos limites da
participação do poder público local na coleta Diretriz 15: Requerer junto aos responsáveis
seletiva e na logística reversa, respeitado o 9: Indústria, inovação e pelos acordos setoriais que implementem, no
disposto no art. 33, e de outras ações relativas à infraestrutura
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de município, os serviços de destinação dos
vida dos produtos;” resíduos da logística reversa, conforme o que
dispõe a Política Nacional de Resíduos
Sólidos.

“XVI - meios a serem utilizados para o controle


e a fiscalização, no âmbito local, da Diretriz 01: Desenvolver, implementar e
11: Cidades e
implementação e operacionalização dos planos monitorar o Sistema PGRS – Plano de
comunidades
de gerenciamento de resíduos sólidos de que Gerenciamento de Resíduos Sólidos
sustentáveis
trata o art. 20 e dos sistemas de logística reversa
previstos no art. 33;”

Diretriz 22: Elaborar um plano de ações


preventivas, emergenciais e corretivas para os
“XVII - ações preventivas e corretivas a serem 13: Ação contra a
casos de acidentes ou situações atípicas
praticadas, incluindo programa de mudança global do
monitoramento;” clima relacionados ao gerenciamento dos resíduos
sólidos urbanos.

Volume I - Capítulo 3 - página 114


“XVIII - identificação dos passivos ambientais
14: Vida na água Diretriz 08: Definir e implementar ações
relacionados aos resíduos sólidos, incluindo
áreas contaminadas, e respectivas medidas voltadas à redução das emissões de gases de
15: Vida terrestre
saneadoras;” efeito estufa relacionados a resíduos sólidos.

“XIX - periodicidade de sua revisão, observado 11: Cidades e Volume I - CAPÍTULO 3 - Resultados da
prioritariamente o período de vigência do plano comunidades implementação do PMGIRS de 2014 a 2018
245

plurianual municipal.” sustentáveis e Evolução do Plano

Diretriz 24: Monitorar a implementação do


PMGIRS e seus impactos sociais, ambientais
e econômicos, compartilhando com a
sociedade os resultados obtidos e criando
canais de participação que garantam seu
cumprimento, transparência e envolvimento
da sociedade na formulação, implementação
e monitoramento das políticas públicas e
ações relacionadas à gestão e gerenciamento
dos resíduos sólidos no município

Fonte: Baseado em Brasil, 2010; Piracicaba, 2019. Elaborado pelas autoras (2022).

Verificou-se, por meio das diretrizes do PMGIRS, o cumprimento dos 19 requisitos


mínimos para o Plano, conforme o Artigo 19º da PNRS. Além disso, foram abordados diretamente
a maioria dos ODS (14 dos 17), excetuando-se os objetivos de número: 5. Igualdade de gênero; 16.
Paz, justiça e instituições eficazes; e 17. Parcerias e meios de implementação.

Conclusões
No Município de Piracicaba, desde a instituição da PNRS, a legislação tem evoluído de
forma a proporcionar mecanismos de manutenção e acompanhamento do PMGIRS. O PMGIRS é
um instrumento necessário para a efetivação da gestão de resíduos de forma participativa e
transparente. A atual versão do Plano conta com uma abordagem parcial dos ODS e, através das
diretrizes propostas, sugere o alinhamento da gestão municipal de resíduos sólidos com a Agenda
2030 da ONU. Ela menciona metas, estratégias e indicadores para o cumprimento de cada uma das
diretrizes.
Considerando que o presente trabalho se encontra em desenvolvimento, como etapas
futuras, pretende-se estudar os indicadores propostos para cada diretriz e, a longo prazo,
acompanhar as atualizações do PMGIRS, aprofundando as análises com base no diagnóstico da
execução do Plano nos 4 anos anteriores. Espera-se verificar, futuramente, a inclusão dos ODS não
abordados nesta versão do Plano, assim como a inclusão de diretrizes eventualmente necessárias
para a plena e contínua efetivação dos ODS já abordados.

Referências
BRASIL. Lei n. 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos
altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm> Acesso em: 12 dez.
2022.
GUTBERLET, J. Grassroots waste picker organizations addressing the UN sustainable
development goals. World Development. v. 138, 2021.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades e Estados. Disponível em:
<https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/sp/piracicaba.html> Acesso em: 12 dez. 2022.
246

JACOBI, P. R.; BESEN, G. R. Gestão de resíduos sólidos em São Paulo: desafios da


sustentabilidade. Estudos avançados, São Paulo, p. 135, v. 25, n. 71, 2011.
NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:
<https://brasil.un.org/pt-br/sdgs> Acesso em: 12 dez. 2022.
PIRACICABA. Secretaria Municipal de Defesa do Meio Ambiente. Plano Municipal de Gestão
Integrada de Resíduos Sólidos. Piracicaba, 2019. Disponível em:
<https://sedema.wixsite.com/sedema/pmgirs-revisao2019> Acesso em: 12 dez. 2022.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Desenvolvimento Regional. Plano de Desenvolvimento
Urbano Integrado. São Paulo, 2021. Disponível em: <https://rmp.pdui.sp.gov.br/wp-
content/uploads/PDUI_RMP_1aOfReg_Geral_2021-10-19.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2022.
247

IRREGULARIDADE FUNDIÁRIA E EXPANSÃO URBANA DESORDENADA: O CASO


DE ITAPEVA/SP
Mauro Ferreira71
Juliane de Cássia Silveira Camargo72

Introdução
Para entender o processo de crescimento urbano desordenado do município de Itapeva -SP,
é importante compreender inicialmente como se deu a construção da política urbana no Brasil. O
processo de redemocratização do país na década de 1980 e a promulgação da Constituição Federal
de 1988 deram margem a uma reflexão mais aprofundada acerca da importância da integração social
e espacial das camadas populacionais mais carentes (SANTIN; COMIRAN, 2018).
Observando-se o contexto da distribuição da propriedade urbana, nota-se que os problemas
que ocorreram no campo se repetiram nas cidades, fazendo eclodir na grande maioria dos
municípios brasileiros, habitações em situações precárias, especialmente em favelas, hoje
denominadas comunidades (TARTUCE, 2018).
A política de desenvolvimento urbano deve ser executada pelo Poder Público Municipal,
sendo essa competência atribuída aos municípios pela Constituição Federal de 1988, conforme
consta no seu artigo 182, abaixo transcrito:
Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes
(BRASIL, 1988).

Diante desse quadro, nos últimos anos, surgiu uma preocupação do legislador em buscar
uma regularização possível para essas áreas, por intermédio de institutos jurídicos diversos. Almeja-
se retirar tais situações dominiais de um “underground jurídico” ou, como afirmam os italianos, do
il Torto para o il Diritto (TARTUCE, 2018).
Uma das ferramentas para o efetivo desempenho da política pública de desenvolvimento
urbano que deve ser executada pelos municípios é a regularização fundiária, instrumento este
previsto no artigo 2º, IV da Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade). O processo de
regularização fundiária é englobado por uma série de elementos, dentre eles estão as medidas
jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, destinadas a incorporação dos núcleos urbanos
informais, ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes, conforme disposto no
artigo 9º da Lei Federal n.º 13.465/2017 (Reurb).

71
UNESP/Franca. Professor Doutor. E-mail: [email protected]
72
UNESP/Franca. Mestranda, Programa PAPP. E-mail: [email protected]
248

A regularização fundiária realizada pelos municípios, tem por finalidade regularizar a


propriedade nos loteamentos clandestinos. O fim precípuo da regularização é justamente a
urbanização do loteamento, dispensando-se assim a necessidade de remoção dos moradores para
outras áreas (GONÇALVES, 2009).
Outra função primordial inerente ao processo de regularização fundiária, consiste no fato de
que é uma ferramenta necessária, adequada e útil, especialmente nas situações em que a ilegalidade
da propriedade ou da posse assumem proporções suficientes para gerar conflitos urbanos ou rurais,
e consequentemente colocar em risco a integridade patrimonial e física das pesssoas envolvidas no
caso concreto. Importante ressaltar também, que a ilegalidade fundiária tem o condão de causar ou
agravar a iniquidade social e os impactos ambientais (REIS; OLIVEIRA, 2017).
Os argumentos apresentados até aqui, justificam a necessidade de se alcançar a efetividade
dos processos de regularização fundiária que atenderão não só as necessidades da Administração
Pública, mas também se destinará ao cumprimento dos preceitos constitucionais, como o previsto
no artigo 182 da Constituição Federal, que prevê a execução da política urbana pelos Municípios.
Ao analisar-se as normas mencionadas, compreende-se que o processo de regularização
fundiária, além da função legal, tem também uma função social muito importante, uma vez que o
seu resultado refletirá diretamente no bem-estar e na pacificação social das comunidades atingidas.

Desenvolvimento
O Nascimento da Cidade de Itapeva -SP
Neste trabalho são analisadas as consequências decorrentes da irregularidade fundiária e do
crescimento desordenado da cidade de Itapeva, município localizado na região sul do estado de São
Paulo, surgido no início do século XVIII, como um bairro rural de Sorocaba. Inicialmente essa
povoação estava localizada na Vila Velha, bairro que atualmente pertence ao município de
Taquarivaí/SP. A princípio Itapeva foi chamada de Vila da Faxina e seu povoamento teve início a
partir da instalação de um pouso de tropeiros. As vilas eram polos culturais, políticos e comerciais
em solo colonial, sendo localidades onde a vida era considerada mais segura (BUENO, 2017).
A fundação oficial do atual município de Itapeva como Vila da Faxina ocorreu em 20 de
setembro de 1769, porém, não há documento legal comprovando a data exata, somente o relato de
historiadores. A Vila da Faxina foi desmembrada do termo da antiga Vila de Sorocaba. No princípio,
a economia da vila era baseada na agricultura de subsistência e conforme novas famílias foram se
instalando no local foi possível o desenvolvimento de outras atividades. Em meados do ano de 1861,
o governo elevou a Vila de Faxina à categoria de cidade, ato que foi oficializado pela Lei Provincial
nº 13 de 20 de julho de 1861 (IBGE, 2020). Após a primeira mudança em seu nome, a cidade passou
a denominar-se Itapeva da Faxina. O nome Itapeva vem do Tupi, e significa pedra achatada. Em 06
de abril de 1872, foi criada a comarca de Itapeva da Faxina, que foi desmembrada da comarca de
249

Botucatu, a qual havia sido integrada desde 1866. Em 1910, houve nova alteração no nome da
cidade, e Itapeva passou a ser chamada de Faxina, o que perdurou até o ano de 1938, quando então,
o nome do município foi mudado para Itapeva, definitivamente (VEIGA, 2014).
No século XIX, a cidade de Itapeva já se apresentava como um polo regional, e nas décadas
de 1930 e 1940, deixou de ser predominantemente agrária e o comércio urbano começou a destacar-
se na economia local. Nesse mesmo período, a cidade passou a receber imigrantes japoneses, árabes,
italianos, alemães, culturas que passaram a influenciar os aspectos locais e surgiram também os
primeiros movimentos para industrialização do município (VEIGA, 2014). Nesse período, as
atividades econômicas desenvolvidas na região de Itapeva, como o plantio do algodão e seu
beneficiamento, a criação e venda de suínos, extração vegetal e mineração, proporcionaram certa
estabilidade e crescimento não só à cidade, mas também aos demais núcleos urbanos da região
(ARAÚJO, 2012).

Itapeva na Atualidade e o seu Crescimento Desordenado


O município de Itapeva/SP, possui atualmente uma extensão territorial de 1.826, 258 km²,
e uma população estimada de 94, 241 habitantes, com densidade demográfica de 48, 05 hab/km². O
Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM do município é de 0,732, conforme
levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no último censo
realizado no ano de 2010 (IBGE, 2010). A cidade de Itapeva/SP apresenta 84.4% de domicílios
com esgotamento sanitário adequado, 66.8% de domicílios urbanos em vias públicas com
arborização e 24.7% de domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada, ou seja,
que dispõem de equipamentos urbanos, tais como, rede de drenagem de águas pluviais, calçada,
pavimentação e meio-fio (IBGE, 2010).
A expansão urbana do município de Itapeva é marcada pelo crescimento desordenado e pela
baixa efetividade de planejamento urbanístico. O município possui cerca de oitenta bairros
implantados na área urbana e rural, tendo sido identificada a existência de ao menos trinta
loteamentos informais de forma extraoficial, conforme informações coletadas junto ao Setor de
Fiscalização Municipal da Secretaria Municipal de Obras e Serviços.
Para o desenvolvimento dessa pesquisa foi selecionada uma amostra de oito processos
administrativos, cujo objeto é a regularização fundiária urbana de assentamentos informais
localizados no município de Itapeva, foi estabelecido como marco temporal o período entre os anos
de 2012 a 2022, sendo analisados os processos administrativos, judiciais e extrajudiciais instaurados
durante esses exercícios, conforme listado na tabela 01.
250

Tabela 01 – Lista de Processos de Regularização Fundiária


Número do Processo Loteamento Programa de N° de imóveis a serem
Regularização imóveis a serem
regularizados
1 - 1506/2022 Jardim Brasil REURB 479
2 - 4451/2018 Vila São Benedito Cidade Legal 519
3 – IC 2851/2012 Jardim Santa Rosa Cidade Legal 145
4 - 4450/2018 Bairro de Cima I Cidade Legal 417
5 - 4448/2018 Vila Boava Cidade Legal 202
6 - 4336/2019 Vila Bom Jesus ITESP 838
7 -0002309-28.2021.8.26.0270 Jardim Primavera REURB 53
8 – IC 14.0263.0002684-2012-9 Jardim ITESP 7
Bonfigliolli
Fonte: Autora, a partir de informações da Prefeitura Municipal de Itapeva

Ao todo, o número de imóveis a serem regularizados nesses processos remontam a 2660


unidades, num universo de imóveis cadastrados e que recebem cobrança de IPTU pelo município
de 36.103 imóveis cadastrados no Departamento de Cadastro Imobiliário até o mês de maio de
2022, informações essas obtidas na Secretaria Municipal de Obras e Serviços, no sistema interno
de dados.
Os assentamentos informais pesquisados no município de Itapeva, foram implantados entre
as décadas de 1950 a 1990. Mesmo após o advento da Lei 6.766/79, regulamentando o parcelamento
do solo urbano em âmbito nacional, a compra e venda de lotes em áreas desprovidas de
equipamentos públicos e infraestrutura básica é um costume enraizado, uma prática normalizada
pela população e pelos loteadores que são incentivados a promover esse comércio irregular
contando com a impunidade e ausência de fiscalização, além de um complexo de leis conflitantes e
não autoaplicáveis, senão vejamos:
O Código de Obras da cidade de Itapeva é datado de 1969 (Lei Municipal nº 74/69), a Lei
Municipal de Parcelamento do Solo Urbano foi promulgada na década de 1990, (Lei Municipal nº
537/1991), o Plano Diretor do Município foi instituído no ano de 2006 (Lei Municipal 2.499/2006)
e até o presente não foi renovado, já estando vencido desde o ano de 2016. O Código de Posturas
Municipal, foi promulgado em 2007 (Lei Municipal 2.651/2007), a Lei de Zoneamento data do
mesmo período (Lei 2.520/2007), parte da legislação urbanística municipal foi promulgada
anteriormente ao Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001).
A norma mais recente editada no Município versando acerca do parcelamento de solo é a
Lei Municipal nº 4.446/2020, que dispõe sobre o parcelamento do solo para formação de sítios e
chácaras de recreio, no entanto, impõe uma série de restrições que não se coadunam com a realidade
local, favorecendo assim, a manutenção da ilegalidade.
Mesmo diante da vasta legislação proibindo o parcelamento ilegal de solo, essa é uma
prática contumaz no município de Itapeva, situação essa incentivada especialmente pela ausência
de uma política habitacional no município. O governo local ignora as ocupações ilegais, optando
251

por remediar os males decorrentes do crescimento desordenado da cidade investindo de forma


gradativa e não planejada os recursos públicos em ocupações informais, notadamente quando
obrigado pelo Ministério Público ou pelo Poder Judiciário.
Essa política urbana consubstanciada “em não fazer” adotada pelo governo municipal tem
sido inequivocamente um dos mecanismos mais poderosos de geração de clientelas nas cidades e
regiões metropolitanas, uma vez que os habitantes dessas ocupações informais ficam sujeitos aos
favores concedidos especialmente pelos políticos que possuem o poder decisório (ROLNIK, 2006).
Na figura 01 consta a imagem de satélite da área urbana do município de Itapeva, indicando
a localização dos assentamentos informais pesquisados.

Figura 01

Fonte: (Autora sobre imagem do Google Earth, 2022)

Em que pese o ideário original do legislador ao promulgar o Estatuto da Cidade em 2001, é


cediço que houve certo desvirtuamento dos princípios originais nos últimos vinte anos, que foram
constatadas no campo do Direito Urbanístico e da Política Urbana, tais como: o ideário da função
social da propriedade foi substituído pelo da liberdade econômica; houve a ascenção do movimento
de financeirização da cidade, em detrimento da agenda da reforma urbana e do direito à cidade; ao
invés de se buscar a regularização sustentável de assentamentos informais consolidados, o objetivo
central passou a ser tão somente a regularização formal dos lotes, fenômeno este influenciado pelas
ideias do economista peruano Hernando de Soto; o domínio dos direitos individuais, subjulgou a
proposta de reconhecimento dos direitos coletivos; houve também uma patente inversão de valores,
ao se substituir a busca de gestão pública democrática pelas estratégias de privatização; também
houve o fortalecimento do Direito Privado em relação ao Direito Público; e por fim, tem-se a
substituição das ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, pela era pós – Zeis, onde houve a
extinção dos gravames anteriormente impostos (FERNANDES, 2021).

Conclusões
252

A partir da análise dos dados acerca da política urbana adotada pelo município de Itapeva,
conclui-se que a implantação de loteamentos informais se tornou um problema crônico, que tem
trazido inúmeros prejuízos ao erário, em virtude das multas aplicadas pelo judiciário em função do
descumprimento das decisões que determinam a regularização dos loteamentos clandestinos e que
não são cumpridas pelo Executivo, além do descumprimento do Termos de Ajustamento de Conduta
– TAC celebrados entre o município e o Ministério Público. Mesmo com a criminalização do
parcelamento ilegal de solo, a comercialização de lotes ao arrepio da lei continua sendo uma prática
comercial bastante usual, o que se verifica inclusive nas imobiliárias locais. Além dos prejuízos de
ordem econômica, os moradores desses loteamentos informais também estão expostos a perigos,
quando constroem em áreas de risco, áreas de preservação permanente, além do que não possuem
a segurança jurídica da propriedade, estando sujeitos a eventual despejo.
A regularização fundiária é um elemento indispensável na planificação urbana, uma vez
que definirá as regras urbanísticas, bem como os parâmetros para o regular uso do solo, assim, é
muito importante que os processos de regularização tramitem de forma célere, eficiente, e que sejam
sanados os fatores críticos que a tornam morosa.
É de suma importância que o gestor público insira em sua agenda de governo a questão da
política urbana, que priorize o planejamento urbanístico e o fomento a política habitacional,
paralelamente a isso passe a equipar os órgãos responsáveis pela promoção da regularização
fundiária e pela fiscalização e exercício ativo do poder de polícia, a fim de evitar a expansão urbana
desordenada. No entanto, enquanto o comércio ilegal da terra for um negócio jurídico lucrativo e
que não haja medidas punitivas satisfatórias a clandestinidade se perpetuará no tempo e no espaço.

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urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a
regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a
eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União e dá outras providências. Diário
Oficial da União. Poder Executivo. Brasília, DF, 11.jul.2017. Seção 1- Eletrônico, p. 1.
253

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254

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05.maio. 2022.
255

O CONFLITO DOS QUARTEIS MINEIRO E PAULISTA NO SÉCULO XIX


EM IBIRACI – MG
Célio Bertelli73
Genaro A. Fonseca74
José Limonti75
Caroline C. Barbosa76
Introdução
O município de Ibiraci localiza-se no sudoeste do Estado de Minas Gerais, distante 424 km
por rodovia da capital do Estado. Seu nome, de origem indígena significa “mãe da árvore”. Ocupa
uma área de 562,095 km², possuindo 12.167 habitantes (IBGE, 2010). Faz divisa com os municípios
de Cássia – MG, Delfinópolis – MG, Claraval – MG, Capetinga – MG, Franca – SP e Patrocínio
Paulista – SP. O nome Ibiraci foi dado pelo escritor e político Basílio Magalhães, encarregado pelo
governo de alterar os nomes dos distritos emancipados, ligado a uma visão nacionalista, por meio
de referências regionais, registradas em tupi-guarani. Portanto, as informações sobre as “frondosas
árvores da região” que recebeu foi a junção de “Ibira”, árvore, com “cy” mãe ou terra. O primeiro
Marco da Divisa entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais está entre os municípios de Ibiraci
– MG e Franca – SP. Entretanto, antes que o marco fosse firmado, o território foi palco de uma
disputa entre os quartéis, representando os estados para a determinação desta linha divisória. Este
trabalho tem como objetivo apontar a localização geográfica dos quartéis paulista e mineiro que se
confrontaram no século XIX devido a delimitação da divisa entre os estados.
Este estudo é constituído de pesquisa qualitativa exploratória, com levantamento em campo
e leitura de materiais históricos a respeito do confronto dos Fortes Mineiro e Paulista para a
determinação da divisa entre São Paulo e Minas Gerais na região de Ibiraci, incluindo o documento
da Prefeitura de Ibiraci – MG em conjunto com a OSCIP (Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público) PROBRIG (Protetores da Bacia do Rio Grande) quanto ao tombamento da Capela
de Nossa Senhora Aparecida do Morro dos Quartéis de Ibiraci - MG. Volpato (2011) acredita que
todo cientista busca a resposta para uma pergunta ainda não respondida e as pesquisas que buscam
responder perguntas originais geralmente mudam a direção das próximas. Conciliado a este
pensamento, Gil (2002) afirma que a pesquisa qualitativa pode ser relacionada à expedição de
reconhecimento que fazem os exploradores de uma região desconhecida, assim, estimula a abertura

73
UNESP RIO CLARO. Doutor em Geociências e Meio Ambiente pela Universidade Estadual Paulista (UNESP –
Rio Claro), e-mail: [email protected]
74 UNESP FRANCA. Doutor em Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP)- Campus de Araraquara (2010). E-mail: [email protected]
75
PROGRIG. Pesquisador da Sociedade Civil Organizada Protetores da Bacia do Rio Grande (PROBRIG) de Ibiraci
– MG. E-mail: [email protected]
76
UNESP FRANCA. Graduada em Ciências Biológicas (UNIFRAN). Mestranda em Planejamento e Análise de
Políticas Públicas pela Universidade Estadual Paulista (UNESP – Franca), e-mail: [email protected]
256

de outros projetos e incentiva pesquisas e discussões acerca do assunto, no caso desta pesquisa, o
confronto dos Fortes Mineiro e Paulista para a determinação da divisa entre São Paulo e Minas
Gerais em Ibiraci - MG.

Conflitos Territoriais entre Minas Gerais e São Paulo no Século XIX


A partir de 1720, Minas foi desmembrada de São Paulo e teve sua divisa determinada a
partir do Rio Sapucaí (BERTELLI, LOPES & LIMONTI, 2019). Os autores afirmam que houve
diversas tentativas de delimitar o território desses estados, um embate que durou 216 anos, sendo
que a última demarcação ocorreu em 1936.
Primeiramente, é necessário reconhecer a diferença entre limite e fronteira. Considera-se
fronteira uma categoria espaço-temporal em perspectiva de um movimento político-espacial
(BERTELLI, LOPES & LIMONTI, 2019). De acordo com os autores, fronteira é mais do que o
sinônimo de um limite territorial, pois é necessário considerar as diversas condições responsáveis
pela definição e demarcação, como por exemplo, além da disputa pelo espaço, também eram
disputas pelas condições políticas, e expansão da produtividade administrativamente tutelado por
algum agente. David Harvey (2005 p.48) afirma que o avanço das fronteiras é um movimento
necessário e crítico do capital. O autor afirma: “Quanto mais difícil se torna a intensificação, mais
importante é a expansão geográfica para sustentar a acumulação de capital”. Portanto, Harvey
combina o avanço na definição e delimitação da expansão geográfica com três elementos. O
primeiro, a transformação agrícola do camponês para a agricultura empresarial; em segundo lugar
a expansão da definição de novas fronteiras e limites criaram novos desejos, relacionados ao
aumento populacional, que contribui para o aumento de mão de obra e consumo. O terceiro
elemento a expansão geográfica como produto e condição do processo capitalista, em vista que o
prolongamento das fronteiras e limites intensifica as atividades diárias e comerciais.
Lia Osório (2002) afirma que o “marco da fronteira” é um símbolo visível do limite. A
fronteira é uma preocupação dos estados no sentido de controle e vinculação. Enquanto a fronteira
é considerada um fator de integração (sendo uma zona de interpenetração mútua e manipulação de
estruturas sociais, políticas e culturais diferentes), o limite é um fator de separação (separa as
unidades políticas soberanas e se torna um obstáculo fixo, independente dos fatores físicos-
geográficos ou culturais). A divisa seca de São Paulo e Minas Gerais tornaram as questões que
envolvem as disputas entre os estados ainda mais complexas (BERTELLI, LOPES & LIMONTI,
2019). De acordo com os autores, Minas foi desmembrada de São Paulo em 1720, a divisa fixada
pelo rio Sapucaí até a foz no rio Grande.
As informações ora apresentadas foram retiradas do dossiê do processo de tombamento da
Capela de Nossa Senhora Aparecida do Morro dos Quartéis realizado pela Prefeitura de Ibiraci –
MG juntamente da PROBRIG. Quando, em 1805, o Governador da Capitania de São Paulo, Antônio
257

José da Franca e Horta, autorizou o Capitão Hipólito Antônio Pinheiro a construir um Quartel de
Guardas no Aterrado, para garantir as divisas da Capitania paulista com a de Minas Gerais, estava
oficializando o início de um processo de conflito por posse de terra, dentro da Colônia, que durou
onze anos, já que logo em seguida à instalação do Quartel paulista do Aterrado, em 1807 foi
instalado, a cerca de 1.000 metros de distância, um Quartel mineiro e ambos desempenharam sua
função de vigilância da fronteira, até que em 12 de janeiro, de 1816, por ordem do Rei D. João VI,
conforme se depreende pela carta patente do Cap. Felizardo Antunes Cintra, expedida pelo
Governador Mineiro, Dom Manuel de Portugal e Castro, as forças portuguesas e mineiras,
“deitarem abaixo” o Quartel paulista, arrancando o marco de divisa e colocando-o seis léguas
adentro da Capitania paulista, nas margens do rio Canoas.
Controvérsias sobre o assunto foram proibidas a partir de então, pois segundo ordens reais
“[ ]... todos eram vassalos do mesmo Senhor”, todas as evidências foram destruídas para que não
restassem vestígios de um conflito entre irmãos, segundo Sua Majestade. Ação desempenhada com
tanta eficiência que francanos e ibiracienses praticamente desconheciam toda esta história, ainda
que fartamente documentada. A certidão do Marco n° 1 (marco entre Ibiraci e Franca) foi cravada
apenas em 1937 pela Comissão de Limites São Paulo Minas (BERTELLI, LOPES & LIMONTI,
2019).

Desenvolvimento da pesquisa
A pesquisa foi iniciada pela Organização da Sociedade Civil Protetores da Bacia do Rio
Grande - PROBRIG, a partir de 2004, para reconstituição da história do município de Ibiraci, foram
surgindo as evidências do evento, com rica cartografia, correspondência e documentos oficiais,
conforme pode-se atestar pela história de Ibiraci e bibliografia referente (em Histórico do
Município). Nas pesquisas de campo, foi detectada uma construção, erigida posteriormente, que se
transformou em marco remanescente desta História – a Capela de Nossa Senhora Aparecida, erigida
no Morro dos Quartéis. De acordo com a pesquisa da PROBRIG, o Quartel paulista, em cuja área
encontra-se próximo a Capela, era guarnecido por 12 Soldados de Linha e um Sargento, conforme
correspondência entre José dos Santos Cruz e o Governador de São Paulo, João Carlos Augusto von
Oeynhausen-Gravenburg, em 10 de março de 1820.
Quase 120 anos após a tomada do Quartel paulista pelos mineiros, em 1932, a região do
conflito pertencia à propriedade do Sr. Baldoíno França e tinha sido registrada em cartório com o
nome de “Fazenda Quartéis”, referência clara aos poucos sinais físicos das instalações militares de
um século atrás. À época, um de seus filhos estudava medicina em Belo Horizonte e a pedido de
sua esposa, devota de Nossa Senhora Aparecida, atendendo ao compromisso de uma promessa
pessoal, o fazendeiro erigiu uma pequena capela num dos locais de visão estratégica em sua
propriedade. Do local escolhido, avista-se a área onde existiu o Quartel paulista e na vertente oposta,
258

onde também existiu o Quartel mineiro. Além disto, avista-se toda a calha do Ribeirão
Maçaranduba, que é um dos formadores do rio Sapucayzinho, estendendo a vista obtida do local a
mais de 100 quilômetros de distância.
Em entrevistas efetuadas pela PROBRIG, ao pesquisar a história de Ibiraci, percebeu-se que
os moradores do local tinham informações nebulosas e esparsas sobre a origem da toponímia do
local, “Fazenda Quartéis” e Morro dos Quartéis. Alguns declararam que, tinham ouvido dizer, dos
mais antigos, que ali acontecera uma batalha, há muito tempo. Outros diziam que tropas, em
passagem pelo local, se aquartelaram na região por algum tempo, etc. Na realidade, a construção
dos quartéis foi fartamente documentada, tanto pela cartografia, quanto pela correspondência entre
o Conde de Palma, governador da Capitania de São Paulo e o governador de Minas Gerais, Dom
Manuel de Portugal e Castro, trocada à época da ocupação da área pelos mineiros. Também a
Câmara de Franca, durante mais de 50 anos reivindicou, junto à Presidência da Província de São
Paulo e à Corte Imperial no Rio de Janeiro, a restituição da posse da área, em longos textos
documentais com respectivos mapas da região do conflito.
A Capela de Nossa Senhora Aparecida do Morro dos Quartéis foi tombada pelo Decreto n°
4.839, de 04 de novembro de 2021, em seu artigo 2° afirma que deve ser inscrito no Livro de Tombo
Histórico, na categoria de Bem Imóvel (BI).
O patrimônio histórico, em forma de construções, vem manter viva uma herança intelectual
e cultural de civilizações anteriores à atualidade, porque é o testemunho vivo e tangível de épocas
passadas, e faz com que se possa entender os fatos mediante um aprimoramento no contexto físico
da época, dos costumes, pensamentos e o próprio cotidiano das gerações passadas (CARMO, 2006).
Em conformidade com essa afirmação, o patrimônio histórico, descrito como um conjunto de bens
e valores representativos de uma nação deve ser entendido como herança de um povo e, portanto, é
preciso que seja visto cada vez mais como uma questão da sociedade, e não apenas do poder público
(PAIÃO, 2010).
Quanto a legislação brasileira, a Lei Federal n° 378 de janeiro de 1937, que dá nova
organização ao Ministério da educação e Saúde Pública e, em seu artigo 46° cria o Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atualmente conhecido como IPHAN, com a
finalidade de promover, em todo o país e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o
enriquecimento e o conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional. Em novembro do
mesmo ano, foi realizado o Decreto-lei federal n°25/1937 que organiza a proteção do patrimônio
histórico e artístico nacional. De acordo com o artigo 1° desse decreto:
Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e
imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
A Constituição Brasileira de 1988, determina a respeito do patrimônio histórico:
259

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a
fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou
etnográfico, bibliográfico ou artístico (Constituição de 1988, art.216).

Em âmbito estadual de Minas Gerais, a Lei n° 5775/1971 autoriza o poder executivo a


instituir, sob forma de fundação, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico
(IEPHA/MG).
Para entender a ação necessária que o patrimônio requer, é necessário observar a diferença
entre preservação, que tem um caráter mais genérico de proteção ao patrimônio, e tombamento, que
é a ação jurídica de proteção. Assim, a preservação inclui desde a apropriação do bem como
patrimônio e todas as questões de memória e identidade até as formas jurídicas e proteção, incluindo
também a restauração, o turismo, a gestão e/ou qualquer ação que vise a conservação deste bem. Já
o tombamento é a forma jurídica de reconhecimento e de proteção ao bem. Ramos (2006) afirma:
O tombamento preserva, no sentido de impedir legalmente a destruição do bem, porém não
é a única forma de proteção cultural. Nas ocasiões em que o Poder Público não estiver
agindo em seu dever de proteger o patrimônio histórico, artístico e científico do país a 36
coletividade tem o direito de acioná-lo para diligenciar essa proteção (RAMOS, 2006, p.
20).

A arqueologia permite um olhar crítico por fornecer estudos que procuram mais que a
simples coleta de artefatos, possibilitando interpretações e a valorização dos bens sociais e o
patrimônio material das comunidades (ORSER, 1992). Conforme a legislação vigente no país, a Lei
Federal nº 3924 de 1961 dispõem sobre os locais pré-históricos e históricos, estes locais são bens
da União e devem ser objetos de pesquisa e proteção. Sítio arqueológico é definido como sendo “o
local físico ou conjunto de locais onde membros de uma comunidade viveram, garantiram sua
subsistência e exerceram suas funções sociais em dado período de tempo” (Chang, 1968 apud.
IGPlan, 2005 p.2). É marcado pela permanência de partes de um contexto geral, alterado pelos
eventos integrados na conservação dos vestígios. Salvamento Arqueológico é a etapa da escavação
de um sítio arqueológico, já identificado, que sofrerá ou já sofreu algum tipo de dano pela ocupação
da área em que se encontra. Para o salvamento de um sítio, é necessário mapeamento disponível da
área, com a disposição de suas partes, e informações históricas obtidas, assim, orienta os trabalhos
de campo (LUNA; NASCIMENTO, 2009).
O Inventário patrimonial é a verificação física de todos os bens patrimoniais, como também
sua localização, número do patrimônio, descrição e caracterização desses bens e condição de uso e
estado de conservação (INSTITUTO FEDERAL, 2021). O arquivo histórico possui como principais
características e funções, de acordo com Bellotto: “Os arquivos públicos existem com a função
precípua de recolher, custodiar, preservar e organizar fundos documentais originados na área
governamental, transferindo-lhes informações de modo a servir ao administrador, ao cidadão e ao
260

historiador” (BELLOTTO,2006, p 227). Portanto, os arquivos servem para além de guardarem a


memória da sociedade, mas mantê-la viva e trazendo sentido para sua existência.
O patrimônio histórico é visto como um bem da sociedade que serve como identidade das
características que a formaram. No caso da localização dos quartéis e a Capela Nossa Senhora
Aparecida, demonstram que a história de Ibiraci – MG foi cercada de desavenças e batalhas por
território, até finalmente cessarem e ficar determinado de maneira permanente a delimitação deste
território.
Este trabalho resultou na localização geográfica dos quarteis mineiro e paulista e da Capela
dos Quartéis (Capela da Nossa Senhora Aparecida). Sendo do quartel mineiro (23 K 283424.00 m
E 7734869.00 m S), do quartel paulista (23 K 282703,00 m E 7735624,00 m S) como demonstrado
na imagem a seguir:

Quartel Paulista

Quartel Mineiro

Capela dos Quartéis

Imagem 1. Foto panorâmica com localização dos quartéis e da Capela. Fonte: Google, 2022, alterado pelos autores.

Quartel Paulista

Quartel Mineiro

Capela dos Quartéis


261

Foto 1. Capela com vista para os quartéis mineiro e paulista. Fonte: Autores, 2022.

Sabe-se que a Capela dos Quartéis já é um bem tombado no município de Ibiraci, podendo,
portanto, ser feito o arquivo histórico. Entretanto, a localização dos quartéis foi pouco desbravada
neste contexto, mesmo evidenciada a partir da pesquisa histórica. Sabendo que para o início de um
salvamento arqueológico é necessário da localização e mapeamento do local, este trabalho poderá
auxiliar para futuros projetos de inventário, tombamento, salvamento e, por fim, arquivamento das
evidencias materiais dos quartéis em um centro de arquivo cultural e patrimonial municipal de
Ibiraci - MG.

Considerações finais
A busca pela história de um local é importante para a identidade da sociedade em que está
inserida nele, é nessa descoberta que a identidade do presente se concilia com o passado e torna-se
a cultura existente. A perda de muitos fatores históricos se dá devido ao descuido com o território
o qual ocorreram os acontecimentos passados, a localização dos quartéis por exemplo,
aparentemente pouco investigada, pode fornecer apontamentos a respeito da história de Ibiraci e
Franca e os estados paulista e mineiro.
Neste sentido, o atual território do município de Ibiraci foi palco de uma batalha entre os
estados de São Paulo e Minas Gerais, sendo, portanto, um marco histórico interestadual de
relevância nacional. Dessa forma, o que até então a região rural dos quartéis é um território
antropizado, com ações de Políticas Públicas poderá se tornar um sítio arqueológico, visto que,
como já demonstrado, representa um grande potencial de estudos no campo da História regional.

Referências
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Janeiro: Editora FGV, 2006.
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263

GERENCIAMENTO DOS RESÍDUOS DE CONSTRUÇÃO E


DEMOLIÇÃO (RCD): DIAGNÓSTICO E DIRETRIZES PARA A
GESTÃO AMBIENTAL URBANA
Leonardo Matheus de Oliveira77
Clauciana Schmidt Bueno de Moraes78
Willian Leandro Henrique Pinto79
Wilson Antonio Lopes de Moura80
Giulia Malaguti Braghini Marcolini Martires81
Introdução
O adensamento populacional, majoritariamente nas áreas urbanas, somado ao
desenvolvimento tecnológico e financeiro, causa um aumento no consumo e inevitavelmente na
geração de resíduos sólidos e seus problemas. Nas cidades brasileiras, é possível atestar a existência
da geração de uma grande quantidade de entulho nas construções, o que caracteriza um considerável
desperdício de materiais que poderiam ser reutilizados, beneficiados e reciclados. O aumento
desenfreado de construções sem um devido planejamento urbano e ambiental contribui para que a
geração dos Resíduos de Construção e Demolição (RCD) seja cada vez maior, o que pode acarretar
problemas em larga escala na questão da degradação ambiental. Além disso, o manejo irregular
desses resíduos sólidos pode causar problemas de saúde pública pois, apesar da construção civil ser
uma área importantíssima para o desenvolvimento social e econômico, a área é uma grande geradora
de impactos ambientais, por fatores como a geração de resíduos, extração de matéria-prima e o
consumo de recursos naturais.
A geração de resíduos sólidos tem aumentado, tanto em quantidade quanto em diversidade
e periculosidade (GOUVEIA, 2012 apud MAROTTI, SANT´ANA e PUGLIESI, 2017). De acordo
com as informações dos Panoramas anuais publicados pela Associação Brasileira de Empresas de
Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), na última década, ano após ano a coleta de
RCD no país aumentou, em 2010 foram coletadas 33,3 milhões de toneladas de RCD, já o Panorama
de 2021 aponta que esse número saltou para 46,9 milhões de toneladas coletadas no ano de 2020
(ABRELPE, 2021).
Em muitas oportunidades, o RCD é retirado de obras e disposto irregularmente em pontos
viciados, que são locais onde o descarte inadequado é feito, como margens de rios, terrenos baldios,
até mesmo nas calçadas das ruas e avenidas, e essa ação pode gerar uma série de problemas

77
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduado em Engenharia Ambiental. [email protected]
78
Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora Ass. Doutora - UNESP. Doutorado em Ciências da Engenharia
Ambiental (EESC/USP). Pós-doutorado Empresarial em Ciências Ambientais – CNPq. [email protected]
79
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre e Doutorando em Tecnologia. [email protected].
80
Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ensino das Ciências Ambientais. [email protected]
81
Universidade Estadual Paulista (UNICAMP). Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas.
[email protected].
264

ambientais e sociais, como proliferação de insetos e outros vetores, o que contribui para problemas
de saúde pública.
Portanto, é cada vez mais necessário um olhar mais técnico e cauteloso para o gerenciamento
de Resíduos Sólidos, amparado por políticas públicas. Porém, até 2002, não havia nenhuma política
pública específica para o gerenciamento de RCD no país. Com a Resolução 307 do CONAMA
foram estabelecidas diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos da construção
civil (BRASIL, 2002).
A complexidade do gerenciamento deste tipo de resíduo é observada nesta mesma resolução,
pois separa os tipos de RCD gerados em 4 classes, o que atesta uma variedade de 14 fatores como:
composição, local de geração e periculosidade do mesmo. Outro fator que aponta a importância de
um manejo adequado deste resíduo, é a relação RCD/RSU nos municípios, de acordo com o
Panorama da ABRELPE de 2021, cerca de 62% da totalidade de resíduos sólidos gerados nos
municípios, são RCD (ABRELPE, 2021).
A Lei Federal 12.305/2010 – Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS) foi um marco,
pois atribuiu diretrizes para o gerenciamento de resíduos sólidos, as responsabilidades dos geradores
e do poder público e aos instrumentos econômicos aplicáveis, como o Plano Municipal de Gestão
Integrada, que a sua elaboração é condição para que os municípios recebam recursos da União para
o manejo dos resíduos sólidos e serviços de limpeza urbana (BRASIL, 2010).
O objetivo deste trabalho foi diagnosticar e analisar o gerenciamento dos Resíduos de
Construção e Demolição na cidade de Limeira/SP, atestar o cenário, entender como o município
atua nesta vertente, analisar as metas estabelecidas no Plano Municipal de Gestão dos Resíduos da
Construção Civil, e com isso gerar uma atualização da situação do gerenciamento no município e
propor possíveis melhorias. Juntamente com os resultados do questionário “Gerenciamento de
Resíduos Sólidos - Municípios do Estado de São Paulo” (MORAES, 2021), verificar a existência
de leis, fiscalizações, locais ambientalmente adequados para disposição final, e demais estatísticas
relacionadas ao gerenciamento do RCD nos municípios.

O gerenciamento dos resíduos de construção e demolicaçõa no município de Limeira/SP


De acordo com Fiore (2013), a geração de resíduos é um processo que ocorre desde a
antiguidade, porém em menor escala, pois as necessidades do homem se limitavam a funções
biológicas, em que os organismos vivos consomem recursos naturais e eliminam partes da matéria
que não conseguem aproveitar. Portanto, qualquer tipo de transformação da matéria e energia irá
gerar perdas que, no caso das atividades produtivas humanas, acarretarão a geração de resíduos
(PALERMO e GOMES, 2017). Com isso tornou-se cada vez mais necessária, a criação de políticas
públicas que deem a devida atenção ao gerenciamento de resíduos sólidos.
No Brasil, a principal legislação na área é a Política Nacional de Resíduos Sólidos,
265

sancionada em 2 de agosto de 2010, a Lei 12.305 aborda definições, disposições gerais, objetivos,
diretrizes, princípios e instrumentos a serem aplicados no gerenciamento dos resíduos sólidos no
país, atribui a responsabilidade dos resíduos (BRASIL, 2010).
A complexidade de um resíduo é atestada pela própria PNRS, que determina 11 tipos de
resíduos: Resíduos Domiciliares, Resíduos de Limpeza Urbana, Resíduos Sólidos Urbanos,
Resíduos de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, Resíduos dos serviços públicos
de saneamento básico, Resíduos Industriais, Resíduos de Serviços de Saúde, Resíduos de
Construção e Demolição, Resíduos agrossilvopastoris, Resíduos de serviços de transportes e
Resíduos de mineração.
Os mesmos também são classificados de acordo com seu grau de periculosidade, a norma
ABNT 10.004/2004 os separa em: Resíduos Perigosos, Resíduos Não Perigosos, Resíduos Não
Inertes e Resíduos Inertes. Este trabalho tem como foco a vertente dos Resíduos de Construção e
Demolição. Marques Neto (2005 apud Ribeiro, 2013) define o RCD como todo rejeito de material
utilizado na execução de etapas de obras de construção civil, reformas, reparos, restaurações,
demolições e obras de infraestrutura.
Com a crescente da urbanização e tecnologia, a geração do RCD aumentou
exponencialmente. No Brasil, a principal legislação relacionada a esta vertente é a Resolução
CONAMA nº 307, que estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos
da construção civil, atribui responsabilidades aos municípios para implementação de Planos
Municipais de Gestão dos Resíduos da Construção Civil. (BRASIL, 2002).
Devido ao fato de existirem muitas fontes e possibilidades de geração, esse tipo de resíduo
é separado em 4 classes, todas caracterizadas em resoluções do CONAMA. Classe A - Resíduos
reutilizáveis ou recicláveis como agregados (BRASIL, 2002); Classe B - Resíduos recicláveis para
outras destinações (BRASIL, 2015); Classe C - Resíduos para os quais não foram desenvolvidas
tecnologias ou aplicações economicamente viáveis (BRASIL, 2011); e Classe D - Resíduos
perigosos (BRASIL, 2004).
De acordo com Marques Neto (2009), a geração do RCD está relacionada a fatores como:
ausência de gestão do mesmo nos canteiros de obras, mão de obra despreparada no que diz respeito
ao gerenciamento dos resíduos; perdas e desperdícios de materiais em razão de projetos pouco
otimizados e métodos ineficazes; e consumo excessivo de recursos naturais por
superdimensionamento de serviços da construção.
Várias são as fontes de geração do RCD. Por exemplo, a falta de qualidade dos bens e
serviços, no setor da construção, pode dar origem às perdas de materiais, que saem das obras em
forma de entulho e contribuem sobremaneira no volume de resíduos gerados. Por outro lado,
existem ainda as perdas que não saem da edificação, que podem levar ao mau funcionamento das
mesmas e acabam por acarretar o aparecimento de manifestações patológicas. Deste modo, há uma
266

redução da vida útil das estruturas que necessitarão de manutenção mais frequente, vindo também
a propiciar maior consumo de matéria prima e geração de resíduos (LEITE, 2001).
Para realizar um diagnóstico da situação atual do Gerenciamento de Resíduos Sólidos no
estado de São Paulo, e atestar o cumprimento da PNRS, Resoluções CONAMA, e o cumprimento
e/ou criação de legislações municipais, no Estado de São Paulo, foram utilizadas respostas do
questionário intitulado “Gerenciamento de Resíduos Sólidos” aos municípios paulistas, realizado
como parte da pesquisa “Política Nacional de Resíduos Sólidos: Proposta Metodológica com o Uso
de Instrumentos Legais, Administrativos e Tecnológicos como Subsídio para sua Implementação e
Gerenciamento Sustentável” (MORAES, 2019; MORAES, 2021).
A pesquisa é composta por 155 questões, foram consideradas as respostas obtidas entre os
dias 22 de fevereiro de 2021 e 2 de fevereiro de 2022, totalizando a participação de 214 municípios,
o que corresponde a 33,17% das cidades do Estado de São Paulo. A pesquisa foi enviada através de
formulário elaborado no google forms (MORAES, 2021).
Para a absorção do conhecimento e obtenção de dados sobre o gerenciamento do RCD no
município de Limeira, houve a busca por números relacionados à coleta deste tipo de resíduos,
visitas a Ecopontos para compreender como é a estrutura e o funcionamento das unidades, além da
obtenção de documentos adquiridos com o recurso da Lei nº12527/2011 - Lei de Acesso à
Informação. Decorrendo deste recurso foi possível obter juntamente a Secretaria Municipal de
Serviços Públicos, os números mensais dos últimos três anos da disposição de RCD no aterro
sanitário do município, entender como é realizada a coleta do RCD nos Ecopontos e em pontos de
descarte irregular, e o custo do m³ de RCD, para disposição no aterro. Já com a Secretaria Municipal
de Urbanismo foi possível obter os números relacionados à Alvarás de Construção, Alvarás de
Demolição e Habite-se , além do relatório de áreas aprovadas para a execução destas obras. O
município faz parte dos 214 municípios que responderam o questionário “Gerenciamento de
Resíduos Sólidos Municípios do Estado de São Paulo”, portanto os resultados desta pesquisa,
também contribuem para a realização do estudo de caso de Limeira.
Para entender o cenário do gerenciamento de RCD na cidade, foi necessário primeiro
entender as políticas públicas sancionadas pelo município, as leis relacionadas aos RCD, e as
respostas obtidas com o Questionário junto a Prefeitura Municipal de Limeira. O município assim
como foi possível atestar no questionário, e na pesquisa bibliográfica, possui legislações
relacionadas ao gerenciamento de RCD.
Outra ferramenta fundamental é o Plano Municipal de Gestão de Resíduos da Construção
Civil (PMGRCC), que foi elaborado em 2015, com o objetivo de reunir informações, caracterizar,
estabelecer um diagnóstico da situação dos RCD na cidade, atribuir metas para a evolução do
gerenciamento dos mesmos, e com isso gerar reflexões para melhorias futuras. Este plano, a partir
da elaboração, passou a ser a referência no município para esta vertente de resíduos sólidos. O plano
267

é amparado pelas Resoluções CONAMA, como a 307, 348 e 448 e normas ABNT, como a
15.114/2004 e 15.116/2004, relacionadas à construção civil, que como visto nos capítulos
anteriores, estabelece diretrizes para o gerenciamento dos RCD.
O município destina uma parcela da área do Aterro Sanitário para a destinação do RCD, que
se chama Aterro de RCC Classe A, com uma área total de 10.000m² (LIMEIRA, 2015). De 2005 a
2017, a quantidade média per capita de RCC gerenciado pela Prefeitura foi de 1,45 kg/habitante/dia,
o que corresponde aos resíduos coletados por 14 empresas transportadoras de RCC e entregues no
Complexo Municipal de Aterros, às quantidades entregues pelos munícipes e transportadores
autônomos diretamente no aterro e nos Ecopontos, à fração gerada nas obras da própria Prefeitura,
e às quantidades coletadas pela empresa terceirizada que realiza a limpeza urbana e remove entulho
das áreas de descarte irregular (ROSADO e PENTEADO, 2020).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a estimativa da
população na cidade de Limeira em 2021 é de 310.783 habitantes (IBGE, 2022). Com esta
informação, juntamente com os dados oficiais relacionados a disposição de RCD no aterro do
município, temos que a geração per capita de RCD é de aproximadamente 1,55 kg/hab/dia.
Uma política pública fundamental para a evolução no gerenciamento do RCD no município,
e que foi criada com o intuito de cumprir a Resolução 307 do CONAMA, são os Ecopontos.
Inaugurados em 2006, deste período até a elaboração do Plano Municipal de Saneamento do
Município de Limeira (PMS) em 2014, foi constatado uma diminuição de 51% das áreas do descarte
irregular de RCD (DALFRÉ, 2014).
Atualmente existem 11 Ecopontos no município, que operam no seguinte horário de
funcionamento: Segunda a Sábado, das 7h30 às 18h. O habitante pode descartar 1m³ por dia nas
caçambas, de forma gratuita. A Prefeitura Municipal de Limeira não realiza o controle da geração
de RCD nos Ecopontos, a coleta dos mesmos realizada por uma empresa terceirizada, com 4
caminhões basculantes de 6m³ que transportam o RCD coletado para o devido espaço destinado, o
Aterro de RCD Classe A (LIMEIRA, 2021).
A retirada acontece de acordo com a quantidade descartada, portanto não há uma informação
precisa sobre os números diários, mensais e anuais. O custo para o descarte de RCD no aterro é de
R$ 25,00/m³. Desde 2015 existe um valor diferenciado para caçambas contendo RCC misturados
com outros tipos de resíduos (R$ 110,00/m³), já que estes resíduos devem ser dispostos no aterro
sanitário, devido ao risco de contaminação (ROSADO e PENTEADO, 2020).

Conclusões
O objetivo deste trabalho foi buscar, a partir de diferentes legislações, porém com o foco
principal na Política Nacional de Resíduos Sólidos, e a Resolução 307 do CONAMA, que é a
referência e principal legislação relacionada aos Resíduos de Construção e Demolição (RCD) no
268

país, todos os elementos relacionados ao gerenciamento do RCD no município de Limeira/SP,


considerando também o cenário dos municípios paulistas que responderam a pesquisa
“Gerenciamento de Resíduos Sólidos - Municípios do Estado de São Paulo” (MORAES, 2021).
Para isso, foi abordado todo o panorama do gerenciamento de Resíduos Sólidos, os números
relacionados à geração, coleta e destinação final dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), e esses
dados colocados lado a lado com os números de uma década atrás, para atestar o crescimento na
geração dos mesmos, a evolução na abrangência da coleta, e os empregos gerados para limpeza e
manejo deste setor, pois o impacto socioeconômico é um fator muito importante, e que deve ser
considerado.
Portanto, para realizar uma abordagem mais detalhada da vertente do RCD, é necessário
primeiramente analisar o cenário legal e normativo referente ao gerenciamento do RSU no país e
no Estado para uma compreensão da interligação das legislações federais, estaduais e municipais, e
sua aplicabilidade no município estudado.
Entrando no principal foco do trabalho, que foi verificar o gerenciamento do RCD no
município de Limeira/SP, é possível atestar que o município está munido de legislações municipais,
que estão amparadas pelas legislações estaduais e federais, portanto pode-se dizer que houve o
devido cuidado na elaboração de decretos e leis. No entanto, ao analisar o cenário do gerenciamento
do RCD, ao longo da última década, percebe-se que praticamente não houve evolução no município,
isto fica muito evidente na análise das metas estabelecidas no Plano Municipal de Gestão de
Resíduos da Construção Civil (PMGRCC) do Município de Limeira (SP).
Foi possível constatar com este trabalho, que o município necessita de melhorias com
relação ao gerenciamento do RCD, por mais que o munícipe pequeno gerador tenha um local
adequado para descartar o mesmo, que são os Ecopontos e exista uma destinação definida no Aterro,
o processo necessita de melhorias. Não há um acompanhamento integral com relação aos números
reais da geração de RCD, não há fiscalização sobre os geradores, e todo o ciclo do RCD gerado
pelos mesmos, não existe uma Área de Transbordo e Triagem, que é uma estrutura intermediária
entre o gerador e a destinação ambientalmente adequada do RCD, uma vez que a ATT vai realizar
a triagem desse RCD, encaminhar para uma usina de Reciclagem de RCD, que vai tratar esse
resíduo, das mais variadas formas para reutilização do mesmo, o que consequentemente irá
desafogar a estrutura do Aterro Sanitário e aumentar sua vida útil.
É compreensível que muitos municípios tenha escassez de falta de recursos financeiros e o
baixo número de funcionários atuando com a gestão de resíduos sólidos, porém com a atual situação
do gerenciamento dos resíduos no município, considerando que existem questões como, grande
desperdício de material nas obras, falta de fiscalização dos geradores de RCD, gasto excessivo com
a coleta de descarte irregular, e o sufocamento do Aterro Sanitário com a lotação do espaço
destinado para o RCD, tais questões podem comprometer e onerar ainda mais o orçamento público
269

municipal.
Este estudo reforça ainda mais a necessidade de um maior investimento, cumprimento e
rigor das políticas públicas relacionadas, para com isso aumentar os pontos de entrega voluntária
de RCD, como os Ecopontos, uma maior eficiência nos canteiros de obras, a criação de uma ATT
e o aumento da reutilização e reciclagem do RCD. Por fim, este trabalho pode ser utilizado como
referência para entender o cenário do RCD no município, e com todas as informações inseridas
relacionadas ao gerenciamento do mesmo em âmbito federal e estadual, juntamente com os dados
obtidos no questionário respondido por um terço dos municípios do Estado de São Paulo, utilizá-lo
como diretriz para a aplicação de políticas públicas e inserção de novas tecnologias para que sejam
aplicadas no município de Limeira/SP.

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271

PAGAMENTO POR SERVIÇOS AMBIENTAIS NA BACIA DOS RIOS SAPUCAÍ –


MIRIM/GRANDE COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DE RECURSOS
HÍDRICOS

Célio Bertelli82
Caroline C Barbosa83
Victor Hugo B. O Bolzan84
Introdução
O estado de São Paulo é divididoem 21 Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(UGRHI), sendo cada uma administrada por um Comitê de Bacia (MARTINS e LIMA, 2017). A
Bacia dos rios Sapucaí Mirim/Grande, na vertente paulista, é gerenciado pelo Comitê de Bacia
Hidrográfica (CBH) Sapucaí Mirim/Grande (UGRHI 8), de acordo com a Lei n° 9.034/1994, que
dispõe sobre o Plano Estadual de Recursos Hídricos para o biênio 1994/95.
De acordo com o Relatório de Situação da CBH-SMG (2008) a bacia possui áreas com alta
susceptibilidade a erosão devido sua formação geológica e geomorfológica, especialmente nos
municípios de Franca, Pedregulho, Patrocínio Paulista, Restinga e Itirapuã. A bacia não possui
remanescente de vegetação nativa suficiente para a proteção do solo, o que ocasiona no
carregamento de águas pluviais com sedimentos, provocando erosão e obstrução de nascentes.
Portanto, este trabalho pretende propor a aplicação de Políticas Públicas no Pagamento por
Serviços Ambientais na Bacia do Sapucaí Mirim/Grande como instrumento de recuperação,
proteção e conservação de recursos hídricos.

Desenvolvimento
Processos Metodológicos
Pesquisa qualitativa exploratória, baseado na legislação vigente, carta temática de uso e
ocupação da Bacia Hidrográfica dos Rios Sapucaí Mirim/Grande do lado paulista, para
caracterização de vegetação nativa dos municípios que utilizam de águas superficiais para
abastecimento público. Segundo Gil (2002), a metodologia qualitativa estimula a abertura de
outros projetos que possam incentivar e aprofundar as discussões acerca do assunto principal, no
caso do presente projeto, a aplicação do Pagamento por Serviços Ambientais na Bacia do Sapucaí
Mirim/Grande como instrumento para recuperação, proteção e conservação dos recursos hídricos
e promover a sustentabilidade.

82
UNESP FRANCA. Doutor em Geociências e Meio Ambiente pela Universidade Estadual Paulista (UNESP – Rio
Claro), e-mail: [email protected]
83
UNESP FRANCA. Graduada em Ciências Biológicas (UNIFRAN). Mestranda em Planejamento e Análise de
Políticas Públicas pela Universidade Estadual Paulista (UNESP – Franca), e-mail: [email protected]
84
FAFRAM. Graduado em Engenharia Civil (Uni-FACEF). Pós-graduando em Gestão de Recursos Hídricos pela
Faculdade de Ituverava "Dr. Francisco Maeda"- FAFRAM, e-mail: [email protected]
272

Referencial Teórico
A conscientização da importância da conservação dos recursos hídricos demonstrou
evolução a partir da criação da Política Nacional de Recursos Hídricos, em 1997, pela Lei Federal
n° 9.433 que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos. Já nos anos 2000, é criada a Lei
Federal n° 9.984, que cria a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. NoEstado de São
Paulo, o Plano Estadual de Recursos Hídricos e o Sistema Estadual de Gestão de Recursos Hídricos
estabeleceu-se em 1987, a partir do Decreto n° 27.576 e, em 2016, instituiu-se o Plano Estadual
de Recursos Hídricos – PERH pela Lei Estadual n° 16.337.
A Lei Federal n° 12.651 de 2012, afirma em seu Artigo 3°, inciso II, que Área de
Preservação Permanente (APP) é uma área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a
função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a
biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar
das populações humanas. Além das faixas marginais de cursos d’agua, o artigo 4° da mesma lei,
considera APP, em zonas rurais e urbanas, para efeitos da lei:
IX - no topo de morros, montes, montanhas e serras, com altura mínima de 100
(cem) metros e inclinação média maior que 25º , as áreas delimitadas a partir da
curva de nível correspondente a 2/3 (dois terços) da altura mínima da elevação
sempre em relação à base, sendo esta definida pelo plano horizontal determinado
por planície ou espelho d’água adjacente ou, nos relevos ondulados, pela cota do
ponto de sela mais próximo da elevação;
X - as áreas em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que
seja a vegetação;

De acordo com o Mapa de Uso e Ocupação da Bacia do Sapucaí Mirim/Grande


(BERTELLI, et al., 2014), a área total da Bacia, é de 914.548,90 ha, divididos em: 1369,86 ha de
Agroindústria/Instalações; 432.548,74 de Cana-de-açúcar; 20.202,89 ha de Cereais; 5.905,76 ha
de Construções Rurais; 8.583,17 ha de Fruticultura; 726,64 ha de Horticultura; 447,13 ha de
Lagoa; 18.066,29 ha de Mancha Urbana; 123,45 ha de Mineração; 154.631,50 ha de Pastagem;
2.212,23 ha de Represa; 21.069,47 ha de Rio/Massa D’água; 12.358,92 ha de Silvicultura;
172.318,72 de Vegetação Nativa.
O bioma predominante na Bacia do Sapucaí Mirim/Grande é o Cerrado, onde é encontrado
o ecossistema Mata Ciliar, com remanescentes de Floresta Estacional Semidecidual. O Cerrado é
o segundo maior bioma brasileiro em extensão, perdendo apenas para a Floresta Amazônica. Este
bioma abrange todas as cinco regiões do país, mas, mesmo demonstrando grande importância, é a
vegetação mais intensamente degradada, e a principal causa dessa degradação é o avanço dos
cultivares agrícolas e pastagem (SOUZA, 2018). Cerca de 40% do rebanho bovino brasileiro é
criado no Cerrado e 45% da safra de soja sai da região central desse bioma (FRANCO e
UZUNIAN, 2010).
273

De acordo com Crestana, et al. (1993), a Mata Ciliar é encontrada em todos os biomas do
Brasil, e tem como principal característica ser uma vegetação que cresce nas margens de nascentes,
rios, córregos, represase lagos, assim, protege e mantém limpa as fontes de água. Esse ecossistema
possui um papel fundamental para a restauração, proteção e conservação da água, reduz as perdas
do solo ocorridas através de processos erosivos e de solapamento das margens de rios, proporciona
refúgio e é fonte de alimentação para a fauna silvestre e aquática, assegura a perenidade das fontes
e nascentes (CRESTANA, et al., 1993).
Uma forma de incentivar a proteção, restauração e conservação dos recursos hídricos, e
consequentemente de outros recursos como o solo e o ar, é a promoção de uma recompensa
monetária aos proprietários rurais, detentores de terras com vegetação nativa, que prestarem
Serviços Ambientais.
Para Wunder (2015), o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) pode ser definido como
“transações voluntárias entre usuários e provedores de serviços que são condicionados a regras
acordadas de gestão de recursos naturais para a geração de serviços externos ao seu território”.
Esse processo está ligado ao princípio protetor-recebedor, que contrapõe o princípio poluidor-
pagador. O princípio protetor- recebedor incentiva a conservação de áreas que possibilitem a
melhoria da qualidade e quantidade dos cursos d’água (YOUNG et al., 2012). Portanto, o
Pagamento por Serviços Ambientais age de forma influenciadora dos agentes econômicos para
que estes permitam a manutenção do fornecimento de serviços dos agentes ecossistêmicos, através
de incentivos financeiros (MATSUOKA, 2019).
A Lei Federal 14.119/2021, que Institui o Pagamento por Serviços Ambientais, afirma em
seu Artigo 2°, inciso II e III, que serviços ecossistêmicos são benefícios importantes para a
sociedade gerados pelos ecossistemas e serviços ambientais são atividades individuais ou coletivas
que fornecem manutenção, recuperação ou a melhoria dos serviços ecossistêmicos.
Ainda de acordo com a Lei, descreve o PSA em seu artigo IV como:
IV - pagamento por serviços ambientais: transação de natureza voluntária,
mediante a qual um pagador de serviços ambientais transfere a um provedor
desses serviços recursos financeiros ou outra forma de remuneração, nas
condições acertadas, respeitadas as disposições legais e regulamentares
pertinentes.
Os que prestam serviços e os pagadores por esses serviços são estabelecidos nos incisos V
e VI, o qual afirmam:
V - pagador de serviços ambientais: poder público, organização da sociedade civil
ou agente privado, pessoa física ou jurídica, de âmbito nacional ou internacional,
que provê o pagamento dos serviços ambientais nos termos do inciso IV deste
caput ;
VI - provedor de serviços ambientais: pessoa física ou jurídica, de direito público
ou privado, ou grupo familiar ou comunitário que, preenchidos os critérios de
elegibilidade, mantém, recupera ou melhora as condições ambientais dos
ecossistemas.
274

Em São Paulo, foi criada a Lei Estadual 13.798/2009, que institui a Política Estadual de
Mudanças Climáticas – PEMC. Em seu artigo 23, declara que o Poder Executivo instituirá,
mediante decreto, o Programa de Remanescentes Florestais, sob coordenação da Secretaria do
Meio Ambiente, com o objetivo de fomentar a delimitação, demarcação e recuperação de matas
ciliares e outros tipos de fragmentos florestais, podendo prever, para consecução de suas
finalidades, o Pagamento por Serviços Ambientais aos proprietários rurais conservacionistas, bem
como incentivos econômicos a políticas voluntárias de redução de desmatamento e proteção
ambiental.
Em Extrema-MG, no ano de 2003, foi aplicado o Programa Conservador de Águas, em
parceria com a Agência Nacional da Água, derivado do Programa Produtor de Água, como
também com outras instituições e empresas de setor privado (JARDIM & BURSZITYN, 2015).
Este programa tem como principais objetivos: aumentar a cobertura vegetal nas sub-bacias
hidrográficas e implantar corredores ecológicos; reduzir os níveis de poluição rural decorrentes
dos processos de sedimentação e eutrofização e de falta de saneamento ambiental; evidenciar o
conceito de manejo integrado de vegetação, solo e água na bacia hidrográfica do Rio Jaguari e
garantir a sustentabilidade socioeconômica e ambiental dos manejos e práticas implantadas, por
meio de incentivos financeiros aos proprietários rurais (PEREIRA et al., 2010).
Para fins legais, foi considerado o valor de referencia pago por hectare/ano para o
proprietário rural participante do Programa, estipulado em 100 Unidades Fiscais de Extrema
(UFEX) da época, correspondendo a R$ 141,00. Dessa forma, o proprietário receberia um valor
maior do que receberia no arrendamento de pasto, atividade mais comum na época no município
(BURSZITYN, 2015). Atualizando este dado, o Decreto Municipal n°4.084 de 27 de setembro de
2021, determina que o valor da UFEX para o ano de 2022 é de R$ 3,44, ou seja, o valor pago para
os proprietários é de R$344,00. O valor de Unidade Fiscal do Estado de São Paulo (UFESP) é R$
31,97 (SÃO PAULO, 2022).
Quanto as áreas consolidadas, de acordo com a Lei Federal n° 12.651/2012, em seu artigo
3°, inciso IV as descreve como: “área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de
julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, neste último
caso, a adoção do regime de pousio”. Em seu Artigo 61 afirma: “Nas Áreas de Preservação
Permanente, é autorizada, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de
ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008.” O Sistema
Agrossilvipastoril é um modelo que possui em sua estrutura componentes: Florestal, agrícola,
pastagem e animal. Este sistema contribui para o aumento da fertilidade do solo, diminui a
dependência de produtos químicos, melhora a capacidade produtiva dos animais e das pastagens,
além de diversificar a geração de renda (OLIVEIRA et al., 2003).
275

A respeito dos imóveis rurais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação
Permanente, a lei determina, no artigo 61, que será obrigatória a recomposição das respectivas
faixas marginais, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do
curso d’água, conforme tabela a seguir (tabela 1):
Tabela 1. Recomposição de vegetação separadas por quantidade de módulo fiscal. Fonte: Lei
12.651/2012.
Até 1 módulo fiscal 5,00 metros
1 – 2 módulos fiscais 8,00 metros
2 - 4 módulos fiscais 15,00 metros
+ de 4 módulos fiscais 20,00 a 100,00 metros

Os municípios que utilizam da captação de águas superficiais são apresentados no Relatório


da CBH/SMG de 2021, conforme tabela a seguir, com valores quantitativos de abastecimento
público de águas superficiais na Bacia dos rios Sapucaí Mirim/Grande.

Imagem 1. Tabela de mananciais de abastecimento público da UGRHI 08 e respectivas


informações. Fonte: CBH/SMG, 2021.

A vazão Q7,10 é entendida como valor anual da média de 7 vazões diárias consecutivas que
pode ser repetida, em média, uma vez a cada dez anos (VON SPERLING, 2007).
Foi possível perceber que os rios que fazem parte da Bacia e são utilizados para a captação
de águas superficiais em maior escala são: Rio Canoas, Ribeirão Pouso Alegre, Ribeirão do Jardim
e Ribeirão das Pedras, e a demanda total ultrapassa o valor determinado do Q 7,10. Demonstrando
assim, a necessidade de projetos que incentivem a restauração, proteção e conservação dos
recursos hídricos.

Resultados e Discussão
O Sistema Agrossilvipastoril é um modelo que possui em sua estrutura componentes:
Florestal, agrícola, pastagem e animal. Portanto, para aplicação do PSA, foram consideradas áreas
de interesse aquelas que mantém as atividades agrossilvipastoril, em conformidade com a lei, assim
como Extrema-MG, principalmente as áreas de pastagem.
Considerando o caso de Extrema – MG, o valor da UFEX para o ano de 2022 é de R$ 3,44,
ou seja, o valor pago para os proprietários é de R$344,00. No caso da Bacia, foi levantado o Valor
276

de Unidade Fiscal do Estado de São Paulo (UFESP), sendo R$ 31,97 no ano de 2022, portanto
devem ser pagos 10 UFESP, que equivalem à aproximadamente 100 UFEX, ou seja, o valor a ser
pago por hectare/ano ao proprietário rural incluído na área da Bacia do Sapucaí Mirim/Grande
com APP em volta de corpos d’água seria de R$ 319,70 para o ano de 2022.

Conclusão
O PSA fornece uma fonte de renda ao proprietário rural, incentivando estes a prestarem
serviços que favorecem a qualidade e quantidade dos recursos hídricos que são utilizados para
abastecimento público. Espera-se com essa pesquisa uma melhor conscientização da população
urbana e rural quanto a importância dos recursos hídricos, assim como proteção e conservação da
vegetação nativa para a manutenção dos mananciais de abastecimento público, proteção e
conservação da fauna e flora, conexão dos corredores ecológicos promovendo fluxo gênico e
atendendo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU em 2015.

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278

A UNIVERSIDADE ENQUANTO POLO DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL


URBANO: O CASO DA CIDADE DE MARINGÁ-PR

Lúcio P. A. Pires85
William A. Borges86

Introdução
A instituição de ensino, a qual, compreende o conjunto de escolas destinadas à
especialização profissional e cientifica, oferecendo serviços de atendimento a comunidade nas
diversas áreas do saber é a universidade. Segundo Pereira (2013), é a instituição que contribui com
a sociedade por meio da produção de uma consciência crítica, fortalecendo o poder de reivindicação
e provocação de um povo; para o autor, a universidade assume um significado especial para o
desenvolvimento geral da nação (PEREIRA, 2013).
Conforme disserta Goulart e Vieira (2008), a instituição universitária produz uma
centralidade no universo social, ou seja, em um território urbano têm modus operandi a perenidade
e permanente estado de eficácia e pertinência sociocultural influenciando no desenvolvimento
social humano. E dentro deste contexto, este artigo objetiva afirmar a relação do desenvolvimento
de um território urbano relacionado a implementação de universidades no mesmo; visando
descrever o desenvolvimento territorial da cidade de Maringá-PR relacionado as universidades que
operam em seu território urbano.
Desse modo, apresenta a fundação das primeiras universidades brasileiras, destacando a
Fundação Getúlio Vargas, EASP, como primeira escola brasileira de administração, e a
promulgação das constituições, as quais, formalizaram a educação superior brasileira. Lembrando
que, a educação, segundo Paulo Freire (1983), é acima de tudo, comunicação e diálogo, um encontro
de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados.
Assim, este artigo, inserido na área de Administração, contribui para a construção da
diversidade de pensamentos e das atividades nas universidades brasileiras produzindo relações
relevantes com a sociedade e o território urbano. Segundo Santos (2004), a universidade deve
conferir uma nova centralidade de extensão social, concebendo modos alternativos ao capitalismo
global. Para o autor, as universidades atribuem participação ativa na construção da coesão social,
no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social, na degradação ambiental e na
defesa da diversidade cultural (SANTOS, 2004).
Por desenlace, conclui que, a melhoria na qualidade de vida do território urbano ocorre com
a implementação de universidades e construção de sua relação com o território, desenvolvida por

85
Universidade Estadual de Maringá, Mestre, [email protected]
86
Universidade Estadual de Maringá, Doutor, [email protected]
279

meio da relação universidade-sociedade. Pois a instituição de ensino superior oferece vastos


horizontes a extensão da sociedade, em sua centralidade no universo social, sociocultural, político
e econômico perante as diversidades humanas.

Desenvolvimento
Realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), o Censo da Educação Superior constitui como importante instrumento de obtenção
de dados para a geração de informações que subsidiam a formulação, o monitoramento e a avaliação
das políticas públicas voltadas a educação brasileira; além de ser o elemento importante para a
elaboração de estudos e pesquisas sobre o setor (BRASIL, 2020).
O censo coleta informações sobre as Instituições de Educação Superior (IES), os cursos de
graduação e sequenciais de formação específica e sobre os discentes e docentes vinculados a esses
cursos; segundo o último senso de 2020, há 2.457 Instituições de educação superior no Brasil, das
quais 77% são faculdades (BRASIL, 2020, p. 10).
O Brasil tem 6,5 milhões de universitários, sendo 6,3 milhões em cursos de graduação e 173
mil na pós-graduação; em 2020, foram levantados 41.953 cursos de graduação e 25 cursos
sequenciais ofertados em 2.457 instituições de educação superior.

O surgimento da universidade no Brasil


Um esforço para com a educação popular, esteja ou não associado a uma capacitação
profissional, no campo agrícola ou no urbano, com objetivo fundamental de problematizar as
relações socias e explicações da natureza, a qual, possibilita o aprofundamento de consciência da
realidade faz a composição do conhecimento, segundo Freire (1983), é a educação.
O educador Paulo Freire defende o aprendizado questionador que não repete informações,
dados e técnicas, mas reflete acerca deles e os inclui em seu contexto social, formalizando
transformações; para o autor, esse caminho é apontado como o verdadeiro sentido da educação
(FREIRE, 1983). E a instituição que amplia a visão humana, integrando a realidade social por meio
da extensão do serviço transformador, emancipatório e democrático é a universidade.
No Brasil, a enunciação desse serviço transformador foi atribuída ao poder central, conforme
o artigo 35, da Constituição de 1891, incumbida ao Congresso, não privativamente, criando
instituições de ensino superior e secundário nos Estados (FÁVERO, 2006). Entretanto, apenas por
meio do decreto nº 14.343, de 7 de setembro de 1920, que teve seu regimento aprovado pelo decreto
nº 14.572, em 23 de dezembro do mesmo ano, foi fundada a primeira universidade brasileira, a
Universidade do Rio de Janeiro (BORTOLANZA, 2017).
Art. 1º Ficam reunidas, em «Universidade do Rio de Janeiro», a Escola Polytechica
do Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a Faculdade de
Direito do Rio de Janeiro, dispensada esta da fiscalização. § 2º O regulamento da
280

Universidade será elaborado no prazo de trinta dias, por uma comissão composta
do presidente do Conselho Superior do Ensino e dos directores da Escola
Polytechnica e das Faculdades de Medicina e de Direito, seguindo-se a sua
aprovação, dentro do prazo de quinze dias, pelas três congregações reunidas, para
esse fim convocadas pelo dito presidente. (BRASIL, 1920, p. 15115).
Contudo, a administração, enquanto área de conhecimento e disciplina acadêmica, segundo
Souza (2007), nasceu nos Estados Unidos da América, rompendo as etapas seguidas pela tradição
europeia de estudos e pesquisas da área, que se concentravam, então, mais na análise sobre o Estado
e suas instituições do que propriamente na produção de teorias de governo; na Europa, a área surgi
segundo a autora, como um desdobramento dos trabalhos baseados em teorias explicativas sobre o
Estado e sobre o papel de uma das mais importantes instituições do Estado, ou seja, o governo, que
por excelência é produtor de políticas públicas. (SOUZA, 2007)
Apenas nos anos 50, durante o período histórico denominado Guerra Fria, segundo Cook
(2004), ocorre investimentos internacionais na área acadêmica da Administração por meio de
promoção de programas de auxilio externo profissionais da gestão do desenvolvimento, de uma
agência doadora para a realização de uma tarefa predeterminada. O marco histórico brasileiro na
área de conhecimento, é a fundação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo no ano
de 1953, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP), segundo Alcadipani e Bertero (2012), a
FGV-EAESP é a universidade situada entre as principais e mais proeminentes do país, apesar de
não ser a primeira, consolida como líder e modelo para as demais instituições de ensino em
administração no Brasil, contando com o apoio e o modelo de ensino americano. Segundo os
autores, a EAESP tornou o centro da área e produção de conhecimento acadêmico brasileiro em
administração (ALCADIPANI; BERTERO, 2012).
Sobre a autonomia universitária, apenas com a promulgação da constituição democrática,
em 1988, a Constituição Federal em seu artigo 207, reafirma o princípio da indissociabilidade entre
o ensino, a pesquisa e a extensão, estabelecendo a autonomia universitária: “As universidades
gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e
obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988,
CF, art. 207).
Após o sistema universitário ter sofrido com crises econômicas que diminuíram os
financiamentos para suas atividades e crises políticas que geraram longas e frequentes greves de
servidores e estudantes, e a promulgação da constituição de 1988, as universidades assumiram
papeis significativos nas relações com a sociedade (VIZONI, 2021). Pereira (2013) afirma que a
participação das universidades em programas de políticas públicas assumiu significado especial
para o desenvolvimento geral da nação.
A universidade contribuindo para o aumento da consciência crítica social, fortalecendo o
poder de reivindicação social, provocando enunciações da população perante os desenvolvimentos
territoriais urbanos por meio de suas relações extensionistas.
281

A universidade enquanto polo de desenvolvimento territorial urbano;


A influência que os campos universitários produzem nos territórios são compostos das
relações de extensão e produção de conhecimentos. Uma vez que, as atividades das universidades
e de outras instituições de ensino superior “têm repercussões amplas e complexas na trajetória
pessoal e profissional das pessoas que delas participam e sobre a evolução geral das condições de
vida da população nas cidades, regiões e países onde se localizam” (VIZONI, 2021, p. 23 apud.
VILA, 2018).
Contudo, como complementa a autora, a existência, ou mesmo a criação de universidades,
não garante por si só o crescimento econômico regional, uma vez que a transferência de
conhecimento e a geração de inovações não são automáticas e muito menos imediatas, além do fato
das universidades terem vocações, culturas organizacionais, heterogeneidades internas e
preferências distintas (VIZONI, 2021, apud. SERRA; ROLIM; BASTOS, 2018)
As características socioeconômicas dos territórios urbanos, onde as universidades estão
localizadas importa muito. Nesse sentido, segundo Vizoni (2021, p. 24), “o sucesso delas na
transferência de conhecimento e de tecnologia está diretamente associado à estrutura produtiva
regional, ao potencial de mobilização dos governos e à capacidade da região em absorver o
conhecimento produzido na própria academia”. Entretanto, o ponto central é a pertinência,
relevância e a necessidade de as universidades desempenharem um papel proativo no processo de
desenvolvimento dos territórios em que estão acopladas (SERRA; ROLIM; BASTOS, 2018)

Procedimentos metodológicos
O procedimento metodológico foi iniciado por meio de um levantamento bibliográfico
referente ao tema universidades e instituições de ensino superior, tendo como contextualização os
autores que tem como foco a extensão de polos universitários, como caráter a relação entre
sociedade-universidade, e o desenvolvimento nacional através da educação.
Como complemento da coleta de dados, esta pesquisa utiliza de uma abordagem qualitativa
descritiva, desenhada por Denzin e Linconl (2006), objetivando acionar os dados públicos
demonstrados pelos principais institutos de pesquisas demográficas brasileiros, como INEP e IBGE.
Para formalizar a analise de pesquisa, foi instrumentalizado uma análise de conteúdo, a
partir das bases epistemológicas e empíricas acionadas durante a coleta de dados, a partir dos
escritos de Laurence Bardin (BARDIN, 1977). Esta analise, segundo Silva, Gobbi e Simão (2005),
permite o entendimento das representações que o corpo apresenta em relação a sua realidade e as
múltiplas interpretações dos significados. Acionando um conjunto de instrumentos, os quais,
segundo Bardin (1977), permitem advir da vertente teórica e da intencionalidade, que visa à
inferência, através da identificação objetiva de características das mensagens.
282

Resultados e discussões
Para Paulo Freire (1983), a educação é acima de tudo comunicação, diálogo, um encontro
de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados, e as universidade, enquanto
instituições de ensino superior acadêmico, produzem o encontro entre a sociedade e o
conhecimento.

A universidade no contexto do desenvolvimento maringaense


Segundo Santos (1989), desde o século XIX a universidade pretende-se o lugar por
excelência da produção de conhecimento científico. A universidade, cujo caráter institucional
sugere capacidade de acesso e ação em todos os níveis contextuais, sempre teve atribuído o papel
central no desenvolvimento dos países por sua capacidade de produção e transmissão de
conhecimento e pela formação e qualificação da força de trabalho (GOULART; VIEIRA, 2008).
A universidade confronta-se com uma situação complexa, uma vez que, são feitas exigências
cada vez maiores por parte da sociedade ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais
restritivas as políticas de financiamento por parte do Estado, obrigando a arrecadação de fundos
para o sustento das atividades universitárias fora do ambiente público (SANTOS, 2010). Entretanto,
a ideia mais ampla de responsabilidade social, de participação nas comunidades e de intervenção
reformista nos problemas sociais é vigente no imaginário de muitas instituições de ensino superior,
se fortalecendo em períodos históricos de transição ou de aprofundamento democrático, como
demonstrado nas constituições anteriores.
Porém, é difícil de rastrear e medir o impacto das atividades de engajamento social
instrumentalizados pelas universidades, pois algumas dessas atividades estão inseridas em
atividades de educação continuada e de transferência de tecnologia, tornando quase impossível ter
dados que possam ser registrados nos territórios urbanos (MORA; SERRA; VIEIRA, 2018).
Contudo, segundo as autoras, os benefícios advindos das atividades de engajamento social
formalizam desenvolvimento da qualidade de vida social (saúde, infraestrutura e educação);
produzindo a melhoria do capital humano e social desses territórios.
Para as universidades, as atividades de engajamento social são benéficas por permitir ajudar
a comunidade, estabelecer vínculos permanentes com os cidadãos, realizar atividades voltadas para
o bem público e desenvolver novas competências, como o aperfeiçoamento dos profissionais
humanos; a preservação de culturas e tradições e, em geral, os benefícios sociais, econômicos,
culturais e ambientais, preservando a reflexão crítica (MORA; SERRA; VIEIRA, 2018).
Essa abordagem social ganhou relevância nos últimos anos em face à constatação
de que o engajamento das universidades com as comunidades locais pode ser um
instrumento frutífero na transformação social e econômica regional, gerando
benefícios mútuos, posto que as universidades também tirem proveito desse
283

estreito envolvimento para testar novas ideias e encontrar caminhos mais eficientes
a fim de alcançar os resultados desejado. (VIZONI, 2021, p. 26)

Em face desta abordagem, a preservação e desenvolvimento social dos territórios urbanos


são destacados por meio da implementação de polos universitários no mesmo. Portanto, as
instituições de ensino superior assumem um significado especial para o desenvolvimento,
conferindo uma nova centralidade de extensão social, concebendo modos alternativos ao
capitalismo global e a consciência crítica.
Esta lógica beneficia o desenvolvimento do território urbano, produzindo uma prospecção
de uma cidade com excelência, como o caso de Maringá-PR, cuja é instrumentalizada como “a
melhor cidade para se viver no país em 2021” (PREFEITURA MUNICIPAL, 2021).
Título mobilizado em pesquisa pelo instituto Macroplan, em 2021, ao avaliar os índices de
desafios em gestão municipal no Brasil, Maringá – PR ocupou a primeira posição. “A seleção da
Macroplan segue vários critérios, como índice de emprego, segurança, saúde e educação. E
Maringá se destacou em educação e saúde (quinta maior nota nacional), além de ter ficado entre os
líderes no saneamento básico.” (PREFEITURA MUNICIPAL, 2021). Fruto de um território
composto por mais de 20 campos de ensino superior, reconhecidos internacionalmente, como a
Universidade Estadual de Maringá; a UniCesumar; o Centro Universitário Metropolitano de
Maringá Unifamma; a Unopar; Unespar, entre outros, demonstrados no mapa da cidade de Maringá-
PR, na figura a seguir, destacados em pontos vermelhos, por meio do aplicativo google maps
(GOOGLE MAPAS, 2022).

(Fonte: pesquisa no app google maps por Maringá-PR universidades, google mapas, 2022)
O território urbano de marinha, integraliza diversas instituições de ensino superior,
envolvendo em seu município, uma vasta área de prestação e serviços, tendo como a sociedade em
geral destinatária, por meio da extensão universitária. Segundo Santos (2010), a extensão
284

universitária deve ter como objetivo prioritário o apoio solidário na resolução de problemas da
sociedade, ou seja, o desenvolvimento do território em que se encontra a universidade.
E a cidade de Maringá abrange um PIB per capita [2019] de R$ 45.582,78, com Índice de
Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) em 0,808; em 2020, o salário médio mensal era de
2.6 salários mínimos, com proporção de pessoas ocupadas em relação à população total de 46.4%.
Quando comparada com os outros municípios do estado do Paraná, ocupa a posição 12 de 399 e 10
de 399, respectivamente; e na comparação com cidades do país todo, fica na posição 373 de 5570 e
91 de 5570, respectivamente. (BRASIL, 2020)
Quando considerado domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por
pessoa, o município de Maringá tem 26.1% da população nessas condições, o que o coloca na
posição 377 de 399 dentre as cidades do estado e na posição 5233 de 5570 dentre as cidades do
Brasil (BRASIL, 2020). O território do município de Maringá apresenta 83% de domicílios com
esgotamento sanitário adequado, 97.3% de domicílios urbanos em vias públicas com arborização e
90.6% de domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada, ou seja, com presença
de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio; quando comparado com os outros municípios do
estado do Paraná, segundo o senso de 2020, o território fica na posição 21 de 399, 88 de 399 e 2 de
399, respectivamente; em relação a outras cidades do Brasil, sua posição é 806 de 5570, 518 de
5570 e 6 de 5570 (BRASIL, 2020).
Em relação a educação, o foco desse artigo, a cidade de Maringá é composta por educação
pública e privada de alta qualidade, da rede básica de ensino ao ensino superior, com pós graduação
inscrito senso e lato senso; exibindo a taxa de escolarização em 98,4% nos primeiros anos, com o
IDEB da rede publica de 7,2; compondo parte dessa produção, 41.291 alunos matriculados no
ensino fundamental com 2583 docentes [2021], 12.130 matriculados no ensino médio com 946
docentes [2021] com mais de 200 estabelecimentos de ensino em seu território. (BRASIL, 2020)
Apesar dos desestímulos públicos operacionalizados pelo governo federal, e da queda
nacional registrada no número de concluintes em cursos de graduação de 6,0% em relação a 2019
(BRASIL, 2022), no município de Maringá, os dados demonstram um território em pleno
desenvolvimento.

Considerações finais
Como demonstrado pelos autores, a relação da universidade com a sociedade compõe parte
favorável ao desenvolvimento territorial urbano. Há a dificuldade em rastrear e medir o impacto das
atividades de engajamento social instrumentalizadas pelas instituições de ensino superior, pois
algumas dessas atividades estão inseridas em atividades de educação continuada, entretanto, a partir
de uma análise advinda da vertente teórica e da intencionalidade, visando a inferência dos dados
objetivos, ofertados pelos instrumentos de pesquisas nacionais como INEP e IBGE, este artigo
285

afirma a relação do desenvolvimento do território urbano da cidade de Maringá-PR relacionado a


implementação dos campos de ensino superior.
Portanto, a relação sociedade-universidade é benéfica por permitir ajudar a comunidade e
todo seu território, estabelecendo vínculos permanentes entre os cidadãos, realizando atividades
voltadas para o bem público, como o aperfeiçoamento dos profissionais humanos; a preservação de
culturas e tradições e, em geral, os benefícios sociais, econômicos, culturais e ambientais,
preservando a reflexão crítica social; demonstrado nos dados e tabelas dos principais institutos
demográficos nacionais, o desenvolvimento do território urbano, produzindo uma prospecção de
uma cidade com excelência, nomeada como a melhor cidade para se viver no país no ano de 2021.
Logo, as universidades, auxiliam com um papel proativo, possibilitando o desenvolvimento
territorial nas cidades em que estão inseridas; por meio de conjunto de instrumentos, os quais
permitem produzir na intencionalidade, à inferência da relação sociedade-universidade.
Por desenlace, esta pesquisa a partir do caso da cidade de Maringá-PR, enquanto polo de
um território universitário, abre perspectivas para novas pesquisas relacionadas a extensão
universitária objetivando um apoio solidário na resolução de problemas da sociedade, ou seja, no
desenvolvimento do território nacional. Contribuindo para a construção da diversidade de
pensamentos e das atividades nas universidades brasileiras, produzindo relações relevantes com a
sociedade e o território urbano. Uma vez que, Santos (2004), destaca à universidade, enquanto
centralidade social, concebendo modos alternativos ao capitalismo global

Referências
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j2.7.0....0...1c.1.64.psy-
ab..7.7.1205...0i512i433k1j0i512i433i131k1j0i30i15i22k1.0.JIWsPMwlTJ0#rlfi=hd:;si:;mv:[[-
23.362314599999998,-51.894165],[-23.4457602,-
51.9986113]];tbs:lrf:!1m4!1u3!2m2!3m1!1e1!1m4!1u2!2m2!2m1!1e1!2m1!1e2!2m1!1e3!3sIAE,l
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287

GESTÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS CONTEMPORÂNEA: ESTRATÉGIAS


INTERNACIONAIS E BRASILEIRAS

Cristine Diniz Santiago87


Ana Cristina Bagatini Marotti88
Erica Pugliesi89
Wellington Cyro de Almeida Leite90

Introdução
Políticas públicas constituem estratégias que tem por objetivo enfrentar questões comuns à
sociedade envolvendo diversos atores. Tais estratégias dependem de premissas e decisões políticas
a fim de implementar programas e ações multidimensionais. A agenda de políticas públicas
ambientais tem buscado promover o desenvolvimento sustentável, definindo responsabilidades
sobre a exploração do meio ambiente e compatibilizando o desenvolvimento econômico, ambiental
e social, de forma a garantir às gerações futuras parte dos recursos naturais que temos hoje, para
suprir suas necessidades. O fortalecimento desta agenda se deu após os eventos subsequentes à
Conferência Mundial do Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, na Suécia, em 1972
(OLIVEIRA; SAMPAIO, 2012).
O curso acelerado da urbanização contemporânea apresenta inúmeros desafios e requer
alternativas para o desenvolvimento sustentável das cidades, buscando soluções relativas ao
planejamento e à gestão. Um destes desafios é a gestão de resíduos sólidos, já que estes constituem
um relevante subproduto do estilo de vida urbano, cujo crescimento da geração é maior do que a
própria taxa de urbanização mundial (HOORNWEG; BHADA-TATA, 2012).
A definição de políticas públicas para a gestão de resíduos consiste, portanto, no
ordenamento de princípios e instrumentos para o enfrentamento desta questão, posta a necessidade
de equacionar os problemas oriundos de práticas inadequadas. Diversos países desenvolveram
políticas, compreendidas como “a chave para a implementação de uma gestão sustentável de
resíduos sólidos” (FRICKE; PEREIRA, 2015). Tais políticas foram concebidas distintamente, a
partir das realidades e anseios particulares a cada sociedade.
Partindo dessa premissa, este artigo tem como objetivo apresentar as diferentes trajetórias
da formulação de políticas públicas relativas aos resíduos sólidos, buscando compreender suas

87
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Doutora em Ciências Ambientais (UFSCar). [email protected].
88
Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Ciências Ambientais (UFSCar). [email protected].
89
Universidade Federal de São Carlos. Doutora em Ciências da Engenharia Ambiental (USP). [email protected].
90
Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Doutor em Engenharia Civil – Hidráulica e Saneamento (EESC-USP).
[email protected].
288

origens e relações, assim como as influências na construção da estratégia brasileira, materializada


na Lei nº 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).

Desenvolvimento
Foram utilizadas pesquisa documental e bibliográfica (GIL, 2008; SÁ-SILVA et al., 2009)
para realizar um levantamento e uma análise comparativa das políticas públicas de resíduos sólidos
da União Europeia (UE), do Japão, dos Estados Unidos da América, do bloco de países da América
Latina e Caribe (ALC) e do Brasil. A escolha destes países se deu pelas abordagens com relação às
políticas de resíduos sólidos, bem como por questões geopolíticas que impactam no processo das
políticas públicas.

União Europeia
A preocupação com a gestão de resíduos esteve presente ao longo da formação da UE e de
suas políticas ambientais. Em 1975, a Diretiva 75/442/CEE buscava a autossuficiência na
eliminação de resíduos e determinava que os Estados membros elaborassem planos de gestão de
resíduos. Em 1991 esta diretiva foi alterada, buscando priorizar a prevenção ou a redução da
produção e da nocividade dos resíduos, além do seu aproveitamento através da reciclagem,
reutilização, produção de energia a partir de resíduos e ações na busca por matérias-primas
secundárias (LEITE, 1997; JURAS, 2012).
Em 2002 a UE estabeleceu a prevenção e gestão de resíduos como uma das quatro maiores
prioridades do Programa de Ação de Meio Ambiente. Devido a essa priorização, em 2006 foi
elaborado o “pilar da política de resíduos” da UE, a Diretiva Estrutural de Resíduos (Waste
Framework Directive) que apresenta uma abordagem de análise de ciclo (EUROPEAN
COMMISSION, 2010; JURAS, 2012).
Em 2008 a diretiva foi revisada e passou a ser conhecida como ‘Diretiva Marco de Resíduos’
– Diretiva 2008/98/CE –, servindo de base para as legislações básicas dos Estados membros. Trouxe
ainda, como inovação, a “responsabilidade alargada do produtor”, ainda que não seja uma medida
impositiva (JURAS, 2012).
A legislação europeia busca seguir a pirâmide hierárquica da gestão de resíduos, que aponta
uma lógica de prioridades desde a ‘prevenção’ (da geração), compreendida como melhor opção, até
a opção menos desejável, a ‘disposição final’, sendo a não geração de resíduos prioridade da UE.
Esta legislação também aplica o princípio do poluidor-pagador para responsabilizar o fabricante
pelos resíduos gerados no final da vida útil dos produtos (JURAS, 2012).
Na UE os Estados membros possuem majoritariamente estratégias descentralizadas com
autonomia dos governos locais. Os países são responsáveis por elaborar seus planos individuais que
atendam minimamente às diretivas do bloco, de acordo com suas realidades. A UE estabelece os
289

prazos para elaboração dos planos e para o cumprimento das metas. Existem fundos disponíveis aos
membros que necessitem de apoio na elaboração e implementação do plano (LEITE, 1997; JUCÁ
et al., 2012).
Este caráter de independência dos Estados membros é motivo de críticas, já que, apesar da
integração dos países, não existem punições efetivas para os membros que não cumpram as
regulações (JUCÁ et al., 2012).

Japão
O Japão possui legislação sobre o tema de resíduos sólidos desde 1954 – Lei da Limpeza
Pública. Baseada em preceitos de saúde pública, o país soube aliar a importância da legislação à
efetivação das políticas públicas. O crescimento populacional, aumento da geração e diversificação
dos resíduos gerados fez necessária a atualização da lei, substituída pela Lei de Gestão de Resíduos
e Limpeza Pública em 1970 (LEITE, 1997; JUCÁ et al., 2012; JURAS, 2012).
Este país adota uma gestão descentralizada dos resíduos, com os municípios como grandes
atores do gerenciamento e as províncias, junto ao Estado, como atores de planejamento. Foi criada
também a Agência Japonesa Ambiental em 1971, com o papel de regular e normatizar a gestão de
resíduos (LEITE, 1997; JUCÁ et al., 2012; JURAS, 2012).
A estratégia nacional foca nos 3Rs – reduzir, reutilizar e reciclar – sendo o primeiro muito
relevante em um país de densidade populacional elevada, que não possui grandes áreas disponíveis
para aterros sanitários. Assim, além de elevados investimentos em reciclagem, que garantem um
dos maiores índices do mundo, a incineração é a principal forma de tratamento de resíduos sólidos
(LEITE, 1997; BROLLO; SILVA, 2001; JUCÁ et al., 2012).
No campo das legislações, existem três leis principais derivadas da Lei Básica do Meio
Ambiente: a Lei de Gestão de Resíduos e Limpeza, revista periodicamente; a Lei para a promoção
da utilização eficiente de Recursos, promulgada em 1991; e a Lei fundamental do ciclo dos
materiais, promulgada em 2000 (LEITE, 1997; JUCÁ et al., 2012; JURAS, 2012).
Observa-se que o modelo de gestão de resíduos japonês é adaptado à realidade local, com
elevados investimentos em incineração, devido à necessidade de redução de volume dos resíduos
(LEITE, 1997; JUCÁ et al., 2012).

Estados Unidos
A principal regulamentação neste país é o Ato de Disposição de Resíduos Sólidos (Solid
Waste Disposal Act) de 1965 – complementada em 1976 –, mas outras legislações nacionais e
regulamentações regionais, estaduais e municipais se aplicam. Dentre os objetivos da lei de 1965
estavam: proteger a saúde humana e o meio ambiente dos perigos potenciais da disposição de
290

resíduos; reduzir a quantidade de resíduos gerada; e assegurar que o manejo dos resíduos ocorra de
maneira ambientalmente adequada (BROLLO & SILVA, 2001; JURAS, 2012; JUCÁ et al., 2012).
Em 1970 o foco nacional da gestão de resíduos estava na reciclagem e recuperação
energética. Já a complementação da lei em 1976 obrigou o fechamento de locais de disposição à
céu aberto, o que gerou uma “crise do lixo” entre o final da década de 1980 e 1990, com empresas
privadas substituindo governos na gestão de resíduos sólidos (LOUIS, 2004).
Conforme a intenção da legislação de 1976, a gestão de resíduos passou de um sistema
municipal na década de 1980 para um sistema regional em 1990, no qual os estados possuem
autonomia e são e responsáveis pela definição de suas políticas públicas (JUCÁ et al., 2012). No
entanto, Louis (2004) destaca que uma consequência indesejável foi a privatização dos serviços por
poucas empresas, que passaram a ter grande influência na regulação.
Desse modo, os EUA possuem um modelo de gestão baseado em um órgão regulador
nacional, responsável também pelo monitoramento e fiscalização nos estados, sofrendo influência
do setor privado. A figura de agência regulamentadora permite que as normas formuladas
aprofundem a abordagem de questões complexas apresentadas na legislação (BROLLO & SILVA,
2001; LOUIS, 2004; JURAS, 2012; JUCÁ et al., 2012).

América Latina e Caribe (ALC)


Brollo & Silva (2001) destacam que os países latino-americanos ainda padecem da sobre-
utilização dos recursos naturais, realizada por meio da exploração irracional que não impulsiona o
desenvolvimento regional, normalmente em benefício de grupos poderosos, com a condescendência
dos governos locais.
A respeito dos resíduos sólidos, a maior parcela é gerida de forma inadequada, com
disposição irregular ou queima à céu aberto. Assim, nesses países há tendência de agravamento da
poluição e contaminação do ar, do solo e das águas superficiais e subterrâneas (BROLLO; SILVA,
2001; MARSHALL; FARAHBAKSH, 2013).
Devido à carência de informações específicas e consolidadas sobre a gestão de resíduos
sólidos nos países da América Latina e Caribe, em parte devido à relativa atualidade das políticas e
práticas na região, será apresentado um panorama geral, destacando os principais aspectos e
estratégias adotadas.
Os países da América Latina e Caribe adotaram prioritariamente a gestão descentralizada
dos resíduos sólidos, sendo os municípios atores centrais neste processo. Com relação ao
estabelecimento de políticas, planejamento e destinação de recursos para a gestão de resíduos
mantêm-se responsabilidades nacionais e regionais. No entanto, a ausência de uma estratégia
integrada dificulta a efetivação das políticas públicas no continente (ESPINOZA et al., 2010;
MARSHALL; FARAHBAKSH, 2013).
291

Em oposição às dificuldades na esfera nacional, observa-se o pioneirismo municipal na


elaboração de planos de resíduos sólidos, buscando ordenar e solucionar questões locais. Contudo,
é necessário observar que a existência de planos não assegura sua qualidade ou aplicação, sendo
sua implantação por vezes impossibilitada pela ausência de recursos e pela indefinição de objetivos,
ações ou metas claras (ESPINOZA et al., 2010).
Ainda, fatores como a deficiência técnica das municipalidades, no planejamento territorial
e na integração das políticas ambientais e urbanas dificultam o sucesso da gestão de resíduos na
região (BROLLO; SILVA, 2001; MARSHALL; FARAHBAKSH, 2013).
Deste modo, soluções regionais ganharam espaço no continente, buscando ganhos em escala
e sucesso na aplicação das normas existentes. Destaca-se, por exemplo, o Sistema Metropolitano de
Processamento de Resíduos Sólidos (SIMEPRODESO), localizado em Monterrei, no México e o
consórcio VIRCH-Valdés, localizado no nordeste da província de Chubut, na Patagônia Argentina
(ESPINOZA et al., 2010).
Outra dificuldade na gestão de resíduos enfrentada na ALC está relacionada à escassez,
dispersão, desatualização e inconfiabilidade de dados, necessários ao planejamento. Nesse sentido,
países como Brasil, México e Peru apresentam experiências na criação de sistemas de informação
(ESPINOZA et al., 2010; MARSHALL; FARAHBAKSH, 2013).
Com relação à legislação, Espinoza et al. (2010) apontam progresso desde 2002. Os países
que haviam elaborado legislação específica até 2010 são: Argentina, Peru, México, Venezuela,
Paraguai, Costa Rica e Brasil, sendo os três últimos os que aprovaram mais recentemente seus
marcos legais, em 2009 (Paraguai) e 2010 (Costa Rica e Brasil).
Temas em comum às legislações latino-americanas são: valorização dos resíduos sólidos,
programas de separação na fonte, programas de reciclagem e a sustentabilidade financeira dos
serviços (ESPINOZA et al., 2010).
Um aspecto relevante da região é o mercado informal de valorização dos resíduos formado
pelos catadores de materiais recicláveis, sendo fonte de renda para uma considerável parcela
marginalizada da sociedade devido à desigualdade social e má distribuição de renda. Países como
Colômbia, México, Brasil e Venezuela já apresentavam programas de reciclagem de magnitude
significativa no início dos anos 2000, impulsionados pelo setor informal (BROLLO; SILVA, 2001;
MARSHALL; FARAHBAKSH, 2013).

Brasil
No caso brasileiro, na década de 1980 questões relativas às dificuldades de disposição dos
resíduos sólidos passam a integrar a agenda pública local, tanto pelos impactos ambientais negativos
da disposição inadequada, quanto pela crescente dificuldade de encontrar áreas de disposição, com
292

o crescimento vertiginoso das malhas urbanas. Ainda assim, a PNRS levaria três décadas para ser
promulgada (NETO; MOREIRA, 2010).
Os debates da futura PNRS iniciam-se na década de 1990, mesmo período em que a questão
dos resíduos sólidos enquanto problemática “vem à tona” para a sociedade, sendo confrontada com
a realidade da catação em ambientes insalubres. A transdisciplinaridade do tema e interesses
conflitantes adiaram o debate deste marco legal que, após uma conjunção de fatores, dentre eles a
eleição de um governo federal com estreita relação junto aos catadores de materiais recicláveis,
logrou a promulgação e regulamentação da PNRS em 2010 (SANTIAGO, 2021).
Destacam-se na lei os princípios da precaução, do poluidor-pagador, do protetor-recebedor,
da ecoeficiência, da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, do respeito às
diversidades locais e regionais e do reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como
um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania (BRASIL,
2010).
É importante ressaltar que diversos princípios, com destaque para o da responsabilidade
compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos também são encontrados em legislações previamente
analisadas, como da UE e do Japão. Com relação aos objetivos da PNRS, a hierarquia para a gestão
de resíduos sólidos, que prioriza a não-geração ou prevenção, também está diretamente relacionada
àquela da UE e do Japão (BRASIL, 2010; NETO; MOREIRA, 2010; JURAS, 2012).
A gestão integrada pode ser tida como pilar da estratégia brasileira, tratando da articulação
entre o poder público, o setor privado e a sociedade civil organizada. Nesta perspectiva sobreleva-
se o destaque e prioridade às soluções regionais e consorciadas – em um paralelo com a estratégia
dos EUA – para viabilizar a gestão de resíduos, ainda que a responsabilidade pela execução da
política seja descentralizada (BRASIL, 2010; NETO; MOREIRA, 2010; JURAS, 2012).
Em um setor com realidade heterogênea, deficitária e detentor de contrastes regionais, a
aplicação da PNRS tem sido desafiadora, estando o país muito aquém das metas inicialmente
estabelecidas, sobretudo com relação a erradicação de locais de disposição irregular, prevista em
lei desde a Política Nacional do Meio Ambiente, e a elaboração dos Planos Municipais de Gestão
Integrada de Resíduos Sólidos, que evidenciam a fragilidade do sistema de gestão municipal. Temas
como a regionalização e a logística reversa também constituem entraves no processo de
implementação.
Finalmente, é importante ressaltar, principalmente ao comparar a legislação brasileira com
a de outros países, a recente democracia do país, assim como da maioria dos países da América
Latina e Caribe, que se encontram em consolidação, apresentando impasses e retrocessos, além da
persistência de oligarquias nos governos locais.

Análise comparativa das políticas de gestão de resíduos sólidos apresentadas


293

O aprendizado de estratégias adotadas por outros países na gestão de resíduos é impactante


para a elaboração de políticas públicas, pois permite incorporar elementos de sucesso e vislumbrar
possibilidades de aplicação. Contudo, sua absorção direta é ingênua, devido às particularidades
geográficas, econômicas, culturais e sociais determinantes para a gestão de resíduos (FRICKE;
PEREIRA, 2015).
De um modo geral, observa-se que as políticas públicas referentes à gestão de resíduos
sólidos nos países e bloco do Norte Global analisados começam a constituir-se com maior
relevância a partir dos anos 1970. Nos três casos nota-se uma postura proativa, havendo distinções
na autonomia dos entes federativos: enquanto os países-membro da União Europeia e o Japão
adotam um sistema descentralizado com maior autonomia dos governos locais, nos EUA o sistema
é regional.
Ainda, ao considerar os principais elementos das legislações dos países e do bloco
apresentados, observa-se que a União Europeia e o Japão tendem a focar na redução da geração de
resíduos sólidos, ao passo que os EUA têm sua legislação com maior enfoque na gestão de resíduos
perigosos.
Por outro lado, nos países da América Latina e do Caribe, inclusive o Brasil, observam-se
esforços voltados à elaboração, consolidação e implementação das legislações, bem como o foco
na disposição final adequada dos resíduos e na sua valorização por meio da reciclagem, com
destaque para a relevância do mercado informal e o contundente papel dos catadores de materiais
recicláveis para a gestão de resíduos no continente.
Deste modo, observa-se no Sul Global a necessidade de investir em diversas frentes de ação
da política pública simultaneamente. Não obstante, a menor força política e institucional destes
países no cenário internacional dificulta a regulação deste setor e, consequentemente, impacta
negativamente no sucesso das políticas públicas destes países.

Considerações Finais
A gestão de resíduos sólidos constitui uma temática transversal e complexa. Enquanto países
do Norte Global instituíram políticas públicas no setor desde a década de 1970, no Sul Global as
discussões iniciam-se na década de 1990 e as políticas são promulgadas a partir dos anos 2000. Esta
diferença temporal implica na necessidade de atuação simultânea, por parte dos países do Sul Global
analisados, em questões estruturais – como a disposição final inadequada – e estruturantes – como
a logística reversa ou a responsabilidade estendida do produtor. Ainda, estes países possuem um
componente social – dos catadores de materiais recicláveis – que adiciona complexidades não
enfrentadas nos países do Norte Global analisados.
Desse modo, os países do Sul Global analisados apresentam dificuldades na implementação
de suas políticas para a gestão de resíduos sólidos. Influências do contexto global, menor força
294

política, institucional e menor autonomia dificultam, por exemplo, a implementação de iniciativas


de redução e de responsabilidade estendida do produtor. Assim, faz-se necessário ampliar o debate
a fim de enfrentar este desafio a partir de novos panoramas, dando maior destaque a questões
estruturantes e explorando a problemática a partir de prismas distintos e inovadores, que
possibilitem abranger a transdisciplinaridade desta questão.

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296

EFICÁCIA DA GESTÃO DE RISCO, CONTROLE, FISCALIZAÇÃO E POLÍTICAS


PÚBLICAS EM MINAS GERAIS: O SETOR DA MINERAÇÃO

Carolina Oliveira Mesquita 91


Amanda Barbosa Rêgo92
Emiliano Lobo de Godoi93

Introdução

Ab intio, as barragens de rejeito são estruturas construídas com a finalidade de dispor o


rejeito gerado pelo beneficiamento de minérios. Dessa forma, os detritos são depositados nas
barragens, o que exige, dessas estruturas, maior volume e altura. Este fato, consequentemente,
provoca a necessidade de uma regulamentação eficiente e uma fiscalização contínua para evitar
graves acidentes (RICO, et al., 2008).
À vista disso, cabe destacar o acidente que ocorreu no dia 05 de novembro de 2015, o
rompimento da Barragem de Rejeitos do Fundão, no município de Mariana, Minas Gerais, da
empresa Samarco, sob o controle da Vale S.A. e da BHP Billiton Brasil. A tragédia foi considerada,
na época, o maior desastre ambiental já ocorrido no Brasil, tendo sido, também, o motivo da morte
de dezenove pessoas.
A lama oriunda desse acidente destruiu o distrito de Bento Rodrigues, afetando também
Águas Claras, Paracatu, Ponte da Gama, Pedras e cerca de outras quarenta cidades localizadas na
Bacia do Rio Doce em Minas Gerais, além de ter alcançado o oceano Atlântico, depois de percorrer
cerca de 670 km (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2019). Nos dias subsequentes ao acidente, a intervenção
do Ministério Público foi necessária para que as empresas apresentassem soluções emergenciais. A
Samarco e a BHP Billiton Brasil foram autuadas pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e
Recursos Hídricos do Espírito Santo, em razão do desabastecimento de água potável dos municípios
espírito-santenses (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2019).
Diante da tragédia e dos danos gerados pelo rompimento da barragem de rejeitos do Fundão
em Mariana, houve uma série de Ações Civis Públicas, ajuizadas pelos Ministérios Públicos dos
estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, que culminaram em diversas políticas públicas.
Ademais, salienta-se que foi firmado um termo de ajustamento de conduta complementar sobre a
governança de resposta do desastre (TAC-Gov – Fundação Renova) em 25 de junho de 2018, que
passou a contar com a participação da Defensoria Pública, do Ministério Público e de representantes

91
Discente no Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. E-mail:
[email protected];
92
Discente no Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás. E-mail:
[email protected];;
93
Docente na Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected];
297

atingidos na tragédia de Mariana.


Porém, mesmo diante de todas as medidas supramencionadas, apenas quatro anos depois do
rompimento da Barragem de Rejeitos do Fundão, em Mariana, mais precisamente no dia 25 de
janeiro de 2019, ocorreu uma tragédia similar na cidade de Brumadinho, localizada apenas 80
(oitenta) quilômetros de Mariana. Nessa tragédia, a Barragem de Rejeitos da Mina do Córrego do
Feijão, também administrada e explorada pela Vale S.A., derramou cerca de 13 milhões de metros
cúbicos de lama com alto teor de silício e ferro no leito do Córrego Feijão, o que ocasionou 270
mortes, além de imensuráveis danos ambientais (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2019).
Logo, tendo em vista que a tragédia de Mariana se repetiu em Brumadinho, é notório que
houve inabilidade e insuficiência na atuação estatal, que deveria ser baseada em pilares como
compliance, gestão de risco, controle e fiscalização na formulação de políticas públicas ambientais,
para a efetiva conservação dos recursos naturais. Reforça essa tese o fato de que a ruptura da
barragem de rejeitos de Brumadinho foi antecedida pelo rompimento em Mariana, o que abre espaço
para questionar se o desastre foi um “infortúnio do destino”. Assim, é evidente que, nesses desastres
de grande porte, são intangíveis as consequências, tendo inclusive que requerer a interferência de
diferentes esferas governamentais.

Políticas públicas após acidentes ambientais


Inicialmente, cumpre salientar que o “termo políticas públicas privilegia aspectos
diversificados como ações e não ações, processo decisório, atores políticos, planejamento”
(PECCATIELLO, 2011, p. 72). Desse modo, no âmbito ambiental, políticas são as funções
primordiais que o Estado deve alcançar, similarmente às metas ambientais e sociais de equilíbrio
ecológico. Assim, “ecologizar as políticas públicas de mineração, energia, turismo, agricultura,
entre outros, resulta na redução dos impactos causados pela implantação de infraestruturas, com o
reconhecimento dos limites ecológicos e da capacidade de suporte dos ecossistemas” (RIBEIRO,
2011, p. 68).
Dessa maneira, as políticas públicas ambientais carecem de constante monitoramento, em
adição a regulares avaliações de desempenho, a fim de verificar os seus possíveis efeitos, afora
subsidiar inúmeros processos de aprendizagem (ASSIS et al., 2012). Outrossim, o “aperfeiçoamento
de políticas ambientais, entretanto, nem sempre se dá de maneira proativa; eventos catastróficos
são, frequentemente, os principais catalisadores de mudanças, pois expõem, de forma súbita e
contundente, problemas preexistentes” (EUROPEAN SAFETY, RELIABILITY & DATA
ASSOCIATION, 2015).
Nesse ínterim, salienta-se que inúmeros desastres ambientais culminaram na criação e no
aperfeiçoamento de políticas públicas ambientais (POTT; ESTRELA, 2017), como em Londres,
onde, após “a névoa matadora”, desastre ocorrido em 1952, criaram a Lei do Ar Limpo, que
298

estabeleceu medidas de controle da poluição oriunda da queima de carvão (WALLER, 1971).


Destarte, Daniel Joseph Hogan (2007, p. 19) corrobora afirmando que, em 1956, no Japão,
“houve a contaminação por mercúrio na Baía de Minamata. As discussões acerca do uso de
compostos químicos e seus efeitos na flora e fauna levaram à proibição do uso do defensivo agrícola
DDT e iniciou um movimento ambientalista que tomaria força na década seguinte”.
De modo similar, no estado de Minas Gerais, após as rupturas das barragens de rejeitos,
ocorreu um fenômeno semelhante ao de aperfeiçoamento reativo de políticas públicas ambientais,
uma vez que a magnitude dos danos biofísicos e socioeconômicos trouxe à tona inúmeras falhas
nas políticas públicas voltadas à gestão de segurança de barragens (MILANEZ et al., 2019). Dessa
maneira, nota-se que, após os rompimentos dessas barragens, diversas foram as mudanças legais e
regulatórias. Contudo, esse processo político-institucional está disperso e pouco explorado.

Governança e gestão de risco em Minas Gerais


Como visto alhures, após o desastre ocorrido na cidade de Mariana, foi implementado um
sistema de governança, abarcado pelo Comitê Interfederativo (CIF) - que envolve organizações
públicas federais, estaduais e municipais e, também, a Fundação Renova. Assim, faz-se mister
conceituar o que vem a ser o termo governança e, para isto, tem-se a lição de Diniz (apud SANTOS,
2015, p. 93): a palavra governança “diz respeito à capacidade de ação estatal na implementação das
políticas públicas e na consecução das metas coletivas”. Deste modo, o termo governança refere-se
ao ato de governar, seja no setor privado, seja no setor público.
Por conseguinte, tem-se que para uma governança ser bem-sucedida, deve seguir alguns
princípios orientadores, além de cumprir funções fundamentais, tais como o estabelecimento de
metas, a coordenação destas e a efetivação das ações necessárias, visando completar ambas.
Ressalta-se, no entanto, que dentre os modelos de governança, a governança colaborativa é a que
atinge os conceitos mais amplos da administração pública e, consequentemente, da democracia
(ANTOINE, 2008).
Superadas as noções iniciais sobre governança, passa-se a esclarecer a gestão de riscos e,
para isso, cabe citar Antoine et al. (2008, p.17), que afirma que “a gestão de riscos naturais ou não
é uma prática que remonta ao surgimento do homem na Terra.”. Nesta linha, conforme Almeida e
Pascoalino (2019), é possível afirmar que comunidades primitivas analisavam e até modificavam o
ambiente no intuito de adaptá-lo às suas necessidades, o que evitava danos e prejuízos causados por
fenômenos naturais, mesmo que de forma inconsciente.
Diante disso, não é forçoso considerar a governança como um meio de gestão de risco, ou
seja, como uma forma de reduzir as ameaças e suas consequências, atreladas às decisões ou às
práticas coletivas. Não se trata de um fenômeno recente, visto que grandes Civilizações Hidráulicas,
à título de exemplo, Índia, Mesopotâmia, China e Egito, já construíram diques contra inundações
299

há milênios atrás (ALMEIDA; PASCOALINO, 2019).


Perante o exposto, a gestão de risco, atualmente, recobre uma ordem de políticas, medidas,
obras e dispositivos, até mesmo em uma forma genérica, à proteção ou à previsão dos riscos. O
rompimento da barragem do Fundão em Mariana e da barragem B1 em Brumadinho atingiu
enormes proporções e uma grande perda de vidas, além dos danos ambientais irreversíveis. Dessa
forma, baseando-se na gestão de risco, é possível dizer que ambas as tragédias poderiam ter sido
evitadas se houvesse o efetivo cumprimento das normas já estabelecidas e o acompanhamento pós-
licenciamento ambiental. Afinal, a vigilância é fundamental para reduzir o desastre e para o
cumprimento dos procedimentos que já estão estabelecidos legalmente (CARMO; ANAZAWA;
BONATTI, 2015).
Portanto, é necessário um amadurecimento das novas relações de poder, sendo incluída a
cidadania ambiental nessa perspectiva e tendo como pilar uma maior participação da sociedade civil
e da iniciativa privada, o que gera uma urgência na criação de modelos de governança e gestão de
risco que estejam alicerçados na combinação dessa teoria com a prática (CARMO; ARAÚJO,
2020).
Destaca-se que no caso específico (Mariana e Brumadinho), alguns autores como Milanez,
Santos e Mansur (2017) afirmam que os problemas no armazenamento nas áreas dos desastres já
vinham se constituindo há muito tempo, e só se tornaram evidentes com os rompimentos, o que
dificultou a participação e o diálogo da sociedade e a integração de políticas, revelando. assim. um
quadro de desordem institucional.
Em face do exposto, o sociólogo e ambientalista uruguaio Eduardo Gudynas (2018, p. 65)
também corrobora ao ressaltar sobre os denominados “efectos derrame”, que referem-se às
“repercussões que não são identificadas no nível local, ou seja, são efeitos que estão além da
contaminação, do desmatamento e das relações assimétricas de trabalho geralmente reconhecidos
nos projetos que incluem a extração de recursos naturais”. Entre os possíveis efeitos, enfatiza-se a
flexibilização das leis na esfera ambiental, a violação de direitos e a dependência econômica, que,
inclusive, vencem as barreiras espaciais, uma vez que transbordam para além do local imediato da
extração, como, por exemplo, o Plano de Logística Sustentável nº 167/2018.
Dessa maneira, Gudynas (2018, p. 66), em especial, alerta sobre os impactos da
flexibilização da legislação ambiental e também sobre a “institucionalidade ambiental do país, uma
vez que essas concessões tendem a abrir espaços cada vez maiores justificados pela necessidade de
acelerar processos e descomplicar a gestão”. Dessa forma, à medida que é possível notar que o
extrativismo mineral é uma alternativa para o desenvolvimento. Entretanto, nessa relação,
predomina a contabilização dos lucros em prejuízo dos diversos efeitos negativos ambientais e
sociais desta prática.
Contribuição das políticas públicas após os acidentes
300

Em março de 2016, após o desastre de Mariana, foi assinado o Termo de Transação e


Ajustamento de Conduta (TTAC) entre o Poder Público e as empresas responsáveis. O Termo
inaugura uma política de governança para enfrentamento das consequências sociais, ambientais e
econômicas geradas pelo evento. Logo, foram criadas duas estruturas, a Fundação Renova e o
Comitê Interfederativo (CIF). Porém, com o passar dos anos, o TTAC sofreu duras críticas por
contar com pouca participação popular em sua elaboração, mas mesmo assim “os instrumentos nele
previstos restaram inegavelmente consagrados como solução inovadora de articulação interfederativa e
interinstitucional no campo dos desastres sócio-ambientais de grande magnitude” (ANDRETTA JUNIOR,
2020, p. 79).
O CFI tem como função orientar, supervisionar, validar, monitorar e fiscalizar as ações da
Fundação Renova. Essa comissão é composta por 16 membros que representam as seguintes
estruturas públicas: Ministério do Meio Ambiente, Governo Federal, Estado de Minas Gerais,
Estado do Espírito Santo, Municípios de Minas Gerais afetados pelo rompimento, Municípios do
Espírito Santo afetados pelo rompimento, pessoas dos estados de Minas Gerais atingidas pelo
rompimento, Defensoria Pública e Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. O seu regimento
interno cria onze Câmaras Técnicas, com o papel de emitir pareceres para deliberação da CFI ou
notas técnicas com orientações para a Fundação Renova (UNIÃO, et. al., 2016).
Além disso, a Fundação Renova é uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos,
e tem como mantenedora a Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e a BHP Billiton Brasil Ltda. Foi
criada para detalhar e executar os programas de restauração e mitigação dispostos no TTAC. Esses
programas foram categorizados entre “socioeconômicos” e “socioambientais”. O primeiro conta
com ações voltadas à organização social dos impactados; à reconstrução e recuperação de
infraestruturas; à educação, cultura e lazer; à inovação; à saúde e à economia local e regional. Já os
programas socioambientais envolvem eixos temáticos relativos à gestão dos rejeitos e recuperação
da qualidade da água; restauração florestal e produção de água; conservação da biodiversidade;
segurança hídrica e qualidade da água; educação, comunicação e informação; preservação e
segurança ambiental e gestão e uso sustentável da terra (BATISTA JÚNIOR; VIEIRA; ADAMS,
2017).
A figura 01 retrata como se organiza esse sistema de governança, após as alterações trazidas
à TTAC original de 2016, com o início da participação do Ministério Público e inclusão de
representantes das vítimas atingidas tanto da Fundação Renova quanto na CIF. É possível perceber
que, mesmo com essas mudanças e de acordo com Melendi e Lopo (2021), esse sistema de
governança mantém o controle que as empresas responsáveis pela tragédia têm sobre os órgãos de
gestão da Fundação, enquanto os representantes dos atingidos não ocupam espaços que contem com
poder de decisão sobre as medidas reparatórias a serem adotadas.
301

Figura 01: Sistema de Governança para enfrentamento dos impactos do desastre de Mariana, conforme o
TTAC e TAC Gov – 08/2018

Fonte: MELENDI; LOPO, 2021, p. 226.

Segundo dados da Fundação Renova, até setembro de 2022, já foram desembolsados 24,73
bilhões de reais para execução das ações reparatórias e compensatórias, dos quais 46% foram
destinados para o pagamento de indenizações e auxílios financeiros para as mais de 403 mil pessoas
atingidas pela tragédia. No que se refere à reparação socioambiental, o Fundação declara que já
houve a redução de 34% dos rejeitos que afetaram os 670 quilômetros dos cursos de água, por meio
de planos de manejo e retirada desses resíduos e com a implementação de projetos de
renaturalização e implantação de estações de tratamento natural. Os solos que sofreram com o
depósito de rejeitos estão sendo monitorados e passam por um processo de restauração florestal
(FUNDAÇÃO RENOVA, 2022). Todavia, ao se acessar o site do Comitê Interfederativo, observou-
se que os dados e relatórios de suas ações encontram-se bastante desatualizados, não sendo possível
acompanhar quais foram suas deliberações e providências tomadas nos últimos anos (CIF, 2022).
Relativo à tragédia de Brumadinho, ao invés da instituição de uma estrutura de governança
complexa, como ocorreu em Mariana, buscou-se criar uma instância que articulasse os órgãos do
estado de Minas Gerais para que as medidas de reparação fossem executadas da forma mais célere
possível. Assim, no ano de 2019, por meio do Decreto do estado de Minas Gerais número 176, foi
instituído o Comitê Gestor Pró-Brumadinho, que desde 2021 passou a atuar como a estrutura
administrativa encarregada para acompanhar e executar as medidas fixadas nos acordos judiciais
relativos ao episódio. O Comitê é composto por membros do governo de Minas Gerais, do
Ministério Público de Minas Gerais, Ministério Público Federal e da Defensoria Pública de Minas
Gerais (COSTA, et. al., 2022).
302

Quanto a reparação socioeconômica, até o momento foram destinados 2,5 bilhões de reais
para a construção de casas, usinas fotovoltaicas, creches e obras rodoviárias, além da
implementação de projetos específicos em cada uma das cidades atingidas. No que se refere à
reparação socioambiental, conta-se com orçamento estimado de 5 bilhões de reais a serem
empregados conforme plano de trabalho ainda em tratativa, mas com realização de algumas medidas
emergenciais, como o manejo dos rejeitos, recuperação da fauna e flora, retirada de peixes,
montagem de estruturas provisórias e execução de obras (MINAS GERAIS, 2022).
Além do mais, o programa de mobilidade constitui-se na obrigação da empresa Vale pagar
o valor de 4,95 bilhões de reais para o estado de Minas Gerais, a serem destinados para recuperação
e pavimentação de rodovias estaduais, construção de ponte sobre o Rio São Francisco, construção
de rodoanel e melhorias no metrô na região metropolitana de Belo Horizonte. Nesse mesma
orientação, segue o programa de fortalecimento do serviço público, em que foi fixada uma
obrigação da Vale pagar 3,65 bilhões de reais ao estado de Minas Gerais, para que este execute
ações como conclusão de obras nos hospitais regionais, construção de bacias de contenção de água
da chuva no Córrego Ferrugem, adquira equipamentos para as forças de segurança e instale cisternas
em áreas de seca (MINAS GERAIS, 2022).

Considerações finais
A presente pesquisa buscou analisar a gestão de risco e o funcionamento das políticas
públicas que ocorreram como resposta aos acidentes de Mariana e Brumadinho, apresentando
informações sobre a sua aplicação e os seus avanços. Dessa maneira, considera-se um modelo
inédito de governança, que esforçou-se para integrar múltiplos “stakeholders”, e a comunidade
atingida pelo desastre.
Contudo, a Agência Nacional de Mineração (ANM, 2020) aduz que o Brasil detém 769
(setecentas e sessenta e nove) barragens de rejeito, das quais 425 (quatrocentas e vinte e cinco) estão
incorporadas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB). Dentre essas barragens,
quatro encontram-se em nível de risco alarmante, sendo elas: a) Barragem B3/B4, Minerações
Brasileiras Reunidas S.A. Filial: MBR Paraopeba, Nova Lima, Minas Gerais; b) Forquilha I, Vale
S.A. Filial: Vale Itabiritos, Ouro Preto, Minas Gerais; c) Forquilha III, Vale S.A. Filial: Vale
Itabiritos, Ouro Preto, Minas Gerais; d) Sul superior, Vale S.A. Filial: Vale Minas Centrais, Barão
de Cocais, Minas Gerais (NEVES et al., 2020).
Portanto, nota-se que apesar da gestão de risco e das políticas públicas implementadas em
Minas Gerais após os acidentes, requer-se ainda uma priorização dos projetos, com cronogramas
mais rígidos e responsabilidades definidas, a fim de não apenas gerir os estragos ocasionados pelos
desastres, mas prevenir outros.
303

Referências
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WALLER, R. E. Air Pollution and Community Health. London, 1971.
305

EMENDAS AO PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE BOTUCATU: USO DE


AGROTÓXICOS EM ZONAS DE CONSERVAÇÃO HÍDRICA

Luiz César Ribas94


João Pedro Zorzi Octaviano95
João Paulo Pereira Duarte96

Introdução
O debate (ou será que deveríamos nos referir ao “embate”?) sobre a questão (problema)
dos “agrotóxicos”4 advém de muito tempo. Isto é importante destacar porque significa, antes de
tudo, que esta questão não tem sido adequadamente trabalhada até agora, sobretudo em localidades
com interesses ambientais como, por exemplo, proteção de recursos hídricos visando o
abastecimento de água em determinado município.
Com o intuito de contribuir para um melhor encaminhamento desta questão, pretendeu-se
a elaboração do presente trabalho. Neste sentido, e primeiramente, seria interessante sugerir as
seguintes hipóteses5: i) Os agrotóxicos não podem ser dissociados de um modelo de produção
agrícola o qual poderia ser convencionalmente denominado como “Agricultura Tradicional” - AT.
Isto porque, não se pode pensar no uso dos agrotóxicos de forma dissociada de outros fatores
igualmente relevantes e interdependentes como, por exemplo, máquinas, equipamentos, demais
insumos agrícolas, tecnologia de produção e, por que não, comercialização, dentre outros, e; ii) O
“movimento alternativo” ao uso dos agrotóxicos, por seu turno, deveria ser considerado dentro do
contexto de um (outro) modelo de produção agrícola, o qual poderia ser convencionado como
“Agricultura Orgânica” – AO (Agricultura Ecológica, Agricultura Natural, Agricultura
Biodinâmica, Agricultura Regenerativa, Agricultura Biológica, Permeacultura, Agroecologia,
Sistemas Agroflorestais-SAFS, Sistemas Agrossilvipastoris e outras nomenclaturas congêneres que
atendam os princípios da Lei n. 10.831/2003, cf. Brasil (2003)6.
O objetivo deste trabalho foi o de a partir da discussão do uso ou não de agrotóxicos, bem
como de elementos correlatos, contribuir, via propostas de emenda ao plano diretor, para a

94
Faculdade de Ciências Agronômicas - FCA. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP.
Campus de Franca/SP. Professor Assistente Doutor. E-mail: [email protected]

95
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais- FCHS. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -
UNESP. Campus de Franca/SP. Mestrando em Planejamento e Análise de Políticas Públicas (UNESP/Franca). Bacharel
em Direito. Mestrando junto ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas, da
UNESP-Franca/SP. E-mail: [email protected].
96
Faculdade de Ciências Humanas e Sociais- FCHS. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” -
UNESP. Campus de Franca/SP Mestrando em Planejamento e Análise de Políticas Públicas (UNESP/Franca).
Engenheiro Agrônomo e Geógrafo. Mestrando junto ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de
Políticas Públicas, da UNESP-Franca/SP. E-mail: [email protected].
306

formulação de política pública do município de Botucatu/SP, visando o uso múltiplo de recursos


hídricos. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa exploratória-documental, apoiada numa
abordagem dedutiva, partindo-se dos principais dispositivos normativos federais sobre o tema para
então trabalhar-se, especificamente, o objetivo principal e as hipóteses centrais desta pesquisa.

Resultados
Inicialmente, entende-se que haveria um melhor esclarecimento da relação AT x AO se
houvesse a concordância com o seguinte paralelismo: A AT está para a Alopatia, assim como a AO
e está para a Homeopatia.
Neste sentido, na exata proporção em se há um consenso geral no sentido que tanto a
Homeopatia quanto a Alopatia têm seus respectivos “espaços”, a AT e a AO igualmente têm os seus
correspondentes “espaços”. O que cabe discutir, na verdade, são as condições para a inserção dos
“espaços” tanto de um (Alopatia / AT) quanto de outro (Homeopatia / AO). Até porque, grosso
modo, não se pode descartar, de antemão, que as principais finalidades de um sistema de produção
orgânico (AO) não possam ser também perseguidas, de uma forma ou de outra, pelo sistema de
produção da agricultura tradicional (AT)7.

Política agrária e ordenamento territorial para a região


A utilização ou não de agrotóxicos não pode ser considerada como algo que se esgota em
si próprio. Isto porque, o uso de agrotóxicos deve ser necessariamente incluído dentro do modelo
de produção agrícola convencionado como AT.
Isto porque, o uso dos agrotóxicos e um modelo agrícola pautado em AT podem perseguir,
conforme apontado acima, as finalidades de um sistema orgânico conforme apregoado para o
modelo agrícola AO.
Ademais, não se vislumbra algum tipo de óbice intransponível no sentido de que a AO
também não persiga as finalidades dos agrotóxicos e afins (alteração da composição da flora ou da
fauna, a fim de preservá-la da ação danosa de seres vivos considerados nocivos, por exemplo).
De toda sorte, não se pode desconsiderar que todo e qualquer modelo de produção agrícola,
está condicionado, por conta de suas dimensões ambientais, sociais e, evidentemente, econômicas,
à análise da “escala” de produção e, por consequência, à área de produção (sendo que esta, por sua
vez, está condicionada à área total de determinada propriedade rural).
Por conseguinte, e procurando-se ser extremamente genérico e simplista (para não
corrermos o risco de dispersão), o uso ou a proibição do uso de agrotóxicos (dentro do contexto de
determinado modelo de produção agrícola) requer uma análise incisiva dentro da questão agrária,
ou seja, do tamanho das propriedades rurais.
307

Isto vem a ensejar que também se reflita sobre a questão (política) agrária de determinada
região (particularmente, no caso presente, para as zonas de conservação hídrica, ZCH4 e para a
ZCH5, presentes no município de Botucatu/SP).
Este entendimento sugere a também remessa da presente questão (evidentemente que, com
respeito ao escopo dentro do qual o presente documento se insere, naquilo que concerne, naquilo
que couber, por via direta ou indireta)8, à circunscrição de uma ação reflexiva (e, se possível,
política) da municipalidade sobre a questão agrária da região do interesse em tela. Em paralelo, uma
outra dimensão, vinculada à dimensão agrária, deve ser avaliada no debate aqui presente, qual seja,
a tipificação das “porções” de determinada localidade da ZCH4 ou da ZCH59 como “área urbana
consolidada”, “área rural”, “área urbana”, “área de expansão urbana” ou mesmo “área
periurbana”10.
O tipo de agricultura a ser incentivada nas zonas em discussão deve também considerar
elementos de planejamento e política de ordenamento do território (rural e urbano), tanto local (caso
específico das zonas ZCH4 e ZCH5), quanto geral (município de Botucatu em sua parte rural como
um todo, aqui tratado enquanto estudo de caso).

Pontos negativos tanto de um modelo (AT) quanto de outro modelo (AO)


Por outro lado, e em complementação aquilo que posto mais acima, o uso ou a proibição
requer um debate sobre os prós e os contras tanto de um modelo agrícola (AT) quanto de outro (AO)
nas regiões contempladas pela ZCH4 e ZCH5, como por exemplo: i) Formulação de uma lista
(relação) de produtos agrotóxicos a serem eventualmente permitidos na ZCH4 e na ZCH5 [em
função da classificação toxicológica e efeitos residuais, deletérios, potenciais, permanentes ou
prováveis nos recursos naturais (em especial, os recursos hídricos)]. Exemplo de aplicabilidade:
problemas neurológicos acarretados pelo Glifosato em abelhas, e; ii) Regulamentação das práticas
agroecológicas e de agricultura orgânica. Exemplo de aplicabilidade: SAF em APP´s (sistemas
agrossilvipastoris pautados no plantio (solo exposto) de abóboras, em áreas de preservação
permanente – APP´s ao longo de curso de água, em situação de pequena propriedade rural /
agricultura familiar não é compatível com a proteção da função ambiental destas mesmas APP´s e
muito menos da própria propriedade rural).

Discussão
Critérios técnicos
Acredita-se, em continuidade à presente reflexão (uso ou não de agrotóxicos, AT, AO,
dentre outros aspectos correlatos, em ZCH4 e ZCH5) que vários pressupostos normativos (e, por
extensão, técnicos) consoante particularmente já dispostos na Lei n. 12.651/2012 devem ser também
aqui considerados.
308

O primeiro deles, e talvez o mais importante, interessante e consistente, é o de que nas


Áreas de Preservação Permanente (APP´s)11, quando caracterizadas as situações de Utilidade
Pública, Interesse Social ou Atividades Eventuais ou de Baixo Impacto Ambiental, são permitidas
intervenções antrópicas, desde que garantidos alguns pressupostos ambientais que, evidentemente,
não venham a prejudicar a função ambiental desempenhada por tais APP´s12.
Dentre estes pressupostos ambientais preconizados em semelhante área de acentuada
relevância ambiental13, qual seja, as APPs, não consta, à priori, nenhuma restrição, de qualquer
modalidade que seja, em termos do uso (ou não) de agrotóxicos em tais localidades14.
Entende-se, a partir disto, e por analogia, que nas zonas ZCH4 e ZCH5, tanto quanto no
caso da similaridade de relevância ambiental com as APPs, também não deveria restringir, de
antemão, o uso de agrotóxicos por si só. Desta feita, imagina-se que, de qualquer modo, ou seja,
tanto num modelo agrícola (AT, agrotóxicos) quanto no outro modelo (AO, sem o uso de
agrotóxicos, por exemplo), em zona ZCH4 e/ou ZCH5, os seguintes elementos técnicos
(devidamente integrados, na medida das possibilidades tecnológicas, ambientais e econômicas)
devem (estes sim) ser, dentre outros, necessariamente considerados no desenvolvimento sustentável
de atividades agropecuárias em determinada propriedade rural, quer seja pequena, média ou grande:
práticas agrícolas (e usos) sustentáveis de proteção do solo, água e da vegetação15; práticas
sustentáveis de manejo do solo e água e de recursos hídricos; práticas sustentáveis de manejo da
cobertura vegetal; Erosão, assoreamento, erradicação de espécies invasoras; cultivo mínimo; plantio
direto; conservação do solo; cobertura mínima do solo, e; capacidade de uso do solo agrícola
(fragilidade ambiental).

Escopo administrativo
Ademais, imagina-se que a gestão pública ambiental municipal, para efeitos do regramento
da questão dos agrotóxicos na ZCH4 e na ZCH5 deve “conversar intimamente” com as esferas dos
demais poderes (estadual e federal) com respeito ao escopo administrativo da gestão ambiental das
propriedades rurais (e, por extensão, urbanas, naquilo e quando couber), com respeito, por exemplo,
a instrumentos administrativos tais como o Cadastro Ambiental Rural / Programa de Regularização
Ambiental, bem como a Outorga do Uso da Água, dentre outros instrumentos.
De uma forma mais clara, acredita-se, até mesmo por suas implicações na proteção
ambiental atrelada tanto à AT quanto à AO, que a determinação (área, localização, tipificação, etc.)
das APP´s, das áreas de Reserva Legal, dos Corredores Ecológicos, por exemplo, deveria também
passar pela consideração do poder público municipal em termos de seus reflexos para a gestão
sustentável da ZCH4 e da ZCH5.
Entende-se, em outras palavras, que ações (na verdade, interação) do ente federativo
municipal frente aos demais entes com respeito às zonas em discussão, dentro deste escopo,
309

“rebateriam” no modelo agrícola de determinada propriedade rural (AT ou AO) e, por extensão,
conforme linha de raciocínio aqui desenvolvida e defendida, de uma forma ou de outra, no uso de
agrotóxicos ou não.
Aqui caberia, um “aparte” especial: a distinção entre AT e AO está se tornando cada vez
mais difícil, visto que as práticas e técnicas tanto de um modelo agrícola (AT) quanto de outro (AO)
estão se aproximando (integrando, harmonizando, compatibilizando-se) cada vez mais16.
De outro modo, entende-se que há um aspecto administrativo (muito embora, igualmente
revestido de um denso componente técnico) que demandaria uma ação da Municipalidade de
maneira extremamente incisiva tanto no que diz respeito à AT quanto à AO, qual seja, a efetividade
de instrumentos de gestão ambiental, ais como, Anotação de Responsabilidade Técnica17,
Assistência Técnica Rural (e Integrada), análise econômica e financeira de projetos técnicos,
alternativas técnicas e locacionais, dentre outros, tanto no que concerne à AT quanto à AO.

Outros parâmetros
Em derradeiro, a discussão sobre AT, AO, agrotóxicos e outros elementos correlatos,
naquilo que concerne à ZCH4 e à ZCH5 deve, por fim, também considerar os seguintes elementos:
caracterização dos meios físico e biológico; intensidade de exploração compatível com a capacidade
suporte ambiental local; adoção de medidas mitigadoras dos impactos sociais e ambientais;
proibição do uso do fogo, e; comprovação da prestação de serviços ambientais18 tais como: (a) o
sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono;
b) a conservação da beleza cênica natural; c) a conservação da biodiversidade; d) a conservação das
águas e dos serviços hídricos; e) a regulação do clima; f) a valorização cultural e do conhecimento
tradicional ecossistêmico; g) a conservação e o melhoramento do solo; h) a manutenção de Áreas
de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito;

Conclusões
O uso de “agrotóxicos”, ou não, nas zonas de conservação hídrica, ZCH4 e na ZCH5,
localizadas no município de Botucatu/SP, é questão a ser discutida dentro do escopo da reflexão
mais ampla, qual seja, o da prática de uma Agricultura Tradicional (AT) e/ou da Agroecologia
(AO), em ambas as zonas.
Esta discussão é também uma questão do dimensionamento técnico e econômico da
atividade agropecuária (produtiva) em face do tamanho da área cultivada (pequena, média e grande
propriedade rural), quando se estiver referindo ao meio rural em específico. Para tanto, é necessário
que se promova a prévia demonstração da viabilidade técnica, econômica, social, ambiental e
comercial dos empreendimentos agrícolas, conforme o modelo agrícola proposta para determinada
propriedade rural dentro da ZCH4 ou da ZCH5. Esta demonstração deve considerar os elementos
310

neste trabalho relacionados e, em especial, dentro da análise das “alternativas técnicas e


locacionais”, bem como, via do Licenciamento Ambiental (prévio) pelos órgãos públicos
municipais competentes, não se descuidando das demais instâncias nacionais e estaduais
competentes.
Haveria que se registrar, finalmente, que o entendimento técnico aqui exposto seria válido
não somente com respeito à ZCH4 e à ZCH5, como também, tanto à área de interesse ambiental
(zona de recarga) da porção do aquífero Guarani que existente no município de Botucatu/SP,
quanto, e em última instância, a toda e qualquer área rural onde se pretende licenciar, dentro de uma
proposta do devido e necessário empoderamento do ente municipal, atividades agropecuárias
pautadas no modelo agrícola de Agricultura Tradicional (AT), de Agricultura Orgânica (AO), ou
de qualquer tipo de modelo agrícola a partir do qual se pretenda a produção sustentável de bens e
serviços agropecuários no município de Botucatu.
Por fim, acredita-se que as considerações deste artigo possam ser extrapoladas para a
formulação de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade do uso dos recursos naturais,
sobretudo, aqueles de natureza hídrica, com respeito à toda e qualquer localidade de relevante
interesse ambiental onde os municípios pretendam discutir não somente a questão dos agrotóxicos,
como também, e conjuntamente, os modelos de produção agrícola.

Referências
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311

BRASIL. Lei n. 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Institui a Política Nacional de Pagamento por
Serviços Ambientais. 2021. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14119.htm. Acesso: 29 Ago 2022.
SÃO PAULO. Decreto n. 66.549, de 07 de marco de 2022. Disciplina a aplicação, no âmbito do
Estado de São Paulo, da Lei federal nº 14.119, de 13 de janeiro de 2021 e dá providências
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https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2022/decreto-66549-
07.03.2022.html#:~:text=Artigo%201%C2%BA%20%2D%20Fica%20institu%C3%ADda%20a,2
021%2C%20nos%20termos%20deste%20decreto. Acesso: 29 Ago 2022.
Notas
4
Agrotóxicos e afins: a) os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos,
destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos
agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas
e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da
flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos; b)
substâncias e produtos, empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de
crescimento, cf. art. 2º, inciso I, alíneas “a” e “b”, da Lei n. 7802/1989.
5
Até por conta de que, entendimentos ou opiniões divergentes precisam ser devidamente
fundamentados com argumentos que sejam igualmente consistentes e válidos (quando não, em
nome de uma segurança técnica e jurídica, evidências científicas e, sobretudo legalmente,
respaldados).
6
“Considera-se sistema orgânico de produção agropecuária todo aquele em que se adotam técnicas
específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o
respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo a sustentabilidade
econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de
energia não-renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e
mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, a eliminação do uso de organismos
geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção,
processamento, armazenamento, distribuição e comercialização, e a proteção do meio ambiente”,
cf. art. 1º, da Lei n. 10.831/2003, bem como art. 2º, inciso II, do Decreto n. 7.794/2012.
7
Oferta de produtos saudáveis isentos de contaminantes intencionais; Preservação da diversidade
biológica dos ecossistemas naturais e a recomposição ou incremento da diversidade biológica dos
ecossistemas modificados em que se insere o sistema de produção; Incremento da atividade
biológica do solo; Promoção de um uso saudável do solo, da água e do ar, e reduzir ao mínimo todas
as formas de contaminação desses elementos que possam resultar das práticas agrícolas;
Manutenção ou Incremento da fertilidade do solo a longo prazo; Reciclagem de resíduos de origem
orgânica, reduzindo ao mínimo o emprego de recursos não-renováveis; Orientação pelo uso de
recursos renováveis e por sistemas agrícolas organizados localmente; Incentivo à integração entre
os diferentes segmentos da cadeia produtiva e de consumo de produtos orgânicos e a regionalização
da produção e comércio desses produtos; Manipulação dos produtos agrícolas com base no uso de
métodos de elaboração cuidadosos, com o propósito de manter a integridade orgânica e as
qualidades vitais do produto em todas as etapas, cf. art. 1º, parágrafo 1º, incisos I à IX, da Lei n.
10.831/2003.
8
Artigo 181 (Constituição do Estado de São Paulo-1989) - Lei municipal estabelecerá em
conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento,
parcelamento, uso e ocupação do solo, índices, urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações
administrativas pertinentes: §1º - Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão
considerar a totalidade de seu território municipal, e; §2º - Os Municípios observarão, quando for o
312

caso, os parâmetros urbanísticos de interesse regional, fixados em lei estadual, prevalecendo,


quando houver conflito, a norma de caráter mais restritivo, respeitadas as respectivas autonomias.
8
Isto porque, “suspeita-se” pela impossibilidade de uma caracterização homogênea, integral, total,
de toda e qualquer localidade dentro das referidas zonas como um tipo ou outro (área rural, área
urbana, etc.).
10
Lembrando que, para efeitos da caracterização de determinada localidade, dentro da ZCH4 ou da
ZCH5, como área urbana consolidada, em particular, os seguintes parâmetros devem ser
considerados: Área Urbana Consolidada: a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana
pelo plano diretor ou por lei municipal específica ; b) dispor de sistema viário implantado; c) estar
organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; d) apresentar uso
predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais,
industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços, e) dispor de, no mínimo,
2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados (1. drenagem de águas
pluviais; 2. esgotamento sanitário; 3. abastecimento de água potável;4. distribuição de energia
elétrica e iluminação pública, e; 5. limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos, cf. Art. 3º,
inciso XVI, da Lei n. 12.651/2012.
11
Art. 4º, inciso I, alíneas “a”, “b”, “c”, “d” e “e”; inciso II, alíneas “a” e “b”, bem como; incisos
III à XI, da Lei n. 12.651/2012.
12
“área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os
recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico
de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”, cf. art. 3º, inciso
II, da Lei n. 12.651/2012.
13
Observe-se, diga-se a propósito, que em situação de verossimilhança de importância ambiental
em termos tanto da ZCH4 quanto da ZCH5.
14
Fato este que, evidentemente não pode ser aqui interpretado como algum tipo de “carta branca”
para o uso (indiscriminado e/ou desregrado, sobretudo) do uso destes produtos agroquímicos.
15
Haveria que se registrar, de passagem, que o Secretário do Verde já frisou que, segundo o Código
Municipal de Meio Ambiente, é proibida a aplicação aérea de agrotóxicos na bacia do Alto Rio
Pardo.
16
Conforme posicionamento interessantemente apontado por representante do Instituto
Biodinâmico de Botucatu (IBD) em reunião extraordinária do Comdema havida aos 25 de agosto
de 2022.
17
Em particular, com respeito ao profissional tecnicamente habilitado para prescrever e orientar
tecnicamente a utilização de agrotóxicos ou afim, bem como garantir o uso de equipamento de
proteção individual (EPI), além de inspecionar as condições de aplicação, cf. depreende-se do art.1º,
incisos X, XIX e XXXIX, do Decreto n. 4.074, de 4 de janeiro de 2002.
18
Possivelmente dentro do escopo de uma proposta de Pagamento por Serviços Ambientais, tal qual
preconizado por farto e consistente corpo normativo, em especial: i) Lei municipal n. 1.153, de 07
de junho de 2015; ii) Dispositivos normativos estaduais diversos relacionados ao Decreto n. 66.549,
de 07 de março de 2022, e; iv) Lei n. 14.119, de 13 de janeiro de 2021 / Política Nacional de
Pagamento por Serviços Ambientais.
313

GRANDEZAS ESTIMADAS DE ÁREAS VERDES, ÁREAS DE PRESERVAÇÃO


PERMANENTE, ÁREAS INSTITUCIONAIS, PATRIMONIAIS E EDIFICADAS DO
PERÍMETRO URBANO DE FRANCA – SP
Célio Bertelli97
Estevão Urbinati98
Tâmer de O. Faleiros 99
Pedro K. Bachur100

Introdução
Localizado no nordeste do estado de São Paulo, o município de Franca possui população de
358.539 habitantes e área total de 605,679 km2, sendo 84,00 km2 de área urbanizada por onde se
distribuem os 313.046 habitantes da cidade (IBGE 2010). Desbravado no século XVI, o município
de Franca foi de fato povoado somente a partir do início do século XVIII, com as descobertas das
minas. A abertura das estradas de Goiás em 1722 e do Desemboque propiciaram a formação de
vários pousos, que se constituíram nos primeiros núcleos povoadores da região, conhecidos como
‘Bairro das Canoas’. Em 1838, Franca passou a ser sede de uma comarca e possuir um juiz de
direito, pela lei provincial nº 7, de 14 de março de 1839, devido a situação de revolta. Em primeiro
de março de 1842 foi criado o distrito policial (IBGE, 2022).
Sobretudo no atual cenário em que as cidades terão de lidar cada vez mais com eventos
climáticos extremos, consequência do acelerado aquecimento global desencadeado pela ação
humana no planeta, há que se estudar meios para que os aglomerados urbanos se tornem resilientes
aos estresses advindos desta situação, bem como venham a contribuir para a reversão do processo
de desequilíbrio climático em curso. Portanto, este artigo pretende fornecer um retrato atualizado
da situação das Áreas verdes, Áreas de Preservação Permanente, Áreas Institucionais e Áreas
Patrimoniais no município de Franca/SP, necessário ao bem-estar e saúde dos seus habitantes,
permitindo assim o poder público realizar comparativos visando aplicação de políticas públicas que
versem sobre o tema.

97
UNESP FRANCA. Eng. Agrônomo e Doutor em Geociências e Meio Ambiente pela Universidade Estadual Paulista
(UNESP – Rio Claro), e-mail: [email protected]
98
FAFRAM ITUVERAVA. Eng. Agrônomo e Doutor em Microbiologia Agropecuária pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, (UNESP – Jaboticabal), cursando Pós-Graduação em Gestão de Recursos Hídricos
(FAFRAM – Ituverava), e-mail: [email protected]
99
FAFRAM ITUVERAVA. Biólogo e Mestre em Zoologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP – Botucatu)
cursando Pós-Graduação em Gestão de Recursos Hídricos (FAFRAM – Ituverava), e-mail: [email protected]
100
FAFRAM ITUVERAVA. Eng. Agrônomo pela Universidade de Franca (UNIFRAN) e cursando Pós-Graduação em
Gestão de Recursos Hídricos (FAFRAM – Ituverava), e-mail: [email protected]
314

2 DESENVOLVIMENTO
Processos metodológicos

A metodologia aplicada neste artigo é participativa, qualitativa, quantitativa e exploratória


na leitura de levantamentos teóricos e cartas temáticas, assim como quantitativa na estimativa de
novas grandezas para mapa da zona urbana de Franca – SP. Acredita-se que todo cientista busca
por respostas e as pesquisas que procuram responder perguntas originais geralmente mudam a
direção das próximas (VOLPATO, 2011). Conciliado a este pensamento, a pesquisa qualitativa
pode ser relacionada à expedição de reconhecimento que fazem os exploradores de uma região
desconhecida, assim, estimula a abertura de outros projetos de forma que também incentiva
pesquisas e discussões acerca do assunto (GIL, 2002). A pesquisa participante, em certas situações
considerada sinônimo da pesquisa-ação, propõe uma forma de ação planejada, de caráter social,
educacional, técnico e outro (THIOLLENT, 1985, p.7 apud GIL, 2002). No caso desta pesquisa,
evidencia-se o retrato contemporâneo da situação das áreas verdes, institucionais e de preservação
permanentes no município de Franca - SP.

Referencial Teórico
A construção do conhecimento da relação homem-natureza se realiza em vista aos processos
que ocorrem na sociedade. Assim, o entendimento da problemática ambiental depende da cultura,
ou seja, da vida em sociedade. São as práticas do meio social que determinam a natureza dos
problemas ambientais que cercam a humanidade (QUINTAS, 2006). Atualmente, o problema de
controle de áreas vegetadas nos municípios vem afetando significativamente o desenvolvimento
sustentável. Os impactos ambientais, incluindo a redução da biodiversidade, são, principalmente,
um produto do crescente metabolismo social da economia humana (CAMPOS; CASTRO, 2017).
A urbanização acelerada ocasionou uma dinâmica intensa de ocupação da cidade, ainda que
se trate de um município com amplitude espacial, isto é, com extensão territorial grande se
comparada com a densidade demográfica de outros municípios da região. No entanto, as taxas de
ocupação e crescimento horizontal de Franca, permitiram celeridade na ação antrópica e na
modificação da paisagem (LOPES, et al., 2019). Para caracterizar a área urbana de Franca, são
separadas as Áreas Verdes, Áreas de Preservação Permanente, Áreas Institucionais e Áreas
Patrimoniais.
Área institucional é a parcela do terreno reservada a edificação de equipamentos
comunitários. De acordo com a Lei Federal n°6.766/1979 que dispõe sobre o Parcelamento do Solo
Urbano, em seu artigo 4°, onde afirma que os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos
seguintes requisitos:
315

I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento


urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão
proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por
lei municipal para a zona em que se situem.

A cobertura vegetal é um atributo muito importante e negligenciado no desenvolvimento


das cidades (NUCCI, 2001). Essa cobertura vegetal oferece diversas funções, entre elas: função
social; função estética; função ecológica; função educativa; função psicológica. Sabendo de sua
importância, a falta dela interfere na qualidade de vida dos habitantes (BARGOS; MATIAS, 2011).
Bolund & Hunhammar (1999), relatam que, embora a humanidade esteja cada vez mais
urbana, continua a depender da natureza para sua sobrevivência, e que as cidades dependem não
apenas dos ecossistemas que estão além dos seus limites, mas sobretudo dos ecossistemas urbanos
internos. Neste sentido, os parques e áreas verdes urbanos podem se constituir em importantes ilhas
de bem-estar para a população urbana. Segundo Zhang et al (2021), a crescente deterioração
ambiental que as cidades enfrentam, por exemplo os efeitos de ilha de calor, poluição sonora e
atmosférica, podem ser mitigados pelos benefícios providos pelos parques urbanos.
Áreas verdes são locais onde encontra-se vegetação predominantemente arbórea, praças,
jardins e parques, o qual sua distribuição é pública, sem diferenciar classe social, para atingir as
necessidades reais de lazer (MORERO; SANTOS; FIDALGO, 2007. p. 19 – 30)
As Áreas Verdes e Áreas Institucionais de Franca foram determinadas no Artigo 20 da Lei
Complementar n° 137/2008, que dispõe sobre o parcelamento do solo no município de Franca, e
afirma:
Da área total, objeto do projeto de loteamento e desmembramento de glebas, com
área superior a 10.000 m2, serão destinados, no mínimo:

a) 10% (dez por cento) para áreas verdes;


b) 5% (cinco por cento) para áreas institucionais;
c) 20% (vinte por cento) destinados ao sistema viário

Neste mesmo artigo, em seu parágrafo 1°, afirma que: “As áreas previstas neste artigo para
uso institucional ou verde não poderão coincidir com área de reserva legal, de preservação
permanente ou faixas ‘non aedificandi’”. Ou seja, as áreas verdes não são consideradas parcelas de
Áreas de Preservação Permanente (APP) ou vice e versa, não sendo contabilizadas no porcentual
mínimo requerido. A Lei Federal 12.651/2012 considera Área de Preservação Permanente – APP,
em seu Artigo 3°, inciso II:
II – Área de Preservação Permanente – APP: área protegida, coberta ou não por
vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a
paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de
fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

Em Franca – SP, foi constituída pela Lei Complementar n° 09/1996, em seu Artigo 47 são
consideradas áreas de preservação permanente florestas e demais formas de vegetação situadas:
316

(...) b) ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d´água naturais ou artificiais,


desde o seu nível mais alto medido horizontalmente, em faixa marginal, cuja
largura mínima será:
1) de trinta metros para os que estejam situados em áreas urbanas;

Segundo Silva et al. (2021), os processos de produção das cidades vêm gerando
consequências nas condições climáticas, nos quais os espaços livres vegetados urbanos são
apontados como estratégias positivas para adaptação e mitigação das alterações climáticas. Os
mesmos autores relatam ainda que os processos de produção das cidades brasileiras, historicamente,
pouco consideraram os elementos naturais no planejamento, criaram espaços altamente
impermeabilizados, rios canalizados, alterações no relevo e retirada da vegetação, sendo que os
efeitos desses processos, somados às alterações climáticas, vêm gerando graves consequências,
como inundações, deslizamentos, poluição atmosférica, formação de ilhas de calor.
As práticas antrópicas sem controle estabelecido e fiscalizado, acarretam em situações de
risco. As situações de risco podem ser evitadas quando o perigo é identificado, ou seja, que
processos naturais ou da ação humana o estão produzindo, em que condições a sua evolução poderá
desencadear um acidente, e qual a probabilidade deste fenômeno físico ocorrer, então avaliar as
consequências que ele causará, assim podendo diminuir o risco através de um melhor
gerenciamento (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2006).
A solução para a pressão antrópica e suas consequências socioambientais pode ser vista nos
‘Objetivos de Desenvolvimento Sustentável’, de 2015, onde a Organização das Nações Unidas
(ONU) propôs aos países membros, uma nova agenda de desenvolvimento sustentável para os
próximos 15 anos, a ‘Agenda 2030’, composta por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,
os quais buscam assegurar os direitos humanos, acabar com a pobreza, lutar contra a desigualdade
e a injustiça, alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas, agir contra
as mudanças climáticas. Há décadas, a gestão pública nas esferas federal, estadual e municipal vem
através dos instrumentos legais promovendo ações que venham mitigar e compensar os impactos
ambientais causados pela ação antrópica nas áreas urbanizadas.
De acordo com a Carta de Áreas Verdes, Áreas de Preservação Permanente e Áreas Públicas
do Perímetro Urbano de Franca - SP (Prefeitura Municipal de Franca - SP, 2020), a malha
urbana de Franca possui 8.320,64 hectares (ha), sendo esses divididos em Áreas Verdes (636,18
ha); Áreas de Preservação Permanente (APP) (218,02 ha); Áreas Patrimoniais (2,99 ha); Áreas
Institucionais (190,57 ha), Áreas Públicas (1.047,76 ha) e Áreas Ocupadas Construídas (7.272,88
ha). Entretanto, essas quantificações encontram-se em desacordo com o cenário atual da cidade,
fazendo-se necessários novos dados, como proposto por este trabalho.

Resultados e Discussão
317

Com novo levantamento de dados do perímetro urbano de Franca, foi possível estimar de
forma mais atual, a quantificação da grandeza de Áreas Verdes, Áreas de Preservação Permanente
(APP), Áreas Institucionais e Patrimoniais. Resultando em uma nova carta temática (mapa 1).
Como demonstrado anteriormente, realizou-se um levantamento, em 2020, da Carta de
Áreas Verdes, Áreas de Preservação Permanente e Áreas Públicas do Perímetro Urbano de Franca
- SP (Prefeitura Municipal de Franca - SP, 2020), que teve como resultado uma estimativa da
grandeza da malha urbana de Franca, a qual possui 8.320,64 hectares (ha), divididos em Áreas
Verdes (636,18 ha); Áreas de Preservação Permanente (APP) (218,02 ha); Áreas Patrimoniais (2,99
ha); Áreas Institucionais (190,57 ha) e Áreas Ocupadas Construídas (7.272,88 ha).
Entretanto, estes dados encontram-se desatualizados, portanto, a carta apresentada pelos
autores apresenta dados do ano de 2022 da situação das Áreas Verdes, Áreas de Preservação
Permanentes, Áreas Institucionais e Áreas Patrimoniais do perímetro urbano de Franca – SP.
318

GRANDEZA ESTIMADA DE ÁREAS VERDES, ÁREAS DE PRESERVAÇÃO


PERMANENTE, ÁREAS INSTITUCIONAIS E PATRIMONIAIS DO PERÍMETRO
URBANO DE FRANCA - SP

Mapa 1. Grandeza estimada de Áreas Verdes, Áreas de Preservação Permanente (APP), Áreas
Institucionais e patrimoniais do perímetro urbano de Franca - SP.
De acordo com o Mapa de Grandeza estimada de Áreas Verdes, Áreas de Preservação
Permanente, Áreas Institucionais e Patrimoniais do Perímetro urbano de Franca – SP, a área total
do perímetro é de 8.602,17 ha, sendo 973,00 ha (11,31%) de Áreas verdes, 247,02 ha (02,87%) de
APPs, 202,08 ha (02,35%) de Áreas Institucionais; 13,43 ha (0,16%) de Áreas Patrimoniais; 858,67
ha (9,98%) de Áreas não construídas e 6.307,96 ha (73,33%) de Áreas Construídas.
Com isso, é possível perceber que a maior parte de Franca é de Áreas construídas sendo
mais que 30 vezes maior que as Áreas de Preservação Permanentes e mais que 6 vezes maior que
as Áreas Verdes. Assim, fica evidente a necessidade de enfatizar a importância não apenas das
moradias urbanas, do crescimento organizado e eficiente da cidade, mas também do cuidado com
as Áreas Verdes e de Preservação Permanente para a garantia de qualidade de vida da população,
319

proteção dos recursos hídricos, proteção contra enchentes, balanço hídrico local e da fauna e flora,
seguindo os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (2015).

Conclusão
O crescimento urbano causou uma mobilização social e econômica, com ele, também surgiu
a necessidade de demonstrar a importância da saúde pública e do meio ambiente, sendo que ambos
estão relacionados, principalmente a drenagem urbana e o balanço hídrico.
Franca é um município que possui potencial para ser referência regional em
sustentabilidade, para isso, são necessários investimentos em políticas públicas voltadas a sua área
urbana, que incentivem ações sustentáveis, por exemplo um Plano Diretor de Macrodrenagem e
Microdrenagem, para harmonizar com o balanço hídrico.
Este trabalho servirá como ferramenta de planejamento aplicado em políticas públicas de
uso e ocupação do solo, na malha urbana do município de Franca, que são necessárias para a união
da sociedade e natureza e consolidação dessa relação de maneira sustentável, para melhoria da
qualidade de vida e aplicação de práticas de restauração, proteção e conservação da fauna e flora
nativas da área urbana, como preconizam os Objetivos de Desenvolvimentos Sustentáveis (ODS,
2015).

Referências
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conceitual. Sociedade Brasileira de Arborização Urbana: REVSBAU, Piracicaba – SP, v.6, n.
3, p. 172-188, 2011.
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321

GESTÃO DE RESÍDUOS ORGÂNICOS NO MUNICÍPIO DE ARARAQUARA/SP:


UMA ANÁLISE SOBRE A ATUAÇÃO DA EMPRESA MINHOCARIA

Raissa Carvalho Ribeiro101

Introdução
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) se caracteriza como uma Política Pública
a partir do momento em que começa a compor parte da agenda governamental em resposta aos
problemas ambientais enfrentados na atualidade. Seu enquadramento enquanto uma uma Política
pública se dá a partir da identificação do problema de consumo e geração deresíduos que por sua
vez apresenta impacto social. No Brasil suas diretrizes são estabelecidas em âmbito nacional, mas
é através da escala local, com a elaboração e implementação dos Planos Municipais de Resíduos
Sólidos que a PNRS deve se concretizar. Tal característica acompanha o movimento das
Políticas Públicas brasileiras que tendem à descentralização (MARTINS, 2017), na qual os
municípios se tornam responsáveis pela implementação.
Nesse sentido, justifica-se a análise da implementação de uma Política Pública Federalem
realidades regionais e locais. O município de Araraquara apresenta uma série de características
que chamam atenção para o campo investigativo da gestão de resíduos sólidos urbanos.
Sobretudo, apresenta uma dinâmica de incentivo à economia local e possui, aindaque de forma
incipiente, o envolvimento entre Estado, sociedade e empresas na temática, oque em tese,
cumpre com com a premissa da responsabilidade compartilhada prevista na lei. Ao tomar como
unidade de análise uma cidade média que se localiza na região central do estado de São Paulo,
procurou-se compreender como é realizada a gestão de resíduos sólidos urbanos, sobretudo os
orgânicos por representarem mais de 50% do total de resíduos produzidos nas cidades brasileiras,
dado que se verifica também na realidade do município. Para além disso, investigar a gestão dos
resíduos orgânicos se torna viável a partir de iniciativas de empresas como a Minhocaria, atuante
na cidade desde 2017, fato que reforça o campo de análise da responsabilidade compartilhada.
O espaço urbano na atualidade representa um campo vasto de estudos sobre a
temáticaambiental, pois ele abriga diversas atividades econômicas sociais e políticas importantes
paraa compreensão da sociedade moderna. Todas as mudanças vivenciadas a partir do processo
deindustrialização e posteriormente de urbanização carregam consigo consequências ambientais,
como é o caso da crescente produção de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU). A exemplo disso, no
ano de 2007 o número de resíduos gerados nas cidades já ultrapassava a porcentagem de aumento

101
Graduanda em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. A presente pesquisa está
vinculada ao processo 2021/11653-1 da FAPESP sob orientação do Professor DoutorRafael Alves Orsi
322

populacional (ZAGUETTO, 2018) e, desde então, pouco foi feito para reverter esse quadro. É
nesse cenário que surge a necessidade de estratégias alternativas que conciliem a dimensão social,
ambiental e econômica da vida em sociedade.
Diante dos novos desafios impostos no cenário internacional com relação à temática
ambiental, governos e organizações caminham em busca de alternativas que conciliam
preservação ambiental e crescimento econômico. É nesse contexto que surge na última décadaum
debate mundial acerca da transição do que seria um sistema linear para um sistema circular,
proposto a partir de um manifesto publicado em 2002 por William McDonough e Michael
Braungart denominado “Cradle to Cradle” ou C2C. Tal debate se fortalece ainda mais com o
surgimento em 2009 da Fundação Ellen Macarthur, que se constitui atualmente como referência
em projetos que visam a transição para a Economia Circular (EC). Essa perspectiva ganha
destaque por apresentar mudanças na base produtiva que pode contribuir para a redução da
geração de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) uma vez que para essaabordagem o conceito
de resíduo não deve existir, pois tudo deve ser projetado para retornar ao ciclo produtivo. No
entanto, diversas questões vêm sendo levantadas no que diz respeito a real capacidade desse
sistema circular responder aos problemas ambientais enfrentados na atualidade, o que reafirma a
importância de analisar sua aplicabilidade na realidade concreta (MURRAY, 2017)
No cenário brasileiro as proposições da Economia Circular aparecem de forma incipiente
atrelada a projetos e debates promovidos pelos governos de forma local. A exemplo disso, em
pesquisa anterior realizada no Município de Araraquara, foi possível identificar dentro da Política
Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) diversos pontos que se enquadram nas propostas para
circularidade, o que a primeira instância indica novos horizontes para a agendaambiental do país
a partir de iniciativas locais. Levando em consideração a relevância dessa temática, a presente
pesquisa se utiliza como campo de análise a cidade de Araraquara para responder a seguinte
pergunta: Em que medida as proposições da Economia Circular estão inseridas na gestão de RSU
do Brasil a partir da perspectiva local, e até que ponto esses preceitos respondem às demandas de
um país de capitalismo periférico? O município tomado como campo de análise está localizado
no interior do estado de São Paulo com cerca de 240 mil habitantes e possui uma economia que
se destaca por manter um setor da agroindústria consolidado. No entanto, vale ressaltar que, nos
últimos anos, outros setores da economia vêm se desenvolvendo, sobretudo com o incentivo de
ações do governo para promover uma economia local voltada à temática do desenvolvimento
urbano sustentável.
Para a implementação da PNRS a cidade conta com as ações da Cooperativa Acácia na
realização da coleta seletiva, e do DAAE para coleta dos demais resíduos e limpeza urbana através
de transportadoras de pequeno e grande porte. Além disso, no ano de 2020 o governo municipal
institui uma nova cooperativa chamada Sol Nascente, a partir da capacitação de egressos do
323

sistema penitenciário, para trabalhar com compostagem e limpeza urbana. De acordo com o Plano
Municipal de Saneamento Básico (PMSB), os resíduos que não são coletados pela cooperativa
Acácia têm como destinação final o aterro da cidade de Guatapará/SP, que atende 23 municípios,
sendo Araraquara o segundo maior gerador. O município encaminha para o aterro de Guatapará
cerca de 150 toneladas de resíduos por dia sem nenhum tratamento. Além disso, o Plano
Municipal aponta que são desperdiçados anualmente cerca de 11,5 milhões de reais ao enviar
resíduos apenas de natureza orgânicapara aterros (PMSB, 2014).

Gestão de resíduos em Araraquara: caso da empresa michocaria


A pesquisa contou com o levantamento de dados acerca do funcionamento da empresa
Minhocaria bem como do montante de resíduos orgânicos coletados ao longo do período de
análise estipulado: segundo semestre de 2019 até 2021. De acordo com o site da empresa, a
Minhocaria é caracterizada como uma microempresa cadastrada no Sistema Nacional de
Informações sobre a Gestão de Resíduos Sólidos (SINIR) e no Sistema Estadual de
Gerenciamento Online de Resíduos Sólidos (SIGOR) para emissão de certificados de destinação
final de resíduos classe IIA. Seu pátio de compostagem é licenciado pelo CETESB, Ibama,
Bombeiros, Vigilância e Prefeitura, além de possuir capacidade para receberaté 50 toneladas por
mês de resíduos orgânicos. Todas as coletas e transporte dos resíduossão feitas através de
veículo próprio da empresa.
Suas atividades se iniciam com a venda de composteiras domésticas produzidas a partir
de materiais como baldes reutilizados. A idealizadora do projeto informou em entrevista que seu
interesse pela temática e desejo em desenvolver um projeto sobre gestão de orgânicos surgiu
quando foi beneficiada pelo programa Composta São Paulo, Política Pública implementada na
capital paulista em 2014 pelo então prefeito Haddad (PT), que distribuiu cerca de duas mil
composteiras domésticas para a população. É importante ressaltar que nos últimos anos surgem
novas iniciativas para pensar a temática ambiental, uso de matérias primas e formas de se reduzir
a quantidade de resíduos gerados. Esse debate ocorre em escala local, mas está fortemente pautado
sobre a agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) definidos
mundialmente, o que impulsiona governos a construírem projetos e implementarem políticas para
alcançá-los.
Em Outubro de 2017 a empresa socioambiental Minhocaria foi fundada enquantouma
MEI (Microempreendedor individual) no município de Araraquara, mas só a partir de 2019,
especificamente no último quadrimestre do ano, passou a atender grandes geradores de resíduos
orgânicos como o Shopping Jaraguá. No mesmo ano, a empresa deixa de ser MEI e passa a ser
enquadrada como ME (Microempresa). Desde então, atua com seus dois idealizadores
trabalhando em um pátio de compostagem que atende atualmente quatro empreendimentos da
cidade de Araraquara além de residências que assinam seus serviços mensais de coleta de resíduos
orgânicos.
324

QUANTIDADE COLETADA EM KG POR QUADRIMESTRE (ÚLTIMOQUADRIMESTRE DE 2019 ATÉ


2021)
GERADOR

PRIMEIRO SEGUNDO TERCEIRO QUARTO QUINTO SEXTO SÉTIMO

Jaraguá 64.838,1 40.160,3 9.947,4 27.653,1 11.716,3 22.623,6 30.781,0

Cutrale 18.120,0 25.460,0 12.900,0 16.950,0 13.330,0 28.900,0 31.960,0

Solenis ------ ------ ------ ------ 973,6 675,0 681,9

JBT ------ ------ ------ ------ ----- ---- 3.454,6


- --
Residencial ------ ------ ------ ------ 1.240,5 1.774,4 2.478,0

Tabela 1 - Fonte: Elaborado pela autora

Os dados referente às coletas foram organizados em um primeiro momentopara análise


de acordo com quadrimestres, uma vez que as atividades da empresa no período delimitado para
a pesquisa começaram no último quadrimestre de 2019. As informaçõesforam coletadas a
partir de conversas com a fundadora do projeto e retiradas de planilhas de controle dos gestores.
Quanto às coletas em grandes geradores, a empresa cliente Cutrale atua na produção de laranjas
e realiza coleta de resíduos orgânicos advindos de seus restaurantes e também de podas e resíduos
orgânicos das indústrias. Desde 2019 até 2021 destinou para o pátio de compostagem da
Minhocaria 147,62 toneladas de resíduos.
Já o shopping Jaraguá também realiza compostagem desde 2019 de todos os resíduos
orgânicos advindos da praça de alimentação e lojas, totalizando até 2021 cerca de 207,71
toneladas de resíduos tratados pela Minhocaria. Além disso, em parceria com o shopping a
empresa mantém um espaço fixo dentro de suas instalações chamado "Abrace o planeta" que
disponibiliza adubos e fertilizantes a serem comercializados por um valor social, ou seja, o cliente
pode pegar e depositar o valor que deseja. No espaço também existe toda a explicação de como a
compostagem é realizada a fim de tornar mais conhecida essa prática.
325

Imagem 1
Fonte: https://premio.abrasce.com.br/all_case/abrace-o- planeta/

A empresa Solenis, especializada em produtos químicos, utiliza os serviços da Minhocaria


para coletar os resíduos orgânicos advindos do refeitório desde 2021, totalizando cerca de 2,33
toneladas de resíduos compostados. Já a parceira JBT Corporation passou a realizar coletas no
último quadrimestre de 2021, totalizando 3,45 toneladas de resíduos orgânicos destinados ao pátio
de compostagem.
Quanto aos coletas residenciais, uma das dificuldades encontradas foi mensurar a
quantidade de resíduos orgânicos coletados dessa forma. Nesse caso o serviço é realizado a partir
de uma contribuição mensal de até R$50 e todos os meses os clientes são beneficiados com
composto e biofertilizante. Esse serviço era prestado desde a fundação da empresa, mas só
começou a fazer parte dos registros a partir de 2021, que totalizam 5,49 toneladas. Umavez
que a empresa funciona apenas com seus dois fundadores gerindo todos os processos, desde a
montagem de leiras até a questão burocrática, é possível observar que nos primeiros anos de
funcionamento muitos registros e questões documentais de clientes caracterizados como
pequenos geradores acabaram não sendo registradas. Por fim, os dados da empresa Vitale, que
aparece enquanto parceira no site oficial da Minhocaria, não foram encontrados nos registros
disponibilizados pela gestora.
326

Com os dados apontados, podemos observar que a procura por serviços de coletas de
resíduos orgânicos vem crescendo na cidade de Araraquara desde 2019 e esse crescimento é
acompanhado pela quantidade de resíduos compostados. No total entre o último quadrimestre de
2019 até 2021 foram tratados cerca de 370 toneladas de resíduos orgânicos que seriam
encaminhados para aterros
sanitários.

Gráfico 1 - Fonte: Elaborado pela autora

Durante o processo de análise dos dados novas questões foram levantadas sobre o
gerenciamento de resíduos da empresa. Nesse sentido foi utilizada a ferramenta SurveyMonkey
para mensurar dados que não estavam dispostos nas planilhas através de um questionário de nove
perguntas para compreender os seguintes aspectos:
1. Enquadramento legal da empresa atualmente MEI ou ME;
2. Tamanho em metros quadrados do pátio de compostagem;
3. Serviços prestados atualmente;
4. Se o número de coletas residenciais inclui os condomínios;
5. Se as coletas em condomínios acontecem nele todo ou apenas algumasresidências;
6. O motivo dos dados das coletas de pequenos geradores dos anos anteriores a2021 não
estarem contabilizados;
7. Bairros mais atendidos;
8. Se existem mecanismos para mensurar a quantidade de rejeitos ou outros materiais que
acabam sendo enviados junto com os resíduos orgânicos;
9. Se a empresa tem se inserido nos debates municipais e regionais sobre Economia Circular
Referente ao enquadramento legal, a empresa atualmente segue funcionando enquanto
MEI e além das coletas, oferta os serviços de palestras para empresas, oficinas e treinamentos
voltados para gestão de resíduos. O pátio possui 1.850 metros quadrados onde são compostados
327

todos os resíduos coletados. Em sua maioria, os bairros das coletas residenciais se concentram no
Jardim Imperador, região que reside moradores de classemédia. Referente a ausência de dados
sobre as coletas de pequenos geradores, a empresa declarou que ela é realizada a coleta desde o
segundo semestre de 2016 e por ser uma quantidade pequena os pesos não eram registrados.
Quanto aos condomínios, apenas algumas casas realizam as coletas, não existindo um contrato
fechado com a gestão do espaço. A empresa informou que tem realizado reuniões e orçamentos
mas o valor alto acaba inviabilizando os contratos.
Quanto aos mecanismos de controle dos materiais que acabam sendo enviados de maneira
inadequada junto com os resíduos orgânicos, como por exemplo microplásticos, plástico filme,
papel alumínio, lacres e etc, não existe nenhum controle sobre a quantidade. A empresa informou
que apenas separa esses materiais durante o processo de triagem no pátio e o descarta de maneira
correta. Por fim, analisando a atuação da empresa em diversas frentes e movimentos municipais
que serão mencionados na sessão seguinte, foi questionado seu envolvimento em debates sobre a
EC. A mesma informou que faz parte de frentes parlamentares da vereadora Fabiana Cristina
Virgílio (PT), sobretudo à frente de direito à cidade. Também foi informado que a lei da moeda
verde no município, que consiste em uma semana de incentivo a troca de materiais recicláveis
enquanto moeda social para descontos emalimentos, foi assinada pelos idealizadores da empresa
junto a vereadora.
Além de oferecer os serviços de coletas residenciais, planos para empresas e venda de
composteiras domésticas, a empresa busca atuar em projetos com organizações da sociedade civil
bem como manter o diálogo com a Prefeitura Municipal de Araraquara. Segundo sua idealizadora,
a microempresa possui uma boa relação com a prefeitura representada poralgumas ações como
a o início da elaboração de um projeto socioambiental em 2017 eprojetos de educação
ambiental em escolas do bairro São Rafael. Além disso, recentemente realizou treinamento e
capacitação de egressos do sistema penitenciário para compor a Cooperativa Sol Nascente,
projeto que visa trabalhar com limpeza urbana, compostagem e hortas urbanas.
Quanto às ações sociais, seus gestores estão envolvidos no projeto Horta Comunitária da
Zona Norte disponibilizando adubos e fertilizantes para a plantação de vegetais e hortaliças, bem
como trabalhando na revitalização do espaço junto com a comunidade local. Todo o montante de
composto e biofertilizante que não é entregue aos clientes residenciais, nem disponibilizado para
projetos ou para a loja abrace o planeja, a empresa comercializacom agricultores da região e
em 2022 passou a embalar no próprio pátio e a distribuir para lojas, floriculturas etc.
Por fim, foi perguntado a gestora quais os impactos da pandemia de Covid-19 foram
sentidos durante os anos de 2020 e 2021, e a mesma respondeu que nos primeiros meses as coletas
diminuíram com a paralisação das atividades nas empresas, mas que em contrapartida as vendas
de composteiras aumentaram. Quando questionada sobre os projetos futuros, a idealizadora
328

mencionou que deseja expandir a venda de composteiras para outras cidades, mecanizar mais os
processos a partir da compra de uma retroescavadeira e expandir o negócio até a capacidade
máxima do pátio para em um segundo momento começar a atuar na ecovila que vem sendo
construída no município por um coletivo da sociedade civil.
Ao caracterizar as ações da empresa Minhocaria, parte-se para o acompanhamento da
agenda do município de Araraquara que versa sobre a temática ambiental e sobre o gerenciamento
de RSU foi acompanhada juntamente com a análise do Plano Municipal de Saneamento Básico
(PMSB). Para a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), o município
conta com as ações da Cooperativa Acácia na realização da coleta seletiva, e do DAAE para
coleta dos demais resíduos e limpeza urbana através de transportadoras de pequeno e grande
porte. De acordo com o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB), os resíduos que não são
coletados pela cooperativa Acácia têm como destinação final o aterro da cidade de Guatapará/SP,
que atende 23 municípios, sendo Araraquara o segundo maior gerador. O município encaminha
para o aterro de Guataparácerca de 150 toneladas de resíduos por dia sem nenhum tratamento.
Além disso, o Plano Municipal aponta que são desperdiçados anualmente cerca de 11,5 milhões
de reais ao enviar resíduos orgânicos para aterros ao invés de tratá-los adequadamente como
previsto em lei. Ao observar os entraves da gestão municipal em busca da implementação da
PNRS, através dos instrumentos mencionados acima, observa-se uma desatenção na questão dos
resíduos orgânicos que compõem 54% dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) gerados na cidade
(PMSB, 2014) Segundo o PMSB, a coleta dos resíduos é de responsabilidade da Secretaria de
Obrase Serviços Públicos e a autarquia Departamento Autônomo de Águas e Esgoto (DAAE)
compete à função de gerenciar o aterro, a central de triagem e os bolsões de entulho.
O plano realiza a caracterização dos resíduos de acordo com suas classes apresentadas
pela PNRS e pela ABNT NBR 10004, sendo eles divididos em: I Perigosos; II Não-perigosos
(IIA Não-inertes e IIB Inertes). Os Resíduos Sólidos Domiciliares (RSD) fazem parte da
classe IIA, e em sua maioria são de origem orgânica IIA, pois apresentam características de
biodegradabilidade ou solubilidade em água. Sua coleta é realizada por uma empresa contratada
e atende 100% da área urbana da cidade e 30% da zona rural. A disposição final dos RSU se dá
através do aterro sanitário localizado no município de Guatapará, a cerca de 50 km da cidade. O
documento apresenta um estudo sobre a caracterização dos RSU da cidadeno qual observamos
o crescente montante de resíduos orgânicos.

MATERIAL SETOR 02 SETOR 03 SETOR 12 SETOR 09/17


(CLASSE MÉDIA) (CLASSE MÉDIA) (CLASSE ALTA) (CLASSE BAIXA)

kg % kg %
329

PODA E CAPINA 0,70 0,67 0,00 0,00

VIDRO 1,60 1,52 2,50 1,97

MADEIRA 0,35 0,33 0,70 0,55

TRAPO E PANO 2,65 2,53 4,95 3,89

PAPELÃO 1,30 1,24 2,70 2,12

PAPEL 7,15 6,81 7,20 5,66

ALUMÍNIO 0,60 0,57 0,40 0,31

MATERIAL FERROSO 0,85 0,81 1,90 1,49

PLÁSTICO FILME 13,15 12,53 12,80 10,07

EMBALAGM 1,70 1,62 1,05 0,83


LONGA VIDA

REJEITO 10,15 9,67 12,20 9,60

BORRACHA 0,95 0,91 1,00 0,79

PLÁSTICO RÍGIDO 5,80 5,53 4,00 3,15

MATÉRIA 58,00 55,26 75,70 59,56


ORGÂNICA

TOTAL 104,95 100 127,10 100

Tabela 2 - classificação dos Resíduos Sólidos Domésticos fonte: PMSB (2014)

O quadro apresentado aponta novamente a importância de se debater a gestão dos resíduos


orgânicos tendo em vista o seu elevado índice dentro do consumo de todas as classes sociais
comprovando em escala local a estatística nacional de mais de 50% de todos os RSU serem de
origem orgânica. Mesmo apontado para esse elevado índice o Plano municipal menciona apenas
a destinação dos resíduos sólidos domésticos, portanto os orgânicos, para o aterro sanitário, e para
os recicláveis a coleta seletiva solidária realizada pela cooperativa de catadores Acácia. A única
menção ao tratamento desses resíduos através da compostagem aparece no capítulo IV da lei
ordinária n° 8.335 que institui o PMSB ao definir a elaboraçãode projeto para a criação de
sistema de coleta de resíduos orgânicos e seu tratamento por compostagem e posteriormente no
330

próprio PMSB mencionada enquanto uma necessidade.


Mesmo mencionando a compostagem, poucas iniciativas por parte do governo municipal
se voltam apenas para essa temática. Em 2020 um passo importante para essa temática foi
tomado com a criação da Cooperativa Sol Nascente a partir do RecriaSol - Rede de Economia
Criativa e Solidária, programa do governo municipal que visa incentivar empreendimentos
sustentáveis, locais, agricultura familiar e agroecologia. A cooperativa ainda está em fase de
implementação mas tem como foco o trabalho em compostagem e hortas urbanas que
assimilaram o composto orgânico gerado ao fim do tratamento dos resíduos.
Resumo da Gestão de RSD em Araraquara- SP

ELEMENTO INFORMAÇÕES

LEGISLAÇÕES E PROGRAMAS EM FASE DE ELABORAÇÃO


RESPONSÁVEL PELA GESTÃOE AUTARQUIA PÚBLICA (DAAE)
GERENCIAMENTO
ORIGEM ORIGINÁRIOS DE ATIVIDADES DOMÉSTICAS EM RESIDÊNCIAS
URBANAS E ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS PEQUENOS E
MÉDIOS (LANCHONETES, BARES)
QUANTIDADE COLETADA 154,60 toneladas/dia (2012)

ÍNDICE DE GERAÇÃO 765 g/hab.dia (2013)

TAXAS, TARIFAS E FORMASDE TPCMA


COBRANÇA
TIPO E ABRANGÊNCIA DA TIPO: COLETA PORTA A PORTA
COLETA ABRANGÊNCIA: 100% ÁREA URBANA | 30% ZONA RURAL

SETORES DE COLETA E NÚMERO DE SETORES: 26


FREQUÊNCIA FREQUÊNCIA: SETORES 1 E 2 DIÁRIA | DEMAIS
SETORES ALTERNADA
CARACTERIZAÇÃO FÍSICA VER ITEM “B” DO DIAGNÓSTICO
CLASSIFICAÇÃO CLASSE II-A - NÃO PERIGOSOS E NÃO INERTES – EXCETUANDO
OS RESÍDUOS CITADOS NA RESOLUÇÃO DA SECRETARIA DO
MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO (SMA) 038/2011
331

FORMAS DE DESTINAÇÃO ESTAÇÃO DE TRANSBORDO E DISPOSIÇÃO FINAL EM ATERRO


AMBIENTALMENTE SANITÁRIO LICENCIADO
ADEQUADA
TIPO DE DISPOSIÇÃO FINAL ATERRO SANITÁRIO DA CGR NO MUNICÍPIO DE GUATAPARÁ-SP
AMBIENTALMENTE
ADEQUADA

ESTIMATIVA DE CUSTOS COLETA REGULAR: R$ 93,50/tonelada (2013)


ENVOLVIDOS TRANSBORDO, TRANSPORTE E DISPOSIÇÃO FINAL: R$
119,06/tonelada (dez/2013)

IMPACTOS AMBIENTAIS ATERRO CONTROLADO (SITUAÇÃO ATUAL ENCERRADO)


RELACIONADOS
OBSERVAÇÕES GASES GERADOS NO ATERRO QUEIMADO EM FLARES; GERAÇÃO
DE 15 m3/dia DE LÍQUIDOS PERCOLADOS, OS QUAIS SÃO
TRATADOS NA (ETE);
NECESSIDADE DE PROJETO BÁSICO DE
GERENCIAMENTO APROVEITAMENTO DE MATERIAIS
COMPOSTÁVEIS (UNIDADE DE COMPOSTAGEM AERÓBIA E
ANAERÓBIA)

Tabela 3 - resumo da gestão de RSU em Araraquara fonte: PMSB (2014)

Além da análise do PMSB da cidade de Araraquara, também foi realizado o


acompanhamento da agenda do município, a destacar o encontro de gestores: Plano
regional de resíduos sólidos, uma câmara temática que ocorreu no dia 25 de agosto
de 2022 noplenário da câmara municipal de Araraquara com transmissão ao vivo pelos
canais da prefeitura. O evento teve como cerne de discussões ações para serem
implementadas dentrodo Consórcio de Municípios da Região Central (CONCEN) e
a demanda por um planoregional de resíduos sólidos.

Conclusão
Após compreender como a gestão de RSU é realizada em Araraquara, sobretudo
os impasses e a falta de projetos para a implementação da gestão de orgânicos é possível
traçar um diagnóstico inicial sobre sua relação com a EC. Além disso, podemos
categorizar a gestão de forma comparativa ao diagrama de borboleta (como é visto na
imagem 02) que prevê o fechamento dos ciclos biológicos e técnicos. Na esfera pública,
a legislação e o PMSB ainda enfrenta dificuldades em implementar uma melhor gestão
dos RSD bem como dos orgânicos, sendo boa parte encaminhada ao aterro sanitário, e
portanto não cumprindo com os princípios da EC. No entanto com a coleta seletiva
solidária a partir da cooperativa, boa parte de materiais recicláveis que possuem valor no
mercado são reintroduzidos da cadeia produtiva, o que aponta avanços.
Já na esfera da empresa social Minhocaria, mesmo que em uma escala pequena,
suas atividades e coletas fazem com que os restos de alimentos retornem para o ciclo
332

biológico gerando matéria orgânica e composto para iniciar um novo ciclo de produção
de alimentos. Pensando nesse movimento, a gestão da empresa pode em certa medida se
encaixar nos princípios da EC mesmo que sobre alguns questionamentos em relação às
particularidades da realidade local em detrimento de um conceito desenvolvido e pensado
para outros tipos de empreendimentos. No caso dos orgânicos representante do ciclo
biológico e foco desta pesquisa, bem como no caso da coleta seletiva, a reintrodução de
materiais é feita por organizações que se enquadram no setor 2.5. Ou seja,
empreendimentos sociais e cooperados que se distanciam do perfil de empresas que
globalmente estão envolvidas com a promoçãoda EC. Para analisar em que medida se
assemelha ou se distancia desses preceitos, foielaborado um diagrama da gestão de RSU
na cidade de Araraquara, como se vê na imagem02, que servirá de material para as
próximas etapas da pesquisa.

Imagem 2 - Diagrama da gestão de RSU em Araraquara.

Fonte: Elaborado pela autora

Referências
ARARAQUARA. Prefeitura Municipal De Araraquara. Plano Municipal De
Saneamento Básico –Pmsb, Araraquara – Sp, 2014.
BRASIL. Lei N. 12.305, De 02 De Agosto De 2010. Política Nacional De Resíduos
Sólidos,
3.Ed Câmara Dos Deputados, Brasília, 2017.
MARTINS, A. M. Formulação E Implementação Do Plano Municipal De Gestão
Integrada De Resíduos Sólidos: Uma Análise Das Forças, Fraquezas, Oportunidades E
Ameaças No Município De Araraquara-Sp. Revista Brasileira Multidisciplinar -
Rebram, [S. L.], V. 20,N. 1, 2017. Disponível Em:
Https://Www.Revistarebram.Com/Index.Php/Revistauniara/Article/View/467. Acesso
333

Em: 21Out. 2022.


MURRAY, A. Et Al. The Circular Economy: An Interdisciplinary Exploration Of The
Concept And Application In A Global Context. Journal Of Business Ethics 140.3, 2017.
ZAGUETTO, C. G. Relações Entre A Política Nacional De Resíduos Sólidos E A
Economia Circular. Monografia (Bacharel Em Gestão Ambiental) - Universidade
Federal De São Carlos. São Carlos, P.41, 2018.
334

POLÍTICA E GESTÃO NA
EDUCAÇÃO
335

CURRÍCULO PAULISTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM ESTUDO DA SUA


IMPLANTAÇÃO E EXECUÇÃO

Eliane Cristina Felicio102


Cristiane de Souza Gomes103
Kelen Careta Machado104
Elaine Cristina de Sousa Pereira105
Rodrigo da Silva Souza106

Introdução
O Currículo Paulista representa uma política pública normativa resultante de ações
que se normatizaram um documento que estabelece as competências e habilidades
essenciais para o desenvolvimento integral dos estudantes paulistas, visando a
implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Enquanto política recente, proveniente de outras políticas públicas voltadas para a
Educação Básica, a sua implementação tem sido impactada pela pandemia da COVID-19
na sua plenitude, uma vez que os documentos iniciais evidenciam ações e prazos que ainda
não foram efetivados, mas que, por outro lado, a parceria público-privado tem desvelado
mecanismos de garantia desse planejamento regulamentalmente posto à sociedade.
Nesse sentido, o trabalho tem como objetivo principal apresentar o processo de
implantação e a sua execução até o momento, evidenciando o levantamento de documentos
que nortearam a inserção dessa política no Sistema Estadual de Ensino de São Paulo, os
recortes relevantes do processo que impactam nos avanços da Educação Infantil Paulista,
haja vista que os primeiros insumos desvelam que a política proposta pode promover
melhorias para a qualidade essa etapa da Educação Básica, bem como para o
desenvolvimento das crianças de forma plena.

102
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análises de Políticas Públicas. Graduada
em Pedagogia pela UNIFRAN, tecnólogo em Gestão da Produção pela FATEC Franca/SP e Filosofia pela
Universidade Federal de São João Del Rei (campus Franca/SP). E-mail: [email protected]
103
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análises de Políticas Públicas. Graduada
em Pedagogia e Matemática com habilitação em Física pela Universidade de Franca. E-mail:
[email protected]
104
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análises de Políticas Públicas da
Unesp/Franca. Graduada em Letras – Português e Inglês e Pedagogia pela Universidade de Franca. E-mail:
[email protected]
105
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análises de Políticas Públicas. Graduada
em Pedagogia pela Unifran – Universidade de Franca-SP. E-mail: [email protected]
106
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análises de Políticas Públicas. Licenciado
em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia e Bacharel em Letras com habilitação em Tradutor e
Intérprete da Língua Inglesa pela Universidade de Franca. E-mail: [email protected]
336

A Educação Infantil brasileira passou por diversas mudanças ao longo dos anos e
contempla vários estudos acerca dessa temática. No período colonial as crianças desde
pequenas já tinham o futuro traçado, no qual as negras e as indígenas eram vistas como
adequadas ao mercado de trabalho começando desde muito pequenas, enquanto, as crianças
da elite, filhos dos senhores, possuíam regalias para o estudo e eram privadas de tarefas
domésticas e de qualquer outro tipo de trabalho.
Avançando mais um pouco historicamente, é a partir de meados do século XIX com
a industrialização e com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, em que muitas mães
trabalhadoras se depararam com a falta de um local para deixar seus filhos enquanto
exerciam seus trabalhos laborais, muitas vezes com uma carga horária extensa e noturna.
Tal fato, mobilizou diversas reivindicações, motivando a criação de creches voltadas ao
assistencialismo, atendendo assim, a criança pobre e da mãe trabalhadora.
Por muitos anos, as creches ficaram sob responsabilidade da Secretaria de
Assistência Social, mas foi somente com a Constituição Federal de 1988 que a educação
infantil passa a atender conforme a faixa etária, assim afirma o artigo 208, inciso IV: “O
dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de [...] atendimento em
creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (BRASIL, 1988). Nesse sentido,
a lei prevê a educação infantil como um direito de todos, sendo parte integrante do sistema
educacional e oferecida de forma gratuita e deixando de ter cunho assistencial. Vemos que
a Constituição abre novas oportunidades de um debate mais detalhado sobre a educação,
possibilitando a criação de novas leis que elevem a qualidade do ensino em nosso país
sobretudo na primeiríssima infância. Outro marco relevante na educação, é a promulgação
da Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN/ 96) onde no artigo 29
enfatiza a educação infantil conforme a faixa etária, sendo o atendimento de creches e
entidades equivalentes para crianças de zero a três anos e a pré-escola para crianças de
quatro a cinco anos de idade.
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), surge em 1998
como resultado de discussões em âmbito nacional, com a contribuição de professores e
profissionais que atendem as crianças de creches e pré-escolas. O RCNEI (1988) é composto
por três volumes: Formação Pessoal e conhecimento de Mundo; Identidade e Autonomia;
Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e
Matemática. O Referencial foi preparado como um guia de reflexão didática e educacional
onde prevê o respeito a diversidade cultural e pedagógica brasileira (BRASIL, 1998, p.9).
Nesse mesmo ano, cria-se Subsídios para o Credenciamento e Funcionamento das
Instituições de Educação Infantil (BRASIL, 1998) que prevê os fundamentos legais,
princípios e orientações gerais para a educação infantil brasileira. Os Indicadores da
337

Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009, p.14), foi concebido “com o objetivo de
auxiliar as equipes que atuam na educação infantil, juntamente com as famílias e as pessoas
da comunidade, a participar de processos de autoavaliação de creches e pré-escolas [...].
Nesse sentido, os Indicadores contribuem para que as instituições de educação infantil
tracem meios para que suas práticas educacionais estejam interligas aos direitos
fundamentais da criança.

A Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil


A Base Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo que estabelece um
agrupamento crescente de aprendizagens essenciais que aos alunos que necessitam
apresentam no decorrer das fases e modalidades da Educação Básica, no qual garantam os
direitos de aprendizagem e desenvolvimento conforme consta no Plano Nacional de
Educação (PNE). A Educação Infantil é considerada a primeira etapa da Educação Básica
sendo uma fase muito importante no procedimento educacional, tendo como base as
interações e brincadeiras, sendo essenciais para o desenvolvimento das crianças (BRASIL,
2018).
Nesse sentido, a BNCC garante seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento,
são elas: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. A creche como a
pré-escola precisa estabelecer a intencionalidade aos aprendizados educacionais na
educação infantil. As intencionalidades podem ser vivenciadas em diversos momentos na
rotina escolar, sejam nos momentos de higiene, nas relações com a natureza, em contato
com diversos materiais e em outros momentos.
De acordo com a BNCC, as aprendizagens na Educação Infantil, compõem-se
como objetivos de aprendizagens e desenvolvimento. Identificando as especificidades de
cada faixa etária, os objetivos são agrupados conforme a idade, sendo na creche subdividido
em bebês (crianças de zero a um ano e seis meses), crianças pequenas (um ano e sete meses
e três anos e onze meses) e nas pré-escolas (quatro anos e cinco anos e onze meses). Nesse
sentido, os campos de experiências são: o eu, o outro e nós; corpo, gestos e movimentos;
escuta, fala, pensamento e imaginação; traços, sons, cores e formas; espaços, tempos,
quantidades, relações e transformações (BRASIL, 2018).

Currículo Paulista para a Educação Infantil


Resultante de um processo colaborativa que havia se iniciado em 2018, tendo como
coautores a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP) e a União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação de São Paulo (UNDIME-SP), contando
também com a presença de representantes da rede privada, em primeiro de agosto de 2019,
338

o Currículo Paulista foi homologado pelo Secretário Estadual de Educação. Este documento
versa sobre o processo de (re)elaboração, implantação e implementação dos Currículos dos
municípios e das propostas pedagógicas das escolas. (SÃO PAULO, 2019, p. 24 – 25).
O objetivo da organização curricular do Estado de São Paulo é diminuir as
desigualdades educacionais dos estudantes, já que propõe a equidade levando em conta as
diferentes necessidades do educando.
Segundo a perspectiva defendida pelo Currículo Paulista, a equidade diz
respeito à inclusão de todos os estudantes nas escolas e à garantia de seu
direito a educação pública e de qualidade prevista na LDB, na
Constituição, na legislação estadual e dos municípios paulistas. Diz
respeito, ainda, à necessidade de respeitar a diversidade cultural, a
socioeconômica, a étnico-racial, a de gênero e as socioculturais presentes
no território estadual. Promover a equidade supõe também dar respostas
adequadas e com respeito ao público atendido nas modalidades da
Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo,
Educação Escolar Indígena e Educação Escolar Quilombola, segundo as
necessidades locais. (SÃO PAULO, 2019, p. 26-27)

É importante frisar, que o acesso e a permanência na Educação Básica e a garantia


da equidade e das competências necessárias para o estudante só poderão ser asseguradas
com uma promissora união entre Estados e Municípios, como já pôde ser observado na
implementação de diversos programas voltados à Educação e na elaboração do Currículo
Paulista. É nessa atmosfera que a etapa da Educação Infantil deve ser considerada. Com
foco na alfabetização, “uma vez que supõe um conjunto de habilidades e competências
fundantes, que se configuram como andaimes para as aprendizagens posteriores.” (SÃO
PAULO, 2019, p. 36), a etapa da Educação infantil, não se limita à escrita e à leitura, mas
um conjunto de saberes e fazeres necessários e inerentes ao desenvolvimento cognitivo e
para o avanço na aprendizagem.
A estruturação do Currículo Paulista para a Educação Infantil “traz como premissas
o binômio educar e cuidar, as interações e brincadeiras e a garantia dos direitos de
aprendizagem e desenvolvimento das crianças – conviver, brincar, participar, explorar,
expressar e conhecer-se, contempladas na BNCC” (SÃO PAULO, 2016, p.50).
Nessa perspectiva, coube a esse currículo assegurar princípios para o
atendimento à criança pequena nas creches e na pré-escola, instituições
que devem acolhê-la e partilhar com sua família e/ou responsáveis os
cuidados a que tem direito na infância — com seu corpo e pensamento,
seus afetos e sua imaginação — e garantir as aprendizagens essenciais,
respeitando a história construída no ambiente familiar e/ou na comunidade
em que vive. (SÃO PAULO, 2019, p. 51).

Assim, para o atendimento de bebês (zero a 1 ano e 6 meses), crianças bem pequenas
(1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses) e crianças pequenas (4 anos a 5 anos e 11 meses), o
Currículo volta-se às vivências familiares, comunitárias e culturais. Falar de infância não é
339

um mero recorte temporal da vida dos sujeitos, mas é reconhecer que esta fase se altera em
diferentes meios sociais e culturais e que é um movimento múltiplo, que vai se conceber a
partir de diferentes processos: cognitivo (dimensões da mente), físico (motoras), social
(trocas sociais, interação), afetivo (emoções), cultural (construções culturais) e linguístico
(comunicação, língua). Tal como discorre a BNCC da Educação Infantil, há eixos
estruturantes que orientam o Currículo Paulista e garantem os direitos de conviver, brincar,
participar, explorar, expressar e conhecer-se.
A instituição infantil, ou seja, a escola, assume um espaço de priorização das
interações e as brincadeiras como eixos estruturantes, elementos que norteiam o tempo e o
espaço na etapa, por sua vez, os professores devem priorizar o protagonismo da criança,
reconhecendo que a mesma é um sujeito dotado de direitos, legitimando-a a assumir a sua
realidade por meio de uma escuta ativa e propostas norteadoras. A família e a escola devem
estar em vinculadas, compartilhando responsabilidades e conhecendo as especificidades de
cada instituição. Os Campos de Experiências do Currículo Paulista, norteados pela BNCC,
são “
O Eu, o outro e o nós: as propostas que envolvem este campo privilegiam
as experiências de interação, para que se construa e se amplie a percepção
de si, do outro e do grupo, por meio das relações que se estabelece com
seus pares e adultos, de forma a descobrir seu modo de ser, estar e agir no
mundo e aprender, reconhecer e respeitar as identidades dos outros;
Corpo, gestos e movimentos: As experiências com o corpo, gestos e
movimentos devem promover a validação da linguagem corporal dos
bebês e das crianças e potencializar suas formas de expressão,
aprimorando a percepção do próprio corpo e ampliando o conhecimento
de si e do mundo; Traços, sons, cores e formas: os saberes e
conhecimentos trazidos nesse campo potencializam a criatividade, o senso
estético, o senso crítico e a autoria das crianças ao construírem, criarem e
desenharem usando diferentes materiais plásticos e/ou gráficos, bem como
desenvolvem a expressividade e a sensibilidade ao vivenciarem diferentes
sons, ritmos, músicas e demais movimentos artísticos próprios da sua e de
outras culturas; Escuta, fala, pensamento e imaginação: as experiências
nesse campo respondem aos interesses das crianças com relação a forma
verbal e gráfica de comunicação como meios de expressão de ideias,
sentimentos e imaginação. Propõem a inserção de vivências relacionadas
aos contextos sociais e culturais de letramento (conversas, escuta de
histórias lidas ou contadas, manuseio de livros e outros suportes de escrita,
produção de textos orais e/ou escritos com apoio, escrita espontânea etc.);
Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações: os saberes e
conhecimentos que envolvem esse campo atendem a curiosidade dos
bebês e das crianças em descobrir o sentido do mundo e das coisas, por
meio de propostas com as quais possam testar, experimentar, levantar
hipóteses, estimar, contar, medir, comparar, constatar, deslocar, dentre
outros. (BRASIL, 2017, p. 40)

Ainda que o Currículo Paulista contemple uma organização de como fazer para as
instituições, docentes e famílias e esses possibilitem encontros, interações lúdicas, noção de
tempo e espaço para as crianças, deve-se compreender que toda a estrutura curricular é
340

meramente diretiva, já que são os atores, as crianças, quem direcionará quanto ao caminho
a seguir, não há garantias de planos completos. (BARBOSA, 2015, p. 195)

Os primeiros passos da implantação do Currículo Paulista na Educação Infantil.


Com a homologação fundamentada no artigo nº 9 da Lei 10.403, de 6 de julho de
1971, a qual reorganiza o Conselho Estadual de Educação, a Deliberação CEE 169/2019
estabelece, desde então, “as normas relativas ao Currículo Paulista da Educação Infantil e
Ensino Fundamental para a rede estadual, redes privadas e redes municipais que possuem
instituições vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado de São Paulo”.
Considerando esta Deliberação, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo
(SEDUC-SP) a regulamenta por meio da Resolução SEDUC de 06 de agosto de 2019
evidenciando que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Infantil “é
um documento normativo que define o conjunto progressivo de aprendizagens essenciais
que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas da sua escolaridade”.
Nesse sentido, a SEDUC-SP em parceria com a União dos Dirigentes Municipais
de Ensino de São Paulo (UNDIME-SP) tiveram a incumbência de encaminhar as diretrizes
curriculares referentes a essa etapa escolar contidas no Currículo Paulista para apreciação
de um Colegiado formado pelo Conselho Estadual de Educação.
Por meio de uma plenária realizada em 19 de junho de 2019, o Colegiado validou
a Indicação CEE 179/2019 institucionalizando o Currículo Paulista para o Sistema de
Ensino do Estado de São Paulo, tendo como âmago a BNCC e os princípios de colaboração
na implementação desta política.
Deste modo, para que as redes possam apreender as concepções dessa política
orientadora da prática e de planejamento de demais políticas públicas, levando em conta as
incumbências atribuídas nos artigos 205 e 210 da Constituição Federal, nos artigos 2º, 22,
23, 26, 29 e 32 da LDB 9394/96, no artigo 2º da Lei Estadual 10.403/71 e a Resolução
CNE/CP 2/2017, a SEDUC-SP delibera uma série de ações a serem desenvolvidas e
garantidas pelo próprio órgão governamental, em colaboração com a UNDIME-SP, a fim
de implementar, de fato, o Currículo Paulista.
Conforme a Resolução SEDUC-SP de 06 de agosto de 2019, dentre as ações
relevantes a serem executadas, concentram-se as adequações das Matrizes do Sistema de
Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) 107 em um prazo de
um (1) ano contando a partir da homologação do Currículo Paulista, na reorganização dos

107
Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo é uma avaliação externa, aplicada
anualmente, pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo para avaliar de forma sistemática o Ensino
Básico no Estado e produzir um diagnóstico da escolaridade com o intuito de orientar a gestão do ensino e do
monitoramento das políticas públicas de melhorias na educação paulista.
341

materiais didáticos e na organização de uma matriz de Avaliação Formativa, bem como de


propostas de formação inicial e continuada de professores nas quais o referido documento
deve ser uma bibliografia de estudo, discussão e apropriação a fim de subsidiar a
organização, o planejamento e a prática pedagógica de sala de aula.
Além disso, a Resolução define a expressiva importância de se estabelecer
mecanismos de acompanhamento, suporte e avaliação dos processos de implementação do
Currículo Paulista na etapa da Educação Infantil, bem como atribuir comissões para atuarem
nessas ações e procederem possíveis revisões nesse percurso.
Em contrapartida, a pandemia da COVID-19 repercutiu nos mais diversos âmbitos
da sociedade e, no que condiz à Educação, não foi diferente. Os impactos na implementação
têm sido significativos do ponto de vista dos prazos previstos condizentes ao planejamento
inicial.
Por consequência, diante desse contexto e do distanciamento dos estudantes e dos
educadores dos espaços escolares, os estudos considerando os efeitos desfavoráveis ao
desenvolvimento das políticas públicas educacionais neste âmbito da implementação da
BNCC e da aprendizagem foram feitos concomitantes ao cenário de calamidade pública.
À face do exposto, uma das primeiras ações promovidas pela Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo foi a organização de materiais de apoio aos professores
da Educação Infantil denominados “Currículo em Ação” e reorganização dos materiais
didáticos para o ciclo da alfabetização (1º e 2º anos dos Anos Iniciais do Ensino
Fundamental) ao longo de 2020 e 2021. Em parceria com as organizações não-
governamentais, tais como a Associação Nova Escola, Fundação Lemann e Itaú Social, toda
a produção foi financiada por esses organismos. A Associação Nova Escola, enquanto
entidade sem fins lucrativos e de impacto social, não restringe o trabalho apenas à SEDUC-
SP, mas também toda ação está à disposição pública em formato aberto. O material foi
lançado e já disponibilizado aos estudantes paulistas no ano de 2022 em conformidade com
as demandas dos impactos da pandemia e ao próprio Currículo Paulista.
Ainda, objetivando o desdobramento de outras ações voltadas para a
implementação do Currículo Paulista, no ano de 2022, a formação continuada aos
profissionais da educação das redes paulista foi estruturada em “efeito cascata” promovida
pela SEDUC-SP e pela UNDIME-SP. Os municípios paulistas designaram pelo menos um
(1) representante para compor o grupo de formadores estaduais para multiplicar os
conteúdos formativos às respectivas Secretarias Municipais de Educação e Diretorias de
Ensino.
342

Os temas abordados centraram-se no desenvolvimento de competências, educação


integral, educação especial, tecnologia, antirracismo, alfabetização e letramento, projeto de
vida dos estudantes e processos avaliativos.
Por fim, especialmente no que condiz à Educação Infantil, a UNDIME-SP
promoveu, no mês de novembro de 2022, o primeiro seminário de Educação Infantil com
intuito de trazer discussões acerca da brincadeira e das interações enquanto eixos
estruturantes da aprendizagem e do desenvolvimento. Além disso, com vistas à
continuidade dos debates e aprofundamento dos processos de implementação do Currículo,
a UNDIME-SP promoverá um fórum que já consta em edital aberto para a organização
dessa ação.

Considerações Finais
A Educação Infantil no Brasil, enquanto etapa fundamental para a Educação e o
desenvolvimento das crianças, vem ganhando espaços de discussões, pesquisas e de
planejamento e implantação de políticas públicas que visam atender aos direitos da criança
previstos constitucionalmente e às peculiaridades da infância.
É valoroso destacar que a criança enquanto sujeito social e de direitos teve
relevância nos últimos trinta anos, o que, de certa forma, as políticas públicas voltadas para
a infância têm sido estruturadas e executadas em passos lentos.
Cunha (2016) evidencia que o atraso e a morosidade que atinge as políticas para a
infância advém das marcas da colonização europeia. Os naufrágios durante o período da
colonização e a escravidão são problemas consideráveis que se fazem presentes no estudo
da infância no Brasil, principalmente, a ausência de relatos históricos da trajetória da
criança.
Com a promulgação da Constituição de 1988, na qual explicita a Educação Infantil
como direito de todas as crianças do país, e por meio da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional a qual estabelece que a oferta à educação para a faixa etária de 0 a 5
anos a fim de complementar a ação das famílias e da comunidade.
O Currículo Paulista, enquanto política norteadora de demais políticas públicas
educacionais para o Sistema Estadual de Ensino de São Paulo, prevê objetivos consideráveis
para a minimização de desigualdades e, principalmente, a valorização dos espaços de
interações e brincadeiras como eixos primordiais para o protagonismo da criança. Em
contrapartida, os documentos públicos desta política reiteram a importância de mecanismos
de acompanhamento da sua implementação, o que ainda não foi evidenciado a qualidade
desse processo, bem como os primeiros impactos e resultados dessa política por meio da
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.
343

Referências
BARBOSA, Maria Carmen Silveira; RICHTER, Sandra Regina Simonis. Campos de
Experiência: uma possibilidade para interrogar o currículo. Campos de experiências na
escola da infância: contribuições italianas para inventar um currículo de educação
infantil brasileiro. Campinas: Leitura crítica, 2015. P. 185-198, 2015.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília:
MEC/CNE, 2017.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Ministério da Educação e do
Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.
Subsídios para credenciamento e funcionamento de Instituições de Educação Infantil.
Brasília, MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Indicadores da Qualidade na Educação Infantil. Ministério da Educação.
Secretaria da Educação Básica. Brasília: MEC/SEB, 2009.
__________. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Brasília, DF, 23 de dez. de 1996.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05.10.1988. Brasília, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.
CAMILO, Camila (org.) Material educacional Nova Escola: Educação Infantil:
Caderno do Professor de São Paulo. 1.ed. São Paulo: Associação Nova Escola, 2021.
CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO. Deliberação CEE n° 169/2019. Fixa normas
relativas ao Currículo Paulista da Educação Infantil e Ensino Fundamental para a rede
estadual, rede privada e redes municipais que possuem instituições vinculadas ao Sistema
de Ensino do Estado de São Paulo, e dá outras providências. Disponível em:
https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/mpb-169-
2019_60d99e7d47af5.pdf?query=INOVA%C3%87%C3%83O. Acesso em: 02 de
novembro de 2022.
CUNHA, Ione da Silva. A evolução das políticas de atendimento à infância no Brasil:
entre concessões e o reconhecimento de direitos. Revista de Estudos Aplicados em
Educação. v.1, n.2, ago./dez. 2016
Currículo em Ação para Redes Municipais. Disponível em: https://www.undime-
sp.org.br/wp-content/uploads/2022/pdf/curriculopaulista/curriculo_23.pdf . Acesso em
07.11.2022
SÃO PAULO, Secretaria de Estado da Educação. Resolução de 06-08-2019. Fixa normas
relativas ao Currículo Paulista da Educação Infantil e Ensino Fundamental para a rede
estadual, rede privada e redes municipais que possuem instituições vinculadas ao Sistema
de Ensino do Estado de São Paulo, e dá outras providências. Disponível em:
http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/RESOLU%C3%87%C3%83O,%20DE%20
6-8-2019.HTM?Time=09/12/2022%2015:38:36 . Acesso em: 02 de novembro de 2022.
Disponível em: https://www.undime-sp.org.br/curriculopaulista/. Acesso em 07.11.2022
Disponível em: https://www.undime-sp.org.br/1seminariodeeducacaoinfantil/ . Acesso
em: 08.11.2022
344

DIREITO À SAÚDE E À EDUCAÇÃO: IMPASSES DE ADOLESCENTES ÀS


POLÍTICAS PÚBLICAS.

Letícia Lara de Souza Silva108


Ailton de Souza Aragão 109
Beatriz Montoani Masson110
Bianca Helena Moraes Bergamo111
Ana Carolina Aguiar de Carvalho112

Introdução
Segundo Dayrell (2003, p.153), ‘’Seria limitado olhar para a juventude apenas
como algo passageiro, sem reconhecer sua singularidade’’. Dessa forma, cabe refletir
acerca do processo de desenvolvimento da adolescência e de suas consequências na vida
cotidiana destes jovens. Assim sendo, o objetivo deste projeto de extensão tem como base,
compreender e acolher a vivência de adolescentes aprendizes frente aos desafios do
mercado de trabalho, atrelados com o desenvolvimento da adolescência e as questões
singulares que a envolvem. O projeto: PROGRAMA DE EXTENSÃO: PARA ALÉM DO
MERCADODE TRABALHO: PROJETO DE VIDA E PROMOÇÃO DA SAÚDE COM
ADOLESCENTES APRENDIZES- ANO III da Universidade Federal do TriânguloMineiro
(UFTM), objetiva analisar os fatores de vulnerabilidade, sobretudo em que direitos como
à Saúde e a Educação estão fragilizados e propondo um espaçoseguro, de acolhimento,
conversas e reflexões sobre diversos âmbitos de vida.

Desenvolvimento
O método de desenvolvimento, se deu a partir de uma equipe composta por 15
estudantes, divididos em grupos, alunos graduandos dos cursos de Psicologia e Terapia
Ocupacional da UFTM em que eram coordenados pelo discente coordenador do projeto de
Extensão. O local de atuação se dá em uma Fundação Pública de Uberaba, MG. Em que
os encontros com os jovens aconteciam de forma quinzenalmente, enquanto que os
graduandos realizavam um encontro semanal com o orientador do Programa para
formações.

108
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Graduanda em Psicologia. [email protected]
109
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutor em Saúde Coletiva. E-mail.
[email protected]
110
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Graduanda em Psicologia. E-mail:[email protected]
111
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Graduanda em Psicologia. E-mail:[email protected]
112
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Graduanda em Psicologia. E-mail:[email protected]
345

Além disto, nesses encontros com o coordenador ocorriam discussões acerca de


como estavam os coletivos, feedbacks e propostas que poderiam ocorrer durante o contato
com os jovens. Dentre as atividades realizadas como formação, eram propostas dinâmicas,
músicas, poesias, imagens... para os alunos que poderiam repassar tais ações durante o
encontro com os jovens, de forma que perpassasse a temática de adolescência e do que é
adolescer, já que este era o principal foco do Projeto e de como esses adolescentes teriam
questões acerca de seus desenvolvimentos atrelados ao mercado de trabalho como
aprendizes e de seus impasses cotidianos.
Os temas abordados nos encontros quinzenais na FETI, eram elencados e
escolhidos por cada coletivo, com a proposta de voz ativa dos participantes. Do qual, o em
questão se deu por discussões em que demonstraram a preocupação com impasses na
Educação e trabalho. Cada encontro é preparado antecipadamente pelos extensionistas, que
utilizam de dinâmicas de grupo e rodas de conversa para a discussão e reflexão do tema,
visando sempre dar espaço de voz ativa e acolhimento para os adolescentes aprendizes,
como uma forma de reflexão das temáticas e alívio de estresse rotineiro entreadolescência
e mercado de trabalho.
De acordo com Oliveira (2000,p.120), o autor destaca que ‘’a escola deve exercero
papel social de inclusão especialmente daqueles alunos que têm dificuldades, por muitas
vezes advindos de baixas camadas populares. Além disso, a escola deve favorecer o
desenvolvimento integral do aluno, procurando descobrir e minimizar as causas de seu
fracasso na escola.’’ Dessa forma o enfoque deste estudo, se deu a partir do conteúdo
observado em rodas de conversa que foram propostas pelos aprendizes, sobre evasão
escolar, estudos e de como esta correlação com o mercado de trabalho é pouco discutida e
geram impactos diretos na saúde dos jovens.
Os adolescentes do coletivo em questão haviam respondido um formulário em que
os graduandos questionaram temáticas que os interessavam e dentre uma das respostas, a
temática havia sido evasão escolar, desigualdade social e adolescência. A partir disso, as
graduandas separaram dinâmicas e musicas para que provocasse uma reflexão nos jovens,
do qual estes começaram os seus questionamentos e por sua vez, posicionamentos. Durante
a roda de conversa, foi observado uma queixa em comum: O desgaste mental daescola e
do trabalho na adolescência. A partir disso, foram indicados exercícios para o relaxamento
e discussões de como seria possível melhorar estas situações rotineiras.
Outra questão que surgiu dentre a roda de conversa, foi acerca de relatos. Muitos
jovens que conhecem outros jovens que deixaram suas escolas para que pudessem apenas
trabalhar, evadindo assim a educação. Esta realidade infelizmente acomete muitos ainda
no nosso país, o que demonstra como o projeto em questão é importante para debates entre
346

os jovens para que tais situações não venham a se tornar um ciclo comum e frequenteda nossa
realidade brasileira.
Segundo Bock (2007, p. 68), situa a adolescência e a juventude como resultado de
mudanças socioeconômicas, percebendo a adolescência como um “período de latência
social constituída a partir da sociedade capitalista gerada por questões de ingresso no
mercado de trabalho e extensão do período escolar, da necessidade dopreparo técnico’’.
Assim, podemos refletir acerca do que seria a adolescência na nossa sociedade
atualmente, o preparo dos jovens para o mercado de trabalho e a diminuição dos mesmos
nas salas de aula e sua correlação. O neoliberalismo e a produção em massa, pode ser
associada também de acordo com esta fala do autor, com o inicio ao mercado de trabalho
de modo com que mais jovens estejam presentes no mercado de trabalho, isto acarreta
muitas angustias nos jovens e através de diálogos observados nas rodas de conversa
durante os encontros, fica nítido o quanto o desgaste emocional perpassando questões do
adolescer e de ser adolescente com o mercado de trabalho, se torna algo mais comum.
O projeto, visou trabalhar o enfoque com evasão escolar e mercado de trabalho,
justamente por se tratar de uma temática atual que atinge os alunos da FETI. O espaço de
acolhimento do projeto, visava propor o local de fala dos adolescentes do qual era
inexistente em suas realidades. O projeto tem como principal objetivo e justificava
promoção de saúde para estes jovens, em forma de encontros, atividades e conversas. Dos
quais foi possível ver os resultados dos participantes.
Além disso, o desenvolvimento entre os próprios alunos graduandos da UFTM se
deu de forma com que aprendessem a trabalhar em equipe e a lidarem com temáticas que
perpassam suas áreas de atuação, no caso o curso de psicologia e o curso de terapia
ocupacional. O projeto de extensão, colabora com o ensinamento dos estudantes visando
com que estes tenham práticas pautadas no ensino e extensão.

Conclusões
Concluindo, o projeto: PROGRAMA DE EXTENSÃO: PARA ALÉM DO
MERCADO DE TRABALHO: PROJETO DE VIDA E PROMOÇÃO DA SAÚDE COM
ADOLESCENTES APRENDIZES- ANO III da Universidade Federal do Triângulo Mineiro
(UFTM), se faz necessário na medida em que visa promover a saúde dos jovensaprendizes
e promover um local de promoção de reflexões, debates e de acolhimento de angustias que
não é recorrente na rotina dos mesmos.
Dessa forma, foi possível notar a medida dos encontros, que os mesmos alunos que
antes se angustiavam e não participava de discussões, retornavam comfeedbacks positivos
aos graduandos acerca de como o projeto e encontros estavam dandoretornos positivos
347

para a sua saúde mental. Além disso, alunos que antes não tinham conhecimento acerca
da evasão escolar, ou que não refletiam de como as consequências desta ação podem afetar
as suas vidas e educação, conseguiram repensar acerca da temática e partilhar seus
pensamentos.
O projeto visa trabalhar outras temáticas acerca da adolescência, do mercado de
trabalho e principalmente temáticas que estão presentes na vida destes jovens. Para que
haja assim a promoção de um espaço seguro de acolhimento, uma rede de proteção e um
amparo destes jovens.
Dessa forma, o estudo através da colaboração de ensino e extensão, foi benéfico
para estes adolescentes aprendizes de acordo com relatos informais dos jovens, além de
feedbacks diários em que os mesmos informavam o que os extensionistas poderiam levar
para os encontros como uma temática e como forma de dar voz a estes adolescentes. Outro
ponto marcante que ficou como conclusão, se dá as questões pautadas nas políticas
públicas e nesta dualidade dos jovens aprendizes, uma vez que estão respaldadas por leis
que garantem seu bem-estar no mercado de trabalho e a sua educação, porém, na prática,
infelizmente muitos jovens acabam tendo a sua educação escolar evadida, para que possam
continuar no mercado de trabalho. Entretanto, muitos permanecem no manuseio entre as
duas frentes: Mercado de trabalho e vida escolar, mas acabam se desgastando
mentalmente, passam por estresses e acabam tendo condições de ensino que são, mais
prejudicadas do que o jovem que não estuda e trabalha.
O impacto na saúde mental dos adolescentes é notório através das conversas e
diálogos realizados ao longo dos encontros da FETI, porém, quando comparadas as
respostas relacionadas a saúde mental dos aprendizes antes de serem iniciados os encontros
do projeto, com os feedbacks colhidos ao final do projeto, foi possível percebera diferença
que esta extensão gerou na vida destes jovens. A escuta e o local de fala oferecidos aos
jovens, foi capaz de melhorar em questões relacionadas ao estresse cotidiano. Estes pontos,
foram observados e relatados por estes aprendizes. Dessa forma,o programa tem um papel
de promoção de saúde aos adolescentes essencial, pois, muitosos jovens da instituição estão
em situação social de vulnerabilidade e como já foi relatadopor eles, em outros locais eles
não possuem esta oportunidade tal como no projeto que visa acolhe-los e dialogar de
diversos temas.
Assim, é possível proporcionar uma adolescência digna, com um desenvolvimento
mental saudável para estes jovens, o que certamente é fruto de muito trabalho dos
extensionistas articulado as demandas dos jovens que necessitam de amparos.
Na questão da vida escolar, foi relatado e observados que os aprendizes não
conheciam a UFTM, ou que era possível adentrar em faculdades privadas através de bolsas,
348

a realidade se fez distante, através de observações das rodas de conversas e anotações de


falas, foi possível perceber que muitos não pensavam em adentrar uma universidade,
justamente por não terem condições financeiras e pelo desgaste mental. Mas, após este
encontro com a temática de evasão escolar que serviu como uma forma informativa, onde
os alunos também retiraram suas dúvidas, muitos disseram que querem alcançar o nível
superior.
Assim, a forma com que o projeto se deu foi de extrema necessidade e importância,
visando não apenas a promoção de saúde, mas também a promoção de educação e de certa
forma a diminuição de desigualdades sociais presentes nesta instituição e na vida destes
adolescentes aprendizes. O direito á informação, o acolhimento e a promoção de um local
seguro para que eles pudessem se expressar, foi de suma importância ao comparar as
respostas antes dos encontros e após. Antes dos encontros, os jovens diziam que não
sabiam o significado ao certo de evasão escolar, alguns conheciam pessoas que havia
evadido e outros não achavam possível chegar ao nível superior. Por isso, foi de suma
importância a execução deste projeto, já que alcançoumuitos jovens promovendo reflexões
e mudanças.

Referências
Abramovay, M., & Castro (2015). M. Ser jovem no Brasil hoje: políticas e perfis da
juventude brasileira. Cadernos Adenauer, 16(1), 13-25. Disponível
em:https://www.kas.de/c/document_library/get_file?uuid=55825619-323e-712f-2f0a-
f7b2fb31 b673&groupId=265553.
BARBOSA SILVA, Larissa Horácio; PEREIRA, Álvaro Itaúna Schalcher; RIBEIRO,
Francisco Adelton Alves. Reflexões sobre os conceitos de adolescência e juventude:
uma revisão integrativa. Revista Prática Docente, v. 6, n. 1, e 026, 2021.
Rizzo, Catarina Barbosa da Silva e Chamon, Edna Maria Querido de Oliveira. O sentido
do trabalho para o adolescente trabalhador. Trabalho, Educação e Saúde [online]. 2010,
v. 8, n, pp. 407-417
349

EDUCAÇÃO E PROCESSO FORMATIVO: COMPARTILHAR VIVÊNCIAS E


SABERES NAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE UBERABA

Marcela Alves Gennari Mariano113


Ailton de Souza Aragão114
Valquíria Alves Mariano115

Introdução
Os assuntos que envolvem o universo do adolescer são os mais variados, perpassando
por questões delicadas que necessitam de atenção de todos os atores de uma Rede de
Proteção. O intuito é proteger esta etapa do ciclo de vida, proporcionar um desenvolvimento
que represente a efetividade das garantias fundamentais do ser humano, alinhada à legislação
específica deste público, destes, os direitos preconizados na Constituição Federal (1988) e
no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Com este objetivo alguns atores sociais
envolvidos na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, bem como a formação de
alunos e integrantes da rede de proteção, se uniram para colocar em prática um formato de
trabalho que consiga integrar agentes da educação municipal, da rede de proteção e de alunos
de escolas municipais.
Esse processo vislumbra o fortalecimento das ações de prevenção à violação dos
direitos fundamentais, mas, sobretudo, a promoção dos mesmos direitos por meios das
políticas públicas. Associado ao fomento do pensamento crítico dos adolescentes, haja vista
que refletir os temas do adolescer podem buscar auxílio na efetivação das políticas públicas,
sob a forma de direitos. Essa busca permite, ainda, torná-los importantes agentes
multiplicadores e protagonistas da defesa de seus próprios direitos.
Como é sabido, o período de pandemia de Covid-19 impactou severamente a todos,
contudo, os adolescentes em situação de vulnerabilidade individual e social se viram alijados
da efetivação do direito à educação, ao trabalho protegido, à cultura, e mesmo ao convívio
familiar. Ficando expostos à violência intrafamiliar em suas muitas manifestações, como
violência sexual e o trabalho infantil. Situações que podem – e já estão produzindo –
inúmeros impactos no desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Ou seja, a
propalada doutrina da proteção integral se viu longe de sua efetividade devido à herança
histórica de desigualdades, às quais foram agudizadas pela pandemia.

113
Universidade Estadual de São Paulo. Especialista em Direito de Família e Sucessões e Mestranda no
Programa de Análise e Planejamento de Políticas Públicas. E-mail: [email protected];
114
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Doutor em Saúde Coletiva. E-mail. [email protected];
115
Universidade Estadual de São Paulo. Mestra em Serviço Social pela Unesp Franca. E-mail:
[email protected];
350

Nessa seara, o setor Educação foi um dos que imediatamente observou os impactos
da pandemia nos estudantes. E ainda, um dos que reconheceram que isoladamente pouco ou
nada poderiam promover para fazer frente a este estado de coisas. Outrossim, reconhecemos
que a intersetorialidade é, para além de um conceito associado à gestão pública, alberga uma
prática política. Logo, para minimizar os impactos da pandemia no processo educacional é
que fora construída uma proposta intersetorial. A construção de um Processo Formativo,
oriundo de uma experiência ulterior com usuários de drogas e suas famílias aliada a serviços
de saúde mental, de educação e de proteção social foi trazido à tona pelo Prof. Dr. Ailton
Souza Aragão para uma equipe de profissionais.
O Processo está ancorado no conceito de intersetorialidade e na participação dos
envolvidos e dos cidadãos, aqui, os adolescentes estudantes na rede pública municipal de
ensino. Em sua dialogicidade, as políticas públicas, que convergem para a proteção integral,
se efetivam a partir das experimentações dos envolvidos, da problematização dos temas
cotidianos que perpassam o Adolescer e o saber-fazer dos profissionais envolvidos no
Processo, que será detalhado a seguir.

Pandemia, vulnerabilização e as escolas: o que fazer?


Ao final de 2021 a Secretaria Municipal de Educação constata um grande número de
situações de riscos e vulnerabilidades que foram trazidas como consequência da pandemia
de Covid-19. Esta pandemia colocou crianças e adolescentes reclusos dentro de suas casas,
com famílias com necessidades específicas, sem condições de trabalho e até mesmo de
higiene, ocasionando questões físicas e psicológicas.
Os temas elencados pela Secretaria de Educação foram sugeridos justamente
pensando nas maiores demandas dos encaminhamentos citados, bem como nas situações
mais corriqueiras nas famílias dos adolescentes, sendo, neste primeiro momento: arranjos
familiares, saúde da adolescente (com enfoque na gravidez na adolescência), exploração
sexual, trabalho infantil, violência doméstica, saúde mental, álcool e outras drogas, racismo
e educação inclusiva. Estes temas provavelmente sofrerão alterações ao longo do Projeto, de
forma que continuem atualizados e atendendo às demandas dos próprios adolescentes.
Dentro destas, houve o aumento do número de violência doméstica, entre os pais e/ou
familiares dos adolescentes; aumento de necessidades básicas como saneamento,
alimentação, salubridade, e de fatores emocionais e psicológicos, causados pela reclusão e
redução da sociabilidade. Todas estas situações desaguaram nas escolas quando do retorno
das atividades escolares, gerando inúmeros atendimentos pela rede e o aumento da demanda
pelos serviços da rede.
Processo formativo: a construção de uma nova práxis
351

O Processo Formativo teve origem do encontro entre atores sociais no município de


Uberaba (Minas Gerais), que, dentro de cada perspectiva teórica e profissional viram a
oportunidade de atender a uma demanda histórica: a formação dos profissionais da educação
tendo em vista o impacto da pandemia de Covid-19 nas crianças e adolescentes da rede
pública de ensino.
Os idealizadores do Processo Formativo são a Secretaria de Educação do município
de Uberaba, a Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), a 14ª Subseção da OAB
(através da Comissão da Mulher Advogada) e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (através
do juízo da Infância e Juventude). O projeto consiste em oferecer capacitações mensais aos
profissionais que atuam direta ou indiretamente com adolescentes escolares na rede pública
municipal, com diversos temas. Estes são pré-estabelecidos em conjunto com a Secretaria
de Educação, denominado Calendário Social. Esse Calendário prevê a realização mensal de
uma palestra, proferida pelos atores da rede de proteção à criança e ao adolescente
(Secretaria de Educação, CRAS, CREAS, CAPSi, CAPSad, Saúde, FETI) ou outros
convidados. O público-alvo é composto por professores de referência do município
(atualmente 16), os participantes do Sistema de Garantia de Direitos e os estudantes das
escolas da rede municipal. Após a realização da palestra temática, proferida por
profissionais e/ou pesquisadores no tema do mês, os participantes ajustam uma data com os
professores de referência e se dirigem às escolas para desenvolverem a temática trabalhada.
E em forma de rodízio, que é organizado pela Secretaria de Educação, todas as escolas do
projeto são contempladas.
As escolas escolhidas integram uma política implementada pela Prefeitura
Municipal, que nomeou estes profissionais como sendo de referência para o acolhimento dos
estudantes e suas demandas; por serem escolas que realizam maiores encaminhamentos de
situações de violação dos direitos das crianças e adolescentes, especialmente de riscos e
vulnerabilidades. Este formato atenua a abordagem com os estudantes e concentra em um
profissional o acolhimento e o devido encaminhamento para os atores específicos da rede,
inclusive seguindo os fluxogramas existentes no município.
Inicialmente a proposta vinculou as atividades aos nonos anos das escolas, por ser o
último ano do Ensino Fundamental. Portanto, trata-se de um trabalho que é realizado com
alunos entre 14 (quatorze) e 16 (dezesseis) anos de idade, em escolas de diversos bairros da
cidade, com características heterogêneas. As imagens elaboradas pelos estudantes durante
as atividades do Processo Formativo no mês cujo tema fora Saúde Mental indicam suas
preocupações cotidianas e como estas os afetavam. Assim, a doença de um ente querido, a
violência doméstica, descoberta da sexualidade, formas e manifestações de preconceitos,
amizades, dentre outras.
352

Figura 1 – Saúde Mental


Fonte: Acervo dos autores (2022)

Figura 2 – Saúde Mental


Fonte: Acervo dos autores (2022)

A ideia é que com as atividades desenvolvidas dentro das escolas os estudantes


também possam participar da construção deste Calendário e dos futuros temas, de forma
democrática e participativa, sendo protagonistas deste projeto. E um detalhe relevante: ao
longo do tempo, todos aqueles estudantes passarão por este Processo Formativo.
Algumas dinâmicas realizadas em meses anteriores já trouxeram novos assuntos que
não estão inclusos no Calendário, mas que possuem importância e devem ser inseridos ao
longo do tempo.
353

A intersetorialidade como práxis pedagógica


Conceitualmente, a intersetorialidade remete à uma crítica ao modelo fragmentário e
episódico de atuar na questão social. Assim, atuar numa estratégia formativa de modo
intersetorial remete à superação da formação episódica e meramente bancária.
Esta interação com o profissional de referência, um/uma professor/a é de importância
ímpar, tendo em vista que este professor é capacitado mensalmente dentro do projeto, sendo
atualizado sobre os temas que atravessam e afetam o Adolescer. E ainda, é oportunizado
retirar dúvidas e entender melhor o trabalho oferecido pela Rede de Proteção e,
consequentemente, o tratamento que será dispensado ao aluno que estiver necessitando de
determinado atendimento.
Por estes motivos o trabalho intersetorial é relevante, de forma a aglutinar os anseios
dos setores, levando-se também em consideração os antagonismos tratados pela dialética.
Segundo Pereira (2008) a condição desta estratégia é entendida como instrumento de
otimização de saberes, competências, relações sinérgicas e prática social compartilhada,
devendo haver pesquisa, planejamento e avaliação para que sejam colocadas em prática de
maneira conjunta.
Esta perspectiva também pode ser analisada em conjunto com o que outros autores
trazem sobre o manejo de políticas públicas. Quando se fala em direitos de crianças e
adolescentes e em políticas públicas, percebe-se assuntos que possuem urgência e prioridade,
segundo a própria legislação impõe. E, a condução intersetorial no fazer política pública é
capaz de auxiliar na elaboração de diagnósticos mais precisos, de enfrentar os nós
estratégicos que criam os problemas e de auxiliar no planejamento, avaliação, análise e na
execução destas políticas.
Considerando o contexto do projeto e do trabalho realizado diretamente com a Rede
de proteção e com as crianças e adolescentes, busca-se informar ambos os lados sobre os
seus direitos e deveres, enquanto profissionais e detentores destes direitos, respectivamente,
além de mirar o nó estratégico das deficiências existentes na rede, especialmente no que
tange ao acesso, visto que muitos destes adolescentes não buscam, por si próprios, a proteção
pela violação de seus direitos e nem tampouco a família (em grande parte dos casos),
existindo um gargalo.
Esta visão de intersetorialidade, portanto, conversa também com autores como Matus
(1991) e Dagnino (2016), corroborando com a visão colaborativa entre os setores
administrativos e os trabalhos prestados à população. O primeiro traz uma versão de análise
de política interessante, com um formato de criação de fluxograma que envolve o problema
analisado, bem como os nós que precisam ser atacados, dentro de uma percepção de
governabilidade, que solucionem ou reduzam estes causadores. Já o segundo autor, traz uma
354

perspectiva de aposta ao jogo social, com uma característica de ser semicontrolado e com
futuros imprevisíveis. Todavia, traz possibilidades de estratégias para que seja possível.

Conclusões
O Processo Formativo tem evidenciado que a pandemia de Covid-19 não impactou
apenas o sistema de saúde, mas fragilizou as famílias e os adolescentes estudantes e,
sobretudo, deixou os profissionais da educação reféns quanto às melhores formas de intervir.
O diagnóstico para uma capacitação sob a forma de um Processo indica a relevância do
trabalho intersetorial e, sobretudo, a superação de ações formativas episódicas e
fragmentadas. E, em se tratando de adolescentes estudantes, que estes sejam estimulados a
agirem como atores sociais multiplicadores.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 ou. 1988. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28 de
novembro de 2022.
BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 28 de novembro de
2022.
DAGNINO, Renato, CAVALCANTI, Paula Arcoverde, COSTA, Greiner. Gestão
Estratégica Pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
MATUS, Carlos. O plano como aposta. 1991, v. 5, n. 4, p. 28-42, 1991.
PEREIRA, Potyara A. P. A intersetorialidade das políticas sociais numa perspectiva
dialética. Pereira PAP, organizador. Política social: temas e questões. São Paulo: Cortez, p.
1-22, 2008.
355

AS ESTRATÉGIAS DA SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO DE MINAS


GERAIS PARA A SITUAÇÃO DE PANDEMIA: Um estudo em duas escolas
públicas estaduais do município de Passos -MG

Fabiano Amorim Costa116


Regina Aparecida Leite de Camargo117

Introdução
A pandemia trouxe uma grande transformação nos hábitos da população brasileira
e do mundo. Ceifou a vida de milhares de pessoas pelo globo e impôs a adoção de novos
hábitos, além de exigir que as estratégias de gestão, pública e privada, fossem repensadas. O
primeiro caso de covid-19 foi registrado no Brasil em 26 de fevereiro de 2020 (BRASIL,
2020a). Em razão da rápida transmissão, da inexistência de vacina e de tratamentos eficazes
para combate ao vírus, a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a recomendar ações
de prevenção à contaminação tais como, lavagem das mãos, uso de máscaras faciais e
restrição de contato social. A adoção do distanciamento social como uma das principais
medidas de prevenção à contaminação pelo novo coronavírus, afetou o funcionamento de
universidades, escolas, transporte público, etc. (MALTA, 2020). Em nosso país, ocorreu o
fechamento temporário de diversos empreendimentos comerciais como restaurantes,
cinemas, teatros, etc.; aulas presenciais nas unidades de ensino infantil, fundamental, médio
e superior foram suspensas. Em alguns municípios brasileiros foi adotada a restrição total
da circulação de pessoas, prática que ficou conhecida como lockdown (BELO
HORIZONTE, 2020). Esse cenário exigiu o replanejamento das políticas públicas,
principalmente aquelas voltadas às áreas da saúde e da educação. As ações governamentais
tiveram que atender a novas demandas surgidas com a pandemia.
O presente estudo tem por objetivo realizar um levantamento das estratégias
adotadas pela Secretaria de Educação de Minas Gerais durante a situação de pandemia, a
partir de um estudo de campo realizado em duas escolas públicas estaduais situadas no
município de Passos, MG. O estudo configura-se como pesquisa exploratória, qualitativa e
quantitativa. Além do levantamento bibliográfico de artigos sobre a temática pesquisada, foi
realizado o levantamento da legislação relacionada às estratégias de enfrentamento dos
desdobramentos da pandemia nas escolas públicas de Minas Gerais, adotadas pelo poder
público, sobretudo a Resolução SEE Nº 4.310/2020 e a Lei Federal nº 13.987/2020. Além

116
UNESP. Mestrando em Planejamento e Análise de Políticas Pública. UNESP, campus de Franca. E-mail:
[email protected]
117
UNESP. Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas
Públicas. UNESP, campus de Franca. E-mail: [email protected]
356

disso, foi realizada uma verificação das plataformas digitais oferecidas pela Secretaria de
Estado de Educação de Minas Gerais (SEE-MG) como suporte para as escolas públicas
estaduais nas ações educativas no período da pandemia.
O estudo se deu a partir de uma pesquisa de campo realizada em duas das maiores
escolas estaduais da cidade de Passos, município situado na Mesoregião Sul e Sudoeste do
estado de Minas Gerais, com uma população de 115.337 habitantes e 164 anos de
emancipação (IBGE, 2021). O critério para a escolha das unidades de ensino foram o número
de matrículas (no mínimo 500 matrículas anuais cada escola) e que as instituições escolhidas
para o estudo possuíssem pelo menos 30 anos de fundação.
O passo seguinte foi a realização de uma pesquisa de campo. Foram entrevistados
61 alunos das duas escolas pesquisadas, sendo 29 estudantes da Escola Estadual Nossa
Senhora da Penha e 32 alunos da Escola Estadual Deus Universo e Virtude. As entrevistas
foram realizadas presencialmente, nas dependências das instituições escolares estudadas,
entre os dias 12/11/2021 e 13/12/2021 com os docentes e entre os dias 02/12/2021 e
09/12/2021 com os estudantes. Foram entrevistados 14 docentes das duas instituições de
ensino através de entrevistas semiestruturadas, pelas quais foi possível se verificar a
funcionalidade das plataformas digitais, o nível de dificuldade para seu uso e frequência de
utilização pelos professores. A etapa final da pesquisa consistiu na compilação e
interpretação dos resultados obtidos.

As escolas pesquisadas
EE Deus Universo e Virtude
A E.E. Deus Universo e Virtude, conforme consta no documento de seu projeto
político pedagógico (PPP), iniciou atendimento em 15/02/1965 e situa-se na Rua dos
Tapajós, 1984, no bairro Nossa Senhora Aparecida, CEP-37900524, periferia da cidade. Mas
a sua trajetória teve início no ano de 1962 quando a escola foi legalizada, conforme disposto
no artigo 29 da Lei nº 2610 de 08/01/1962 (Código do Ensino Primário). Com base no
Decreto nº 6932 de 16/04/1963 determina-se a instalação da Entidade Escola junto à loja
Maçônica Deus, Universo e Virtude, na Rua Sete de Setembro no centro de Passos. A partir
do dia 23 de setembro de 1968 assumiu a denominação de “Escolas Reunidas de Deus,
Universo e Virtude”. Apesar de seu endereço central, a instituição priorizava o atendimento
a estudantes em condições de vulnerabilidade social oriundos principalmente dos bairros
Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora das Graças. O distanciamento da escola dos
bairros dos alunos atendidos fazia com que a maioria das crianças frequentassem as aulas
em dias alternados. A partir do ano de 1984, a escola passou a contar com prédio próprio, no
atual endereço e recebeu a denominação de “Escola Estadual Deus, Universo e Virtude”
357

1.2.0.C.E. No ano de 1987 a instituição passou a atender alunos dos anos finais do Ensino
Fundamental, conforme previsto no Plano de Ofertas Educacionais e Resolução nº6050/86
MG. 14/02/87. Em 1992 houve a criação do Colegiado Escolar, importante instrumento de
atuação da comunidade na tomada de decisões estratégicas da escola. No ano de 2005 teve
início o atendimento a estudantes do Ensino Médio pela Portaria nº 61/05 MG. 15/01 (EE
DEUS UNIVERSO E VIRTUDE, 2019). A partir de 2020, com vistas ao atendimento das
necessidades da comunidade escolar, foi introduzido o Ensino Médio Integral.

A EE Nossa Senhora da Penha


Conforme o Projeto Político Pedagógico (PPP) da EE NS Penha (2019), no ano de
1970 ocorre a decisão de se fundar uma escola, ainda como anexo da Escola Estadual
Professora Júlia Kubistchek, mas localiza da no bairro da Penha. A ideia contou com o apoio
de membros da comunidade e o próximo passo foi buscar uma área para construção da
escola. O local obtido foi a antiga Praça do Cruzeiro, de propriedade da Paróquia Nossa
Senhora da Penha. Com a concordância do pároco da época, Monsenhor José Maria Mathias
da Silva, teve início a construção do anexo, com recursos da Caixa Escolar e mão de obra
fornecida pela prefeitura de Passos, do Departamento de Estradas e Rodagens (DER) e
voluntários residentes no bairro Penha, em forma de mutirão. Com o prédio parcialmente
construído (apenas as salas de aula estavam prontas), em 1972 a escola inicia suas operações.
Em março de 1974, mediante Decreto 16.139, o Anexo da Penha torna-se unidade
independente e escola de 1º grau. No ano seguinte, em abril de 1974, através do Decreto
16.205, a escola recebe a denominação de “Escola Estadual de 1º grau Nossa Senhora da
Penha” (EE NS Penha, 2019, p. 5). Em 1975, durante a gestão do professor Osmar
Gonçalves, as instalações do setor administrativo da escola foram concluídas, com o auxílio
da Prefeitura Municipal de Passos, que concedeu 2 servidores (um pedreiro e um servente),
por prazo indeterminado, para concluir a construção da escola. Em 1982 a escritura da área,
pertencente à Mitra Diocesana de Guaxupé, é transferida para o Estado. No ano de 1994,
quando a Escola da Penha comemorava seu 20º aniversário, foi implantado o Ensino Médio
(2º grau), uma reivindicação bastante almejada pela comunidade escolar (EE NS Penha,
2019, p. 6).

A escolha das escolas pesquisadas


Para a pesquisa de campo, optou-se pela escolha de uma escola localizada em
região central e outra unidade escolar situada em região periférica; uma instituição escolar
que atendesse exclusivamente estudantes no ensino regular e outra instituição que ofertasse
ensino em tempo integral e, ainda, que ambas ofertassem ensino médio. Em vista disso, as
358

instituições escolares escolhidas para o presente estudo foram a Escola Estadual Deus
Universo e Virtude, localizada no Bairro Nossa Senhora Aparecida, região periférica do
município, que atende estudantes do Ensino Médio em Tempo Integral e a Escola Estadual
Nossa Senhora da Penha, localizada no bairro Penha, região central da cidade, que atende
exclusivamente alunos no ensino regular.

As estratégias adotadas pelo poder público durante a pandemia


A pandemia do covid-19 exigiu a realização de reajustes nos planejamentos
referentes à educação. Em Minas Gerais, a SEE-MG implantou o Regime Especial de
Atividades Não Presenciais (REANP) como forma de sistematizar suas ações no período de
pandemia. Um dos principais documentos que tratam do tema é a resolução SEE/MG Nº
4310/2020. Em seu artigo 1º ela se propõe a:
Regulamentar, no âmbito das Escolas da Rede Estadual de Ensino de Minas
Gerais, as normas para a oferta de Regime Especial de Atividades Não
Presenciais, nas Escolas Estaduais da Rede Pública de Educação Básica e
de Educação Profissional, durante o período de emergência e de
implementação das medidas de prevenção ao contágio e enfrentamento da
pandemia de doença infecciosa viral respiratória causada pelo agente
Coronavírus (COVID-19), para cumprimento da carga horária mínima
exigida. (MINAS GERAIS, 2020).

Em um contexto marcado por tantas dúvidas, a interrupção das rotinas cotidianas


de caráter presencial como maneira de prevenção da contaminação pela Covid-19, o REANP
foi adotado como estratégia para reduzir os enormes prejuízos no aprendizado e possibilitar
a promoção dos alunos para as séries subsequentes, computando notas e carga horária a fim
de permitir a continuidade do percurso escolar dos discentes, como pode ser verificado ainda
no artigo 1º da mesma resolução:
O Regime Especial de Atividades Não Presenciais, estabelecido por esta
Resolução, constitui-se de procedimentos específicos, meios e formas de
organização das atividades escolares obrigatórias destinadas ao
cumprimento das horas letivas legalmente estabelecidas, à garantia das
aprendizagens dos estudantes e ao cumprimento das Propostas Pedagógicas,
nos níveis e modalidades de Ensino ofertados pelas escolas estaduais.
(MINAS GERAIS, 2020).

A realização da reestruturação do calendário escolar foi necessária a fim de tornar


possível a ininterrupção das rotinas pedagógicas. Optou-se, naquele momento, pela
implementação do ensino remoto para mitigar os danos nas aprendizagens originados pela
crise gerada pela pandemia e para não interromper a trajetória escolar dos estudantes, como
pode ser constatado no artigo 2º da resolução supramencionada:

As Escolas Estaduais, observando o disposto nesta Resolução, deverão


reorganizar seus Calendários Escolares, compreendendo a realização de
359

atividades escolares não presenciais, para minimizar as perdas aos


estudantes em razão da suspensão das atividades escolares presenciais,
conforme Deliberação nº 18, de 22 de março de 2020, do Comitê
Extraordinário COVID-19, assegurando-se:
I - o cumprimento da carga horária mínima obrigatória;
II - o alcance dos objetivos educacionais de ensino e aprendizagem
previstos em sua Proposta Pedagógica, com qualidade, para o Ensino
Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional ofertado, até o final do
período letivo. (MINAS GERAIS, 2020).

Apesar das diferentes iniciativas com a finalidade de mitigar os efeitos da situação


de pandemia no sistema escolar, houve grandes danos educacionais. Segundo Costa e Wiziak
(2021, p. 9), a rede mundial de computadores e os espaços virtuais passaram a ser a principal
forma de comunicação com os estudantes, adotada pela maioria das secretarias estaduais de
educação do Brasil. A internet perdeu o posto de aparato de suporte e passou a assumir um
papel de destaque dentro dos planejamentos públicos educacionais durante a pandemia, a
fim de garantir o acesso à educação e a promoção da escolaridade. Ainda conforme Costa e
Wiziak (2021, p. 9), “Na modalidade remota de ensino, além das aulas síncronas e
assíncronas, foram adotados outros instrumentos de auxílio pedagógico como programas
pela TV, rádio e material impresso”. No estado de Minas, foi elaborado um material de
suporte, o “Plano de Estudo Tutorado” (PET) pela Secretaria de Estado de Educação,
disponibilizado pelo aplicativo “Conexão Escola” ou pelo site
“estudeemcasa.educacao.mg.gov.br” (AGÊNCIA MINAS, 2021). Essa nova configuração
dos sistemas escolares implementada durante a pandemia, com a internet assumindo papel
principal nas estratégias escolares da rede pública, evidenciou grandes diferenças em se
tratando do acesso aos recursos digitais para a participação nas aulas remotas.
A situação de pandemia revelou assimetrias nas condições de acesso à rede mundial
de computadores nos lares do Brasil. De acordo com dados do Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), no ano de 2019 foram
identificados 134 milhões de utilizadores de internet no Brasil, o que contabiliza cerca de
74% dos cidadãos acima de 10 anos (CETIC, 2019, p.3). Conforme a mesma pesquisa, em
cerca de 46% das residências brasileiras havia computador, mas, mesmo assim, os aparelhos
celulares smartphone eram a principal ferramenta para se acessar a internet em praticamente
todas as regiões do Brasil, com uma variação de 79% no Sul do país, a 90% no norte
brasileiro (COSTA e WIZIAK, 2021, p. 9). Em um número expressivo de domicílios não
havia computadores para o acompanhamento das aulas remotas. A maior parte dos
estudantes usavam aparelhos celulares para acesso aos conteúdos escolares, mas uma
quantidade significativa de estudantes não dispunha de internet rápida para o uso escolar.
Com a finalidade de reduzir as defasagens no aprendizado, de acordo com a Agenda
Minas (2021, p. 1), para os alunos que não dispunham de internet em seus lares, o material
360

didático “Planos de Estudos Tutorados (PET)” e as tarefas de complemento elaboradas pelos


docentes, passaram a ser disponibilizados pela SEE-MG de forma impressa, bimestralmente,
com entrega à domicílio através de serviço de moto-frete ou a retirada do material pelos
estudantes nas suas respectivas unidades escolares. A carga horária era aferida através da
realização das atividades propostas dos PETs que os estudantes apresentavam virtualmente
por meio do aplicativo “Conexão Escola 2.0” ou pelo WhatsApp, ou ainda de forma
impressa, entregando o material nas próprias escolas (AGÊNCIA MINAS, 2021, p. 1).
A Lei Federal nº 13.987/2020, em seu artigo 21, permitiu:
(...) autorizar, em caráter excepcional, durante o período de suspensão das
aulas em razão de situação de emergência ou calamidade pública, a
distribuição de gêneros alimentícios adquiridos ou a serem adquiridos com
recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) aos pais
ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica. Ou
seja, visa tanto à distribuição do que já existe em estoque quanto do que vier
a ser adquirido, enquanto durar o período de suspensão de aulas em virtude
do estado de emergência. (BRASIL, 2020b).
A lei nº 13.987 autorizou as unidades escolares públicas a realizarem a aquisição e
entrega de kits alimentares, que foram distribuídos para as famílias dos alunos matriculados
em cada escola. Tal medida tinha por objetivo reduzir os efeitos da situação de pandemia
sobre os núcleos familiares dos estudantes combatendo o risco de insegurança alimentar.
Visava também estreitar o vínculo dos alunos com suas escolas.
Com o ensino remoto, a estratégia didática adotada durante o período da pandemia
do Covid-19, os recursos digitais passaram a ter uma posição de destaque como ferramenta
de suporte aos processos educativos. Até então, tais recursos consistiam em mera ferramenta
para enriquecer as aulas presenciais, mas passaram a ter um papel protagonista na dura tarefa
de garantir a participação dos discentes nas aulas remotas.

Dados da pesquisa de campo


Entre os docentes consultados das escolas EE Deus Universo e Virtude e EE Nossa
Senhora da Penha, 71,43% deles responderam ter interesse em utilizar os recursos digitais
oferecidos pela SEE-MG (Sites, plataformas virtuais e aplicativos) na prática educativa.
Num mesmo sentido, 64,29% dos professores respondentes afirmaram crer que os recursos
virtuais disponibilizados pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (Portais
Trilha do Saber, Escola de Formação e Escola Interativa) contribuem para melhorar sua
prática educativa, o que confirma a relevância dos recursos digitais nos processos
educativos, sobretudo no período da pandemia. A pesquisa de campo apontou que os
professores reconhecem a relevância das ferramentas digitais. Mas revelou também que
40,98% dos alunos respondentes não possuíam acesso a internet rápida, computadores ou
aparelhos celulares em suas casas, que permitissem a eles o acesso ao conteúdo das aulas
361

remotas ou aos aplicativos e plataformas virtuais de suporte ao ensino à distância. O estudo


revelou que entre os professores consultados, 14,29% deles não dispunham das ferramentas
digitais necessárias para a prática educativa pelo sistema remoto.

Conclusões
Iniciativas como a impressão de material didático dos PETs e sua entrega aos
discentes podem ter mitigado as defasagens causadas pela situação de pandemia. Mas os
dados obtidos através da pesquisa de campo sinalizam que as dificuldades quanto ao acesso
aos recursos digitais (computadores, aparelhos smartphones e internet rápida) ainda foram
obstáculos encontrados por um número relevante de alunos (40,98% dos estudantes
consultados) nas duas escolas pesquisadas. Entre os docentes das duas instituições de ensino,
os resultados da pesquisa apontaram para um índice relativamente baixo de docentes que
não possuíam as ferramentas necessárias para se trabalhar com as aulas online em seus lares
(14,29%), mas ainda indica limitações no alcance da proposta da Secretaria de Educação de
Minas Gerais. Tais informações sugerem que esses obstáculos podem ter diminuído a
eficiência e o alcance do planejamento da SEE-MG para o enfrentamento da pandemia.

Referências
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PETs. Secretaria-Geral. Belo Horizonte, 2021. Disponível em:
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garantir-aprendizado-com-os-pets. Acesso em 28 jun. 2022.
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2020. Declara situação anormal, caracterizada como Situação de Emergência em Saúde
Pública, no Município de Belo Horizonte em razão da necessidade de ações para conter a
propagação de infecção viral, bem como de preservar a saúde da população contra o
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(MG); 2020 mar 17 [citado 2020 jun 6];26(5976):extra. Disponível
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Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.987-de-7-de-abril-de-2020-
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durante o período da Pandemia do Covid-19. Notas de Trabalho, nº 8. Franca, 2021.
Disponível em: https://www.franca.unesp.br/Home/ensino/pos-
graduacao/planejamentoeanalisedepoliticaspublicas/lap/2020-fabiano-stella_notas-8.pdf.
Acesso em 23 jun. 2022.
362

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Regime Especial de Atividades Não Presenciais, e institui o Regime Especial de
Teletrabalho nas Escolas Estaduais da Rede Pública de Educação Básica e de Educação
Profissional, em decorrência da pandemia Coronavírus (COVID-19), para cumprimento da
carga horária mínima exigida. Disponível em:
https://www2.educacao.mg.gov.br/images/documentos/Resolucao%20SEE_N__4310.pdf.
Acesso em 02 nov. 2022.
MINAS GERAIS. Plano de Estudos Tutorados. Belo Horizonte, 2022. Disponível em:
https://estudeemcasa.educacao.mg.gov.br/pets_ocultoeleicao/pet-ensino-m%C3%A9dio-
2022-oculto. Acesso em: 02 nov. 2022.
MALTA, Deborah Carvalho et al . A pandemia da COVID-19 e as mudanças no estilo de
vida dos brasileiros adultos: um estudo transversal, 2020. Epidemiologia e Serviço de Saúde,
Brasília, v. 29, n. 4, e2020407, set. 2020 . Disponível em:
http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-
49742020000400025&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 29 nov. 2022.
363

OS IMPACTOS DA BNCC E A EDUCAÇÃO DO CAMPO A PARTIR DA


PERSPECTIVA DO MST: ALGUMAS REFLEXÕES

Wanessa Alves Carvalho118


Introdução
Nos últimos anos houve uma efervescência de discussões a respeito de um currículo
comum que norteasse as práticas pedagógicas em toda educação básica. Mas ao pensarmos
a educação básica, não podemos deixar de lado a gigantesca diversidade que há em todo
nosso território. Diversidade cultural, de classe, de infraestruturas, e outros, mas também de
compreensão da finalidade da educação. Para alguns grupos de interesse, por exemplo, o
processo educativo deve resultar apenas na inserção ao mercado de trabalho, enquanto para
muitas famílias do campesinato brasileiro, a educação está intrínseca aos seus processos de
luta e resistência.
Logo, ao refletir sobre questões educacionais, encontra-se uma enorme
complexidade, pois são muitos interesses econômicos, sociais, culturais e políticos que
influenciam em suas determinações. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não ficou
imune a isso, muito pelo contrário. Além de ter sido criada em um contexto político bastante
conturbado, a BNCC é resultado da pressão de grupos financeiros e industriais.
Dessa forma, esse texto levanta algumas reflexões sobre esses conflitos de
interesses expressos na BNCC ao que tange a educação do campo. Como a educação do
campo é resultado das lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o
objetivo é analisar como a BNCC se relaciona com as demandas educacionais dos povos do
campo, a partir da visão de educação defendida pelo MST.
O MST foi criado formalmente em 1984 e traz como seu principal objetivo não só a
reforma agrária, mas uma sociedade mais justa, sem explorados, nem exploradores
(CALDART, 2001). Hoje está organizado em 24 estados, através de mais de 450 mil famílias
(MST, 2022). Devido à proporção que o movimento foi tomando, sua organização foi
ficando cada vez mais estruturada. Criaram setores de trabalho, e um dos principais pilares
é o da educação. Para o MST, a educação é o meio de valorização dos saberes, vivências, e
da cultura dos camponeses. Em 1986, o caderno de formação nº 1 é lançado com definições
de como se dá a organização do movimento, histórico, etc. 10 anos depois, o Movimento

118
Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências humanas e Sociais.
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas.
[email protected]
364

criou o seu 8º caderno de educação, dessa vez, voltado totalmente para os seus princípios
educacionais119.
Sendo assim, a metodologia aqui utilizada é a de análise documental da BNCC a
partir da perspectiva que o caderno nº8 apresenta. Para essa análise, foi realizada uma
comparação entre conceitos, objetivos, princípios e outros termos chaves entre os dois
documentos, para que fosse possível mapear possíveis semelhanças e diferenças.

A BNCC e suas origens


A necessidade de uma base comum já estava prevista na Constituição de 1988, foi
reforçada pela Lei de Diretrizes e Bases – LDB 9.934/96, mas só começou a tomar forma
pós se tornar meta no Plano Nacional de Educação – PNE em 2014. Esse caminho percorrido
desde o período de redemocratização até os dias atuais foi marcado por muitos conflitos.
Os cenários políticos, econômicos e sociais estão constantemente sob disputas, em
que o empresariado busca cada vez mais o controle do aparelho estatal. Em tempos em que
o mercado se sente incomodado pelas políticas sociais, o histórico de luta por uma educação
de qualidade para todos não escaparia. Com a gratuidade e universalidade da educação
trazida pela Constituição, a necessidade de ações para resolver problemas que se tornaram
mais comuns como o abandono e a distorção de idade passou a ser maior. Em 2006 surge
uma organização intitulada Todos Pela Educação (TPE), que salvaguardada as ironias, se
apresenta com o objetivo de “mudar pra valer a qualidade da Educação Básica no Brasil” e
sem fins lucrativos (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2022). Assim como também o
apartidarismo e o financiamento por recursos próprios, contando com as doações de grupos
empresariais: Grupo Itaú, Gerdau, Pão de Açúcar, e outros parceiros, como Fundação
Roberto Marinho, Fundação Lemann, entre outros.
De acordo com Martins e Krawczyk (2018), devido à hegemonia desses grupos, o
TPE passou a ter bastante influência, e a liderar politicamente e economicamente as políticas
educacionais. Em torno de questionamentos sobre os índices de reprovação e baixo
desempenho em exames internacionais, o TPE fortalece a justificativa para suas iniciativas.
Mas todos esses argumentos representam nada mais que um projeto de classe. Pois, mais do
que privatizar diretamente as escolas públicas em massa, é muito mais eficiente estar à frente
das políticas, em que é possível otimizar ou excluir etapas e tomar decisões de acordo com
seus próprios interesses. Mas para Peroni, Caetano e Arelaro (2019), que se o processo

119
O primeiro caderno de educação foi criado em 1992: Como Fazer a Escola que Queremos, nos anos
posteriores outros cadernos foram criados, como o caderno nº 2 específico para alfabetização, os cadernos nº
3, 4 e 5 voltados para a Educação de Jovens e Adultos, o 6º com foco no planejamento, o 7º para jogos e
brincadeiras e outros.
365

decisório não está nas mãos das instituições públicas, pois as definições e o monitoramente
estão com as instituições privadas, isso também é um processo de privatização das escolas.
Ainda para Peroni, Caetano e Arelaro (2019), todo esse processo faz parte do
contexto neoliberal e neoconservador120, pois o neoliberalismo afirma uma crise no Estado,
transferindo o poder público para o mercado. Até mesmo o que continua nas mãos do Estado,
sucumbe à lógica empresarial. Tal lógica é bastante visível na BNCC. Na Base, o foco apenas
na inserção no mercado de trabalho, a grande valorização no resultado – gestão do resultado,
as avaliações numéricas, a culpabilização do professor, o agir como consumidores por parte
dos pais, tudo isso mostra a racionalidade do mundo empresarial sendo incorporado dentro
das escolas (MARTINS E KRAWCZYK, 2018). O que confirma isso para Peroni, Caetano
e Arelaro foi o modo em que a política foi aprovada: “a aprovação de uma política pública
de forma antidemocrática, sem transparência e sem ampla discussão com a sociedade
brasileira revela o modus operandi dos sujeitos individuais e coletivos que fazem parte”
(2019, p. 43).
Além das gestões escolares, é necessário lembrar que a BNCC impacta diretamente
na produção de materiais didáticos, que possibilita a difusão da ideologia que quer, sem
contar a própria questão comercial dessa produção, assim como novas outras possibilidades
comerciai, como os sistemas de monitoramento e avaliação, que também é um mercado
bastante lucrativo. Apesar do Movimento Todos Pela Educação ter sido um grande influente
na aprovação da BNCC, não foi o único, diversas outras instituições desse meio
mercadológico compraram a ideia.
Ou seja, a BNCC, assim como todas as outras políticas, é resultado dos arranjos
e pressões dos atores envolvidos. É de extrema importância avalias os interesses por trás das
ações, para que seja possível visualizar o resultado que se espera. As origens da BNCC estão
pautadas em grupos que precisam manter suas posições de poder dentro de um sistema
capitalista em funcionamento. O objetivo não é uma educação de qualidade com foco numa
sociedade mais justa e igualitária, mas sim, manter e intensificar as diferenças entre as
classes.

Educação do campo e suas origens


A educação do campo tem os movimentos sociais camponeses como principais
atores, pois está totalmente associada ao destino das lutas dos trabalhadores rurais
(CALDART, 2009). Souza (2008) também afirma que a educação do campo é fruto das
reivindicações do MST, assim como Fernandes (2000). Para o MST não basta a conquista

120
Os autores justificam, a partir de Harvey, que existem pontos semelhantes entre neoliberalismo e
neoconservadorismo, como a restauração do poder de classe e a governança pela elite.
366

pela terra, pois precisa ter uma educação que possibilite a libertação e a autonomia do
trabalhador rural. A partir da pressão do MST, da academia e de outros atores, a necessidade
de uma educação específica para aquele que trabalha no campo tem se tornado cada vez mais
presente nas discussões.
Os princípios da educação do campo se dão em torno da garantia de uma educação
de qualidade para todos os povos do campo; da formação humana dos indivíduos para o
desenvolvimento sustentável; respeito às características do campo; respeito ás organizações
e conhecimento por elas produzido e que aconteça no campo (SOUZA, 2008). Portanto, a
educação do campo valoriza as lutas dos movimentos sociais, enfatizando a importância de
uma educação pública que valorize as especificidades, a identidade e a cultura de cada
comunidade. Caldart (2004) salienta que a educação do campo vai da educação infantil até
a universidade, mas também que não acontece apenas dentro das escolas, compreendendo
um conjunto de processos formativos que ocorre em diversos espaços e com diferentes
práticas.
De acordo com Neto (2012), nos anos 1990 surge o movimento “Por uma Educação
do Campo”, em que partia do princípio que o homem do campo é diferente do urbano, ou
seja, tem necessidades específicas. Logo, a escola do campo deveria ser diferente da urbana.
Tal movimento nasce das discussões das demandas do MST:
Quando a organização dos ST cria em sua estrutura um setor de educação,
deixa para trás a concepção ingênua de que a luta pela terra é apenas pela
conquista de um pedaço de chão para produzir. Fica claro que está em jogo
a questão mais ampla da cidadania do trabalhador rural sem terra, que entre
tantas coisas inclui também o direito à educação e à escola [...] Trata-se da
revisão das formas tradicionais de fazer, de pensar e de dizer a educação
do povo, demonstrando na prática quem pode e deve ser o sujeito das
mudanças fundamentais para a nossa educação. (MST, 2005, p. 11).

De maneira bastante antagônica do que foi mostrado anteriormente, a origem da


educação do campo parte de movimentos sociais que lutam por uma sociedade igualitária,
começando pelo acesso democrático da terra, em que todos possam ter um espaço para
trabalhar, produzir, conservar e valorizar seus saberes, passando pelo acesso à uma educação
que liberte e possibilite a transgressão de um sistema socioeconômico tão violento e
excludente.

A BNCC e a educação do campo


A BNCC é um documento normativo e norteador para toda a educação básica,
englobando desde a educação infantil até o ensino médio. Nela consta os marcos legais, os
fundamentos pedagógicos, as habilidades que devem ser trabalhadas e as competências
gerais e específicas. O caderno de educação nº 8 do MST também é um norte para as ações
367

educativas do movimento – assim como os outros cadernos. O caderno divide seus princípios
em dois grupos: os filosóficos e os pedagógicos. Os filosóficos estão ligados às concepções
relacionadas à pessoa humana e à sociedade. Já os pedagógicos são as formas de fazer e
pensar a educação, para que os princípios filosóficos sejam alcançados (MST, 1996).
São 5 princípios filosóficos: (1) educação para transformação social; (2) educação
para o trabalho e a cooperação; (3) educação voltada para as várias dimensões da pessoa
humana; (4) Educação com/para valores humanistas e socialistas e (5) Educação como um
processo permanente de formação/transformação humana. E 13 princípios pedagógicos: (1)
relação entre prática e teoria; (2) combinação metodológica entre processos de ensino e
capacitação; (3) a realidade como base da produção de conhecimento; (4) conteúdos
formativos socialmente úteis; (5) educação para o trabalho e pelo trabalho; (6) vínculo
orgânico entre processos educativos e processos políticos; (7) vínculo orgânico entre
processos educativos e processos econômicos; (8) vínculo orgânico entre educação e cultura;
(9) gestão democrática; (10) auto-orgânica dos/das estudantes; (11) criação de coletivos
pedagógicos e formação permanente dos educadores; (12) atitude e habilidade de pesquisa;
e (13) combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais. São esses os
princípios que aqui são colocados em contraponto com a BNCC.
A Base reafirma o tempo todo a aprendizagem por competências, o que aproxima
muito das propostas de Tyler que tem a eficiência e a racionalidade como centro do processo
(ZWIRTES E MARTINS, 2020), trazendo a lógica empresarial para a prática educacional.
Que fica oposto ao primeiro princípio filosófico do caderno de educação, que coloca a
educação voltada para transformação social e não só para o mercado.
(...) o documento propõe que o sujeito esteja habilitado para o mercado de
trabalho, dentro das suas limitações e possibilidades. Ou seja, é necessário
que o aluno reconheça o mundo do trabalho tal como está colocado, sem
possibilidades de mudança e, a partir de experiências, reconheça-se e
reconheça a posição que ocupa nesse modo de organização, de maneira
passiva. (ZWIRTES E MARTINS, 2020, p. 41).

Enquanto no primeiro princípio do caderno, o MST define que a educação deve ter
um: “um processo pedagógico que se assume como político, ou seja, que se vincula
organicamente com os processos que visam a transformação da sociedade atual, e a
construção, desde já, de uma nova ordem social” (MST, 1996, p. 6). Não obstante, o segundo
princípio fala sobre a relação escola e trabalho. Mas traz outra perspectiva para essa relação,
onde a cooperação e a melhoria de vida das famílias camponesas é o principal objetivo, e
não as demandas do capital. Assim como o terceiro princípio, em que a educação deve ser
voltada para várias dimensões humanas, como a formação político-ideológica, a formação
368

da moral, formação organizativa, formação técnico profissional, cultural, estética, afetiva e


outros.
Ao padronizar uma série de práticas, a BNCC desconsidera um dos princípios
fundamentais da educação do campo, que é o respeito pela diversidade e especificidades de
cada comunidade. Apesar de trazer linhas gerais de trabalho nas escolas do movimento, as
instruções para que cada comunidade preserve e valorize seus saberes, suas necessidades e
potencialidades são bastante explícitas:
Embora fazendo parte de uma mesma trajetória geral de luta, cada Assentamento
ou Acampamento tem uma história própria, com singularidades que dizem
respeito a momentos e circunstâncias conjunturais e às próprias diversidades das
características de cada grupo e de cada local. A discussão sobre a escola
necessariamente, assume esta singularidade. (MST, 2005, p. 12)

Assim como é reiterado no terceiro princípio pedagógico: A realidade como base


de produção do conhecimento. Trabalhar com a realidade que a pessoa está inserida leva a
produção de conhecimento, que segundo o quarto princípio pedagógico, são conhecimentos
socialmente úteis.
Em 600 páginas, o documento vai delineando as habilidades, ou seja, o que deverá
ser trabalhado em cada série. Apenas uma menção é feita à educação do campo: “Essas
decisões precisam, igualmente, ser consideradas na organização de currículos e propostas
adequados às diferentes modalidades de ensino (Educação Especial, Educação de Jovens e
Adultos, Educação do Campo...” (BRASIL, 2017, p. 19). Nessa única menção, afirma-se a
necessidade de adequar o currículo da Educação do Campo à BNCC.
Ao não detalhar e aprofundar nas questões da educação do campo, aqui entendemos
que esse não é um mero detalhe, mas sim escolhas feitas considerando o significado da
educação do campo e seu histórico de lutas. Há abordagens dentro do campo das políticas
públicas que consideram que a escolha de não fazer algo também é tomar uma decisão.
Secchi (2012) aponta que, a partir principalmente de Dye, começa a ser difundida a ideia de
que a omissão sobre um problema também pode ser considerado uma política pública. Logo,
aqui entendemos que a posição dessa política é não considerar todas as demandas
educacionais dessa população, já que ela não está inclusa nos grupos de interesses que estão
no poder, e por ter ideologias opostas.

Conclusões
Esse trabalho teve como intenção levantar apenas algumas discussões sobre essa
relação entre BNCC e Educação do Campo. A finalidade aqui não foi abranger todos os
pontos possíveis de discussão e muito menos esgotar as possibilidades, mas refletir um
pouco os pontos antagônicos de origem dos dois objetos (BNCC e Educação do Campo),
fazendo com que a compreensão da finalidade de educação seja tão diferente em cada um.
369

É possível notar que enquanto de um lado há um movimento que busca enquadrar


cada vez mais os processos educacionais nos moldes empresariais, de outro temos um
movimento que busca transgredir com os padrões exigidos pelo capital. De um lado temos a
pedagogia das competências, a gestão dos resultados, as avaliações em larga escala, a
padronização dos materiais didáticos dentro da lógica neoliberal e neoconservadora como
base central, de outro uma pedagogia libertadora, emancipadora, dialógica, não-hegemônica
e trabalha a partir da realidade.
O objetivo do trabalho foi analisar como a BNCC se relaciona com as demandas dos
povos do campo, foi possível perceber com são opostas as formas de tratamento e
entendimento das práticas. São inúmeros pontos de diferença, que partem exatamente dos
objetivos dos grupos por trás de cada um. Que a BNCC impactará em toda a educação básica,
e a educação do campo não será imune, é certo. Qual o tamanho desse impacto ainda não há
como mensurar. Mas os movimentos camponeses sempre sofreram bastante repressão e
mesmo assim atingiram diversas conquistas. Dessa forma, espera-se ainda um longo
caminho de disputa e luta nessa modalidade de educação.

Referências

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370

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Aproximações do currículo com a proposta de Tyler e a Pedagogia das Competências.
Ensino & Pesquisa, 2020.
371

AVALIAÇÃO DA QUALIDADE DO ATENDIMENTO DA CRECHE: análise


de um grupo de profissionais de uma creche de Ribeirão Preto (SP)

Ariane Rodrigues de Lima Hirosse121


Tatiana Noronha de Souza122

Introdução
A história das instituições de atendimento às crianças bem pequenas (de zero a três
anos de idade) no Brasil é marcada pelo assistencialismo, com vistas aos cuidados de higiene,
alimentação e de segurança física, onde não havia preocupação com um trabalho voltado
para a educação e o desenvolvimento intelectual dessas crianças (OLIVEIRA, 1988). Em
1988, principalmente após o movimento das mães trabalhadoras que reivindicaram o direito
de ter onde deixar seus filhos, a Constituição Federal reconheceu a educação infantil como
primeira etapa da educação básica e como um direito de todas as crianças, com matrícula
facultativa na faixa etária de creche.
A partir deste cenário, há então um aumento significativo no número de creches, com
significativo aumento de vagas, sem que fossem levados em consideração critérios básicos
de qualidade de atendimento. Com base nisso, ao longo dos anos, o Ministério da Educação
– MEC publicou diversos documentos e leis orientadoras da política nacional para a
qualidade do atendimento na primeira infância (creches e pré-escolas), como os “Parâmetros
Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil” (2006 – 3 volumes, revisado e atualizado
em 2018), os “Indicadores da Qualidade na Educação Infantil” (2009), os “Critérios para
um Atendimento em Creches que respeite os Direitos Fundamentais das Crianças” (2009),
as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil” (2010), entre outros. Esses
documentos e legislações corroboraram para que se mantivesse um debate acerca da
qualidade deste atendimento dentro desses estabelecimentos, admitindo que, apesar da
qualidade se tratar de um conceito negociado e intimamente ligado ao tempo e espaço que
se discute, é possível traçar indicadores básicos que sirvam de referência para todas as
instituições do país.
De fato, nesses documentos, os direitos das crianças são balizadores de um
atendimento de qualidade, a exemplo do que é citado nos “Critérios para um Atendimento
que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças” (BRASIL, 2009a), que define que a

121
Professora de educação infantil e Mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas, Universidade
Estadual Paulista (UNESP), [email protected]
122
Doutorado em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista (UNESP), [email protected]
372

criança deve ter direito à brincadeira, à atenção individual, a um ambiente aconchegante,


seguro e estimulante, ao contato com a natureza, a saúde, proteção e higiene básica, a
alimentação saudável, a desenvolver a sua criatividade e imaginação, a se expressar, ao
movimento em espaços amplos, ao afeto e amizade, a atenção especial durante sua
adaptação na instituição, a desenvolver sua identidade cultural, religiosa e racial. Existe,
também, uma preocupação com indicadores mínimos relacionados a várias outras
dimensões, como a infraestrutura das creches, os materiais e mobiliários, as condições de
trabalho e formação continuada dos profissionais da educação, o planejamento institucional,
as experiências e interações, a rede de proteção social e o relacionamento com as famílias e
comunidade (BRASIL, 2009b).
Os “Indicadores da Qualidade na Educação Infantil” (2009) foram criados com base
nos “Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil” (2006), para servir de
apoio às equipes escolares nas suas avaliações institucionais, como forma de se fazer um
diagnóstico acerca da qualidade do atendimento que está sendo oferecido às crianças. Aqui
avaliação é entendida como um processo autoavaliativo, ou seja, realizada sem intervenção
externa de secretarias de educação ou até mesmo de diretrizes federais, porém respeitando a
legislação e os documentos normativos. Porém, com a participação indispensável das
famílias e da comunidade, que fazem parte das instituições tanto quanto os profissionais que
nelas atuam e, quando possível, com a participação também das crianças atendidas.
A autoavaliação ou avaliação institucional é ferramenta indispensável na busca da
qualidade do atendimento das creches, à medida que permite um diagnóstico dos possíveis
problemas que interferem nessa qualidade e, a partir daí, traçar metas e elaborar estratégias
para superá-los. O documento que prevê essa autoavaliação nas instituições é chamado de
Projeto Político-Pedagógico (PPP) que, construído de forma coletiva e democrática, reflete
a realidade da escola e clarifica a ação educativa (VEIGA, 1988). Como afirma Veiga (1988,
p. 12), o PPP “aponta um rumo, uma direção, um sentido explícito para um compromisso
estabelecido coletivamente” e “preocupa-se em instaurar uma forma de organização do
trabalho pedagógico que desvele os conflitos” permitindo um ambiente mais harmonioso e
consequentemente mais qualificado.
Por ser necessário e urgente entendermos como as creches discutem sobre a
qualidade do atendimento que oferecem, esta pesquisa, ainda em andamento, trata de
investigar um processo de autoavaliação da qualidade do atendimento realizada por um
grupo de profissionais de uma creche municipal da cidade de Ribeirão Preto, interior de São
Paulo. As docentes responderam a um roteiro de entrevistas semiestruturadas dividido em
duas partes: 1ª) caracterização geral e 2ª) questões ligadas ao funcionamento e avaliação
(com perguntas referentes ao PPP da instituição e sua relação com a qualidade do
373

atendimento). Além disso, o grupo adotou como instrumento de autoavaliação da qualidade


o documento “Indicadores da Qualidade na Educação Infantil Paulistana” (SÃO PAULO,
2016), que está sendo utilizado em encontros de discussão coletiva, via google meet, onde
se debate e se reflete acerca dos indicadores, paralelamente a sua utilização para a
autovaliação. A estreita relação entre Projeto Político – Pedagógico, autoavaliação e
qualidade do atendimento, bem como alguns itens dos resultados parciais da pesquisa são o
tema da discussão a seguir.

A relação entre Projeto Político-Pedagógico, autoavaliaçõa e qualidade do


atendimento

Em 29 de junho de 2018 foi sancionado no Brasil o Decreto nº 9.432, que


regulamenta a Política Nacional de Avaliação e Exames da Educação Básica e, apesar de
incluir a Educação Infantil e citá-la em seu artigo 5º como integrante do Sistema de
Avaliação da Educação Básica – Saeb, não a menciona em nenhum outro artigo, nem faz
referência à palavra “creche” em seu texto. Assim, podemos dizer que não existe no país
uma sistemática de avaliação da/na Educação Infantil normatizada legalmente até a
finalização deste artigo (dez./2022).
Entretanto, em 2012 o MEC publicou o documento “EDUCAÇÃO INFANTIL:
subsídios para uma sistemática de avaliação”, produzido por um Grupo de Trabalho
composto por representantes de várias entidades ligadas à educação no Brasil. O documento
teve como objetivo propor diretrizes e metodologias de avaliação na/da Educação Infantil
no país, discutindo estratégias e instrumentos de avaliação. Nele a avaliação da Educação
Infantil é tratada como uma análise do fenômeno sociocultural da intencionalidade educativa
em estabelecimentos próprios e configurados em Projetos Político-Pedagógicos, “visando a
responder se e quanto ele atende à sua finalidade, a seus objetos e às diretrizes que definem
sua identidade” e, ainda, questionando essa oferta de atendimento e “confrontando-a com
parâmetros e indicadores de qualidade” (BRASIL, 2012, p. 13-14). Assim, se tratando de
avaliação institucional ou autoavaliação, é correto afirmar que ela deve abranger a análise
da instituição como um todo, em suas dimensões pedagógica, política e administrativa, tendo
como marco o PPP e, por meio de decisões tomadas de forma coletiva, subsidiar o contínuo
aprimoramento desses espaços e do processo de realização das ações delineadas pelo grupo
(SOUSA, 2006 apud BRASIL, 2012).
O Projeto Político-Pedagógico é responsável por explicitar os objetivos, os
fundamentos teórico-metodológicos, os tipos de organização e as formas de implementação
e avaliação da instituição. As ações que se fizerem necessárias para as devidas modificações
devem resultar de um processo de discussão, avaliação e ajustes do documento (VEIGA,
374

1988). No histórico assistencialista de atendimento das creches, pouco se refletia sobre o


fazer pedagógico e a intencionalidade educativa em relação à primeiríssima infância, por
isso as práticas fragmentadas e improvisadas predominavam (MEDEL, 2008). Porém, um
PPP bem planejado é capaz de evitar que práticas assim continuem acontecendo, ao passo
que sistematiza o trabalho pedagógico nas creches com vistas à qualidade do atendimento e
das interações proporcionadas nesses ambientes.
Como afirma Medel (2008, p. 36) “quando a escola é capaz de construir, implementar
e avaliar o seu PPP, ela propicia uma educação de qualidade e exerce sua autonomia
pedagógica” e, “a partir dessa atitude, a escola, consciente de sua missão, implementa um
processo compartilhado e coletivo de planejamento e responde por suas ações e resultados”.
A avaliação do PPP e a autoavaliação institucional são tópicos diferentes que se
complementam e devem acontecer de forma sistemática e planejada. Pensando nisso, uma
das questões do roteiro da entrevista semiestruturada, primeira etapa desta pesquisa, foi em
relação à participação das docentes na elaboração do PPP da instituição. Das sete
entrevistadas, apenas uma alegou participar indiretamente da construção do Projeto, somente
através do anexo de seu planejamento anual. Além disso, todas afirmaram não possuir um
arquivo do documento nem ter lido a versão física recentemente, o que reafirma a falta da
participação coletiva em sua elaboração.
Sendo o Projeto Político-Pedagógico condição mínima para a qualidade do
atendimento, é difícil pensar que uma instituição consiga alcançá-la sem que a equipe escolar
e a comunidade tenham tido momentos de discussão e participado ativamente de sua
formulação. Como aponta Zabalza (1998), é problemático alcançar elevados níveis de
qualidade com projetos de baixa qualidade, ou seja, quando a instituição não tem os devidos
investimentos e estratégias (recursos, condições de trabalho, tempo para discussão e
reflexão, etc.), podemos dizer que é praticamente impossível que consiga alcançar bons
resultados. Ademais, o processo de autoavaliação engloba, dentre várias dimensões, a
avaliação do próprio trabalho pedagógico, tendo uma capacidade formativa para a equipe
pedagógica. Assim, o professor “sabendo como avaliar o trabalho que ele faz, ele terá em
suas mãos os dados necessários para saber quais são os pontos fortes e os pontos fracos do
mesmo” e será capaz de adotar medidas para melhorá-lo (ZABALZA, 1998, p. 16).
É importante ressaltar que a participação docente na elaboração do PPP é prevista na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei nº 9.394/96) e em vários documentos
orientadores das políticas educacionais infantis sobre qualidade no Brasil, como os
“Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil” que aponta que “os projetos
pedagógicos explicitam as concepções e práticas potencializadoras das aprendizagens das
375

crianças” e que quando são elaborados coletivamente “fortalecem a identidade da Educação


Infantil” (BRASIL, 2018, p. 39).
Cada instituição, de acordo com seus objetivos e características, deve definir sua
“qualidade”. Todavia, isso não significa a inviabilização de critérios que balizem o
atendimento oferecido, pois é possível adotá-los ainda que se respeitem as diferenças
inerentes à realidade e à história de cada creche (PIOTTO et al., 1998). Nesse sentido, outra
questão que fez parte do roteiro de entrevistas trata sobre o que as educadoras entendem por
“qualidade do atendimento em creche”. Dentre todas as respostas, a maioria demonstrou
dificuldade em conceituar qualidade, verbalizando-a com interjeições como “nossa” e “que
difícil”. Porém, algumas conseguiram elencar pontos que acreditam que interfiram na
qualidade do atendimento da creche, tais como: a alimentação, a higiene, a acolhida, o
brincar, a formação profissional, a parceria com as famílias, limpeza, organização e rotina
da instituição, recursos pedagógicos, espaços internos e externos e boa gestão administrativa.
Quando questionadas sobre a realização de algum processo de autoavaliação da
qualidade do atendimento oferecido pela instituição, todas as educadoras responderam que
não acontece, apesar de serem unânimes as opiniões de que deveria acontecer. Além disso,
as respostas evidenciaram certa dificuldade em conceituar autoavaliação da qualidade do
atendimento. Algumas acreditam se tratar de uma avaliação somente do próprio trabalho
desenvolvido com as crianças, enquanto outras acreditam que deveria ser uma avaliação das
docentes, realizada pela gestora da unidade. Nenhuma delas citou dimensões possíveis de
avaliação (como infraestrutura e limpeza da instituição, por exemplo), mas todas
concordaram com a sua relevância no diagnóstico dos problemas e na possibilidade de, a
partir deles, propor ações para solucioná-los. Todas as instituições educativas deveriam
proporcionar às equipes momentos de discussão e reflexão, “tendo em vista que a avaliação
é um elemento essencial do projeto educativo, a qual visa levantar informações acerca dos
processos nele desenvolvidos, e que possibilita que as práticas sejam reconstruídas em
função da qualidade do projeto” (CANÇADO; CORRÊA, 2021, p. 4).
Em outra questão sobre o conhecimento de algum instrumento de autoavaliação da
qualidade, como os “Indicadores da Qualidade na Educação Infantil”, nenhuma delas
alegou conhecer. Uma das docentes admitiu a necessidade deste tipo de instrumento que
orientaria esse processo de avaliação, pois segundo ela os professores não sabem como
realizá-la. Tendo em vista essa dificuldade em avaliar a qualidade, percebemos que é preciso
“repensar a avaliação de modo a garantir a reflexão acerca da qualidade das práticas
desenvolvidas junto à criança para que, assim, seja possível problematizar a aprendizagem
e desenvolvimento a ela oportunizados” (CANÇADO; CORRÊA, 2021, P. 12). Avaliar com
vistas à qualidade deve superar um processo meramente constatativo, pelo contrário, deve
376

ter caráter mediador e investigativo (CANÇADO; CORRÊA, 2021), com um olhar singular
dos professores para as crianças e de como elas aprendem de maneira mais criativa, segura
e autônoma.
Nessa perspectiva, percebemos o quanto é necessário verificar como as equipes
pedagógicas desenvolvem seus processos de autoavaliação da qualidade do atendimento das
instituições em que atuam, mais especificamente as creches, buscando entender como ela
ocorre, considerando o contexto local e as peculiaridades de cada comunidade. A avaliação
como instrumento essencial de verificação da qualidade educativa (através de um
instrumento que pode ou não ser padrão, desde que seja adaptável a realidade da instituição),
é o que garante processos compartilhados de reflexão acerca dos problemas e dos aspectos
constituintes da identidade da creche para que ações de melhoria sejam delineadas
(CANÇADO; CORRÊA, 2021).
Posto isso, a segunda etapa desta pesquisa de mestrado propõe analisar as impressões
da equipe pedagógica de uma creche do interior do estado de São Paulo, acompanhando as
discussões e reflexões acerca dos indicadores de qualidade do documento “Indicadores da
Qualidade na Educação Infantil Paulistana” (2015), concomitantemente à avaliação dos
indicadores pelo grupo de docentes. Os resultados serão analisados a luz do referencial
teórico pertinente e das legislações vigentes e divulgados na dissertação.

Conclusão
Percebemos que, embora a equipe pedagógica da instituição analisada reconheça a
importância de uma sistemática de avaliação da qualidade do atendimento que oferecem,
atrelada a construção coletiva do Projeto Político-Pedagógico, na prática isso não ocorre. A
instituição demonstra carência de tempo de qualidade para discussões e reflexões em grupo,
o que impossibilita chegarem a um consenso sobre os conceitos de identidade, qualidade e
avaliação. Também, sem um PPP realmente balizador das ações realizadas na instituição,
não é possível afirmar que o trabalho ali desenvolvido seja de qualidade, principalmente pela
falta de planejamento e de organização dessas ações. Assim, concluímos ser urgente que as
redes municipais tenham uma política de avaliação da qualidade de creches, que promovam
processos de avaliação, bem como a reelaboração de seus PPPs de forma democrática,
proporcionando momentos coletivos de reflexão que possibilitem o planejamento de ações
transformadoras, visando à melhoria do atendimento, instrumento importante no combate
das desigualdades educacionais.

Referências
377

BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil. Disponível em:


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educação nacional, Brasília, DF, 1996.
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BRASIL. Decreto nº 9.432, de 29 de junho de 2018. Regulamenta a Política Nacional de
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CANÇADO, Natália F. C.; CORRÊA, Bianca C. Avaliação, qualidade e educação
infantil: análise de uma experiência municipal. Estud. Aval. Educ., São Paulo, v. 32, p.
1-21, e-07719, 2021.
MEDEL, C. R. M. de A. Projeto Político – Pedagógico: construção e implementação na
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OLIVEIRA, Zilma de M. R. de. A creche no Brasil: mapeamento de uma trajetória. Rev.
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PIOTTO; CHAGURI; MELLO; SILVA. Promoção da Qualidade e avaliação na
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SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica.
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VEIGA, Ilma P. A. Perspectivas para a reflexão em torno do projeto político-
pedagógico. In: VEIGA, Ilma P. A.; RESENDE, Lúcia M. G. (orgs.). Escola: espaço do
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ZABALZA, Miguel. Qualidade em educação infantil. Trad. Beatriz Affonso Neves. Porto
Alegre: Artmed, 1998.
378

POLÍTICAS PÚBLICAS NA LEI DE COTAS E SEUS IMPACTOS SOCIAIS

Alana Duarte Boaventura123


Raquel das Neves Rafael Molina124
Introdução
A desigualdade social não está presente apenas em pontuais localidades, mas sim
em todo lugar do globo, e o Brasil, apesar de muito conhecido pelas suas belezas naturais,
também se destaca pela sua latente desigualdade social. Muitos se convencem de que essa
desigualdade é fruto da historicidade vivenciada, embora seja ou não, é certo que o
remonte histórico influenciou e influencia os dias atuais. Logo, o Brasil, foi um de vários
países colonizados e explorados em diversos aspectos.
Assim, a história escravocrata herdada tem reflexos até os dias atuais, tais como
discriminação de raça, cor e os preconceitos oriundos de tais pensamentos. O que mostra
que as lutas de classes vêm conquistando ao longo dos anos, como a Lei de Cotas, que
trouxe vários impactos positivos para daqueles que mais sofriam desigualdades. Assim,
este trabalho pretende discorrer sobre a criação da Lei de Cotas, bem seu remonte histórico
e, aspectos positivos, como forma de diminuição da desigualdade e valorização da
dignidade da pessoa humana.

A ideologia da lei das cotas


A ideologia da Lei de Cotas se refere a origem das ideias humanas às percepções
sensoriais do mundo externo em um conceito filosófico, ou seja, qual o ponto de partida do
presente trabalho. Sendo o a partir da necessidade social e economia da criação de tal lei.
Sendo assim, o foco da análise do presente artigo trata sobre a Lei nº 12.711 de 2012 também
conhecida como Lei de Cotas, que está completando 10 anos de executoriedade neste ano de
2022. Por isso, é indispensável uma análise dos resultados conquistados ao longo deste
período.
A sua criação foi de caráter temporário a fim de tentar amenizar as desigualdades
resultado dos longos anos de escravidão. Temporário porque a lei assim o trouxe, na qual
quando completar o prazo de 10 (dez) anos deve haver uma revisão do programa, como
forma de verificar sua viabilidade, eficiência e eficácia durante o período que esteve em
vigor, nos termos artigo 7º da lei (BRASIL, 2012). A lei também visa contribuir com a

123
Professora de Direito na Fundação Educacional de Andradina/SP. Mestranda em Direito na Unesp em
Franca/SP. Graduada em Direito na UFMS em Três Lagoas/MS. Endereço eletrônico: [email protected]
.
124
Advogada. Doutoranda em Educação Escolas na Unesp em Araraquara/SP. Mestre em Direito na
Unesp em Franca/SP. Graduada em Direito na UFMS em Três Lagoas/MS. Endereço eletrônico:
[email protected] .
379

igualdade, por consequência reduzir as desigualdades sócio econômicas, pois um indivíduo


com estudos tem maior probabilidade de ingressar no mercado de trabalho com melhor
qualificação profissional, isto é, melhor remuneração. Assim, a lei de cotas traz que as
Universidades e Institutos Federais, vinculas ao Ministério da Educação deverão reservar no
mínimo de “50% (cinquenta porcento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado
integralmente o ensino médio em escolas públicas” (BRASIL, 2012).
Sendo preenchidas por “autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas
com deficiência”. Além disso, os estudantes devem preencher o critério da renda familiar
igual ou inferior a um salário mínimo de meio (BRASIL, 2012).
Se por ventura não sejam preenchidos a porcentagem disposta por essas categorias
de pessoas autodeclaradas, a lei permite que as vagas remanescentes sejam preenchidas por
alunos que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Em outras
palavras, pessoas brancas também podem concorrer com essas cotas, desde que aquela
porcentagem não seja atingida – por pessoas pretas, pardos, indígenas e portadores de
necessidades especiais – e haja vagas remanescentes, consoante parágrafo único do artigo 3º
(BRASIL, 2012).
Desse modo, é importante tratar que a origem dessa lei decorre dos acontecimentos
históricos perpassados no Brasil, como no período escravocrata que teve origem após
Portugal trazer esse modelo de trabalho no começo do século XVI, que dava suporte à
produção açucareira, entre outras modalidades que surgiram (LIBBY; PAIVA, 2010).
De início reduziam os índios a esse tipo de serviço, todavia estes foram se
extinguindo devido às doenças trazidas pelos europeus, como varíola, rubéola e tifo.
Posteriormente passaram a utilizar os negros trazidos da África (LIBBY; PAIVA, 2010).
Entretanto, por inúmeras questões políticas e sociais esse modelo de trabalho passou
a ser indesejado e, com a influência do Império Britânico, após a Revolução Industrial, o
Brasil foi pressionado a concretizar sua abolição (BORIN, 2011).
Até a abolição formal em 1988 com a Lei Áurea, houve outras leis promulgadas na
tentativa de ludibriar o olhar da pressão externa, como a Lei Feijó de 1831, que proibia a
importação de escravos ao Brasil e declarava livres os escravos importados a partir daquela
data (BRASIL, 1831).
Houve também a Lei Eusébio de Queiroz de 1850 que interrompeu o tráfico de
escravos ao Brasil. A Lei do Ventre Livre de 1871, que dava liberdade aos filhos de escravas
que nascessem a partir daquela data. A Lei dos Sexagenários de 1885 que libertava os
escravos a partir dos 60 anos de idade (BRASIL, 1850, 1871, 1885)
A Lei dos Sexagenários nitidamente era incompatível com a realidade da época,
uma vez que era quase impossível um escravo atingir os 60 (sessenta) anos de idade, pois a
380

expectativa de vida era muito baixa, por volta de 19 (dezenove) anos, enquanto um brasileiro
não escravo tinha a expectativa de vida aproximadamente de 27 (vinte e seite) anos
(CARDOSO, 2008).
Mister frisar que a Lei Áurea tratou formalmente da abolição, diante da situação de
que os negros, embora livres, não possuíam bens, terras, nem dinheiro para poderem se
manterem ou sobreviverem, sendo assim, forçados a continuar no mesmo local em que eram
escravos, apenas modificando as nomenclaturas do tipo de prestação de serviço, na qual
foram destinados ao trabalho informal em troca somente de moradia e alimento, visto que a
mudança de fato na vida deles foi ocorrendo gradualmente ao longo do tempo.
Outro fator que agrega ao anterior, é que o escravo era considerado no imaginário
coletivo como um desumano e não uma vítima. Somente em 1940 esse tipo de conduta
passou a ser criminalizada pelo Código Penal (HADDAD, 2017). Embora até hoje existam
suas raízes preconceituosas.
O fito da manutenção desse tipo de serviço tinha o condão basicamente econômico,
isto é, explorar o trabalho à custa de outro, sem qualquer condição de pagamento de valores,
além das condições indignas de vida. O que transgrediu por completo a esfera física e
psicológica daquele cidadão. E ainda nos tempos atuais os resquícios deste período tem
reflexos no pensamento da coletividade, que em doses homeopáticas tem sido contornado,
por meio de políticas públicas, legislações e conscientização.
É notório que para desajustes sociais sejam melhorados é preciso de luta social
reivindicando seus direitos, bem como a imposição de leis, apesar de ainda apresentem
dificuldades na sua executoriedade, ou seja, sua eficácia de forma plena.
Destarte, passado pouco mais de cem anos da abolição da escravatura, o preconceito
e racismo ainda persiste na mente do ser humano, o que deve ser eliminado, na construção
de uma sociedade justa e igualitária, visto que independente de qualquer cor de pele, todo
ser humano é igual, devendo o Estado garantir os direitos intrínsecos aos seres humanos.
É importante pontuar que o Brasil promulgou há pouco tempo a Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância, chamada Convenção da Guatemala, pelo Decreto nº 10.932/2022 (BRASIL,
2022). Tal decreto tem força de Emenda Constitucional no país em razão de ter sido
aprovado nas duas Casas do Congresso Nacional – Senado e Câmara dos Deputados – em
dois turnos por três quinto dos votos pelos membros e, por se tratar de convenção
internacional de direitos humanos, conforme o artigo 5º, §3º da Constituição Federal
(BRASIL, 1988). Nesse sentido, a definição adotada oficialmente de racismo no Brasil é
definida no artigo 1º, do item 4 da Convenção de Guatemala, a saber:
381

Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de


ideias que enunciam um vínculo causal entre as características fenotípicas
ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais
e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial. O
racismo ocasiona desigualdades raciais e a noção de que as relações
discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificadas.
Toda teoria, doutrina, ideologia e conjunto de ideias racistas descritas neste
Artigo são cientificamente falsas, moralmente censuráveis, socialmente
injustas e contrárias aos princípios fundamentais do Direito Internacional
e, portanto, perturbam gravemente a paz e a segurança internacional,
sendo, dessa maneira, condenadas pelos Estados Partes. (BRASIL, 2022)

Logo, o racismo é a falsa ideia ou conceito de que há superioridade de raça em razão


das características físicas e genéticas (fenótipo e genótipo). Essa ideia de superioridade gera
desvantagens sociais, perturbação da paz e da segurança nacional. O que faz surgir nesse
cenário novos conceitos, mesmo que interligados, são distintos, como o de preconceito
racial e da discriminação racial. Abaixo:

O preconceito racial é o juízo acerca de um determinado grupo racial


baseado em estereótipos que pode ou não resultar em práticas
discriminatórias nocivas. Nesse sentido, considerar negros violentos e
inconfiáveis, judeus avarentos ou orientais “naturalmente” preparados para
as ciências exatas são exemplos de preconceitos. A discriminação racial,
por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de
grupos racialmente identificados. Portanto, a discriminação tem como
requisito fundamental o poder, sem o qual não é possível atribuir vantagens
ou desvantagens por conta da raça (ALMEIDA, 2021).

Portanto, a luta pela igualdade de direitos ainda é tema latente, embora avanços
tenham ocorridos, o preconceito e a discriminação ainda fazem presente no imaginário
brasileiro, o que deve ser modulado, a fim de que haja para todos uma vida justa e respeitosa
entre as pessoas.
Por isso, no próximo tópico será abordado sobre a efetividade da Lei de Cotas no
ingresso das Universidades Federais.

Política pública da lei de cotas


Muito além de tentar diminuir a desigualdade sócio econômica, a Lei de Cotas
acaba também por combater a discriminação racial, não sendo este um instrumento isolado,
pois a desigualdade racial é um vetor importante para análise de desigualdade social no
Brasil. Desse modo, passa-se a análise dos dados, iniciando pela quantidade de pessoas
vivendo no Brasil, pois de acordo com a projeção da população do Brasil fornecida pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE – existem 214.557.434 milhões de
habitantes no Brasil em 2022 (IBGE, 2008).
382

Dentre essas pessoas, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (PNA Contínua) de 2021, 43% dos brasileiros se declararam brancos, 47%
pardos e 9,1% pretos (IBGE, 2022a). Assim, de acordo com esses dados, o “perfil dos
inscritos e participantes do Exame Nacional do Ensino Médico – ENEM, principal forma de
ingresso no ensino superior, sofreu mudanças no tempo e, como esperado, foi fortemente
afetado pela pandemia” (IGBE, 2022b).
Além disso, a Sinopse Estatística do ENEM, realizado pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP – trouxe que entre os anos de 2010 a 2017 houve
uma mudança no perfil de cor ou raça dos inscritos. Enquanto a representatividade dos
brancos caiu de 42,9% para 35%, o grupo de inscritos partos ou negros passou de 49,6%
para 60% (IBGE, 2022b).
Diante disso, vários são os fatores sugeridos pelos pesquisadores, podendo ser,
maior reincidência de pretos ou pardos que tentam o ENEM ou, mudança cultural na
autoidentificação por cor ou raça (IBGE, 2022b). Com a pandemia da covid 19, houve uma
redução do total de inscritos no ENEM, atingindo seu menor percentual em 2021, passando
de 5,1 milhões em 2019 para 5,8 milhões em 2020 e 3,4 milhões em 2021 (IBGE, 2022b).
De 2019 para 2021 houve também nova mudança no perfil, na questão do aumento
na proporção de brancos inscritos, que passou de 37% para 43%, e dos participantes pretos
ou pardos que passou de 58% para 51%, no mesmo período (IBGE, 2022b). “Como se vê,
os dados referentes ao aumento de matrículas de estudantes negros em universidades deixam
claro que as cotas incrementam a inclusão, a heterogeneidade nas universidades e afetou a
realidade de inúmeras famílias” (ALMEIDA, 2022).

Conclusão
A falta de acesso à educação, seja em qualquer nível ou modalidade, é mecanismo
de manutenção e aumento da desigualdade social, bem como fator de restrição da mobilidade
social, notadamente no ensino superior federal no Brasil, visto que seu ingresso é
famosamente conhecido como difícil e complexo, sendo ocupado por muitos anos por alunos
provenientes das classes mais altas economicamente e, que podiam arcar com uma educação
desde a infância nas melhores e mais caras escolas.
Essa desigualdade assola sempre as camadas pobres e paupérrimas, atrelado a falta
de educação, essa discriminante é potencializada. E a mudança só é possível com uma cultura
inclusiva e equitativa entre os seres humanos, o que tem sido possível verificar com a adoção
da Lei de Cotas, que beneficiou várias pessoas no país, tais como as autodeclaradas negras,
pardas, indígenas ou com necessidades especiais.
383

Essa mudança de paradigma rompe com as agarras mentais e fornece ao estudante


uma esperança por melhores condições de vida, e condições de ajudar a sua família, e
principalmente, uma autoestima sendo valorizada. O dissentimento de adoção de políticas
públicas como essa, embora, aplicada há longos anos, ainda é alvo de críticas, quais não
merecem prosperar, visto que, seus impactos são sopesados e alcançaram resultados
positivos, bem como inclusão social aqui estudada. Portanto, de modo geral, a Lei de Cotas
foi um pequeno, mas influente mecanismo de ajudar vários alunos, e principalmente,
mudança de vida, na qual proporciona resultados positivos hoje e no futuro dessa pessoa que
busca se qualificar intelectual e profissionalmente através da educação.

Referências
ALMEIDA, Marcos Antônio Silva. A LEI DE COTAS (LEI Nº 12.711/2012) E O
INGRESSO NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS COMO MECANISMO DE
POLÍTICA PÚBLICA ANTIRRACISTA. 2022.
BORIN, A. L. A “nova” senzala é logo ali: ao lado da “Capital do agronegócio” lá nos
fundos dos canaviais sertanezinos. Franca: [s.n.], 2011.
BRASIL. Decreto nº 7.824 de 11 de outubro de 2012. Regulamenta a Lei nº 12.711, de 29
de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Decreto/D7824.htm>. Acesso
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________. Decreto nº 10.932 de 10 de janeiro de 2022. Promulga a Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de
junho de 2013. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-
2022/2022/Decreto/D10932.htm>. Acesso em: 31 jul. 2022.
________. Lei de 7 de novembro de 1831. Declara livres todos os escravos vindos de fora
do Império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos. Disponível em:
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564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>. Acesso em: 21 jul. 2022.
________. Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850. Estabelece medidas para a repressão do
tráfico de africanos neste Império. Disponível em:
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________. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de
mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e
outros, e providencia sobre a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a
libertação anual de escravos. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm>. Acesso em: 21 jul. 2022.
________. Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1985. Lei dos Sexagenários. Disponível em:
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>. Acesso em:
21 jul. 2022.
384

________. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas


universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: 21 jul. 2022.
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_____. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. 2ª ed. 2022b. Disponível em:
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf>. Acesso em:
02.05.2022.
385

A POLÍTICA DA ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL NA UFVJM-CAMPUS


MUCURI EM TEMPOS DE COVID-19 E DO ERE

Raquel Cristina Lucas Mota 125


Introdução
O presente trabalho realiza o debate sobre as ações desenvolvidas pelo Programa de
Assistência Estudantil da UFVJM no campus Mucuri durante o ensino remoto emergencial
(ERE)126, o qual foi implantado em decorrência da crise sanitária de covid-19127. O objetivo
dessa pesquisa é perceber como ocorreram as ações para efetivar a permanência dos
estudantes que se enquadraram nos requisitos de vulnerabilidade econômica e social, no
período de dois fenômenos ocorridos concomitantemente: covid-19 e implantação do ensino
remoto emergencial. A metodologia utilizada foi levantamento de pesquisa bibliográfica,
com debate sobre educação, pesquisa documental sobre legislações afetas à política pública
de educação no Brasil, e, sobre documentos dos editais do Programa de Assistência
Estudantil, no site da UFVJM, de 2020 a 2022. A justificativa desse estudo tem a ver com a
atualidade da temática, bem como a necessidade de se refletir na UFVJM, como a mesma
pode aprimorar os seus serviços, no caso deste estudo, o Programa de Assistência Estudantil,
para buscar garantir a permanência dos estudantes nas diversas graduações no campus
Mucuri.

Apontamentos sobre a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri


Conforme o site da universidade128, em 2005, por meio da Lei nº 11.173, de 06 de
setembro, passou à denominação atual, de Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha
e Mucuri (UFVJM), sendo constituída à época por três campi: Campi I e JK, em Diamantina,
local de funcionamento dos cursos supracitados, além do campus do Mucuri, em Teófilo

125
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Doutora em Serviço Social pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
126
Sigla de Ensino Remoto Emergencial. Este foi adotado como uma alternativa controvérsia para o ensino
presencial pela UFVJM, após o Decreto Legislativo n.º 6, de 20 de março de 2020, que instaurou o estado de
calamidade pública até 31 de dezembro do mesmo ano, em virtude da pandemia causada pela Covid-19. Nesse
contexto, a UFVJM suspendeu em 19 de março de 2020 as atividades acadêmicas de ensino, pesquisa e
extensão dos cursos na modalidade presencial. Após tal suspensão, o que sucedeu para se implantar o ERE foi
uma disputa árdua por parte de segmentos da universidade, para garantir as mesmas condições de acesso e
permanência para todos os estudantes ao ensino público, gratuito, laico e socialmente referenciado a que todos
tem direito, conforme a CF de 1988 e regulamentado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
n°9.394/1996).
127
Foi declarada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde a Pandemia da Covid 19, doença
causada pelo coronavírus SARS- CoV-2, tendo sido descoberto na cidade de Wuhan, província de Hubei, na
China, no mês de dezembro de 2019 e que é de elevada transmissibilidade e que causa uma inflamação aguda
no sistema respiratório (LANA et al. 2020).
128
www.ufvjm.edu.br
386

Otoni, com funcionamento de mais cinco cursos: Administração, Ciências Contábeis,


Ciências Econômicas, Serviço Social e Matemática (Licenciatura). (UFVJM, s/p)
Em 2007, o Decreto nº 6.096 de 24 de abril da Presidência da República instituiu o
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(REUNI), que tinha como objetivo governamental criar condições para ampliação do acesso
e permanência na educação superior, no nível de graduação. As propostas constantes no
REUNI foram em sua essência implementadas entre 2008 a 2012, buscando segundo
objetivos deste plano, garantir um melhor aproveitamento da estrutura física e dos recursos
humanos existentes nas Universidades Federais, respeitadas as características particulares e
a diversidade de cada instituição e estimulada. (UFVJM, s/p)
Com a adesão ao REUNI no ano de 2009, a UFVJM iniciou a implementação dos
Bacharelados Interdisciplinares (BI), que atendiam à exigência de uma maior flexibilização
do ensino superior. A UFVJM passou a ofertar dois cursos nesta modalidade, sendo o de
Humanidades (BHU) e o de Ciência e Tecnologia (BC&T).
Em 2012, a UFVJM iniciou um processo de expansão robusto, acolhendo dois novos
campi nas cidades de Janaúba e Unaí. Assim, a Universidade reforça seu caráter e vocação
institucional multicampi, bem como sua inserção em quatro (04) mesorregiões da porção
setentrional do Estado de Minas Gerais: Jequitinhonha, Mucuri, Norte e Noroeste.
Em 2014, a UFVJM implementou dois novos BI: o BC&T Janaúba e o Bacharelado
em Ciências Agrárias, na cidade de Unaí. Além disso, novos cursos foram criados nos campi
já existentes, como o curso de graduação em Educação no Campo e Engenharia Geológica
(campus Diamantina), e dois cursos de graduação em Medicina, sendo um no campus
Diamantina e outro no campus Mucuri. Assim, atualmente, a UFVJM oferece cursos de
graduação presenciais e à distância, em Diamantina (Campi I e JK), contando até o presente
momento com seis Faculdades. (UFVJM, s/p)
Desse modo, o foco deste artigo recai na Política de Assistência Estudantil da
UFVJM, em virtude da proposta de maior capilaridade que tal política se propôs a efetivar
junto aos diversos sujeitos com diferentes especificidades na realidade do alunado do
campus do Mucuri, considerando a disparidade socioeconômica dessa região, a qual
apresenta indicadores sociais que demostram a necessidade de acesso a políticas públicas
diversas.
Após esses breves apontamentos sobre o histórico da UFVJM, o próximo item vai
tratar sobre a Política Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) no ensino superior no
Brasil, enfatizando quais foram as ações realizadas pelo Programa de Assistência Estudantil
da UFVJM-campus Mucuri, no período em que essa pesquisa foi realizada e que coadunou
com o ensino remoto emergencial (ERE) – julho de 2020 a abril de 2022 – associada com o
387

cenário da pandemia de covid-19, cenário este considerado extremamente complexo e


desafiador para todos os sujeitos, o que incluiu evidentemente os estudantes e, a
possibilidade dos mesmos permanecerem na universidade em um contexto como nunca se
viu anteriormente na história recente, ultra adverso para a própria sobrevivência da
humanidade em escala planetária.

Considerações acerca da Política Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) no Brasil


No contexto dos anos 2000 no Brasil, foram desenvolvidas políticas destinadas para
a educação superior, visando ampliar e democratizar o acesso as mesmas (ROSA,2014). O
autor afirma também que ocorreu um aumento substancial de matrículas no ensino superior
no país. Isso se efetivou em virtude das políticas públicas implementadas pelo governo
federal, tais como o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais Brasileiras, conhecido como REUNI, o Programa Universidade para
Todos (PROUNI), teve também a criação do Sistema de Seleção Unificada (SISU), e o
Fundo de Financiamento do Estudante de Ensino Superior (FIES). Além também da
ampliação da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (Cefet e Ifet) e o Plano
Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) (ROSA, 2014).
Mas, deve-se considerar também que ao mesmo tempo que a expansão das
universidades acontecia por diversas regiões, outro fenômeno foi verificado. Essas IFES
foram implementadas em regiões mais afastadas dos grandes centros do país e por
conseguinte, o público alvo discente dessas universidades necessitavam de algum tipo de
intervenção por parte do governo federal, em forma de política pública – em decorrência das
características de vulnerabilidade socioeconômica, social, cultural apresentada – para que os
estudantes que tinham conseguido o tão almejado acesso à universidade pública, pudessem
conseguir permanecer na mesma, realizando seu curso de graduação.(BRASIL,2007).
Em decorrência do contexto acima aludido, se fez necessário a criação de um
D e c r e t o n. 7.234, de 19 de julho de 2010, o qual trata do Programa Nacional de
Assistência Estudantil (PNAES). Tem como proposta trazer o esboço de uma política pública
federal endereçada aos estudantes de graduação presencial de IFES, em situação de
vulnerabilidade socioeconômica, com o propósito de fornecer condições adequadas para a
permanência dos discentes na educação superior pública federal. Os investimentos
financeiros realizados com recursos federais buscam favorecer para que os estudantes
tenham condições mais equitativas de desenvolverem suas capacidades no processo ensino
aprendizagem (BRASIL, 2007; BRASIL, 2010).
De acordo com o Art. 2° do Decreto n. 7.234, de 19 de julho de 2010, tem-se
que “Art. 2o: são objetivos do PNAES:I – democratizar as condições de permanência dos
388

jovens na educação superior pública federal; II - minimizar os efeitos das desigualdades


sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior; III - reduzir as taxas
de retenção e evasão; e IV - contribuir para a promoção da inclusão social pela educação.”
(BRASIL, 2010, s/p.).
O elenco de ações da Assistência Estudantil do PNAES a serem desenvolvidas com
base no Decreto n. 7.234, de 19 de julho de 2010, tem por propósito atender os estudantes
regularmente matriculados nos cursos de graduação presencial das IFES nas seguintes
frentes de ações: moradia estudantil, alimentação, transporte, atenção à saúde, inclusão
digital, cultura, esporte, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superlotação, creche e apoio
pedagógico (BRASIL, 2010). O que se depreende com base na proposta dessa política é a
que a mesma se apresenta como um marco histórico, tendo em vista a preocupação com
diversas nuances de situações que o documento buscou captar.
Contudo, o grande dilema na implementação dessa política, é que grande parte das
suas ações não conseguiram sair das proposições e ainda estão efetivamente na forma do
Decreto. É o caso da realidade concreta da UFVJM-campus Mucuri, que será visto no
próximo item.

As ações desenvolvidas pelo Programa de Assistência Estudantil da UFVJM- campus


Mucuri durante o ERE e covid-19
Ao se captar os principais objetivos previstos no Programa Nacional de
Assistência Estudantil (Decreto n. 7.234 de 19 de julho de 2010), foi aprovado o regimento
interno da Pró-reitora de Assuntos Comunitários e Estudantis (PROACE). Além da
aprovação do Regulamento do Programa de Assistência Estudantil da PROACE da
UFVJM, mediante Resolução n° 18 – CONSU, de 17 de março de 2017, a qual estabelece
no artigo 1º:
O Programa de Assistência Estudantil (PAE), criado para possibilitar a
oferta do serviço de assistência estudantil, tem como finalidade gerar
condições para a ampliação da permanência e êxito no processo educativo
dos discentes devidamente matriculados nos cursos de graduação
presencial da UFVJM (UFVJM, 2017, p.1).

Na especificidade da realização dessa pesquisa, qual seja: entre julho de 2020 a


abril de 2022, interessou como já dito, o Programa de Assistência Estudantil da UFVJM-
campus M u c u r i e como esteve funcionando durante este período, que coincidiu com dois
fenômenos extremamente complexos para a realidade dos estudantes, quais sejam: a
pandemia de covid-19 e o ensino remoto emergencial implantado pela UFVJM.
De acordo com o site da UFVJM, os serviços ofertados por essa Pró Reitoria são:
Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NACI) que tem por escopo implementar uma política
389

de acessibilidade às pessoas com necessidades especiais; Setor de Pedagogia, que busca dar
suporte psicopedagógico aos discentes; Setor de serviço social, responsável pela realização
de estudos socioeconômicos visando mapear os discentes em vulnerabilidade social e
econômica nos campus. Com relação aos programas desenvolvidos, tem-se a Assistência
Estudantil que é o cerne deste artigo; Bolsa Permanência MEC, a qual não está em
implementação no atual momento no campus Mucuri; Moradia Estudantil Universitária, que
ainda não se efetivou no campus Mucuri; Alunos Conectados, ainda sem estar em plena
implementação no campus Mucuri.
Retomando o Programa de Assistência Estudantil da UFVJM, ele consiste em um
conjunto de ações que têm por finalidade ampliar as condições de permanência dos
estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, de forma a viabilizar a igualdade
de oportunidades quanto ao acesso à graduação presencial e contribuir para a redução das
taxas de retenção e evasão, quando motivadas por insuficiência de condições financeiras e,
ou determinantes socioeconômicas e culturais causados pelas desigualdades sociais.
(PROACE/UFVJM. Edital nº 007 de 06 de outubro de 2020).
Considerando o site da universidade, na parte da PROACE, mais especificamente
na aba que trata do Programa de Assistência Estudantil do campus Mucuri, a pesquisa
documental realizada entre julho de 2020 a abril de 2022, demonstrou como foi
extremamente difícil para o discente do campus permanecer no ensino de graduação.
Em março de 2020 quando todas as atividades da UFVJM foram suspensas pela
Reitoria, houve uma ruptura de comunicação e de aproximação com a comunidade discente
do Mucuri, pois, pelos meios oficiais/site da instituição, os estudantes só voltaram a ter
notícias sobre o que iria de fato acontecer com relação ao programa de assistência estudantil
em outubro de 2020, com a publicação do Edital Especial PROACE/UFVJM
Edital nº 007 de 06 de outubro de 2020 – Campus Mucuri129, ou seja, 7 meses sem notícias
efetivas e sem os discentes terem seus benefícios como era o usual.
Neste Edital foram colocadas novas bases de organização, critérios, funcionamento
e desenvolvimento do programa por conta da emergência sanitária de covid-19. Dito de outro
modo, o programa de assistência estudantil se reorganizou por conta da imposição da
realidade objetiva assustadora imposta a todos nós, e precisou ser reorganizado como um
[...] auxílio Emergencial Especial de natureza eventual e de caráter
temporário, é um
benefício instituído no âmbito do Programa de Assistência Estudantil da
UFVJM, que visa suprir, prioritariamente, a necessidade de custear
parcialmente as despesas dos discentes de graduação, em vulnerabilidade
socioeconômica, durante o período de interrupção das atividades

129
https://portal.ufvjm.edu.br/noticias/2020/publicados-editais-do-auxilio-emergencial-especial/007-edital-
especial-proace-mucuri.pdf . Acesso em 05 de junho de 2022.
390

acadêmicas presenciais em decorrência da pandemia da COVID-19.


(PROACE/UFVJM. Edital nº 007 de 06 de outubro de 2020).

Neste mesmo edital foi constatado a informação de que seriam liberadas 3 parcelas
de R$ 450,00 para cada discente contemplado (neste edital só teriam 410 benefícios e estes
vinculados aos estudantes que tivessem cadastros no Cad Único), de acordo com a
disponibilidade orçamentária da UFVJM. Os discentes deveriam estar com matrícula ativa
nos cursos de graduação na modalidade presencial. O que se percebeu desses dados é que a
UFVJM não garantiu nem os R$ 600,00 liberados de auxílio emergencial pelo governo
federal, o qual, diga-se de passagem, só ocorreu por conta da câmara dos deputados federal
e senado terem considerado o valor inicial proposto pelo governo federal algo irrisório e
terem feito uma proposta de aumentar o teto do auxílio emergencial130.
Outros dois editais foram lançados, um em 2020 e outro em 2021. Foram o Edital
Especial nº 11/2020/PROACE/UFVJM, de 18 de dezembro 2020 – campus Mucuri131 e
Edital Especial nº 03/2021 PROACE/UFVJM, de 14 de abril 2021 – campus Mucuri132.
Nestes dois novos editais não foram colocadas de forma transparente nem quantos benefícios
seriam disponibilizados, nem o valor do benefício. O que se manteve foram as regras:
exigência de matrícula ativa nos cursos de graduação presencial e, estudante estar cadastrado
no Cad Único do governo Federal. O que se pode depreender foi a incerteza acerca do
número de benefícios e do valor do mesmo para os discentes que necessitavam do benefício
para permanecerem no curso de graduação no contexto da pandemia e do ensino remoto
emergencial.

Conclusões
Esta pesquisa tratou sobre a política da assistência estudantil na UFVJM- campus
Mucuri, em tempos de covid-19 e do ensino remoto emergencial e mostrou as ações
desenvolvidas pelo Programa de Assistência Estudantil. Ao se retomar o objetivo desse
estudo, qual seja, perceber como ocorreram as ações para efetivar a permanência dos
estudantes que se enquadraram nos requisitos de vulnerabilidade econômica e social, no
período de dois fenômenos: covid-19 e implantação do ensino remoto emergencial (ERE) na
UFVJM, o que se pôde perceber como resultados é que a UFVJM demorou um tempo
significativo para retomar as ações do referido Programa, ficando sete meses sem dar notícias
e implementar as ações junto aos discentes.

130
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/06/05/internas_economia,861218/auxili
o-emergencial-guedes-defende-r-300-mas-congresso-quer-aumenta.shtml. Acesso em 05 de junho de 2022.
131
http://www.ufvjm.edu.br/proace/pae/cat_view/39-/38-/56-editais-campus-do-mucuri/59-encerrados-/218-
edital-especial-2020-campus-mucuri.html . Acesso em 05 de junho de 2022.
132
http://www.ufvjm.edu.br/proace/pae/doc_view/1285-.html . Acesso em 05 de junho de 2022.
391

As ações da assistência estudantil no período demarcado nessa pesquisa, demoraram


muito para se efetivarem na realidade objetiva dos estudantes do Vale do Mucuri, e quando
foram retomadas, as mesmas ficaram focadas nas regras estabelecidas nos editais da
PROACE/ UFVJM, sem estabelecer interconexões como cotidiano de vida e a realidade dos
discentes. Com essa escolha da UFVJM, muitos discentes que necessitavam do auxílio, mas
que não cumpriam com algum dos critérios postos nos editais, a exemplo: não tinham
realizado o Cad Único, não foram, portanto, contemplados, e ficaram sem conseguir o valor
monetário, o qual necessitavam.
As ações do programa focaram efetivamente no valor monetário, não conseguindo
contemplar de maneira mais abrangente questões mais complexas, profundas e necessárias
da realidade dos estudantes do campus do Mucuri, tais como: a falta de acesso à internet para
assistirem aulas, estudantes que se queixaram que estavam trabalhando e ao mesmo tempo
ouvindo as aulas, por não terem liberação para somente assistirem as aulas.
Neste período do ERE, foi percebido também uma diminuição do número de
estudantes nas salas online, o que se trata a nosso ver, como um pressuposto para
continuidade da pesquisa, qual seja: houve evasão escolar na realização do ensino remoto
emergencial. Os desafios postos com o retorno das aulas presenciais são enormes. Precisa-
se pensar em alternativas para se reconstruir a educação como um espaço de possibilidades
para os jovens estudantes e universitários da região do Vale do Mucuri - região periférica do
nordeste de Minas Gerais - visando favorecer a permanência dos discentes com qualidade,
nas suas escolas. Esse é um trabalho de reconstrução posto para toda a sociedade

Referências
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DF: Senado, 1988. 496 p.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República do Brasil, 1996a. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 06 de junho de 2022.
BRASIL. Lei nº 11.173, de 6 de setembro de 2005. Transforma as Faculdades Federais
Integradas de Diamantina em Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri -
UFVJM e dá outras providências. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2005/lei-11173-6-setembro-2005-538373-
publicacaooriginal-33991-pl.html
BRASIL. Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos
de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI. Brasília, DF:
Presidência da República do Brasil, 2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2007/decreto/d6096.htm. Acesso em
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Assistência Estudantil – PNAES. Brasília, DF: Presidência da República do Brasil,
392

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06 de junho 2022. UFVJM. www.ufvjm.edu.br
393

GESTÃO DEMOCRÁTICA: avanços e desafios frente às mudanças propostas


pela Nova Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor

Lázara Regina de Morais Colombaroli133


Vânia de Fátima Martino134

Introdução
O estudo apresentado se propõe a analisar o documento Matriz Nacional Comum de
Competências do Diretor aprovado pelo CNE- Conselho Nacional de Educação, em maio de
2021. Foram utilizadas pesquisas documentais e bibliográficas com vistas à retomada de
princípios de gestão democrática contidos na Constituição de 1988, na LDB 9394/96 e no
Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/14), cujo arcabouço legal, entretanto, não
impossibilitou que uma nova concepção de gestão escolar venha sendo moldada conforme a
visão empresarial da Nova Gestão Pública e das políticas neoliberais.
Com a aprovação da Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor, tem sido
retomado um debate de décadas, em relação às atribuições e competências do diretor,
intrinsecamente ligadas ao fortalecimento da gestão democrática, sobretudo das escolas
públicas. O que pretendemos, portanto, ao analisar a Matriz é verificar a concepção de gestão
nela imbuída e as possíveis consequências no trabalho do diretor, caso suas competências o
encaminhem para ser um articulador de práticas democráticas ou de concepções
gerencialistas, em conformidade com a Nova Gestão Pública.
Na primeira seção do nosso estudo, discorremos sobre a Gestão Democrática como
um princípio orientador e sobre como o gerencialismo nas escolas vem obtendo destaque
e por fim, na segunda seção, tratamos da Matriz Comum de Competência do Diretor e de
suas expectativas em relação ao trabalho do diretor escolar, tendo como pressupostos a
visão gerencialista e empresarial da educação.

Gestão Democrática, um princípio orientador da educação que vem sendo modificado


por concepções gerencialistas

133
Professora da Rede pública de ensino e mestranda do Programa de Pós-graduação em Planejamento e
Análise de Políticas Públicas da FCHS - UNESP- Franca. [email protected]
134
Professora Doutora da FCHS- UNESP de Franca e orientadora do Programa de Pós-graduação em
Planejamento e Planejamento e Análise de Políticas Públicas da FCHS - UNESP- Franca.
[email protected]
394

No Brasil, o fim do golpe civil-militar de 1964 deu início, nos anos 80, a um processo
de abertura política, redemocratização e de luta por direitos sociais, contexto no qual
obtivemos importantes conquistas que culminaram com a Constituição Federal de 1988, cujo
artigo 6°, conforme nos explicita CURY (2007, p. 4-5), traz
(...) uma definição de Estado Social encarregado da diminuição de
condicionantes sociais ao acesso a determinados bens considerados
indispensáveis para uma vida cidadã e da qual derivaria a igualdade de
oportunidades. Esse circuito virtuoso, juridicamente positivado no campo
da educação escolar, da saúde, da justiça, da segurança e em outros tantos,
mesmo que nem sempre efetivado, está estabelecido sob um regime
democrático que reconhece ao cidadão direitos sociais antes jamais
proclamados como tais. Esse Estado Democrático Social de Direito não
ignorou a defesa do indivíduo, nem as liberdades civis e muito menos a
propriedade privada ainda que reconhecendo sua função social.

Nesse ínterim, princípios como os da educação de qualidade para todos e o da gestão


democrática têm gerado grandes debates relacionados, principalmente às escolas públicas.
Sobre este último direito social, as ideias sobre uma gestão escolar mais participativa
tomaram força, sobretudo com o surgimento das Conferências Brasileiras de Educação
(CBE) através das quais educadores se organizaram, tendo como mote uma gestão escolar
diferente.
O conhecimento sobre gestão democrática disseminou-se na esfera educacional,
através de estudos e pesquisas, transformados em artigos e livros e tem suas bases legais
respaldadas pela Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei nº 9394/96).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 206, VI, define a “Gestão
Democrática” como um dos princípios orientadores do “ensino público”.
A LDB (art. 3º, VIII) referenda “a gestão democrática do ensino público na forma
desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino”, explicitando-o no artigo transcrito abaixo:
Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática
do ensino público na educação básica, de acordo com as suas
peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto
pedagógico da escola;
II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares
ou equivalentes.

Segundo Vieira e Vidal (2015), tanto a Constituição Federal (Art.6º,VI) como a LDB
(Art. 3º, VIII) remetem a aplicação da gestão democrática às unidades federadas que,
sobretudo em relação ao período pós Constituição, com base em sua autonomia, mantiveram
entendimentos próprios (e até diferenciados) acerca da gestão democrática nas escolas. As
autoras relacionam tal fato ao entendimento de que tais atributos legais “não são triviais por
sinalizarem a educação pública como espaço por excelência de sua aplicação, remetendo à
395

autonomia das unidades federadas a legislação sobre a matéria”. (VIEIRA; VIDAL, 2015,
p. 23).
Em relação ao artigo 14 da LDB, segundo as mesmas autoras, há a retomada da ideia
inicial, na qual os sistemas de ensino são responsáveis pela regulamentação das normas da
gestão democrática e a participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto
pedagógico da escola, bem como da comunidade escolar e local nos conselhos escolares.
A gestão democrática, ao longo dos anos, mantém-se como foco das políticas de
educação, sobretudo na aprovação de dois Planos Nacionais de Educação (PNE): o primeiro,
sancionado por lei em 2001 (Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001) e o segundo, em 2014
(Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014), com vigência no período de 2014 a 2024. O segundo
PNE, em seu artigo 2º, VI, tem como diretriz a “promoção do princípio da gestão
democrática da educação pública”. Sua regulamentação pelos Estados, Distrito Federal e
Municípios deverá ocorrer, mediante leis específicas, no prazo de 2 anos, conforme
determinação do artigo 9º. Tais determinações legais no segundo PNE, nos fazem constatar
que, em relação à gestão democrática, os Estados e Municípios necessitam ainda, definir
questões sobre o tema, ou, ao menos, fazer adaptações para, de fato, colocar o princípio em
prática, consistentemente.
No PNE de 2014, as metas 7 e 19 tratam, concomitantemente da gestão democrática
tendo como mote a “qualidade da educação básica em todas as técnicas e modalidades”,
tendo como estratégia “apoiar técnica e financeiramente a gestão escolar mediante
transferência direta de recursos financeiros à escola, garantindo a participação da
comunidade escolar no planejamento e na aplicação dos recursos, visando à ampliação da
transparência e ao efetivo desenvolvimento da gestão democrática” (PNE, estratégia 7.16).
A meta 19, por sua vez, trata especificamente da gestão democrática, focalizando a
necessidade de:
(...) assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da
gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e
desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das
escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto
(Meta 19).

Estão associadas à meta 19 um conjunto amplo de estratégias que envolvem a


prioridade no repasse de transferências voluntárias, por parte da União na área da educação
“para os entes federados que tenham aprovado legislação específica que regulamenta a
matéria na área de sua abrangência, respeitando-se a legislação nacional, e que considere,
conjuntamente, para a nomeação dos diretores e diretoras da escola, critérios técnicos de
mérito e desempenho, bem como a participação da comunidade escolar” (19.1), através de
grêmios estudantis e conselhos escolares na formação de projetos políticos-pedagógicos,
396

currículos escolares, planos de gestão escolar e regimentos escolares. Relacionam-se ainda


aos processos de autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira nos
estabelecimentos de ensino, à formação de gestores e ao provimento de seus cargos.
Entretanto, em relação às formas de ascensão ao cargo de diretor, são estimulados
processos de escolha democrática, sem, no entanto, terem sucumbido os casos de
indicação política aos mesmos. Paralelamente a isso, podemos observar escolas em que
há um descompromisso com dispositivos da LDB em cláusulas diversas, como a
inexistência (ou pouca atuação) de Conselhos Escolares e participação ínfima de setores
da comunidade escolar na elaboração do projeto político-pedagógico das escolas
(VIEIRA; VIDAL, 2015, p. 35).
Embora o cenário brasileiro seja propício à gestão democrática das escolas, com
a reforma do Estado, iniciada em meados da década de noventa do século anterior,
ocorreram “mudanças nos padrões de intervenção estatal” e estas, por sua vez, foram
baseadas “na emergência de novos mecanismos e de novas formas de gestão,
redirecionando as políticas públicas e, particularmente, as educacionais” (CABRAL;
CASTRO, 2011, p. 747).
Tal reforma, como nos adverte Lustosa da Costa (2010, p. 236), é incapaz de alterar
“as relações entre Estado e sociedade, valorizando o interesse do cidadão como titular de
direito e consumidor de bens públicos, incorporando a sua participação, superando a
neutralidade burocrática e mudando o sentido de responsabilidade pública”.
Diante dos novos pressupostos da gestão educacional, a nova organização, baseada
em um discurso de participação e autonomia, passou a otimizar os recursos e garantir a
produtividade da escola, utilizando, entre outros mecanismos, os modelos de avaliação do
desempenho” (CABRAL; CASTRO, 2011, p. 752-753).
A avaliação em larga escala, cujas vertentes se situam no início deste século,
foram delineadas num cenário em que, segundo Brooke e Cunha (2010 apud VIEIRA,
2014, p.7) o governo federal e alguns governos estaduais, através de iniciativas diversas,
passaram a aferir, através de avaliações aplicadas em escolas públicas, os resultados dos
estudantes. Tais avaliações podem ser compreendidas como a principal estratégia para o
redirecionamento dos parâmetros da gestão democrática
Vieira (2014, p. 11-12) ainda ressalta que
Neste contexto, aquilo que deveria representar uma mera radiografia de
um momento da vida escolar (a avaliação externa), passa a ser vivido
como se fosse sua essência. Sistemas e escolas passam a viver sob o
signo da avaliação de larga escala sob uma lógica imposta de fora para
dentro. De instituição comprometida com a formação para a cidadania,
veiculação de transmissão de saber, passa a configurar como uma
pequena linha de montagem, onde gestores, professores e estudantes
passam a valer pelos bens que produzem, sob a forma de resultados.
397

De acordo com Botelho e Silva (2022), em seu artigo Matriz Nacional Comum de
Competência do Diretor: o trabalho do diretor escolar em análise, o novo perfil do diretor,
em consonância com a Nova Gestão Pública (NGP)
(...) precisa estar articulado com as novas demandas que surgiram nas
escolas, que mais se parecem com empresas e, os diretores, com chefes.
Chefes que hierarquicamente “controlam” alguns, e que supostamente tem
certa autonomia, mas, na realidade, acabam por obedecer a ordens do
sistema de ensino, como as secretarias de educação e as próprias políticas
educacionais do MEC (BOTELHO; SILVA, 2022, p. 10).

A sociedade neoliberal, no intuito equivocado de modernizar os espaços escolares,


corroboram para a obtenção de resultados bem diferentes:
O que esses métodos de poder visam não é desenvolver uma política plena
ou parcialmente autônoma pela livre deliberação, mas mobilizar recursos
individuais para aumentar a eficiência do trabalho, dando aparência de uma
“consulta”, uma “participação” dos subordinados. (...) O que domina é o
ponto de vista da eficiência e da mobilização à favor da empresa, e não o
dos conflitos férteis e arbitrados da democracia (LAVAL, 2019, p.258
apud BOTELHO; SILVA, 2022, p. 11).

O vice-presidente Michel Temer, ao assumir o cargo de presidente da república, após


o impeachment de Dilma Roussef, promove diversas mudanças no campo educacional,
sobretudo ao reduzir novos investimentos públicos nas instituições de ensino, através da
emenda 95/2016 e ao modificar as configurações dos conselheiros componentes do Conselho
Nacional de Educação, por hora, majoritariamente ligados a instituições privadas de ensino.

Matriz nacional comum de competência do diretor e suas expectativas em relação ao


trabalho do diretor
A Matriz Nacional Comum de Competência do Diretor, tem como principal objetivo,
oferecer parâmetros à função do diretor, em consonância com a meta 19 do Plano Nacional
de Educação em relação à gestão democrática que, como visto anteriormente, visa assegurar
condições para a efetivação da gestão democrática da educação. Elaborada pelo Ministério
da Educação e aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em maio de 2021, teve
como base para a formulação de suas ideias, referências oriundas da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento econômico (OCDE) em relação à estruturação dos sistemas
de ensino (BOTELHO; SILVA, 2022, p.12).
As especificidades da Matriz Nacional Comum de Competência do Diretor estão
relacionadas à estratégia 19.8 do Plano Nacional de Educação /2014-2024 e ao Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação (Fundeb), regulamentado pela lei 14.113. A estratégia 19.8 do PNE embasa o
provimento de cargos e define os critérios da Matriz em relação a essa particularidade:
398

Desenvolver programas de formação de diretores e gestores escolares, bem


como aplicar prova nacional específica, a fim de subsidiar a definição de
critérios objetivos para o provimento de cargos, cujos resultados possam
ser utilizados por adesão (BRASIL, 2014).

Diante da Matriz, o diretor escolar deverá, certamente, desenvolver novas


competências, modificar seu perfil e atribuições, que se assemelharão às de diretores/as de
escolas privadas ou empresários. Assim, mediante o alcance de resultados educacionais, os
diretores serão responsabilizados, bem como induzidos a organizar a gestão da escola
objetivando estes resultados. (BOTELHO; SILVA, 2022, p. 12).
Segundo A ANPAE - Associação Nacional de Política e Administração da Educação
– e o documento Matriz Nacional de competências do Diretor Escolar, apresenta um
verdadeiro retrocesso em relação à gestão democrática da escola pública:
A Matriz, ao transpor concepções neoliberais para a área educacional,
incorporando a visão do mundo corporativo empresarial, acolhe a adoção
do ideário pragmático e competitivo nas organizações educacionais, em
detrimento da gestão democrática como princípio constitucional (ANPAE,
2021, p.1).

A Matriz Nacional Comum de competências do Diretor Escolar, aprovada pelo


Conselho Nacional de Educação, apresenta 27 competências (dez gerais e 17 específicas)
abrangerá todas as redes de ensino do país. Tal como constam na minuta de parecer e projeto
de resolução do MEC e CNE, podem ser sintetizadas nos quadros a seguir sobre os quais,
com base nos estudos realizados por Botelho e Silva (2022) acerca do tema, refletiremos
criticamente sobre alguns destaques, haja vista as perspectivas de formação imbuídas em tais
prerrogativas e seus efeitos no ambiente escolar.

Competência 1. Coordenar a organização escolar nas dimensões político-


institucional, pedagógica, pessoal e relacional, e administrativo-financeira,
desenvolvendo ambiente colaborativo e de corresponsabilidade,
construindo coletivamente o projeto pedagógico da escola e exercendo
liderança transformacional e focada em objetivos bem definidos

Competência 2: Configurar a cultura organizacional em conjunto com a


equipe, incentivando o estabelecimento de ambiente escolar organizado, e
produtivo, concentrado na excelência do ensino e aprendizagem e
orientado por altas expectativas sobre todos os estudantes. (grifo nosso).
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO; CONSELHO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO, p. 8, 2021).

A cultura, compreendida como um conjunto complexo de conhecimentos, crenças,


costumes, hábitos e capacidades adquiridos por uma sociedade, deverá dar lugar ao conceito
de cultura organizacional que ao adentrar os sistemas educacionais, vem imbuídos de uma
percepção da cultura empresarial. Os diretores, por sua vez, diante de tal cultura das
orientações advindas dos altos escalões, terão uma postura de subserviência, de falta de
399

autonomia, mediante a busca da eficiência, aferida por avaliações, promoção da


competitividade entre profissionais e escolas, com foco nos resultados. (BOTELHO;
SILVA, 2022, p. 14).
Competência 3: Comprometer-se com o cumprimento da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) e o conjunto de aprendizagens essenciais e
indispensáveis a que todos os estudantes, crianças, jovens e adultos têm
direito, valorizando e promovendo a efetivação das Competências Gerais
da BNCC e suas competências específicas, bem como demais documentos
que legislam a educação brasileira.

Competência 4: Valorizar o desenvolvimento profissional de toda a equipe


escolar, promovendo formação e apoio com foco nas Competências Gerais
dos Docentes, assim como nas competências específicas vinculadas às
dimensões do conhecimento, da prática e do engajamento profissional,
conforme a BNC-Formação Continuada, mobilizando a equipe para uma
atuação de excelência.

Competência 5: Coordenar o programa pedagógico da escola, aplicando os


conhecimentos e práticas que impulsionem práticas exitosas, pautando-se
em dados concretos, incentivando clima escolar propício para a
aprendizagem, realizando monitoramento e avaliação constante do
desempenho dos estudantes e engajando a equipe para o compromisso com
o projeto pedagógico da escola. (grifo nosso). (MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO; CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, p. 8, 2021).

De acordo com a competência 5, cabe aos diretores, avaliar constante o desempenho


dos alunos, bem como regulamentar as práticas docentes e as questões pedagógicas advindas
da busca por resultados, desconsiderando o processo de ensino e aprendizagem e de
transformação dos estudantes (BOTELHO; SILVA, 2022, p. 15).
Competência 6: Gerenciar os recursos e garantir o funcionamento eficiente
e eficaz da organização escolar, realizando monitoramento pessoal e
frequente das atividades, identificando e compreendendo problemas, com
postura profissional para solucioná-los. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO;
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, p. 8, 2021).

A lógica empresarial pressupõe que os problemas relacionados às verbas para a


educação devem estar à cargo do diretor para que com eficiência e eficácia obtenha bons
resultados escolares. A PEC 95/2006, no entanto, ao estabelecer uma legislação que
modificou o regime fiscal, teve como foco um congelamento por 20 anos nas áreas da
educação e da saúde. Aos diretores cabe, portanto, conseguir gerenciar recursos muito
limitados e atribuir aos profissionais da educação os maus resultados. (BOTELHO; SILVA,
2022, p. 15).
Competência 7: Ter proatividade para buscar diferentes soluções para
aprimorar o funcionamento da escola, com espírito inovador, criativo e
orientado para resolução de problemas, compreendo sua responsabilidade
perante os resultados esperados e sendo capaz de criar o mesmo senso de
responsabilidade na equipe escolar. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO;
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, p. 8, 2021).
400

Na competência 7, o foco está na gestão por resultados, individualizando e


responsabilizando os profissionais da educação. A lógica empresarial permeia outras
competências da Matriz, que utiliza palavras conhecidas no mundo empresarial em um
contexto disfarçado de inovação, de autonomia, quando, na verdade há um afastamento da
visão democrática estabelecida na LDB (BOTELHO; SILVA, 2022, p. 15).
Competência 8. Relacionar a escola com o contexto externo, incentivando
a parceria entre a escola, famílias e comunidade, mediante comunicação e
interação positivas, orientadas para o cumprimento do projeto pedagógico
da escola (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO; CONSELHO NACIONAL
DE EDUCAÇÃO, p. 8, 2021).

Destacamos ainda a competência 9:


Competência 9: Exercitar a empatia, o diálogo e a resolução de conflitos e
a cooperação, promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com
acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos
sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem
preconceitos de qualquer natureza, para promover ambiente colaborativo
nos locais de aprendizagem (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO;
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, p. 8, 2021).

A sobrecarga de trabalho e o acúmulo de funções, sobretudo nas escolas maiores,


acabam por afastar o diretor de uma relação mais próxima com seus pares, fazendo com que
este não corresponda a essas expectativas, nem à inevitabilidade de mediar conflitos
advindos das relações entre os diferentes atores da comunidade escolar (BOTELHO;
SILVA, 2022, p. 15).
E por último, a competência 10:
Competência 10. Agir e incentivar pessoal e coletivamente, com
autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência, a abertura a
diferentes opiniões e concepções pedagógicas, tomando decisões com base
em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários,
para que o ambiente de aprendizagem possa refletir esses valores
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO; CONSELHO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO, p. 8-9, 2021).

Conclusões
Embora a intenção de aplicar às escolas os princípios de produção inerentes às
empresas não seja recente, a lógica da produtividade empresarial capitalista sobre as políticas
educacionais e, particularmente à gestão escolar, tem se exacerbado A escola, como
instituição formadora, transformadora e democrática, vem perdendo sua “essência” diante
de parâmetros tão específicos de ação, comuns ao setor privado, que reduzem a autonomia
e limitam o potencial criativo e crítico do diretor, cuja sobrecarga de trabalho acaba por
distanciá-lo da comunidade escolar, promovendo uma ruptura entre seus pares.
Não obstante a isso, precisamos nos ater às singularidades e à heterogeneidade de
cada escola, não observadas pelas políticas públicas propostas. As unidades escolares não
401

são denominadas “unidades” por acaso. As comunidades às quais pertencem são distintas e
possuem demandas específicas e, da mesma forma, os profissionais que a ela pertencem
possuem formação distinta. Até mesmo os recursos educacionais a elas repassados, não são
igualitários. Não há como uniformizar diferenças e peculiaridades inerentes a cada escola. E
é nas diferenças que cada unidade escolar se faz única. Na pluralidade está a sua “marca
registrada” e é nesse contexto que o meio em que se localiza se engrandece e a faz primordial.

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2021-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 15 out. 2022.
VIEIRA, Sofia Lerche; VIDAL Eloísa Maria. Gestão democrática no Brasil: desafios e
implementação de um novo modelo. Revista Iberobrasileira de Educación, n. 67, 2015, p.
19-38. Disponível em: <
https://redined.educacion.gob.es/xmlui/bitstream/handle/11162/176938/v.67%20p%2019-
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WÉBER, Demétrio. Gestão: CNE aprova matriz para diretores. Aprendizagem em Foco, n.
61, maio 2021. Disponível em: <https://www.institutounibanco.org.br/wp-
content/uploads/2021/05/boletim-61-matriz-cne-2.pdf>. Aceso em: 17 out. 2022.
403

A URGÊNCIA DE UMA PEDAGOGIA CRÍTICO-REFLEXIVA NA EDUCAÇÃO


BÁSICA: A EXPERIÊNCIA DOS GINÁSIOS ESTADUAIS VOCACIONAIS DO
ESTADO DE SÃO PAULO (1962-1969), CAMINHOS E POSSIBILIDADES.

Wesley Wander Dos Santos Ferrarezi135


Vânia de Fátima Martino136

Introdução
Este texto objetiva delinear a trajetória dos Ginásios Estaduais Vocacionais do Estado
de São Paulo (1962-1969), sua organização curricular e a possibilidade de interlocução com
a educação básica na atualidade. Diante disso, tomamos como referência teórica
metodológica a pedagogia crítico-Social dos conteúdos, desenvolvida pelo professor José
Carlos Libâneo no livro ‘‘Democratização da escola pública: A pedagogia crítico-social
dos conteúdos’’. A prática pedagógica desenvolvida pelos Ginásios Estaduais Vocacionais
(GEVs) foi única e relevante, tanto pela forma de trabalhar seus conteúdos quanto pela
ênfase dada ao currículo. Os GEVs foram instituições educacionais que surgiram no início
dos anos 1960 no Estado de São Paulo entre 1962 e 1969. Esses colégios funcionaram em 6
cidades: Americana, Batatais, Barretos, Rio Claro, São Caetano do Sul e São Paulo.
Por que estudar os GEVs ? Essas instituições construíram e aperfeiçoaram uma
pedagogia crítica-reflexiva, essas escolas conseguiram se conectar com a realidade concreta
dos educandos através de um currículo flexível, ou seja, as propostas se moldavam conforme
as condições reais dos alunos. À luz desses argumentos, nossa investigação buscou resgatar
os aspectos mais significativos dessa experiência ‘‘revolucionaria’’ para os anos 1960. O
esforço aqui está em analisar possibilidades de recuperação das características mais
relevantes do currículo dos GEVs amparado pela pedagogia crítico-social dos conteúdos
como referencial pedagógico, tendo em vista, que a educação brasileira atualmente enfrenta
diversos desafios, principalmente após o golpe que destituiu a presidenta eleita
democraticamente Dilma Rousseff (2011-2016).
Utilizamos como metodologia a revisão bibliográfica, sendo assim, foram
consultadas diversas obras impressas e digitais, as obras digitais foram buscadas nos
seguintes sites: Google Acadêmico, Gvive e Scielo. Sobre o método utilizado Lakatos e
Marconi (2010, p. 166) descrevem que a ‘‘pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias,
abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo’’.

135
Mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da FCHC – UNESP – Campus de Franca.
[email protected]
136
Prof. Dr. Orientadora do Programa de Mestrado em Planejamento e Análise de Políticas Públicas da FCHC
– UNESP – Campus de Franca. [email protected]
404

Desenvolvimento
Para os objetivos deste texto é interessante compreender á difusão das ideias que
vigoravam entre os anos de 1930 á 1960 até o surgimento dos GEVs em 1962. O período em
questão aborda os movimentos escola-novistas e a tentativa da igreja católica em conter o
avanço de outras ideias educacionais que ameaçavam sua hegemonia, bem como a
implantação da primeira Lei de Diretrizes e Bases 4.024/61 da educação brasileira. Diante
disso, vale destacar a atuação dos Pioneiros da educação que escreveram o manifesto para
uma educação nova em 1932. Dentre eles estavam Anísio Teixeira (1900-1971), Lourenço
Filho (1897-1970) e Fernando de Azevedo (1894-1974) que ficaram conhecidos como os
‘‘cardeais da educação nova’’. O manifesto propunha uma educação pública gratuita e
obrigatória para todas as crianças, laicidade do ensino, escola única, dentre outras propostas
‘‘revolucionarias’’ para aquele período em questão. Porém estes avanços da escola nova
foram parcialmente interrompidos com a instauração do Estado Novo (1937-1945) na era
Getúlio Vargas.
No período do Estado Novo houve um enorme recrudescimento, diante disso, não
ocorreram mudanças significativas principalmente pelo fato do sistema educacional
brasileiro ter se tornado um aparelho burocrático do Estado, nesse contexto um tanto quanto
ditatorial as práticas pedagógicas começaram a ser padronizadas, especialmente após a
criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, chefiado por Francisco Campos, que
implantou a Reforma em 1931. Na tentativa de suprir as carências de mão de obra qualificada
para o setor industrial daquele período, foram criadas as leis orgânicas do ensino ou como
ficaram conhecidas, Reformas Capanema, instituídas através de oito decretos-leis.
Dentre estes oito decretos-leis foram inseridas algumas reivindicações do Manifesto
dos Pioneiros da Educação (1932), ou seja, foi uma vitória parcial dos pioneiros da educação
nova. No entanto essas reformas ainda mesmo contendo certas exigências presentes no
Manifesto não conseguiram atender as necessidades da educação brasileira. Saviani (2019)
aponta que as reformas como um todo tinha caráter centralista, burocrático e elitista, isto é,
privilegiava as elites com o ensino secundário, restando ao povo o ensino profissional.
Com o fim do Estado Novo em 1947 tiveram início discussões referentes à criação
das diretrizes básicas da educação, principalmente com o termino da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945) e inicio da Guerra Fria. Cunha e Góes (1986) relatam que os debates
quanto a Lei de Diretrizes e Bases 4.024/61 ficaram principalmente entre os educadores que
eram defensores da escola pública, gratuita e laica e os privatistas do ensino, que utilizaram
o Substitutivo Lacerda para combater o Projeto Mariani. Nesse período ainda prevalecia os
Decretos-leis instituídos na Reforma Capanema, ou seja, experiências isoladas eram
405

proibidas, pois as reformas feitas pelo Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema
estavam alinhadas com os projetos políticos ideológicos de Getúlio Vargas. Diante disso,
era urgente e necessária uma redemocratização para que inovações educacionais pudessem
ser realizadas. Esse cenário educacional começou a se desenhar apenas em 1958 com a
instauração das normas e instruções feitas pelo MEC para o funcionamento de classes
experimentais para o ensino secundário.

As Classes Experimentais de Socorro e o início dos Ginásios Estaduais Vocacionais


É sob esse contexto de transição que irão surgir diversas experiências educacionais,
difundindo distintas metodologias. Para interesse deste texto, destacamos as Classes
Experimentais de Socorro/SP, que foram consideradas o embrião dos GEVs.
As Classes Experimentais de Socorro se estabeleceram como uma experiência solida
e inovadora, o que chamou a atenção do Secretário Estadual de Educação (1960) Luciano de
Vasconcelos Carvalho. A visita do secretario de educação foi um grande passo para
implantação deste experimento em outras localidades do Estado de São Paulo, pois nesse
momento estava sendo discutida a reforma do ensino industrial.
A Reforma do Ensino Industrial, a Lei Estadual 6.052, de 3 de Fevereiro de 1961,
abriu possibilidade para implantação dos GEVs, diante disso, foi montada uma comissão,
Serviço de Ensino Vocacional (SEV) que se encarregou de elaborar o texto legal para
regulamentação e funcionamento dos Vocacionais. O SEV se encarregou de todas as
tratativas para criação dos GEVs, assim, foram realizadas pesquisas das localidades onde
seriam implantadas as escolas, captação de recursos, pesquisa socioeconômica das cidades
escolhidas e contratação de professores e funcionários. A Lei de Diretrizes e Bases nº
4.024/1961, viabilizou e os GEVs puderam se apoiar também no artigo 104 da lei federal.

As práticas pedagógicas dos Ginásios Estaduais Vocacionais


Após breve relato de como essas instituições foram concebidas, o próximo passo
deste texto é se aproximar de algumas das características que destacaram os ginásios das
demais instituições escolares do período dos anos 1960. Os GEVs buscaram novas
concepções de ensino se diferenciando de outras instituições, sendo assim, pautava suas
metodologias na realidade concreta dos indivíduos, ou seja ‘‘Quanto ao jovem, porém, o que
se propunha especificamente era uma educação que o formasse no entendimento da realidade
socioeconômica, política e cultural do país, e que ao mesmo tempo o tornasse capaz de
intervir nessa realidade’’ (MASCELLANI, 2010, p. 105).
As estratégias pedagógicas dos GEVs buscavam enfrentar as dificuldades do
cotidiano, isto é, a partir dos problemas detectados se procurava as soluções. Nesse sentido,
406

era necessária uma aproximação das atividades desenvolvidas, como por exemplo, a
integração curricular, que era feito através dos Estudos Sociais e Estudos do meio. Por dar
grande ênfase em tudo àquilo que era concreto, os GEVs foram reconhecidos como escolas
comunitárias por trazer a realidade dos alunos para o planejamento curricular, absorvendo
as características culturais e socioeconômicas da localidade.
Conforme o passar dos anos os GEVs aperfeiçoaram uma pedagogia social
humanista, isto é, a construção do currículo era desenvolvida de maneira democrática e
participativa por alunos, professores, gestores, pais, e comunidade externa, tendo como norte
uma visão curricular crítica-reflexiva. Pois ‘‘A partir dessas análises, o currículo escolar
devia se apresentar como resposta aos problemas levantados, direcionando a ação educativa
para a concretização dos objetivos já mencionados‘‘ (OLIVEIRA, 1986, p. 54).
Bebendo da fonte das teorias educacionais marxistas os Vocacionais colocavam o
aluno no centro de todo o processo desenvolvido durante o planejamento, a intenção estava
em situar o educando dentro do ambiente em que o mesmo estava inserido, nesta perspectiva
Mascellani (2010, p. 105) relata que ‘‘Quanto ao jovem, porém, o que se propunha
especificamente era uma educação que o formasse no entendimento da realidade
socioeconômica, política e cultural do país, e que ao mesmo tempo o tornasse capaz de
intervir nessa realidade‘‘. Infelizmente os ginásios não resistiram a repressão militar e
tiveram suas atividades interrompidas abruptamente em 12/12/1969, um golpe para alunos,
professores, pais e toda comunidade.

O Currículo dos Ginásios Estaduais Vocacionais


Sobre o currículo dos GEVs vale ressaltar que pouco restou de todo material que foi
produzido durante os anos de existência dos ginásios. Quando houve a invasão dos militares
tudo foi apreendido e jamais devolvido, diante disso, será analisado o material apresentado
no I Simpósio de Ensino Vocacional durante a Reunião Anual da SBPC, publicado na revista
Ciência e Cultura, no ano de 1968, pois nela se encontra as bases que foram utilizadas para
a elaboração do currículo dos GEVs.
Podemos visualizar no trecho a seguir a preocupação que existia com a construção
do currículo, pois segundo o documento na tentativa de atender e realizar um processo
educativo adequado aos educandos através do currículo, o mesmo era definido ‘‘como toda
ação planejada por educadores com a preocupação de possibilitar, aos educadores, um salto
qualitativo no desenvolvimento da personalidade’’ (SÃO PAULO, SIMPÓSIO SOBRE
ENSINO VOCACIONAL, 1968, p. 492).
As preocupações dos GEVs em planejar e estruturar o currículo com base na
realidade social dos alunos está presente em diversas ocasiões do documento apresentado no
407

Simpósio, onde é abordado que a analise da realidade amparada por dados objetivos, levará
aos problemas que deverão ser trabalhados e a partir disso, serão estabelecidos às metas que
nortearão este processo, assim como, os recursos necessários e as constantes avaliações que
permitirão visualizar os resultados e quando for preciso desenvolver novas condições para
reformulação (SÃO PAULO, SIMPÓSIO SOBRE ENSINO VOCACIONAL, 1968).
Diante do exposto, a conceituação curricular desenvolvida pelos GEVs, está
claramente embasada nas concepções pedagógicas com características progressistas, tendo
em vista, que o esforço estava em utilizar o conhecimento da realidade concreta dos
educandos e de suas necessidades, para que os mesmos atuassem de forma crítica e reflexiva.
Nesse sentido, para atingir os objetivos esperados os GEVs se utilizaram de duas
importantes ferramentas educacionais, os Estudos Sociais e Estudos do Meio.
Os Estudos Sociais se tornaram a chave para integração entre as disciplinas, pois o
mesmo tinha o papel de interliga-las, sendo assim, se trabalhavam História, Geografia,
Antropologia, Sociologia e Economia, e a partir dos Estudos Sociais eram interligadas as
outras áreas: Português, Educação Física, Matemática, Ciências, Física, Economia
Doméstica, Biologia, Educação Musical, Artes Industriais, Artes Plásticas, Práticas
Comerciais e Agrícolas.
Os Estudos Sociais estiveram encarregados de ser o núcleo do currículo dos ginásios,
ou seja, ficou em sua responsabilidade organizar as atividades que seriam desenvolvidas
junto às outras disciplinas. No bojo dos Estudos Sociais estavam propostas de garantir aos
educandos um panorama da realidade global, em outras palavras, de forma concêntrica os
educandos apreendiam o que estava próximo e gradativamente passavam para o que se
encontrava distante. Isto é, se buscava de maneira crítica-reflexiva contribuir para que os
educandos se encontrassem como indivíduos dentro da sociedade e estivessem em contato
com o mundo.
Outra área que teve grande destaque e colaborou com o processo de
interdisciplinaridade foram os Estudos do Meio, pois parte da interlocução entre as
disciplinas caberia aos Estudos do Meio executar, assim como colocar o aluno frente à
realidade concreta. Segundo Balzan (2013) os Estudos do Meio transcenderiam a sala de
aula entrando em contato direto com a realidade. Esta poderosa técnica pedagógica fazia
com que os alunos refletissem o ambiente ao redor de maneira crítica, as investigações feitas
a partir dos Estudos do Meio levavam os educandos á fazer diferentes pesquisas. Balzan
(2013) esclarece que; na 5° serie os Estudos do Meio se realizavam a partir da realidade mais
próxima, diante disso, se tornava mais fácil locomover com os alunos, na 6° serie se tornava
mais raro os estudos por ter que sair do Estado, na 7° serie as atividades eram voltadas para
408

o país, dificultando ainda mais sua realização, porém não impedindo que fossem feitos os
estudos, na 8° serie os problemas mundiais seriam estudados.
As atividades desenvolvidas pelos GEVs foram duramente criticadas pelos setores
conservadores, isso se intensificou após o golpe militar de 1964. A liberdade educacional e
o caráter transformador dos ginásios não estavam na ordem do dia de um regime truculento,
repressivo e assassino.

Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos


Com o intuito de embasar a experiência dos GEVs, utilizamos a pedagogia crítico-
social dos conteúdos. Esta abordagem pedagógica desenvolvida pelo professor José Carlos
Libâneo (2014), esta situada no bojo das pedagogias progressistas descritas no livro;
Democratização da Escola Pública: A pedagogia crítico-social dos conteúdos. A escolha
pela pedagogia crítico-social dos conteúdos se dá pelo entendimento que é somente através
de uma pedagogia progressista que haverá possibilidade dos educandos apropriar-se de todo
aprendizado necessário para atuar dentro da sociedade de maneira crítica-reflexiva.
Assim como os GEVs a pedagogia crítico-social dos conteúdos buscou utilizar os
conteúdos de ensino próximo da realidade dos alunos, ou seja, a prática social reflexiva e
transformadora ao se trabalhar com as contradições da realidade vivenciada pelo educando
faz com que o mesmo compreenda como ocorrem as relações sociais entre as classes
antagônicas. Nesse sentido, o professor Libâneo esclarece que ‘‘a pedagogia crítico social
assume a historicidade da escola, sendo determinada pelos interesses opostos das classes
existentes na sociedade, e, ao mesmo tempo, determinante, por que histórica e fruto da
atividade humana transformadora (LIBÂNEO, 2014, p.136). Portanto, ao analisar o que foi
exposto pelo professor Libâneo, fica claro que a experiência desenvolvida pelos GEVs e a
pedagogia crítico social dos conteúdos se planejavam a partir das contradições da realidade,
ou seja, o esforço estava em capacitar o educando para que o mesmo pudesse construir e
formular valores de maneira crítica-reflexiva e dialética.
Ambas seguiram as concepções de Marx (1978) quando afirmam que a produção do
conhecimento ocorre a partir das atividades práticas dos seres humanos, em outras palavras,
os homens exercem diferentes tarefas dentro de suas vidas, sendo assim, apreende,
compreende, transforma e é transformado, isso ocorre por meio do trabalho. Libâneo (2014)
segue esta mesma linha de pensamento quando descreve que a pedagógica crítico-social dos
conteúdos parte das condições concretas, onde ocorrem as contradições e é através dessas
condições concretas que as formulações pedagógicas ‘‘determina princípios e meios como
diretrizes orientadoras para os processos de ensino necessários ao domínio de
conhecimento’’ (LIBÂNEO, 2014, p.136). A busca por conteúdos concretos, vivos e
409

capazes de dialogar com a realidade social do educando é o que aproxima os GEVs da


pedagogia crítico-social dos conteúdos, foi esse o fator principal que nos levou a utilizar está
abordagem pedagógica como pano de fundo para os GEVs.

Educação Básica e a urgência de uma pedagogia crítico-reflexiva


Atualmente a educação básica no Brasil se encontra em situação alarmante,
principalmente pelas crises cíclicas vivenciadas pelo sistema capitalista, um dos fatores
preponderantes para que isso ocorresse esta intimamente relacionado ao livre mercado, que
prometia levar o equilíbrio e á igualdade a todos os brasileiros, porém o que se materializou
foi uma enorme desigualdade social entre a população. Este colapso sistêmico que o Brasil
tem vivenciado trouxe para educação grandes perdas, principalmente após a Emenda137
Constitucional nº 95/2016 de congelamento de gastos.
É sob esta perspectiva que políticas educacionais influenciadas pela onda neoliberal
têm ganhado campo em meio á crise política que se instaurou no Brasil após o golpe que
destituiu a Presidenta da República eleita democraticamente, Dilma Rousseff (2011-2016).
Desse momento em diante, movimentos conservadores, religiosos e radicais de extrema
direita, como o Escola Sem Partido, têm ganhado um espaço significativo nos debates
públicos e nos meios digitais.
Com a promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC - 2018), ficou
claro que a mesma apenas buscou atender as demandas neoliberais, ou seja, as desigualdades
sociais vivenciadas pelo país não estiveram em pauta, isso demonstra o porquê de ‘‘grupos
empresariais, como a Fundação Lemann, o Instituto Ayrton Senna, o Todos pela Educação
são unânimes na defesa da base, difundindo o discurso da igualdade de oportunidades que a
ela pode proporcionar” (GIROTTO, 2019, p. 2). Atualmente a BNCC é o principal
documento da educação nacional, e o mesmo não aborda possibilidades de superação das
desigualdades sociais, sendo assim, melhorias dos espaços educacionais e a diferença da
qualidade de ensino entre escolas públicas e particulares não foram debatidas. Sob esta
perspectiva, se torna mister discutir caminhos e possibilidades para a educação atual, isto é,
uma pedagogia educacional que irá lutar por uma sociedade mais justa e igualitária a partir
de conteúdos vivos e concretos.

Proposições para o presente e considerações finais

137
A Emenda Constitucional nº 95/2016 que foi aprovada em 2016 e tem por objetivo congelar os gastos
públicos pelos próximos 20 anos, abrindo possibilidade de revisão após 10 anos, diante disso, esta Emenda
afetará a qualidade da educação pelo fato de congelar o aumento real de investimentos.
410

O presente texto apresentou temas conflituosos e certa preocupação referente à atual


situação da educação básica no Brasil. Neste sentido, entendemos que é somente sob a
conscientização dos educandos e através de uma pedagogia crítico- reflexiva que será
possível criar os elementos essenciais para emancipação dos indivíduos. A experiência dos
GEVs amparada pela pedagogia crítico-social dos conteúdos pode ser um caminho para
tornar a escola um local apropriado de socialização de conhecimento e que criará as
condições necessárias para jovens terem acesso a uma educação de qualidade e
transformadora. Portanto, visando proporcionar caminhos e possibilidades para a educação
básica brasileira, concluímos que alguns aspectos pedagógicos e metodológicos dos GEVs
podem ter aplicabilidade. A fim de contribuir para uma educação crítico-reflexiva este artigo
propõe duas sugestões:
- O currículo das escolas deve proporcionar um novo olhar sobre a realidade concreta
dos educandos, isto é, o currículo deve carregar propostas que dialogue com a realidade
social do aluno, sendo assim, o mesmo não pode ser engessado e inflexível.
- Dentro da BNCC que atualmente é o documento norteador para a educação básica,
existem os itinerários formativos que abrem possibilidade para utilizar experiências
diferentes na composição do currículo, nesta perspectiva, a BNCC traz que a composição do
currículo do Ensino Médio deverá ser composta pela BNCC e por itinerários formativos, isto
significa ‘‘que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos
curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de
ensino’’ (BRASIL, 2018, p. 475). Este artigo trouxe algumas discussões que devem ser
repensadas e debatidas, tendo como norte o início de uma transformação na sociedade a
médio e longo prazo, pois entendemos que a escola tem a função de criar condições que
contribuam para uma sociedade justa, de qualidade e igualitária.

Referências
BALZAN, Newton Cesar. Estudos sociais: opiniões e atitudes de ex-alunos. Cadernos de
Pesquisa, n. 22, p. 31-70, 2013.
CUNHA, Luiz Antônio; DE GÓES, Moacyr. O golpe na educação. 04. ed. Rio de Janeiro,
RJ: Zahar, 1986.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia científica. 7. ed. São
Paulo: Atlas, 2010.
LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública. Edições Loyola, 2014.
MARX, Karl et al. Crítica da educação e do ensino. 1978.
MASCELLANI, Maria Nilde. Uma pedagogia para o trabalhador: O Ensino Vocacional
como base para uma proposta pedagógica de capacitação profissional de trabalhadores
desempregados (Programa Integrar CNM/CUT). 1999. 280 p. Tese (Doutorado).
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
411

OLIVEIRA, Mariângela Paiva. A memória do Ensino Vocacional: Contribuição


Informacional em um Núcleo de Documentos. 1986. 215 p. Dissertação (Mestrado em
História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 05. ed. Campinas, SP:
Autores Associados, 2019.
SÃO PAULO, SIMPÓSIO SOBRE ENSINO VOCACIONAL, 1., 1968. [Trabalhos
apresentados]. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 491-502, 1968.
412

UM ESTUDO DO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO SITUACIONAL EM


UMA INSTITUIÇÃO DE ENSINO: limites e possibilidades

Vinícius da Silva Argenti138


Introdução
Entende-se o Estado como um agente econômico que, por força da legislação, possui
uma dinâmica de sua atuação basicamente estruturada na capacidade de arrecadar recursos
para promover o bem-estar social, no atendimento de necessidades sociais variadas tais como
saúde, educação, infraestrutura e assistência social.
No Brasil a Educação é garantida por meio do dever do Estado de possibilitar a todos
o seu acesso. O direito dos cidadãos de ter acesso à Educação é previsto no artigo 205 da
Constituição Federal:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.

As políticas públicas são concebidas pelo poder legislativo em todas as esferas


(federal, estadual e municipal). Antes de serem apresentadas, é imprescindível que sejam
cuidadosamente estudadas, com base na realidade local, por meio de uma análise minuciosa
do público-alvo da educação, entre alunos e professores. Por meio de um diálogo de
qualidade e de forma contínua entre os espectros político e escolar, é possível avanços na
Educação em termos de qualidade. Neste contexto a escola pode ser considerada um espaço
que reúne elementos físicos e humanos que quando bem integrados possam atender ao
objetivo constitucional supracitado. Para que a escola integre e articule estes elementos de
forma eficiente e eficaz é necessário um planejamento que reúna ferramentas e metodologias
direcionadas à execução de vários processos necessários para o atingimento dos objetivos.
Conforme Libâneo (1994) o plano da escola é um documento global, que expressa
orientações gerais que sintetizam, de um lado, as ligações da escola com o sistema escolar
mais amplo e, de outro, as ligações do projeto pedagógico da escola e os planos de ensino
propriamente ditos.
De acordo com o texto do Art. 12 do Regimento comum das escolas técnicas estatuais
do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS – instituição
autárquica vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico) o Plano Plurianual de
Gestão deve apresentar a proposta de trabalho da escola, ser um norteador das ações

138
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de ciências humanas e sociais.
Mestrando em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. [email protected].
413

educacionais. É de caráter político, pois deve ser construído democraticamente por meio da
integração entre os agentes da escola (equipe gestora, professores e funcionários
administrativos) e a comunidade (alunos, pais, instituições parceiras, entre outras). O plano
plurianual de gestão é o resultado do planejamento escolar e é concebido por meio do projeto
político pedagógico. Seu formato e conteúdo deve apresentar aspectos que possam nortear a
ação da direção, coordenação, equipe docente e administrativa.
Este projeto irá analisar as diretrizes emanadas pelo CEETEPS quanto ao
planejamento e de que forma é interpretado e executado pela comunidade escolar, em
especial os gestores. Tendo em vista o atual formato dos planos das escolas técnicas, sua
forma de concepção e os métodos de execução das ações contidas, propõe-se o seguinte
problema: Quais são as possibilidades e limites do planejamento estratégico situacional de
Carlos Matus na elaboração do planejamento das ETEC’s?
Como objetivo geral, este trabalho irá analisar os limites e possibilidades na
construção PES nas escolas técnicas no âmbito da CEETEPS em geral e particularmente na
esfera da Escola Dr. Júlio Cardoso.
São objetivos específicos deste trabalho:
• Construir um corpus teórico sobre o PES;
• Identificar as características do CEETEPS e em especial da Escola Técnica Dr. Júlio
Cardoso;
• Identificar como a Escola Técnica Dr. Júlio Cardoso do município de Franca
desenvolveu seu planejamento no período de 2017 até 2022;
• Analisar as normas e diretrizes para a construção do planejamento no âmbito das
CEETEPS em geral e da Escola Dr. Júlio Cardoso em particular;
• Identificar as proximidades e os distanciamentos das diretrizes para a construção do
planejamento no CEETEPS e as norteadoras do PES;
• Apreender os limites e possibilidades de construção de um planejamento nos moldes
do PES no âmbito da Escola Dr. Júlio Cardoso.
O planejamento é o meio pelo qual possibilita aos agentes escolares as condições de
análise de cenários, discussão de problemas e propostas de soluções de forma democrática e
integradora. Hoje em dia, no âmbito das instituições públicas e privadas, o planejamento se
faz necessário, independente se seu período de execução seja de curto ou de longo prazo.
Chiavenato (2015) aborda o processo de planejamento estratégico em várias etapas,
desde a intenção estratégica até o resultado. A obra “Planejamento estratégico” constitui-se
como um manual para a elaboração do plano estratégico. Das diversas ferramentas serão
verificadas as que já são aplicadas no projeto político pedagógico como exemplo a definição
da missão, visão e valores, bem como aquelas que fazem parte do processo estratégico, mas
414

ainda não se percebe nos atuais planos plurianuais como é o caso do Planejamento
Estratégico Situacional.
Parente (2010) traz os principais marcos históricos de referência no planejamento
educacional, os pré-requisitos básicos para esclarecer e estimular o desenvolvimento do
pensamento e da ação estratégica na educação além de indicar as principais atividades para
a operacionalização do planejamento com base nas diretrizes do MEC e outros órgãos de
regulação.
Matus (1997) apresenta o planejamento estratégico situacional, também conhecido
pela sigla PES. Este modelo tem como foco uma apreciação situacional, uma etapa inicial
que possui como objetivo a explicação de determinado problema sob pontos de vista
diferentes. Diferentemente do conceito de diagnóstico, fruto do planejamento tradicional, a
proposta de apreciação situacional, construída pela visão dos atores sociais ligados ao
planejamento e sua execução, possibilita uma reflexão e posterior organização das causas
que levam ao problema de forma a facilitar o entendimento e a proposta de ações estratégicas
para resolvê-lo.
Na gestão pública é possível encontrar diversos perfis de atores sociais; uns
cooperam, outros não cooperam seja porque ou se apresentam como indiferentes, ou porque
não compreende o planejamento da forma como se espera pelo planejador ou até porque
podem possuir outros planos conflitosos. O que é problema para um ator, pode não o ser
para outro. Uma possível solução neste emaranhado de perspectivas dos atores sobre
determinado problema está diretamente relacionada a capacidade de coalizão do planejador,
que de alguma forma consegue mapear as causas de determinado problema e suas
interligações, em seguida empregar recursos e ações mais voltadas às pessoas que possuem
interesse em cooperar e levar adiante o planejamento.
Existe uma vasta bibliografia sobre a obra de Matus e o PES. Pesquisas iniciais
trouxeram outros autores que realizam uma análise minuciosa deste modelo de planejamento
nos aspectos teóricos e práticos. Gentilini (2014) examina a influência do PES no
planejamento das áreas sociais, as críticas que surgiram ao planejamento tradicional de
natureza econômica no final dos anos 70, como também abrange os principais conceitos
operacionais e sua adequação nas áreas sociais, especialmente na Educação.
Neto et. al (2006) aponta a escassez deste tema no âmbito público e a falta de clareza
da metodologia. Por fim realiza um estudo de caso na adoção do PES no setor público, na
Coordenadoria da Administração Tributária (CAT) do Estado de São Paulo. Sua pesquisa
exploratória é uma oportunidade para compreensão dos conceitos de administração
estratégica na administração pública, os processos de planejamento do PES e os resultados
415

obtidos que evidenciaram as características, pontos fortes, bem como as limitações deste
modelo. Porém, de forma clara, percebe-se sua importância na modernização do Estado.
Iida (1993) estuda de forma comparativa o planejamento tradicional e o PES, além
de reconhecer este último como método aplicável a sistemas complexos, em situações em
que as incertezas predominam nas organizações sociais. Como resultado, ele identifica o
PES como instrumento flexível, um mapa que pode contribuir na condução das ações de
forma que sejam mais efetivas. Em geral, esta proposta tem condições de corrigir as
inadequações do modelo tradicional de planejamento e o distanciamento entre os
planejadores e executores.
Apesar de sua concepção inicial direcionada ao setor público, Rieg et. al (2014),
realiza um amplo estudo no setor privado quanto à aplicação do PES em três situações: o
problema da desmotivação dos funcionários do setor de qualidade de uma indústria
automobilística; problemas de instabilidade do produto; o plano de carreira em uma empresa
de serviços de manutenção elétrica, instrumentação e mecânica. Como métodos de pesquisa,
os autores iniciam com a abordagem das suas características estruturais e, em uma dimensão
qualitativa e descritiva demonstram na forma de esquemas a aplicação do PES nos
três casos citados o que facilita o entendimento e aplicação em outras situações.
Por fim observa-se que o planejamento estratégico situacional é um tema atual e
relevante. Um amplo estudo e aplicação do modelo pode contribuir em situações diversas
pois tem como princípio a identificação de problemas e posterior compreensão de forma
coletiva e participativa dos atores, pessoas que estão integradas ao planejamento e
implementação de ações no setor público, especialmente na área de educação, objeto de
estudo neste trabalho.

Metodologia
Esta pesquisa é de natureza qualitativa, a qual não se preocupa com
representatividade numérica, mas sim com o aprofundamento da compreensão de um
fenômeno social ou organizacional conforme Gerhardt e Silveira (2009). Quanto ao formato,
este trabalho se apresenta como exploratório e descritivo. Exploratório pois pretende
possibilitar ao pesquisador e ao leitor uma maior familiaridade com o problema, de forma a
torná-lo mais claro. E descritivo por necessidade, pois para se compreender o PES como um
modelo específico de planejamento, deve-se atender para suas etapas e descrevê-las como
forma de melhor compreender a sua sistemática. Espera-se por meio dos estudos que o
problema se torne mais claro e compreensível e que os objetivos sejam atingidos. A pesquisa
seguirá o formato de estudo de caso, a partir de uma intensa exploração de fenômenos ligados
ao planejamento estratégico em uma instituição de ensino.
416

Inicialmente, como forma de possibilitar a construção do corpus teórico sobre o PES,


será realizada uma pesquisa bibliográfica que terá como espinha dorsal o planejamento
estratégico situacional de Carlos Matus e suas aplicações nas políticas públicas escolares.
Como suporte no desenvolvimento serão verificadas as publicações mais recentes na forma
de artigos, apresentações em congressos, dissertações e teses disponibilizados pelas
plataformas Capes, Ibict, Scielo, Usp, Unesp e Unicamp. Como referências iniciais serão
analisados os estudos de Matus (1997), Gentilini (2014), Neto et. al (2006), Rieg et. al
(2014), Rodrigues (2017), Azevedo (1992), Silva (2016). Como método de seleção, serão
analisados os resumos destes materiais, entre outros que poderão ser acrescentados conforme
o andamento da pesquisa. Em seguida serão aplicadas técnicas de fichamento de modo a
oferecer um suporte na construção do corpus teórico em seus aspectos conceituais e
metodológicos.
Para o atingimento dos objetivos específicos relacionados à identificação das
características do CEETEPS e da escola francana bem como seu desenvolvimento do
planejamento serão levantados documentos disponíveis no website da Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) e no arquivo interno da ETEC Dr. Júlio
Cardoso.
A ALESP contém a legislação que trata da criação e reconhecimento do CEETEPS
como entidade autárquica e vínculo com a Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (decreto-lei 6 de outubro de 1969 e decreto-lei de 4 de março de 1970). A
lei complementar nº 1049 de 19 de junho de 2008 apresenta as medidas de incentivo à
inovação tecnológica, pesquisa científica e tecnológica. A ETEC Dr. Júlio Cardoso, por meio
de seu arquivo interno e o departamento do Centro de Memória disponibiliza documentos
históricos, atas de reunião de planejamento e materiais que tratam dos resultados das
discussões de análise ambiental, definição de metas e objetivos, atores envolvidos no
planejamento além das atas de reuniões administrativas, conselhos de classe, conselhos de
escola, resultados do sistema de avaliação interna “Observatório escolar” que estão
relacionados às orientações específicas vindas do CEETEPS. Estes documentos serão
categorizados e analisados de forma que possibilite a caracterização histórica, social e
política destas instituições.
Quanto ao objetivo específico relacionado à análise das normas e diretrizes para a
construção do planejamento no âmbito da CEETEPS e da escola francana, é disponibilizado
um banco de dados digital público com acesso via website que reúne instruções, memorandos
e manuais produzidos por setores como o DGNL (Departamento de Gestão de Normas e
Legislação) e o DGEF (Departamento de Gestão Estratégica e Funcional). Foram levantados
para análise:
417

• a deliberação CEETEPS nº 3, de 18/07/2013 que aprova o regimento das ETECs e


suas alterações, sendo a mais recente aprovada no ano de 2022;
• os manuais de integração de docentes, servidores técnico-administrativos,
empregados públicos, empregados permanentes, auxiliar de docente e cargos de
confiança;
• o manual de construção do PPG (Plano Plurianual de Gestão).
O CEETEPS ainda disponibiliza o website HAE CETEC, que permite o acesso ao
Plano Plurianual de Gestão (PPG), bem como os projetos de coordenação pedagógica e de
curso. Acredita-se que a análise destes projetos, que atuam na dimensão tática do
planejamento, poderá contribuir na identificação de fatores possibilitadores e limitadores na
construção do PES, tendo em vista que oferecem meios para se identificar o espaço de
governabilidade dos atores escolares, além de verificar o nível de autonomia das ETEC’s na
elaboração de seu planejamento seja no âmbito estratégico, tático ou operacional. Justifica-
se o recorte temporal entre os anos de 2017 e 2022 em função da possibilidade de acesso às
normativas que tratam do planejamento escolar.
As análises documentais terão como base a metodologia da análise de conteúdo de
Bardin (2006) que indica a exploração do material com base na formação de categorias que
serão construídas a posteriori. O foco é encontrar elementos que se referem a diretrizes,
regras e especialmente procedimentos na elaboração do planejamento escolar e a forma
como são interpretados pelos gestores e verificadas as perspectivas possibilitadoras e
limitadoras na construção do PES. Outros documentos poderão ser adicionados a depender
da evolução da pesquisa até o ano de 2022.

Resultados esperados
A partir do resultado, será apresentado um relatório de análise do planejamento em
comparação ao modelo de Carlos Matus além de um instrumento prático que possa facilitar
sua concepção e implementação. Espera-se que o trabalho traga uma melhor compreensão
acerca dos processos de planejamento com base na estrutura de diretrizes do CEETEPS e
como estas evoluíram nos últimos cinco anos. A identificação dos elementos possibilitadores
na construção do PES irão contribuir na identificação de ferramentas estratégicas que
poderão ser implementadas ou aprimoradas nas escolas técnicas. Já quanto aos elementos
limitadores, espera-se que o trabalho contribua para uma possível reflexão de quais
melhorias e adaptações poderão ser estudadas no CEETEPS e nas escolas técnicas para que
a instituição tenha condições de utilizar as técnicas do Planejamento Estratégico Situacional
como forma de mobilizar com maior eficiência seus recursos humanos.
418

Referências
AZEVEDO, Creuza da S. Planejamento e Gerência no Enfoque Estrategico-Situacional
de Carlos Matus. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/csp/a/LrN4RJ9Knzzn9N7SjjSXSsb/abstract/?lang=pt> Acesso em
21 jul 2022
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Persona, 1977
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
CEETEPS. deliberação nº 3, de 18/07/2013. São Paulo. Disponível em:
<https://www.cps.sp.gov.br/regimento-comum-etec/>. Acesso em 23 jul 2022
CEETEPS. deliberação nº 11, de 18/07/2015. São Paulo. Disponível em:
<https://www.cps.sp.gov.br/regimento-comum-etec/>. Acesso em 23 jul 2022
CHIAVENATO, Idalberto; SAPIRO, Arão. Planejamento estratégico: Fundamentos e
aplicações, da intenção aos resultados. 3ª ed. São Paulo: Campus, 2015.

GENTILIN, João Augusto. Atores, cenários e planos: o planejamento estratégico


situacional e a educação. Disponível em: <
https://www.scielo.br/j/cp/a/Tq5pncH4ZJMywY4hJ5xhZrt/?lang=pt>. Acesso em 20 jul
2022
GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo. Métodos de pesquisa. Disponível
em:
<https://www.google.com.br/books/edition/M%C3%A9todos_de_Pesquisa/dRuzRyEIzmk
C?hl=pt-BR&gbpv=1&printsec=frontcover>. Acesso em 01 jul 2022
IIDA, Itiro. Planejamento estratégico situacional. Disponível em: <
https://www.scielo.br/j/prod/a/pCwYWXkFS6NyL3FYC8FwxWw/?lang=pt>. Acesso em
18 jul 2022
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994 (Coleção magistério 2° grau.
Série formação do professor).
MATUS, C. Adeus, Senhor Presidente. São Paulo: FUNDAP, 1997.
NETO, Francisco Sobreira; JUNIOR, Flávio Hourneaux; POLO, Edison Fernandes. A
adoção do modelo de planejamento estratégico situacional no setor público brasileiro:
um estudo de caso. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/osoc/a/W8vZNcfMRLyVZrSrGQbtLHw/?lang=pt>. Acessso em
20 jul 2022
PARENTE, J. Planejamento estratégico na Educação. 3ª ed. São Paulo: Liber livro, 2010.
RIEG, Denise Luciana, et. al. Aplicação de procedimentos do planejamento estratégico
situacional (PES) para estruturação de problemas no âmbito empresarial: estudos de casos
múltiplos. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/gp/a/zFNsMk5Y4wTbzkvqcF7myPg/?lang=pt>. Acesso em 22 jul
2022
RODRIGUES, Waldecy, et. al. Aplicação do planejamento estratégico situacional no
curso de bacharelado em psicologia do centro universitário luterano em palmas (TO).
Disponível em: <https://periodicos.uff.br/ensinosaudeambiente/article/view/21251> .
Acesso em 18 jul 2022
SANT’ANNA, Geraldo Jose. Planejamento, gestão e legislação escolar. 1ª ed. São Paulo:
Editora Érica, 2014.
419

SÃO PAULO. Decreto lei 6 de outubro de 1969. Assembleia Legislativa de São Paulo.
SÃO PAULO. Decreto lei 4 de março de 1970. Assembleia Legislativa de São Paulo.
SÃO PAULO. Lei nº 952. Assembleia Legislativa de São Paulo.
SÃO PAULO. Lei complementar nº 1049 de 19 de junho de 2008 Assembleia Legislativa
de São Paulo.
SILVA, Alliny, et. al. Planejamento Estratégico Situacional - PES: uma análise
bibliométrica da produção científica brasileira. Disponível em:
<https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/1269>. Acesso em 21 jul 2022
420

A PARTICIPAÇÃO ESTUDANTIL NA GESTÃO ESCOLAR DO IFSP:


A DIMENSÃO PEDAGÓGICA DA GESTÃO DEMOCRÁTICA

Kleber Chaves Pereira139


140
Genaro Alvarenga Fonseca

Introdução
O presente artigo tem como objetivo promover uma breve reflexão sobre a
participação estudantil na gestão escolar em uma instituição de ensino integrante da Rede
Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. As considerações e
argumentações aqui apresentadas são provenientes de um trabalho de mestrado, ainda em
construção, realizado através do Programa de Pós-Graduação em Análise e Planejamento de
Políticas Públicas - UNESP141 de Franca - inscrito no campo de estudo “Política, Gestão e
Formação na Educação”, e que visa investigar “A Participação Estudantil na definição da
Política Pedagógica do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), à luz do princípio de Gestão
Democrática".
A referência feita à gestão democrática tem como origem a Constituição Federal de
1988 que, em seu artigo 206 - inciso VI, a inscreve como um dos prinçipios do ensino público
brasileiro, responsável por contribuir com a efetiva participação da Política Nacional de
Educação no processo de redemocratização do país após duas décadas de ditadura militar.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)142 já havia, conforme demonstram
Albuquerque (2011) e Tavares (1990), por parte de alguns setores ligados à Educação, a
percepção sobre a importância fundamental de se garantir uma ampla participação social na
construção de uma nova ordem democrática, o que colaborou no processo de
institucionalização da gestão democrática do ensino público como um dispositivo
constitucional.
Anos mais tarde, a regulamentação dada a tal dispositivo constitucional pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) consolidou a garantia da participação
dos atores escolares na gestão democrática ao atribuir, a cada sistema de ensino público da
educação básica, de acordo com suas particularidades, a competência de definir suas normas
em relação a esta modalidade de gestão, desde que respeitados os seguintes princípios: “I -
participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

139
UNESP Franca. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas
Públicas. [email protected] .
140
UNESP Franca. Livre Docente. [email protected] .
141
Sigla referente à Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca.
142
A referida Assembleia foi instalada no Congresso Nacional no ano de 1987 e teve a tarefa de elaborar a
nova Constituição Federal, dotada de valores e princípios democráticos, após décadas de regime militar.
421

II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.”


(BRASIL 1996, artigo 14).
Dada a autonomia em relação à definição de suas normas de gestão – desde que
respeitadas as dimensões de participação no Projeto Político-Pedagógico e nos Conselhos
Escolares – os sistemas de ensino assumiram o encargo de criar regulamentações e
estratégias de participação dos vários atores envolvidos no processo de gestão escolar.
Entretanto, a compreensão, ainda difusa, sobre os conceitos de “participação” e de “gestão
democrática”, tornou a tarefa de implementá-las bastante complexa no interior das escolas e
de seus respectivos sistemas.
No que diz respeito à Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica, da qual é integrante o Instituto Federal de São Paulo143 (IFSP), nosso campo
de análise neste artigo, esta complexidade também se faz presente no que concerne à
implementação da gestão democrática como política pública capaz de produzir o
envolvimento de toda a comunidade escolar na definição, construção e execução de um
projeto educacional apto a dar respostas às reais demandas sociais. É bem certo que, do ponto
de vista das diretrizes legais da instituição em questão, todo o sistema de regulamentação
concernente à gestão escolar visou implicar os vários atores nas decisões institucionais,
fazendo figurar em suas normativas144 a garantia da participação estudantil como
componente necessário às ações deliberativas, configurando-se, assim, como uma
racionalidade regida pela lógica da gestão democrática, princípio constitucional do ensino
público. Contudo, Reis e Falcão (2016), ao analisarem a questão à luz da gestão democrática
e de suas instâncias de participação, sinalizam para a insuficiência do que elas chamam de
plano formal na garantia da participação efetiva dos estudantes.
Consequentemente observa-se desde a promulgação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, Lei 9.394 de dezembro de 1996
(LDBEN/96), um movimento nos sistemas de ensino e nas escolas para
criação de mecanismos de participação do estudante na gestão escolar,
sobretudo por meio da representação desse segmento nos Conselhos
Escolares. Apesar de importante, a incorporação dessa preocupação no
plano formal não é suficiente para garantir que essa participação esteja de
fato sendo efetivada na perspectiva da gestão democrática. (REIS;
FALCÃO 2016, p.70).

Assim como as autoras acima Heeren (2019), ao tratar dos princípios


constitucionais da Educação e de sua natureza prática, também questiona a eficiência das
normas legais em seu poder de realizar-se como ação participativa uma vez que a construção

143
O Instituto Federal de São Paulo foi criado pela Lei 11.892/2008 juntamente com outros Institutos Federais
- IFs.
144
Referimo-nos aqui, especialmente, às normativas que regulamentam os órgãos colegiados da instituição
como o Conselho de Classe, o Conselho de Campus e o Conselho Superior, por exemplo.
422

de uma gestão genuinamente democrática pressupõe, entre outros elementos, a existência de


um ambiente educacional favorável que integre seu sistema normativo às condições
pedagógicas adequadas ao seu exercício.
Diante dessa natureza prática que deve ser concretizada nas instituições de
educação, é necessário que tais princípios possam ser observados nas
normativas escolares e também no cotidiano educacional. Nos Institutos
Federais não se faz diferente, [...] a coalisão entre normas e ações
institucionais representa condição única para que o atendimento a esses
dizeres constitucionais sejam plenamente atendidos. (HEEREN, 2019, p.
17).
Eis que, ao assumirmos como pertinente o questionamento direcionado ao poder
das normas quanto à sua capacidade de consolidação da participação estudantil na gestão
escolar, vimo-nos impelidos a buscar elementos que justifiquem tal indagação. Assim, no
que tange ao contexto do IFSP, campo de nossas preocupações neste artigo, verificam-se
alguns estudos realizados sobre o tema, entre os quais destacamos o de Victor (2019), o de
Grutzmacher (2017), o de Iadocicco (2019) e o de Franzini (2020). Em que pese haverem
particularidades teórico-metodológicas nos trabalhos de cada uma destas autoras, alguma
convergência pode ser estabelecida entre elas no que se refere às conclusões alcançadas, qual
seja: a ausência de acesso e de atuação de estudantes nos mecanismos e instâncias de
deliberação, apesar da identificação da existência de normativas institucionais e de espaços
formais145 de participação estudantil. Os motivos dessa ausência, identificada pelas
pesquisadoras, variam desde a falta de conhecimento dos estudantes sobre a existência e o
funcionamento desses espaços até a negligência146 institucional ao desconsiderar o
absentismo desses personagens em momentos de discussão e deliberação das suas políticas
educacionais.
Ora, se a literatura científica sobre o tema em questão aponta para a consolidação
de uma estrutura formal e normativa na referida Rede de Educação Profissional e
Tecnológica e, ao mesmo tempo, para uma deficiência na efetividade da participação
estudantil na gestão escolar, depreende-se a conveniência de se refletir sobre as possíveis
contradições entre um projeto educacional que se propõe democrático/participativo e as
práticas pedagógicas institucionais de gestão desse processo.

Gestão Democrática como Estratégia Pedagógica para a Formação Democrática

145
Aqui referimo-nos como espaços formais, basicamente, aos conselhos deliberativos presentes nas pesquisas
e análises desses autores; exceção feita ao trabalho de Iadoccico (2019), que se debruçou sobre a análise do
processo de construção do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) do IFSP como espaço de participação
estudantil.
146
O termo negligência aqui empregado destina-se a destacar o papel pedagógico da Educação e de seu
princípio constitucional da gestão democrática no processo de formação dos estudantes em uma perspectiva de
participação social, papel este, muitas vezes ignorado pelas instituições de ensino.
423

Uma vez estabelecida, em sintonia com a CF/1988 e com a LDB/1996, a


“participação” como regra geral para a promoção de uma “gestão democrática” no âmbito
do Instituto Federal de São Paulo, resta-nos, sob o ponto de vista acadêmico, referenciar o
que sejam tais conceitos para fins de reflexão a partir de nossos objetivos neste trabalho.
Desta forma, nos debruçaremos a compreender o fenômeno da participação estudantil na
gestão escolar e como este se relaciona, de forma dialética, com o conceito de gestão
democrática. Assim, antecipamos ao leitor que a concepção aqui presente sobre tal fenômeno
o compreende como sinônimo de autonomia e de poder de decisão, ao mesmo tempo em que
concebe a gestão democrática como instrumento estratégico para sua realização.
Dos muitos autores que têm colaborado com a reflexão acerca de quais seriam os
atributos capazes de significar o melhor conceito a respeito do que se espera de uma efetiva
participação estudantil no âmbito da gestão escolar, tomaremos três deles como referencial
teórico para construímos as premissas que ofereçam as respostas mais apropriadas às nossas
indagações. Nesse sentido, têm sido indispensáveis as contribuições de Paro (2008)147 se
pretendemos apreender o universo da participação estudantil sob a ótica da gestão
democrática como princípio do ensino público.
Aceitando-se que a gestão democrática deve implicar necessariamente a
participação da comunidade parece faltar ainda uma maior precisão do
conceito de participação. A esse respeito, quando uso esse termo, estou
preocupado, no limite, com a participação nas decisões. Isto não elimina
obviamente, a participação na execução; mas também não a tem como fim
e sim como meio, quando necessário, para participação propriamente dita,
que é a partilha do poder: a participação na tomada de decisões [...] (PARO
2008, p. 16).

Desta afirmação, depreende-se que a plena participação só se configura como tal no


momento em que as atividades exercidas em seu nome superam a mera execução das
políticas educacionais e passam a agir sobre elas em níveis tais como, o planejamento, a
avaliação, a fiscalização e, impreterivelmente, a deliberação dessas políticas.
Entretanto, a referida capacidade para decidir implica, ainda, a consideração de um
segundo elemento, imprescindível para constituir-se uma prática democrática da
participação estudantil na gestão escolar, a saber: a autonomia. Barroso (1996), ao escrever
sobre a concepção de autonomia, a ela se refere como:
[...] um conceito relacional (somos sempre autónomos de alguém ou de
alguma coisa) pelo que sua ação se exerce sempre num contexto de
interdependência e num sistema de relações. A autonomia é também um
conceito que exprime um certo grau de relatividade: somos mais, ou menos
autónomos; podemos ser autónomos em relação a umas coisas e não o ser
em relação a outras. A autonomia é, por isso, uma maneira de gerir,
orientar, as diversas dependências em que os indivíduos e os grupos se

147
Ressalta-se que o referido autor tem desenvolvido inúmeros estudos sobre o tema em questão, os quais,
alguns deles, encontram-se em nossa bibliografia.
424

encontram no seu meio biológico ou social, de acordo com as suas próprias


leis. (BARROSO apud SANTOS; SILVA, 2016, p. 42).

Acredita-se, a partir do exposto acima, que a autonomia na participação estudantil


deve ser compreendida a partir dessa interdependência relacional e relativa com os demais
atores que realizam a gestão escolar. Dito de outra forma: não se requer o monopólio do
poder decisório aos estudantes para que, de forma isolada e soberana, possam aplicá-lo às
políticas institucionais; porém, suas demandas e argumentações precisam ser consideradas
no processo decisório/deliberativo acerca das políticas pedagógicas às quais eles estarão
sujeitos. Trata-se, isto sim, da produção de um processo de interlocução entre a compreensão
estudantil sobre as questões que permeiam a sua formação e as competências técnicas e
científicas dos educadores, equacionando as demandas e soluções propostas pelo conjunto
da comunidade escolar.
Por último, consideremos um terceiro elemento que consideramos ser essencial na
composição do conceito sobre o fenômeno em estudo neste trabalho. Ao examinar a questão,
Araújo (2009) concorda que o poder deliberativo e decisório, além do cultivo dos valores
democráticos, são imprescindíveis para assegurar uma efetiva participação estudantil na
gestão escolar. Não obstante, para o autor, é necessário, ainda, construir-se uma base
concreta para a sua materialização na rotina escolar por meio da criação do que ele
denominou de “canais político-pedagógicos de participação”.
Dentre os canais político-pedagógicos de participação que devem ser
ampliados e assegurados aos alunos, destacam-se: grêmio estudantil;
conselho escolar; conselho de classe aberto e participativo; contrato
pedagógico de sala de aula; assembleia geral da escola; projeto político-
pedagógico da instituição – respeitando suas especificidades - são espaços
importantes de tomadas de decisão, de discussão e de deliberação sobre as
questões que permeiam o cotidiano escolar. (ARAÚJO, 2009, p. 258).

Como nos alerta Araújo (2009), a participação estudantil, enquanto processo de


ingerência sobre as políticas institucionais, não pode ser experimentada como uma
dissimulação de si mesma, sob pena de não se realizar como processo pedagógico de
formação. Ela ocorre, isto sim, em espaços institucionalmente reconhecidos. A escola,
especialmente a pública, deve assumir posição de alinhamento aos princípios democráticos,
pois, ao se abster de promovê-los, produz a pulverização de seus valores. Assim sendo,
cabem às instituições escolares a criação, a ampliação e a utilização dos espaços e
mecanismos possíveis, no campo da gestão escolar, para a consolidação da participação
estudantil democrática como exercício de aprendizagem e de cidadania.
Desta forma, o aporte teórico por nos utilizado como pressuposto conceitual na
pesquisa que deu origem ao presente artigo compreende que não há participação estudantil
425

efetiva, sustentada pelo princípio de gestão democrática do ensino público, sem a presença
de elementos como: a autonomia para identificar, propor e discutir demandas; o poder
deliberativo para decidir sobre as políticas institucionais; bem como a existência de espaços
e mecanismos formais de legitimação dessas políticas.
No que concerne à metodologia utilizada, adotamos a perspectiva conceitual de
Fávero e Centenaro (2019) sobre a Pesquisa Documental que contempla suas dimensões
qualitativa e globalizante como diretrizes neste trabalho que versa sobre política
educacional.
A pesquisa documental, como procedimento metodológico que se utiliza
de técnicas e instrumentos para apreensão, compreensão e análise de
documentos, é de grande valia para as investigações em políticas
educacionais. Observando a complexidade envolvida nos documentos de
políticas, certamente a pesquisa documental nessa área produzirá
inferências e conhecimentos pautados numa perspectiva qualitativa e
globalizante, atenta a critérios de plausibilidade e validação que darão
confiança e credibilidade aos conhecimentos produzidos. (FÁVERO;
CENTENARO, 2019, p. 183)

Isto posto, compete-nos informar ao leitor sobre a seleção do corpus documental da


pesquisa, classificando-o, segundo Cellard (2008), como documentos: escritos; oficiais; e
públicos. Assim, trabalhou-se com as seguintes fontes documentais: as leis e normativas
institucionais; convocações e atas de reuniões dos órgãos deliberativos sobre políticas
institucionais; portarias, instruções normativas e comunicados provenientes de decisões
destes órgãos colegiados.
Da análise empreendida a partir do modelo de Análise de Conteúdo proposto por
Bardin (1977), pode-se observar, até o presente momento, que os documentos examinados148
nos permitem inferir que as normativas institucionais reúnem subsídios para a realização de
uma gestão democrática atenta à participação estudantil na definição de suas politicas
institucionais.
Tal afirmação se sustenta na constatação da existência da previsão de órgãos
colegiados com representação paritária de toda a comunidade escolar, instituído pela Lei nº
11.892/2008 (Lei de Criação dos IFs) e formalizados pelos artigos 6º e 3º das Resoluções nº
871/2013 (Regimento Geral do IFSP) e nº 45/2015 (Regimento Conselho de Campus),
respectivamente. Observam-se, ainda, as competências normativas e deliberativas atribuídas
a tais órgãos, a exemplo do que ocorre com o denominado Conselho Superior (CONSUP),
instância colegiada apontada como “órgão máximo” de deliberação institucional pelo artigo

148
Ao tratar-se de uma pesquisa ainda em andamento, até o presente momento, foram examinados, cumprindo
com as três fases da abordagem proposta por Bardin (1977), os seguintes documentos: Lei nº 11.892, de 29 de
dezembro de 2008; Resolução n.º 871, de 4 de junho de 2013; Resolução n.º 1100, de 3 de dezembro de 2013;
Resolução n.º 0045, de 15 de junho de 2015; Resolução n.º 03, de 15 de março de 2018.
426

7º do Regimento Geral, competência esta estendida também aos intitulados Conselhos de


Campus (CONCAM) no âmbito das unidades que compõem a instituição.
A referência às unidades que constituem o IFSP nos remete a outro elemento de
análise que nos permite deduzir o alinhamento das normativas institucionais com a gestão
democrática uma vez que o Regimento Geral, em seu artigo 176, delibera sobre a
descentralização das atividades pedagógicas e administrativas de cada unidade institucional,
desde que respeitados os limites regimentais, estatutários e as delegações da Reitoria.
Por fim, das fontes analisadas até aqui, outros dispositivos normativos nos outorgam
deduzir ser o IFSP uma instituição que preza pelo cumprimento dos princípios
constitucionais do ensino público. Ao elencar elementos tais como a eleição de Diretores e
Reitor por meio da consulta proporcional de toda a comunidade escolar (Lei nº 11.892/2008,
art. 13); a garantia da participação dos estudantes em atividades representativas e colegiadas
sem prejuízo das atividades acadêmicas; bem como o reconhecimento institucional das
formas independentes de organização do movimento estudantil (Resolução 871/2013, art.
198 e 199, respectivamente), a instituição sinaliza sua preocupação, ao menos sob a
perspectiva formal, com a construção de mecanismos que possibilitam o exercício de uma
gestão escolar democrática.

Considerações Finais
Da análise aqui empreendida depreende-se que as fontes analisadas149 revelam as
escolhas institucionais sobre uma dada concepção de gestão escolar operante a partir da
colaboração da comunidade escolar, inclusive a dos estudantes.
Ainda que, como discutido neste artigo, somente as determinações normativas sejam
insuficientes para se realizar um projeto democrático de ensino, lembremo-nos que, no
âmbito da Administração Pública, onde se realizam as políticas públicas educacionais,
vigora o princípio da legalidade150, o que exige de suas práticas estreita consonância com as
diretrizes regulamentares que as orientam. Desta forma, se toda política pública requer, para
a sua validade, a formalização de seus atos a partir de normativas que os materializem, então
os documentos até aqui examinados sinalizam a pertinência do caminho institucional
adotado para efetivação da participação estudantil na gestão escolar, uma vez que neles se

149
Aqui nos referimos especificamente às fontes selecionadas para o presente trabalho, quais sejam: os
documentos formuladores das políticas pedagógicas da instituição pesquisada.
150
Sobre este assunto ver o trabalho de Rezende (2014) denominado “Democracia Administrativa e Princípio
da Legalidade: A Política Nacional de Participação Social Constitui Matéria de Lei ou de Decreto?”
427

observa a previsão de uma estrutura e de ferramentas de gestão democrática151, em acordo


com os preceitos constitucionais.
A participação popular na Administração Pública envolve a implementação de
direitos de natureza prestacional, direitos à organização e ao procedimento. Com
efeito, tal participação implica a previsão normativa de uma série de
procedimentos e, muitas vezes, a constituição de órgãos, nos quais ela se dá.
(REZENDE, 2014, p. 42).

Assim, ao referirmo-nos à educação democrática como um longo percurso, compete-nos


inferir que, no que tange ao IFSP, estão dadas as condições de pavimentação necessárias ao
cumprimento de seu trajeto. Entretanto, ressalta-se a dimensão pedagógica como uma
sinuosidade elementar a esta caminhada. Neste sentido, conforme entende Paro (2000), a
vivência da participação estudantil em processos de discussão e decisão deve ser assegurada
como instrumento pedagógico através do qual a consciência democrática pode ser
construída.
Se a verdadeira democracia caracteriza-se, dentre outras coisas, pela participação
ativa dos cidadãos na vida pública, considerados não apenas como "titulares de
direito", mas também como "criadores de novos direitos", é preciso que a educação
se preocupe com dotar-lhes das capacidades culturais exigidas para exercerem
essas atribuições [decisórias], justificando-se portanto a necessidade de a escola
pública cuidar, de forma planejada e não apenas difusa, de uma autêntica formação
do democrata. (PARO, 2000, p. 9 – grifos nossos).

Eis aqui o caráter proposital da Educação como política pública, a qual deve abster-
se do mero espontaneísmo e assumir posição de intencionalidade em relação à formação de
sujeitos aptos a exercerem o poder como capacidade de influir sobre as coisas, o que o autor
acima denomina de “poder-fazer”.

Essa diferença entre o poder que serve à dominação (poder-sobre) e o poder que
reforça a condição de sujeito do outro (poder-fazer) é de grande importância na
apreciação das relações de poder que têm lugar na sociedade, especialmente
quando o assunto em pauta é a educação, que é a própria forma pela qual se
plasmam personalidades humanas. (PARO 2007, p. 14)

Por fim, o que o desenvolvimento do trabalho até aqui realizado nos permite concluir
é que a gestão democrática constitui-se sim um princípio jurídico/legal, mas, sobretudo,
político/pedagógico no sentido em que coloca em conflito os diversos interesses e sintetiza,
como resultado de um processo de aprendizagem e negociação, um determinado
comportamento frente a esses interesses.

Referências

151
Como estrutura e ferramentas de gestão, referimo-nos aqui, além da existência de normativas apropriadas
ao conceito de gestão democrática, também à existência concreta de instâncias colegiadas de participação no
IFSP.
428

ALBUQUERQUE, Ana Elizabeth M. de. O processo de institucionalização do princípio


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Federal do Amazonas – Faculdade de Educação. Manaus, 2019.
430

(DE)FORMAÇÃO PARA O MUNDO DO TRABALHO: REFLEXÕES SOBRE A


LÓGICA NEOLIBERAL NOS PRINCIPAIS REFERENCIAIS DA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA A PARTIR DA PERSPECTIVA BAKHTINIANA

Josiane Paula Etelvino152


Sebastião de Souza Lemes153

Introdução
Norteado pela perspectiva bakhtiniana da análise de discurso, o presente artigo tem
o intuito fazer uma reflexão sobre a formação para o mundo do trabalho como principal
objetivo nos principais documentos de referência para a educação brasileira, sendo esses: o
relatório da UNESCO “Educação: um tesouro a descobrir”, as Leis de Diretrizes e Bases a
partir da década de 1960 e, mais hodiernamente, a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). Evidentemente, uma análise mais apurada da presença desta expressão, mundo do
trabalho, seria necessária no que se refere a totalidade dos documentos, assim como para
abarcar construções textuais semelhantes ao longo dos textos, sendo este um escopo maior
que pretende ser contemplado em escritos futuros.
Sendo assim, neste texto pretende-se fazer uma verificação dos discursos neoliberais
atrelados ao foco na preparação para o mundo do trabalho no trecho que se refere ao objetivo
central do material selecionado a partir do cotejamento destes. Essa reflexão será feita a
partir das contribuições da perspectiva sobre contexto, palavra, ideologia e alteridade do
pensador russo Mikhail Bakhtin, que pode ser descrito como, no mínimo, um filósofo da
linguagem. A referida reflexão se debruça em analisar como a formação para a vida laboral
transitou ao longo do tempo em diferentes documentos oficiais que influenciaram
diretamente a educação brasileira, sendo em âmbito internacional o Relatório da UNESCO
de Jacques Delors e nacional as três Leis de Diretrizes e Bases (LDB), 1960, 1971 e 1996, e

152
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, campus de Araraquara. Doutoranda pelo
Programa de Pós-graduação em Educação Escolar Política e na linha de pesquisa Gestão Educacional pela
UNESP de Araraquara e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Planejamento e Análise de Políticas
Públicas na linha de pesquisa Políticas e Gestão Educacional, pela na UNESP campus de Franca (2017).
Especialista em Produção de material didático pela UNESP, campus de Bauru-SP (2015) e em Planejamento,
Implementação e Gestão de EaD pela Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói-RJ (2014). Graduada
em Geografia pela Universidade de Franca, UNIFRAN, (2009) e em Pedagogia pela Universidade Federal de
São João Del Rei, UFSJ (2018). E-mail: [email protected] .
153
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, campus de Araraquara. Professor
pesquisador da UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e atua nas áreas de Avaliação
Educacional, Currículo, Tecnologia Educacional e Política Pública. Possui graduação em Química com
Licenciatura em Ciências, Mestrado em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, Doutorado em
Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP em São Paulo e Pós-Doutorado pelo Instituto de Educação da
Universidade de Lisboa. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar na FCLAr/UNESP,
onde atua e desenvolve pesquisa nas áreas de Avaliação, Currículo, Tecnologia e Política Pública. E-mail:
[email protected]
431

a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Tanto o relatório de Jacques Delors quanto a
Nova LDB, são da década de 1990 e propõe uma formação para os desafios futuros, sendo
o ofício um ponto focal. Tal escopo continua estruturante na BNCC em seus objetivos e
metas para o que se denomina como mundo do trabalho, sendo este o documento mais atual
em vigor e que influenciou grandes transformações na educação brasileira, como a
implementação do Novo Ensino Médio e as reformas curriculares em todos os estados e
municípios.

A preparação para o trabalho como objetivo desde a primeira Lei de Diretrizes e Bases
Historicamente, o foco da preparação para o mercado de trabalho realizada na
escolarização brasileira não é novidade, pois desde as primeiras legislações durante o Estado
Novo (1937-1945), as orientações vocacionais já são um dos principais objetivos para o
processo de ensino e aprendizagem (ARANHA, 2002). Ao usar o adjetivo de dois gêneros,
“vocacional” em várias documentações oficiais, é trazida a ideia de que a educação deve
conduzir os educandos a compreender sua propensão, no sentido de aprimorar talentos
naturais e, principalmente, de se encaixar em uma carreira. Tal composição de palavras,
“orientação vocacional”, perdurou por muito tempo nas diretrizes educacionais brasileiras,
Munhoz e Melo-Silva (2012) afirmam que dos anos de 1920, com orientações técnicas para
educação, passando por Reformas educacionais nos anos de 1940 e pelas LDBs entre as
décadas de 1960 e 1970, essas duas palavras eram presença garantida em qualquer
documento oficial, principalmente nos parágrafos relacionados aos objetivos principais da
escolarização.
As palavras em si podem ser consideradas bem intencionadas em um primeiro
momento sem se apurar o seu contexto, porém ao serem colocadas como principal objetivo
da educação nacional desde os anos de 1920 até a LDB vigente de 1996, essa composição
demonstra o poder da plasticidade da palavra, o que Valóchinov (2018) denomina como a
capacidade de essa assumir qualquer função, nesse caso ideológica, pois representa a
tradução das exigências de uma determinada classe em relação às mudanças conjunturais.
Considerando a importância do contexto levantada por Bakhtin e seu círculo, o
contexto social, econômico e político sempre influenciou, em certa medida, tal enfoque na
educação como contribuidora para a formação de mão de obra especializada sempre se
voltou para mitigar momentos de crise. A primeira leva de reformas educacionais que
ocorreram entre 1931 e 1946, foram propostas poucos anos depois de dois eventos
devastadores, como a Crise financeira de 1929 e a Segunda guerra mundial, que afetaram
profundamente o panorama econômico brasileiro, fazendo com que os detentores do capital
precisassem de novas estratégias para superar os desafios impostos. Já a criação das LDBs
432

de 1961 e 1971, são frutos de longas e amplas discussões educacionais como foco em
preparar os futuros trabalhadores para a crescente industrialização do país, sendo a LDB de
1961 tendo tramitado por 13 anos nas câmaras dos deputados e dos senadores devido às
discordâncias partidárias (MONTALVÃO, 2010). No período, houve grandes
transformações na modernidade trazidas com o crescimento econômico brasileiro devido à
expansão do capitalismo durante a guerra fria, somadas ao início do período ditatorial em
1964, a conjuntura firmou a ideia de que a educação deveria, principalmente, formar para
exercer uma função social conjuntamente ao progresso da nação.

Art. 38. Na organização do ensino de grau médio serão observadas as seguintes


normas: [...] V - Instituição da orientação educativa e vocacional em
cooperação com a família; [...] Art. 44. O ensino secundário admite variedade de
currículos, segundo as matérias optativas que forem preferidas pelos
estabelecimentos. § 2º Entre as disciplinas e práticas educativas de caráter optativo
no 1º e 2º ciclos, será incluída uma vocacional, dentro das necessidades e
possibilidades locais. (BRASIL, 1961, grifo nosso).

Tal concepção utilitarista da educação, foi reforçada em 1971, quando a Nova Lei de
Diretrizes e Bases propôs uma reforma para o 2º grau, atualmente chamado de Ensino Médio,
obrigando todas as instituições de ensino, públicas ou privadas de implementarem
concomitantemente formação técnica em seus currículos, proposta que fracassou em menos
de uma década, sendo essa a primeira reforma do Ensino médio.

Art. 1º O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao


educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades
como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo
para o exercício consciente da cidadania. [...]Art. 5º [...]§ 2º A parte de formação
especial de currículo: a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciação
para o trabalho, no ensino de 1º grau, e de habilitação profissional, no ensino
de 2º grau; b) será fixada, quando se destina a iniciação e habilitação
profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho
local ou regional, à vista de levantamentos periòdicamente renovados. [...]Art. 10.
Será instituída obrigatòriamente a Orientação Educacional, incluindo
aconselhamento vocacional, em cooperação com os professôres, a família e a
comunidade. [...] Art. 76. A iniciação para o trabalho e a habilitação
profissional poderão ser antecipadas: a) ao nível da série realmente alcançada
pela gratuidade escolar em cada sistema, quando inferior à oitava; b) para a
adequação às condições individuais, inclinações e idade dos alunos. (BRASIL,
1971 grifo nosso)

Desse modo, o que até então era uma orientação vocacional no sentido de
aconselhamento em 1961, mudou seu sentido para prescrição e direcionamento em 1971, o
que se relaciona com a rigidez dos chamados “anos de chumbo” da ditadura brasileira; tal
mudança de sentido confirma a flexibilidade contextual e política da palavra defendida por
Valóchinov (2018). Segundo o autor, a onipresença social da palavra é indicadora de
mudanças sociais, nesse caso uma grande transformação, já que a formação cidadã é
colocada em segundo plano diante da necessidade urgente de formar mão de obra, o que será
433

modificada somente em 1996 com a Nova LDB, porém seu objetivo central ainda está ligado
à preparação para o trabalho.
Considerando o que foi analisado até aqui, pode-se afirmar que todo enunciado
apresenta individualidade, portanto o estilo se mostra de maneira singular, mesmo que essa
não seja de um indivíduo. Comumente, nem todos os gêneros são capazes de refletir tão bem
essa individualidade como, por exemplo, os que requerem uma forma de preenchimento,
entre eles, escritos oficiais, como legislações e documentos norteadores, porém os analisados
nesse texto fogem a regra por representarem um grupo no poder, neste caso os militares e a
elite que os apoiava. Segundo as diretrizes do método da análise do discurso pela perspectiva
bakhtiniana, o estilo é ainda um fator social, tendo em vista às ideologias, axiologias e
valores comungados pelo sujeito que, participante do discurso, evidencia não só seu estilo
individual, mas sim o estilo de dois sujeitos ou mais ou um grupo social e as ideias
partilhadas. Em política pública, essa formação coletiva é denominada por alguns autores
advocacy coalition, a exemplo de Sabatier (1988), que define esse termo como a visão de
mundo daqueles que detém o poder, amparados por um conjunto de ideários, nem sempre
coeso para os que não estão imersos nas mesmas crenças. Tal contexto, dificulta a
compreensão de diferentes lados, nesse caso a realidade da educação dos filhos da classe
trabalhadora. A finalidade do discurso também delimita o estilo do indivíduo, para que assim
possa ser alcançada a atitude responsiva ativa do destinatário, o que pode ser bem traduzida
na relação entre os parlamentares e demais representantes do Estado e sociedade ao se definir
os objetivos, metas, direitos, deveres e responsabilidades em leis e documentos oficiais.

O mundo do trabalho: da Nova LDB à BNCC e Reforma do Ensino Médio


No Brasil, esses propósitos voltados para a formação para o trabalho continuaram
presentes na Nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), promulgada em 1996, mesmo ano da
publicação do Relatório Jacques Delors, seguida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
publicado no ano seguinte. Apesar de ter sido promulgada posteriormente às diretrizes
estabelecidas pela UNESCO, essa lei retrata plenamente seus ideais de formação do
indivíduo.

Art. 1º § 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à


prática social. Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho. [...] Art. 22. A educação básica tem por
finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir
no trabalho e em estudos posteriores. [...] Art. 27. Os conteúdos curriculares
da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: [...] III -
orientação para o trabalho. [...] Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação
básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: [...] II - a
434

preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar


aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas
condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores (BRASIL, 1996, grifo
nosso).

Os artigos selecionados são os que expressam os objetivos principais da


escolarização no país, sendo aqui chamado “mundo do trabalho”, um substituto para o termo
orientação vocacional ou profissional presente nos documentos que antecederam a versão
vigente da LDB. Ao classificar essa nova etapa da vida que o estudante irá passar, que é a
inserção no mercado de trabalho, como um “mundo”, traz a ideia de complexidade que
permeia a profissionalização e as relações laborais. Ademais, pode também ser considerada
uma tentativa de desvinculação semântica da visão mercadológica da venda da capacidade
produtiva, ou seja, a dinâmica entre oferta e demanda em relação à mão de obra. Essa
mudança pode ter ocorrido para se incluir todos em uma dimensão maior do que
simplesmente a vocacional, já que orientação com foco na vocação do aluno pode ser
considerada limitante do ponto de vista prático, já que as inconstâncias e incertezas típicas
daqueles em idade escolar, combinadas com as rápidas transformações tecnológicas,
econômicas e sociais da contemporaneidade neoliberal podem tornar obsoleta e até mesmo
invalidar parte da preparação feita pelo educando ao longo de sua trajetória escolar. Portanto,
no período da publicação da Nova LDB e, ainda hoje, a rapidez da pós-modernidade não
está presa à uma profissão específica e fechada em sua área de conhecimento.
Analogamente, o Relatório da UNESCO liderado por Jacques Delors em 1996 fruto
do debate da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, – Educação: um
tesouro a descobrir – se propõe uma formação que prepare o cidadão para as novas demandas
impostas pela globalização e pelos avanços tecnológicos, com base nos denominados quatro
pilares da educação: aprender a ser, a conviver, a aprender e a fazer. Tais diretrizes para a
aprendizagem também estão previstas na atual LDB e na atual Reforma do Ensino Médio,
sendo tais pilares a base para implementação do Programa de Ensino Integral nas escolas
paulistas.
Para o relatório da UNESCO, “os sistemas educacionais precisam dar resposta aos
múltiplos desafios das sociedades da informação, na perspectiva de um enriquecimento
contínuo dos saberes e do exercício de uma cidadania adaptada às exigências do nosso
tempo” (DELORS, 1998, p. 65, grifo nosso). Nesse ponto, “os sistemas educacionais”, na
verdade, são os Estados democráticos, do mesmo modo, quando ele afirma que eles
“precisam dar resposta”, o autor traz a noção de responsividade, sendo os governos
responsáveis em atender as necessidades neoliberais. A responsividade para Bakhtin (2003)
é mais do que dar resposta, é um ato dialógico que pretende transformação, no entanto carece
435

de interpretação do leitor, no caso dos documentos e leis analisados, os receptores são os


responsáveis pelos sistemas educacionais e primordialmente os profissionais da educação.
Além da LDB e do Relatório da UNESCO, o principal documento que renova esse
compromisso da educação nacional para uma formação que atenda às necessidades do
chamado mundo do trabalho é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que tem este
como um de seus eixos estruturantes. A BNCC, aprovada e homologada pelo Conselho
Nacional de Educação (CNE) em 20 de dezembro de 2017, tem como objetivo balizar a
qualidade da educação brasileira criando um patamar para a aprendizagem, com enfoque em
ajudar a “superar a fragmentação das políticas educacionais, enseje o fortalecimento do
regime de colaboração entre as três esferas de governo [...]” (BRASIL, 2017).
A partir disso, as redes de ensino públicas e particulares deveriam reestruturar seus
sistemas educacionais para entrar em consonância com esse novo referencial que, determina
não só a responsabilidade de garantir acesso, permanência e qualidade, como também define
parâmetros para a aprendizagem divididas em 10 competências que devem nortear os
currículos das disciplinas em relação ao tratamento didático das temáticas em toda a
Educação básica. Porém, para essa breve reflexão, se tomará para análise apenas as
competências mais relacionadas com o mundo do trabalho que nesse documento está
intrínseca à relação com a tecnologia, são elas:

2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das


ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e
a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e
resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos
conhecimentos das diferentes áreas;
5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e
comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas
práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar
informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo
e autoria na vida pessoal e coletiva;
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de
conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações
próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da
cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica
e responsabilidade;
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade,
flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em
princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários (BRASIL,
2017, grifo nosso).

Frente essa seleção, é cabível uma breve elucidação sobre essas competências
escolhidas. As duas primeiras 2 e 5, expressam a intenção de formar um indivíduo para as
rápidas transformações de contexto, torná-los o mais flexíveis e proativos o possível para os
novos tempos, principalmente ao que se refere ao meio tecnológico, como ambas fizeram
questão de salientar. Já as competências 6 e a 10 se voltam para as demandas sociais do
mundo do trabalho, mesmo que a competência número 10 não deixe isso explícito em
436

palavras, pois o panorama vigente carece de indivíduos que consigam compreender a


coletividade e, ao mesmo tempo, atender às exigências do formato exigido de participação
cidadã. Os objetivos para a formação cidadã estão definidos em cada parte do documento,
chamam a atenção por trazer implicitamente um ideal de como se deve ser cidadão na
atualidade, principalmente considerando a parte do documento apresentada em analogia às
condições de um contexto social de degradação das condições laborais no Brasil hoje. Tornar
a cidadania um conceito moldável às exigências utilitaristas da acumulação de capital pode
representar um novo tipo de “cidadania funcional”, na qual ser cidadão estará intrínseco às
suas capacidades funcionais, de modo que o indivíduo dependerá do desenvolvimento de
determinadas habilidades para ter acesso a “níveis” mais elevados de proficiência cidadã,
sendo a escola a instituição promotora dessa transformação social por conveniência.
Dessarte, essas quatro competências escolhidas revelam a amplitude da dimensão
que a preparação para o mundo do trabalho assumiu e como tal elaboração foi atrelada a um
processo de ensino e aprendizagem reflexivo, autônomo e responsável. A partir disso, é
possível vislumbrar uma compreensão de trajetória educacional para os próximos anos: cada
vez menos ancorado nos conteúdos e procedimentos e mais no processo contínuo,
construtivo e integrado à coletividade e às demandas da modernidade e no mercado de
trabalho. Essa vertente foi evidenciada com Reforma do Ensino Médio que inseriu os
itinerários formativos.

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum
Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio
da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o
contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber: I - linguagens e
suas tecnologias; II - matemática e suas tecnologias; III - ciências da natureza e
suas tecnologias; IV - ciências humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica
e profissional (BRASIL, 2017, grifo nosso).

Se tratando de projeções futuras, a competência 6 da BNCC e o inciso 7º da lei que


reforma o Ensino Médio definem a importância da responsabilidade para fazer escolhas
alinhadas ao “projeto de vida” do educando, esse se refere à um processo de ensino que
contribua para a construção de valores, competências e habilidades necessárias para auxiliar
que os alunos compreendam o que é necessário para alcançar seus objetivos pessoais e,
principalmente, profissionais. Para tanto, é preciso que o aluno defina algumas metas a curto,
médio e longo prazo para que ao longo do percurso educativo ele possa retomá-los, modificá-
los e, principalmente, direcionar seus esforços para este escopo. Para que isso ocorra é
preciso que o estudante encare como uma situação problema e que busque a solução por
meio intelectualização da problemática, assim como foi levado a fazer no decorrer da
escolarização, algo diretamente abordado pela competência 2.
437

Nos objetivos da BNCC e da Reforma do Ensino Médio, a tecnologia é tida como


uma das principais adversidades, pois essa necessita de meios e condições para ser
compreendida e dominada, sendo a não adequação a esse novo mundo do trabalho permeado
por aparatos tecnológicos, um fator de risco para o não enquadramento profissional, como
chamou a atenção o Relatório da UNESCO sobre a expansão do setor de serviços. Sendo
assim, a formação do educando se volta para esse preparo da atender uma demanda
tecnológica ainda incerta devido a sua rápida mutabilidade. Entretanto, a vivência escolar
não deve ser entendida como preparação para algo, pois deve ser valorizada pela experiência
em si, a partir dessa perspectiva pode-se afirmar que o educando deve ser compreendido
como um todo e não de forma fragmentada e desconexa de seu ser no tempo e espaço.

Considerações finais
Ao longo dos anos os documentos que definem as diretrizes educacionais mudaram
as palavras-chaves para definir o vínculo com o trabalho, de orientação vocacional a mundo
do trabalho; entretanto, sem necessariamente a perda da ligação com o labor. Assim, todos
os termos para se referir ao trabalho, cada um ao seu modo, colocando o peso da adaptação
às mudanças, principalmente as socioeconômicas e tecnológicas, proporcionalmente mais
no indivíduo do que no Estado, algo complexo, porém é responsivo ao que atende o que se
espera da educação em cada época, sendo o contexto responsável pela estética do discurso
(BAKHTIN, 2003).
Diante do exposto, cabe uma pequena ressalva que se relaciona diretamente aos
objetivos dos documentos e das leis analisados, pois, ao se propor a formação de um
indivíduo para o trabalho com habilidades sociais voltadas para a reflexão, mas, ao mesmo
tempo, objetivar a formação para atender as novas exigências neoliberais que cada vez mais
privam o trabalhador de condições para essa reflexão é, no mínimo, contraditório. Não é que
a educação não tenha que ter esse papel de preparação ou que os alunos não precisem dessa
formação em suas vidas para viabilizar seus futuros, mas a construção do cidadão
democrático vai muito além de um processo de ensino e aprendizagem voltado para o que
se chama de mundo do trabalho e o que pode limitar o educando a uma “cidadania
funcional”. A função cidadã deve partir da reflexão para a resolução que ameacem seus
direitos e a democracia, e que nem sempre estarão diretamente relacionados ao trabalho. A
escolarização deve possibilitar que o indivíduo possa exercer sua cidadania plena dentro de
um Estado democrático de direitos, promover a emancipação por meio da autonomia e não
a sujeição ao mercado de trabalho.

Referências
438

ARANHA, M.L.A. História da Educação. São Paulo, Moderna, 2002.


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439

A VISÃO DOS RESPONSÁVEIS DE CRIANÇAS PEQUENAS EM TEMPOSDE


PANDEMIA: A IMPORTÂNCIA EDUCACIONAL DA CRECHE

Rosilene de F. Rocioli Messias154


João B. Mamedio155

Introdução
Este trabalho justifica-se pela necessidade de discutir e refletir, ao revisitar o
histórico da infância brasileira, o entendimento dos pais sobre a importância da instituição
creche comopromotora do desenvolvimento humano, isto é, cuida ao mesmo tempo em que
ensina.
Apresenta-se o entendimento de criança e de infância havido em cada período da
história. O interesse pelo tema deveu-se ao fato de se compreender o entendimento que os
paise/ou responsáveis tem frente às políticas públicas educacionais da infância, somado às
vivênciasobservadas pela autora em quatro creches de uma cidade do interior paulista; ao
se perceber o nítido discurso dos pais em acreditar na importância da promoção do
desenvolvimento do filho,desde que realizado pela própria instituição e não pela família.
E, ainda, o trabalho em tela ancora-se na pesquisa de campo e no instrumento
questionário (google forms) enviado aos pais e, logo após, na análise sob a abordagem
quanti qualitativa. De acordo com Triviños, “a pesquisa educacional tem como objetivo
maior servir aos processos de transformação da essência da realidade social que
experimentamos” (1987 p.14); no entanto, não se pretende esgotar o assunto.
Ao revisitar as épocas históricas, observou-se que a criança e a infância foram
desprovidas de relevância social, partindo de insignificante inexistência, de descartável,
devido ao alto índice de mortalidade, de adulto em miniatura, de força de trabalho, até
chegar ao cidadão de direitos no século XXI, fato a ser conquistado embora garantido por
lei. Isto é, nãoconquistaram seu espaço como sujeito histórico que opina, atua e participa
da construção dos saberes e é atendido em seus desejos e necessidades.
Segundo Mendes (2010 p. 47-48),
os primeiros anos de vida de uma criança têm sido considerados cada vez mais
importantes. Os três primeiros anos, por exemplo, são críticos para o desenvolvimento da
inteligência, da personalidade, da linguagem, da socialização etc. A aceleração do
desenvolvimento cerebral durante o primeiro ano de vida é mais rápida e mais extensiva do

154
Especialista em Educação e mestra em Planejamento e Análise em Políticas Públicas
155
Professor, ator e mestre em Planejamento e Análise em Políticas Públicas
440

que qualquer outra etapa da vida, sendo que o tamanho do cérebro praticamente triplica
neste período.
É fundamental que a instituição creche crie espaços e formas para acolher,
acompanhar, desenvolver e emancipar todas as crianças que dela necessitarem,
potencializando-as. Entretanto, vale ressaltar que é essencial a parceria da família para
efetivar o desenvolvimentodas crianças, visto que, em tempo pandêmico, a creche não as
atendeu presencialmente; contudo, orientou os pais a estimular a “ensinagem” que lhe
cabia.
Lev Vygotsky (1987), socioconstrutivista, interacionista, afirma que o indivíduo
sofre influência de estímulos do mundo exterior e das relações sociais, que implicam no
seuaprendizado e no desenvolvimento de sua cognição ao longo da sua história de vida. Ele
destaca que é sumamente relevante para o desenvolvimento humano o processo de
apropriação das experiências presentes em sua cultura. Enfatiza a importância da ação, da
linguagem e dos processos interativos na construção das estruturas mentais superiores.
É comum relatos descritivos de professores no âmbito da creche de que o trabalho
assistencialista, higienista é bem presente no entendimento dos pais, ou seja, a instituição
higienizaria e alimentaria os filhos enquanto trabalham; sem se dar conta de que é
promotora de um plano educacional, preocupada com o desenvolvimento pleno das crianças.
Aliando duasações primordiais da educação de crianças pequenas: o cuidar e ao mesmo
tempo o ensinar. Diante tal discurso, ouviram-se os pais. Outro relato de igual valia foi sobre
a omissão dos paisem acompanhar e auxiliar nas atividades ofertadas pela creche como
“dever de casa”. E, por fim, a incapacidade do poder público em criar, durante a pandemia
do Covid-19,condições e políticas públicas eficientes e eficazes para atender os alunos em
home office.

Desenvolvimento
Ao longo da história humana, a criança, embora presente na vida social, participava
apenas quando lhe era permitido. Para compreender, faz-se necessário o estado da arte em
queo tema se reveste, sem trazer à baila um anacronismo entre passado e presente, mas o
foco no ideal de compreender historicamente tal fato para subsidiar o desvelamento da
realidade atual, questionando as possíveis e pertinentes intervenções, visando apontar
caminhos. Assim, observa-se que a criança teve seu “lugar” na sociedade, porém sem “voz
e vez”e vista só como força de trabalho, em especial a criança empobrecida, indesejada e
desvalida.
É recorrente na literatura relatos sobre a diferença da educação entre as crianças
mais e menos abastadas, inclusive nos códigos que regulamentavam as idades para o
441

trabalho infantile para a responsabilidade penal. Segundo Arantes (2011, p.194), “... um
sistema dual no atendimento às crianças, uma vez que o Código Civil de 1916 lidava com os
“filhos de família”, já o Código de Menores de 1927 protegia os “expostos”, os
“abandonados”, os “desvalidos”... Quase sempre, a criança pobre era assemelhada ao
modelo preestabelecido de “infrator” e de “anormal” e recolhida a instituições a pretexto
de o Estado prover aquilo que a família, pela desestrutura, não o fez. O Código de Menores
vigorou até 1990, sendo substituído pelo Estatutoda Criança e do Adolescente (ECA).
Em 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal Brasileira, apelidada de
“Constituição Cidadã” pela essência do ideal de assegurar o direito de todos à educação, à
saúde, ao lazer, à segurança e ao bem-estar físico e social, há muito reivindicado pela
sociedade.Considera-se ainda que o Brasil, signatário de movimentos internacionais, como
a Declaração de Salamanca, Declaração Mundial sobre Educação para Todos, avançou
significativamente aocriar e promulgar o ECA para resguardo dos direitos das crianças e
adolescentes, mais voltadosà educação, ao lazer, e ao amparo do que à vida produtiva de
outrora. Ressalta-se que na décadade 90, isto é, em 1996, foi sancionada a Lei de Diretrizes
e Bases Nacional 9394/96, que garantee idealiza o acesso à permanência e o sucesso de
todas as crianças e adolescentes na escola, o direito à creche que deixa de ser meramente
assistencialista e passa a ser educacional.
Fica a velha (nova) indagação: ainda há diferença entre crianças ditas pobres e
abastadasna educação promovida pela creche e tal diferença é percebida pelo entendimento
da família? Seria a “seguridade do direito” tão importante quanto o compromisso com o
desenvolvimento humano? Atualmente, sabe-se que o Estado não resguarda de fato todos os
direitos supracitados com a eficácia que deveria, embora expresse tal desejo nas
entrelinhas que constituem as
políticas públicas elaboradas, mesmo assim tal efetividade não se comprova; promovendo
ajudicialização da política necessária a garantir os direitos constitucionais e de outras leis
citadas.É oportuno considerar que, pelos estudos da neurociência, a infância é um
período propício para desenvolver plenamente os indivíduos. Segundo Lima (2010,
p.16), “[...] océrebro tem grande plasticidade. Plasticidade é uma facilidade maior de
estabelecer conexõesentre as células nervosas comparativamente a idade adulta [...]”. É a
plasticidade cerebral queproporciona a aprendizagem, visto que a criança desenvolve a sua
aprendizagem de acordo coma biologia da espécie, com a cultura na qual pertence e com
o tempo histórico em que vive.Ainda segundo Lima (2015, p.10), “O desenvolvimento da
criança dependerá da possibilidadeque ela tenha de explorar seu ambiente, movimentando-
se no espaço [...]”. Nesse ponto é quereside a importância da creche e da família como
442

instituições que têm o dever de favorecer momentos oportunizadores de criação, de


exploração do corpo, do espaço, do afetivo, das linguagens e da cultura em geral.
A criança aprende e se desenvolve brincando. Como um ser de cultura, necessita da
função simbólica, da imaginação para fazer o treino social e educar os sentidos, visto que
“a imaginação é a mola propulsora do desenvolvimento da cultura e do conhecimento
humano emtodas as esferas. Ela depende do exercício constante da função simbólica e se
amplia consideravelmente pela educação dos sentidos” (LIMA, 2015, p.10).
O “tempo” compreendido como infância é primordial para se ter seres humanos
melhores. Este “tempo” precisa ser respeitado e bem vivido tal qual afirma Lima (2015,
p.8), ao dizer que “Para que a criança se desenvolva adequadamente, seu tempo precisa ser
respeitado. Tanto o tempo biológico de desenvolvimento que segue o amadurecimento do
corpoe do cérebro como a duração da atividade [...]”. O autor defende a ideia de que a infância
precisa ser vivida e as atividades que promovem essas vivências devem ser repetidas
quantas vezes forem necessárias para impulsionar esse desenvolvimento em lugares com
materiais e instrumentos adequados.
A creche, como guardiã do conhecimento, lugar para o desenvolvimento pleno de
competências e da construção de habilidades, necessita de fato promover o
desenvolvimento efetivo de todas as crianças. É assegurado pela legislação e por algumas
políticas públicas que a criança faça parte de uma família que a incentive a se desenvolver
e tenha acesso ao ensino de qualidade. Para além desse direito, depara-se com o ser humano,
entendido em concordância com Kant (2003),que diz que “é somente a partir da educação
que o homem pode alcançar, com plenitude, sua humanidade, pois a educação o
‘constrói’, fazendo com que ele seja capaz de gozar sua liberdade” e, quando se entende
dessa forma, é lúcido afirmar que, como espécie em evolução,é imprescindível que seja
assumida a infância no país com a relevância merecida para que hajamelhor convivência,
vida harmônica, justiça, igualdade, democracia etc.
Observa-se que a sociedade em tempos de liquidez, como afirma Bauman (1999),
coma velocidade das informações que não se sustentam e um capitalismo caótico em que
“o ter” sobrepõe “o ser”, os pais, em busca da satisfação de seus desejos e convicções,
terceirizam, muitas vezes, a educação dos seus filhos, em concordância com a afirmação de
Martins Filho (2012). O direito da infância e de ser criança também são terceirizados.
Os filhos são aqueles que de algum modo atendem aos desejos dos adultos, pois
com ainserção da mulher no campo de trabalho, a composição familiar variada, a vida em
sociedadeconsumista e a inversão de valores, espera-se da creche e das pré-escolas que
promovam a educação infantil dos filhos para substituir os ensinamentos da família ocupada
de tais questões. Nesse cenário, a sociedade espera que Instituição Educacional consiga
443

mediar os conhecimentos, desenvolvendo competências e habilidades de toda ordem, o que


torna a sua ação pouco efetiva. Silva afirma que: “A escola não deveria viver sem a família
e nem a famíliadeveria viver sem a escola. Uma depende da outra na tentativa de alcançar
o maior objetivo, qual seja, o melhor futuro para o filho e educando...”
As políticas públicas adotadas na creche, em tempo pandêmico, à luz da Secretaria
Municipal de Educação de Franca, sobre as ações que deveriam garantir a continuidade do
desenvolvimento da criança em “home office”, foram:
Foi oferecido diariamente atividades por meio do WhatsApp observando os cinco
campos de experiência previstos no Currículo Paulista3, na BNCC4 e na Matriz Curricular
da EducaçãoInfantil. As atividades eram postadas pela manhã nos grupos de WhatsApp dos
pais dos alunos,e os responsáveis deveriam auxiliar os educandos na execução da tarefa
enviando-a para educadora por meio de registros (fotos, scanner, desenhos, etc.). Desta
forma foram contados os dias letivos de 2020 e 2021.
Dificuldades encontradas para a realização das ações: O professor/educador
precisou aprender em pouco tempo as tecnologias e metodologias que ainda não
dominavam para ministrar aulas via WhatsApp, deveria fazer buscas ativas aos alunos que
deixassem de comparecer as aulas remotas e/ou não enviassem os registros das tarefas.
Coube ainda ao profissional usar o seu celular particular para a criação dos grupos de
trabalhos e orientação,
e/ou computador e internet pessoais. Os alunos na sua maioria com pouca idade
cronológica (6meses a 5 anos) e autonomia, dependiam dos pais para realizarem as tarefas,
sendo desaconselhável a exposição de crianças pequenas em longos períodos com telas.
Aqueles queeram desassistidos pelas famílias tiveram poucas condições de participação. Já
as famílias tiveram problemas de várias ordens (nos eletros portáteis, na internet, nos
pagamentos de internet, apenas um celular para todos os filhos realizarem as tarefas,
questões financeiras e emocionais etc.), a inabilidade da família em lidar com as questões
pedagógicas dos filhos e pouca parceria com a creche. O poder público deixou as
instituições à sua própria sorte, pois não havia como oferecer nadamais que orientações e
cestas básicas. Por fim, a pandemia de Covid-19 “escancarou” as mazelas e fatos dos
problemas sociaisvividos pelos alunos e pela instituição: fragilidade das políticas públicas da
infância, dificuldadede parceria entre creche e família, grande distanciamento entre classes
sociais, educação comonão compromisso e prioridade de todos e terceirização de filhos.

Procedimentos metodológicos
Para a realização do trabalho, fez-se uma pesquisa bibliográfica, documental e
pesquisade campo com os pais das crianças que frequentam quatro creches na cidade de
444

Franca com análise quanti qualitativa. A pesquisa bibliográfica é importante, pois


fundamenta todo o trabalho que se está arguindo. Em concordância com Fonseca (2002), a
pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas,
e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web
sites. Qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite
ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto. (FONSECA, 2002, p. 32). Em
relação a escolha das creches, a cidade estudada possui 83 creches, sendo todas
conveniadas; portanto, particulares e cuidadas por entidades como igrejas, ONGs,
associaçõesetc., ou seja, o terceiro setor em parceria com a Prefeitura Municipal com termos
de referênciase responsabilidades compartilhadas. Algumas creches atendem de zero a três
anos e outras dedois a cinco anos e onze meses, em período integral, todas localizadas nas
periferias da cidade.
Participaram da pesquisa quatro creches, a saber, área norte, área leste, área oeste e
área sul, sendo escolhidas pela disponibilidade e interesse de suas coordenadoras em
participarem da pesquisa afim de conhecer o pensamento dos pais sobre a função e
importância da creche e como foi sua participação no auxílio que deveriam prestar às
crianças. Foi enviado um link para as famílias que prontamente responderam ao questionário
com3 perguntas referentes ao tema abordado nesse trabalho.

Resultados e discussão
As quatro creches, objeto deste estudo possuem 32 salas de aulas, duas delas
atendem crianças de berçário I (4 meses a1 ano); berçário II (1 ano a 1 no e 11meses);
maternal I (2 anos a 2 anos e 11 meses); Maternal II (3 anos a 3 anos e 11 meses); fase I (4
a 4anos e 11meses); fase II (5 anos a 5 anos e 11 meses). Uma atende o Maternal I e II e a
fase I e II e aúltima atende berçário I e II e Maternal I e II.
As quatro creches estudadas atendem crianças de 0 a 5 anos e 11 meses, possuindo
salasde aulas, solários, playground, hortas, refeitórios, banheiros, bibliotecas com acervo
de materiais didáticos/pedagógico. Seus professores/educadores, são formados em
pedagogia, bemcomo seus auxiliares. Ainda contam com professor de educação física, de
música, nutricionista,coordenadora pedagógica e administrativa.
Os documentos analisados nesta pesquisa (fotos, apostilas, busca ativas, controle de
presenças etc.) foram elaborados pelas creches sob orientação e/ou modelos cedidos pela
Secretaria Municipal de Educação de Franca.
Os questionários enviados aos pais (725 famílias) foram respondidos por 567
pessoas. Para entender e responder à primeira indagação do trabalho: “o que pensam os pais
sobre a função da creche ?” Verificou-se junto aos educadores, em seus relatos, o que estes
445

pensam, verbalizam e descrevem da ideia dos pais sobre a função da creche, se seria apenas
um lugar para “cuidar” de seus filhos enquanto trabalham. Os resultados foram, a saber:

Tabela 1 – Questionário aos pais – pergunta 1- gráficos dos arquivos da pesquisadora

A função da creche para 59,3% pais (336 famílias) era “promover o


desenvolvimento das crianças”, contrapondo-se assim com o discurso dos funcionários da
creche que indicaramque os pais não sabiam do aspecto educacional da creche. Apenas
7,1% pais (40) a função da creche é de cuidar das crianças enquanto trabalham.
Na segunda resposta, observou-se que os pais conhecem que a principal função da
creche é promover o desenvolvimento dos filhos por atividades presenciais, suspensas em
tempos de Sars Cov 19, mas ofertadas remotamente. Assim os pais deveriam realizar em
casa as tarefas para não haver perda de habilidades, de competências dos filhos, do direito
social conquistado e a ser cumprido. Partindo do entender que o homem é um ser cultural e
social e, por isso mesmo, precisa se apropriar de seus bens históricos culturais em uma relação
dialética, pois se pressupõe que são “mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da
natureza de cadapessoa” (VYGOTSKY, 2007, p. 83). O homem é social, isto é, depende do
conhecimento da comunidade para se formar, e é um ser único, com conhecimentos próprios,
que, para se humanizar, precisa ser respeitado, apropriar-se das condições que potencialize
seu processo depessoalidade e participe do mundo em que vive.
Tabela 2 – Questionário aos pais – pergunta 2- gráficos dos arquivos da pesquisadora
446

No gráfico 2 observa-se: Mediante a essa nova realidade, observou-se que os pais


se demonstraram pouco solícitos a tal ação, alegando falta de tempo, paciência e didática
para auxiliar o filho na realização das atividades enviadas, que, em sua maioria, eram
explicadas deforma simples como por exemplo: “Possibilite que o seu filho ouça a história
a seguir e faça as perguntas abaixo para ver se eles entenderam-na” (atividade proposta
para os pais do maternal II). Contudo, 77,6% (440 pais) não ofereciam diariamente as
atividades para as crianças, não por não entender sua importância, mas pela dinâmica
familiar, cuja cultura de desenvolvimento humano, cabe à creche e à escola e não à família.
É fato que a creche e a escola têm suas especificidades e, por assim ser, admitem
profissionais formados na área para executar tais tarefas. Contudo, outras instituições não
podem avocar as responsabilidades dos pais e/ou responsáveis. Martins Filho (2012) analisa
a necessidade da criança em ter atenção, afeto e tempo de dedicação oferecidos
regularmente pelos pais. O autor destaca que no mundo contemporâneo orientado pelo
imediatismo, consumismo e individualismo, os pais têm “terceirizado” a educação, o tempo
e o amor dos filhos, o que, segundo o autor, provoca a violência e a inabilidade social de
muitas crianças. A família necessita ser parceira da creche/escola, todavia, não como
previsto na lógica neoliberalista que pretende eximir o Estado de suas obrigações e
transferi-las para a família; mas sim como a que participa da tomada de decisões
importantes da creche/escola e está disponível quando for solicitada.
Sob mesma lógica, não cabe à família “abraçar” o mister da creche/escola, porém
Perrenoud afirma que “família e escola, são duas instituições condenadas a cooperar numa
sociedade escolarizada” (2001, p. 30). Em suma, a creche e a família, nessa histórica
pandemia, devem priorizar o desenvolvimento pleno das crianças e tentar compreender
melhor o que pensam os pais a respeito das atividades propostas na creche. Perguntou-se
aos pais qual ação seria maisimportante a ser vivenciada e ensinada na creche e respondeu-
se o que se segue.
No gráfico 3, foram feitas as análises abaixo:

Tabela 3 – Questionário aos pais – pergunta 3- gráficos dos arquivos da pesquisadora


447

Aprender, ficar feliz, desenvolver-se, brincar e conviver foram escolhidas como


mais importantes ações a serem desenvolvidas; 62,8% (356 pais) sinalizaram esta ideia. Já
116 pais(20,5%) declaram entender como principal função a alimentação, a troca, o banho,
a segurançaa fim de que eles – como pais – pudessem trabalhar tranquilos.
Ao considerar as outras porcentagens de respostas dos pais, observou-se que 37,2%
defendem mais as ações que envolvem o cuidar do que o ensinar, reportando a historicidade
da infância que retrata o surgimento dos orfanatos e das creches retratadas na literatura
pesquisada.

Considerações finais
Ao refletir sobre o tema proposto, através da literatura e dos dados coletados em
pesquisa de campo, houve o vislumbre parcial de caminhos para suporte a posteriores
pesquisase de um novo olhar sobre as questões que envolvem a historicidade das lutas e da
organizaçãosocial que influenciam diretamente a infância e suas necessidades.
Observa-se ainda que a família necessita aprofundar-se nos conceitos da infância e
da sua importância, além de compreender os reais aspectos didáticos, metodológicos e
práticos dainstituição, garantidos pela LDB 9394/96 e com direito a saber o que é oferecido
aos filhos; juntamente com a BNCC e Currículo Paulista ao prever o “direito a
aprendizagem” da criança.
Outrossim, os pais, embora reconheçam o valor da creche como instituição
educativa, não se veem como parceiros e ainda menos como responsáveis pela educação,
desenvolvimento dos filhos, por sua formação e informação. Por fim, percebeu-se, em
tempos pandêmicos, que os pais veem a creche como uma ajuda diária ao dar segurança e
ensino aos filhos, enquanto trabalham, e não como parceira, mesmo sabendo que oferece
regras e atividades pedagógicas que promovem o desenvolvimento pleno das crianças. Isto
é, a creche não deveria “dar mais trabalho” aos pais, mas avocar as atribuições familiares.

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449

BULLYING E SAÚDE MENTAL: EFEITO DA VIOLÊNCIA NAS


ESCOLAS156

Thaís Silva Marinheiro de Paula157


Soraya Maria Romano Pacífico158

Introdução
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, 23%
dos alunos afirmaram que duas ou mais vezes se sentiram humilhados por provocações dos
colegas. Pensando sobre esse contexto, Malta et al (2022, p. 09) consideram que houve uma
redução nos casos de bullying nas escolas comparado ao PeNSE de 2015, e os autores
enfatizam que “embora seja verificada uma redução da prevalência de bullying entre
estudantes brasileiros em 2019, esse ainda é um grave problema no cenário nacional”159.
Desta forma, é preciso pensar sobre estes 23% de alunos entre 13 e 17 anos (PeNSE 2019)
que sofrem bullying e este é alimentado dentro do espaço escolar, visto que:
se apresenta de forma velada, por meio de um conjunto de comportamentos cruéis,
intimidadores e repetitivos, prolongadamente contra uma mesma vítima, e cujo
poder destrutivo é perigoso à comunidade escolar e à sociedade como um todo,
pelos danos causados ao psiquismo dos envolvidos (FANTE, 2011, p. 21).

Considerando que há anos o bullying é uma realidade das instituições escolares e que
pode causar danos ao envolvidos, é importante evidenciar que um desses danos pode ser a
saúde mental dos sujeitos adolescentes. Neste trabalho, o conceito de saúde mental será
compreendido a partir do que é definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a qual
estabelece que
Saúde mental refere-se a um bem-estar no qual o indivíduo desenvolve suas
habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da vida, trabalha de forma
produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição para sua comunidade. Em
relação às crianças, a saúde mental implica pensar os aspectos do
desenvolvimento, tais como: ter um conceito positivo sobre si, ter tanto
habilidades para lidar com seus pensamentos e emoções, quanto para construir
relações sociais, tendo uma atitude de se abrir para aprender e adquirir educação.

156
Este trabalho é resultante da tese, em processo de finalização, intitulada "O corpo (re)significado: discursos
de alunos vítimas de bullying", desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação pela FFCLRP/USP.
157
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP).
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação. [email protected].
158
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP).
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação. [email protected].
159
Neste estudo, os autores sugerem que sejam feitas novas pesquisas para que esta redução seja analisada,
pois consideram que as práticas de conscientização podem ter ajudado a reduzir a prática de bullying, mas não
descartam que há uma limitação nos resultados, visto que as perguntas não foram comparáveis na edição do
PeNSE de 2019 com as edições anteriores, isto ocorreu porque houve mudanças na maneira como foram
realizados os questionamentos.
450

Em última análise, tudo o que pode possibilitar uma participação ativa na


sociedade. (OMS, 2013, p. 06)

Portanto, partindo da consideração de que bullying é uma violência e que pode ser
interpretado não somente pelo comportamento ou pela prática, mas também pelo discurso,
objetivamos analisar como o sujeito-aluno do Ensino Médio que sofreu bullying no Ensino
Fundamental discursiviza sobre essa violência e se há indícios de que a saúde mental dele
foi afetada. Para embasar esta pesquisa, os pressupostos teóricos utilizados sustentam-se na
Análise de Discurso pecheuxtiana e o corpus foi constituído a partir de um questionário que
propusemos aos alunos do Ensino Médio de uma escola pública do interior de São Paulo.

Teoria
Ao propormos analisar o bullying discursivamente, é importante explicar que, dentro
da perspectiva da Análise de Discurso pecheuxtiana, o discurso é compreendido como efeito
de sentidos entre interlocutores (PÊCHEUX, 2009), isto porque “é no discurso que o homem
produz a realidade com a qual ele está em relação”, relação esta que pode ser materializada
por diferentes linguagens - seja a escrita, a dança, a pintura, o corpo - em diferentes condições
de produção, assim, não podemos dizer que temos o mesmo discurso, pois este é produzido
a partir de situações sócio-histórica-ideológicas distintas.
Outro conceito importante é o de sujeito, pois para a Análise de Discurso ele também
afeta a condição de produção do discurso, isto porque não se trata do indivíduo, mas sim, da
interpelação em sujeito, a partir da posição que este ocupa ao produzir seu discurso (IDEM,
2009), por exemplo, para esta pesquisa, ao tratarmos sobre o bullying, podemos considerar
a posição sujeito-vítima e a posição sujeito-agressor. Com isso, é pelo discurso do sujeito,
pelas condições de produção do seu discurso que podemos interpretar a relação do sujeito
com a ideologia, se partilha de um discurso dominante, ou não, ou seja, é possível acessar
qual formação ideológica é partilhada por ele, o que Pêcheux (IBIDEM) chamará de efeito
ideológico.
Indursky (2011, p. 84), embasada na teoria da Análise de Discurso pecheuxtiana,
explica que “é o indivíduo que, interpelado pela ideologia, se constitui como sujeito,
identificando-se com os dizeres da formação discursiva que representa, na linguagem, um
recorte da formação ideológica”, portanto, quando Pêcheux (2009) conceitua as formações
discursivas como aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que
451

pode e deve ser dito”160, podemos entender que as formações discursivas são os discursos
produzidos pelo sujeito afetado por uma ideologia, seja esta a dominante ou não.
Desta forma, ao produzir seu discurso, o sujeito não só indicia a formação discursiva
em que se inscreve ou a formação ideológica a que se filia, mas também a imagem que cria
de si e do outro, ou seja, é pelo jogo das formações imaginárias (IDEM) que o sujeito
antecipa a sua relação com o outro e consigo mesmo, por exemplo, como será mostrado neste
trabalho, como o sujeito-aluno do Ensino Fundamental, após sofrer bullying, antecipa como
será a sua relação com os outros alunos no Ensino Médio, assim, temos um sujeito que,
muitas vezes, acredita na transparência dos sentidos e, pela imagem que cria sobre si e sobre
o outro, produz seu discurso afetado e constituído por esse lugar imaginário, como será
observado nas análises.

Metodologia
Quando nos propomos a trabalhar com a Análise de Discurso pecheuxtiana, é válido
diferenciá-la da Análise de Conteúdo tendo em vista que ambas trabalham com o mesmo
viés do método qualitativo: a interpretação. Porém, enquanto a Análise de Conteúdo se
preocupa em verificar o que está por trás do que foi dito, a Análise do Discurso trabalha com
aspectos discursivos, dentre eles, as relações sociais, como explica Lima (2003, p. 78): “o
instrumento da prática política é o discurso, ou, mais precisamente, a prática política, que
tem como função, pelo discurso, transformar as relações sociais, reformulando a demanda
social, o que nos parece ser indiferente aos analistas de conteúdo”. O autor (IDEM, p. 81)
ainda complementa que “na análise de conteúdo, parte-se da exterioridade para o texto,
enquanto na análise do discurso francesa, ao contrário, procuramos conhecer essa
exterioridade pela forma como os sentidos se trabalham no texto, em sua discursividade”.
Sendo assim, para que o analista de discurso possa interpretar essa exterioridade,
partimos do uso do paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1989, p. 149), que entende
“um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais,
considerados reveladores” para, assim, encontrarmos pistas nos discursos dos sujeitos-
alunos que nos levem a interpretar como esses sujeitos discursivizam sobre o bullying.
A interpretação do analista ocorre a partir dos dois dispositivos que a Análise do
Discurso trabalha, o teórico e o analítico:
O dispositivo teórico é constituído pelas noções e conceitos que constituem os
princípios da análise de discurso: a noção de discurso como efeito de sentidos, a
noção de formação discursiva, a de formação ideológica, o interdiscurso etc. O
dispositivo teórico vai determinar o dispositivo analítico. Ele orienta o analista em
como observar o funcionamento discursivo. É o dispositivo teórico que faz o
deslocamento de uma leitura tradicional para uma leitura que chamamos

160
Grifos do autor.
452

sintomática: a que estabelece uma escuta que coloca em relação o dizer com outros
dizeres e com aquilo que ele não é mas poderia ser. (ORLANDI, 2015a, p. 29-30)

Devido a isso, ao trabalhar com dois dispositivos, o teórico e o analítico, é possível


que tenhamos o mesmo recorte, porém poderemos ter resultados e análises diferentes, visto
que cada analista produz um gesto de interpretação para um discurso, o qual faz parte de um
processo discursivo mais amplo.
Orlandi (2015b) explica que o dispositivo teórico é constituído pelos conceitos da
Análise do Discurso, os quais sustentam os gestos de interpretação do analista, o que coloca
em relação o dizer com outros dizeres. Diretamente ligado ao teórico, está o dispositivo
analítico, o qual é constituído pela análise específica do analista, isto porque é considerada
para análise a “questão do analista, da natureza do material analisado, do objetivo do analista
e da região teórica em que se inscreve o analista (linguística, história, antropologia, literatura
etc) (IDEM, p. 30). Desta forma, o trabalho do analista de discurso é interpretar pelos
detalhes ditos e não-ditos, isso ocorre pela análise do corpus da pesquisa, pois
o corpus não está dado, mas é construído pelos gestos do analista de pôr unidades
em contato, selecionar seqüências, agrupá-las em blocos, voltar à teoria para, a
partir dela, construir recortes, relacioná-los e, a partir deles, repensar a teoria, num
movimento em espiral de retomadas de aspectos metodológicos e teóricos,
lançando novos olhares, surpreendendo-se. (MITTMANN, 2007, P. 155)

Compreendemos, portanto, que o analista faz o movimento pendular proposto por


Petri (2002) quando vai da teoria ao corpus e do corpus à teoria, desta forma, sua análise é
feita não, necessariamente, em/com todo o corpus, mas nos recortes feitos nele. Orlandi
(1996, p. 22) explica que “ao se passar para o texto como unidade do discurso, se passa da
operação de segmentação para a de recorte. Passa-se da distribuição de segmentos para a
relação das partes com o todo, em que se procuram estabelecer, através dos recortes,
unidades discursivas”, assim, a autora ainda salienta que “a idéia de unidade (de todo) não
implica a de completude: a linguagem não é uma coisa só e nem é completa” (IDEM).
Passaremos, então, à análise de nosso corpus, a partir da interpretação de alguns
recortes sem a tentativa de esgotá-los, para isso, propusemos uma coleta de dados em uma
escola situada no interior de São Paulo, e, como estávamos vivenciando o ápice da pandemia
do novo coronavírus (COVID-19), convidamos os alunos pelo ensino remoto, através da
ferramenta digital Microsoft Teams, que era a ferramenta usada pela escola naquele
momento. Para poder participar da pesquisa, o sujeito-aluno deveria responder a um
questionário com 10 questões discursivas, mas, antes, os pais e o sujeito-participante
deveriam assinar a documentação de autorização. Para poder ter acesso aos documentos de
autorização e ao questionário, uma das pesquisadoras, após tomadas as medidas de higiene,
foi à casa dos sujeitos-alunos. No total, foram entregues 41 questionários e obtivemos a
453

devolução de 33. Por fim, mediante as autorizações dos sujeitos-alunos e de seus


responsáveis e realizada a coleta de dados, pudemos dar início à análise dos discursos dos
sujeitos-vítimas de bullying com base no método teórico-analítico da Análise de Discurso
pecheuxtiana que sustenta esta pesquisa.

Análises
Conforme Malta et al (2022), a partir dos dados publicados pelo PeNSE 2019, um a
cada quatro sujeitos-escolares diz ter sofrido bullying na escola. Considerando que este
sujeito-vítima de bullying cresce, dá seguimento aos estudos, entendemos ser importante
analisar como ele discursiviza sobre essa prática tão presente nas escolas, por isso, sabendo
que o sujeito cresce e pode constituir outras relações em sociedade, como estudos, família,
trabalho, para esta pesquisa, vamos nos ater em analisar o discurso do sujeito do Ensino
Médio que foi vítima de bullying no Ensino Fundamental.
No questionário proposto aos sujeitos que participaram da pesquisa, foi perguntado,
na Questão 6, “Você acha que o bullying sofrido no Ensino Fundamental afeta a imagem do
adolescente no Ensino Médio? Por quê?”161:
Recorte 01: Sujeito-aluno A: Com certeza, acredito que no
fundamental é quando a pessoa está descobrindo o que é o mundo,
como as coisas funcionam. E a pessoa que sofre Bullyng nessa fase,
fica com uma imagem ruim de sobre o que é o mundo, porque ela já
tem muitas cicatrizes desde cedo.
Recorte 02: Sujeito-aluno B: Afeta muito, eu particularmente tenho
muitos bloqueios que afetam em meu desenvolvimento no ensino
médio, tenho dificuldades em socializar com a minha turma,
apresentar trabalhos para sala.
Recorte 03: Sujeito-aluno C: Sim, porque muitas das vezes ele tenta
se modificar para assim caber nos preceitos de um “aluno normal”,
que seria aquele aluno que não sofre bullying e é deixado na dele.

A partir do recorte 01, interpretamos que o Sujeito-aluno A partilha, inicialmente, da


formação ideológica, do mundo ‘de contos de fadas’ que é proporcionado ao aluno do Ensino
Fundamental, tendo em vista a faixa etária destes alunos nesse período escolar, porém, ao se
deparar com o bullying e com os sentidos de dor que essa violência causa, é possível analisar
que esse sujeito, que está em processo de descortinamento do mundo, aprendizagem sobre o
funcionamento das relações sociais, é barrado, interrompido de entrar no mundo idealizado,
o que colabora para que passe a partilhar de outras formações ideológicas sobre o mundo, as
que indicam cicatrizes, pois foram as que lhe chegaram por meio da violência.

161
Nos recortes, as respostas dos sujeitos-participantes foram mantidas conforme escritas originais presentes
nos questionários.
454

Pelos recortes 02 e 03, interpretamos que o bullying atua como aquele que cerceia o
sujeito-vítima, de modo que este passa a restringir suas ações, como apresentar trabalhos e
a socialização com outros alunos, como discursiviza o Sujeito-aluno B; o Sujeito-aluno C
nos indicia que pode ter sido o seu comportamento o motivo para sofrer bullying, então, na
tentativa de não sofrer novamente, pela formação imaginária do comportamento ideal que
não desperta o interesse dos sujeitos-agressores, o Sujeito-aluno C, vítima de bullying, no
Ensino Médio, opta por mudar seu comportamento, assim, interpretamos que esse violência
interfere na saúde mental dos sujeitos-vítimas, tendo em vista que vai de encontro ao que
entende a OMS (2013) por saúde mental, pois os sujeitos-alunos A, B e C indiciam que, no
Ensino Médio, não conseguem desenvolver suas habilidades pessoais e têm comprometida
sua participação ativa na sociedade.
Sobre a alteração em seus comportamentos, ainda respondendo à questão 6,
propomos a discussão dos recortes a seguir:
Recorte 04: Sujeito-aluno D: sim, porque o adolescente se sente
inseguro, insuficiente e busca sempre está no padrão pra agradar
expectativas. e isso acaba o tornando ansioso, deprimido...
Recorte 05: Sujeito-aluno E: Sim, vivenciar uma experiência dessa
te faz tomar atitudes para que elas não se repitam sempre, e isso faz
o jovem mudar seu jeito para se sentir autosuficiente.

De acordo com a OMS (2013), a saúde mental está relacionada ao sujeito ter um
conceito positivo sobre si, porém não é o que discursivizam os Sujeitos-alunos D e E, tendo
em vista o seu desejo por ‘mudar seu jeito’ ou ‘sempre querer estar no padrão para agradar
expectativas’, desta forma, partem da formação ideológica de que existe um sujeito
completo, suficiente que não sofre bullying. Interpretamos, pelos recortes 04 e 05, que há
uma ilusão na tentativa de justificar o ou os motivos da prática do bullying: a culpa a si
mesmo, o que contribui para afetar a saúde mental destes sujeitos-vítimas, pois não olham
para si de forma positiva, com isso, partilham da mesma formação discursiva que o sujeito-
agressor.
Ao propormos analisar o bullying e a saúde mental, é importante considerarmos os
recortes 06 e 07:
Recorte 6: Sujeito-aluno F: Questão 8162. Graças ao bullying e o
descaso das escolas em que estudei, repeti de série duas vezes, pois
não conseguia me concentrar nos estudos, posso dizer com clareza
que isso tudo me levou a ter depressão, sou uma pessoa insegura e
não consigo me relacionar romanticamente com ninguém.
Recorte 7: Sujeito-aluno G: Questão 7163. Sim, após o bullying eu
comecei a ter muito receio de ir à praia de biquini, colocar shorts ou

162
Questão 8: Quais são as consequências e efeitos do bullying para você hoje?
163
Questão 7: O bullying deixou marcas em seu corpo? Quais? (aqui você pode falar sobre marcas físicas e
psicológicas)
455

roupas que mostrassem a barriga. Sendo assim, fiquei com marcas


psicológicas, que me perseguiram por muitos anos e impediram que
eu me enxergasse com meus próprios olhos, não da maneira que elas
me viam.

Lopes Neto (2011, p. 103) considera a relação existente entre bullying e a saúde
mental e explica que “Algumas situações mais extremas são passíveis de ocorrer, como a
fobia escolar, em que o medo, a ansiedade e as manifestações depressivas incapacitem
crianças e adolescentes de frequentar a escola”, nesse viés, compreendemos pelo recorte 6
que o Sujeito-aluno F viveu essa fobia escolar e teve sua saúde mental afetada de modo que
não conseguia lidar com os estresses da vida nem trabalhar de forma produtiva (OMS, 2013),
resultando na reprovação escolar duas vezes. Consideramos ainda que, pelo discurso desse
sujeito, a fobia ainda foi transferida não só para o espaço escolar, mas também para os
relacionamentos, de forma que o Sujeito-aluno F discursiviza que não consegue se relacionar
romanticamente com ninguém, interpretamos que esse pronome indefinido ‘ninguém’ vai
além dos muros da escola, ou seja, o bullying afetou sua saúde mental em relação a ser um
sujeito produtivo e afetivo com qualquer outro sujeito, dentro ou fora do ambiente escolar.
Sobre o discurso do Sujeito-Aluno G, interpretamos que o bullying afeta a saúde
mental do sujeito e dificulta não só a sua circulação na escola, mas em outros espaços
também, pois ao passar a olhar para si, pelo olhar do sujeito-agressor, esse sujeito-vítima
carrega esse olhar para outros ambientes, para a praia, para o clube, para a rua, para qualquer
lugar em que a roupa que evidencie seu corpo possa ser mais uma vez motivo de bullying,
portanto, a saúde mental deste sujeito é afetada, pois, ao partilhar da formação ideológica de
que existe um modelo de barriga que não sofre bullying, esse sujeito veda, limita e restringe
a sua circulação.
Lopes Neto (2011, p. 103-104) explica que os sujeitos-vítimas e os sujeitos-
agressores “Podem apresentar problemas relacionados à depressão, à ansiedade e à
insegurança, dificuldades de concentração, autoagressão, pensamentos suicidas e
suicídio164”, o que vai ao encontro de nossas análises tendo em vista que os sujeitos-alunos
discursivizam sobre essa insegurança, sobre as dificuldades de concentração e sobre a
ansiedade. Por esse motivo, consideramos importante analisar os recortes seguintes
produzidos ao responder à questão 5: Para quem você contou? Quais medidas foram tomadas
pela escola?

164
Em outro trabalho analisamos o discurso dos alunos sobre o bullying, a automutilação e a tentativa de
suicídio, por esse motivo, não faremos essa análise aqui. Está disponível em PAULA, Thaís Silva Marinheiro
de; PACÍFICO, Soraya Maria Romano. Discurso, memória e bullying no/pelo corpo do sujeito-aluno do Ensino
Médio. In: BRAGA, Daniel L.S. (org). Pesquisas e Inovações em Ciências Linguísticas: produções científicas
multidisciplinares do século XXI. Volume 1. Instituto Scientia. 2022. p.57-81. Disponível em:
https://institutoscientia.com/catalogo/livro-linguagens-2/
456

Recorte 08: Sujeito-aluno D: depois de muito tempo eu me abri com


minha mãe ela foi ate a escola mas a escola não tomou medidas
necessarias. então eu fui em busca de ajuda psicologica profissional.
Recorte 09: Sujeito-aluno B: Na época não contei a ninguém, por
não sabia o que estava se passando em mim. Hoje em dia faço
acompanhamento com a psicóloga.
Recorte 10: Sujeito-aluno H: A escola me deu atestado e
encaminhamento psicológico.

Pelos recortes 08, 09 e 10, interpretamos a urgência de políticas públicas que possam
acolher os sujeitos-alunos vítimas e os sujeitos-alunos agressores de bullying, isto porque os
Sujeitos-alunos D, B e H nos indiciam a necessidade de busca e encaminhamento pela escola
ou pela família por ajuda profissional, não excluímos que existam outros motivos que
colaborem para essa necessidade, mas evidenciamos que o bullying é uma prática que afeta
a saúde mental e que precisa de atenção, que precisa ser trabalhada, pois não deixa de existir
quando o sujeito sai do Ensino Fundamental e vai para outro ambiente, outra escola, cursar
o Ensino Médio, por exemplo.

Tecendo algumas conclusões


Ao analisarmos o discurso dos sujeitos-alunos do Ensino Médio vítimas de bullying
no Ensino Fundamental, colaboramos para enfatizar que o bullying é uma violência ainda
presente nas instituições escolares e que necessita de atenção. Enfatizamos, ainda, que ele
não desaparece quando o sujeito sai da escola e vai para casa, não se restringe a um ato em
si que finda quando o agressor vai embora, mas que reverbera, ecoa, instaura-se no corpo da
vítima e pode, ou não, deixar sinais explícitos. Pelas análises, interpretamos que a dor do
bullying é partilhada discursivamente pelo próprio sujeito-vítima, contribuindo para que este
passe a olhar para si pelos olhos do sujeito-agressor, tanto que alterna/altera seu
comportamento na tentativa de agradar ao outro, de encaixar-se na ordem social para não
sofrer mais esta violência.
O que nos indicia o quanto a saúde mental do sujeito-aluno vítima de bullying está
afetada, pois não há relações saudáveis consigo e com o outros, não tem liberdade para estar
no ambiente escolar e em outros. Por isso, entendemos que esse trabalho é pertinente para
dar visibilidade ao discurso daquele que sofre essa violência, para que esse discurso circule
enquanto um problema que precisa de atenção, a fim de não ser naturalizado como algo
comum do espaço escolar, pois somente quando houver a compreensão de que o bullying é
um problema é que teremos políticas públicas, ações pedagógicas, trabalhos e eventos que
atuem nesta problemática. Não esperamos esgotar esses discursos com este trabalho, mas
inquietar e, com isso, insistir em práticas escolares, municipais, estaduais e federais que
457

possam acolher os sujeitos-vítimas e os sujeitos-agressores que já existem e evitar os novos


que possam surgir.

Referências
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paz. São Paulo: Verus Editora, 2011.
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uma historia da noção-conceito de formação discursiva. São Carlos, SP: Pedro & João
Editores. 2011.
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Dados e Cultura Acadêmica, nº 21, jul./dez., p. 121-125. 2002. ISSN: 2176-1485
458

A LÓGICA CONTRADITÓRIA DAS PRÁTICAS ESCOLARES


INTEGRACIONISTA E INCLUSIVAS: UMA PERCEPÇÃO DURANTEA
PANDEMIA

Léa Aparecida de Carvalho Ribeiro165


Vânia de Fátima Martino166

Introdução
O campo de estudo escolhido para apresentação deste relato de experiência, situa-
se na temática das Políticas Públicas e Educação especial/ inclusiva, envolvendo a
atualização conceitual teórica de sete professoras que trabalhavam nas salas de recursos
multifuncionais nas escolas da rede municipal de São Sebastião do Paraíso, MG. O
objetivo inicial, é de discutir a luz das legislações existentes as contradições nas práticas
escolares, sendo necessário refletir, discutir e compreender quais concepções que
fundamentam a escola em uma perspectiva inclusiva. Tendo clareza quanto a
configuração dos serviços do Atendimento Educacional Especializado (AEE)
sugestionado pela Política de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, 2008 e como
este serviço apoia os alunos público-alvo da educação inclusiva, para participarem da
escola comum. A formação continuada é de grande importância, possibilitando o
rompimento com uma lógica tradicional de escola e de uma representação idealizada de
aluno, que não corresponde ao aluno real.
Reconhecendo o território, neste caso a escola, que atuamos e questionando a
lógica das contradições que a nós, foram colocadas, poderemos de forma coerente
construir uma escola mais inclusiva? A função docente se configura como essencial para
a dinâmica dessa inovação, à medida que reflete sobre a prática pedagógica, pensando
sempre em como usar as ferramentas de acessibilidade em uma perspectiva inclusiva,
para acolher todas as pessoas, considerando a diferença de cada um, ou seja a diferença
em si. Pretendemos neste relato narrar como e quais ferramentas usamos para avançar em
nossa prática.

Desenvolvimento
No início do ano letivo de 2020, trabalhava como professora de sala de recursos
multifuncional (SRM), onde permaneci por quase uma década. O trabalho realizado neste

165
Universidade Estadual Paulista” Júlio de Mesquita Filho” Unesp- Franca. Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. [email protected]
166
Universidade Estadual Paulista” Júlio de Mesquita Filho” Unesp- Franca. Doutora e Professora do
Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análise de Políticas Públicas. [email protected]
459

espaço dentro das escolas comuns, segue as diretrizes da Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva Inclusiva de 2008, que sugere o Atendimento Educacional
Especializado (AEE).
É importante ressaltar que as instituições escolares seguem os documentos,
normativas e legislações federais, estaduais e municipais como Plano Nacional de
Educação (PNE, 2014/2024), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018) entre
outras legislações. No caso da inclusão escolar nossa rede de ensino municipal, possui
como diretriz para educação especial /inclusiva a Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva Inclusiva (PNEEPEI,2008) e como documentação estadual, utilizávamos
para formação de professores o caderno do Projeto Incluir, 2006, foi quando nos
deparamos com o isolamento social, decorrente das restrições sanitárias por conta do alto
índice de contaminação pelo vírus da Covid 19, em meio a uma nova forma de interagir,
buscamos meios para conectar com nossos alunos e entre nós professoras.

Nosso contexto naquele momento


Éramos seis professoras das Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), e uma
coordenadora de Educação Inclusiva, atendíamos alunos de mais de uma escola, e em
média acompanhávamos de 20 a 25 alunos, denominados alunos público-alvo da
educação especial sendo eles: alunos com deficiência, transtornos globais de
desenvolvimento e com altas habilidades/superdotação, definida pela legislação vigente
(PNEEPEI,2008). Na nossa realidade é que concomitantemente seguíamos as orientações
da secretária estadual de ensino, pois como não possuímos sistema municipal de
educação, seguimos as normas e orientações do sistema estadual de ensino. E a grande
descoberta foi, entender essa contradição em relação as legislações seguidas, pois elas
diferenciavam em relação a interpretação da deficiência, o que impossibilitava-nos de
avançar com a implementação da PNEEPEI, 2008.
Nós professoras do AEE, sempre buscávamos cursos de formação em temas
como: autismo, surdez, baixa visão e cegueira, deficiência intelectual, e deficiência física,
com intenção de lidarmos com cada aluno segundo seu diagnóstico, com a crença de
460

especializar e assim atender melhor cada situação. Fazíamos isso com as melhores das
intenções pedagógicas, sem perceber fazíamos a segmentação pela deficiência, ou seja, o
modelo médico estava presente em nossa atuação pedagógica.

Segregação, integração e inclusão


Quando nos reportamos aos conceitos de segregar, integrar e incluir, temos a
sensação de linearidade dos fatos históricos, como se um período finalizasse seguido logo
de outro, pois bem, descobrimos que os períodos históricos, ainda continuam coexistindo
através das práticas e que por falta de estudo e leituras mais reflexivas de nossa atuação,
ainda alimentávamos nossas práticas, fazendo um misto entre cada abordagem em relação
à deficiência.
Por segregação, denominamos o período, em que era inexistente as políticas
públicas para as pessoas com deficiência. As instituições eram de caráter assistencialista
e atendiam exclusivamente determinadas situações de deficiência como cegos, surdos etc.
Já o período de integração surge quando as práticas de segregação foram questionadas,
trazendo a ideia de integração, sendo esses alunos avaliados como capazes ou incapazes
de frequentar a escola, ou seja os alunos tinham que acompanhar a escola, para
permanecerem nela. A ideia de normal e anormal, advindas do modelo médico da
deficiência era muito forte e ainda continua presente em nossos contextos. O período de
inclusão é fomentado na década de 90, entendendo que incluir nada tem a ver com
normalização. Maria Teresa Mantoan (2015, p.28) explica que a inclusão implica em uma
mudança de perspectiva educacional, pois não diz respeito somente ao aluno com
deficiência, mas todos os demais alunos. Com a possibilidade de ensinar a todos, os
sistemas de ensino são provocados, desestabilizados. Enquanto no modelo médico da
eficiência, a pessoa em situação de deficiência “sujeito que não aprende”, “o inquieto”,
“o diferente”, “o incapaz de ler” e desloca para as barreiras do meio no modelo social da
deficiência, sendo localizado a barreira no meio como: a comunicação, as atitudes
excludentes, a estrutura tradicional da escola, o modelo meritocrático, socialmente
construído. É fundamental identificar e retirar as possíveis barreiras, possibilitando que
todos os alunos possam participar. Se a barreira é comunicacional, será necessário
estabelecer canais para se comunicar, de diferentes formas faladas, escritas, sinalizadas
461

com comunicação suplementadas por símbolos, desenhos, tecnologias assistivas. Sendo


necessário reconstruir nossas estruturas limitantes e direcionadas para alguns alunos.
Compreendemos que fazíamos os dois modelos, fazíamos integração escolar comnome de
inclusão escolar. Ter esse esclarecimento foi com certeza um passo importante para nosso
grupo de professoras, agora buscamos a cada situação pensar a acessibilidade em uma
perspectiva inclusiva, sendo oferecida para qualquer um que esteja no contexto, sem
direcionamento prévio do professor. Assim não faz sentido em espaços inclusivos, alguns
ficarem limitados ao conteúdo quando ele é direito de todos.

Análise das legislações seguidas pelas professoras de AEE


Da inquietação em torno da temática da inclusão, e em querer compreender
melhor como atuar dentro de uma perspectiva inclusiva, sem contradições, buscamos
investir em formações que alinhava a interpretação social da deficiência e não mais a
interpretação médica, o que é muito complicado, pois a ideia de aluno “padrão” é muito
presente nas escolas. Analisando o caderno de formação do Projeto Incluir167 observamos
que esse material inicia-se com um discurso de inclusão e depois propõe o estudo de
deficiência por deficiência, sendo o vocabulário médico muito presente, assim também é
sugestionado um modelo de Plano de Desenvolvimento Individualizado (PDI), que em
outros lugares também é denominado Plano de Ensino Individual (PEI), que foi instituído
nas escolas especiais em tempos de integração, como sendo parte da documentação
pedagógica dos alunos que possuem laudo médico, sendo esse documento feito pelo
professor que procura fazer um currículo diferenciado ou mais facilitado para que esse
aluno acompanhe a sala de aula.
O fato é que o PDI, não é sugerido pela política de 2008. Essas contradições
atrapalham a implementação da proposta inclusiva, pois partem da ideia que é direito do
aluno ter um currículo diferenciado, por conta de sua condição de deficiência, enquanto
na Política de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, 2008 não encontramos
nenhuma orientação sobre diferenciação curricular, pelo contrário na perspectiva
inclusiva não é legitimada nenhuma forma de diferenciação, o que caracterizaria em
discriminação. Como argumentam Ramos e Lanuti que essascontradições,
exemplificam a lógica ambivalente da exclusão escolar, onde esclarecemque: Notamos

167
Caderno de textos para formação de professores da rede pública de ensino de Minas Gerais Belo
Horizonte, 2006. Foi encaminhado para as escolas da rede estadual e municipal, como uma cartilha a ser
seguida, porém é um material que traz a concepção medica da deficiência.
462

que, no momento, embora grande parte das escolas comuns comporte-se como se
desejasse construir e desenvolver um Projeto Político- Pedagógico (PPP) inclusivo,
algumas delas operam na lógica da ambivalência: dizem-se “abertas a todos”, porém
buscam identificar quais alunos estão aptos (ou não) para aprender, como esperado, os
conteúdos curriculares; apoiam-se no direito que cada pessoa tem de se desenvolver e de
aprender, conforme a sua capacidade e, ao mesmo tempo, esperam dela a reprodução
exata do que foi transmitido pelo professor.( RAMOS; LANUTI, 2021, p. 58)
Entendemos que nosso sistema de ensino é inclusivo, porém trabalhamos com o
currículo sugestionado pela Base Nacional Comum Curricular, (BNCC, 2017) que impõe
um currículo unificado, preocupado com habilidades e competências comum a todos os
alunos do país e ainda avaliamos alunos com testes padronizados, nomeando-os como
fracos, medianos e avançados, mesmo depois da existência de um período de isolamento
social onde muitos conteúdos não foram trabalhados e após retorno já escutamos pelas
escolas falas do tipo: “ isso não é só fruto de pandemia” , na tentativa de evidenciar o jogo
da representação de alunos no modelo médico que é: definir o que é normal, comparar
pessoas e fixar identidade, segundo Mantoan e Lanuti ( 2022, p. 34)

O Atendimento Educacional Especializado (AEE)


A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, institui o
Atendimento Educacional Especializado (AEE) como um serviço da educação especial
destinada aos alunos considerados com deficiência, O trabalho desenvolvido nas Salas de
Recursos Multifuncionais, tem como objetivo realizar o estudo de caso, considerando
identificar possíveis barreiras, para a não efetiva participação e permanência dos alunos
na escola comum. Segundo as orientações 4do trabalho de Atendimento Educacional
Especializado, contido na Política de 2008, o AEE, oferta o serviço de forma
complementar e suplementar e nunca substitutiva à escolarização para os alunos público-
alvo da educação especial, no contraturno do ensino comum. Ainda o AEE, disponibiliza
de recursos de acessibilidade para atendimento às necessidades educacionais específicas
destes alunos nas escolas de ensino comum, sendo as acessibilidades aqui entendidas
como sendo de ordem comunicacional, espacial, arquitetônicas, tecnológicas,
pedagógicas, atitudinais entre outras possibilidades, promovendo os apoios necessários
que favoreçam a participação e aprendizagem dos alunos nas classes comuns.
Fortalecemos para nossa equipe de professoras que a construção do Estudo de
Caso, realizado pelo professor de sala de recursos, juntamente com a equipe pedagógica
da escola, e a família, constitui um documento capaz de propor recursos de acessibilidade
para que os alunos possam acessar o conteúdo das aulas, o que não justifica o professor
463

de AEE, realizar o reforço escolar, trabalhando conteúdos como alfabetização,


letramento, matemática ou outro conteúdo. Todos os recursos de tecnologia assistiva
devem ser oferecidos para que as barreiras de cada situação de deficiência possam ser
eliminadas ou amenizadas, sendo o estudo de caso importante, como parte da
documentação pedagógica, reforçando mais uma vez, não com objetivos de ensino do
conteúdo escolar a ser ensinado e sim como possibilidade de pensar acessibilidade
comunicacional, física, arquitetônica ou mesmo atitudinal.
Exemplificando temos como acessibilidade, desde ajustes pedagógicos simples
até as altas tecnologias, como exemplos poderemos dar acesso quando identificamos que
a letra usada pela professora da sala comum , não está acessível e então propomos ou
perguntamos para o aluno em questão se modificada a fonte da letra usada em um texto
para leitura destinada para um aluno com barreiras na visão, podemos ainda propor
contrastes de cores das letras em uma atividade, tamanho de letra, cor de tela,
engrossadores de lápis, escrita braille, sinalização em libras, ábacos, audiodescrição, lupas,
cadeiras, bengalas, soroban, imagens entre outros materiais que ajudarão os alunos em
situação de deficiência acessarem os conteúdos participando com os demais alunos.
Lembrando que essas tecnologias poderão ser disponibilizadas a todos, não sendo
ferramentas exclusivas de nenhum aluno, o que configuraria um trabalho diferenciado da
sala de aula.

Nossos passos e nossa ações


De posse desses esclarecimentos, movimentamos para replanejar o trabalho que
fazíamos, o estudo de caso começou a partir de 2021 a ser planejado, e realizamos a
proposta com mais cuidado, já que era um documento preenchido anteriormente mais por
conveniência e obrigatoriedade do que por compreendê-lo como um instrumento
reflexivo e de mudança atitudinal, pois entendemos que o Plano de AEE, que localizamos
as barreiras e promovemos as retiradas, deixando a escola mais acolhedora, na medida
que todos possam participar. Realizar o estudo de caso, possibilitou-nos perceber sua real
importância e como a construção desse documento propiciaria momentos riquíssimos de
trocas entre escola e família, o que levaríamos em conta não posturas padronizadas, mas
um documento muito singular que só diz respeito aquele aluno.
Foi no contexto de isolamento que buscamos contatar com outros lugares e
professores, para troca de experiência, como fazíamos adaptações de conteúdos e
ajudávamos em grande parte com o pedagógico. Com o distanciamento, tivemos
situações para recriar e assim atender nossos alunos, foi quando tivemos acesso através
das tecnologias, as produções, vídeos, textos e live5 realizada pelo grupo de pesquisa do
464

LEPED6, coordenado pela professora Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan, do


Departamento de Ensino e Práticas Culturais, da Universidade Estadual de Campinas,
UNICAMP, sendo a professora Mantoan, uma pesquisadora muito atuante e enxergamos
nela uma possibilidade de compreender melhor a proposta da inclusão, pois ela Maria
Teresa Mantoan, foi uma das autoras da Política de Educação Especial na Perspectiva
Inclusiva de 2008. Participamos de grupo de estudos e de discussões e alinhamos nossa
leitura com pesquisas que deveriam ser na perspectiva inclusiva e assim tínhamos que
refletir sobre o modelo médico, ainda muito presentes na escola.

Considerações finais
Para que a escola avance na proposta inclusiva é preciso investir na formação
continuada dos professores, porém em nossa percepção as formações devem ser alinhadas
com a concepção da escola que queremos. É preciso decidir conjuntamente qual a
proposta pedagógica de nossa escola e nossa filosofia educativa, por isso a importância
do Projeto Político Pedagógico como possibilidade de decidir na coletividade, junto com
todos que dele participam na sua construção.
O que fica como aprendizado de todo o movimento feito por nós, professores de
AEE, foi atualizar e assim e compreender que seguíamos documentações que
contradiziam em suas concepções, nos deixando confusas quanto o tipo de escola que
atuávamos. O projeto Incluir, possui um alinhamento da escola especial, e foi usado como
referencial até 2020, onde compreendemos que a visão médica sobressai a visão social da
deficiência, por isso será necessário deixá-lo para traz. A escola que almejamos que
atende a todos sem distinção, dependerá dos rompimentos de ações excludentes,
existentes dentro das escolas e redes de ensino, comonos provoca Jacque Rancière (2015,
p.183) dizendo que é preciso emancipar o conhecimento e escolher entre fazer uma
sociedade desigual com homens iguais, ou umasociedade igual com homens desiguais.
Ou ainda nos provocar e nos movimentar para uma linha de fuga como sugere Gallo e
Monteiro (2020, p. 199), que a escola precisa serconsiderada sob outras óticas, sob outras
lógicas. Nos propõe inventar escolas outras, resistentes aos modelos meritrocráticos, que
classificam, que selecionam. Esses autores defendem que é no micro, no interior da sala
de aula, da escola, que vigora a militância, a resistência que faz da escola uma escola
outra. ( p.198). Em nossa realidade entendemos que nem tudo ainda conseguimos
desconstruir, mas seguimos resistentes. Quando ao PDI (Plano de Desenvolvimento
Individualizado) ele ainda permanece na rede municipal, porém sua existência deixou de
ter a relevância que tinha, fazemos mais como um protocolo que ainda sobrevive, mas já
tem seus dias contatos, quando os professores através de formação continuada
465

entenderem todos os instrumentos que são legitimados e que excluem mais que incluem.
Aprendemos sobre aimportância da construção do plano de AEE, através do estudo de
caso, e a importância de reconhecer a singularidade de cada aluno. Ainda Mantoan e
Lanuti, (2022, p. 30) estudiosos da filosofia da diferença de Gilles Deleuze explica que a
escola romperá coma lógica da representação, do ideal de aluno, quando compreender o
conceito de diferença em si, sendo a diferença aqui nada ligado a comparação, nada
generalizado, mas algumacoisa comum a todos nós. A diferença é própria de cada ser,
sendo instável, fluída e está sempre atualizando e por tanto escapa a toda forma de
construção social. Sendo a diferença própria de cada ser. As contradições existentes entre
ambas as perspectiva integracionista e inclusiva, foram e são visíveis nas escolas,
convocando a nós professores, questionar cotidianamente sobre ações escolares
excludentes que nos impedem de avançar para momentos efetivos de acesso, participação
e permanência de todos os alunos nas escolascomuns.

Referências
BRASIL, Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial
na Perspectiva Inclusiva. Brasília. Mec.2008. Site:
http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf. Acesso em
10/09/2022.
CAVALCANTE, Meire. Orientações para a Organização de Centros de AEE (Nota Técnica
09/2010 MEC/SEESP/GAB), 2011.
GALLO, S. Em torno de uma educação menor. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.27,
n.02, p. 169-178, 2002.
MANTOAN, Maria Teresa E.; Inclusão Escolar: o que é? Por quê? Como fazer? São
Paulo Summus Editorial, 2015.
, Maria Teresa E.; LANUTI, José Eduardo O. E. A escola que queremos
para todos. Curitiba. Editora: CRV, 2022
MINAS GERAIS, Secretaria de Estado de Educação Caderno de textos para formaçãode
professores da rede pública de ensino de Minas Gerais Belo Horizonte, 2006. 1.
Educação Inclusiva. I. Minas Gerais. Secretaria de Estado de Educação. II. Título.
RAMOS, E. S.; LANUTI, J. E. O. E. A redução da diferença e sua relação com a lógica
ambivalente da exclusão escolar. In: MOREIRA, A. M.; MOREIRA, I. C.; LANUTI, J.
E. O. E. (Org.). Inclusão e exclusão: debates transdisciplinares. 1ed. Andradina: Meraki,
2021, v. 1, p. 58-71.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual.
Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2015
466

A PRIORIDADE NA EDUCAÇÃO DE DARCY RIBEIRO E A AGENDA 2030 DA


ONU: UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA PARA O FUTURO

Kelen Careta Machado168

Introdução
A temática engloba a educação de qualidade como direito, descrita nos objetivos do
desenvolvimento sustentável presentes na Agenda 2030, cuja análise é realizada com base
na obra “Educação como prioridade” de Darcy Ribeiro, seleção e organização de Lúcia
Velloso Maurício.
Nessa perspectiva, este estudo tem como problemática verificar a relação de Darcy
Ribeiro, por meio de “Educação como prioridade” da autora citada, aproximando da proposta
de educação detalhada no quarto objetivo da Agenda 2030, da ONU, conduzindo a uma
discussão se a educação defendida pelo antropólogo como democrática, de qualidade e para
todos, conversa com o caminho educacional traçado até aqui.
Os objetivos são verificar se a concepção teórica de Darcy Ribeiro se alinha ao quarto
objetivo para a educação proposto pela Agenda 2030 para o Brasil; apresentar o pensamento
de Darcy Ribeiro sobre a educação. Assim, o estudo foi dividido em três seções. A primeira
faz uma análise histórico-crítica do debate para o desenvolvimento sustentável como um
direito na Agenda 2030, esclarecendo os motivos de sua criação e a consolidação dos
objetivos no Brasil. A segunda seção se envolve com o estudo da vida e da obra de Ribeiro,
bem como suas ideais sobre educação e a aproximação com o 4º ODS. Por fim, as
considerações finais se voltam para a problemática para compreender a relação desse marco
teórico com as ideias de Darcy sobre a educação.
A justificativa de se utilizar uma pesquisa qualitativa e dedutiva neste artigo é a opção
por ser um estudo teórico, que se servirá de documentos bibliográficos sobre o assunto, com
emprego de artigos e referências direcionadas à temática.

A agenda 2030 e o quarto ODS no Brasil

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Plano Marshall, retomou a ideia de


desenvolvimento, resgatando o desejado progresso, tão divulgada na sociedade do século
XIX, a exemplo disso temos o impulsionamento industrial – é o progresso sendo incorporado

168
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Análises de Políticas Públicas da
Unesp/Franca. E-mail: [email protected]
467

à vida social e à produção, através de novas invenções e técnicas: era o desenvolvimento que
em meados do século XX já denunciava um crescimento econômico quantitativo resultando
em avanço industrial, produtividade e crescimento do PIB (Produto Interno Pruto) e tantos
outros indicativos de crescimento econômico. (AMARO, 2003, p. 40).
Durante a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente Humano de 1972,
refletiu-se que o desenvolvimento deveria ser sustentável. Tal ideia ganhou força só em
1987, quando se divulgou o Relatório Brundtland pela Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento. Nele foi redacionada o primeiro conceito de sustentabilidade
que se referia ao “desenvolvimento que encontra as necessidades atuais sem comprometer a
habilidade das futuras gerações de atender suas próprias necessidades” (UNITED
NATIONS, 1987, p. 16).
No entanto um paralelo se criou nessa geração de riqueza absoluta que traduzia em
desenvolvimento: graves danos ambientais começaram a surgir, surgindo também a temática
“sustentabilidade”, como se isso garantisse a completa cobertura ambiental. Em face a esse
problema, houve um aumento nos conflitos sociais e ambientais, fazendo com que as
discussões sobre o desenvolvimento sustentável se intensificassem nas últimas décadas,
tornando necessária a compreensão mais abrangente sobre desenvolvimento sustentável.
Assim, houve maior preocupação com o futuro e o presente do ser humano, exigindo
uma visão integrada de desenvolvimento, na qual houvesse um equilíbrio entre os aspectos
econômico, social, político-institucional e ambiental. Nesse cenário, a ONU (Organização
das Nações Unidas) passa a captar todas as críticas relacionadas ao desenvolvimento
sustentável e a trabalhar para transformá-las em ações positivas. Nesse cenário, torna-se
essencial comtemplar o direito ao desenvolvimento, cuja trajetória de longa data vem sendo
ressignificada de forma a se completarem mutuamente.
Surge, em meio a essas discussões, a Agenda 2030 da ONU buscando atender a essa
dicotomia entre progresso e conflitos sociais e ambientais, instituindo um plano mundial,
que visa a um mundo mais desenvolvido para todos sem discriminação. Desse modo, em
setembro de 2015, em uma Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Nova York,
estabeleceu-se 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) com a participação de
193 estados-membros, os quais assumiram de forma ousada e comprometida a promoção do
Estado de Direito, dos direitos humanos e das respostas rápidas através de Políticas Públicas
eficientes.
Apesar de ter sido instituída em 2015, essas propostas surgiram durante a
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 1990,
conhecida como Rio92, na qual se discutiu os problemas globais e caminhos para a
promoção do desenvolvimento sustentável para as gerações futuras, com especial atenção
468

aos seres humanos e ao meio ambiente. Durante esse encontro, ocorrido no Rio, com 100
chefes de Estado, houve a primeira redação da carta de intenções para a promoção de um
novo objetivo para o século, assim foi adotada a Agenda 21. Duas décadas mais tarde, tal
Agenda foi renovada no Rio+20.
Para dar voz às reflexões, o documento “Transformando o nosso mundo: a Agenda
2030 para o desenvolvimento sustentável”, disponível para consulta pública, trata de forma
ambiciosa dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas. O objetivo é
alcançar o direito do ser humano, igualdade de gênero e o empoderamento feminino, que de
forma integrada, abrange as dimensões econômica, social e ambiental, disposto no
desenvolvimento sustentável. (ONU, 2015, p. 1-2):
Diante do exposto no percurso até a Agenda 2030, é necessária também uma análise
apurada dos objetivos da Agenda, bem como o envolvimento dos aspectos econômicos nessa
organização. O enfraquecimento do poder público a favor das iniciativas privadas é o
principal ponto a ser discutido.
Apesar de todo apelo que esta agenda nos remete e da ONU, e alguns governos,
tentarem ampliar a discussão por meio de participação da sociedade global, via
tecnologias de comunicação e dados abertos para trazer organizações e
cidadãos e cidadãs para o debate, o que ocorre é um afunilamento no qual, as
decisões finais, excluem todos os que foram convidados ao debate global e o
texto final não reflete as principais demandas e preocupações expressas por
aqueles convidados a opinarem. Ademais os ODS são genéricos e sem clareza
dos mecanismos de financiamento para a solução das questões. E, cada vez
mais, as resoluções estão sendo colocadas nas mãos do setor privado, que
privilegia uma visão de mercado requentando uma lógica que já demonstrou
ser a causa do desastre global. (PIETRICOVSKY, 2014, p. A1)

É inquestionável o poder exercido pelas parcerias público/privadas nas propostas de


desenvolvimento sustentável, com uma visão deturpada de crescimento econômico, já que
preconiza soluções que favorecem o mercado, alheando-se das temáticas como crise
climática, desequilíbrio ambiental e, em especial, pobreza.
No entanto, ainda que essa visão de Iara Pietricovsky (2014) desconstrua os
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), é importante um estudo apurado do ODS
n. 4, que destaca “Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (ONU, 2015, p.21), analisando
as contribuições de Darcy Ribeiro no compilado de escritos organizados por Lúcia Velloso
Maurício em “Educação como prioridade”, lançado em 2018.
É importante detalhar esse Objetivo do Desenvolvimento Sustentável com
adequações à nação brasileira. Tais ajustes são necessários em vista às especificidades que
não se ajustam às discussões globais ou pelo já cumprimento de tal meta ou por precisar de
dados particulares para a cobertura da meta. Além disso, na Federação brasileira, a
preocupação com os ODS e com a instauração de políticas públicas adequadas para que os
469

objetivos sejam cumpridos perpassam em suas três esferas: União, estados e municípios.
Logo, faz-se necessário uma adaptação do texto global de forma a contemplar as prioridades
específicas da nação. (IPEA, 2018, p. 13)
4. Educação de Qualidade
Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.
Meta 4.1 - Até 2030, garantir que todas as meninas e meninos completem o ensino
fundamental e médio, equitativo e de qualidade, na idade adequada, assegurando
a oferta gratuita na rede pública e que conduza a resultados de aprendizagem
satisfatórios e relevantes.
Meta 4.2 - Até 2030, assegurar a todas as meninas e meninos o desenvolvimento
integral na primeira infância, acesso a cuidados e à educação infantil de qualidade,
de modo que estejam preparados para o ensino fundamental.
Meta 4.3 - Até 2030, assegurar a equidade (gênero, raça, renda, território e outros)
de acesso e permanência à educação profissional e à educação superior de
qualidade, de forma gratuita ou a preços acessíveis.
Meta 4.4 - Até 2030, aumentar substancialmente o número de jovens e adultos que
tenham as competências necessárias, sobretudo técnicas e profissionais, para o
emprego, trabalho decente e empreendedorismo.
Meta 4.5 - Até 2030, eliminar as desigualdades de gênero e raça na educação e
garantir a equidade de acesso, permanência e êxito em todos os níveis, etapas e
modalidades de ensino para os grupos em situação de vulnerabilidade, sobretudo
as pessoas com deficiência, populações do campo, populações itinerantes,
comunidades indígenas e tradicionais, adolescentes e jovens em cumprimento de
medidas socioeducativas e população em situação de rua ou em privação de
liberdade.
Meta 4.6 - Até 2030, garantir que todos os jovens e adultos estejam alfabetizados,
tendo adquirido os conhecimentos básicos em leitura, escrita e matemática.
Meta 4.7 - Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e
habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive,
entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos
de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de gênero, promoção de uma
cultura de paz e não violência, cidadania global e valorização da diversidade
cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável.
Brasil
Meta 4.a - Ofertar infraestrutura física escolar adequada às necessidades da
criança, acessível às pessoas com deficiências e sensível ao gênero, que garanta a
existência de ambientes de aprendizagem seguros, não violentos, inclusivos e
eficazes para todos.
Meta 4.b - Até 2020, ampliar em 50% o número de vagas efetivamente preenchidas
por alunos dos países em desenvolvimento, em particular os países de menor
desenvolvimento relativo, tais como os países africanos de língua portuguesa e
países latino-americanos, para o ensino superior, incluindo programas de
formação profissional, de tecnologia da informação e da comunicação, programas
técnicos, de engenharia e científicos no Brasil.
Meta 4.c - Até 2030, assegurar que todos os professores da educação básica
tenham formação específica na área de conhecimento em que atuam, promovendo
a oferta de formação continuada, em regime de colaboração entre União, estados
e municípios, inclusive por meio de cooperação internacional. (IPEA, p. 109-131).

A revisão dada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) enfatiza que
o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) garantiria a cobertura de 70% das
metas propostas já em 2024, antes do previsto pela ONU, que se dará em 2030. As metas
globais são apenas um norte para que cada país se guie e trace planos específicos a sua
política. Ainda que a adaptação do IPEA seja promissora, é preciso parcimônia quanto aos
dados. O Observatório do PNE apresenta bons resultados quanto ao acesso à Educação
470

Infantil e ao Ensino Fundamental, mas as últimas etapas da Educação Básica ainda


apresentam problemas com a baixa taxa de conclusão.

Fonte: Dados extraídos do Observatório do PNE e do Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA). Infográfico gerado pela Fundação Telefônica Vivo

Para mudanças nos dados, ações conjuntas devem ser tomadas como melhorias e
adaptações curriculares, investimento em formação docente e de gestores e ampliação de
verbas para a Educação Básica. A Unesco, em recente relatório atribui a responsabilidade de
uma educação de qualidade não só às bases do governo, mas de todos os atores sociais.
Segundo a VI edição do Relatório Luz (RL 2022) o país se encontra numa situação
gravíssima. “Num contexto de crise sanitária e climática de ordem global, o aumento da
pobreza, da fome, da perda de biodiversidade e da qualidade de vida no Brasil são aqui
apresentados com dados que indicam, de forma irrefutável, uma sociedade adoecida”
(RELATÓRIO LUZ, 2022, p. 6)
O Painel ODS Brasil sequer apresenta dados posteriores a 2020 para
qualquer dos indicadores e não há informações de seis metas: 4.1
(indicador 4.1.1), 4.2 (indicador 4.2.1), 4.3, 4.4, 4.6 e 4.7. O cenário geral
da educação brasileira é de cortes orçamentários aprofundados, exclusão e
violações a direitos. Ao contrário do que preconiza o Plano Nacional de
Educação (PNE), avançam os projetos e políticas educacionais
discriminatórias e censoras, como o PL da educação domiciliar
(homeschooling), aprovado na Câmara dos Deputados. A meta 4.14 estava
ameaçada e retrocedeu. [...] A crise econômica e social e a falta de
investimentos governamentais potencializam a violação de direitos,
inclusive o direito à educação infantil. A meta 1 do Plano Nacional de
Educação – universalização do acesso na faixa etária de 4 e 5 anos –
471

prevista para 2016, dificilmente será cumprida em 2024, visto que menos
de 50% das crianças abaixo de 3 anos estavam frequentando creches em
2021. (RELATÓRIO LUZ, 2022, p. 26)

Assim, com essas considerações no contexto da Agenda 2030, passa-se à análise da


contribuição de Darcy Ribeiro, que se dedicou intensamente ao tema da educação em vários
escritos, discursos e ações efetivas, como está compilado em “Educação como Prioridade”
e outras significativas obras.

Darcy Ribeiro e a educação como prioridade


Darcy Ribeiro, antropólogo, educador e romancista, nasceu em Montes Claros (MG),
em 26 de outubro de 1922, e faleceu em Brasília, DF, em 17 de fevereiro de 1997. Com uma
brilhante carreira na área de antropologia e etnografia, foi também escritor, educador e
político, tornou-se com esses papéis importante marco na história brasileira na segunda
metade do século XX. Eleito em 8 de outubro de 1992 para a Cadeira nº 11 da Academia
Brasileira de Letras, sucedendo a Deolindo Couto, foi recebido em 15 de abril de 1993, pelo
acadêmico Candido Mendes de Almeida. (RIBEIRO, 2018, p. 219)
Além dos feitos, “dedicou sua vida a observar e registrar as necessidades do povo
brasileiro, em especial das camadas mais necessitadas e lutou por uma vida mais justa e
igualitária para todos a partir da educação” (MARTINAZZO, 2020, p. 3). Em face aos
problemas educacionais no Brasil, e sabendo que não eram nada simples, decidiu atuar na
gestão e organização da educação. Partiu do ideal da escola novista, de John Dewey e da
dedicação ao trabalho do brasileiro Anísio Teixeira Ribeiro, que herdou a Escola Nova. Com
este lutou por uma escola pública democrática e laica (idem, p. 3).
Darcy teve um longo convívio com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB),
desde a década de 50, quando ela foi um dos temas fundamentais de debates políticos e
ideológicos. A inteligência nacional se dividiu em duas correntes: a privatista, liderada por
Carlos Lacerda e Dom Hélder Câmara, e a defesa à escola pública, em que a maioria dos
educadores era liderada por Anísio Teixeira, de quem foi ativo colaborador.
A parceria se afinou na criação da Universidade de Brasília (UnB), na
abertura dos anos 1960 e foi consolidada quando Darcy Ribeiro assumiu o
Ministério da Educação e Cultura (MEC) em setembro de 1962, sendo
substituído por Anísio Teixeira na reitoria da UnB. Permaneceu no
ministério até 23 de janeiro de 1963, quando assumiu a chefia do Gabinete
Civil da Presidência da República no governo João Goulart. O golpe de
1964 retirou o antropólogo não só do governo João Goulart (de quem era
chefe da Casa Civil) como da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, onde
lecionava desde 1956. Para não falar, claro, da própria UnB, invadida e
torpedeada pelas forças da repressão militar. (BOMENY, 2016, apud
BOMENY, 2017, p. 24).
472

Quando a LDB foi promulgada, em 1961, o antropólogo era ministro da Educação e


ele teve a oportunidade de elaborar as razões de veto que melhoraram substancialmente o
sectarismo do projeto votado no Congresso. Em cumprimento à Lei, elaborou o primeiro
Plano Nacional de Educação (PNE), colocou em funcionamento o primeiro Conselho
Federal de Educação e instituiu os três fundos de financiamento do Ensino Básico, Médio e
Superior. O esforço para que a União destinasse 12% do custeio da educação as taxas
educacionais, já que a ditadura anulou a educação.
Na gestão de Leonel Brizola como governador e Darcy como vice-governador (1983-
1987), criou os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), popularmente conhecidos
como Brizolões. Conforme as próprias palavras de Ribeiro:

A escolha da educação como a prioridade fundamental responde,


essencialmente, à ideologia socialista-democrática do Partido Democrático
Trabalhista de Leonel Brizola. Essa ideologia é que, contrariando uma
prática antiquíssima de descaso em matéria de instrução pública, nos deu a
coragem de abrir os olhos para ver e medir a gravidade do problema
educacional brasileiro e sobretudo a ousadia de enfrentá-lo como a maior
massa de recursos que o estado pôde reunir. (RIBEIRO, 2018, p.26).

Assim, a iniciativa do antropólogo em assumir as emergências na área da Educação


quando lhe foi oportunizado o cargo de vice-governador do Rio de Janeiro mostra o desejo
de “assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de
aprendizagem ao longo da vida para todos” (IPEA, p. 109-131). Essa crítica por uma
educação democrática já vinha desde sua parceria com seu mestre Anísio Teixeira. Para
Darcy, o enfoque de uma educação do futuro é na formação cidadã, transdisciplinar,
buscando superar as incertezas e produzir senso crítico, tratando a todos com igualdade. A
educação deve deixar de ser para poucos, seletiva, elitista e focar naquele que pode buscar o
aprendizado, por isso criou os CIEPS, para uma educação integral do ser humano.
Por essas práticas pluralistas, visando o desenvolvimento sustentável articulável a
diferentes demandas, é que as ideias de Darcy Ribeiro, enfatizadas na obra “Educação como
prioridade” conversam com o quarto Objetivo do Desenvolvimento Sustentável. Darcy,
portanto, concebe uma revolução paradigmática na educação ao implantar os CIEPS, que
projetavam uma educação no futuro.
Só uma escola nova, concebida com o compromisso de atender as
condições objetivas em que se apresenta o alunado oriundo das classes
menos favorecidas, educará o Brasil. Só uma escolarização de dia
completo, com professores especialmente preparados e de rotina educativa
competentemente planejada, acabará com o menor abandonado, que só
existe no Brasil. Assim é porque só aqui se nega à infância pobre a escola
que integrou na civilização letrada a infância de todas as nações civilizadas.
(RIBEIRO, 2018, p.47)
473

Apesar da brevidade das considerações desse centenário e suas ideias, faz-se


necessário relacioná-lo ao quarto objetivo da Agenda 2030 da ONU, por sua premente luta
por uma educação tal como descrita nas metas. Se no século XX tais metas não puderam ser
concretizadas por forças políticas e políticas neoliberais, assunto que não cabe a este artigo,
hodiernamente dificilmente serão pelo mesmo motivo tal como relata o VI Relatório Luz
2022.

Considerações finais
O presente estudo versou sobre a educação de qualidade que pode ser vislumbrada
nas ideias de Darcy Ribeiro, em seu escrito “Educação como prioridade” e no quarto ODS
da Agenda 2030 da ONU.
A educação é responsabilidade de todos e deve ser de responsabilidade global, já que
influi nas políticas públicas de toda uma nação. Em seu quarto objetivo, a Agenda 2030
propõe uma educação equitativa, inclusiva e de qualidade, e, desta forma, Darcy Ribeiro já
se preocupava com a educação para os dias atuais. Por ser uma preocupação tão significativa
para Darcy, já acreditava que a solução para o futuro do país estava na educação pública de
qualidade, é íntima a relação do compilado por Lúcia Velloso Maurício.
O projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), apesar de ter
contemplado apenas o Rio de Janeiro, era um projeto nacional que alertava para a gravidade
da ferida educacional no país. O 4.º objetivo para o desenvolvimento sustentável, por sua
vez, é educação que inclui, que iguala e que seja de qualidade, bem como promover
oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. Tal como no CIEPs todos têm
acesso à aprendizagem, incluindo políticas públicas, planos e programas de desenvolvimento
impostos pelo país.

Referências
AMARO, Rogério Roque. Desenvolvimento – um conceito ultrapassado ou em renovação?
Da teoria à prática e da prática à teoria. Cadernos de Estudos Africanos, n. 4, p. 35-70,
2003. Disponível em: http://journals.openedition.org/cea/1573. Acesso em: 01 set. 2022.
BOMENY, Vinte anos sem Darcy: Impressões e notas. Revista Interinstitucional Artes
de Educar. Rio de Janeiro, V. 3 N.2 – p. 22-30 (jul/out 2017): “Número Especial Darcy
Ribeiro” DOI: 10.12957/riae.2017.31707
PIETRICOVSKY, Iara. Caminhos percorridos da Rio 92 à Pós-2015, Brasília, INESC,
10/09/2014. <http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/artigos/caminhos-
percorridos-da-rio-92-a-pos-2015-por-iara-pietricovsku>
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Transformando nosso mundo: A
Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Disponível em:
https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em:
22/09/2022.
474

RIBEIRO, Darcy. Educação como prioridade. São Paulo, Editora Global, 2013.
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável: Educação de Qualidade. Brasília: Ipea, 2018. Disponível
em: <https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8636/1/
Agenda%202030%20ODS%20Metas%20Nac%20dos%20Obj%20de%20Desenv%20Sust
en%202018.pdf> Acesso em: 02/10/2022.
OS DESAFIOS DO BRASIL PARA ALCANÇAR UMA EDUCAÇÃO INCLUSIVA E DE
QUALIDADE. Fundação Telefônica Vivo, São Paulo, 07.04.2020. Disponível em:
https://fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/os-desafios-do-brasil-para-alcancar-uma-
educacao-inclusiva-e-de-qualidade/ . Acesso em: 02/09/2022.
GUIA AGENDA 2030 [livro eletrônico]: Integrando ODS, Educação e Sociedade /
organização Raquel Cabral, Thiago Gehre; ilustração Lucas Fúrio Melara. 1. ed. São Paulo:
Lucas Fúrio Melara: Raquel Cabral, 2020.
BOMENY, H. A escola no Brasil de Darcy Ribeiro. Em Aberto, Brasília, v. 22, n. 80, p.
109-120, 2009. Disponível em: <https://goo.gl/XZEGyc>. Acesso em: 2 outubro 2022
MARTINAZZO, Celso José, Sidinei Pithan Da Silva, e Hedi Maria Luft. "A Atualidade Do
Diagnóstico E Da Crítica De Darcy Ribeiro (1922-1997) à Educação Brasileira." Cadernos
De História Da Educação 19.2 (2020): 481-95. Web.

MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Educação integral e tempo integral. aberto, Brasília, v. 22, n.
80, p. 1-165, 2009.
DA SOCIEDADE CIVIL, Grupo de Trabalho et al. VI Relatório Luz 2022. 2022.
Disponível em:
https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2022/07/pt_rl_2022_final_web-1.pdf.
Acesso em: 2 outubro 2022.
475

JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Patrícia Alves Martins dos Santos169

Introdução
O Direito à Educação assume expressamente na Constituição brasileira um papel de
direito de base social. O artigo 6º trata de maneira categórica e concisa, para posteriormente
ratificar esse posicionamento, especificando esse direito e outros direitos e institutos
correlatos, no seu Capítulo III do Título VIII, exatamente a partir do artigo 205.
O Direito à Educação obriga o Estado a oferecer o acesso a todos os interessados,
especialmente àqueles que não possam custear uma educação particular. Os direitos sociais
ocupam-se preferencialmente, dentro do universo de cidadãos do Estado, daqueles mais
carentes. Apesar do sentido de direito social, que assume dogmaticamente, o Direito à
Educação deve ser também reconhecido em caráter de liberdade pública.
Anísio Teixeira traça uma linha de ligação entre a democracia e a educação
afirmando que:
A forma democrática implica um desenvolvimento social e político, que
tem por base a educabilidade humana, e no qual a educação é concebida
como processo deliberado, sistemático, progressivo e, praticamente,
indefinido de formação do indivíduo e de realização da própria forma
democrática. As relações, portanto, entre o Estado Democrático e a
Educação são relações intrínsecas, no sentido de que a Educação é a
condição sine qua non da existência do Estado Democrático (1996, p.99)

Um tema bastante discutido nas sociedades modernas é a ampliação do acesso à


Justiça. No Brasil, nos anos de 1980, o tema do acesso à Justiça apresentava-se diluído em
contextos que enfatizavam a cidadania ativa e a garantia dos direitos individuais.
Naquele momento, muitos movimentos oriundos da sociedade civil insurgiram,
reivindicando direitos sociais e econômicos, sobretudo para defesa das minorias, como
crianças, mulheres, negros, homossexuais e portadores de necessidades especiais.
Um pouco mais adiante, especificamente no ano de 1996 entra em vigor a Lei n.º
9.394 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, alinhada com a Constituição
Federal, quando trata dos Princípios e Fins da Educação Nacional, dispões em seu artigo 2º:
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios
de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.

169
Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. Doutoranda. [email protected].
476

A questão do acesso à Justiça abarca discussões acerca da garantia dos direitos dos
indivíduos e da coletividade, em virtude do abuso de poder de entes estatais ou, então, do
não cumprimento de normas constitucionais vinculadas às políticas públicas. (MOTTA,
2008)
A Constituição de 1988 estabeleceu como um princípio constitucional o acesso à
Justiça e garantiu às instituições jurídicas (Magistratura, Defensoria Pública e Ministério
Público) o reconhecimento como essenciais à Justiça.
O chamado processo de judicialização da política diz respeito exatamente a esse
fortalecimento das instituições jurídicas, assim como à expansão do direito através da
inserção de agentes jurídicos na esfera pública.
Casagrande apresenta a seguinte definição para esse processo:
A participação ativa de juízes e tribunais na criação e no reconhecimento
de novos direitos, bem como no saneamento de omissões do governo. [...]
transposição para o Judiciário de uma parcela dos poderes decisórios
típicos do Legislativo e do Executivo, que vem se dando sobretudo a partir
de uma publicização do direito, marcada pela ascensão do direito
constitucional sobre o direito privado. (2008, p.16).

Quanto ao sentido positivo ou negativo dessa inserção, apoia-se na defesa de que a


judicialização da política no Brasil tem sido um fator relevante na sociedade para a garantia
da constitucionalidade, uma vez, que é através dela que minorias têm tido a oportunidade de
se mobilizar e de se defrontar com representantes na defesa de seus interesses e direitos,
afirmando-se como cidadãos.
O objetivo do presente trabalho é demonstrar a necessidade cada vez maior da busca
pela judicialização da educação, garantindo assim a defesa dos direitos sociais,
especificamente, do direito à educação.

Desenvolvimento
A atual Constituição Federal de 1988 foi de suma importância no encaminhamento
da discussão dos problemas relativos à educação brasileira, pois estabeleceu diretrizes,
princípios e normas que destacam a importância que o tema merece.
Reconheceu a educação como um direito social e fundamental, possibilitando o
desenvolvimento de ações por todos aqueles responsáveis pela sua concretização, ou seja, o
Estado, família, sociedade e a escola (educadores), bem como a concebeu como um direito
público subjetivo, assim compreendido como a faculdade de se exigir a prestação prometida
pelo Estado. (FERREIRA, 2008, p. 37)
477

O Direito à Educação decorre de dimensões estruturais coexistentes na própria


consistência do ser humano, por isso tamanha importância e necessidade reconhecidas à
educação.
A expressão “educação básica” no texto de uma Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) é um conceito novo, um direito e também uma forma de
organização da educação nacional. Como conceito, a educação básica veio esclarecer e
administrar um conjunto de realidades novas trazidas pela busca de um espaço público novo.
Como um princípio conceitual, genérico e abstrato, a educação básica ajuda a organizar o
real existente em novas bases e administrá-lo por meio de uma ação política consequente.
Segue o entendimento de Cury:

A capacidade de mobilização de uma ideia política reside justamente nos


seus conteúdos abstratos. Aliás, a abstração é fonte fundamental de sua
força, porque permite que os conteúdos de determinados princípios gerais
possam ganhar redefinições inesperadas, e, portanto, a questão dos direitos
será sempre uma construção imperfeita e inacabada. (2008, p. 294)

Portanto, de um lado tem-se o dever do Estado com a educação (art. 208 da


Constituição Federal); de outro, o art. 5º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que,
além de repetir que o acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo,
acrescentou que qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária,
organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e o Ministério
Público podem acionar o poder público para exigi-lo. Assim como disposição contida no
Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 54, § 1º: "O acesso ao ensino obrigatório e
gratuito é direito público subjetivo." Para o educador e jurista Edivaldo Boaventura,

A educação é direito de todos, dever do Estado e da família. De um lado, temos


a pessoa humana portadora do direito à educação e, do outro, a obrigação estatal
de prestá-la. Em favor do indivíduo há um direito subjetivo; em relação ao
Estado um dever a cumprir. Se há um direito público subjetivo à educação (vide
§ 1º, do art. 208), isso quer dizer que o particular tem a faculdade de exigir do
Estado o cumprimento da prestação educacional pelos poderes públicos (vide §
2º, do art. 208). O seu não oferecimento importa na responsabilidade da
autoridade competente. A Constituição poderá fazer muito pela Educação no
sentido de sua promoção, colocando em prática os meios jurídicos para efetivá-
la como um direito público subjetivo. Finalmente o legislador atendeu aos
reclamos da doutrina. (1999, p. 260).

Outro importante documento legal para a declaração do Direito à Educação é o


Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 (ECA).
Este Estatuto, no artigo 53, amplia as condições para a efetivação desse direito. O
primeiro inciso desse artigo está presente na Constituição Federal de 1988, mas há outros
478

aspectos complementares do Direito à Educação, como o inciso II que garante às crianças


e aos adolescentes o direito de serem respeitados por seus educadores; o inciso III, que
possibilita a discussão pelas famílias dos critérios de avaliação do rendimento escolar
adotados pela escola; e o inciso V, que favorece a possibilidade de exigência do transporte
escolar gratuito, na impossibilidade de atendimento do educando na escola próxima de sua
residência.
Assim, após a Constituição de 1988 e as demais leis vieram posteriormente, a
educação foi normatizada, com instrumento jurídico fundamental para concretizar o que foi
estabelecido, pois de nada adiantaria prever regras jurídicas relacionadas à educação se não
fossem previstas formas para a sua exequibilidade.
Dessa forma, a partir de 1988, o Poder Judiciário passou a ter funções mais
significativas na execução desse direito. O Poder Judiciário passou a ter uma nova relação
com a educação, que adveio por meio de ações judiciais visando a sua garantia e efetividade.
Pode-se designar este fenômeno como a “judicialização da educação”, que significa
a intervenção do Poder Judiciário nas questões educacionais em vista da proteção desse
direito até mesmo para cumprirem-se as funções constitucionais do Ministério Público e
outras instituições legitimadas. (CURY; FERREIRA, 2009, p. 3).
Essa legislação, em síntese, regulamentou a educação como um direito de todos e um
dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade.
Buscou a universalização do ensino público (em especial, do ensino fundamental,
dado seu caráter obrigatório), garantindo escola para todos, inclusive àqueles que não
tiveram acesso na idade própria, ou seja, uma educação para todos, criando mecanismos para
a sua garantia, como prescreve o artigo 32 da LDB:

Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos,


gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por
objetivo a formação básica do cidadão, mediante:
I - o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o
pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia,
das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;
III - o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a
aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores;
IV - o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana
e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.
§ 1º É facultado aos sistemas de ensino desdobrar o ensino fundamental em ciclos.
§ 2º Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar
no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da
avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do
respectivo sistema de ensino.
§ 3º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e
processos próprios de aprendizagem.
479

§ 4º O ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado


como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.
§ 5º O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que
trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei
no 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do
Adolescente, observada a produção e distribuição de material didático
adequado.
§ 6º O estudo sobre os símbolos nacionais será incluído como tema transversal nos
currículos do ensino fundamental. (grifo nosso)

Joaquim sobre a LDB discorre:

Foi aprovada após oito anos de debate no Congresso Nacional e ampla


participação dos segmentos, que atuam na área educacional, em 17 de dezembro
de 1996, promulgada em 20 de dezembro e publicada no Diário Oficial da União
em 23 de dezembro de 1996, assumiu como relator o Senador Darcy Ribeiro, que
conseguiu apoio da maioria dos senadores. (2015, p.50).

Não há como negar uma relação especial entre o direito e a educação e a necessidade
de seu conhecimento para o pleno desenvolvimento de suas atividades.
O conceito de cidadania tem sido considerado uma categoria central na modernidade
e, embora a Carta Magna de 1988 represente um grande avanço em relação ao mesmo,
contudo, pode-se perceber um grande déficit de cidadania no Brasil.
O regime democrático ainda não conseguiu reverter a acentuada desigualdade
econômica e a exclusão social. Apesar da implantação de um Estado democrático de direito,
os direitos humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas para o controle social
continuam precárias (MOTTA, 2008, p. 18).
Porém, a partir do efetivo acesso legal à Justiça e, consequentemente, do crescimento
do papel das instituições jurídicas, a cidadania, aos poucos, tem deixado de ser uma mera
abstração teórica.
É nesse panorama que a educação, um direito social garantido pela legislação
brasileira e já amplamente entendida como fundamental para a consolidação de um Estado
nacional desenvolvido e de cidadãos plenos, encontra seus representantes.
De fato, as Instituições Jurídicas não só podem, como devem favorecer a
exigibilidade do direito à educação.
A Lei n.º 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que
regulamentou a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família, ao incluir
as Instituições Jurídicas entre os mecanismos para sua exigibilidade, produziu uma nova
relação entre o Poder Judiciário e a Educação. Uma relação que se concretiza nas ações
judiciais ou extrajudiciais para efetividade e garantia desse direito social.
480

Assim como a Constituição Federal e a LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente


também dispõe sobre o Direito à Educação no seu artigo 53 que discorre:

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno


desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus educadores;
III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias
escolares superiores;
IV - direito de organização e participação em entidades estudantis;
V - acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se
vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo
de ensino da educação básica.
Parágrafo único. É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo
pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.

Nelson Joaquim aborda em sua obra, em relação ao Estatuto da Criança e do


Adolescente:
Inicia a Lei dizendo em seu primeiro artigo: “Esta Lei dispões sobre proteção
integral à criança e ao adolescente”. E se o artigo 2º define quem é criança e quem
é adolescente: considera-se criança para efeitos desta lei, as pessoas até doze anos
de idade incompletos, e adolescentes aquele entre doze e dezoito anos de idade. A
proteção integral e garantia da criança e do adolescente está prevista no art. 227
da Constituição Federal, que tem tratamento específico no art. 53 do referido
Estatuto: “A criança e o adolescente têm direito à Educação, visando ao pleno
desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho. Trata-se de uma legislação importante para a
educação da criança e do adolescente, que são público-alvo da educação básica”
(2015, p. 51).

É nesse sentido que se pode pensar numa Judicialização da Educação, significando,


nas palavras de Cury e Ferreira (2009, p. 3), “a intervenção do Poder Judiciário nas questões
educacionais em vista da proteção desse direito até mesmo para cumprir as funções
constitucionais do Ministério Público e outras instituições legitimadas”.
De modo geral, a linha de pensamento que entende o processo de judicialização como
algo negativo, percebe esse processo como uma crise da representação política e da própria
democracia moderna, já que ocasiona o enfraquecimento dos poderes legislativos e
executivos (MOTTA, 2008).
Nessa perspectiva, tal processo é visto como o resultado de uma política omissa e de
uma sobrevalorização de instituições judiciais em detrimento de instituições como família,
partidos, religiões, escola e o próprio Estado, que não mais seriam capazes de continuar
cumprindo suas funções sociais.
Já a linha de pensamento favorável ao processo de judicialização afirma que a
emergência das Instituições Jurídicas são essenciais para cumprir as promessas democráticas
ainda não realizadas, como é o caso da ampliação do acesso à educação, devido, em boa
parte, às omissões do Estado.
481

Conclusões
A garantia da educação, como um direito social e público subjetivo, decorre de ações
e medidas na esfera política e administrativa. A ausência de política pública que garanta o
direito à educação, efetivada pela escola, provoca medidas judiciais que interferem na rotina
educacional.
Poderia se imquirir, diante desta situação: Não estaria o Poder Judiciário invadindo
atribuições exclusivas do Poder Executivo? A resposta é dada pelo Desembargador Roberto
Vallim Bellocchi, quando afirma: “É função essencial do Poder Judiciário, por intermédio
da atividade jurisdicional reconhecer os direitos subjetivos dos jurisdicionados e lhes
conceder tutela útil e efetiva. Em outras palavras, o respeito aos direitos subjetivos dos
cidadãos legitima o Poder Judiciário a imposição de comandos a todos aqueles, incluindo o
Estado, que vierem a molestá-los”. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação
Cível n. 107.397-0/0-00, comarca de Bauru). Pode-se afirmar que a judicialização da
educação representa a efetividade da defesa de direitos já juridicamente protegidos. Essa
proteção judicial avança na consolidação desse direito do cidadão e significa a exigência da
obrigatoriedade da transformação do legal no real.

Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado, 1988.
BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente. Brasília, DF: Senado, 1990.
BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Senado, 1996.
BOAVENTURA, Edivaldo Machado. Direito educacional. Rio de Janeiro: Instituto de
Pesquisas Avançadas em Educação, 1999.
CASAGRANDE, C. Ministério Público e a judicialização da política: estudos de caso.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008.
CURY, C. R. J.; FERREIRA, L. A. M. A judicialização da educação, Revista CEJ, Brasília,
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c-r-j-ferreira-l-a-m-a-judicializacao-da-educacao-revista-cej-brasilia-v-1-p-32-45-2009/>.
Acesso em: 06 abr. 2022.
FERREIRA, L. A. Miguel. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o professor: reflexos
na sua formação e atuação. São Paulo: Cortez, 2008.
JOAQUIM. Nelson. Direito educacional brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
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MOTTA, L.E. Acesso à justiça, cidadania e judicialização no Brasil. Disponível em:
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TEIXEIRA, Anísio. Educação é um direito. 2.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

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