Criolo e o Seu "Espiral de Ilusão"-1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

Criolo e o seu "Espiral de Ilusão": uma introdução interpretativa

Fabio Alberto de Matos 1

Na última aula desta disciplina (15/02), a seguinte proposta de avaliação foi-nos


oferecida pela docente: um texto que demonstre o legado da população negra à sociedade
brasileira. Para discorrer sobre o assunto, joguei-me, prontamente, para o aspecto cultural da
questão, mais especificamente para a música. Dentro desta infinita gama de possibilidades,
vários foram os artistas que vieram-me à mente, desde os clássicos como Cartola,
Pixinguinha, Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, até os mais
“contemporâneos” como Mano Brown, Seu Jorge, Emicida, Criolo, Liniker e Majur. Nesta
instantânea reflexão, mesmo que oscilante entre uns e outros, um nome e uma obra
destacaram-se perante os demais: Criolo e o seu álbum de samba “Espiral de Ilusão”2; com
enfoque especial para duas de suas músicas, “Menino Mimado” e “4 da Manhã”. Sendo
assim, este texto busca introduzir o leitor ao artista, bem como discorrer sobre a sua
complexidade a partir de sua vida e de sua obra, através de uma análise interpretativa sobre
ambos, utilizando como fonte algumas de suas diversas entrevistas orais e escritas, como
também uma revista de edição única sobre o álbum – além do próprio conteúdo do mesmo.
No intuito final de captar, nessa amálgama composta por arte e problema social, a
contribuição da cultura afro-brasileira à sua nação.
Kleber Cavalcante Gomes, de nome artístico Criolo, nasceu em 1975 no bairro de
Santo Amaro, em São Paulo. Seus pais, Maria Vilani e Cleon Gomes, migraram, durante o
início da década de 70, do Ceará para a região sudeste, em fuga da miséria que batia à porta
de muitos moradores de sua terra natal. Sua mãe conta que, na viagem para São Paulo, teve
que reduzir as suas duas únicas malas de roupas à uma, pois simplesmente não conseguia
deixar os seus livros para trás. A autodidata, que aprendeu a ler e a escrever sozinha a partir
de seu próprio nome, se formou no Ensino Médio junto de seu filho Kleber. Hoje, é
professora de filosofia pós-graduada em Literatura e Semiótica, escritora, organiza saraus de
poesia e um café filosófico, além do Centro de Arte e Promoção Social3. Seu pai, Cleon, foi
metalúrgico durante mais de quarenta anos. Criolo, ao relembrar a sua infância com ele
durante uma entrevista, conta uma situação bastante complicada, e que demonstra bem um
dos primeiros impactos do artista com o mundo que o cerca.

1
Graduando no Curso de História – Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Sob o
número de matrícula: 138972. E-mail: fabio-66–@hotmail.com.
2
CRIOLO, 2017.
3
NOGUEIRA, 2011.
Certa vez, eu tive um problema dentro de casa e me acidentei, ele [seu pai] tava
chegando, eu tinha me acidentado, ele chegou e me pegou, me botou em cima da
mesa de bilhar do bar do seu Arlindo, que não tá mais com a gente, e falou: eu vou
descer correndo para pra pegar os documentos e te levar no pronto socorro. Fui
atendido prontamente, em meia hora o meu caso havia sido resolvido. Foi uma coisa
maravilhosa, mas eu só fui ver o meu pai depois de duas horas… Minha mãe
correndo de lá pra cá, eu sem entender o que tava acontecendo. Eu falei: pô, fui
atendido, deu tudo certo, por que que não vou embora? Meu pai havia sido detido,
porque o pessoal do hospital chamou a polícia; porque um homem negro havia
sequestrado uma criança que havia se acidentado em cativeiro… Até quando
teremos que fazer sala, aguardando que os senhores saiam da mesa abastada, para
recolhermos as migalhas? (JORNALISMO, 2015, 0:24).

Dentro desse contexto, a música entrou em sua vida como forma de conforto e
proteção, através, primeiramente, de sua mãe.
Eu acredito que as canções que minha mãe emitia naquela época, fazia com que a
gente não olhasse muito pra… pras vielas e… e não prestasse atenção nos barulhos
da noite. Eu acho que essa foi a primeira coisa que fez com que a música tivesse
uma tentativa de salvar a minha alma. [...] ela sempre cantou canções de Clara
Nunes, de Elis Regina. Ela era completamente apaixonada por Clara Nunes. E tinha
muito samba de breque em casa, por causa do meu pai (SÃO PAULO, 2014, 01:44).

Além de seus pais, toda a comunidade participou de sua formação musical.


Em cada barraco, tinha uma pessoa ou uma família de algum lugar do Brasil. Tava
todo mundo tentando a sorte no sudeste, né? Então eu acabava escutando músicas,
também, de todo lugar do país. [...] você acaba escutando o mesmo que os seus pais
cantam ou o que os vizinhos estão cantando, ou ta tocando na rádio deles, porque a
gente não tinha rádio. A gente não tinha dinheiro pra ter um rádio. Então eu recebia
diretamente a informação do que cantarolava o meu pai e a minha mãe (SÃO
PAULO, 2014, 02:10).

Sintetizando muito, de acordo com o conteúdo de suas entrevistas, suas influências musicais
foram desde Martinho da Vila, Nara Leão, Altemar Dutra, Moreira da Silva, Benito di Paula à
Dina Di, Racionais MC’S, Facção Central, RZO e Sabotage4. E foi nesse período que o seu
desejo pela canção foi nascendo, pois entre as “serestas, modas de viola, samba, forró” que
sua mãe cantarolava, ele relata: “e eu queria cantar também, queria copiar a voz dela, copiar o
jeito dela de cantar. Então tudo começa ali.”5 Com este todo em perspectiva, é plausível
idealizar que esses primeiros contatos de Criolo com os inúmeros gêneros musicais distintos
durante a sua infância, foram de suma importância para o desenvolvimento de seu gosto
musical eclético e de sua predisposição ao canto, juntamente com uma escrita ligada à difícil
realidade da comunidade em que vivia. Um crescimento pautado pelo concreto furta-cor do
cotidiano em uma favela, onde há a constante “certeza de que você vai ser nada”6; e pelo

4
CULTURAL, 2018.
5
RECORDS, 2017, p. 04.
6
JORNALISMO, 2015, 03:54.
abstrato colorido de todas as músicas do país, dado que “em cada barraco do lado tinha
alguém do Brasil, e [...] todo mundo com o seu gosto por música”7.
Em uma conversação com o ator, escritor e cineasta Lázaro Ramos, Criolo conta que
aos onze anos de idade, já morando no bairro Grajaú, teve o seu primeiro contato com o
hip-hop, através de um colega de sala.
[...] eu vi um amigo fazendo um verso e tive vontade de fazer também. Achei
mágico aquele jogo de palavras. E aí não parei mais. Depois de um tempo, escutei
numa rádio algo parecido com aquilo que eu tentava fazer, e aquilo se chamava
“rap”. Aí o rap me pegou nos braços e me ofereceu um espaço, disse que eu poderia
ser alguém que pudesse realmente construir alguma coisa (BRASIL, 2015, 03:00).

Em outra entrevista, desta vez com o curador de arte suiço Hans Ulrich Obrist, ele descreve o
mesmo momento, complementando-o, ao discorrer mais sobre a sua vontade
de contribuir [...] lógico que quando você é criança que você não tem esse
pensamento de saber descrever isso, mas um desejo absurdo de querer fazer parte do
mundo, entende? Porque da onde eu venho, ninguém vai falar textualmente que o
mundo não é pra você, mas todos os dias alguma situação tá falando que nada é pra
você, então a sua vontade de querer ser alguém é maior. [...] Quanto mais eu ia
envelhecendo mais eu ia percebendo que realmente existem alguns paradoxos aí.
Porque você nasce num planeta que absolutamente não é seu, e a arte vem para lhe
dar a beleza da desgraça. [...] A “beleza da desgraça”, talvez possa ser, hoje, se
perceber. E ver, verdadeiramente, que a sua alma não faz parte dos números, e como
o que importa são os números, nós acabamos não existindo. [...] E ao mesmo tempo
disso tudo, é muito bonito, mesmo com todo esse peso, é muito bonito você olhar
para um pedaço de papel e ver que ele não tá mais em branco por uma intervenção
sua (SÃO PAULO, 2014, 05:00).

Com isto, pode-se perceber a intrínseca ligação de Criolo com a arte, e da capacidade desta de
demonstrar-lhe o mundo ao redor, por meio de muitos gêneros musicais, mas sobretudo do
rap. Este, para o cantor, “é uma coisa viva”; “é um organismo de sentimento, mas vivo. E
cheio de facetas, porque ele é produzido por seres humanos”8. Dos 12 anos em diante, o
artista iniciou a sua carreira, tanto pela “necessidade de expressar uma dor que eu sentia”, diz
ele, quanto pelo “amor e pela vontade de contribuir”9. Criolo desenha a conjuntura desse
momento da seguinte forma:
Você sai de uma década de 70, e começa uma década de 80, e você tem resquícios
ainda de uma ditadura, e você tá na condição de um homem invisível, de um bairro
invisível, obviamente com direitos invisíveis. O rap, pelo menos pra mim, ele foi
uma ferramenta que me abraçou e disse que eu era capaz de me expressar com o
mundo, e acredito que mais importante que se expressar com o mundo externo, me
expressar com o universo infinito que existe dentro da minha cabeça (SÃO PAULO,
2014, 09:15).

7
BRASIL, 2015, 02:43.
8
SÃO PAULO, 2014, 07:10.
9
NOGUEIRA, 2011.
Um tempo depois, ele inicia, em paralelo à música, uma carreira que perdurou por 12
anos como arte-educador em ONGs e em projetos da prefeitura, prestando apoio, suporte e
atenção à jovens em situação de rua. Ele esclarece isto no programa “TransMissão”:
Você vê mesmo, no dia a dia, a importância da arte. O quanto isso faz diferença pra
uma criança. E o quanto é importante essa pessoa, esse oficineiro, essa oficineira,
esse professor, essa professora, estarem fortificados, eles terem realmente um
respaldo e terem um alicerce para estarem ali, pois é um trabalho de formiguinha,
realmente. [...] Todos os dias você lida com questões extremamente pesadas, né. E
tem uma coisa que é muito tocante, quando você se depara com uma situação qual
você já passou, então você sente na pele a pancada: ninguém tá entendendo essa
criança, mano… cês não tão ligado na coragem que essa criança tem de ta na rua,
acho que nenhum de vocês abriria mão do que tá posto pra vir até aqui onde essa
criança tá (BRASIL, 2021, 0:16).

Com mais essa vivência, Criolo anuncia que “a sociedade não tem dimensão da importância
dessas pessoas pro mundo, pro planeta. Eles não tem a mínima dimensão, se tivessem, pode
ter certeza que o tratamento seria completamente diferente”10. Durante todo este tempo
abordando “as crianças, os adolescentes”, criando “uma relação para poder perguntar se o
moleque precisa tomar um banho…comer…se quer uma muda de roupa”, sempre “sem
ofender, descobrir se ele sabe onde está sua família. E acompanhar. Descobrir o porquê de
aquela criança estar na rua. Se a família tem estrutura para receber essa criança de volta”, o
cantor percebeu que o complicado, também, é saber “aceitar o desfecho de um caso” ou
mesmo, com muita sorte, conseguir encaminhar essa pessoa para esse “mundo que está posto.
Esse mundo que pensa que prendendo ou batendo na cara de um menino de rua vai resolver o
problema de armas e drogas no Brasil”. Para encerrar o assunto, ele afirma ter levado de
aprendizado que “a educação é, antes de mais nada, um ato de amor”11.
Sua anteriormente descrita “vontade de contribuir”, pode ser percebida em todos os
seus atos. Em 2006, após todos os anos de trabalho com crianças em condição de necessidade,
Criolo, junto de outros nomes, elabora a “Rinha dos MC's”, um evento que promovia batalhas
de improviso entre os rappers no centro de São Paulo, de acordo com a Enciclopédia Itaú
Cultural12. Na entrevista com Hans Ulrich, o cantor afirma que durante os sete anos de
duração do evento, mais de 600 edições foram promovidas, tendo em média 500/600 MC’s
participantes, onde mais de 80 mil jovens tiveram passagem.13 Durante esse tempo, a sua
frequência no Pagode da 27 e na Galeria do Rock (que para eles era do Rap) já era constante e
bastante significativa em seu processo criativo. No mesmo ano de fundação da Rinha, o seu
primeiro disco, “Ainda Há Tempo”, foi lançado. Em 2009, atuou como protagonista em
10
BRASIL, 2021, 01:57.
11
NOGUEIRA, 2011.
12
CULTURAL, 2018.
13
SÃO PAULO, 2014, 34:48.
“Profissão MC”, um filme de Alessandro Buzo e Toni Nogueira; além de figurar, um ano
depois, em “Luz das Trevas – a Volta do Bandido da Luz Vermelha”, de Helena Ignez 14.
Seu segundo disco, o mega premiado “Nó na Orelha”15, ganhou vida em 2011. Com
ele, Criolo transcendeu as – hoje – antigas fronteiras do rap, interpretando canções de
diversos estilos diferentes como o afrobeat, o soul, o samba, o bolero e o reggae;
despertando, inclusive, “elogios” preconceituosos como a afirmação de que o disco foi “a
ponte que faltava entre o rap e a música brasileira”16. Desta obra em diante, a sua
proximidade com outros grandes artistas brasileiros teve início. Para além de Emicida e dos
Racionais MC’s, Criolo dividiu palco com Ney Matogrosso, com Milton Nascimento (ambos
regravaram suas músicas), com Caetano Veloso, e foi referenciado em uma apresentação do
Chico Buarque. O seu terceiro disco, intitulado “Convoque Seu Buda”17, foi lançado em 2014,
outra obra que alavancou ainda mais a sua carreira, contendo influências de samba, de reggae
e de afrobeat. Em 2015 gravou o disco “Viva Tim Maia”18, junto de Ivete Sangalo, e relançou
o seu antigo “Ainda Há Tempo”19, alterando alguns versos de suas músicas em dez anos de
comemoração, fora a sua participação no álbum “Estratosférica”, de Gal Costa20. Ao falar de
suas obras, Criolo denota que:
Mas não tem como você ficar falando de um álbum como se fosse um objeto, como
se fosse recortes de uma mobília. Quando eu cito esses marcos da minha vida, o que
me vem são todas as pessoas que estão comigo, todas as energias e as coisas que
fizeram com que elas acontecessem. Um disco é um frame, é um recorte de muita
coisa vivida, de muita coisa pensada, de muito choque (RECORDS, 2017, p. 4).

Foi apenas no ano de 2017 que o seu samba desabrochou por completo.
Disponibilizado gratuitamente, o álbum “Espiral de Ilusão” ganhou o público no dia 28 de
abril com dez faixas inéditas: “Lá Vem Você”, “Dilúvio de Solidão”, “Menino Mimado”,
“Nas Águas”, “Filha do Maneco”, “Espiral de Ilusão”, “Calçada”, “Boca Fofa”, “Hora da
Decisão” e “Cria de Favela”. A arte de sua capa foi produzida por Elifas Andreato, ilustrador
conhecido por trabalhar em discos de Elis Regina, Chico Buarque, Adoniran Barbosa,
Paulinho da Viola e Martinho da Vila. A efígie que estampa o projeto foi nomeada por Criolo
de “Guardião”, sendo este “a figura que acolhe e ao mesmo tempo demarca o sagrado
território do samba''21. O fundo negro da representação do Guardião ganha um amarelo vivo

14
CULTURAL, 2018.
15
CRIOLO, 2011.
16
NOGUEIRA, 2011.
17
CRIOLO, 2014.
18
SANGALO; CRIOLO, 2015.
19
CRIOLO, 2016.
20
NOGUEIRA, 2018.
21
RECORDS, 2017, p. 34.
logo em dezembro do mesmo ano, quando é lançado a versão deluxe do álbum – também
gratuíta, contendo outras duas faixas extras: “Língua Felina” e “4 da Manhã”. Para apresentar
esta nova fase, Criolo diz: “em uma guerra por poder e liberdade, onde o bem-estar de todos
passa longe de ser prioridade, o samba abre caminho e pede passagem”22.
A musicalidade das canções deste álbum são fundadas em alicerces bastante
tradicionais, nota-se sempre a presença do cavaquinho, do violão de sete cordas e uma
percussão bastante marcada, lembrando músicas de Clara Nunes, Adoniran Barbosa, Cartola e
tantos outros clássicos do considerado, hoje, como samba “raiz”. Conforme o ouvinte é
transportado para dentro do ‘espiral’ em “Lá Vem Você”, o retrato de um cotidiano na
comunidade é suavemente pintado, um cenário diverso e convidativo onde presenciam-se as
relações sociais, os costumes, as mentalidades e as adversidades dos moradores. E assim as
canções vão tomando rumo, por vezes em um caminho mais melancólico como em “Dilúvio
de Solidão”, onde é exposto o paralelo entre os sentimentos do eu-lírico e do meio ambiente
que o envolve, “Chove lá fora/ Chuva de saudade demora”23; em outros, mais ligado ao
aspecto da autoaceitação (através da natureza), em “Nas Águas”: “Nas águas do mar eu vou/
Me benzer, vou me banhar/ Nas águas do mar eu vou/ Pedir perdão, pra abençoar…”24; ou
mesmo sobre as relações desamorosas em “Espiral de Ilusão” e “Calçada”; amorosas em
“Filha do Maneco” e falaciosas em “Boca Fofa” e “Língua Felina”. Em todos esses, apesar
dos focos e ritmos diversos, a desilusão e a angústia são sensações presentes. Já a canção
“Hora da Decisão” possui a sua cronologia traçada por uma metáfora que põe em paralelo o
confronto entre o crime organizado e os policiais com brincadeiras infantis, como ‘polícia e
ladrão’ e o jogo de futebol: “Da brincadeira real/ De polícia e ladrão/ Sai da área e afasta a
bola/ É hora da decisão”25. Já “Cria de Favela” caracteriza-se pelas diversas reivindicações de
um indivíduo deste meio, quase como um grito de socorro, mas em tom “alegre” e acelerado:
“Mozinho tá longe/ Eu vivo a sofrer/ Me aposentar só depois de morrer”26.
Após esta breve introdução do álbum e de suas músicas, passo, portanto, para as duas
canções previamente anunciadas logo no princípio deste texto. A terceira faixa do disco,
“Menino Mimado”, possui uma cadência musical sorumbática e lamentosa, bastante similar à
tonalidade de voz que Criolo assume. No entanto, juntamente à letra, o seu canto direciona-se

22
RECORDS, 2017, p. 32.
23
CRIOLO, 2017.
24
CRIOLO, 2017.
25
CRIOLO, 2017.
26
CRIOLO, 2017.
para umas nuances de resistência, para uma deliberação contra a realidade que está posta
diante de si. Ela inicia demonstrando, justamente, este aspecto.
Não, eu não aceito essa indisciplina
Acho que você não me entendeu
Meus meninos são o que você teceu
Em resistência ao mundo que Deus deu

Então pare de correr na esteira e vá correr na rua


Veja a beleza da vida no ventre da mulher
Pois quem não vive em verdade, meu bem, flutua
Nas ilusões da mente de um louco qualquer
E eu não aceito não

Eu não aceito essa indisciplina


Acho que você não me entendeu
Meus meninos são o que você teceu
Em resistência ao mundo que Deus deu

Eu não quero viver assim, mastigar desilusão


Este abismo social requer atenção
Foco, força e fé, já falou meu irmão
Meninos mimados não podem reger a nação
(CRIOLO, 2017).

Em seu corpo, muitas questões interessantes são levantadas. Criolo explica que a sua
primeira estrofe fala sobre os moradores de rua – os mesmos com que trabalhou durante doze
anos como arte-educador.
Um tanto de pessoas fala mal do menino que está no farol, um tanto de pessoas fala
mal de quem está sofrendo na Cracolândia, um tanto de pessoas – e muito
equivocadas – acham realmente, ou vivem essa brisa de achar, que uma pessoa está
na tristeza, ou está no sofrimento, porque quer, e isso dói demais. [...] Eu não quero
acreditar que o ser humano não está nem aí para um outro ser humano, não é
possível, não dá. A gente não pode mais ficar dando audiência pra rancor, pra raiva,
pra ódio… Não dá. Essa música fala disso, de que eu não aceito, eu não aceito você
olhar pra um menino no farol e falar “bem feito, é vagabundo, o pai dele é
vagabundo”. Eu não aceito você estar passando na Cracolândia e ouvir que é “tudo
um bando de vagabundo que não quer saber de nada”. Não dá pra aceitar. Não dá
(RECORDS, 2017, p. 7).

Para o cantor, os indivíduos que possuem este pensamento raso e preconceituoso sobre as
pessoas em situação de rua, compõem, também, este rótulo de ‘menino mimado’, sempre
indisciplinados, mal educados e detentores de pensamentos intolerantes. As duas primeiras
linhas da segunda estrofe, por sua vez, tratam-se de um conselho a estes indivíduos
‘mimados’, tanto no sentido de enxergar a realidade das ruas, quanto no de valorizar a vida
humana. Em seguimento, Criolo praticamente nos presenteia com uma sentença de suma
precisão: “Pois quem não vive em verdade, meu bem, flutua/ Nas ilusões da mente de um
louco qualquer”. Com uma simples frase, o artista sintetiza o relacionamento entre políticos
mal intencionados, os “loucos”, e o povo alienado (possivelmente pelas fake news) que “não
vive em verdade”, formando as duas facetas deste nicho “mimado” – locução perfeita para
encaixar o crescimento do bolsonarismo e do nazi-facismo atualmente. Por fim, ele encerra a
canção resistindo a esta categoria social “mimada”, protestando: “Eu não quero viver assim,
mastigar desilusão/ Este abismo social requer atenção [...] Meninos mimados não podem reger
a nação”. Durante todo o samba é possível perceber a oposição entre os “meus meninos”, os
reprimidos, e o “menino mimado”, os opressores, formados não apenas pelo corpo político e
por uma parcela do povo, mas também por grandes empresários capitalistas, que financiam
todo o controle das “mimadas” marionetes.
Quem mimou quem? Quem da mimo pra quem? Quem agrada quem nesse jogo
global maior, pra se dar bem dentro dessa estrutura já posta? E aí, o povo que pague
a conta? Não pode, não pode mais, não pode mais ser desse jeito. Não dá mais pra
ser assim. Eles não estão preocupados com o país, não estão preocupados com as
pessoas. [...] E tem muito mais, são muito mais camadas dessa cebola – e comece a
chorar. Não são só os parlamentares, mas quem eles representam e quem os colocou
lá, e isso independe dessa ida à urna (CARTACAPITAL, 2018, 18:10).

Apresento, agora, a segunda canção pré-definida. “4 da Manhã”, faixa adicionada na


edição deluxe, revela-se como uma das mais poéticas do álbum. Lembrando novamente
Cartola, Criolo dá início à letra de maneira mansa e sentimental, apenas com o
acompanhamento de um único instrumento (cavaquinho), fomentando a ambientação da
história que contará, até o samba desaguar com todos os seus componentes musicais, em
seguimento à narrativa.
Às 4 da manhã ele acordou
Tomou café sem pão
E foi a rua
Por o bloco pra desfilar

Atravessou o morro
E do outro lado da nação
Ficou com medo ao ver
Que seu bloco talvez não pudesse agradar

As contas a pagar
Fila pra pegar
Senha pra rasgar
Fantasia...

Que às 4 da manhã ele bordou sem pão


Junto a estandarte
Pois a alma pra lavar
Atravessou o morro

E do outro lado da nação


Levou um susto ao ver
Um povo que não tem
Que se preocupar

Com as contas a pagar


Fila pra pegar
Senha pra rasgar
Fantasia…
(CRIOLO, 2017).

A representação do cotidiano é passada de maneira simples, por meio de uma narrativa um


tanto quanto desesperançosa e até mesmo infeliz. No que diz respeito à interpretação de sua
letra, a frase “por o bloco pra desfilar” pode simbolizar, metaforicamente falando, o
trabalhador indo exercer a sua função; indo desempenhar o seu trabalho, mesmo com apenas
um “café sem pão”. Os compromissos deste personagem, por sua vez, são empregados para
causar o choque entre os dois pólos, com esse “outro lado da nação”, demonstrando a
distância entre a ‘favela’ e o ‘asfalto’, como muito fez o hip-hop.
Quando perguntado sobre a visão que detinha sobre o samba e o rap, Criolo afirmou
que estas estão interligadas pela “força da música, a força dos instrumentos, a força do texto”,
e que sem uma e outra não “existiria, não respiraria”27. São artes irmãs, pois enquanto o rap
“propõe que você seja livre pelo menos em sua poesia”28, o samba “tem um jeito de nos
abraçar e de nos fazer sorrir, e parece que também é o companheiro que chora junto, quando a
gente chora só aqui dentro e ninguém vê [...] é muito sublime o samba”29. Ao juntá-las em seu
repertório, Criolo alcança a mesma primazia artística que descreveu em Sabotage, pois, assim
como ele, conseguiu “pegar a pirâmide [social] e colocar de cabeça para baixo, fazer um pião
de uma pirâmide”, e ao girá-la, fez com que “suas quatro faces” virassem “um círculo”30
(seria este o Espiral de Ilusão?); transformando a sua arte em uma sugestão de alicerces, para
que “cada pessoa faça a sua construção”31. Esta construção oferecida pelos dois gêneros, em
síntese, pode ser explicada pelos seus prismas de interpretação do Brasil. Em ambas
recebemos sugestões de pontos de vistas do cotidiano, das relações e dos problemas sociais
brasileiros, cada artista à sua maneira. Mano Brown demonstrou-nos o dia a dia sanguinário
de uma penitenciária em “Diário de um Detento”, enquanto Cartola distribuiu os seus
conselhos sobre a vida em “O Mundo é um Moinho”; Sabotage expôs os desejos de um
rapper nos anos 2000, em “Mun Rá”, ao passo que Nelson Cavaquinho deu-nos uma letra
sobre a dor da desilusão amorosa em “A Flor e o Espinho”. Ou seja, são artes que dialogam,
se interligam e se completam não apenas por seus instrumentos, mas pela sua expressão
artística através da dor; são artes irmãs, realmente – e através delas, enxergamos e sentimos o
Brasil muito melhor do que com os nossos próprios olhos e corações.

27
RECORDS, 2017, p. 6.
28
CARTACAPITAL, 2018, 08:25.
29
CARTACAPITAL, 2018, 05:55.
30
SÃO PAULO, 2014, 13:40.
31
BRASIL, 2015, 17:22.
Em caráter de conclusão, considero que tanto a vida quando o Espiral de Ilusão de
Criolo sejam, sem sombra de dúvidas, uma das maiores contribuições atuais da cultura negra
ao povo brasileiro. Aliás, desde sempre Kleber Gomes quis apenas isso: contribuir – mesmo a
sociedade segregando ele e os seus a um papel pré-determinado na engrenagem, dando-os a
certeza de que não seriam nada. O seu inconformismo carregou-o à frente, e ele conquistou o
seu sonho de contribuir. Assim o fez, seja entrando no rap ainda criança; seja trabalhando
doze anos como arte-educador, onde percorreu inúmeras ruas, auxiliando jovens mortos de
alma e moribundos de corpo pelo sistema que os descartou; seja na “Rinha dos MC’s”, dando
mais suporte à cultura do hip-hop do que o Estado em todos os anos de vigência do programa;
ou mesmo produzindo e disponibilizando, gratuitamente, as suas obras. Criolo, em suma,
retribuiu algo que não devia à sociedade, tal qual todas as outras contribuições oriundas de
povos explorados. Desses, a nossa sociedade recebe todos os dias um presente não merecido e
menos ainda agradecido.
Atualmente, Criolo também é ator e dublador, participou de duas animações, três
documentários e quatro filmes, contracenando com Lima Duarte, Fernanda Montenegro e
muitos outros. Além disso, o artista segue mantendo em paralelo o seu dom nas ‘artes irmãs’:
no rap, a sua última obra leva o nome de sua irmã, a professora Cleane Gomes, vítima fatal da
Covid-19, classificando-se como um manifesto à sociedade e ao governo atual32; no samba,
estreou recentemente um extraordinário espetáculo online chamado “Samba em Três
Tempos”33, onde interpretou clássicos do gênero entre os atos “Sofrência”, “Luta” e
“Alegria”. Nesta apresentação, também dedicada à irmã, Criolo cantou com expressões faciais
que recordam antigas performances de Elis Regina, com uma execução assentada no
sentimento, mostrando ser um dos maiores sambistas em vigor, e estar, até então, no melhor
momento de sua carreira – performance perfeita para conhecê-lo, em suma. Apesar disto, a
sua ascensão, de acordo com o mesmo, foi a exceção, e não a regra; uma inadequação em se
adaptar ao que estava posto, ao que lhe foi ofertado. A arte foi seu ticket de passagem entre os
dois mundos apresentados em “4 da Manhã”, sendo também a sua arma para bater de frente
com os ‘meninos mimados’. Ainda assim, e sobre tudo isso, ele alerta:
[Criolo a Lázaro] Não tem problema nenhum você ter cinco refeições ao dia, ou seis,
pra mim isso não tem problema nenhum. O grande problema é o nosso povo, a
maioria, não ter uma refeição ao dia, e ainda se sentir culpado. [...] Se alguém puder
nos acudir, Lázaro… Porque a gente fez uma curvinha de estatística, nego. É um
milagre das artes você tá aqui. E tantos outros nomes de pessoas que vieram de luta,
e que muito das pessoas que nos amam acharam que a gente não ia passar dos 25
anos de idade. E a gente tá falando de morte matada, não morte da alma, mas a

32
CRIOLO, 2021.
33
CRIOLO, 2021.
morte desse físico; porque pra alma eles não tão ligando, realmente. A mão que
segura o chicote, ela não é invisível, e ela só vai dando tempo pra gente, pra ver
como é que a gente se relaciona com essa frigideira quente. Na hora que eles falarem
‘calem a boca desses meninos’, eles vão calar nossa boca (BRASIL, 2015, 21:28).

Referências:

BRASIL, Canal. Criolo e Lázaro Ramos | Espelho. YouTube, 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=eP86LuPwUYk&t=149s. Acesso em: 24/02/2022.

BRASIL, Canal. Criolo compartilha sua experiência como Educador | Transmissão.


YouTube, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gVrrgtnhMsQ. Acesso
em: 24/02/2022.

CARTACAPITAL. As Cores Vivas de Criolo por Pedro Alexandre Sanches. YouTube,


2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DAI0XW7Zqwk. Acesso em:
24/02/2022.

CARTACAPITAL. Criolo: “É muito sublime o samba”. YouTube, 2018. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=cz84FbViMG0. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. 4 da Manhã – Criolo. YouTube, 2018. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=HjY0KF4VP9c. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. Ainda Há Tempo. São Paulo: Estúdio El Rocha, 2016. CD (28:18). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=nvJQZyBBUMw. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. CRIOLO & Tropkillaz – CLEANE. YouTube, 2021. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=SBRFdIc1o8E. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. Criolo – Samba em 3 Tempos. YouTube, 2021. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=OkJ0tmNblZo. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. CRIOLO – Menino Mimado. YouTube, 2018. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=f28vdAn5TBU. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. Convoque Seu Buda. São Paulo: Oloko Records, 2014. CD (40:32). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=HncAs9LeyIQ&t=120s. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. Espiral de Ilusão (versão deluxe). São Paulo: Oloko Records, 2017. CD (42:21).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JDDxo7lcckI. Acesso em: 24/02/2022.

CRIOLO. Espiral de Ilusão. São Paulo: Oloko Records, 2017. CD (32:14). Disponível em:
http://criolo.net/espiral/. Acesso em: 24/02/2022

CRIOLO. Nó na Orelha. São Paulo: Oloko Records, 2011. CD (39:00). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ajJ2_WM1EIg. Acesso em: 24/02/2022.
CULTURAL, Editores da Enciclopédia Itaú. Criolo. Enciclopédia Itaú Cultural, 2018.
Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa429387/criolo. Acesso em:
24/02/2022.

SÃO PAULO, Escola. Hans Ulrich Obrist entrevista Criolo na Escola São Paulo
(legendado). YouTube, 2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=pAMPqT3GrNY&t=499s. Acesso em: 24/02/2022.

NOGUEIRA, Bruno Torturra. Criolo: Hora da Prova. Revista Trip, 2011. Disponível em:
https://revistatrip.uol.com.br/trip/criolo. Acesso em: 24/02/2022.

NOGUEIRA, Bruno Torturra. Criolo autor do disco mais elogiado do ano fala sobre
educação. Portal Geledés, 2011. Disponível em:
https://www.geledes.org.br/criolo-autor-do-disco-mais-elogiado-do-ano-fala-sobre-educacao/.
Acesso em: 24/02/2022.

RECORDS, Oloko. Criolo Revista. Espiral de Ilusão. v. 1, 2017. Disponível em:


http://criolo.net/espiral/. Acesso em: 24/02/2022.

JORNALISMO, Ponte. [Criolo] Falta de perspectiva na quebrada – Ponte Jornalismo.


YouTube, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YFg8ah7eDMM. Acesso
em: 24/02/2022.

SANGALO, Ivete; CRIOLO. Viva Tim Maia!. São Paulo: Universal Music, 2015. CD
(48:09). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rV7Y5BqB39o. Acesso em:
24/02/2022.

Você também pode gostar