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REFLEXÕES SOBRE O USO DO ESPAÇO EM COMUNIDADES

AMAZÔNICAS: UMA ANÁLISE DA COMUNIDADE


EXTRATIVISTA DO IRATAPURU1

Marcelo Leles Romarco de Oliveira2

1. RESUMO

O estudo se baseia em uma comunidade extrativista amazônica chamada


Iratapuru, no estado do Amapá e teve como objetivo compreender como a comunidade
percebe, organiza e se relaciona com o espaço onde está inserida. Metodologicamente,
procurou-se através de um conjunto de abordagens, como a entrevista aberta e o
Diagnóstico Rápido Participativo- DRP, apreender e compreender as formas mais
significativas de organização socioeconômica, cultural e espacial. Como resultado,
verificou-se que a relação construída entre a comunidade, a floresta e o rio é
fundamental para a manutenção do modo de vida e que essa organização do espaço com
ambiente corresponde a um padrão tradicional que perpassa pelo modo que esses atores
se relacionam com casa, floresta, rio, ciclo agrícola e relações de trabalho.
Palavras-chave: Espaço. Comunidade. Amazônia.

2. ABSTRACT

The study is based on the Iratapuru community in the state of Amapá and aimed
to understand how the community perceives, organizes, and relates to living space.
Methodologically, a set of approaches was used such as structured interviews and Rapid
Participatory Diagnosis -DRP, in order to grasp and understand the most significant
forms of socioeconomic and cultural organization. As a result, it was found that the
relationship built between the community, the forest and the river is essential to
maintain the way of life and that this organization of space in the environment

1
Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada pelo autor para estudos de licenciamento ambiental do
Aproveitamento Hidrelétrico no Rio Jari no estado do Amapá, coordenado pela empresa Ecology Brasil.
O autor agradece a empresa Ecology Brasil, pelo financiamento do trabalho de campo.
2
Doutor em Ciências, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Professor de
Extensão Rural do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa, MG (e-mail:
[email protected]).

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corresponds to a traditional pattern that moves through the way these people relate to
house, forest, river, agricultural cycle and labor relations.
Keywords: Space. Community. Amazon.

3. INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto de uma pesquisa de campo realizada em setembro de


2007 numa pequena comunidade extrativista Amazônica chamada Iratapuru, situada
entre os rios Jari e Iratapuru no Vale do Jari, município de Laranjal do Jari, no estado do
Amapá. A comunidade se constitui num pequeno povoado de cerca de 50 famílias, mas
apesar disto, é a maior comunidade a montante a cachoeira de Santo Antônio no rio Jari.
Para se chegar ao povoado é preciso ir de carro até a localidade de Porto Sabão,
que fica a 50 quilômetros do distrito de Monte Dourado no estado do Pará, e a partir
desse trecho o trajeto é feito de catraia (pequena embarcação) percorrendo, assim, 30
minutos até chegar a comunidade de Iratapuru que se encontra localizada na entrada da
Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Iratapuru.
Segundo Vilhena (2004), a comunidade de Iratapuru é a guardiã, usuária e
beneficiária da reserva do rio Iratapuru. A principal exploração da reserva é a castanha
(Bertholletia excelsa), além de outros produtos florestais como copaíba, breu branco
(resina) extraída da árvore cumaru, entre outras.
Com a criação da reserva os moradores passaram a ter acesso a programas
públicos e privados que ajudaram a agregar valor à produção da castanha do Pará. Entre
estas conquistas está a fundação da cooperativa, a fábrica de beneficiamento e extração
de óleo de castanha na comunidade. Com a reserva, foi criado um conselho de gestão
contando com a participação de órgãos governamentais e não governamentais de
extrativistas, para cuidar da reserva. A organização produtiva fica a cargo da
Cooperativa Mista de Produtores Extrativistas do rio Iratapuru (COMARU).
Assim, este presente trabalho teve como objetivo compreender como os
moradores da comunidade percebem, organizam e se relacionam com o espaço aonde
estão inseridos. É importante destacar que o entendimento do espaço nesta pesquisa está
relacionado com os aspectos físicos e simbólicos da utilização e da relação que essa
comunidade mantém com a floresta, o rio e os seus aspectos sócio culturais.

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4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Os dados aqui apresentados referem-se ao trabalho de campo, realizado no mês


de setembro de 2007, cujo objetivo era o levantamento de informações socioeconômicas
e de organização do espaço sobre as populações que residem na área de influência do
aproveitamento hidrelétrico (AHE) de Santo Antônio no rio Jari, entre os estados do
Amapá e Pará. Como análise pare esse estudo o texto focará na comunidade de
Iratapuru, residente a montante a cachoeira de Santo Antônio.
A primeira etapa da pesquisa foi a realização de uma pesquisa documental
abordando aspectos históricos, políticos e geográficos da região. Dessa forma, utilizou-
se dados de relatórios de outros levantamentos sobre a região, foram feitas pesquisas na
Universidade Federal do Amapá, consultando monografias e artigos, além de uma
pesquisa no acervo do Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do
Amapá (IEPA) que tratasse da região.
Com a consulta a essas fontes de informações foi possível elaborar estratégias de
campo inter-relacionadas, que buscassem apreender e compreender as formas mais
significativas de organização social, econômica e cultural da comunidade.
Para a coleta das informações procurou-se privilegiar as entrevistas abertas a
partir de um roteiro pré-elaborado, entrevistando 10 famílias. A vantagem do uso da
entrevista é que esta permite ao entrevistado manifestar suas opiniões, seus argumentos
e pontos de vista. Privilegiando uma abordagem voltada para a coleta de narrativas dos
atores entrevistados.
Segundo Triviños (1987), o uso da entrevista permite ao pesquisador obter
informações do entrevistado de forma mais espontânea e com uma maior riqueza de
detalhes, especialmente se há tempo e aceitação do entrevistado para tanto. As
perguntas, neste caso, são resultantes não só da teoria que orienta a ação do pesquisador,
mas também, de toda a informação que já recolheu sobre o fenômeno social que
interessa e a partir do que o entrevistado fala no momento.
Outra estratégia para a coleta dos dados foi à utilização de técnicas de
Diagnóstico Rápido Participativo- DRP. O uso dessas dinâmicas ocorreu em três
momentos: dois com adultos e um com crianças e adolescentes da vila. Com a
utilização do DRP conseguiu-se o levantamento de uma série de informações, que

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foram discutidas e construídas com os participantes. Dentre as diversas técnicas,


existentes foram utilizadas as seguintes:
Calendário Sazonal: com vista a ampliar o entendimento dos ciclos dentro do sistema
de vida local. Isso possibilitou mostrar, mês a mês, os padrões de precipitação das
chuvas, as seqüências dos cultivos, a utilização das fontes de água, rendimentos,
dívidas, migrações, colheita natural, demanda de trabalho, disponibilidade da mão de
obra, tratos culturais com a castanha, ciclos de pesca, tipo de pescado da região,
técnicas de pesca. Portanto, o Calendário Sazonal foi importante para entender a
articulação dos diferentes componentes na vida dos atores locais, bem como qualquer
característica especificamente sazonal do ambiente.
Mapeamento da vila: O mapeamento permitiu que os entrevistados elaborassem um
desenho, mostrando detalhes da região e contando a história de transformação do
espaço, bem como a localização das casas dentro da comunidade.
Rotina Diária: Através da rotina diária foi possível perceber como é construída a
relação de gênero dentro das comunidades acompanhadas. Nessa técnica foi possível
explorar questões como alimentação, higiene, educação, saúde da família e cuidados
com as crianças.
Dinâmica do desenho: Essa atividade foi realizada exclusivamente com as crianças da
vila. Nessa técnica o objetivo era entender a relação que as crianças do lugar fazem
sobre o meio ambiente. Para isso, foi solicitado que elas fizessem desenhos que
abordasse o olhar delas sobre o meio ambiente.
Por fim, foi utilizada a fotografia para registrar detalhes da vida na comunidade
entre estas é possível citar as moradias, as plantações, as cenas de reuniões e do
cotidiano. Enfim, a fotografia teve o papel de servir de instrumento de conhecimento
além do convencional.

5. UM BREVE HISTÓRICO DO VALE DO JARI

Para entender como a comunidade de Iratapuru se relaciona com o espaço no


qual ela está inserida é importante levantar alguns elementos históricos da ocupação do
Vale do Jari e das suas peculiaridades ambientais. Esses elementos são importantes para
entender a dinâmica do uso e apropriação do espaço. Assim sendo, o Vale do Jari

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abrange os municípios de Laranjal do Jari, Vitória do Jari, ambos no estado do Amapá,


e o município de Almerim no estado do Pará, região localizada no estremo Norte do
Brasil, fazendo parte da região Amazônica brasileira.
Segundo Greissing (2010), essa região se caracteriza por uma floresta primária
tropical muito rica em recursos naturais, principalmente, a castanha (bertholletia
excelsa) e a seringa (hevea brasiliensis). Essas culturas foram às principais fontes de
exploração das populações extrativistas. Além de ainda serem importantes recursos para
a economia regional. Na figura 01 é possível observar a localização do Vale do Jari.

Figura 1 - Mapa de localização do Vale do Jari.


Fonte: Lins, 2001

O Vale do Jari é uma região que tem fusões importantes, ou seja, ao mesmo
tempo em que abriga um dos maiores parques brasileiros o Parque Nacional Montanhas
do Tumucumaque, registram-se também grandes empreendimentos de exploração de
caulim, essências florestais, celulose dentre outros, que causam grandes impactos
socioambientais na região.
A ocupação do Vale do Jari pode ser definida por diversos momentos distintos,
inicialmente está relacionado à ocupação indígena de diversas etnias como Waiãpi,
Aparaí, Wayana, Tiriyós, katxuayana, Karanã, Kastumi entre outras, sendo que essas
duas últimas já se encontram extintas. Esses povos praticavam a caça, a pesca e a

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utilização dos recursos florestais como mecanismo de sobrevivência. É importante


ressaltar que muitos desses povos foram dizimados pela ocupação branca na região.
(LINS, 2001).
Depois veio o surto da seringueira entre início e meados do século XIX, época
considerada áurea para região Amazônica, principalmente, para cidades como Belém e
Manaus. Esse período atraiu para o Vale do Jari, migrantes, sobretudo, nordestinos que
chegavam em busca de trabalho e começaram a explorar os seringais e posteriormente
castanhais.
Para Sousa (2006), esses trabalhadores buscavam fugir das sucessivas secas que
assolavam o nordeste brasileiro no século XIX. Assim, esses migrantes trabalhavam em
pequenos grupos nas colocações (local onde os trabalhadores executam suas tarefas),
dos fazendeiros da região e mantinham relações com os indígenas, no qual aprenderam
a caçar, a pescar e a práticas agrícolas desenvolvidas pelos indígenas.
Sobre a migração para região Amazônica autores como Facó (1978) apontam
que só no ano de 1878 estima-se que cerca de 120.000 pessoas se deslocaram do interior
do estado do Ceará para trabalhar na exploração dos seringais. No final do século XIX
com a crise da borracha, muitos desses seringais foram abandonados e vendidos. No
entanto, essas famílias que migraram acabaram ficando na região Amazônica.
Nesse período é possível citar a chegada ao Vale do Jari de José Júlio de
Andrade, cearense da cidade de Uruburetama que se tornaria depois coronel3 José Júlio
Andrade. Um homem que passou a adquirir as terras e a estrutura dos seringais e
adaptando-as a estrutura para a extração da castanha, que num período de 15 anos
consolida um império na Amazônia o que lhe rendeu o título de rei da castanha do Pará
e um dos maiores proprietários de terras da Amazônia brasileira, chegou a registrar em
seu nome mais de três milhões de hectares nos atuais estados do Amapá e Pará. A sua
riqueza construída no acumulo de terras e na economia extrativista de produtos como:
borracha, maçaranduba, copaíba, andiroba, pecuária, ouro e castanha, sendo esse último
considerado o principal produto para ser exportado para a Europa. Além disso, no
curriculum do Coronel destaca-se a sua participação como senador da república. O dito
coronel morreu em 1953 com 91 anos, no Rio de Janeiro. (LINS, 2001).

3
Coronel era uma designação dada aos grandes fazendeiros de terras no Brasil do século XIX e início do
Século XX e que possuía grande influência política em suas regiões.

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Além dos migrantes nordestinos a mão de obra nas terras do coronel era formada
por negros e caboclos. Assim, a região foi se consolidando como atrativa para
migrantes, oriundos principalmente dos estados do Pará, Maranhão, Ceará, Rio Grande
do Norte e Paraíba. A forma de relação de trabalho imposta na região era o aviamento,
modelo herdado dos antigos seringais, que consiste numa espécie de relação trabalhista
imposta pelos senhores de terras da região Amazônica.
O aviamento segundo Castelo (1999) é um mecanismo de relação trabalhista que
consiste na expropriação imposta pelos fazendeiros aos trabalhadores. Dentro do
sistema de aviamento o fazendeiro ficava responsável por fornecer ao trabalhador:
crédito, bens de consumo, mercadorias de que necessitava e instrumento de trabalho.
Sendo que o trabalhador ficava obrigado a vender sua produção ao barracão do
fazendeiro. Caso o trabalhador não entregasse a produção ao barracão do fazendeiro as
punições eram severas. É importante destacar que as mercadorias vendidas pelos
fazendeiros para os trabalhadores tinham preços sempre astronômicos e por isso os
extrativistas ficavam sempre endividados, mantendo uma relação de dependência.
Nesse período, algumas vilas foram fundadas ou consolidadas como
Arumanduba, (sede das terras do Coronel), Padaria e Santo Antônio. O reinado de José
Júlio Andrade durou de 1899 a 1948, nesse período por pressões da população local,
contra os desmandos desse proprietário, o obrigaram a vender suas terras e abandonar a
região.
Em 1948, o Coronel vendeu as terras para cinco empresários portugueses. Que
criaram três empresas para gerenciar a exploração de produtos extrativistas e agrícolas
da região, as empresas foram a Jari Indústria e Comércio, a Companhia Industrial do
Amapá para a comercialização dos produtos e a Companhia de Navegação Jarí S.A, que
tinha comprado os barcos do Coronel Andrade, para o transporte nacional.
O principal empresário do grupo era o português Joaquim Nunes de Almeida,
que residia na área na localidade de Jarilândia (hoje um distrito do município de Vitoria
do Jari, no Sul do estado do Amapá). Desta forma, os portugueses trouxeram uma visão
mais empresarial para o local e novos negócios foram abertos que não eram explorados
na fase anterior, como por exemplo: a exportação de madeira, principalmente, para
Portugal e Inglaterra, sendo considerado um dos maiores negócios da fase dos
portugueses, essa madeira era exportada nos portos de Jarilândia e a ilha do Cajari no

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Amazonas. “A madeira era exportada em toras, toda ela de essências de várzea, como
Macacaúba (Plastymisciumulei) e a Sucupira (Bonwdchéa nitida), que eram as mais
valorizadas” (LINS, 2001, p. 107).
Além disso, por causa do crescimento da região com a exploração de minério na
região da Serra do Navio, os portugueses passaram a investir na produção agrícola,
provocando mudanças significativas nos sistemas de produção das comunidades do
Vale do Jari, ou seja, os portugueses adotaram novas técnicas de produção agrícola na
região.
No entanto, as condições de exploração do trabalhador foram às mesmas
existentes na época do coronel, ou seja, continuaram mantendo o sistema de aviamento,
“os recursos eram coletados pelos seringueiros e castanheiros no interior da floresta e
juntados nos ‘barracões’, pontos estratégicos na beira do rio, onde os ‘donos’ passavam
regularmente de barco para resgatar a produção dos extrativistas” (GREISSING, 2010,
p.47).
No final da década de 1960 (1967), os portugueses com dificuldades em
administrar a área, por causa dos conflitos com os posseiros e a entrada de outros
compradores dos produtos como a castanha, fizeram com que o grupo vendesse as terras
para o norte-americano Daniel Ludwig, por cerca de US$ 3 milhões numa extensão de
terra equivalente a uma área de 1.632.121 hectares sendo 1.174.391 ha no estado do
Pará, município de Almerim e o restante no Território Federal do Amapá (atual estado
do Amapá), no município de Mazagão. Posteriormente, foi criado o município de
Laranjal do Jari, também conhecido como Beiradão, na margem esquerda do rio Jari.
Destarte, o norte Americano Daniel Ludwig fundou a Jari Florestal e
Agropecuária que ficou conhecido com Projeto Jari. A intenção era substituir a floresta
nativa por uma plantação homogênea de uma planta denominada Gmelina arbórea para
a fabricação de celulose, matéria-prima do papel, (atualmente está sendo cultivado no
projeto eucalipto), além disso, pretendia-se explorar jazidas de caulim, pecuária,
agricultura de arroz de várzea e outras culturas como banana, dendê, e foi construída
uma área industrial.
Ademais, outros projetos de infraestrutura foram edificados como: distrito de
Monte Dourado, estradas, portos e trapiches, campo de aviação e rede elétrica. Esses
investimentos promoveram grandes transformações socioeconômicas na região e nos

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municípios vizinhos ao projeto, estendendo essa influência até as capitais Macapá e


Belém.
Segundo Lins (2001), no início da década de 1980 o empresário Ludwig
resolveu não mais investir no projeto Jari, e o governo brasileiro para evitar a
estatização da empresa, convocou um consórcio de 23 empresários brasileiros, liderados
pelo Grupo CAEMI. Assim, com financiamentos do Banco do Brasil e do BNDES, o
consórcio continuou com os trabalhos na região, essa fase ficou conhecida como
Antunes.
No ano de 2000, o grupo Orsa sobre a responsabilidade do empresário brasileiro
Sérgio Amoroso, passou a comandar os rumos do projeto Jari. Em 2010 a área da
empresa estava localizada em três municípios (Almeirim-Pará, Laranjal do Jari-Amapá
e Vitoria do Jari-Amapá) e no parque industrial de Munguba, no distrito de Monte
Dourado/Almerim-Pará.

6. IRATAPURU UMA COMUNIDADE EXTRATIVISTA NO VALE DO JARI

Uma comunidade isolada nunca é típica de uma região ou uma nação. Cada
qual tem suas próprias tradições, suas histórias particular, suas variações
especiais do modo de vida regional ou nacional (WAGLEY, 1988, p.43).

É possível refletir que a comunidade de Iratapuru, se constitui como uma


pequena nação localizada na entrada da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do
Rio Iratapuru –RDS-I, entre os rios Jari e Iratapuru na altura das coordenadas em UTM:
0324376/9937226. As cercas de 50 famílias são descendentes de caboclos e de
migrantes, principalmente de nordestinos que chegaram à região no final do século XIX
para trabalhar nos castanhais.
A vila está organizada numa configuração espacial marcada pela concentração
das moradias em uma sede comunitária, totalizando cerca de 40 edificações. Com uma
concentração de casas numa espécie de núcleo onde é possível encontrar igreja, escola,
casa de apoio para moradores da região, casa de força, centro comunitário, residência
dos professores, casa de apoio da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA) e
galpão de extração de óleo da castanha da cooperativa.
Para procurar entender como os moradores da vila visualizavam a ocupação
desse espaço foi trabalhada a dinâmica do mapeamento, que consistiu numa conversa

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com cerca de 10 moradores que foram desenhando no chão o esboço da vila, ao mesmo
tempo em que contavam a história de transformação do lugar.
Destarte, logo abaixo na figura 02, é possível apresentar o mapa final da vila na
perspectiva de seus moradores. No mapa é possível perceber que os aparatos coletivos
como: gerador de energia (09), galpão de secagem da castanha (10), sede da cooperativa
(28), casa de SEMA (30), igreja (31), ficam nas áreas centrais da vila. A exceção é a
escola (37) que foi construída depois num local mais afastado do rio. Percebe-se
também, que cerca de 20 casas ficam nas palafitas próximas ao rio e as demais casas
ficam numa área mais afastada do rio.

Figura 02 - Espacialização da Vila de Iratapuru*


Fonte: Pesquisa de campo, 2007.
*O desenho final foi confeccionado por um artista da cidade de laranjal do Jari

Nesse universo amazônico uma categoria que se destacou foram às habitações


que são importantes para entender as relações constituídas entre os moradores com os
recursos naturais, a floresta e a família. Essas observações corroboram para aquilo que
Da Mata (1997), chamou atenção para a casa como uma categoria sociológica
fundamental para compreender a sociedade brasileira. Assim, podemos interpretar a

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casa, “acima de tudo como entidades morais, de esferas de ação social, províncias éticas
dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso capaz
de despertar emoções” (p. 14).
Nesse sentido, a maioria dos moradores de Iratapuru, pela proximidade com o
rio, têm suas casas construídas em palafitas, que são edificações suspensas sobre o rio.
Assim essas casas são uma forma de conviver com os ciclos naturais (chuva e seca), na
região, pois a casa na palafita é uma forma conviver com o período de cheias, mantendo
a proximidade do rio.
A principal matéria prima utilizada na construção é a madeira, com piso desse
material, e com coberturas de palha, e que geralmente tem em média 15 anos de
utilização. Fotos 1 e 2 abaixo demonstram o modelo de casa da Vila de Iratapuru.
Destaca-se também, que algumas casas são construídas em áreas mais distantes dos rios,
neste caso a única diferença para as que estão na beira do rio, são que elas não possuem
palafitas.

Foto 1 e 2 - Casas da Vila de Iratapuru.


Fonte: Fotos do Autor.

Esse tipo de arranjo espacial (vila) facilitaria a introdução de equipamentos


sociais básicos, como escola, energia elétrica, entre outros. A energia elétrica movida a
gerador a diesel funcionava por algumas horas no período da noite, exceção feita no
período em que as famílias estão extraindo o óleo da castanha, quando a energia é
ligada durante o dia. Alem desse aglomerado, é possível encontrar algumas casas mais

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dispersas ou até mesmo isoladas, do centro da vila em regiões denominadas como: São
Francisco, Munguba, Piuquara, São José e São Militão. (ECOLOGY BRASIL, 2008).
Em média as casas da vila têm quatro cômodos, sendo que a cozinha, geralmente
é construída numa área externa a casa, podendo até ter algumas laterais abertas para
facilitar a saída da fumaça. Segundo os entrevistados, a cozinha é feita fora da casa para
evitar que ao preparar os alimentos a fumaça do fogão de lenha, não enfumace o resto
da casa. Na cozinha, é onde fica o fogão de lenha construído pelos próprios moradores.
Nas cozinhas onde existem paredes as panelas ficam armazenadas como se fossem
ornamentos decorativos e não necessariamente utilitários. A cozinha também é o local
onde as pessoas mais próximas da família são recebidas convívio, sem a necessidade de
interrupções das tarefas.
A sala é o espaço onde se encontra os aparelhos eletrônicos da casa, com os
quadros de santos e as fotos da família pendurados na parede. Na sala de algumas
famílias é possível encontrar redes que são utilizadas para o descanso e também o
material utilizado na coleta da castanha como paneiro (espécie de balaio), além de
algumas ferramentas utilizadas nos roçados ou em pescaria.
Heredia (1979) chama atenção para a importância da moradia como um dos
aspectos relacionados ao universo simbólico de seus moradores, assim como aspectos
associados ao trabalho e à produção de subsistência, relacionados à moradia, pois, para
a autora, é o trabalho no roçado que possibilita o consumo familiar, adquirindo o roçado
um caráter dominante sobre a casa.
Em muitas casas não se dispõe de banheiro e quando ele existe é uma casinha
nos fundos das habitações com um sanitário. A água utilizada tanto para consumo como
para o banho vem do rio Iratapuru, seu tratamento é basicamente a cloração
(hipoclorito) que é feita pelos próprios moradores, através de cloro fornecido pela
Companhia de Água e Esgoto do Estado do Amapá. De acordo com os entrevistados, a
companhia deu um treinamento para os moradores da região para que os mesmos
pudessem tratar a água antes de utilizá-la. Porém, O destino final da água utilizada nas
casas é a céu aberto nos fundos ou nas laterais das suas casas, em alguns casos ficando
ali empossada. Sobre o banho, os moradores disseram que preferem tomar no próprio
rio Iratapuru.

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O quintal é o local onde se encontram vasilhames de todos os tipos, apetrechos


para pesca e caça, além de pequenas embarcações. Ainda neste espaço, normalmente se
plantam verduras destinadas a tempero, como a cebolinha, em plataformas suspensas
para evitar que os animais como aves, porco ou outros, as comam. É também nesse
local que o lixo recebe o destino final, onde normalmente é enterrado ou queimado. É
possível também, avistar as antenas parabólicas, que vão fornecer imagens para as
televisões existentes nas casas, além de se encontrar soltos alguns animais silvestres
como macacos, papagaios e araras.
Ainda sobre as moradias é possível apontar que elas representam um papel
importante na vida social das famílias de Iratapuru. Nesse sentido, Marcelin (1999)
classifica a casa como um conjunto de relação entre ordem de natureza e ordem social,
compondo um conjunto formado por uma estrutura de micro-espaços que estariam
ligados a outros pontos, que envolveriam circuito social fundamental de uma
comunidade.
Outro espaço importante para os moradores são os rios que além de serem as
estradas principais da comunidade fornecem alimentos através da pesca. Além de
desempenharem um papel importante de interação, pois são nas águas dos rios que as
mulheres se encontram para lavar roupas, conversar e dividirem os problemas do
cotidiano, enquanto as crianças brincam, pescam, nadam e se interagem com a natureza.
A organização do trabalho segue uma lógica semelhante a muitas comunidades
rurais brasileiras, ou seja, o trabalho é organizado através do trabalho familiar. Nesses
casos o homem é o chefe da família, considerado o provedor da casa. Sua condição,
entre outras coisas, é o resultado do seu saber-fazer.
Esse saber fazer é um conjunto de conhecimentos e habilidades necessárias à
condução de todo o ciclo do trabalho com a castanha ou com as atividades agrícolas. A
importância dada ao trabalho com a floresta – importância ao mesmo tempo econômica,
social e cultural– estabelece que o detentor desse conhecimento seja o chefe da família.
Saber é poder no mundo camponês ou dessas comunidades extrativistas.
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997)
As tarefas das mulheres da comunidade estão quase sempre relacionadas aos
cuidados com a casa, com os filhos e com as criações. No entanto, as mulheres
desenvolvem importante papel nas atividades ligadas ao trabalho na roça e nas

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atividades relacionadas ao extrativismo. Essas tarefas são consideradas as mais


exaustivas, mas são comuns as mulheres e filhos acompanharem os homens no processo
de coleta da castanha, e em alguns casos, a residência do casal passa a ser a na floresta
onde estão trabalhando durante o período que a atividade necessita (primeiro semestre)
tendo assim um modo de vida nômade. Isso ocorre porque muitas colocações são
distantes da vila, fazendo com que algumas famílias mudem para a floresta no período
de coleta da castanha.
As crianças, também, participam no processo de exploração da castanha, mas
geralmente essa participação acontece na própria vila, onde o castanheiro traz o produto
para o local e utiliza a mão de obra dos filhos para realizar a limpeza e seleção dos
frutos. Há também outras tarefas das crianças como: descascar mandioca, tomar conta
dos irmãos mais novos, cuidarem da casa quando os pais estão ausentes, lavar as
vasilhas e pescar. Por causa dos programas do Governo Federal, como a Bolsa Família,
que incentiva os pais a manterem os filhos na escola, as crianças passaram a freqüentar
com mais assiduidade às aulas e por isso já é sentido na comunidade um maior grau de
escolarização nas gerações mais recentes. É importante destacar que na vila, no ano da
pesquisa, existiam cerca de 180 pessoas e destas 65 eram crianças.
Assim sendo, buscando compreender como as crianças entendiam o seu espaço,
foi realizada uma dinâmica com desenhos com crianças de 08 a12 anos, para isso, foi
solicitado que as crianças desenhassem a percepção sobre o seu espaço com o rio, a
floresta e os animais. Durante a dinâmica foi possível perceber que as crianças
retrataram uma preocupação com o lixo que é jogado no rio ou até mesmo na mata, as
mesmas ainda explicaram que o tema estava sendo trabalhado pela escola da vila e
pelos agentes de saúde que atendem a comunidade. E por fim, as crianças demonstraram
também uma preocupação com o meio ambiente, sobretudo, em relação ao rio que era
visto por elas como um ambiente para as brincadeiras, a pesca, e a imagem constante no
cotidiano e no imaginário dessas crianças. De uma maneira geral os desenhos mostram
o rio, os peixes, barcos, e casas sobre o rio simbolizando a relação entre as crianças e a
natureza. (ver foto 03 e figura 03).

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Foto 3 - Crianças participando da dinâmica do desenho.

Fonte: Dados da Pesquisa.

Figura 3 - Neste desenho as crianças procuraram destacar as casas na palafita.

Fonte: Desenhos das crianças da Vila de Iratapuru.

Ao indagar onde ouviram falar do meio ambiente as crianças apontaram a


escola, os meios de comunicação como a televisão e ainda alguns apontaram a própria
família onde se discutia o tema. Destaca-se que com a criação da reserva e a cooperativa
os moradores passaram a discutir com mais frequência a temática ambiental.

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Já no caso dos adolescentes principalmente os meninos, foi possível perceber


que eles mantêm uma relação muito forte com o trabalho relativo às atividades na
floresta, sobretudo, com o castanhal. Além da relação intima que é mantida com o rio
através da pesca, da navegação e das brincadeiras. Nessa perspectiva, é possível apontar
que estes jovens são formados para se tornarem homens plenos, ou seja, portadores do
conhecimento e das habilidades necessárias à condução do trabalho com a castanha,
roça, pesca e caça. Há, neste sentido, um caráter pedagógico no trabalho com a floresta
ou com a agricultura.
Já, as meninas adolescentes em sua maioria ficam responsáveis por ajudar nos
cuidados da casa, lavar roupas no rio, além de ajudarem os pais a tomarem conta dos
irmãos mais novos.
Essa divisão de tarefas e espaços encontrados na comunidade vai além de
produzir alimentos, ou conhecer a floresta, o trabalho forma os homens e as mulheres e
define suas identidades e seus papéis no mundo social do extrativista. (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997).
Já as manifestações culturais da região estão relacionadas, principalmente, com a
própria relação que os moradores mantêm com a floresta (as lendas e mitos da mata).
No caso das lendas foi possível perceber que muitas estão direcionadas com mitos da
floresta que são passadas de pais para filhos.
Também, na comunidade são comemoradas algumas festas de santos da Igreja
Católica. No caso dessas festas, elas desempenham um papel importante na
comunidade, pois, acontecem num complexo conjunto de relações que ultrapassam o
espaço familiar. Dando origem aquilo que Candido (1987) vai chamar de um jogo de
formas sutis e bem desenvolvidas de cooperação vicinal, consciência de grupo e
coordenação de atividades. Portanto, as festas, dessa maneira, envolveriam toda a
localidade e seriam uma forma de integração e de lazer.

7. A RELAÇÃO COM OS RECURSOS NATURAIS

A comunidade de Iratapuru vive basicamente da exploração agro-extrativista


praticada através da agricultura destinada à segurança familiar plantando principalmente
mandioca (base da dieta alimentar da comunidade, conhecida como pão da terra), milho,

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feijão, cara, arroz e o cultivo de algumas espécies frutíferas como: banana e melancia.
Normalmente, essas culturas são plantadas distantes da vila, adequando-se assim, as
condições impostas pela natureza.
Além desses roçados, as famílias da comunidade criam pequenos animais
(galinha e porcos), pescam e caçam. É importante destacar que nas portas das casas é
possível encontrar alguns canteiros suspensos onde se plantam temperos e plantas
medicinais.
O tamanho da roça varia de acordo com o número de membros na família, ou
seja, da mão de obra disponível para as atividades e/ou da necessidade alimentação, mas
normalmente esses roçados variam em torno de um a dois hectares. Foi possível
identificar em algumas fases do trabalho na roça, alguns tipos de ajuda mútua como a
troca de dias ou o mutirão, que é uma prática muito comum nesse tipo de agrupamento
que “consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim de
ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita,
malhação, construção de casa, fiação, etc.” (CANDIDO, 1987. p. 68). Assim, essa
relação pode ser vista como uma das manifestações de solidariedade mais importantes
na sociedade camponesa brasileira.
É importante destacar que esse tipo de ajuda é encarado de forma voluntária
pelos participantes do mutirão. Entretanto, ele poderia ser observado como um conjunto
de obrigações como dar, receber e retribuir. Quem recebe o benefício da troca tem a
obrigação de retribuir o favor recebido. Esse ciclo, que pode ser chamado de dádiva, foi
analisado por Mauss (2003) em sociedades tradicionais, nas quais o autor analisou a
presença da dádiva como um valor que estabelece conexões entre indivíduos e grupos.
A dádiva representa uma forma de contrato denominado de sistema de prestações totais
(potlatch), que são feitas, sobretudo, de forma voluntária, por presentes, regalos, embora
sejam no fundo obrigatórias. Desta forma, os moradores da comunidade de Iratapuru
procuram construir uma relação de ajuda mútua em períodos que a demanda de trabalho
na roça é maior.
Em se tratando das principais culturas cultivadas estas são basicamente
plantadas para garantirem a alimentação direta e imediata da família. A forma de
manejo utilizada é a roça de toco. Nesse tipo de roça, o primeiro trabalho consiste em
cortar a vegetação rasteira com facão e depois com machado derrubar as árvores, depois

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deixa o mato e os tocos secaram para serem queimados. Esse é um sistema agrícola
tradicional que utiliza práticas de manejo que possibilitam a manutenção da
sustentabilidade dos recursos naturais existentes desmatando somente aquilo que é
necessário para o sustento da família. Depois de alguns anos aquela área é abandonada
para que ela se recupere e descanse. Neste caso, as famílias procuram outra área para
iniciar todo o processo. Nas fotos 3 e 4 é possível observar uma típica roça de toco.

Fotos 3 e 4 - Típica roça de toco da comunidade de Iratapuru.

Fonte: Fotos do Autor.

Portanto, a roça é o resultado final de um processo amplo que se inicia com a


derrubada do mato (natureza plena) e por fim esse processo termina com o plantio das
culturas. Nessas as áreas os espaços naturais e os espaços cultivados de um sítio se
sucedem e mantém-se ligados num processo temporal: mato-capoeira-cultivo; mato-
capoeira-fruteiras. Entre cada um destes momentos, a roça sempre aparece como um
termo de mediação. Noutros termos, eles se sucedem mediados pelo trabalho
(WOORTMANN; WOORTMANN, 1997).
Outra característica desse tipo de agricultura é o baixo nível tecnológico
empregado. Normalmente, logo após a derrubada das árvores, os agricultores já plantam
entre os tocos e com isso a utilização de insumos químicos ou até mesmo maquinário é
inexistente. As únicas ferramentas que são utilizadas são manuais como as enxadas,
cutelos ou facões para manter a roça limpa durante a utilização daquele espaço. Com o

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passar do tempo a área que está sendo utilizada é abandonada para que a mata se
recupere e outra área é escolhida.
Segundo Toledo (1990), agrupamentos com essas características estão sempre
criando mecanismo de exploração que visem à conservação e auto-preservação do meio
aonde vivem. Ainda segundo o autor, a crise ecológica gerada pelos modelos de
exploração agrícola, tem contribuído para a revalorização dos sistemas tradicionais de
uso da natureza e retomando práticas tradicionais de manejo dos recursos naturais como
referência alternativa de produção que sejam ecologicamente viáveis e até mesmo
conservacionistas.
O espaço da roça pode ser visto, também, como um local de reprodução de
conhecimento, uma vez que os pais ensinam aos filhos as técnicas agrícolas necessárias
para o manejo desse espaço. Na região é muito comum encontrar crianças ou
adolescentes ajudando os pais nas atividades realizadas na roça. Heredia (1979), ao
estudar comunidades rurais no sertão do Brasil, também observou essa relação de
aprendizagem que ocorre no espaço da roça.
Procurando entender a relação agro-extrativista com a distribuição das tarefas ao
longo do ano na região foi realizada a dinâmica do calendário agrícola, que permitiu
visualizar com mais clareza os períodos e as atividades praticadas na região.

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Quadro 1 - Calendário referente às principais atividades agro-extrativista

Atividades Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Tratos culturais da
castanha
Preparar rancho e
equipamentos
Colheita, quebra dos
ouriços e transporte
da castanha
Comercialização da
castanha
Manutenção e tratos
culturais das
lavouras
Plantio das lavouras
Colheita das
lavouras*
Caça e pesca
Fonte: Pesquisa de campo, elaborado juntamente com as famílias da comunidade de Iratapuru.
*Algumas culturas são colhidas o ano todo.

Legenda:
Atividades relativas à exploração da castanha
Atividades relativas à agricultura, caça e pesca

O calendário agro-extrativista acima ajuda a compreender como e quando as


famílias dividem suas atividades ao longo do ano. Sobre o calendário Garcia Jr. (1989),
aborda a relação de dependência entre o calendário agrícola e as condições da natureza,
sendo o planejamento das atividades afetado diretamente por essa relação. Desta forma,
o planejamento das atividades de trabalho da comunidade está diretamente relacionado
com o ciclo agro-extrativista da região.
Assim, o primeiro período é marcado pela atividade da castanha que se inicia no
final do ano. Nessa época os extrativistas vão limpar a área onde são realizados os

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trabalhos com a castanheira. A coleta da castanha acontece no primeiro semestre e é


quando estão contidos os meses de maior intensidade de trabalho. No final da coleta é
realizada a comercialização do fruto que pode acontecer durante o período da coleta.
Os segundo período ocorre no segundo semestre após a coleta da castanha.
Nessa época as atividades estão voltadas para agricultura, que se iniciam em agosto
com: a brocagem (retirada das espécies de pequeno porte, onde se utiliza o facão); a
derrubada das árvores; a queimada e o encoivarar (empilhar os troncos que restaram e
arrancar as raízes mais profundas que não foram queimadas). Além de preparar o
terreno para receber o plantio que acontece até o início do ano, durante as primeiras
chuvas. Neste caso, as chuvas determinam a melhor época para o início do plantio. Os
principais produtos cultivados são: mandioca, milho, feijão, arroz, e frutas.
Nos meses de abril, maio e junho os moradores estão envolvidos com os
trabalhos de capina e outros tratos culturais das lavouras plantadas no início do ano. No
meio do ano acontece a colheita dos produtos (milho, feijão e arroz). No caso da
mandioca (ciclo de um ano) e com as frutas a colheita é realizada durante o ano todo. É
importante, destacar que a mandioca é um alimento muito importante para as famílias
de Iratapuru, pois suas raízes além de serem consumidas cozidas, são utilizadas para a
fabricação de polvilho que vai dar origem ao beiju e a farinha prato encontrado em
todas as refeições dos moradores da região. Até a casca da mandioca em alguns casos é
utilizada como alimento para as galinhas. A pesca e a caça (catitu, porco do mato,
veado, tatu e outros) são praticadas o ano todo, sendo uma atividade exclusiva do sexo
masculino, que pode ser noturna ou diurna.
Segundo Picanço (2005), a caça noturna é tratada pelos moradores do Vale do
Jari como lanternagem, porque é necessário o uso de lanterna de pilha, além da
espingarda, já na caça diurna é comum o uso de cachorros.
Na pesca as estratégias mais adotadas são o terçado (e lanterna na pesca
noturna), anzol, linha, redes e o uso de armadilhas como o matapi e o cacuri. Ainda de
acordo com o autor a caça e a pesca têm um papel importante, pois garantem parte da
proteína animal necessária a dieta alimentar das famílias dessa região.
Candido (1987), analisando a caça em comunidades rurais paulista, concluiu que
a caça além de servir para a alimentação humana também desempenha um papel lúdico
na vida dessas comunidades.

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No extrativismo a castanha é o principal produto, além do breu e da copaíba


explorados em escala menor. Esses produtos extrativistas, também, são as principais
fontes de renda das famílias da comunidade. Autores como: (CASTELO, 1999;
VILHENA, 2004; SOUSA, 2006) que têm pesquisado a região Amazônica apontam o
extrativismo como uma alternativa viável para os povos da região. Desde que procure
garantir e preservar os recursos florestais, possibilitando a exploração econômica de
maneira viável, das famílias residentes na floresta.
As áreas ou colocações de castanhais explorados pelas famílias são muito
variáveis, bem como o resultado da produção. Sobre as distâncias da vila até os
castanhais estas podem variar de um dia a três dias de batelão (espécie de embarcação
utilizada pelos castanheiros) da vila até os castanhais. É importante destacar que cada
família explora uma área (colocação), estas áreas normalmente, são passadas de pai para
filho.
No caso da comercialização da castanha, até o final do século XX, era feita
principalmente, através de atravessadores, que financiavam a coleta e os tratos culturais
da castanha através do aviamento. Esse tipo de negociação deixava o castanheiro
dependente dos preços pagos pelos atravessadores. É importante destacar que a cadeia
da castanha nessa região, envolve uma série de atravessadores, até chegar o grupo
MUTRAN que é o principal comprador de castanha na região, responsável pela
exportação da amêndoa. Tendo como clientes brasileiros os chocolates Garoto e
Nutrimental, Matrix e Estelamar, além de clientes internacionais, como as empresas
norte-americanas Diamond e J.F Braun (SOUSA, 2006).
Com intenção de mudar essa realidade, os moradores da comunidade de
Iratapuru com apoio do governo do estado do Amapá, na gestão do governador
Capiberibe (1995-2002), fundaram a Cooperativa Mista dos Produtores e Extrativista do
Rio Iratapuru- (COMARU). É importante destacar que só foi possível constituir a
cooperativa a partir do momento em que as pessoas, através de interesses comuns e
almejando atingir determinados fins, se unem em condição voluntária e através de
adesão livre, para gerir democraticamente sua atividade. Assim, a cooperativa surge da
vontade dos moradores da comunidade na busca de alternativas para fugir dos
atravessadores e agregar valor à castanha considerada o seu principal produto.

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A COMARU tornou-se, também, entidade de representação das famílias dessa


comunidade. Destaca-se ainda que a comunidade é a guardiã, usuária e beneficiária da
RDS-I do Rio Iratapuru e a cooperativa é uma das signatárias e responsáveis pelo
Conselho da Reserva do Desenvolvimento Sustentável.
A primeira atividade da cooperativa foi à fabricação de biscoitos de castanha,
subsidiada pelo governo do Amapá, para ser distribuído na merenda escolar das escolas
públicas, e ainda a comercialização de castanha in natura. Em 2004 através do
intermédio de secretarias do governo, a COMARU, realizou uma parceria com a
empresa Natura Cosmético, para fornecer o óleo de castanha, a essência do breu e o
óleo de copaíba, para fabricação de perfumes da linha Natura Ekos. Essa parceria
representou novas alternativas de geração de renda para a comunidade de Iratapuru, e
segundo os entrevistados permitiu melhores rendimentos para as famílias extrativistas.
Segundo Vilhena (2004), a estratégia da empresa Natura de comprar produtos da
COMARU contribui para a imagem da empresa, além de colaborar para que os recursos
naturais da floresta adquiram competitividade. É importante destacar que para a
cooperativa, conseguir entrar nesse mercado foi preciso ser avaliada pela Forest
Stewardship Council - FSC, organização que emite o selo de certificação garantido
entre outras coisas que o manejo e a exploração dos produtos extraídos na floresta são
sustentáveis.
No ano da pesquisa, ou seja, em 2007, eram cerca de 56 associados a sua
maioria moradores da Vila de Iratapuru, no entanto, existem outras famílias que moram
próximas a vila e que se associaram a cooperativa.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse estudo foi proposto apresentar como a comunidade de Iratapuru percebe,


organiza e se relaciona com o espaço onde estão inseridos. Além disso, os modos de
vida tradicionais continuam sendo características que marcam o desenvolvimento
socioeconômico da comunidade.
Ao longo da pesquisa foi possível compreender que essa relação construída entre
os moradores da comunidade e floresta é fundamental para a manutenção do modo de
vidas do grupo. Essa organização do espaço com ambiente corresponde a um padrão

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tradicional do campesinato que perpassa pelo modo que essas famílias se relacionam
com o espaço casa, floresta, rio, o ciclo agrícola e pelas relações de trabalho construídas
no seio da comunidade.
O lugar do trabalho para as famílias de Iratapuru é na floresta e neste espaço a
comunidade obedece a uma lógica de preservação e de exploração da floresta buscando
o equilíbrio com a natureza, perpassando por um conjunto de ações simbólicas, rituais,
que além de produzir alimentos, define os modos de vida dos moradores.
Outro ponto a se destacar está relacionado com o processo organizacional vivido
pelo grupo principalmente, a partir da constituição da RDS-I do rio Iratapuru e da
cooperativa, pois, a partir desse momento o grupo passou a ter condições de agregar
valor aos produtos extraídos por eles da floresta, além de serem visto como a
comunidade guardiã da reserva, trazendo a comunidade um status importante de
reconhecimento, por parte de entidades governamentais e não governamentais.
Entender esse universo como a de Iratapuru, ajuda a compreender de que forma
esses grupos se interagem e se reproduz no interior da Amazônia. A pesquisa aponta,
sobretudo, a partir da constituição da RDS-I que a comunidade passa a viver novas
situações no sentido de defender ou regulamentar ações predatórias ou
conservacionistas, refletindo, assim, novas formas da comunidade interpretar o seu
território.

9. REFERÊNCIAS

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transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1987.

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*Recebido em 28 de Setembro de 2011 Aceito em 15 de Março de 2012.

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