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TERRITÓRIOS, ACERVOS E IDENTIDADES

reflexões sobre patrimônio cultural fluminense


Ana Luce Girão
Inês El-Jaick Andrade
organizadoras

TERRITÓRIOS, ACERVOS E IDENTIDADES


reflexões sobre patrimônio cultural fluminenses

HUCITEC EDITORA
2023
© Direitos autorais, 2023,
da organização de,
Ana Luce Girão & Inês El-Jaick Andrade
© Direitos de publicação reservados por
Hucitec Editora Ltda.
www.lojahucitec.com.br
Depósito Legal efetuado.
Direção editorial: Mariana Nada
Produção editorial: Kátia Reis
Assessoria editorial: Mariana Terra
Circulação: Elvio Tezza

T327

Territórios, acervos e identidades [recurso eletrônico] : reflexões sobre o patri-


mônio cultural fluminense / Ana Luce Girão, Inês El-Jaick Andrade (orga-
nizadoras). – 1ª ed. – Rio de Janeiro : FAPERJ, 2023. – 24,4 MB. : il. ; PDF.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-8404-398-9

1.Memória social. 2. Cultural. 3. Patrimônio cultural. I. Girão, Ana Luce. II.


Andrade, Inês El-Jaick. III. Título.

CDD 363.69

Ficha catalográfica elaborada por Camilla Castro de Almeida CRB-7/7400


SUMÁRIO

6   Apresentação
12    Capítulo 1. Identidade e desigualdades em territórios invisibi-
lizados: Igreja de São Daniel profeta em Manguinhos (RJ), Éric
Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade
44   Capítulo 2. Planos de conservação preventiva para edifícios
históricos: uma proposta para a Igreja da Penha, Rio de Janeiro,
Carla dos Santos Feltmann
80   Capítulo 3. A participação social na gestão sustentável do pa-
trimônio cultural: um estudo sobre o plano de requalificação
do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (NAHM),
Roberta dos Santos de Almeida
96    Capítulo 4. Patrimônio industrial da saúde: o Pavilhão Henri-
que Aragão, Bianca Sivolella
116   Capítulo 5. O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz
em dois tempos, Lucas Cuba Martins

4 ∫ Sumário
141   Capítulo 6. A utilização de metadados embutidos no objeto
digital: estratégia para organização e recuperação de documen-
tos fotográficos nato digitais, Jeferson Mendonça & Aline Lopes
de Lacerda
180   Capítulo 7. Narrativas e autoridades: subsídios para uma cura-
doria compartilhada no Museu Afrodigital do Rio de Janeiro,
Suzana Camillo Marques
202   Capítulo 8. Memórias de espectadores dos cinejornais da
Agência Nacional, Amanda Heloisa Souza Custódio
226   Capítulo 9. O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro,
Claudio Oliveira Muniz
261   Capítulo 10. Proposta de educação patrimonial para a Cole-
ção Dadinho, Thalles Yvson Alves de Souza
291   Capítulo 11. Carolina Maria de Jesus: a preservação da me-
mória e o impacto na contemporaneidade da literatura produ-
zida pela mulher negra brasileira, Clarice Maria Silva Campos

Sumário ∫ 5
APRESENTAÇÃO

E
sta coletânea, composta por 11 capítulos, constitui uma
valiosa contribuição para os estudos desenvolvidos no
estado do Rio de Janeiro no âmbito da memória e do
patrimônio cultural, em suas dimensões materiais e imateriais.
Debatendo em torno do reconhecimento do patrimônio, nas
disputas e reivindicações por grupos sociais submetidos ao
esquecimento forçado, por um lado, e por outro, buscando
incorporar novos e antigos saberes e fazeres, apresenta ao pú-
blico leitor uma variedade de textos que abordam, sob ângulos
diferentes, as categorias encadeadas no título: territórios, cul-
tura e acervos.
A presente publicação é o resultado do encontro promovi-
do pelos programas de pós-graduação em Preservação e Gestão
do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde (PPGPAT), da
Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ; em Preservação de Acervos
de Ciência & Tecnologia (PPACT), do Museu de Astronomia e
Ciências Afins; em Memória e Acervos (PPGMA), da Fundação

6 ∫ Apresentação
Casa de Rui Barbosa; em Gestão de Documentos e Arquivos
(PPGARQ), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janei-
ro e em Patrimônio, Cultura e Sociedade (PPGPACS) da Uni-
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Esse encontro se deu
em torno da realização da 2.ª Jornada Fluminense de pós-gradua-
ção em acervos, preservação e memória, em outubro de 2022, com
a finalidade de promover o intercâmbio entre as pesquisas em
desenvolvimento ou que foram recentemente defendidas pelos
alunos dos mestrados ou doutorados dos programas de pós-gra-
duação profissionais e acadêmicos com temáticas sobre acervos,
preservação e memória, no estado do Rio de Janeiro. O encontro
foi um momento oportuno para a troca de informações e expe-
riências sobre pesquisas e produtos.
Assim, a Jornada Fluminense de pós-graduação em acervos,
preservação e memória se consolida como um importante evento
de periodicidade bianual, cuja finalidade é atualizar e trazer para
a arena de debates os temas de pesquisa no campo do patrimônio
desenvolvidos pelas instituições fluminenses.
O objetivo é que esta publicação proporcione abordagens
multidisciplinares no campo do patrimônio cultural, de maneira
que o leitor possa percorrer por distintas abrangências e tipos de
acervos. Nossa proposta, ao selecionar os artigos que compõem
esta coletânea, foi traçar um panorama atual do debate temáti-
co do campo do Patrimônio Cultural e da Memória Social que
avança, tendo como enfoques o estudo de arquivos e coleções
distintos que versam sobre as identidades, as disputas, os enfren-
tamentos e a gestão da preservação.
Os quatro capítulos que abrem esta coletânea articulam-se
a partir da temática referente à cidade e aos territórios.
O capítulo “Identidade e desigualdades em territórios invi-
sibilizados: Igreja de São Daniel Profeta em Manguinhos (RJ)”
de autoria de Éric Alves Gallo e Inês El-Jaick Andrade analisa
a significação cultural do templo religioso modernista atribuída

Apresentação ∫ 7
pelos agentes públicos e, sobretudo, pela comunidade de fiéis
sob a perspectiva do patrimônio cultural, considerando a análise
de documentos oficiais, reportagens de jornais, fotografias, no
período compreendido entre 1960-2021. Enfatiza as metodolo-
gias e estratégias para promoção da participação social em terri-
tórios de conflitos urbanos e desigualdade social.
Na sequência a autora Carla dos Santos Feltmann em “Pla-
nos de conservação preventiva, um estudo de caso sobre a Igreja
da Penha no Rio de Janeiro” aborda a significação cultural e o
estado de conservação de outro templo religioso marcante na
paisagem da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, sob a pers-
pectiva da conservação preventiva.
Em seguida, no texto “A participação social na gestão sus-
tentável do patrimônio cultural: um estudo sobre o Plano de
Requalificação do Núcleo Arquitetônico Histórico de Mangui-
nhos (NAHM)”, a autora Roberta dos Santos de Almeida deba-
te sobre a importância da participação social para a promoção
da gestão sustentável do patrimônio cultural, buscando refletir
sobre a relação que os grupos do território demonstraram esta-
belecer com os espaços histórico-culturais do NAHM. Utiliza
como referência metodológica o manual do Rehabimed, uma
rede interdisciplinar do Mediterrâneo que opera por conceitos
da sustentabilidade, e incluiu, além de etapas de levantamento
bibliográfico, a elaboração de um diagnóstico social com o ob-
jetivo de compreender o cenário de colaboração e a participação
no contexto desse plano.
O artigo de Bianca Sivolella denominado “Patrimônio In-
dustrial da Saúde: o Pavilhão Henrique Aragão” destaca a im-
portância da conservação e requalificação de edifícios históricos
industriais para a preservação do patrimônio cultural e científico
e memória das instituições.
Na categoria de coleções foram selecionados quatro tra-
balhos que desenvolvem técnicas de preservação e buscam a

8 ∫ Apresentação
a­ mpliação do acesso a acervos em sua apresentação física ou na
forma digital.
Em “O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em
dois tempos” Lucas Cuba Martins busca restabelecer os vínculos
de produção e circulação do material fotográfico, apresentando
conclusões preliminares sobre as funções desempenhadas por
esses documentos na pesquisa científica desde a época de sua
gestação até o momento em que adquirem o status de acervo
histórico, sofrendo intervenções institucionais que visavam à sua
recuperação, ao seu tratamento e à disponibilização ao público.
O capítulo seguinte de autoria Jefferson Mendonça e Aline
Lopes de Lacerda intitulado “A utilização de metadados embu-
tidos no objeto digital: estratégia para organização e recuperação
de documentos fotográficos nato digitais” discute a gestão de
documentos fotográficos digitais produzidos pelo Laboratório
Fotográfico J. Pinto da COC durante o período de custódia por
seus produtores.
No artigo de Suzana Camillo Marques denominado “Nar-
rativas e autoridades: subsídios para uma curadoria comparti-
lhada no Museu Afrodigital do Rio de Janeiro”, a autora discute
a relação entre museus e poder, seus atores e instrumentos de
construção na narrativa museográfica. Aborda, ainda, as trans-
formações na museologia e nos museus em consequência do uso
da internet e propõe subsídios para uma curadoria participativa,
com o instituto de promover a participação e o diálogo com a
população afro-brasileira.
Amanda Heloisa Souza Custódio reflete no capítulo “Me-
mórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional”
sobre o processo de ressignificação de memórias a partir dos re-
gistros produzidos pela Agência Nacional no período de 1969 a
1979.

Apresentação ∫ 9
Os três capítulos que encerram a publicação tratam de acer-
vos referentes a personagens que ocuparam níveis distintos de
visibilidade no panorama político e cultural brasileiro.
O capítulo de Claudio Oliveira Muniz, intitulado de “O
acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro” contextualiza o ar-
quivo audiovisual cuja temática principal são as políticas edu-
cacionais propostas por Darcy Ribeiro e implantadas no estado
do Rio de Janeiro durante os dois mandatos de Leonel Brizola
como governador (1983 a 1987 e 1991 a 1994). O Banco de
Imagens Darcy Ribeiro encontra-se sob a guarda da Escola Téc-
nica Estadual Adolpho Bloch (ETEAB). O objetivo do trabalho
é elencar as ações de difusão planejadas e executadas durante o
centenário de Darcy Ribeiro em 2022, com o intuito de pro-
mover, ­divulgar, engajar e informar à comunidade de usuários e
potenciais usuários.
Dando continuidade Thalles Yvson Alves de Souza em
“Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho”
trata de ações formuladas para o conjunto de esculturas de au-
toria de Geraldo Marçal dos Reis, conhecido como Dadinho,
que se encontram sob a guarda da Casa de Cultura Ney Alber-
to, na cidade de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. Embora pouco
conhecido, Dadinho teve sua importância no cenário da Arte
Popular Brasileira e sua obra tem qualidades técnicas únicas so-
bre o suporte da madeira, motivos para estabelecer uma série
de propostas no campo preservação para uma longevidade da
coleção e com as ações de educação patrimonial, propiciar aos
visitantes conhecimento sobre sua produção, seu modo de fazer
e seus saberes.
Por fim, Clarice Maria Silva Campos, no capítulo inti-
tulado “Carolina Maria de Jesus: a preservação da memória e
o impacto na contemporaneidade da literatura produzida pela
­mulher negra brasileira” aborda a vida e obra literária da escrito-
ra negra Carolina Maria de Jesus, em um momento de discussões

10 ∫ Apresentação
sobre interseccionalidade em que mulheres reivindicam seu es-
paço e sua voz na sociedade.
A realização da 2.ª Jornada Fluminense de pós-graduação em
acervos, preservação e memória e a publicação desta coletânea con-
tou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro (FAPERJ). Agradecemos às comissões científi-
ca e organizadora dos programas de pós-graduação em patrimô-
nio cultural e memória social do Rio de Janeiro, parceiros que
estão unidos no propósito de contribuir para melhor compreen-
são e consolidação dessa modalidade de pós-graduação no Brasil.

Apresentação ∫ 11
1.
IDENTIDADE E DESIGUALDADES
EM TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS:
IGREJA DE SÃO DANIEL PROFETA
EM MANGUINHOS (RJ)

Éric Alves Gallo1


Inês El-Jaick Andrade2

A
dissertação intitulada Patrimônio em território in-
visibilizado: Igreja de São Daniel Profeta na fave-
la de Manguinhos (RJ), defendida no Programa de

1 Arquiteto e urbanista. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Preser-


vação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de
Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a dissertação intitulada
“Patrimônio em território invisibilizado: Igreja de São Daniel Profeta na Fa-
vela de Manguinhos (RJ)”, sob orientação da professora doutora Inês El-Jaick
Andrade, em 2021. Contato: [email protected]
2 Arquiteta e urbanista, docente do Programa de Pós-Graduação em Preser-
vação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de
Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC).

12 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


­ ós-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cul-
P
tural da Casa de Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC/FIOCRUZ)
no ano de 2021, analisou a significação cultural da Igreja de
São Daniel atribuída pelos agentes públicos e, sobretudo, pela
comunidade de fiéis sob a perspectiva do patrimônio cultural,
inserido em contexto de vulnerabilidade social e conflitos so-
ciais. Para isso foram analisadas as experiências participativas
nesse território no âmbito das ações de preservação da Co-
missão de Preservação da Igreja de São Daniel Profeta (2019-
2021) e exploradas as relações sociais, políticas e religiosas na
construção de uma narrativa histórica que caracteriza o bem
como centro comunitário e de memória.
As relações socioterritoriais em Manguinhos, entre a co-
munidade FIOCRUZ e de moradores, existem ao longo das
décadas. Nos últimos anos, estrategicamente, são expressas em
pesquisas e programas que geram indução, articulação e fortale-
cimento de ações territorializadas que promovam saúde e susten-
tabilidade nos territórios.
Com ampliação das investigações, a partir de uma oficina
para elaboração de uma cartografia social dos problemas do ter-
ritório, em particular, os gerados pelos impactos da execução do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC/Manguinhos),
organizada pelo Laboratório Territorial de Manguinhos (LTM/
FIOCRUZ), com participação ativa dos moradores do bairro,
surge uma aproximação com representantes e fiéis da Igreja de
São Daniel. A gênese da cooperação nesse trabalho foi possibi-
litada pela aplicação da metodologia de cartografia social,3 que
­buscou compreender as deficiências e necessidades dos ­moradores

3 A cartografia social, também denominada de etnomapas ou contramapea-


mentos, traz uma abordagem que se propõe participativa, envolvendo pes-
quisadores e agentes sociais, de modo a aproximar as comunidades do tra-
balho de aquisição dos dados e produção de mapas, considerando as suas
­interpretações do espaço. Estabelece-se na luta por direitos civis dos anos de

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 13


para subsidiar a elaboração de soluções técnicas, oriundas das
instituições de pesquisa e ensino, permitindo expandir um novo
olhar sobre arquitetura social e popular para a comunidade, e a
reflexão acerca dos processos de apropriação dos bens culturais
em contextos periféricos.
O templo está localizado no Complexo de Favelas de
Manguinhos, no bairro homônimo, na cidade do Rio de Janei-
ro, em um território urbano adensado por autoconstruções.4 É
um projeto com assinatura arquitetônica de Oscar Niemeyer,
construído em 1960, que está tombado no nível estadual desde
1966 e no nível municipal desde 1998. Em um espaço marca-
do pela anomia, em meio às construções populares, a “hóstia”,
como é identificada pela população, teve os atributos formais de
sua arquitetura muito alterados ao longo dos anos. No entan-
to, configura-se como um espaço de identidade e pertencimento
que ativa processos de construção e reconstrução de memória
pela comunidade, como observado nas oficinas, entrevistas e
­atividades de campo.
A participação ativa dos moradores foi essencial para com-
preensão dos lapsos das políticas públicas ao longo dos anos. Tal
dinâmica indicou a centralidade que a igreja ocupa no território
de Manguinhos na percepção dos moradores participantes. Nes-
se momento se iniciava um diálogo sob a ótica patrimonial, ativo
até os dias atuais, atualmente como integrantes das mobilizações
e ações em prol da valorização e da conservação, por meio da
Comissão de Preservação da Igreja São Daniel Profeta.

1970 e é muito aplicada em comunidades que se encontram em uma situação


de conflito (Acselrad, 2008).
4 Autoconstruções são um tipo de produção da habitação e de assentamento
popular no Brasil construída sem o apoio técnico de engenheiros e arquitetos
(Maricato, 1982).

14 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


Figura 1. Moradores e pesquisadores participantes da Oficina
de Trabalho sobre os problemas não resolvidos pelo PAC

Fonte: Projeto Arquitetando Intersubjetividades, jan. 2016.

O aprofundamento na análise de fontes, como relatórios


e pareceres técnicos do Instituto Estadual do Patrimônio Cul-
tural do Estado do Rio de Janeiro (INEPAC) sobre o processo
de tombamento e preservação da igreja, reportagens de jornais e
periódicos disponíveis na Biblioteca Nacional, fotografias per-
tencentes a acervos institucionais e pessoais auxiliaram na com-
preensão dos discursos dos atores envolvidos e na construção
de uma narrativa histórica da edificação. A análise se baseia em
fontes históricas de um passado recente, ancorada metodologi-
camente pela “história do tempo presente”, que reflete sobre os
acontecimentos traumáticos deste tempo, em uma tensão en-
tre o desejo de denúncia e a necessidade de compreensão, uma
“tensão própria da nossa geração”, que segundo Garretón (1983
apud Rossi, 2010), “nem sempre soube colocar-se bem entre o
trabalho intelectual e a responsabilidade política”.
O recorte aqui apresentado enfatiza a igreja como um centro
comunitário e de memória, a partir dos valores atribuídos por di-
ferentes atores sociais, evidenciando as estratégias utilizadas para

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 15


a promoção da participação social em territórios conflagrados
por conflitos urbanos e desigualdade social, além dos desafios
impostos pela pandemia de Covid-19.

Manguinhos: um território de identidade


e desigualdades

O espaço como elemento “que une e que separa” é um capi-


tal comum a toda humanidade, mas sua utilização efetiva é reser-
vada àqueles que dispõem de um capital particular, reforçando
a noção de propriedade privada sobre um bem coletivo (Santos,
2012). Os territórios exercem papel importante na construção
de identidades e cidadania. Sob as análises sociológicas e geo-
gráficas e os aspectos políticos, econômicos, ambientais etc., a
relação social nos territórios urbanos é marcada por disputas e
conflitos. A marcação sociomercadológica dos espaços, onde as
classes sociais estão cada vez mais distribuídas em nichos, sobre-
tudo quanto aos hábitos de consumo e formas culturais, criados
com o surgimento de cidades divididas, fragmentadas e propen-
sas a conflitos, é importante para compreensão das relações terri-
toriais. A ideologia neoliberal estimula a abordagem dos territó-
rios como mercadorias universais e as políticas urbanas passam a
ser um “problema de mercado”.
O acesso à cidade é cada vez mais moldado e mediado pelo
poder de compra, bem como a possibilidade de participação ci-
dadã, em uma relação de cliente/consumidor. Os resultados da
crescente polarização na distribuição de riqueza e poder, segun-
do Harvey (2014), impactam diretamente as formas espaciais
das cidades. Isso ocorre porque as cidades se transformam em
fragmentos fortificados, comunidades muradas e espaços públi-
cos mantidos sob vigilância constante.

16 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


Fernandes & Costa (2009) apontam que a constituição
das comunidades de Manguinhos se iniciou nos primeiros anos
do século XX, por ocupações individuais e coletivas de fazendas
produtoras de gêneros alimentícios que abasteciam a cidade e,
em uma área mais elevada e próxima ao Instituto Oswaldo Cruz
(IOC), por ocupações de origem portuguesa e de funcionários
do IOC, dada à proximidade do local de trabalho ou à possibi-
lidade de conquista de emprego na instituição. A evolução física
desse território representa, por meio das suas ocupações, a ex-
pansão da cidade em direção aos subúrbios, os quais passaram a
ser extensões territoriais.
Os fluxos migratórios também impactaram consideravel-
mente a constituição das comunidades de Manguinhos, a par-
tir do aumento populacional da região. Além da imigração de
outras regiões do país, principalmente do Nordeste, e de zonas
rurais, também houve deslocamentos ocasionados por remoções
patrocinadas por políticas habitacionais implementadas na cida-
de do Rio de Janeiro entre as décadas de 1940 e 1960, além de
movimentações internas e adjacentes, de locais impactados por
incêndios ou enchentes.
A região onde se situa o templo, em Manguinhos, fazia par-
te de políticas públicas de remoção de favelas — Parques Pro-
letários Provisórios (PPPs) e Centros de Habitação Provisória
(CHPs) —, o Parque São José. Esse parque apresentava constru-
ções em alvenaria com uma proposta de caráter mais permanente
e abrigava funcionários da antiga Prefeitura do Distrito Federal5
com parcos salários, em zona não urbanizada, onde residia nu-
merosa população operária.

5 Até 1960, a cidade do Rio de Janeiro era capital do Brasil e o prefeito


do Distrito Federal, de acordo com a legislação vigente, era nomeado pelo
presidente da República. A partir da transferência da capital para Brasília, a
cidade do Rio de Janeiro passa a ser estado da Guanabara que foi fundido ao
estado do Rio de Janeiro em 1975.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 17


No que tange à política nacional, o período de governo de
Juscelino Kubitschek (JK) na presidência da República do Bra-
sil (1956-1961), iniciou um período de intensa industrialização
do país com a construção da nova capital federal e objetivava
impulsionar no Brasil o desenvolvimento social e econômico. A
construção da igreja contou com grande envolvimento de pes-
soas próximas a JK, tanto assim que ele esteve presente na inau-
guração do templo. Inicialmente pode-se ressaltar a atuação de
José Sette Câmara Filho, governador do estado da Guanabara
(1960), que teve importante papel na diplomacia e política bra-
sileira, por anos acompanhando e colaborando em diversos mo-
mentos de sua trajetória política. O arquiteto Oscar Niemeyer
igualmente acompanhou e colaborou com grandes feitos de JK,
como o conjunto da Pampulha e Brasília.
Como observado, o contexto político do início da década
de 1960 foi intenso, sobretudo com a transferência da Capital
Federal. Também foi um período de instalação de infraestrutu-
ras básicas nas favelas cariocas, como ocorrido em Manguinhos.
As mobilizações nas frentes sociais eram protagonizadas pelas
primeiras-damas,6 que tiveram papel importante no enfrenta-
mento à pobreza, mas colaboraram com a desresponsabilização
do Estado quanto a políticas públicas de caráter universal à po-
pulação, uma vez que as ações possuíam um viés marcadamen-
te filantrópico. Marco dessa prática, em Manguinhos, pode-se
observar as iniciativas conduzidas pelas senhoras Alaísa Resende
Sá Freire Alvim, esposa do prefeito do Distrito Federal (1958-
1960), e, posteriormente, pela senhora Elba Carvalho Sette Câ-
mara, ­esposa do governador do estado da Guanabara (1960),

6 A partir da década de 1940 as mulheres de presidentes da República foram


designadas primeiras-damas e exerciam atividades de assistência social, vol-
tadas ao plano da atenção à pobreza, em ordem filantrópica. O marco dessa
prática foi o protagonismo de Darcy Vargas, em 1942, com a constituição da
Legião Brasileira de Assistência (LBA).

18 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


com a implantação do Programa de Recuperação do Conjunto
São José.
Foram planejadas diversas ações no estado, dentre elas a
construção da Igreja de São Daniel que surge no contexto da
oferta de “uma vida melhor para os habitantes dos núcleos resi-
denciais do Estado” (Uma vida melhor... , 1960). A proposta de
construção de uma capela projetada pelo arquiteto Oscar Nie-
meyer era considerada uma providência de grande interesse à
comunidade, como parte de uma demanda própria. Havia uma
grande proximidade entre os atores políticos daquele momento
e, portanto, a construção da igreja não onerou o estado, sendo to-
talmente custeada por particulares, reforçando o caráter filantró-
pico e, discretamente, movida por interesses políticos-pessoais.

Figura 2. Croquis da Igreja de São Daniel, elaborado por Niemeyer

Fonte: Fundação Oscar Niemeyer, [1960].

O projeto em forma circular, visto de cima, foi inspirado


no modelo canônico de uma hóstia, segundo indicam algumas
reportagens da época e relatos de moradores de Manguinhos. A
moderna capela de São Daniel, a exemplo da Capela da Pampulha

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 19


e da Catedral de Brasília, foi idealizada para se transformar em
uma das maiores atrações turísticas do Rio de Janeiro, apesar de
construída em local de difícil acesso. O fato de ela ser circundada
por várias favelas, à época, já inspirava analogias com a história
do profeta Daniel: a igreja São Daniel ficaria rodeada de leões.

Figura 3. Vista aérea de Manguinhos,


com a ­Igreja de São Daniel (construção circular)

Fonte: Jordan Silva, 2021.

Muitos argumentavam que tal obra deveria ter sido rea-


lizada em outro local, sem a proximidade da favela. No entan-
to, Elba Sette Câmara acreditava não haver melhor local para a
construção de uma capela tão maravilhosa. Sua localização foi
intencional, uma vez que “ficando em um Parque Proletário, os
visitantes teriam a oportunidade de ver os verdadeiros problemas
do povo carioca, sendo, portanto, mais generosos nas suas doa-
ções”, além da possibilidade de atrair a atenção das autoridades
e do povo para os problemas das favelas, pois à proporção que

20 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


fossem visitar a obra, forçosamente poderiam sentir de perto os
problemas intrínsecos ao entorno (Mauro, 1960a; 1960b).
A arquitetura de Niemeyer uniria e abrigaria outros bens
artístico-culturais, como o conjunto de quadros da Via-Sacra,
pintado por Alberto da Veiga Guignard, especialmente para
compor a igreja, uma pia batismal colonial autêntica, cedida pela
então Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(DPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), e uma réplica do profeta Daniel, copiada
em gesso de uma obra de Aleijadinho. O interior foi projetado
pelo engenheiro decorador Heitor Coutinho, incluindo o dese-
nho dos bancos, altar e confessionário, executados pelo senhor
Manoel Silva Bandeira, e o projeto paisagístico para o jardim do
adro foi desenvolvido pelo engenheiro Paulo Athayde. O pró-
prio Niemeyer, dias antes da inauguração, mostrou-se admirado
com a obra, tendo feito os maiores elogios ao trabalho de Guig-
nard e de Heitor Coutinho (Mauro, 1963).
Como observado, a igreja foi idealizada para ser um mar-
co na cidade. Especulava-se que o antigo estado da Guanabara
ganharia mais um elemento de interesses cultural, religioso e tu-
rístico, que em pouco tempo estaria em renomadas revistas in-
ternacionais, especializadas ou não, como mais uma importante
contribuição brasileira à arte sacra e à estética contemporânea.
Antes mesmo da inauguração a capela foi elevada a paróquia, e já
possuía um padre à frente da comunidade, prestando “assistên-
cia moral e religiosa” aos 1.300 paroquianos. Na ocasião foram
fundados o escoteirismo — os Escoteiros de São Daniel (extinto)
— e o Apostolado de Oração.7

7 O Apostolado de Oração da Igreja de São Daniel, foi fundado em 4 de


novembro de 1960, e, posteriormente, mudou o seu nome para Apostolado
de Oração da Igreja de Santa Bernadete e mantém suas atividades até os dias
atuais.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 21


A construção da igreja mobilizou numerosas personalidades
e políticos para sua realização e, portanto, sua inauguração, em 2
de dezembro de 1960, contou com a presença do presidente da
República, Juscelino Kubitschek, sua esposa Sara Kubitschek e
suas filhas, Márcia e Maria Estela; do governador provisório da
cidade, José Sette Câmara Filho, sua esposa Elba Sette Câmara;
do ex-prefeito Sá Freire Alvim; do ministro Pascoal Carlos Mag-
no; do Arcebispo Dom Helder Câmara; do Cardeal Dom Jaime
de Barros Câmara e de outras altas autoridades civis, militares e
eclesiásticas, além de centenas de fiéis.

Figura 4. Fotos da inauguração da Matriz de São Daniel, com des-


taque a presença do presidente da República, Juscelino Kubitschek

Fonte: Acervo Luiz Mello.

Os anos seguintes à inauguração foram marcados pela efer-


vescência cultural e religiosa da comunidade, sobretudo no que

22 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


tange às pinturas de Guignard, que atraíam fiéis de diversos luga-
res da cidade, incluindo procissões, festividades e afins. A igreja
que atendia cerca de 18 mil paroquianos do Parque João Goulart
e São José, apesar de toda efervescência, antes mesmo de comple-
tar dois anos de construída, já sofria ameaças de demolição para
ceder lugar a uma avenida projetada pela Superintendência de
Urbanização e Saneamento do Estado da Guanabara (SURSAN)
(Tribuna da Imprensa, 21 ago. 1962), gerando enorme indig-
nação de defensores da arte moderna e da Igreja de São Daniel.
Essa primeira ameaça gerou na sociedade a pressão pelo
tombamento da obra, uma vez que, ainda no período de cons-
trução, já se cogitava o seu tombamento8 (Jornal do Brasil, 10
nov. 1960; Politis, 1962). No contexto de mobilização, a igreja
foi visitada pelo embaixador Sette Câmara e sua esposa e pelo
ministro Gama Filho. Na ocasião, Elba Sette Câmara, “mos-
trou-se satisfeita com a conservação da igreja e dos jardins que a
circundam”, apesar de as obras nas imediações colocarem a cons-
trução em situação de inacessibilidade (Tribuna da Imprensa, 21
ago. 1962).
Nos anos seguintes se intensificou o abandono, pela au-
sência de atuação do poder público na preservação do bem, pela
falta de cuidados com o entorno da edificação e com os acessos.
Em contraponto, as atividades religiosas e sociais continuaram
ocorrendo, a exemplo dos festejos juninos ocorridos em 1964,
organizados pelo Grupo Escoteiro São Daniel e a festa do Pa-
droeiro São Daniel, ocorrida entre os dias 19 e 23 de julho de
1965, com intensa programação litúrgica e cultural (Programa-
-Convite.. . , 1965).

8 Anteriormente à inauguração do templo, era noticiado que o “Patrimônio


Histórico” já se dispunha a tombar a obra, porque algumas peças ali usa-
das, como a pia batismal, provenientes de Ouro Preto, já eram objetos de
tombamento.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 23


Grandes embates ocorreram em 1966, em que “todo esse
patrimônio estava sendo ignorado e até mesmo sujeito a deterio-
ração, pela falta de recursos e de conservação adequada” (Jornal
do Brasil, 23 abr. 1966). Por esse motivo, Elba Sette Câmara
propôs transferir a Via-Sacra para o Museu de Arte Moderna,
onde teria a proteção técnica adequada (Swann, 1966). Na oca-
sião, o padre Sebastião Lourenço, responsável pela paróquia, de-
fendia a permanência dos quadros na igreja e afirmava que “em
hipótese alguma” permitiria que fossem retirados. A defesa se
dava pelos “dramas socioeconômicos” do local e lutava pela per-
manência do que se tinha:

Os quadros de Guignard, por exemplo, único adorno da igreja


são defendidos por toda a população. Quem conseguir abrir a
porta da igreja à noite, ou cortar o alambrado que protege os
vitrais, fará tocar o alarme. No dia em que isto acontecer duvido
que eu possa segurar a população do Parque São José (Padre. . . ,
1966).

O abandono em que se encontrava o local, para o secretário


do Cardeal, monsenhor Francisco Bessa, cabia à Secretaria de
Turismo, que não atentava para a riqueza artística do templo e
nem sequer olhava para a situação dos moradores que ali vivem
em extrema pobreza, destacando que “o pobre de Manguinhos
é muito dedicado, mas não tem meios de conservar a igreja e o
jardim” (Correio da Manhã, 30 abr. 1966). As notícias sobre o
abandono e o descaso com a preservação do bem foram inten-
sificadas no período entre maio e agosto de 1966 nos jornais de
grande circulação. A própria esposa do governador, Ema Negrão
de Lima, se queixou do abandono do entorno, com as vias obs-
truídas e o asfaltamento danificado, após assistir missa no local.
Pouco tempo depois a Divisão do Patrimônio Histórico
e Artístico do Estado da Guanabara (DPHA-GB) realizou o

24 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


t­ombamento da Igreja de São Daniel, a fim de proteger a Via-
-Sacra, por meio de decreto assinado pelo governador Negrão de
Lima e publicado no Diário Oficial em 29 de agosto de 1966.
Apesar de tombado, o templo continuou em descaso, bem como
os quadros que compunham a Via-Sacra.
Por solicitação do governador de Minas Gerais, Israel Pi-
nheiro, ao governador do estado da Guanabara, Francisco Ne-
grão de Lima, em meados de outubro de 1967, os quadros da
Via-Sacra deixaram pela primeira vez a Igreja de São Daniel em
direção a Belo Horizonte, para serem expostos e para que o presi-
dente Costa e Silva pudesse apreciá-los quando visitasse a capital
mineira (Jornal do Brasil, 12 out. 1967). Em meados do ano
seguinte, os quadros foram noticiados como desaparecidos en-
tre Belo Horizonte e Rio de Janeiro, mas estavam efetivamente
na residência da família Sette Câmara, a mesma celebrada na
ocasião da inauguração da Igreja. Elba Sette Câmara alegou que
eram de sua propriedade pessoal e não do governo carioca. Jus-
tificou ter ganhado os quadros em dezembro de 1960, do pin-
tor, que a homenageou com dedicatória no verso de todas as 14
telas e uma “à querida Lúcia Flexa Lima” senhora da sociedade
carioca de quem Guignard gostava muito. Percebe-se que a nar-
rativa anterior de defesa da permanência dos quadros na igreja,
vinculada à salvaguarda ao direito coletivo e à compreensão das
obras como bens integrados à capela, foi substituída pelo direito
individual e de autoria artística acima do interesse público.
Elba afirmava que não pretendia ficar com os quadros em
sua casa, pois a obra de Guignard é para ser vista por todos e que
os recolocaria na Igreja de São Daniel quando o templo estivesse
em condições de recebê-los de volta, com garantia para a con-
servação da obra. O Cardeal Dom Jaime Câmara, seu secretário
Monsenhor Bessa, o Vigário Geral Dom José de Castro Pinto
e o padre “responsável pelo abandono” em que se encontrava a
Igreja de São Daniel foram devidamente informados da decisão,

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 25


em tempo oportuno, bem como o governador Negrão de Lima
foi cientificado.
Se porventura descaso com a conservação do templo per-
sistisse, cogitava-se a possibilidade de doação da Via-Sacra à
Catedral de Brasília, conforme discutido com o arquiteto Oscar
Niemeyer, autor de ambos os projetos, que queria “devolvê-los
à visitação pública” (Jornal do Brasil, 10 jul. 1968). Essa op-
ção seria, possivelmente, coerente com o desejo de Guignard,
uma vez que seria outra obra de Niemeyer. Outras possibilidades
aventadas foram o Museu de Arte Moderna do Rio ou a Igreja
de São Francisco, em Ouro Preto, que não possuía Via-Sacra e
na opinião do arquiteto e historiador de arte mineiro Sylvio Vas-
concellos (1916-1979), reuniria em monumento artístico Guig-
nard, Aleijadinho e Ataíde, três artistas dedicados a Minas, “o
que muito alegraria Guignard, se ele vivesse” (Jornal do Brasil,
12 jul. 1968).
A falta de providências do governo e a resistência do pároco
local com relação à realização de obras de reparos, a fim de cui-
dar da igreja, para que os quadros não fossem danificados, como
vinha acontecendo, em virtude da umidade dentro do templo,
fez Elba desistir de devolvê-los. Encerrada as polêmicas, discreta-
mente, repartiu a Via-Sacra com Lúcia Flecha de Lima, ficando
sete obras para cada uma.
Não obstante seu valor artístico e cultural, desde o seu tom-
bamento, a igreja e seu entorno não receberam conservações ade-
quadas e apresentaram situação de vulnerabilidade do bem em
menos de dez anos após sua inauguração, evidenciando, assim,
as fragilidades da prática de preservação por meio das políticas
públicas de preservação em favelas (territórios invisibilizados).
Em razão da falta de resposta às demandas contínuas por ma-
nutenção, o processo de deterioração foi intensificado, por se
juntar às condicionantes físicas e sociais do local de sua inserção.
Diversas modificações foram realizadas pela comunidade de fiéis,

26 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


de modo a manter o uso e a prática da fé na edificação. Todas
as modificações, apesar de ser uma edificação tombada, foram
feitas pelos próprios fiéis, de forma empírica, sem conhecimento
técnico, e de acordo com as suas necessidades. Recorrente nos
diálogos, as estruturas só se mantêm até os dias atuais, graças
aos esforços comunitários, na realização de quermesses, festas,
cantinas voluntárias, um trabalho árduo dos fiéis para conseguir
manter o bem fisicamente.
Na primeira década do século XXI, o estado cogitou o “des-
tombamento” estadual da igreja, por considerar que não possuía
suas características coevas. Nesse contexto, a comunidade se mo-
bilizou e demonstrou a importância da edificação no contexto
local, para além das questões de materialidade artística-arquite-
tônica e chancela da autoria do projeto, perpassando o uso e
profissão da fé, demonstrando a relação da comunidade com seu
patrimônio. Nessa perspectiva, em 2010 inicia-se uma mobili-
zação popular contrária ao possível e cogitado destombamento
que conseguiu estabelecer contato com o órgão estatual de tutela
e justificar a permanência do tombamento. A mobilização deu-se
no ano de comemoração dos 50 anos da inauguração da Igreja
de São Daniel. Nesse ano, diversas manifestações culturais foram
organizadas pela igreja, além de esforços para uma possível res-
tauração física do bem, confrontando a ideia de “destombamen-
to”9 com seu potente significado local.
A valorização da “hóstia”, conforme é conhecida na re-
gião, como um patrimônio arquitetônico estadual e municipal,
é um motivo de orgulho recorrente, reproduzido em discurso de
­diversos moradores. O tombamento é compreendido como um

9 Cabe ressaltar que existem poucos textos que analisam o “destombamento”


de bens culturais. O Decreto-Lei n.º 2, de 11 de abril de 1969, que define os
Bens Integrantes do Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Estado
da Guanabara e institui medidas para a sua proteção, trata sobre o destomba-
mento dos bens como competência do Conselho Estadual de Tombamento.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 27


r­ econhecimento conferido pelos “outros”, isso é, o poder públi-
co e os especialistas, e é percebido pela comunidade como uma
fonte de orgulho e distinção. Esse sentido de reconhecimento
suplanta a valoração do espaço físico-arquitetônico construído,
de modo a evidenciar as relações sociais e espaciais ali vivencia-
das. O fato pode ser observado com a união dos favelados para
recuperação do templo por meio de mutirão popular, em 1998.

Lugar de memória e seus valores associados

A noção de memória construtiva, como ressalta Clifford


(2008), desenvolve-se a partir da afirmação da memória local de
um fato social que traz um sentido de integridade para os mora-
dores, com base em suas próprias vivências. Diretamente ligada
a um simbolismo, a igreja se configura como um ícone, alcan-
çando o intangível para os moradores de Manguinhos. Expressa
valor para a comunidade por meio da relação dos fiéis com o
imaginário, unindo a memória à integridade do bem. Para tanto,
a igreja é viva na memória, sendo compreendido o valor imate-
rial do bem, indo além do visível, material e físico. Assim é o
patrimônio compreendido, como é visto pelos moradores.
Nessa perspectiva, Florêncio et al. (2014) compreende que,
quando integradas às diversas dimensões da vida em sociedade,
as experiências educativas se tornam mais efetivas, sendo perce-
bidas nas práticas cotidianas. Portanto, em detrimento da estrita
preservação material, em um processo de coisificação, “as polí-
ticas públicas na área deveriam associar continuamente os bens
culturais e a vida cotidiana, como criação de símbolos e circula-
ção de significados” (p. 21).
A valorização da relação entre territórios urbanos e seus pa-
trimônios culturais, sugere a promoção de ações educativas de
preservação e valorização desse patrimônio por meio de políticas

28 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


integradas. O estabelecimento de vínculos entre as políticas pú-
blicas de patrimônio e as de cultura, turismo, meio ambiente,
educação, saúde, desenvolvimento urbano e outras áreas correla-
tas, favorece intercâmbios de práticas educativas, enriquecendo
o processo pedagógico a elas inerente, conforme apontado por
Florêncio et al. (2014). Por meio das políticas intersetoriais e da
interdisciplinaridade é possível maior efetividade na participação
social e na otimização de recursos, possibilitando novos cami-
nhos para a gestão das cidades contemporâneas, sobretudo, no
que tange à preservação do patrimônio cultural.
A participação é importante para a construção do significa-
do sociocultural dos lugares (Viñas, 2010). Dessa forma, a Igreja
de São Daniel, mesmo renegada pelos grupos oficiais, em deter-
minado momento, e tendo sido objeto de proposta de destom-
bamento, é compreendida pela comunidade como portadora de
valores culturais que justificam a sua preservação material, não
só como espaço arquitetônico, mas também como espaço litúr-
gico. Nas entrevistas realizadas com moradores da comunidade
de Manguinhos e antigos fiéis se identifica alguns valores recor-
rentes, como de uso, simbolismo, coletivismo, social, identitário,
histórico, cultural, artístico, arquitetônico etc. Muitos valores es-
tão ligados à imaterialidade do patrimônio em detrimento da sua
forma espacial-arquitetônica.
Considerando que uma das principais razões da preserva-
ção é a melhoria da qualidade de vida, a comunidade se torna a
verdadeira responsável e guardiã de seus valores patrimoniais por
meio da garantia do exercício da memória e da cidadania, não
excetuando seu papel fundamental na conservação do bem.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 29


Estratégias para promoção da participação
social em territórios de conflito

A Portaria IPHAN n.o 137/2016, estabelece atualmente


as diretrizes da Educação Patrimonial no âmbito da instituição.
Ressalta-se o conceito atual de educação patrimonial:

Art. 2.º.Para os efeitos desta Portaria, entende-se por Educa-


ção Patrimonial os processos educativos formais e não formais,
construídos de forma coletiva e dialógica, que têm como foco o
patrimônio cultural socialmente apropriado como recurso para
a compreensão sócio-histórica das referências culturais, a fim de
colaborar para seu reconhecimento, valorização e preservação.
Parágrafo único. Os processos educativos deverão primar pelo
diálogo permanente entre os agentes sociais e pela participação
efetiva das comunidades (IPHAN, 2016).

Nos processos participativos efetivos, no âmbito das ações


de educação patrimonial, pode-se afirmar que:

É imprescindível que toda ação educativa assegure a participação


da comunidade na formulação, implementação e execução das
atividades propostas. O que se almeja é a construção coletiva
do conhecimento, identificando a comunidade como produtora
de saberes que reconhece suas referências culturais inseridas em
contextos de significados associados à memória social do local
(Florêncio et al., 2014).

Horta, Grunberg & Monteiro (1999) destacam o conhe-


cimento crítico e a apropriação consciente pelas comunidades
do seu patrimônio como fatores indispensáveis no processo de
preservação sustentável dos respectivos bens, assim como no for-
talecimento dos sentimentos de identidade e cidadania. A ideia

30 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


de que “só se preserva o que se conhece” baseada na relação in-
trínseca entre conhecer e preservar, transformou a educação em
um instrumento de mediação do estado com a sociedade desde a
fundação do IPHAN. No entanto, hoje essa máxima não é abso-
luta. Preservamos o que nos é significativo ou o que nos afeta. As
ações de educação patrimonial hoje contribuem para fortalecer
identidades coletivas diversas.
Bortolozzi (2008) aponta a educação patrimonial como es-
tratégia possível e importante nas propostas alternativas para um
planejamento urbano associado à gestão territorial e à inserção
social das comunidades. Dessa maneira, o patrimônio cultural
pode revelar caminhos e potencialidades para requalificação local
por meio de políticas participativas, que valorizem a cidadania.
A participação social, como direito constitucional, com-
preende as diversas formas que as forças sociais empenham para
influenciar as formulações, execuções, fiscalizações e avaliações das
políticas públicas. A Constituição Federal de 1988 (CF/1988),
também conhecida como Constituição Cidadã, estabelece que a
participação da sociedade nas políticas públicas é promovida por
diferentes meios e pode ocorrer dentro das três esferas políticas:
Executivo, Judiciário e Legislativo. No que tange ao patrimônio
cultural, a participação social deve ser vista como um princípio
constitucional, em que “o poder público, com a colaboração da
comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasi-
leiro por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento
e outras formas de acautelamento e preservação” (CF, 1988, art.
216, § 1.º). A conservação dos ­monumentos é sempre favoreci-
da por sua destinação a uma função útil à sociedade, conforme
menciona o art. 5.º da Carta de Veneza (1964).
Como princípio constitucional, para Scifoni (2021), a par-
ticipação social se torna um fundamento que deve orientar as prá-
ticas e políticas e resulta da própria definição do que é “Patrimô-
nio Cultural”. Ainda para autora, os bens que fazem ­referência à

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 31


memória, à ação e à identidade dos grupos sociais, sendo suporte
físico de memórias coletivas, devem ser, necessariamente e por
princípio constitucional, identificados e protegidos sempre em
diálogo com os grupos sociais. Essa participação passa pela capa-
cidade de escuta, interlocução e, sobretudo, partilha de decisões.
Significa considerar o ponto de vista dos moradores e principais
usuários, os maiores interessados na preservação, em contraste à
decisão unilateral do poder público, ratificada por meio de au-
diências públicas. Ou seja, a tarefa de proteger e promover o
patrimônio cultural deve ser feita pelo poder público com a co-
munidade, em uma partilha de responsabilidades.
A elaboração de estratégias para a promoção da participa-
ção social pressupõe a apropriação e a ressignificação de meto-
dologias, técnicas e linguagens para o agenciamento de projetos
e ações que desafiam a ordem dominante. A constituição da Co-
missão de Preservação da Igreja de São Daniel Profeta (organiza-
da em 2019) pode ser entendida como uma prática insurgente,
que nasce de baixo para cima, em uma lógica e dinâmica que se
constituem no processo mesmo da confrontação, desafiando a
ordem urbana e preservacionista dominante em uma construção
de alternativas possíveis, em que se luta para preservar e se pre-
serva para lutar.
As abordagens participativas incorporam o conflito inter-
namente e o mitigam, a fim de construir consensos ou, no míni-
mo, acordos. Em alguns modelos a participação consiste apenas
na acomodação de interesses secundários sem questionar o fun-
damental e em outros a participação é o caminho que promove
a inclusão e a cidadania, por meio do diálogo ou pela comunica-
ção, ou ainda pela conquista de espaços políticos. No entanto, se
esses processos estiverem inseridos no contexto institucional do
poder público, a participação efetiva estará limitada.
A vivência em territórios de conflitos urbanos e desigual-
dade social produzem ideais próprios, nem sempre condizentes

32 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


com as normas e leis, e estão presentes na produção e reprodu-
ção dos espaços “invisibilizados”. O pertencimento a um lugar é
importante no que tange a participação social, tornando-se tanto
um meio como um fim, à proporção que gera estímulo a formas
de relação baseadas na negociação e reciprocidade entre os diver-
sos atores sociais e institucionais.
Uma reportagem televisionada em outubro de 2019, solici-
tada pela Associação de Moradores, em Manguinhos, denunciava
o abandono e descaso do estado com a Igreja de São Daniel Pro-
feta.10 Nas palavras do presidente da Associação, “tombamento”
seria sinônimo de obrigação do poder público em realizar a res-
tauração do bem. Esse entendimento se encontra parcialmente
equivocado, uma vez que o bem deve atender a sua função social,
sem a perda do direito de propriedade. Após o tombamento, a
pessoa (física ou jurídica) fica obrigada a uma série de realizações
de fazer, não fazer e deixar que se faça, como, v.g, manter o bem
tombado nas condições estabelecidas, não danificar o bem, não
realizar restaurações e reformas sem a prévia autorização do ór-
gão competente, permitir a fiscalização do poder público, dentre
outros. No entanto, quando comprovadamente faltarem ao pro-
prietário ou ao possuidor os recursos necessários para reparações
do bem, essas poderão ocorrer por conta do poder público, con-
forme Decreto-Lei n.o 2/1969.
Essa reportagem despertou a necessidade de esclarecimen-
tos à comunidade sobre as funções e obrigações das partes, no
qual “o Estado, por sua vez, tem o dever-poder de proteger o
patrimônio cultural. Após o tombamento, reconhece-se que o
bem tem um caráter social e público que deve ser protegido, não
podendo, pois, o ente estatal ficar inerte nessa questão” (Duar-
te Junior, 2012, p. 8). Também, gerou uma maior mobilização

10 Veiculada no Bom Dia Rio, na TV Globo. Disponível em: <https://


globoplay.globo.com/v/8009609/>. Acesso em: 25 nov. 2021.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 33


e­ ntre o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural e a Comissão
de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural da Arquidio-
cese do Rio de Janeiro e de seu Interesse,11 bem como impulsio-
nou a constituição da Comissão de Preservação da Igreja de São
Daniel Profeta.
A partir dessa mobilização inicial, se somaram as institui-
ções que atuam no território, como a Fundação Oswaldo Cruz,
representada pela Casa de Oswaldo Cruz, o Docomomo, e o
Centro Universitário Augusto Motta. A 1.ª Reunião Pública do
grupo, intitulada “São Daniel Profeta - 60 anos: avanços, retro-
cessos e desafios”, foi realizada poucos dias após a veiculação da
notícia. Como conquista, houve uma aproximação dessas insti-
tuições oferecendo suporte ao processo de autogestão e planeja-
mento da comunidade de São Daniel na Assessoria Técnica da
Comissão, composta de arquitetos e engenheiros voluntários.
Observa-se que a autogestão e o planejamento insurgen-
te necessitam do suporte de assessorias técnicas com ênfase em
ações de educação patrimonial, para a preservação, valorização
e difusão de seus bens culturais, em um processo sustentável e
emancipatório, tendo em vista uma estratégia de descolonização
patrimonial, autorrepresentação e como ferramenta para o pla-
nejamento e desenvolvimento local.
Visando a ampliação da participação social no processo de
tomadas de decisões, além de permitir o acompanhamento das
atividades, foram realizadas oficinas e rodas de conversas, como
estratégias fundamentais. A I Oficina Comunitária: Memórias e
narrativas da Igreja de São Daniel Profeta, realizada em 24 de no-
vembro de 2019, culminou na iniciativa de constituição de um

11 A comissão é responsável pela conservação e restauração dos bens culturais


da igreja, além de realizar a integração com os demais atores envolvidos com
a preservação do patrimônio cultural: IPHAN, INEPAC, IRPH e Ministério
Público.

34 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


acervo fotográfico comunitário e uma linha do tempo histórica,
marcando o início das atividades em comemoração aos 60 anos
de inauguração do templo e lançamento do selo comemorativo.
Esse selo teve por objetivo valorizar os 60 anos da igreja, tendo
sido apropriado pela comunidade em suas atividades cotidianas
e foi utilizado ao longo das demais ações e atividades até o ano
vigente.

Figura 5. Selo comemorativo aos 60 anos de inauguração da Igreja


de São Daniel e sua apropriação pela comunidade paroquial

Fonte: Gallo, 2021.

Aproximadamente 130 pessoas de diferentes idades, a


maioria da comunidade de Manguinhos, participaram da missa
de celebração dos 60 anos da igreja. A missa contou com a pre-
sença de representantes da Comissão de Preservação do Patrimô-
nio Histórico e Cultural da Arquidiocese do Rio de Janeiro e de

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 35


seu Interesse, também da Caixa Econômica Federal. Para as ati-
vidades de construção de acervo coletivo iconográfico e constru-
ção de linha do tempo histórica, participaram 19 pessoas, entre
mediadores e fiéis da Igreja de São Daniel Profeta e moradores
de Manguinhos. As atividades tiveram grande importância para
a comunidade de Manguinhos, sobretudo na mobilização social,
uma vez que para realização da oficina, os próprios fiéis se corres-
ponsabilizaram por grande parte da comunicação, organização
do espaço etc.

Figura 6. Roda de conversas para construção da linha


do tempo histórica e partilha dos acervos fotográficos pessoais

Fonte: Comissão de Preservação da Igreja de São Daniel, 24 nov. 2019.

A peça gráfica para divulgação foi desenvolvida pela Co-


missão de Preservação da Igreja de São Daniel Profeta e os carta-
zes impressos foram fixados nos principais pontos de circulação
apontados pelos fiéis, selecionados por eles nas comunidades de
Manguinhos e FIOCRUZ. Também foi realizada uma divul-
gação nas redes sociais e no site da Comissão de Preservação,
seus parceiros e da Igreja de São Daniel Profeta, além de ampla
divulgação via WhatsApp. A fim de mobilizar a comunidade na

36 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


divulgação e promover o engajamento prévio, foi elaborada uma
carta-convite com distribuição aos fiéis por meio de sua comissão
e, também, pelos Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) do
território, de modo integrado.
Na ocasião da missa de celebração, foram realizados bati-
zados na pia batismal original da igreja, mesmo seu estado de
conservação estando ruim, em um ato simbólico. Tanto a pia
batismal, quanto um dos bancos originais, que estavam deposi-
tados em uma casa de atividades da igreja, foram ofertados no
altar durante a missa pela recém-organizada Comissão de Preser-
vação da Igreja de São Daniel Profeta.

Figura 7. Oferta da pia batismal em momento do ofertório


pela Comissão de Preservação da Igreja de São Daniel
e, na sequência, a benção pelo padre Geraldo Natalino

Fonte: Comissão de Preservação da Igreja


de São Daniel Profeta, 24 nov. 2019.

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 37


Na construção do acervo coletivo iconográfico foram digi-
talizadas cerca de 20 fotos cedidas à comissão com legendas ela-
boradas pelos cedentes. A construção de uma linha do tempo, de
forma linear e fixadas ao redor das paredes do templo, permitiu
participações além do dia da oficina, pois no dia a dia da igreja
outras pessoas puderem visualizar e contribuir com a atividade.

Figura 8. Parcela da linha do tempo histórica construída


coletivamente e afixada na parede do templo

Fonte: Comissão de Preservação da Igreja de São Daniel, 24 nov. 2019.

A pandemia de Covid-19 impôs desafios ainda maiores para


a participação social e o planejamento objetivando a restauração.
Todas as atividades ocorridas entre os anos de 2020 e 2022 foram
realizadas em formato virtual ou híbrido, conforme as recomen-
dações sanitárias e com possibilidade de participação remota.
Ao longo do ano de 2021, ainda em situação de distan-
ciamento social, foram realizadas rodas de conversa entre téc-
nicos da Assessoria Técnica e a comunidade, objetivando criar
caminhos possíveis para uma proposta de restauração do templo,
para seguimento na fase orçamentária e de captação de recursos.
Também, dando continuidade ao trabalho de educação patri-
monial, se realizou a “Oficina de Poesia Popular” para interes-
sados no processo de escrita poética/popular. A oficina focou

38 ∫ Éric Alves Gallo & Inês El-Jaick Andrade


na valorização do patrimônio histórico-cultural e nas obras de
Oscar Niemeyer, de maneira a envolver a comunidade de Man-
guinhos, da Igreja de São Daniel Profeta e os grupos de outros
territórios invisibilizados.
Visando à maior adesão do público de Manguinhos, re-
correu-se a suportes físicos de memória, além das mídias sociais,
Instagram e Facebook, como estratégia de interação. Com o ad-
vento da internet, redes sociais e afins, os meios de comunicação
se tornaram mais instantâneos e menos afetivos. Na contramão
desse processo, foram desenvolvidos cartões postais com foto-
grafias antigas da Igreja de São Daniel Profeta e distribuídos na
comunidade. Miniaturas de São Daniel também foram desen-
volvidas como parte da estratégia de comunicação por meio de
suportes físicos, integrando as comemorações da Festa do Pa-
droeiro de 2021, no mês de julho.

Considerações finais

O capítulo teve como intuito apresentar o processo de ins-


talação da Igreja São Daniel Profeta na comunidade de Mangui-
nhos e suas muitas apropriações ao longo do tempo. Os fatos
atinentes à história da Igreja de São Daniel e seus vínculos socio-
territoriais podem integrar a curadoria de uma futura exposição,
auxiliando no processo de educação patrimonial, pertencimento
e valorização.
Podemos verificar que os conflitos armados na comunidade
não são o foco dos problemas, mas sim consequência de uma po-
lítica de exclusão, fruto da ineficiência das ações do poder público
nesse território. As ações construídas sob uma falsa ou limitada
participação social, tendem a não resolver os problemas princi-
pais dos territórios. A cidadania é um direito c­ onstitucional que

Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 39


deve ser assegurado em qualquer território, especialmente em
territórios de conflitos urbanos e desigualdade social.

Referências

Documentos – Leis e decretos

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Bra-


sil. Brasília: Senado Federal, 1988.
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PODE vir abaixo igreja projetada por Niemeyer. Tribuna da Imprensa,
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POLITIS, P. Pomona Politis Informa. Diário de Notícias, Rio de
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PROFESSOR mineiro elogia o cuidado de D. Elba com a “Via Sacra”
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“VIA SACRA” de Guignard vai do Rio a B. Horizonte para Costa e
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Identidade e desigualdades em territórios invisibilizados... ∫ 43


2.
PLANOS DE CONSERVAÇÃO PREVENTIVA
PARA EDIFÍCIOS HISTÓRICOS:
UMA PROPOSTA PARA A IGREJA DA PENHA,
RIO DE JANEIRO

Carla dos Santos Feltmann1

V
isível de diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro
por situar-se no alto de uma rocha de mais de cem
metros e, famosa por ter seu acesso por meio da esca-
daria de 382 degraus, dos quais 365 são talhados na própria
rocha, a Igreja da Penha configura-se como marco na pai-
sagem da zona norte. Abriga a festa religiosa mais antiga da

1 Arquiteta e urbanista. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Pre-


servação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa
de Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a dissertação intitu-
lada “Igreja da Penha: subsídios para o plano de conservação preventiva”,
sob orientação da professora doutora Carla Maria Teixeira Coelho, em 2021.
Contato: [email protected]

44 ∫ Carla dos Santos Feltmann


c­ idade e outros eventos religiosos e culturais, sendo de grande
importância para a comunidade, local, católica ou não. Acu-
mula, entre outros títulos, os de basílica e santuário, além de
ser considerada por muitos como um dos berços do samba.
Por tantas características marcantes, torna-se um dos pontos
turísticos do subúrbio carioca.
A falta de conhecimento por parte de responsáveis, fun-
cionários e usuários em relação a ações e cuidados adequados a
serem implementados para sua conservação, contribuiu para que
a edificação se deteriorasse ao longo do tempo.
Exemplo de arquitetura eclética, apresenta, atualmente,
problemas de conservação — tais como infiltrações, ataque de
xilófagos e rede elétrica fora das normas, além de outros proble-
mas resultantes da escassez de verbas e da inexistência de estraté-
gias de longo prazo para sua preservação.
A metodologia adotada contou com revisão bibliográfica
no campo da conservação preventiva e exemplos práticos de ela-
boração de planos de conservação preventiva. Em relação ao ob-
jeto de estudo, realizou-se pesquisa documental e análises in loco,
com o objetivo de subsidiar o desenvolvimento da caracterização
da igreja e do sítio onde está localizada, assim como a análise dos
danos presentes na edificação e na identificação de riscos. Foram
mapeados os principais grupos de atores que interagem com a
edificação e realizadas entrevistas semiestruturadas.
Com a revisão bibliográfica foi possível embasar as decisões
tomadas no desenvolvimento do plano de conservação preventi-
va. A pesquisa histórica, feita por meio de pesquisas arquivísticas,
bibliográficas e de fontes orais, possibilitou obter e sistematizar
informações sobre a edificação, os acontecimentos que fazem
parte de sua biografia, construção, intervenções anteriores e uso.
Para identificar os materiais construtivos e monitorar os
processos de deterioração, foram realizadas análises in loco pe-
riódicas à igreja, possibilitando a reunião de dados que foram,

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 45


então, compilados e analisados, permitindo a correlação entre
danos e seus respectivos agentes de deterioração, para, em segui-
da, propor medidas para a conservação preventiva.
Os atores que exercem influência sobre o bem e sua conser-
vação foram mapeados (reitores da basílica, funcionários, volun-
tários, frequentadores, visitantes e moradores do bairro) e, em
seguida, foram realizadas com eles, entrevistas semiestruturadas
para levantar informações sobre a história e a percepção desses
atores a respeito da igreja, esse processo foi avaliado e aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FIOCRUZ.
Foram propostas diretrizes para a conservação preventiva,
conservação programada e educação patrimonial para a Igreja da
Penha a partir da sistematização e análise dos dados levantados.

Conservação preventiva: teoria e prática

As vantagens da conservação em relação à restauração já


podiam ser percebidas no século XIX, quando John Ruskin es-
crevia “cuide bem de seus monumentos e não precisará restau-
rá-los” (2008 [1849], pp. 81-2), reconhecendo a conservação
como maneira de prolongar a vida dos monumentos. A isso, ele
acrescentava que “algumas chapas de chumbo colocadas a tempo
num telhado, algumas folhas secas e gravetos removidos a tempo
de uma calha, salvarão tanto o telhado com as paredes da ruína”
(pp. 81-2). De acordo com o autor, a restauração seria “a mais
total destruição que um edifício pode sofrer” (p. 79) e deveria ser
evitada a todo o custo.
Um século mais tarde, Cesare Brandi (2017) defendia que
a obra de arte deveria condicionar a restauração, não ao contrá-
rio. Sendo necessário, antes de tudo, reconhecer a obra de arte
como tal, ou seja, produto especial da atividade humana que

46 ∫ Carla dos Santos Feltmann


tem dupla polaridade: estética e histórica (p. 103), para só em
seguida colocar em prática ações de restauração ou mesmo de
prevenção.
Ainda segundo Brandi (2017), o dever de conservar e trans-
mitir uma obra de arte (depois de reconhecida como tal) para
gerações futuras faz-se imperativo, sendo necessário, a partir de
então, adotar, de maneira preferível à restauração, a restauração
preventiva — “tutela, remoção de perigos, asseguramento de
condições favoráveis” (p. 99).
Esta abordagem — preventiva — é defendida desde os
primeiros documentos internacionais sobre preservação de bens
culturais. A Carta de Atenas (IPHAN, 1931, p. 1), ressalta a
necessidade de adotar “manutenção regular e permanente, apro-
priada para assegurar a conservação dos edifícios”. A Carta de
Veneza (ICOMOS, 1964), por sua vez, expõe que os monumen-
tos são testemunhos vivos de tradições seculares e é necessário
preservá-los para que possam ser transmitidos em plenitude e
autenticidade às gerações futuras. Para sua conservação é preciso,
antes de tudo, manutenção permanente.
O Preventive Conservation, Monitoring and Maintenance
of Monuments and Sites (PRECOMOS), cátedra da Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cul-
tura (UNESCO) no campo da preservação, possui o objetivo
de realizar pesquisas na área de monitoramento e manutenção
e promover a disseminação dos monumentos como estratégia
de conservação preventiva, tornando-a sustentável tanto técnica
quanto socialmente (Van Balen, 2011).
Segundo Carvalho (2015, p. 146), a definição para con-
servação preventiva aplicada a bens imóveis no âmbito do PRE-
COMOS é:

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 47


uma filosofia proativa que tem como objetivo garantir a longe-
vidade do patrimônio construído. Contempla a adoção de me-
didas para mitigar riscos potenciais que constituam causas de
deterioração futura, apropriadas ao contexto histórico e de uso
do edifício, aliadas a um processo de documentação frequente e
acessível que subsidie uma avaliação permanente de resultados.

É preciso compreender a edificação desde seu princípio: as


técnicas usadas na sua construção, as alterações que ela sofreu ao
longo do tempo e os efeitos delas, os possíveis dados que a afeta-
ram e, finalmente, o seu estado atualmente (ICOMOS, 2003).
Os diagnósticos dos edifícios históricos, pelo passado com-
plexo e pelas particularidades que possuem, necessitam de um
sistema organizacional claro, possuindo semelhanças com a me-
dicina. A mesma organização em etapas precisas utilizada na me-
dicina é utilizada na conservação preventiva.
Essas etapas são anamnese ou caracterização, diagnóstico,
terapia e controle e, correspondem, respectivamente, à pesquisa
por informações relevantes sobre a história do edifício; a identi-
ficação das causas dos danos; a escolha da melhor medida corre-
tiva, que deve atingir a causa e não o sintoma, e, ao controle da
eficiência das intervenções (ICOMOS, 2003).
Para alcançar o melhor custo-benefício e o menor impac-
to na edificação utilizando o orçamento disponível de maneira
racional, é normalmente necessário que as etapas, indicadas an-
teriormente, sejam repetidas em um processo interativo (ICO-
MOS, 2003).
A trajetória da conservação preventiva no Brasil se iniciou
na década de 1990. Uma das iniciativas mais expressivas do pe-
ríodo foi o Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Ar-
quivos (CPBA), cujo objetivo era “ampliar o conhecimento a
preservação dos acervos documentais por meio de um programa
de informação e intercâmbio” (Beck, 2001, s/p.).

48 ∫ Carla dos Santos Feltmann


Idealizado em 1994 por um grupo de pessoas preocupa-
das com a preservação dos acervos documentais brasileiros que
­percebiam a necessidade da elaboração de políticas continuadas
de conservação preventiva, reconhecida como opção mais viável
em termos de custos e de resultados (Beck, 2001).
A conservação preventiva era uma prática, até então,
­pouco difundida, considerou-se que seria necessário desenvol-
ver um amplo processo de informação e conscientização sobre
sua i­mportância. Assim, além de identificar textos técnicos es-
trangeiros sobre temas prioritários para tradução, durante sua
existência, o Projeto CPBA reuniu e disseminou em uma pági-
na da internet conhecimento atualizado sobre a preservação de
documentos e registros em papel, som, filme, fotografia e meio
digital (Beck, 2001).
Em 1997, o Projeto CPBA publicou uma seleção de 53
títulos sobre a conservação preventiva de livros e documentos, de
filmes, fotografias e meios magnéticos. No mesmo ano, o Projeto
iniciou o processo de difusão por meio de seminários organi-
zados por todo o Brasil estimulando a prática da conservação
preventiva nas instituições. Esse desdobramento é o mais impor-
tante resultado do Projeto CPBA (Beck, 2001).
Com mais de 130 eventos realizados em todo o país e so-
mando mais de 6 mil pessoas envolvidas, o Projeto CPBA encer-
rou suas atividades em 2001 quando se encerraram também os
apoios financeiros que recebia de diversas instituições internacio-
nais (Beck, 2001).
A conservação preventiva conta com algumas experiências
importantes no país, merecendo destaque as iniciativas da Fun-
dação Casa de Rui Barbosa e da Fundação Oswaldo Cruz, ambas
no Rio de Janeiro, e do Centro de Estudos Avançados da Con-
servação Integrada (CECI), em Recife.
A Fundação Casa de Rui Barbosa, primeiro museu-casa
do Brasil, instituída em 1930, aplica desde o final da década de

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 49


1990 a conservação preventiva. De acordo com a experiência
da instituição, é possível programar as intervenções necessárias
e prevenir, ou até mesmo evitar, intervenções de grande porte;
acompanhar o estado dos materiais constituintes da edificação,
suas características técnicas e interação com o entorno; além de
reduzir custos de manutenção ao evitar reparos de emergência
(Fundação Casa de Rui Barbosa, 2020). A elaboração do plano
para a Fundação Casa de Rui Barbosa contou com etapas de
elaboração de diagnóstico de conservação, identificação de pro-
blemas e ações corretivas; elaboração de projetos executivos para
essas intervenções; elaboração de plano de manutenção para evi-
tar maior deterioração; treinamento da equipe de funcionários
(Carvalho, s.d.).
Outro projeto brasileiro relevante para a pesquisa é o plano
de conservação preventiva para o Pavilhão Mourisco da Fun-
dação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, edificação construída en-
tre 1905 e 1918, em Manguinhos, Rio de Janeiro e tombado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em 1981. A estrutura deste plano segue as orientações
previstas na Política de Preservação e Gestão de Acervos Cultu-
rais das Ciências e da Saúde e conta com as etapas de caracteriza-
ção, diagnóstico, avaliação de riscos e procedimentos/estratégias
(FIOCRUZ, 2017).
Ainda em âmbito nacional tem-se o Centro de Estudos
Avançados da Conservação Integrada (CECI), cuja missão é
“desenvolver a consciência, o conhecimento e a prática social
da conservação integrada do patrimônio cultural e ambiental
nas cidades, dentro da perspectiva do desenvolvimento susten-
tável” (CECI, s.d., a). Entre seus objetivos estão a dissemina-
ção da conservação integrada e da proteção do patrimônio por
meio de conferências, seminários e encontros; o desenvolvimen-
to de teorias, métodos e instrumentos de planejamento além de

50 ∫ Carla dos Santos Feltmann


o­ rganização de um centro de documentação; e prestação de ser-
viços à comunidade.
No contexto internacional destaca-se a iniciativa do Mo-
numentenwacht, organização não governamental fundada na
Holanda em 1973, com filial na Bélgica desde 1991, que visa a
dar suporte aos responsáveis por edifícios históricos para preve-
nir deterioração por meio de inspeções e manutenção regulares.
As informações coletadas a partir das inspeções permitem docu-
mentar, comparar e monitorar o estado dos edifícios, podendo
ser usadas como ferramenta de gerenciamento que, em paralelo
com a manutenção regular, pode prevenir graves danos, colabo-
rar para a definição de orçamentos e evitar maiores gastos com
restauração, mostrando-se, em longo prazo, mais barata do que
intervenções emergenciais (Van Balen, 2011, pp. 1- 2).
A conservação preventiva deveria ser considerada a base de
qualquer política de preservação, uma vez que, ao mitigar os ris-
cos que afetam o patrimônio e minimizar a necessidade de inter-
venções de restauro, constitui-se um meio eficaz e econômico de
preservar a integridade física dos bens culturais, cuja existência
encontra-se ameaçada por numerosas situações de risco, desde
exposição a agentes naturais até atos de vandalismo.

História da Igreja da Penha

Na qualidade de fontes primárias, utilizaram-se livros de


atas e relatórios da Irmandade que forneceram informações con-
cretas sobre a história da Basílica que, de maneira geral, é repleta
de fragmentos do passado e relatos orais.
No ano de 1613 (Prefeitura, 1990) o fidalgo português Bal-
tazar de Abreu recebe uma doação de parte das terras onde hoje
se encontra a Penha e os bairros vizinhos e que, na época, forma-
vam a Fazenda Grande, uma sesmaria jesuítica.

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 51


De acordo com a tradição oral local, Baltazar tinha o cos-
tume de subir até o alto da pedra para observar sua plantação,
quando foi surpreendido por uma cobra e, reconhecendo-se em
uma situação de perigo, rogou pela proteção de Nossa S­ enhora.
Em resposta aparece um lagarto que ataca a cobra e Baltazar
aproveita a oportunidade para escapar.
Recuperado do susto, Baltazar reconhece que o lagarto apa-
receu por milagre com a intercessão de Nossa Senhora e manda
construir no alto da pedra, em 1635, uma ermida para honrar
Maria com o título de Senhora do Rosário, muito difundido
naquele momento. Essa ermida

[...] era composta de um altar mor abobadado, tendo no trono


a imagem de Nossa Senhora do Rosário. Construção em alve-
naria com vinte palmos de circunferência, com a frente voltada
para o mar, possuía uma pequena sacristia que continha uma
urna, banqueta e outros objetos para realização do culto (Basíli-
ca, 1859-1876, s.p.).

Esta imagem de Nossa Senhora do Rosário, do século


XVII, primeira imagem entronizada na ermida, encontra-se hoje
na sacristia da igreja.

52 ∫ Carla dos Santos Feltmann


Figura 1. Altar-mor da ermida de 1935 e imagem de Nossa ­Senhora
do Rosário. Encontra-se atualmente na sacristia da Basílica

Fonte: Acervo pessoal da autora, 2021.

Na pequena comunidade local as notícias do milagre, obra


de Nossa Senhora do Alto do Penhasco, espalharam-se rapida-
mente, foi provavelmente a partir daí que o título de Senhora do
Rosário foi substituído por Senhora da Penha, sendo entroniza-
da a imagem de Nossa Senhora da Penha de França, também do
século XVII.

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 53


A devoção a Nossa Senhora da Penha de França data do
século XV e é originária da região de Salamanca, na Espanha,
onde, em uma serra chamada Penha de França, Simão Vela, re-
sidente de um convento franciscano na aldeia de Puy, França,
encontrou, em 19 de maio de 1434, uma imagem de Nossa Se-
nhora (Colunga, 1944).
No Brasil, esta devoção à Nossa Senhora da Penha, teve
início em 1566, com a construção do Convento da Penha, na
cidade Vila Velha, no Espírito Santo, trazida por Frei Pedro Pa-
lácios, de origem espanhola.
O Convento da Penha em Vila Vela, que também possui
um milagre em sua história, foi fundado por Frei Pedro Palá-
cios, irmão leigo da ordem dos franciscanos, de origem espa-
nhola, que chegou na então capitania em 1558. A história local
conta que certo dia desapareceu o painel de Nossa Senhora da
Penha da capela de São Francisco, também fundada pelo Frei
em 1562. Ele pôs-se a procurá-la nas matas ao redor da monta-
nha, encontrando-a no alto da pedra, entre duas palmeiras. O
Frei, então, recolocou o painel na capela de São Francisco, mas
ele desapareceu mais duas vezes, aparecendo sempre no mesmo
lugar. Frei Palácios reconheceu nesses sinais a vontade de Nossa
Senhora em querer que se construísse uma capela no local indi-
cado (Araújo, 1945). A construção de tal capela iniciou-se no
ano de 1566, sendo concluída em 1570. O Convento, porém,
foi fundado apenas em 1591 (Convento, 2020).

Principais intervenções

A primeira das intervenções pela qual a ermida dedicada


à Nossa Senhora da Penha passou aconteceu em 1728, quando
foi:

54 ∫ Carla dos Santos Feltmann


[...] acrescentando um arco cruzeiro para o lado da frente que
acha para o mar 45 palmos de comprimento e 22 de largura,
ficando desde então esse espaço considerado o corpo da igreja,
contendo púlpito e coro que ficaria por cima da porta principal.
Do lado direito da ermida existia uma meia água com 28 palmos
de comprimento e 15 de largura que seria a sacristia tendo do
lado esquerdo uma pequena porta e escada que dava ingresso ao
púlpito [ ...] campanário que tinha do lado da frente da igreja
com 2 pequenos sinos (Basílica, 1859-1876, s.p.).

Figura 2. Capela depois da reforma de 1728. Na imagem


­inferior, à direita, vê-se em destaque a ermida original

Fonte: Jornal do Brasil, 6 de outubro de 1926. Acervo da Basílica da Penha.

Essa primeira reforma foi feita pela Venerável Irmandade


de Nossa Senhora da Penha de França que, no mesmo ano de
1728 recebe, dos familiares do capitão Baltazar, a administração
da igreja.

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 55


O grupo de fiéis que compunha a Irmandade era, de início,
formado apenas por portugueses, uma vez que a comunidade
portuguesa do bairro era de grande influência na região. Hoje,
independente da nacionalidade, a Irmandade é formada por lei-
gos participantes nas atividades da Basílica que completou, em
2019, 290 anos de existência.
Desde sua fundação em 1729 a Irmandade teve papel im-
portante no desenvolvimento do bairro da Penha, doando o
terreno para a construção da Estrada de Ferro do Norte (poste-
riormente Estrada de Ferro Leopoldina), o que facilitou o deslo-
camento dos romeiros (Martins, 2005).
O Museu da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da
Penha de França conta a história da instituição em aproxima-
damente 100 m² com uma exposição permanente que dispõe
de livros de visitantes, fotografia, quadros, imagens sacras, entre
outros. Em espaço contíguo encontra-se a exposição de ex-votos,
em que objetos que representam uma graça alcançada são entre-
gues à Igreja da Penha como forma de agradecimento. Dentre
eles, diversas fotografias, objetos em cera (como casas e partes do
corpo humano), fardas militares, vestidos de noiva e, até mesmo
uma cruz em tamanho real que foi carregada por um fiel enquan-
to subia a escadaria.
O Livro de Visitantes do ano de 1888, em exposição no
Museu da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Penha de
França, mostra a visita da princesa Isabel e de seu marido, Con-
de d’Eu, quando o padre Ricardo Silva, abolicionista, era cape-
lão. O casal imperial visitou a Igreja da Penha acompanhado de
grande comitiva e renderam homenagens à Nossa Senhora da
Penha, diz-se que para pedir bênçãos para uma resolução que
seria efetivada poucos dias depois e mudaria a história do Brasil:
a assinatura da Lei Áurea, que se deu em 13 de maio do mesmo
ano e que aboliu a escravidão no Brasil (Martins, 2005).

56 ∫ Carla dos Santos Feltmann


Figura 3. Assinaturas de membros da família ­imperial
no Livro de Visitantes (1937 e 1940)

Fonte: Museu da Venerável Irmandade


de ­Nossa ­Senhora da Penha de França.

Também consta no mesmo livro uma carta de agradeci-


mento enviada pela princesa Dona Esperanza ao Monsenhor Al-
ves da Rocha, pároco da Igreja da Penha por volta dos anos de
1940, mostrando a relação próxima da Irmandade com a família
imperial brasileira.
Além de membros da família imperial, a Igreja da Penha
recebeu também a visita de outras personalidades importantes
para a história da cidade, como os prefeitos Pereira Passos e Pau-
lo de Frontin.
Em 1870 a Irmandade decide fazer uma nova reforma na
igreja. Foi nesse período que cavouqueiros foram contratados
para rebaixar, entre oito e dez palmos (Martins, 2005), o topo
do rochedo, encontrando, na antiga sacristia, os restos mortais

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 57


de dois padres que ali serviram. Esses restos mortais foram trans-
ladados para um lugar reservado à frente da igreja, onde perma-
necem até hoje.
No ano seguinte a reforma era concluída e o edifício ficou
com “apenas uma torre e um sobrado de um lado só, visto que
tinham faltado recursos necessários para o término das obras”
(Martins, 2005).

Figura 4. Igreja da Penha após as alterações de 1870,


com apenas uma torre sineira e três diferentes níveis

Fonte: Livro Memórias Históricas do Rio de Janeiro, 1945.

58 ∫ Carla dos Santos Feltmann


Figura 5. Planta recentemente restaurada da ­reforma
pela qual a Igreja da Penha passou em 1870

Fonte: Acervo da Basílica.

Por três décadas são realizadas apenas pequenas interven-


ções no interior da igreja, até a sua próxima grande reforma
realizada entre os anos de 1900 e 1902, de responsabilidade do
arquiteto Luiz Moraes Júnior (o mesmo responsável pelo projeto
do Pavilhão Mourisco, símbolo da Fundação Oswaldo Cruz).
Essa reforma contou com

[...] a construção de duas torres [sineiras] que lhe deu um ar


mais pomposo, e as pirâmides em mármore branco e rosado fi-
nalizando campanário [...]
No cruzeiro a cruz de madeira foi substituída por uma de pedra
de Lioz. Em cada lado da muralha foi colocada as urnas fune-
rárias dos capelães encontrados na antiga sacristia (Cestari, s.d.,
s.p.).

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 59


De acordo com Costa & Andrade (2020), Moraes nasceu
na cidade de Faro, capital da província do Algarve, em Portugal,
no dia 30 de janeiro de 1867, graduou-se em engenharia ferro-
viária em Coimbra, Portugal e, em 1900, veio para o Brasil a
convite do conterrâneo e então vigário geral da Igreja da Penha,
padre Ricardo, para conduzir as obras de reconstrução e embele-
zamento externo da igreja. Já em 1907 foi novamente convidado
para realizar obras em seu interior (Benchimol, 1990).
Em 1921 são construídos novos acréscimos: batistério, ga-
binete do capelão, confessionário e novo altar-mor. Em 1938 são
acrescidos os terraços sobre o batistério e o gabinete do capelão
(Prefeitura, 1938). De acordo com Cestari (s.d.) essas altera-
ções fizeram que a igreja perdesse sua referência e sua expressão
luso-brasileira.

Figura 6. Vista aérea da Igreja da Penha (2019)

Fonte: Acervo da Basílica.

60 ∫ Carla dos Santos Feltmann


Figura 7. Detalhe do terraço construído em 1938 onde é
­possível perceber o guarda corpo em apenas uma das portas

Fonte: Acervo da Basílica (2019).

Depois de mais de um século sem intervenções significati-


vas, a Igreja da Penha agora se prepara para mais um marco em
sua história: a primeira obra de restauro. Em entrevista, Jorge
Astorga (2021), arquiteto responsável pelo desenvolvimento do
projeto de restauração, explica que o primeiro passo foi o cadas-
tro das medidas reais do edifício com a utilização de um scanner
laser. Nos diagnósticos que se seguiram, de arquitetura, estru-
tura e instalações prediais, verificou-se que, de maneira geral, a
igreja encontra-se em bom estado, com apenas alguns elementos
mais deteriorados ou fora da norma. Depois de observadas as

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 61


­ emandas da Irmandade, foi feito um estudo preliminar e apre-
d
sentado ao Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH)
durante visita técnica à igreja, chegando a um acordo. Seguiu-se,
então, para o projeto básico e em seguida o projeto final.
Ainda segundo Astorga (2021), o mais interessante foi
como propor acessibilidade à igreja, uma vez que, atualmente,
os bondinhos garantem acesso a ela, mas é necessário descer uma
escada para chegar aos sanitários e ao velário. Estudou-se a pos-
sibilidade da rampa, que seria muito longa, em seguida consi-
derou-se uma nova parada do bondinho no nível dos sanitários,
optando, finalmente, pelo uso de uma plataforma, mas onde co-
locá-la? Por fim, um lugar foi escolhido próximo aos bondinhos.
Também para garantir acessibilidade, os sanitários foram remo-
delados. Já no velário, discutiu-se sobre o uso da vela eletrônica,
optando, no final, pela tradicional.

Proteção e títulos

Em 1990 o IRPH reconhece “a beleza e a importância reli-


giosa, social e cultural do Santuário o coloca na categoria de mo-
numento religioso, histórico e cultural da cidade de São Sebas-
tião do Rio de Janeiro” (Prefeitura, 1990). Porém, em 1938, o
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)
— atual IPHAN (), demonstrou interesse no tombamento da
Igreja da Penha.
Na época, a Irmandade considerou o tombamento “desca-
bido” (Basílica, 1936-1946, p. 12) e pediu sua impugnação com
as seguintes justificativas:

Quanto, porém, à própria Igreja, basta considerar que, nos


termos expressos e textuais do próprio Dec. [ilegível] 25, de
­Novembro de 1937, o patrimônio histórico e artístico nacional

62 ∫ Carla dos Santos Feltmann


compreende, unicamente, os “bens existentes no País, cuja con-
servação seja de interesse público quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.
[ ...]
O Templo da Penha de construção recente, sem estilo arquitetô-
nico, sem maior beleza, não se inclui nessa definição. O “interes-
se público” que pudesse haver na sua conservação, não resultaria
em caso algum, de “Excepcional valor” de qualquer das quatro
espécies indicadas.

Este tombamento pelo IRPH é apenas um dos títulos que a


Igreja da Penha coleciona. Em 1935, o então o Papa Pio XI agre-
ga a Igreja de Nossa Senhora da Penha de França à Sacrossanta e
Patriarcal Basílica de Santa Maria Maior, em Roma.
Em 1941 o Cardeal Dom Sebastião Leme da Silveira Cin-
tra inaugura, no terreno da igreja, o marco de construção da
primeira Pontifícia Universidade Católica do Brasil (PUC/RJ),
atualmente conhecido como Cruzeiro da Universidade.
O processo para elevação da igreja à categoria de Santuário
foi iniciado em 1905 e, o título, concedido em 1966, os fiéis,
porém, já se referiam à Igreja da Penha como Santuário muito
antes disso. Esse título é concedido pelo Vaticano por reconhe-
cer que uma igreja recebe, além dos moradores do bairro, fiéis
em peregrinação vindos de todo o Brasil e do exterior.
Em 1981, a pedido do então Papa João Paulo II, em vi-
sita pelo Brasil, é elevada à categoria de Santuário Mariano
Arquidiocesano.
Em 2016 recebe o título de Basílica Menor, agregada à Ba-
sílica de Santa Maria Maior, em Roma, quando sua importância
arquitetônica e histórica, além da espiritual, é reconhecida pelo
Vaticano (Cestari, s.d.).
Assim, a Igreja da Penha atualmente acumula os títulos de
Basílica Santuário Arquidiocesano Mariano de Nossa Senhora

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 63


da Penha de França, agregada à Basílica de Santa Maria Maior
de Roma.

A escadaria da Penha

A icônica escadaria de acesso à igreja, constituída por 382


degraus dos 365 são talhados na própria pedra, possui duas ver-
sões para sua construção, ambas orais. A primeira diz que em
1728 a Irmandade teria mandado entalhar na própria pedra os
365 degraus para facilitar o acesso dos fiéis, até então feito por
cordas. A segunda, mais conhecida entre os frequentadores da
Basílica, conta que uma devota chamada Maria Barbosa mandou
esculpir na rocha os 365 degraus como agradecimento pela graça
recebida de ser mãe. Ela teria dado à luz ao seu filho em 1817 e,
no ano seguinte, a construção teria sido iniciada, sendo concluí-
da em 1819. Não foi possível até hoje encontrar documento que
possa precisar a história da construção da escadaria.
Em 1913 a escadaria é alargada para acolher o número cres-
cente de fiéis em peregrinação e, posteriormente, foram acres-
centados 17 degraus totalizando 382.

Figura 8. Escadaria antes do alargamento, nos primeiros anos do sé-


culo XX (esquerda). Escadaria depois do alargamento, 2019 (direita)

Fonte: Acervo da Basílica.

64 ∫ Carla dos Santos Feltmann


É uma tradição antiga subir a escadaria de joelhos, normal-
mente em agradecimento por alguma graça recebida. Até os dias
de hoje é comum encontrar estes fiéis em devoção.
Atualmente, a famosa escadaria é palco do Desafio Escada-
ria da Penha, uma prova que já teve duas edições e contempla as
categorias de corrida e caminhada em um percurso com diferen-
tes distâncias que inclui subida e descida da escadaria além dar a
volta ao redor da rocha por uma trilha no meio da mata.

Práticas sociais e culturais

Na Igreja da Penha acontecem diversos eventos religiosos e


culturais, o mais famoso desses é a Festa da Penha, que acontece
todos os anos durante o mês de outubro e é considerada a “maior
festa popular e religiosa da cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro” (Cestari, s.d.) e “a segunda maior festa popular do Rio
de Janeiro, Brasil, perdendo apenas para o carnaval” (Carmo,
Bicalho & Miranda, 2017, p. 160).
Cestari (s.d., s.p.) descreve a Festa da Penha como uma

[...] festa tipicamente portuguesa [que] contava com as sole-


nidades religiosas, bênção, confissões e batismos. Após os atos
litúrgicos, davam-se início aos espetáculos musicais que, a prin-
cípio eram portugueses. Com o fim da escravidão houve uma
miscigenação, e com o tempo chega a ser palco de disputa de
sambas e marchinhas carnavalescas, com a presença de nomes
consagrados da música popular brasileira. Foi na Penha que Si-
nhô e Donga lançam o primeiro samba carioca “Pelo Telefone”.
Os romeiros após pagarem as promessas e louvar a Virgem, es-
colhiam árvores frondosas para o famoso piquenique, usavam
colar de balas, saboreavam as roscas açucaradas, bebiam vinho

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 65


em chifre de boi, jogavam peteca e usavam os famosos broches
com a imagem da Virgem.

Figura 9. Fiéis em procissão com a imagem de Nossa Senhora da


Penha durante o encerramento a Festa da Penha. Novembro de 1972

Fonte: Jornal Correio da Manhã. ­Arquivo ­Nacional. Disponível em: <http://


imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/br_rjanrio_ph/0/fot/04120/
br_rjanrio_ph_0_fot_04120_d0017de0021.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2020.

66 ∫ Carla dos Santos Feltmann


O primeiro samba carioca, “Pelo Telefone”, foi lançado
durante a Festa da Penha evidenciando a forte relação que sem-
pre teve com o samba. “Pelo Telefone”, porém, não mencionava
o bairro, a igreja ou mesmo a festa. O primeiro a fazer isso, inau-
gurando a categoria de “sambas da Penha” — sambas que falam
da igreja em suas letras — foi José Luís de Morais, o Caninha
que, em 1918, usa sua ironia para falar da gripe espanhola e
também da Penha:

A espanhola está aí
A espanhola está aí
A coisa não está brincadeira
Quem tiver medo de morrer
Não venha mais à Penha

Era na Festa da Penha que sambistas como Noel Rosa e


compositores como Pixinguinha, Donga, Sinhô, Heitor dos Pra-
zeres e Ismael Silva, os “pais-de-samba”, “apresentavam e testa-
vam as músicas que fariam sucesso quatro meses depois, ­agitando
o carnaval” (Carmo, Bicalho & Miranda, 2017, p. 162).

Aquele tempo não tinha rádio, a gente ia lançar música na festa


da Penha. A gente ficava tranquilo quando a música era divulga-
da lá, que aí estava bem, que era o grande centro. Eu fiquei co-
nhecido a partir da Festa da Penha (Prazeres, 1966 apud Muniz,
1998, p. 60).

De acordo com Efegê (2007, p. 24), ao mesmo tempo que


se comia e bebia de maneira farta ao redor das mesas e barracas
da Festa da Penha, lançavam-se os sambas que seriam cantados
durante o próximo carnaval,

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 67


[...] o repertório musical carnavalesco tinha, assim, a sua pré-es-
treia no ambiente de uma festa religiosa e iniciava ali no longín-
quo subúrbio, a sua popularização para chegar aos dias ‘gordos’,
inteiramente conhecidos em toda a cidade.

Também presentes na Festa da Penha estavam os “duelos


musicais” entre compositores, pontos altos da festa (Carmo, Bi-
calho & Miranda, 2017, p. 162). Por causa desses “duelos”, a
festa passou a ser considerada “um centro obrigatório de lan-
çamento de música para o carnaval” (Tinhorão, 1975, p. 183).
Segundo Carmo, Bicalho & Miranda (2017, p. 163), aquela
primeira geração de sambistas criou o hábito de compor os seus
sambas ao mesmo tempo que se preparavam para não “fazerem
feio” na Festa da Penha.
A “morte musical” (Carmo, Bicalho & Miranda, 2017, p.
165) acontece na década de 1930, quando o rádio foi difun-
dido e passou a ser o principal meio de divulgação da música
popular. Ainda assim, a Penha continuou sendo lembrada na
letra de diversas músicas. Segundo Magalhães (2007), a Penha
aparece entre os bairros mais cantados da cidade: “Copacabana,
­Ipanema, Vila Isabel, Estácio, Mangueira, sem falar em Madu-
reira. A surpresa viria ao ser anunciado o bairro da Penha, entre
os mais cantados”.
Com o passar dos anos, o público da Festa da Penha foi di-
minuindo perdendo espaço para o tráfico de drogas, que cresceu,
principalmente a partir dos anos 1990. Contudo, ela continuou
acontecendo nas ruas e avenidas próximas e, posteriormente,
apenas na ladeira da Penha. Com o aumento da violência gerado
pelo tráfico de drogas, a Festa da Penha perde espaço e caracterís-
ticas de festa religiosa, passando, na década de 1990, a ser apenas
uma festa de rua.
Nos anos de 2010, o estado implanta a Unidade de Polí-
cia Pacificadora (UPP) – Vila Cruzeiro (localizada no morro da

68 ∫ Carla dos Santos Feltmann


Merendiba), diminuindo parcialmente a criminalidade e os con-
flitos armados e devolvendo ao bairro parte de sua tranquilidade.
A Igreja da Penha deixa de ser “mirante do tráfico” (Carneiro,
2010), a Festa da Penha volta a crescer e retorna às raízes de festa
religiosa tipicamente portuguesa, resgata-se o lugar de memória
que habita as lembranças de diversos grupos, novas tradições são
criadas e as antigas retornam.

Figura 10. Procissão de encerramento da 384.ª ­Festa


da Penha, comemorada no ano de 2019

Fonte: Acervo da Basílica.

No ano de 2020 os eventos religiosos e culturais foram sus-


pensos por causa da pandemia causada pelo novo coronavírus. A
função social exercida pela igreja, no entanto, ganhou destaque.
A arrecadação de alimentos aumentou e cestas básicas e pães fo-
ram distribuídos para outras comunidades além daquelas regu-
larmente assistidas pela Basílica.

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 69


Diretrizes para a conservação preventiva

Com a intenção de orientar os responsáveis pela manuten-


ção da Basílica a respeito dos procedimentos ideais para sua con-
servação, evitando assim maior desgaste da edificação; promo-
vê-la como bem cultural e ponto turístico do subúrbio carioca;
sensibilizar a população local e os visitantes sobre a importância
do patrimônio cultural e promover atividades que possam me-
lhorar a qualidade de vida da população local, foram sugeridas
diretrizes gerais a serem incorporadas ao plano de conservação
preventiva.
Foram utilizados como referência para essas diretrizes ge-
rais o Guia de Boas Práticas em Conservação Preventiva (He-
ritageCARE, 2019), o Manual de Conservação Preventiva para
Edificações (Kluppel & Cabral, 2000) e Madeira: Uso e Conser-
vação (Gonzaga, 2006).
Para sistematizar a execução destas adequações, elas foram
separadas de acordo com sua prioridade: alta (adequação às res-
pectivas normas vigentes prevenindo riscos para o usuário e para
o edifício, devendo ser implementadas em até um ano); média
(aquelas capazes de melhorar significativamente o funcionamen-
to da Basílica, mas que não são de vital importância, devendo ser
implementadas em até cinco anos); e baixa (itens que trarão al-
gum benefício para a Basílica, porém, não são fundamentais para
seu funcionamento, devendo ser implementadas nos próximos
dez anos). Alguns exemplos estão descritos a seguir.

Prioridade alta

• Recuperar as instalações elétricas e adequá-las às nor-


mas vigentes para diminuir o risco de incêndio e cur-
to-circuito. Solicitar que a RIOLUZ remova a fiação

70 ∫ Carla dos Santos Feltmann


elétrica que divide espaço com a tubulação de águas
pluviais, proporcionando local e passagem adequado.
• Rever o sistema de proteção contra descargas atmosfé-
ricas (SPDA). A Basílica, por ser o ponto mais alto da
região, recebe grande volume de descargas atmosféricas,
danificando equipamentos.
• Recuperar as escadas e lajes de acesso às torres sineiras
e instalar nova porta para o alçapão de acesso à cober-
tura, garantindo a estanqueidade dele e evitando novos
danos estruturais pela ação da água das chuvas.
• Quanto ao combate a incêndio, no momento conta-se
apenas com a presença de extintores para o combate
ao fogo, sendo necessário desenvolver e instalar sistema
de detecção e combate a incêndio, desenvolver plano
de segurança contra incêndio e pânico e promover for-
mação e treinamento periódico de brigada de incêndio
para os funcionários.

Prioridade média

• Desenvolver e instalar circuito fechado de TV (CFTV)


para monitorar as dependências da edificação, aumen-
tando assim a segurança para usuários, edificação e
acervo.
• Desenvolver plano de conservação contemplando,
além da edificação, o complexo como um todo, dando
especial atenção à escadaria, por esse ser um elemento
de destaque do complexo.
• Para melhor atender aos fiéis e turistas, aplicar as nor-
mas vigentes de acessibilidade à edificação.

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 71


• Contratar profissionais especializados para restaurar
todo o estuque que compõe o forro da nave, inclusive
os lustres e seus sistemas de roldanas.

Prioridade baixa

• Aprimoramento do sistema de som para reproduzir


com maior qualidade as missas, músicas católicas, ora-
ções e mensagens do reitor que já fazem parte da rotina
do bairro. Esse aprimoramento permitirá também que
o ambiente católico seja reproduzido durante o horá-
rio de funcionamento da Basílica para que os visitantes
possam desfrutar de um local propício para a oração.
• Preencher as lacunas das pedras que compõem o em-
basamento exterior, do mármore que compõe o emba-
samento no interior e do piso no interior da nave com
material compatível.
• Refazer e instalar as balaustradas de mármore (presbité-
rio) e madeira (nave) e recolocar o portão de ferro que
dava acesso ao presbitério para que a configuração do
interior se aproxime mais daquela existente no momen-
to do tombamento.

Diretrizes gerais para a edificação

• Para evitar que o edifício sofra maiores desgastes até a


conclusão das obras de restauração e o desenvolvimento
e a implementação do plano de conservação preventiva,
sugere-se uma série de diretrizes para a manutenção do
edifício partindo da avaliação das práticas existentes na
igreja atualmente e propondo melhorias.

72 ∫ Carla dos Santos Feltmann


• Manter as inspeções periódicas à cobertura (sobretudo
antes do período de chuvas e depois de fortes tempesta-
des) para verificar a presença de telhas faltantes ou da-
nificadas, de vegetação e de outros detritos que possam
obstruir as calhas, além do estado de conservação delas.
• Sob a cobertura, é preciso verificar a existência de ni-
nhos de aves ou outros animais e insetos e providen-
ciar sua remoção e limpeza do local. É necessário que
o funcionário responsável por essa atividade conheça o
local para evitar uma queda ao pisar sobre o forro. Veri-
ficar também e remover, quando possível (por ser local
muito alto e de difícil acesso ou porque no momento
da inspeção já existem ovos ou filhotes nos ninhos), os
ninhos de aves (em geral urubus) nas torres sineiras.
• Verificar também a existência de ninhos nas sancas do
forro em gesso no exterior da edificação. As fezes dos
pássaros podem manchar a pintura.
• É bom ressaltar a necessidade de uso de máscara pelo
funcionário responsável pela limpeza desses lugares
uma vez que fezes de animais e insetos podem ser pre-
judiciais à saúde.
• Observar as trincas e rachaduras existentes nas paredes
para verificar se há evolução delas. No caso de edifícios
históricos, o solo já se encontra assentado, porém mu-
danças no ambiente ao redor do edifício (como obras,
tráfego intenso de veículos) podem acarretar novo as-
sentamento do solo.
• Diversos pisos em madeira apresentam perda de ca-
mada protetiva, sendo necessário remover os resíduos
existentes e aplicar nova camada para proteção e maior
durabilidade do piso.
• Quanto aos forros em madeira, remover as peças degra-
dadas que não possam ser reaproveitadas, substituir por

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 73


novas com as mesmas características, tratar todo o forro
existente para aumentar a resistência à água e aplicar
nova camada de pintura.
• Evitar a substituição de elementos faltantes, reformas e
acréscimos sem critério para que não haja descaracteri-
zação do edifício.
• Evitar a utilização de materiais abrasivos para a limpeza,
dando preferência, de acordo com a situação, a panos
secos, ou panos umedecidos, ou detergentes neutros,
ou solventes específicos.
• A Basílica da Penha é um ponto turístico que recebe
diversos visitantes, entende-se, portanto, a necessidade
de sinalização. Deve-se preferir a utilização de totens
apoiados no piso, evitando o uso de adesivos, pois eles
deixam resíduos sobre a superfície que, muitas vezes,
são difíceis de remover, necessitando de solvente espe-
cífico. No caso dos locais onde já foi utilizado adesivo
para a sinalização, removê-lo, bem como seus resíduos,
com solvente específico.
• Repintar a edificação como um todo para eliminar as
diversas manchas existentes. Posteriormente, apenas
manter a pintura. Remover, pelo menos em parte, a
camada de pintura lisa que se encontra sobre a pintura
decorativa no presbitério.
• A existência de vegetação nas fachadas costuma estar re-
lacionada à presença de umidade (infiltração). Remover
a vegetação existente nas fachadas e verificar a existên-
cia de umidade nessas regiões.
• Verificar o aparecimento de novas lacunas no embasa-
mento em pedra do exterior, em mármore do interior e
no piso também em mármore do interior da nave.

74 ∫ Carla dos Santos Feltmann


• Verificar a estanqueidade das esquadrias antes e de-
pois das chuvas. Substituir vidros quebrados quando
necessário.
• Promover, diariamente, a limpeza e remoção dos inse-
tos que são atraídos pela luz.

Considerações finais

Ao pesquisar a história da Igreja da Penha em fontes pri-


márias — atas de reunião, livros de tombo, livros de contas etc.,
pertencentes à Venerável Irmandade — percebe-se uma série de
detalhes que a tornam ainda mais rica.
Diante da importância da Igreja da Penha e da situação
precária atual, faz-se imperativa a definição de estratégias para
conservação e restauro. Reconhecendo a necessidade de um pro-
cesso de sensibilização de membros da administração, funcioná-
rios, voluntários e visitantes sobre a importância da igreja e sua
promoção como bem cultural, e com a intenção de melhor ins-
truí-los a respeito de formas adequadas de utilização do espaço,
esse trabalho reúne subsídios para um plano de conservação pre-
ventiva a ser aplicado visando evitar maiores desgastes na edifica-
ção e garantir a sua conservação em longo prazo, até mesmo após
as obras de restauro, para maior durabilidade das intervenções.
Atualmente a Venerável Irmandade compreende a im­
portância da Igreja da Penha e de sua manutenção, avançando
nessa direção ao contratar empresa especializada para desenvol-
ver o projeto de restauro que, espera-se, possa ser implementado
em breve.
A pesquisa realizada contribuiu para uma maior compreen-
são sobre a história do conjunto onde está inserida a igreja e
das práticas sociais e culturais realizadas nesses espaços, suas ca-
racterísticas construtivas, o contexto em que está inserida e os

Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 75


valores atribuídos na contemporaneidade pelos diferentes atores.
A partir da elaboração do diagnóstico de conservação foi possível
identificar suas principais vulnerabilidades e elaborar uma lista
abrangente dos riscos. A partir disso serão propostas estratégias
de curto, médio e longo prazos para garantir a preservação da
igreja com foco na prevenção de danos, bem como uma progra-
mação das atividades rotineiras de conservação a serem realizadas
pela equipe local de manutenção com o apoio de voluntários.
A Igreja da Penha é um lugar de muita devoção, diversos
são os relatos de milagres e as demonstrações de fé. O amor pela
Igreja da Penha e pela Igreja Católica como um todo, e a devo-
ção mariana transparecem em cada ação: no voluntariado, na
subida da escadaria, nas missas, nas festas. Fica claro que a Igreja
da Penha é a casa da comunidade que a frequenta e que essa co-
munidade é uma família.
Ao observar esta relação do usuário com a igreja percebe-se
que aquilo que se encontra deteriorado não chegou nesse estágio
por descaso, mas por falta de verba e conhecimento.
Espera-se que este trabalho seja útil para a administração da
Igreja da Penha e que dê frutos para os fiéis que a visitam.

Referências

ARAÚJO, J. S. A. P. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Rio de


Janeiro: Imprensa Nacional do Rio de Janeiro, 1945.
ASTORGA, J. Entrevista concedida a Carla dos Santos Feltmann. Rio
de Janeiro, mai. 2021.
BASÍLICA Santuário Mariano Arquidiocesano de Nossa Senhora da
Penha de França. Livro de Atas de Mesas Ordinárias e Termos de
Eleição, 1859-1876.
BASÍLICA Santuário Mariano Arquidiocesano de Nossa Senhora da
Penha de França. Livro de Atas de Mesas Ordinárias e Termos de
Eleição, 1936-1946.

76 ∫ Carla dos Santos Feltmann


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Planos de conservação preventiva para edifícios históricos... ∫ 79


3.
A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA GESTÃO
SUSTENTÁVEL DO PATRIMÔNIO CULTURAL:
UM ESTUDO SOBRE O PLANO
DE REQUALIFICAÇÃO DO NÚCLEO
ARQUITETÔNICO HISTÓRICO
DE MANGUINHOS (NAHM)

Roberta dos Santos de Almeida1

1 Arquiteta e urbanista. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Preser-


vação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de
Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a dissertação intitulada
A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural: um estudo
sobre o Plano de Requalificação do Núcleo Arquitetônico Histórico de Mangui-
nhos (NAHM/FIOCRUZ), sob orientação do professor doutor Marcos José
de Araújo Pinheiro, em 2021. A pesquisa contou com a bolsa institucional
concedida pelo Programa de Incentivo ao Desenvolvimento Institucional
(PIDI) da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Contato: arq.
[email protected].

80 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


O
presente capítulo adota como base os conceitos de cul-
tura, conservação integrada e sustentabilidade a fim de
subsidiar o debate sobre a importância da participação
social para a promoção da gestão sustentável do patrimônio cul-
tural. Integra como objeto de estudo o Plano de Requalificação
do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (NAHM),
em fase de implementação pela Casa de Oswaldo Cruz (COC),
unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz (FIO-
CRUZ), e parte dos resultados e reflexões realizados ao longo de
um curso de mestrado (2019-2021). A metodologia de pesqui-
sa adotada foi sistematizada a partir do manual do Rehabimed,
uma rede interdisciplinar do Mediterrâneo que opera por meio
dos conceitos da sustentabilidade, e incluiu, além de etapas de le-
vantamento bibliográfico, a elaboração de um diagnóstico social
com o objetivo de compreender o cenário de colaboração e par-
ticipação no contexto desse Plano. Por fim, busca refletir sobre
a relação que os grupos do território demonstraram estabelecer
com os espaços histórico-culturais do NAHM.

A importância da participação social

A ampliação das noções de patrimônio e cultura nos úl-


timos anos, compreendendo a diversidade humana e a relação
entre o homem e o ambiente que o cerca, levou a um aumento
da demanda por participação social e sua reivindicação por di-
versos grupos, resultando no seu entendimento como “direitos
culturais”. Historicamente, esses direitos foram inaugurados pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização
das Nações Unidas (ONU, 1948) e consolidados nos processos
de gestão patrimonial e nas políticas de preservação, principal-
mente, com a publicação da Declaração de Amsterdã (1975)
onde se lê que “uma política de conservação implica também a

A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 81


i­ntegração do patrimônio na vida social” (Conselho da Europa,
1975, p. 6). Hoje, os direitos culturais podem ser compreendi-
dos como exercício de cidadania e defendidos como parte in-
dissociável e interdependente dos direitos humanos (UNESCO,
art. 5.°, 2002).
No Brasil, a demanda por participação social em contexto
político ganhou força a partir do período da redemocratização,
na década de 1980, com as numerosas discussões e manifestações
pelos diversos direitos violados ao longo do período de ditadura
militar. Esse cenário culminou na difusão e na consolidação da
participação social e da democratização dos direitos humanos
e culturais, chancelados na Constituição Brasileira de 1988, e
colaborou para promover a compreensão ampliada dos conceitos
de cultura e saúde (Santos & Pinheiro, 2020).
Importante, nesse ponto, trazer o tema da saúde, ainda que
brevemente, pois o acesso à cultura é considerado um dos fatores
que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e que inter-
ferem no bem-estar e nas condições de vida da população, sendo
assim um dos determinantes sociais de saúde (DSS). Entende-
-se que a cultura é um dos condicionantes, dentre os sociais,
econômicos, psicológicos, étnico/raciais e comportamentais, que
auxiliam na promoção da saúde e da qualidade de vida, e que
contribuem para a diminuição das iniquidades sociais (Buss &
Pellegrini, 2007).
De maneira complementar, observa-se que o conceito de
sustentabilidade também se desenvolve a partir dos sujeitos e da
importância da participação social. A sua compreensão é pro-
duto de uma construção social permanente e complexa, fruto
de múltiplos debates em tempos e com base em vivências diver-
sas, em escala local, regional, nacional e mundial. Instituições
e governos, em responsabilidade compartilhada com os cida-
dãos, buscam construir agendas e políticas para desenvolver boas
­práticas a fim de atender às necessidades e aspirações humanas

82 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


das ­gerações presentes sem comprometer os recursos e o ambien-
te para as futuras gerações. Ao associar o conceito de sustenta-
bilidade ao patrimônio, Acselrad (1999) refere-se aos valores e
à identidade construídos ao longo do tempo, em que os valores
atribuídos ao bem pelos diversos grupos da sociedade, estabele-
cendo diferentes relações e apropriações, podem constituir um
ponto central para a gestão sustentável do patrimônio.

Caso de estudo: Núcleo Arquitetônico


­Histórico de Manguinhos

O NAHM, faz parte do campus Manguinhos da Funda-


ção Oswaldo Cruz (FIOCRUZ - Rio de Janeiro) e sua vocação
está orientada ao apoio às atividades científicas, socioculturais,
educativas e administrativas da instituição. É formado por um
conjunto de edificações e jardins históricos que incorporam o
estilo eclético, idealizado pelo cientista brasileiro Oswaldo Cruz
e projetado pelo arquiteto português Luiz Moraes Júnior no iní-
cio do século XX. Fazem parte do conjunto original os seguin-
tes edifícios: Pavilhão Mourisco (1905-1918), Pavilhão da Peste
(1904-1905), Cavalariça (1904), Pavilhão Figueiredo Vascon-
celos, também conhecido como Quinino (1919-1921), Casa de
Chá (c. 1905) e o seu anexo (c. 1920), Pombal (1904), assim
como as áreas verdes e jardins da Praça Pasteur e do Caminho
Oswaldo Cruz. Atualmente, a FIOCRUZ também possui outro
núcleo arquitetônico histórico em seu sítio, o qual integra exem-
plares da arquitetura moderna, construídos entre as décadas de
1940 e 1950.

A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 83


Figura 1. Foto histórica do NAHM (sem data)

Fonte: Acervo COC.

Esse conjunto conforma uma área de preservação com va-


lores históricos e culturais reconhecidos pela sociedade civil e
chancelada pelos órgãos de proteção ao patrimônio cultural na-
cional, estadual e municipal — Instituto do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (IPHAN), Instituto Estadual do
Patrimônio Cultural (INEPAC) e Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade (IRPH). Sua gestão integra diferentes políticas
de âmbito institucional com o intuito de preservar, valorizar e
compartilhar esse patrimônio cultural com a sociedade, concen-
tradas, especialmente, na unidade técnico-administrativa COC,
dedicada à valorização da memória da FIOCRUZ e às atividades
de pesquisa, ensino, documentação e divulgação da história da
saúde pública e das ciências biomédicas no Brasil.
As edificações integradas ao NAHM, ademais de serem
ocupadas por atividades administrativas e técnicas, também

84 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


f­azem parte do circuito de visitação do Museu da Vida Fiocruz2
e, em 2014, passaram a integrar um plano de requalificação.
Entende-se por requalificação uma estratégia de preservação e
valorização do patrimônio cultural que se desenvolve com base
em propostas de reorganização dos usos atuais e de novos usos
adaptados ao bem. O Plano de Requalificação do NAHM (Fun-
dação Oswaldo Cruz, 2014) tem como objetivo ampliar a oferta
de atividades socioculturais, divulgação científica e educação em
ciências, tecnologia, saúde e cultura, de maneira a conformar um
campus parque aberto e acessível à sociedade.
Esse plano adota princípios orientados pela sustentabilida-
de e abarca as suas dimensões social, política, econômica, cultu-
ral e ambiental de maneira a compreender a complexidade do
núcleo histórico engendrado à estrutura institucional e, ao mes-
mo tempo, ao território3 do qual é parte indissociável. Há uma
grande disparidade entre a FIOCRUZ e os bairros que a mar-
geiam, com perceptíveis contrastes socioeconômicos, e que se
manifesta também no acesso à cultura e no exercício dos direitos
culturais da população. Por outro lado, observa-se a instituição
como ator social que interage e se relaciona com esse território de
forma a colaborar para uma melhoria da qualidade de vida local,

2 O Museu da Vida é um departamento vinculado à COC, criado em 1999,


dedicado à divulgação e popularização das ciências. Possui no campus Man-
guinhos diferentes espaços culturais que conformam um circuito para visita-
ção gratuita e aberta à sociedade. No final de 2022, o museu passou a adotar
a nomenclatura “Museu da Vida Fiocruz” como estratégia de consolidar a
integração das atividades socioculturais oferecidas à instituição de saúde de
maior renome na América Latina e no mundo.
3 A noção de território no presente trabalho segue o conceito difundido por
Milton Santos (2017), compreendendo-o como espaço polissêmico forma-
do por um conjunto de formas, objetos e ações humanas e onde é possível
identificar um ator (individual, social ou coletivo) que exerce poder sobre
determinada área.

A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 85


o que se expressa por meio do seu esforço em integrá-lo a suas
políticas e seus programas institucionais.
Como fruto do desenvolvimento de diversas políticas de
preservação elaboradas pela COC para o campus Manguinhos,
observa-se que, dentre os princípios norteadores do Plano de
Requalificação do NAHM, há uma busca pela intensificação da
relação com a população do território, especialmente de Man-
guinhos e Maré, e pela construção coletiva dos espaços sociocul-
turais. A própria adoção dos conceitos de conservação integrada
e de sustentabilidade pelo plano do NAHM favorece a participa-
ção social e pode contribuir para o exercício dos direitos cultu-
rais. Portanto, entender como ocorre essa participação na prática
se torna importante para identificar e possibilitar a elaboração
de demandas socioculturais capazes de incluir e representar os
sujeitos desse território, o que irá colaborar, por outro lado, para
a própria gestão e preservação sustentáveis desse sítio histórico.
Assim, o problema de pesquisa aqui exposto se desenvolveu
com base em alguns questionamentos: “Como os integrantes do
território se relacionam com a FIOCRUZ e com os espaços do
NAHM?”, “Como a COC tem intermediado a relação entre esse
patrimônio e a sociedade?”, “Qual a percepção dos grupos do
território sobre o NAHM e o seu Plano?”.

86 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


Figura 2. Imagem aérea da FIOCRUZ e entorno geográfico

Fonte: Base Google Earth, 2022.

O trabalho desenvolvido ao longo do curso de mestrado


da autora (2019-2021), que dá base ao presente texto, se con-
centrou no conceito de sustentabilidade e adotou como base
metodológica o manual do Rehabimed (Casanovas, 2008), cuja
referência se originou a partir do seu uso no próprio Plano de
Requalificação do NAHM. Trata-se de uma rede interdisciplinar
que opera na região do Mediterrâneo utilizando uma metodo-
logia que busca auxiliar e facilitar a promoção, o planejamento
e a implementação da reabilitação urbana e patrimonial como
fator importante ao desenvolvimento sustentável. O seu manual
se configura como uma ferramenta de referência para a sistema-
tização das etapas e dos processos identificados pelo grupo para
criar a reabilitação sustentável de edificações e áreas urbanas ba-
seando-se na realidade de cada território.
A partir da compreensão dessa metodologia, adaptando as
fases propostas no manual do Rehabimed ao cenário do NAHM,
o trabalho de pesquisa se dividiu da seguinte maneira:

A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 87


Fase 1: Base: A pesquisa iniciou com a identificação do pro-
blema, elemento importante para refletir sobre o arcabouço con-
ceitual que seria adotado, e seguiu com a etapa de decisão sobre
a necessidade de agir, ou seja, a justificativa do projeto. A partir
da construção desse contexto teórico, foi possível prosseguir para
a delimitação da área de intervenção, compreendendo as relações
históricas do território do qual a FIOCRUZ é parte, e para a
identificação dos grupos de interesse, sendo aqueles considerados
essenciais para participar do processo de construção coletiva do
Plano de Requalificação do NAHM.
Fase 2: Diagnóstico: Nessa fase foi realizada a análise das
políticas da instituição de maneira a compreender o contexto
político institucional em que o objeto se insere. As etapas seguin-
tes contaram com a elaboração do escopo do diagnóstico, que
incluiu a escolha da metodologia de pesquisa qualitativa, e com
o levantamento de dados e informações sobre o plano de requa-
lificação e sobre o território. Foram realizadas entrevistas com
diferentes integrantes das equipes dedicadas ao desenvolvimento
e à gestão do plano a fim de compreender o conjunto de inicia-
tivas realizadas pela COC que buscam promover a participação
social de algumas formas.
Essa etapa também contou com a aplicação de questioná-
rios para os grupos do território incluindo questões objetivas e
discursivas, o que possibilitou a identificação de seu perfil, suas
expectativas e opiniões a respeito do NAHM e do seu plano de
requalificação. Por fim, para a análise dos dados produzidos, a
autora seguiu metodologias de codificação, categorização, análi-
ses de conteúdo e reflexão a partir de hipóteses de pesquisa.
Fase 3: Conclusão: Nessa etapa final foi realizada a consoli-
dação do diagnóstico e reflexão com base no cenário encontra-
do seguindo as premissas de sustentabilidade e busca por casos
semelhantes.

88 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


De acordo com Gil (2008, p. 26), pode-se definir pesquisa
social “como o processo que, utilizando a metodologia científica,
permite a obtenção de novos conhecimentos no campo da reali-
dade social”. O método de pesquisa qualitativa foi aplicado para
realização do diagnóstico com intuito descritivo, a fim de iden-
tificar a percepção de sentimentos, comportamentos, opiniões e
crenças. O objetivo era compreender, especialmente, a relação
entre os sujeitos do território em que a FIOCRUZ está inserida
e o patrimônio do núcleo histórico.
As referências do campo entendem a pesquisa social con-
dicionada aos fatores socioeconômicos e políticos da época e do
contexto geográfico que lhe são próprios. Assim, o trabalho de
pesquisa realizado e referenciado neste texto também está in-
serido em um processo histórico, dentro de um determinado
contexto do qual depende para que seja compreendido. Se faz
necessário salientar, nesse ponto, que todos os procedimentos de
pesquisa precisaram ser reavaliados e adaptados de muitas for-
mas diante do cenário pandêmico provocado pelo vírus da Co-
vid-19, que irrompeu o mundo no ano de 2020 e que permanece
até os dias atuais.
No Brasil, ao longo desses anos foram implementadas di-
ferentes determinações de medidas restritivas e de isolamento
social, incluindo a suspensão de atividades que não fossem con-
sideradas essenciais à sobrevivência humana. O período de maior
impacto dessa pandemia, ocorrida entre 2020 e 2021, afetou
profundamente as condições de trabalho, educação, moradia,
alimentação e transporte, enfim, dos diversos condicionantes so-
ciais relativos a escalas individuais e coletivas que incidem sobre
as condições de saúde da sociedade. No que tange ao trabalho de
pesquisa, a implementação de metodologias participativas, em
formato presencial e de contato físico, foi impossibilitada. Como
alternativa para viabilizar a realização do diagnóstico e de ma-
neira a tentar compreender o cenário da participação social no

A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 89


contexto do NAHM, a aplicação de questionários e a condução
de entrevistas ocorreram de maneira virtual, utilizando diferen-
tes redes sociais e ferramentas da internet.

Algumas reflexões

A partir das análises de pesquisa, foi possível perceber o


NAHM como espaço polivalente que absorve diversos significa-
dos atribuídos pelos grupos do território. Por um lado, têm-se
os elementos arquitetônicos e urbanísticos valorizados por sua
estética e pela história que representam para a saúde pública no
Brasil. Por outro, sobressaem as experiências museais e ativida-
des socioculturais ofertadas pela instituição voltadas à valoriza-
ção e à popularização das ciências. Para os grupos participantes
da pesquisa, que se dividiram entre comunidade interna (tra-
balhadores, bolsistas e estudantes da FIOCRUZ) e moradores
do território (moradores de sete bairros vizinhos pertencentes
à região de influência do Museu da Vida Fiocruz), o NAHM
manifesta diferentes representações: para os internos, o núcleo
simboliza a memória e a identidade institucional, concentrados
na imagem do Castelo Mourisco; para o território, o NAHM se
apresenta como marca da inserção da FIOCRUZ na zona norte
da cidade, especialmente no bairro de Manguinhos cuja origem
está diretamente atrelada à instituição.
No caso da perspectiva do Museu da Vida Fiocruz, está
integrado à essência museológica o seu papel como agente de
transformação social, inclusão, diversidade, democratização e
participação da sociedade. Entretanto, esse papel não se limita ao
Museu e acaba por se estender aos demais departamentos inte-
grados ao Plano de Requalificação do NAHM e ligados à COC,
unidade técnico-científica da FIOCRUZ dedicada à valorização
de sua memória e principal responsável pelo desenvolvimento

90 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


desse plano. Destaca-se o Departamento de Patrimônio Históri-
co (DPH), onde se concentram também variadas iniciativas que
contribuem para o reconhecimento e a valorização do patrimô-
nio cultural e sua construção coletiva.
Desde a concepção do plano de requalificação, a COC tem
conduzido iniciativas em pontos estratégicos para promover a
participação de diferentes profissionais da FIOCRUZ nos pro-
cessos de discussão dos projetos e em parcerias para implementar
as intervenções que fazem parte do escopo do plano, principal-
mente nas áreas de arquitetura e urbanismo, ligadas ao DPH, e
de exposições, ligadas ao Museu da Vida.
Os processos de debate, organização e coordenação dos
projetos vinculados ao plano são estruturados a partir de pro-
gramas e ficam a cargo de diferentes Grupos de Trabalho (GTs),
formados por equipes multidisciplinares e envolvendo trabalha-
dores de diferentes unidades e setores da instituição. Observa-se
que tal estrutura favorece a participação social e colabora para
a construção de propostas plurais e democráticas. Contudo, a
pesquisa demonstrou a sua limitação quanto à participação dos
agentes externos à FIOCRUZ, reduzidos a especialistas, e, prin-
cipalmente, sua baixa interface com os agentes pertencentes ao
território (Almeida & Pinheiro, 2022).
De maneira complementar, os resultados da pesquisa ainda
demonstraram algumas falhas em relação às estratégias de divul-
gação e de integralização de propostas que promovessem o en-
volvimento e a participação dos grupos de interesse no Plano de
Requalificação do NAHM. Mas observa-se que, desde então, os
GTs dedicados ao plano têm se voltado a melhorar esse cenário
tendo em vista aproximar e aumentar a colaboração dos grupos
socioculturais do território. Portanto, cabem novos levantamen-
tos e pesquisas para avaliar se as medidas empreendidas têm sido
mais efetivas na promoção da participação social na gestão sus-
tentável do NAHM.

A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 91


Considerações finais

O debate sobre a participação da sociedade civil tem se


aprofundado cada vez mais, permeando os variados estudos que
tratam da construção das cidades e dos espaços coletivos que a
compõem, e diferentes experiências têm demonstrado os bene-
fícios e desafios que estão nesse caminho. Em políticas patrimo-
niais se tem afirmado, cada vez mais, a importância de processos
participativos, compreendendo o patrimônio cultural como par-
te fundamental da vida social. Nesse sentido, há uma série de fer-
ramentas e estratégias que auxiliam no desenvolvimento desses
trabalhos e que operam a participação social em dois sentidos: na
própria construção desse processo e na apropriação desse patri-
mônio, ambas as perspectivas exploradas no trabalho de pesquisa
de que trata o presente capítulo.
A realização de pesquisa social e as análises de seus resulta-
dos apresentadas demonstram a importância desse método para
identificar e reconhecer as diferentes opiniões, reivindicações e
carências de uma população com base no tempo e nas condições
sociais em que são interdependentes. Se fazem, portanto, essen-
ciais no caminho para a identificação de demandas sociais, no
presente caso para o avanço do nível de participação social na
implementação do Plano de Requalificação do NAHM.
O cenário de fragilidades verificado no território onde a
FIOCRUZ campus Manguinhos está inserida nos mostra a re-
levância de pensarmos o exercício dos direitos culturais tendo o
patrimônio cultural como base desses direitos, no qual, a partir
de suas múltiplas manifestações, “constitui na sua matriz a força
motriz do pertencimento que estabelece nossas identidades e ca-
racteriza os bens culturais como bens de uso público, de todo o
povo brasileiro” (Bastos, 2012, p. 86).

92 ∫ Roberta dos Santos de Almeida


Agradecimentos

Agradeço meu orientador Marcos José de A. Pinheiro pelo


incentivo e pela parceria ao longo de toda a pesquisa e nos seus
desdobramentos. Agradeço aos professores e profissionais do
Curso de Mestrado Profissional da Casa de Oswaldo Cruz/FIO-
CRUZ pelo acolhimento e aprendizado ao longo da minha jor-
nada. À Fundação de Apoio à FIOCRUZ (FIOTEC), pela bolsa
de estudos concedida por meio do Programa de Incentivo ao
Desenvolvimento Institucional (PIDI). Aos integrantes dos GTs
do NAHM pela troca de experiências e a todos os entrevistados
e participantes da pesquisa pela colaboração.

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A participação social na gestão sustentável do patrimônio cultural... ∫ 95


4.
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL DA SAÚDE:
O PAVILHÃO HENRIQUE ARAGÃO

Bianca Sivolella 1

A
vocação institucional da Fundação Oswaldo Cruz
(FIOCRUZ) em prol da saúde pública pode ser evi-
denciada, para gerações mais novas, pela história re-
cente, em sua atuação na pandemia. Também é mostrada em
sua história, registrada pela própria instituição e por estudio-
sos, em publicações e ações de preservação e valorização de

1 Arquiteta. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Preservação e


Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de Oswal-
do Cruz (PPGPAT/COC), desde 2022, onde desenvolve pesquisa intitulada
Patrimônio Industrial da Saúde: A requalificação do laboratório de produção de
vacinas contra febre amarela na Fiocruz, sob orientação do professor doutor
Renato Gama Rosa Costa e coorientação da professora doutora Carla Maria
Teixeira Coelho. A pesquisa conta com a bolsa institucional concedida pelo
Programa de Incentivo ao Desenvolvimento Institucional (PIDI) da Casa de
Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Contato: [email protected]

96 ∫ Bianca Sivolella
sua memória. Essa instituição, criada há mais de um século,
pode ser compreendida pela sociedade de forma empírica, no
nosso dia a dia, e de forma materializada no seu edifício-sede
e principal símbolo, o Pavilhão Mourisco. Na área de arquite-
tura e urbanismo, outras edificações e outros campi, suscitam
interesse de pesquisadores, para além do Pavilhão Mourisco.
A expansão da instituição desde a metade do século XX até os
dias atuais, associada ao aumento do número de edificações
no campus Manguinhos e a criação de novos campi em todo o
Brasil, mostra sua vivacidade em meio a governos, crises eco-
nômicas e políticas. Podem ser destacados nessa expansão ins-
titucional, os esforços para ampliação de pesquisa e produção
cientifica para a saúde, com foco na prevenção de doenças, por
meio de instalações criadas, especialmente para a produção de
vacinas, para as quais dedicamos parte deste capítulo.
A intenção deste artigo é apresentar um recorte temático
da minha dissertação para o mestrado profissional. Uma das
questões estudadas foi a pesquisa em torno do termo arquitetu-
ra de “laboratório” e sua inserção na temática sobre patrimônio
industrial, que se identifica em possíveis formas de utilização,
como, por exemplo: para medicina, biomedicina, química, bio-
logia, farmácia, medicina veterinária, história, engenharia e ar-
quitetura, tanto quanto para ensino, pesquisa, qualidade, análise
clínica e produção. A utilização como laboratório de produção
é a perspectiva mais interessante para esta pesquisa que preten-
de correlacioná-la ao patrimônio industrial. Outro recorte den-
tro de laboratório de produção pode ser utilizado no âmbito da
ciência e da saúde, referente à produção de vacinas. Esse tipo de
indústria carrega em si o viés tecnológico de ponta, diferente da
revolução industrial que utilizou carvão ou na fabricação têxtil
ou alimentícia. A indústria para produção de vacinas precisa de
uma rede de fornecedores, inclusive indústria química de base.
Por isso é fundamental correlacionar o volume de produção e a

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 97


infraestrutura construída na FIOCRUZ para estudar o tema do
patrimônio industrial envolvido para a produção de vacinas.
A infraestrutura construída para a produção em laborató-
rios na FIOCRUZ pode ser identificada em edifícios e comple-
xos industriais. O artigo “Entre a tradição e a inovação, o con-
junto arquitetônico da FIOCRUZ e a produção industrial para
a saúde”, reconhece, para além do núcleo original, dois outros
núcleos: o modernista e o industrial, além de reforçar a necessi-
dade de estudos sobre a influência dos projetos arquitetônicos na
produção industrial na FIOCRUZ (Coelho et al., 2021, p. 45).
Muitos autores tratam dos temas da produção de vacinas
em publicações reconhecidas, mas com abordagens temáticas
históricas ou de saúde pública. Para as abordagens mais usuais,
o termo infraestrutura pode ser utilizado para o objetivo fim da
produção em si, mas não está relacionado ao ambiente cons-
truído, que viabiliza a sua realização. Também utilizam o termo
infraestrutura para a realização da vacinação da população (logís-
tica e postos de saúde). Outra forma encontrada trata a infraes-
trutura na perspectiva dos insumos e equipamentos (indústrias
de base) e, por fim, a infraestrutura no aspecto do saneamento
(saúde coletiva, moradia e urbanismo). Esse entendimento tam-
bém ocorre para o termo “inovação”, muitas vezes utilizado para
entender um avanço tecnológico no processo de produção e não
na edificação que foi projetada.
Com o objetivo de agregar abordagens sobre patrimônio
industrial, científico e tecnológico às já reconhecidas pela ins-
tituição sobre patrimônio arquitetônico moderno, propomos
neste capítulo o estudo da arquitetura no laboratório de produ-
ção de vacinas, em particular, o Laboratório de Febre Amarela
(LAFAM) ou Pavilhão Henrique Aragão, para o qual se busca o
reconhecimento como lugar de memória, como descreve Nora
(1993) em seu livro Entre memória e história: a problemática dos
lugares.

98 ∫ Bianca Sivolella
Os núcleos de produção industriais
na FIOCRUZ

Na história da instituição, os dois primeiros edifícios cons-


truídos no campus foram o Pavilhão do Relógio ou Pavilhão da
Peste (entre 1904 e 1905), e o da Cavalariça (1904), edifícios
requintados para a época, que iniciaram a atuação de produção
laboratorial de soro e vacina contra a peste bubônica no Insti-
tuto Soroterápico Federal, atual FIOCRUZ (Benchimol, 2001
pp. 36 e 54). Outro edifício que compõe o núcleo original é o
Pavilhão da Química ou Quinino (1919 e 1922), que inicial-
mente abrigava áreas para produção de quinina, medicamento
usado para tratamento da malária. O edifício foi acrescido em
dois ­andares e abrigou áreas para produção de ampolas, envasa-
mento de medicamentos, rotulagem de embalagens e estoque de
materiais relacionados à produção dos medicamentos (Coelho et
al., 2021, p. 48).
A produção de soros e vacinas, então chamados produtos
biológicos, evoluiu de um conjunto de pequenos laboratórios
de produção, idealizados também como áreas de pesquisa e en-
sino sobre as doenças da época, para um complexo industrial
da saúde (Benchimol 2001, p. 54; Coelho et al., 2021, p. 47).
Esse núcleo inicial é reconhecido como Núcleo Original, para o
qual, neste capítulo, foi considerada a incorporação de mais três
núcleos industriais.
O período posterior foi marcado pela expansão da produção
de vacinas, quando foram construídos novos edifícios no campus
Manguinhos, tais como: o Pavilhão Rockefeller, o P ­ avilhão Ro-
cha Lima e o Pavilhão Henrique Aragão, que fazem parte do
Núcleo protomoderno e modernista (Coelho et al., 2021, p. 48).

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 99


Figura 1. Núcleo moderno. Fotos dos edifí-
cios: P
­ avilhão Rockfeller (1937), Pavilhão ­Henrique
­Aragão (1960) e Pavilhão Rocha Lima (1965)

Fonte: DAD/COC/FIOCRUZ.

As décadas seguintes marcam a evolução dos processos e


das tecnologias aplicadas às práticas laboratoriais de produção
que ganharam escala, mostrados tanto na multiplicação de edifi-
cações quanto na diversidade e no volume de produção. Um fato
marcante pode ser identificado em 1976, quando foi extinto o
Instituto Nacional de Produção de Medicamentos (IPROMED),
e criados o Laboratório de Tecnologia em Produtos Biológicos
de Manguinhos, atualmente Bio-Manguinhos, e o Laboratório
de Tecnologia em Quimioterápicos de Manguinhos, atualmente
Farmanguinhos (Benchimol 2001, p. 309), que deram origem à
fase mais contemporânea de produção de vacinas, medicamentos
e fármacos da instituição.
O Complexo Tecnológico de Vacinas (CTV) no campus
Manguinhos foi construído a partir de 1990. Em 1998 é inau-
gurado o Centro de Processamento Final de Imunobiológicos
(CPFI) no CTV (Benchimol 2001, p. 432). Esse grupo foi iden-
tificado como Núcleo Industrial por Carla Coelho e demais au-
tores (2021, p. 48). Tal denominação pode propiciar percepções
distintas por se tratar de dois termos com amplitude diferentes
para este artigo, “núcleo” — com conotação geográfica, e como
tema de estudo.

100 ∫ Bianca Sivolella


Figura 2. Fotos aéreas dos núcleos: Núcleo original (Pavilhão
­Mourisco, Pavilhão do Relógio e Cavalariça), Núcleo moderno (Pavi-
lhão Rockefeller, Pavilhão Henrique Aragão e Pavilhão Rocha Lima),
Núcleo industrial (Centro Tecnológico de Vacinas/CTV) e Núcleo
tecnológico (Complexo Industrial de Biotecnologia em ­Saúde/
CBIS e Complexo Tecnológico em Insumos Estratégicos/CTIE)

Fonte: DAD/COC/FIOCRUZ e site Bio-Manguinhos – FIOCRUZ.

A expansão da produção de vacinas ocorre até os dias atuais,


com o Novo Centro de Processamento Final (NCPFI), deno-
minado em 2015 como Complexo Industrial de Biotecnologia
em Saúde (CIBS), localizado em Santa Cruz-RJ, e com a planta
industrial que produzirá imunobiológicos com base em plata-
formas vegetais no Polo Industrial da Saúde, no município de
Eusébio-CE (site Bio-Manguinhos História <https://www.bio.
fiocruz.br/index.php/br/home/historia>. Acesso em: dez. 2022),
ambos em construção. Esse grupo pode ser denominado Núcleo
Tecnológico.
Podemos considerar que o patrimônio científico e tecnoló-
gico da instituição é também constituído pelas áreas industriais,
por meio de uma perspectiva evolutiva de desenvolvimento dos
núcleos e edifícios industriais. Atualmente, o Pavilhão Henrique
Aragão é reconhecido como patrimônio industrial modernista
da instituição, em artigos e publicações, mas isso só ocorreu na
última década, aproximadamente. É possível supor que o fato
de ainda estar em uso tenha dificultado sua identificação, como
ocorre em muitos casos com os hospitais. Contudo, exempla-
res modernistas também podem sofrer obsolescência histórica

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 101


por outras motivações, talvez políticas ou por conta do próprio
­desgaste da arquitetura. Em uma percepção inicial, que ainda
deve ser comprovada na dissertação, pode ocorrer a falta de
valorização como patrimônio pelo seu uso. A mística sobre o
tema e suas repercussões são relevantes a partir de eventos his-
tóricos como a “Revolta da Vacina”,2 ou em atos negacionistas
que, infelizmente, chegam até os dias atuais. A transformação
interna de tais infraestruturas, diante do avanço dos processos
industriais, igualmente pode impactar na percepção atual dos
edifícios e de sua arquitetura. Por exemplo, os laboratórios de
produção não são mais contíguos com áreas de experimentação
animal, que passou a ser realizada em área separada. Esse tipo
de procedimento pode permanecer como registro histórico na
hora de se identificar salas “para cobaias” em tais espaços. Outro
fator são as bases de multiplicação em processos, como os que
continuam sendo de base animal, mas cada vez menos visíveis a
olho nu. No caso do laboratório de produção de vacinas contra
febre amarela, o que se utilizava (e ainda se utiliza), como base de
multiplicação, são ovos de galinha. Por conta dessa especificida-
de, sua arquitetura reproduz, no pilar externo de sua estrutura, a
forma do ovo, marcando com muita peculiaridade a identidade
do prédio. Todos esses fatos aqui descritos mostram o quão é ne-
cessário se preservar uma edificação com o uso industrial e para a
saúde. Suas intenções construtivas, seu programa e as alterações
decorrentes estão ali materializadas e, assim, devem permanecer,
o mais possível.

2 Movimento popular ocorrido no Rio de Janeiro entre os dias 10 e 16 de


novembro de 1904, caraterizado pela revolta contra a obrigatoriedade da va-
cina antivariólica instituída por lei em 31 de outubro daquele ano. Houve
também forte oposição à vacina por parte de setores do Exército vinculados
ao positivismo, bem como de alguns intelectuais muito influentes à época.

102 ∫ Bianca Sivolella


O laboratório de vacina contra febre amarela

O Pavilhão Henrique Aragão tem especial importância


como patrimônio industrial na FIOCRUZ, além de se destacar
por pertencer ao conjunto modernista implantado até a década
de 1960 (Fundação Oswaldo Cruz, 2014). Outro aspecto que
o diferencia é que a técnica de produção de vacinas utilizada
no interior da edificação produz, ainda hoje, vacina contra febre
amarela. O edifício foi projetado para essa utilidade (Benchi-
mol, 2001, p. 219) e vem sofrendo adaptações para comportar
avanços tecnológicos e normativas nacionais e internacionais.
Algumas alterações são visíveis na parte externa da edificação,
alterando o projeto proposto inicialmente.

Figura 3. Fachada fundos do Pavilhão Henrique Aragão

Fonte: Fotos do acervo pessoal da autora, 2022.

Desde 1937, as preparações vacinais são obtidas em seus la-


boratórios a partir do vírus atenuado da febre amarela, cultivado
em ovos embrionados de galinha livres de agentes patogênicos
(Benchimol, 2001, p. 423).
A participação e a influência iniciais da Fundação Rockefel-
ler na área governamental de saúde pública, no combate à febre
amarela foi confirmada a partir da década de 1930, por meio da
construção do Pavilhão Rockefeller (1935 e 1937) e da ­atuação

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 103


da equipe norte-americana durante os anos 1930 e 1940, com es-
trutura organizacional específica e ímpar na história de ­combate
a uma endemia. O Pavilhão Rockefeller abrigava área de produ-
ção e pesquisas sobre a doença (Coelho et al., 2021, p. 51).
O Pavilhão Rockefeller inicialmente foi utilizado para pro-
dução do soro e da vacina contra febre amarela (Coelho et al.,
2021, p. 46) e posteriormente o Pavilhão Henrique Aragão foi
construído, incorporando tecnologias de ponta para a época. O
edifício foi projetado para essa produção de vacinas e utiliza qua-
se a mesma disposição de compartimentos, com alguns ajustes
de antecâmaras e fluxos.
Em setembro do ano de 2001, Bio-Manguinhos obteve a
certificação nacional de Boas Práticas de Fabricação (BPF) da
vacina contra a febre amarela, emitida pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA), e em outubro do mesmo ano,
a unidade alcançou a qualificação da Organização Mundial de
Saúde (OMS) para atuar como fornecedora internacional desse
produto, fato inédito na área de produção de vacinas no Brasil.
Três anos depois, em 2004, a unidade bateu recorde de expor-
tação de vacinas contra febre amarela, com mais de 26 milhões
de doses, três vezes mais do que o ano anterior. Em 2006, Bio-
-Manguinhos desenvolveu uma nova apresentação em 10 doses
para vacina, também feita em 5 doses e posteriormente para 50
doses (site Bio-Manguinhos História <https://www.bio.fiocruz.
br/index.php/br/home/historia>. Acesso em: dez. 2022).
Em 2016, Bio-Manguinhos foi acionado pela OMS a ex-
portar vacina contra a Febre Amarela para Angola e República
Democrática do Congo. Já com o surto de febre amarela em
2017 e 2018 no Brasil, o Ministério da Saúde demandou um
grande quantitativo de doses e Bio-Manguinhos apresentou o
Estudo de Dose-Resposta da Vacina Febre Amarela 17DD, que
consiste em administrar com uma dose reduzida, sendo adotada
a dose fracionada (um quinto da dose) para ampliar a cobertura

104 ∫ Bianca Sivolella


vacinal no país. Em 2018, 30 milhões de doses foram entregues
ao Programa Nacional de Imunização. Já em 2021 fez acordo
para fornecimento do kit de diagnóstico molecular febre amarela
(ite Bio-Manguinhos História <https://www.bio.fiocruz.br /in-
dex.php/br/home/historia>. Acesso em: dez. 2022).
Bio-Manguinhos é reconhecido internacionalmente como
fabricante da vacina contra a febre amarela (antiamarílica). É o
maior centro produtor de vacinas e kits e reagentes para diag-
nóstico laboratorial de doenças infecto-parasitárias da América
Latina (site Bio-Manguinhos História <https://www.bio.fiocruz.
br/index.php/br/home/historia>. Acesso em: dez. 2022). Contar
a história dessa produção por meio da preservação de suas insta-
lações é contribuir para a valorização de um patrimônio cultural
pouco reconhecido.

Os laboratórios e as inovações tecnológicas

Em 1954, foi iniciada a construção do Pavilhão Henrique


Aragão, sendo inaugurado em 1960 como laboratório de pro-
dução de vacinas (Benchimol, 2001, p. 431). Ao analisar o seu
projeto no Centro de Documentação da instituição, podemos
identificar características projetuais adequadas para a época e
para uma área laboratorial, tais como: sala livre de poeira, ante-
câmaras, fluxos e cantos arredondados.

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 105


Figura 4. Pavilhão Henrique Aragão – Cortes e fachadas, 2007

Fonte: Acervo pessoal.

O edifício modernista foi desenvolvido em um único bloco


retangular predominantemente horizontal que possui dois pavi-
mentos, cobertura e estrutura independentes, formada por uma
sequência de pórticos em concreto armado que sustentam as la-
jes (Zouain, 2019).

106 ∫ Bianca Sivolella


Figura 5. Vista da fachada principal do Pavilhão Henri-
que Aragão em dois momentos, em ca.1960 e em 2022

Fonte: DAD/COC/FIOCRUZ (ca.1960) e foto


do acervo pessoal da autora (2022).

O arquiteto Roberto Nadalutti, autor do projeto, fez parte


da escola modernista carioca, formado pela Faculdade Nacional
de Arquitetura da Universidade do Brasil (1942-1946) e fez par-
te da segunda turma formada (Zouain, 2019). Em depoimento
sobre o projeto, o arquiteto revela que o programa de necessi-
dades do edifício foi elaborado com a colaboração do cientista
responsável pelo laboratório, que o orientou sobre o processo
de fabricação da vacina (Zouain, 2019). A compartimentação
interna foi definida com base no estudo do fluxograma das ati-
vidades envolvidas na produção da vacina, realizada em etapas
separadas e sequenciais. Além das denominações já indicadas, o
edifício também é conhecido como Serviço Nacional de Febre
Amarela (SNFA), Pavilhão da Febre Amarela e Laboratório de
Febre Amarela (LAFAM).
O arquiteto tem também outros projetos de arquitetura e
hospitais modernistas de destaque, em parceria constante com o
arquiteto Oscar Valdetaro, como responsável, ou ­colaboradores,

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 107


ou ainda como consultores de projetos hospitalares pelo país
(Zouain, 2019). Destacam-se os projetos para a Maternidade
Escola Assis Chateubriand, da Universidade do Ceará (1956);
o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (1956); e o Hospital
Santa Mônica, em Belo Horizonte (1962). Nadalutti ministrava
aulas sobre arquitetura hospitalar na Escola Nacional de Saúde
Pública (ENSP), na década de 1960 (Zouain, 2019).
Na arquitetura moderna os materiais utilizados servem para
valorizar a concepção formal do edifício, que não são utiliza-
dos como simples ornamentação. O edifício recebeu também
influências da arquitetura brutalista,3 quando a estrutura passou
a ser considerada como elemento da composição arquitetônica
(Zouain, 2019). Destacam-se algumas características que contri-
buem para a valorização da sua concepção formal: a composição
plástica da estrutura como elemento marcante; janelas em fita e
uso de brise-soleil, cobertura plana; superfícies planas; modula-
ção dos elementos estruturais; configuração do hall de entrada
com a escadaria de acesso ao segundo pavimento como elemento
de destaque; volume retangular simples; flexibilidade da planta
livre e o uso de estrutura independente (Zouain, 2019).
O conjunto modernista implantado no campus Mangui-
nhos foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cul-
tural (INEPAC). A inclusão do Pavilhão Henrique Aragão foi
solicitada pela FIOCRUZ mais recentemente, por meio de um
pedido de extensão de tombamento referente ao “Pavilhão de

3 Nesse caso, trata-se da arquitetura brutalista identificada pela arquiteta


Rosona Zouain, em seu de mestrado (2019), referindo-se aos pilares da fa-
chada frontal, estrutura marcante em sua proporção e função, como solução
em pórtico da estrutura do Pavilhão Henrique Aragão. Complemento neste
artigo que é possível supor que esse aspecto marcante da fachada e pilares
externos tenham salvado o edifício de intervenções que o descaracterizem
como partido arquitetônico definido na solução implementada pelo arquiteto
Roberto Nadalutti.

108 ∫ Bianca Sivolella


cursos e restaurante central do campus da Fundação Oswaldo
Cruz” E-18/001.528/98 (Zouain, 2018; Coelho et al., 2021, p.
66). O tombamento, entretanto, ainda não foi efetivado. Por
outro lado, o Pavilhão está localizado em setor de entorno e in-
fluência da área e edificações tombadas pelo Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) (1981 e 1985),
especialmente ao Caminho Oswaldo Cruz, fazendo parte do
Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (NAHM). O
tombamento individual federal pela IPHAN seria possível, con-
tudo, não existem evidências dessa iniciativa.
A sequência de plantas baixa evidencia as transformações
nos seguintes anos: 1954 e 2007 (muito próxima ao layout na
atualidade) e demostra a evolução do laboratório.

Figura 6. Pavilhão Henrique Aragão – 1.º pavimento, 1954

Fonte: Zouain, 2019.

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 109


Figura 7. Pavilhão Henrique Aragão – ­Planta
baixa, 1.° pavimento, 2007

Fonte: Acervo pessoal da autora.

Figura 8. Pavilhão Henrique Aragão – 2.º pavimento, 1954

Fonte: Zouain, 2019.

110 ∫ Bianca Sivolella


Figura 9. Pavilhão Henrique Aragão – ­Planta
baixa, 2.° pavimento, 2007

Fonte: Acervo pessoal da autora.

É interessante frisar que a solução de acessos e fluxos de


um laboratório em um único corredor central era comum para
a época. Os volumes de produção eram possivelmente menores,
e os procedimentos, realizados por protocolos, para os fluxos de:
pessoas, material limpo, material sujo, processo e amostra, com-
portavam essa dinâmica.
Considerando outros projetos, as plantas de produção de
vacinas mais atuais são projetadas segregando fluxos, em corre-
dores sujos e limpos, evitando assim o cruzamento e as possíveis
contaminações cruzadas, diminuindo o trânsito de fluxos por
procedimento. Esse tipo de solução para projetos é utilizado em
diversos laboratórios em Bio-Manguinhos, no próprio campus
de Manguinhos no CTV. Outro tipo de solução necessita de
equipamentos cabinados com classificação, configuram uma so-
lução para fluxos, e continuam sendo pensados com a lógica de
evitar a contaminação cruzada, essa solução é utilizada no novo
campus da FIOCRUZ, em Santa Cruz.
Por outro lado, alguns exemplares modernistas de labora-
tórios de produção foram encontrados e podem ser estudados
por serem contemporâneos ao Pavilhão Henrique Aragão. Os

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 111


edifícios mantêm similaridade volumétrica ao Pavilhão Henri-
que Aragão, volumes retangulares predominantes horizontais.
Também podem ser identificados o uso de brise- soleil e pilares
recuados da fachada. Nesse caso, o Pavilhão Henrique Aragão
segue a característica de modulação e repetição estrutural, deslo-
cada da fachada, mas se distingue por não estar recuado e assu-
mir um pilar talvez considerado escultórico. A solução típica de
pilar circular recuado na fachada é utilizada no Pavilhão Rocha
Lima, edifício contemporâneo ao Pavilhão Henrique Aragão no
campus Manguinhos. Já em outras instituições foram identifi-
cados dois edifícios modernistas da mesma época, por volta de
1960. O primeiro é o edifício do Instituto Vital Brasil, loca-
lizado no Rio de Janeiro, projeto do arquiteto Vital Brasil. O
segundo é o Laboratório Paulista de Biologia, localizado em São
Paulo, projeto do arquiteto Rino Levi, atualmente requalificado
como universidade.

Considerações finais

O Pavilhão Henrique Aragão é reconhecido como arquite-


tura modernista pela instituição, mas não claramente como um
patrimônio industrial. Este capítulo pretende contribuir para
essa identificação, considerando a história do laboratório e os
núcleos históricos correlacionados. O edifício marca a constru-
ção de laboratórios de produção de vacinas no qual os conceitos
de sala limpa foram introduzidos de forma inicial e extremamen-
te arrojados para a época.
O estado atual do edifício, considerando a passagem do
tempo, gera uma hipótese para sua aparência externa e interna.
O possível aumento de volume da produção, juntamente com
novas tecnologias embarcadas no edifício e um número maior

112 ∫ Bianca Sivolella


de exigências normativas, pode direcionar os estudos sobre os
laboratórios modernistas e a sua utilização industrial.
Outra questão que pode ser identificada é a mudança de
uso, com a segregação cada vez mais visível de etapas, como
ocorre em diversas áreas, não somente na indústria, mas também
na prestação de serviços. Por exemplo, as áreas de pesquisa e
experimentação animal saem do edifício e ganham áreas específi-
cas em outros edifícios do campus. As análises comparativas com
projetos laboratoriais modernistas da mesma época do Pavilhão
Henrique Aragão podem mostrar uma forma específica pensada
para a indústria.
Perante as análises de utilização do edifício no decorrer do
tempo e sua posição como lugar de memória, o Pavilhão Hen-
rique Aragão pode ser entendido como bem cultural e utilizado
para atividades na sociedade contemporânea (Zouain, 2019),
sendo possível abordagens para patrimônio material, como la-
boratório modernista, e imaterial, como lugar de memória para
a produção de vacina.
O objetivo geral da dissertação, apresentado sucintamente
neste artigo, é a requalificação do Pavilhão Henrique Aragão,
convergente e inspirado no Plano de Requalificação do Núcleo
Arquitetônico Histórico de Manguinhos, elaborado em 2014,
que prevê a requalificação do edifício, em razão de novos in-
vestimentos em outros edifícios para comportar a fabricação de
vacinas contra a febre amarela. Dessa forma, a abordagem de
requalificação ganha contornos para além da guarda de acervos e
objetos arqueológicos, para as quais estão previstas no plano, mas
também como o museu da vacina, compondo o testemunho so-
bre a função original do edifício em objetos, vídeos e exposições.

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 113


Figura 10. Vista ­Pavilhão Figura 11. Vista ­Pavilhão
­Henrique ­Aragão – ­Henrique ­Aragão –
­entrada, 2022. ­pilares, 2022.
Fonte: Acervo pessoal da autora. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Referências

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história inacabada. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.
BIO-MANGUINHOS. História. 2019. Disponível em: <https://
www.bio.fiocruz.br/index.php/br/home/historia>. Acesso em:
dez. 2022.
COELHO, C. T.; COSTA, R. G. R. & ZOUAIN, R. S. Entre a
tradição e a inovação: o conjunto arquitetônico da Fundação
Oswaldo Cruz e a produção industrial para a saúde. In: MENE-
GELLO, C.; ROMERO, E. & OKSMAN, S. (orgs.). Patrimô-
nio industrial na atualidade algumas questões. São Paulo: Editora
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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Portal FIOCRUZ. Disponível
em: <https://portal.Fiocruz.br>. Acesso em: dez. 2022.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Casa de Oswaldo Cruz. Plano de

114 ∫ Bianca Sivolella


Requalificação do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos
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MINDLIN, H. Arquitetura Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aero-
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PINHEIRO, M. J. A. & COELHO, C. M. T. Políticas de Preserva-
ção Institucionais da FIOCRUZ: Desafios e Conquistas Recen-
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Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
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ZOUAIN, R. S. A valoração do moderno: contribuições para a preserva-
ção do Laboratório da Febre Amarela da Fundação Oswaldo Cruz.
Mestrado Profissional em Preservação e Gestão do Patrimônio
Cultural das Ciências e da Saúde – Fundação Oswaldo Cruz.
Casa de Oswaldo Cruz, 2019.

Patrimônio industrial da saúde... ∫ 115


5.
O ACERVO FOTOGRÁFICO DO INSTITUTO
OSWALDO CRUZ EM DOIS TEMPOS

Lucas Cuba Martins1

De Instituto Soroterápico a Instituto


­Oswaldo Cruz

A
atual Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) surgiu
em 1900 por iniciativa do Barão de Pedro Afonso,
seu primeiro diretor, em conjunto com a prefeitu-
ra do Distrito Federal. Inspirado nos trabalhos em curso no

1 Museólogo. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Preservação


e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de Oswal-
do Cruz (PPGPAT/COC), desde 2021, onde desenvolve pesquisa intitulada
“Fotografando a Ciência: o acervo do Serviço de Fotografia do Instituto Os-
waldo Cruz”, sob orientação da professora doutora Aline Lopes de Lacerda.
A pesquisa conta com a bolsa institucional concedida pelo Programa de In-
centivo ao Desenvolvimento Institucional (PIDI) da Casa de Oswaldo Cruz,
Fundação Oswaldo Cruz. Contato: [email protected]

116 ∫ Lucas Cuba Martins


I­nstituto Butantan em São Paulo, e no modelo europeu de-
senvolvido por Louis Pasteur, a primeira missão da instituição
era conter a chegada da nova epidemia de peste ao Rio de
Janeiro. Para o cargo de diretor científico, o médico Oswaldo
Gonçalves Cruz foi nomeado, chefiando os trabalhos de pes-
quisa e produção de vacinas e soros, que eram realizados nos
barracões do terreno cedido pela prefeitura do então Distri-
to Federal. Inicialmente chamado de Instituto Soroterápico
(Benchimol, 2020, p. 58), o trabalho técnico, ainda muito
focado na produção de insumos para o combate imediato aos
surtos de peste no país, contava, além de Oswaldo Cruz, com
os médicos Henrique Figueiredo de Vasconcellos, Antônio
Cardoso Fontes e Ezequiel Dias.
Em 1903, Oswaldo Cruz assume a direção da Diretoria de
Saúde Pública, passando a dividir seu tempo com a direção do
Instituto Soroterápico, que havia assumido anos antes com a saí-
da de Pedro Afonso. Sob a direção do doutor Cruz, o Instituto
começa um longo período de produção de imunizantes, medica-
mentos e pesquisas científicas sobre doenças tropicais. As pesqui-
sas de cientistas como Alcides Godoy, que desenvolveu a vacina
contra a peste da Manqueira, possibilitaram a ampliação do or-
çamento da instituição, na chamada renda própria, viabilizando
contratação de pessoal extranumerário, ampliação da biblioteca
e construção dos laboratórios.

A famosa verba da manqueira, contabilizada à parte, teve impor-


tância vital na sustentação do instituto Oswaldo Cruz, sobretudo
nas conjunturas recessivas do país. [...] com ela foram pagos os
salários de muitos pesquisadores e funcionários, parte das despe-
sas com as novas construções, a impressão das ‘Memórias’ e uma
infinidade de outros itens (Benchimol, 2020, p. 83).

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 117


Em 1907, o Soroterápico passa a se chamar Instituto de
Patologia Experimental de Manguinhos. Nesse mesmo ano, Os-
waldo Cruz e uma comissão científica viajam para Berlim, na
Alemanha, onde o Instituto recebe a medalha de ouro na expo-
sição internacional de higiene. Esse acontecimento posiciona a
instituição no cenário internacional, e dá a Oswaldo Cruz o ca-
pital político necessário para promover as ampliações no escopo
do trabalho do Instituto. Meses após seu retorno, já em março
de 1908, a instituição é renomeada para Instituto Oswaldo Cruz
(IOC), em homenagem ao médico que havia conquistado a me-
dalha de ouro e encantado a sociedade científica europeia. Essa
mudança veio acompanhada de uma nova estruturação institu-
cional e mudanças na autonomia e orçamento da instituição.
Benchimol (2020) nos diz:

O instituto foi retirado do organograma da Diretoria-Geral de


Saúde Pública e atrelado ao ministro da justiça, o que coloca-
va os diretores de ambas instituições em pé de igualdade. Além
das vantagens administrativas e orçamentárias, essa medida pôs
Manguinhos a salvo dos caprichos dos eventuais sucessores de
Oswaldo Cruz na saúde pública, emancipando, também, seu
programa de pesquisas das demandas e rotinas impostas aquela
diretoria (p. 81).

Nesse período, uma prática já estava consolidada na ins-


tituição: o registro fotográfico das atividades institucionais e
científicas. As fotografias científicas realizadas pelos fotógrafos
do IOC serão o ponto de partida das ações de preservação da
memória institucional empreendidas na década de 1980 do sé-
culo passado.

118 ∫ Lucas Cuba Martins


A produção fotográfica do Instituto
Oswaldo Cruz

Nos primórdios do Instituto Oswaldo Cruz, quando ainda


era Instituto Soroterápico, a presença da fotografia já se mostrava
importante. Os trabalhos desenvolvidos pelos primeiros cientis-
tas nos barracões de madeira da antiga fazenda de Manguinhos
são algumas das primeiras imagens produzidas na instituição de
que temos conhecimento.
Esse serviço fotográfico esteve presente no Castelo de Man-
guinhos desde sua inauguração, conforme Aragão (1950): “En-
tre o quarto e quinto pavimentos, havia um grande espaço va-
zio, não muito alto, aproveitado para o serviço de fotografia e
­depósito de materiais diversos” (p. 34). Aline Lacerda (2020)
pontua que

Provavelmente, a extensa produção de imagens estava mais li-


gada à lógica de uma instituição que se pretendia moderna e
inovadora, fazendo uso das técnicas em voga naquele momento,
objetivas e mais racionais, de obtenção de registros visuais para
várias áreas de trabalho inauguradas pelo IOC — do registro
documentário mais comum (acompanhamento das obras) até os
de aplicação mais sofisticada (microfotografia em laboratório de
pesquisa) (p. 668).

Sabemos que desde 1903 o fotógrafo Joaquim Pinto da


Silva, o J. Pinto, atuava no Instituto Soroterápico, em que pos-
suía um laboratório no mesmo espaço onde a improvisada bi-
blioteca funcionava (Santos, 2020). O primeiro registro oficial
que localizamos, referente ao ano de 1911, nos assentamentos
funcionais do arquivo histórico do Departamento de Arquivo e
Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz (COC), in-
dica que o fotógrafo Joaquim Pinto da Silva foi empregado em

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 119


1.º de fevereiro daquele ano, para exercer o cargo de “fotógrafo
contratado” (Instituto Oswaldo Cruz, s.d.). Sua atuação, por-
tanto, estava condicionada a algum tipo de acordo de trabalho
que tinha por objetivo a produção de registros das atividades e
do funcionamento do Instituto. Essa contratação se dava dire-
tamente com o profissional, uma vez que no Decreto n.º 1802,
de 12 de dezembro de 1907, que criou o Instituto de Patologia
Experimental de Manguinhos, não havia previsão para o cargo
de fotógrafo ou semelhante no corpo auxiliar, apenas “um zela-
dor; um almoxarife; um arquivista-escriturário; um desenhista”
(Brasil, 1907, s.p.). O mesmo ocorre com o decreto que trans-
forma o Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos em
Instituto Oswaldo Cruz: não havia previsão de contratação para
o trabalho de fotografia.
Somente em 1919, o Decreto n.o 13.527, de 26 de março,
reorganiza a estrutura do IOC e apresenta o cargo de fotógrafo,
fixando seu salário em 400$000. Infelizmente, esse decreto não
nos dá mais informações sobre as atividades básicas do fotógrafo,
ao dizer apenas que “ao fotógrafo compete executar os trabalhos
fotográficos” (Brasil, 1919, s.p.).
Joaquim Pinto da Silva passa a ser o fotógrafo do quadro
permanente do Instituto até sua aposentadoria em 1946. Além
dele, encontramos o registro de outro profissional que atuava
no serviço de fotografias do IOC. Era o auxiliar de fotografia, e
filho, Milton Pinto da Silva. Ele faz parte do pessoal extranume-
rário, pago com os recursos próprios da instituição, e que consta
da relação enviada ao Ministério da Educação e Saúde (MES)
em 1939 (Instituto Oswaldo Cruz, 1939). É grande a probabi-
lidade de que outros profissionais tenham atuado em conjunto
com J. Pinto no laboratório fotográfico. Sabemos, por exemplo,
que outro filho, Wilson Pinto, foi aprendiz e trabalhou com o
pai no laboratório antes de sua aposentadoria. Outro funcioná-
rio que conhecemos é Joaquim de Carvalho Filho, que chegou

120 ∫ Lucas Cuba Martins


ao Instituto Oswaldo Cruz na década de 1950 para trabalhar no
envase e na distribuição de vacinas, e após certo período nessa
atividade foi transferido para o laboratório fotográfico, onde co-
nheceu Milton Pinto. Em entrevista concedida ao Departamen-
to de Arquivo e Documentação, Joaquim Carvalho conta que
iniciou no serviço de fotografia como servente, mas aprendeu o
ofício observando o trabalho de outros fotógrafos, como Anadir
Fernandes de Queiroz, Sr. Miguel e com o chefe da Fotografia e
Desenho, doutor Augusto José de Nin Ferreira (Casa de Oswal-
do Cruz, 2012, pp. 14-5).
Outra questão que aponta para a possibilidade de outros
profissionais da fotografia atuando no laboratório era a existência
de uma prática institucional em que auxiliares e serventes de la-
boratório, contratados ou permanentes, eram por vezes alocados
em setores que não os laboratórios dos cientistas, como é o caso
dos desenhistas do Instituto. Em livro publicado pela Casa de
Oswaldo Cruz, sobre os desenhistas e seus trabalhos no IOC,
um importante levantamento é feito nos registros profissionais,
revelando a existência de desenhistas que não haviam ingressado
ou se aposentado com esse cargo, especificamente, mas que atua-
vam nessa área na qual haviam se especializado a partir da lida
cotidiana do trabalho (Lacerda et al., 2022, p. 73). Logo, é pos-
sível que o mesmo tenha ocorrido com o serviço de fotografia,
profissionais com cargos alheios ao trabalho fotográfico podem
ter atuado e se especializado nessa área.
Pinto realizava o trabalho fotográfico em seu laboratório no
terceiro pavimento do Pavilhão Mourisco, o castelo construído
para ser o edifício principal do IOC, onde estavam localizados
os laboratórios dos pesquisadores, inclusive o do patrono. Ali, J.
Pinto contava com uma sala de revelações, o laboratório e uma
sala anexa, onde parte do trabalho e do material fotográfico era
armazenado.

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 121


Figura 1. Laboratório fotográfico

Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fundo IOC.

Figura 2. Sala de fotografia

Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fundo IOC.

122 ∫ Lucas Cuba Martins


Em correspondência com a Kodak, nos Estados Unidos da
América, podemos perceber que ele era mais do que um opera-
dor de câmera fotográfica. Pinto tinha participação na gestão
do setor de fotografias, definindo a compra dos insumos foto-
gráficos pelo IOC. Nessa correspondência, de dezembro 1915,
a empresa de fotografias responde J. Pinto dando indicações de
fornecedores de material fotográfico da marca disponíveis no
Rio de Janeiro. Especificamente é citada a loja de materiais fo-
tográficos “Bastos Dias”. A casa Bastos Dias foi uma importante
loja de artigos fotográficos do Rio de Janeiro, seus anúncios são
facilmente encontrados em jornais de época, e tinha como prin-
cipal característica a importação das novidades do ramo.
Na correspondência, em março de 1916, a Kodak afirma:

Notamos que V.S. não deseja comprar os artigos fotográficos de


nossos distribuidores n’esta capital e não desejando vê-lo despro-
vido de material, enviamos-lhe inclusa uma fatura pro-forma dos
artigos conforme sua carta de 2 de agosto de 1915, com o valor
aproximado do frete, não incluindo porém o risco de guerra e
seguro marítimo que devem figurar na mesma (Eastman Kodak
Company, 1916, p. 1).

Essa correspondência nos dá uma importante noção dos


limites do trabalho de J. Pinto como fotógrafo do quadro per-
manente do Instituto, pois na documentação encontrada no ar-
quivo da COC localizamos três notas de compra de material,
justamente na loja Bastos Dias. Embora a caligrafia da época
dificulte a leitura integral da discriminação dos itens e serviços
contratados, podemos aferir que são duas notas de 1916 (julho e
dezembro) e uma de 1921. Entre os itens legíveis temos a com-
pra de três dúzias de chapas positivas 8 e ½ por 10, 4 embalagens
de películas de 18x24 e duas embalagens de películas coloide
tamanho 24x30.

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 123


A correspondência com a Kodak nos mostra que, em al-
gum momento de 1916, Pinto optou por adquirir insumos di-
retamente com a empresa, não optando pela casa Bastos Dias.
Contudo, as notas anteriormente descritas, são do mesmo ano
da consulta à empresa norte-americana, e como o material de
arquivo encontrado não está completo, não sabemos dizer se a
importação direta com a Kodak não prosseguiu e a Bastos Dias
foi utilizada, ou se os produtos que o fotógrafo tinha interesse
em importar são diferentes dos comprados na revendedora na-
cional. O que nos resta claro, é que J. Pinto tinha certa autono-
mia para realizar pesquisas no mercado de insumos fotográficos,
com certeza visando à aquisição do que havia de mais recente no
ramo da fotografia.
A presença do serviço de fotografias no âmbito institucional
pode ser observada nos relatórios anuais que o diretor do Institu-
to remetia, primeiro ao Ministério da Justiça e Negócios Interio-
res, e, depois da Revolução de 1930, ao Ministério da Educação
e Saúde. Nesses relatórios, embora os resultados e ações do tra-
balho de fotografia não figurassem diretamente no texto princi-
pal do documento, em que os dados de pesquisa, produção de
vacinas e publicação de trabalhos eram apresentados, indícios do
trabalho de fotografia podem ser observados nos anexos que cada
área do IOC produzia para o relatório. Assim temos no relatório
de 1922, no anexo do serviço de carpintaria, que uma prancheta
para aparelho fotográfico foi construída na oficina dos carpintei-
ros e a oficina de encadernação produziu 12 álbuns fotográficos
ao custo de 36$000. Já em 1923, o movimento de caixa do IOC
contabiliza uma despesa de 514$000 para os setores de foto-
grafia e encadernação, já a verba de renda própria desembolsou
3.064$800 para os dois setores conjuntamente, tendo a seção de
fotografias realizado os seguintes trabalhos:

124 ∫ Lucas Cuba Martins


Macrofotografias com 6 ampliações de cada: 272. Microfotogra-
fias com 6 fotocopias de cada: 73. Quadros 50 x 65 organizados
com fotografias para a exposição do Centenário de Pasteur, em
Strasbourg: 10. Dispositivos para a lanterna de projeção para a
mesma exposição do Centenário de Pasteur, em Strasbourg: 140.
Total: 495 (Instituto Oswaldo Cruz, 1923, p. 8).

Ao observarmos a produção fotográfica de Joaquim Pinto e


seus assistentes, podemos concluir que diversas requisições eram
feitas por diferentes setores da instituição. O trabalho fotográfico
que hoje faz parte do arquivo da COC nos apresenta fotografias
das obras, reformas e ampliações do Complexo Arquitetônico de
Manguinhos; retratos de personalidades e cientistas; registros do
trabalho diário nos laboratórios, cocheiras, salas de produção de
vacina; registro de eventos e atividades oficiais; pacientes e suas
doenças; e aquelas que mais interessam a este estudo: as imagens
dos objetos de pesquisa dos cientistas. São fotografias de placas
de petri, tubos de ensaio, insetos, fungos, fotomicrografias, ima-
gens de cobaias, chapas de raio-x, resultados de eletrocardiogra-
mas e as peças anatômicas.

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 125


Figura 3. Fotografia de peça anatômica, J. Pinto

Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fundo IOC.

A produção de imagens científicas e o próprio uso da foto-


grafia na ciência fazem parte da noção geral, marcadamente da
segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX,
de que a imagem fotográfica era mais confiável e objetiva do que
o desenho. A fotografia recebia o status de registro inequívoco
da realidade, ao ser produzida pela luz, por meio de uma reação

126 ∫ Lucas Cuba Martins


físico-química, alheia à interferência das emoções e dos erros do
artista. A máquina fotográfica era encarada como um dispositivo
isolado, apenas operado mecanicamente pelo fotógrafo, marcan-
do a diferença com o lápis, o pincel e o pastel, prolongamentos
da mão humana e passível de erros do artista.
Para André Rouillé (2009), uma das primeiras funções da
fotografia-documento era justamente a de arquivar: “Uma das
grandes funções da fotografia-documento terá sido a de erigir
um novo inventário do real, sob a forma de álbuns e, em seguida,
de arquivos” (p. 97). Este inventário da realidade tinha um inte-
resse em documentar o real em sua totalidade, uma compulsão
pelo visível, sempre produzindo sentido mediante acumulação,
classificação e arquivamento. Mas a realidade expressa pela ima-
gem fotográfica não é melhor ou maior, como pressupunham os
seus adeptos; ela, nas palavras de Rouillé, “Mostra alguma coisa
diferente, faz surgir outras evidências, por propor novos proce-
dimentos de investigação e a colocação do real em imagens” (p.
41). Essa nova forma de ver é que determina o nível de realidade
que resulta do ato fotográfico. O arquivo fotográfico, esse inven-
tário do visível, portanto, é um extrato tirado a partir do como
vemos o mundo.
A iconografia era fartamente utilizada para enriquecer a
produção de artigos e textos sobre as pesquisas desenvolvidas no
Castelo de Manguinhos. Como forma de se afirmar no cenário
científico mundial, Manguinhos explorava o uso de fotografias
em impressões como as do periódico Memórias do Instituto Os-
waldo Cruz. Rangel (2009) afirma que

A fotografia também foi muito utilizada como ilustração cien-


tífica nos trabalhos do Instituto. Ela facilitava a acentuação de
certos aspectos do exemplar em estudo e a possibilidade de se-
lecionar e ampliar ângulos de observação não-acessíveis ao olho

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 127


humano, bem como de fixar imagens que fogem à óptica natural
(p. 297).

Esse é o contexto de produção do acervo fotográfico do


Instituto Oswaldo Cruz. Seu perfil se relaciona com as ações de
pesquisa e produção do conhecimento científico da medicina e
do sanitarismo no Brasil, representando os primeiros esforços e
as iniciativas pioneiras de cientistas e pesquisadores que, ao lon-
go de um século, permitiram o avanço da ciência no país.

Iniciativas de gestão e tratamento


do patrimônio fotográfico

O conjunto fotográfico produzido e acumulado pelo Ins-


tituto ao longo dos anos demonstra o valor documentário que
a fotografia tinha para a instituição, que criou um verdadeiro
inventário das ações e pesquisas científicas em curso. As imagens
produzidas pelos fotógrafos de Manguinhos foram utilizadas na
ilustração de artigos científicos, na produção de álbuns e na do-
cumentação de pacientes e suas lesões, formando um conjunto
que hoje atinge o patamar de mais de 14 mil itens, entre negati-
vos, fotografias, cópias de contato e duplicatas.
Ao longo dos anos, esse material acumulado foi dispersado
por diferentes pavilhões e teve um longo período de dormência
até que ações institucionais que visam à preservação da memória
e do patrimônio cultural da Fundação Oswaldo Cruz recupe-
rassem o material, impedindo sua degradação, possibilitando o
tratamento técnico e a disponibilização ao público. Foi com a
criação de uma unidade técnico-científica dedicada ao trabalho
de pesquisa da história das ciências e da saúde e de preservação
dos patrimônios a ela relacionados que os acervos fotográficos
recuperam seu papel institucional.

128 ∫ Lucas Cuba Martins


A Casa de Oswaldo Cruz foi criada em 1986, por ato do
então presidente da FIOCRUZ doutor Sérgio Arouca (1985-
1989). Inicialmente integrava a vice-presidência de Desenvol-
vimento e não possuía status de unidade técnico-científica. De
acordo com o Ato da Presidência n.º 221/85, seus objetivos
eram a promoção cultural, a criação de uma política de docu-
mentação e de uso do complexo arquitetônico da FIOCRUZ,
além da “[ . . . ] recuperação da memória e da pesquisa histórica
referente à Fundação Oswaldo Cruz e à saúde pública em nosso
país” (Fundação Oswaldo Cruz, 1985, p. 1). Em 1987, a COC
é elevada ao status de unidade técnico-científica, contando ainda
com os mesmos objetivos e com a formalização de sua estrutura
interna (Fundação Oswaldo Cruz, 1987, pp. 1-2).
Em seu artigo sobre as fontes para pesquisa da história do
Ministério da Saúde, Lima e Pinto (2003) apontam que

Na COC há inúmeros documentos que retratam a trajetória de


atores e instituições que compõem a estrutura organizacional da
saúde, sob a égide do Ministério da Saúde. Esses personagens
são veículos da manifestação de ideias, interesses e propostas de
segmentos profissionais, instituições e grupos políticos. Quanto
aos acervos de períodos mais recentes a partir da década de 1950,
podem ser mencionados os referentes às campanhas de erradi-
cação da varíola, da poliomielite e do sarampo; os programas
de imunizações e campanhas sanitárias por todo o Brasil, assim
como os serviços especiais (febre amarela, tuberculose, malária,
câncer e de saúde pública). Também merece destaque o Arquivo
da VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em Brasília em
1986, pela atualidade das teses ali defendidas há quase vinte anos
[...] (pp. 1.038-9).

Essa riqueza de material está intimamente ligada ao papel


central que a própria FIOCRUZ sempre teve no processo de

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 129


produção de conhecimento e inovação em saúde pública, bem
como à sua participação pioneira em diversas ações do movi-
mento sanitarista do país. Em que pese esse caráter mais insti-
tucional que o acervo da COC possui, sempre existiram inicia-
tivas que buscaram ampliar as coleções de indivíduos de elevada
contribuição, não só para a FIOCRUZ, mas para a saúde e as
ciências do Brasil. Aquisições como a dos arquivos pessoais de
Carlos Medina e José Arthur Rios, sociólogos proeminentes no
campo da sociologia rural e de favelas, são exemplos do trabalho
de ampliação do escopo da documentação custodiadas pelo De-
partamento de Arquivo e Documentação da COC.
O contexto de criação da Casa de Oswaldo Cruz está rela-
cionado ao momento de abertura da política nacional, iniciado
nos anos 1980, em um processo de redemocratização das insti-
tuições públicas. Vale ressaltar que foi na gestão de Sérgio Arou-
ca que o grupo de cientistas cassados2 nos anos 1970 (por perse-
guição política e ideológico do governo militar) recuperou seus
cargos e pôde retomar suas pesquisas na Fundação. O próprio
Sérgio Arouca era um quadro do Partido Comunista Brasilei-
ro (PCB), tendo concorrido para eleições por esse partido. Esse
contexto de reparação e redemocratização vai dar o tom ao pro-
cesso de constituição da Casa de Oswaldo Cruz nos anos 1980,
momento em que a memória e a cultura ganham contornos de
direito social e que instituições arrasadas pelos anos mais duros
do regime buscavam uma reflexão institucional acerca do seu
passado, visando a projeção do futuro.
Narcilene Monteiro (2019), em artigo precioso sobre a dis-
ponibilização dos acervos documentais da COC, destaca que a

2 No que ficou conhecido como “massacre de Manguinhos”, são eles: Haity


Moussatché, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello
Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga
Ubatuba, Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque, Masao Goto e Domin-
gos Arthur Machado.

130 ∫ Lucas Cuba Martins


atuação de um grupo de profissionais que já se dedicava ao es-
tudo do patrimônio e da história das ciências e da saúde foi o
ponto de partida da Casa:

[A COC] Iniciou as atividades de constituição do acervo do-


cumental com um pequeno e engajado grupo de profissionais
— historiadores, documentalistas e bibliotecários que foram res-
ponsáveis pela tarefa de localizar, identificar e reunir documen-
tos, abrindo caminho para organização do atual Departamento
de Arquivo e Documentação (DAD) (p. 304).

Loureiro destaca que vários movimentos em outras institui-


ções apresentavam a mesma característica de renovação do pen-
samento social e histórico, como o Centro de Memória Social
Brasileira, Centro de Medicina Social da UFRJ e o Instituto de
História Social Brasileira (IHSB) ligado ao IPHAN/Pró-docu-
mento (Loureiro, 2016, p. 105). A autora aponta que o IHSB
tinha ligações com estudos sobre a memória institucional que já
haviam sido iniciados na atual Escola Nacional de Saúde Públi-
ca Sergio Arouca (ENSP) e que dessa ligação surgiram os pri-
meiros pontos norteadores para a ação desenvolvida na COC.
Ela aponta ainda que “neste contexto o médico Paulo Gadelha
é convidado para desenvolver o projeto que viria a se tornar a
Casa de Oswaldo Cruz” (p. 106). Conjugando o conhecimento
que Gadelha tinha no campo da pesquisa em saúde e história e
sua experiência com projetos de fomento, uma série de projetos
para a elaboração de um centro arquivístico-documental foram
criados e postos em prática. As ações miravam exemplos institu-
cionais que despontavam naquele momento, como o do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getúlio Vargas.
Celia Camargo aborda a questão da criação dos centros de
documentação e memória nos anos 1970 e 1980. No que chama

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 131


de febre da documentação, a autora destaca o papel fundamental
da organização e disponibilização de fontes para pensar a histó-
ria social brasileira, que, por motivos diversos, não estavam dis-
poníveis aos pesquisadores. Esse momento de redemocratização
conclamava a sociedade civil e os meios de pesquisa e produção
acadêmica a repensarem os rumos da sociedade brasileira (Ca-
margo, 2003, p. 24-7). Mário Chagas nos lembra que a memó-
ria, quando invocada, não recupera o tempo que passou, mas faz
dele uma leitura “banhada nas experiências objetivas e subjetivas
daquele que lembra” (Chagas, 2009, p. 138) e continua

Por mais natural que possa parecer, essa memória é projeção que
se atualiza no presente e projeta-se para o futuro. Para atualizar-
-se e projetar-se de um tempo em outro, a memória lança mão
de várias fontes (p. 138).

Estes centros de documentação possuíam algumas estraté-


gias comuns, como a criação de acervos de história oral, a aquisi-
ção de arquivos pessoais de homens públicos, de coleções icono-
gráficas etc. A esse respeito Loureiro (2016) diz:

Outros projetos pioneiros desenvolvidos na COC diziam respei-


to à documentação fotográfica (o chamado arquivo iconográfico)
e o projeto de história oral (inicialmente voltado para a história
do Instituto Oswaldo Cruz como unidade fundadora do com-
plexo Fiocruz). Também nos primeiros momentos da COC a
equipe que lá atuava recebeu uma coleção de livros antigos, mui-
tos deles raros, que estavam mal alojados na Biblioteca de Ciên-
cias Biomédicas da Fiocruz (p. 108).

O projeto de tratamento do acervo fotográfico, bem como


o de história oral e ampliação da documentação institucional,
foram fomentados pela Financiadora de Produtos e Projetos

132 ∫ Lucas Cuba Martins


(FINEP). O Projeto “Organização e Ampliação Iconográfica
do Museu do Instituto Oswaldo Cruz” foi um dos primeiros
desenvolvidos no âmbito da COC nos primeiros anos de sua
criação. Com financiamento da FINEP, tinha como premissa a
compreensão de que o registro fotográfico deveria ser encarado
como documento de arquivo e visava a organização de duas fren-
tes de trabalho: uma para organização e conservação do acevo
visual que já se encontrava sob tutela da COC e outra para a
ampliação e incorporação de novas coleções (Fundação Oswaldo
Cruz, 1987, p. 1).
Os trabalhos desenvolvidos pelo projeto contaram com
cooperação da Biblioteca Nacional, InFoto/Funarte (atual Cen-
tro de Preservação de Fotografias da Funarte), Museu da Ima-
gem e do Som, entre outras, tendo em vista as especificidades do
trabalho arquivístico com fotografias documentais e de conser-
vação das bases e dos suportes do gênero fotográfico (Fundação
Oswaldo Cruz, 1987, pp. 1-2).
Os trabalhos, iniciados em 1986, eram coordenados pelo
diretor da COC, Paulo Gadelha, e enfrentaram dificuldades
para a compra e importação de material especializado, princi-
palmente para a montagem de laboratório fotográfico dedicado
ao processo de revelação de negativos, ampliação e cópia de do-
cumentos fotográficos. O momento da economia, as dificulda-
des com o mercado externo e a especificidade dos materiais são
questões relacionadas a esse problema (Fundação Oswaldo Cruz,
1987, pp. 3-4). E o relatório ora pesquisado dava conta de que o
trabalho de conservação já estava praticamente concluído; e que
o trabalho de tratamento arquivístico já estava bem adiantado,
sendo o trabalho do laboratório fotográfico o que mais necessi-
tava de ações.
Este conjunto documental, que hoje constitui uma série
documental dentro do Fundo IOC, sob a guarda do Departa-
mento de Arquivo e Documentação da COC, tem cerca de 14

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 133


mil itens (fotografias, duplicatas e negativos de vidro, conforme
dados disponíveis na Base Arch)3 que dão conta do registro em
imagens do processo de constituição do Instituto Oswaldo Cruz
e sua consolidação como instituição científica, pública e a serviço
da população do Brasil. Seu arranjo possui 12 subséries organiza-
das em temas fotografados. O acervo continua sendo objeto de
estudo e sua descrição arquivística, sua conservação e seu acesso
ao público seguem sendo aprimorados.

Considerações finais

A produção de fotografias científicas no Instituto Oswaldo


Cruz reverbera a noção amplamente empregada após o surgi-
mento do primeiro processo fotográfico, em 1839, na Europa,
de que a fotografia era um registro objetivo da realidade. A cons-
trução desse pensamento acerca do processo fotográfico ancora-
-se na ideia de que as representações visuais, até então, emprega-
das eram eivadas pela subjetividade do artista, proporcionando
um registro não confiável e que não atendia às expectativas da
modernidade de matriz europeia. A fotografia, criada pela ação
química e ótica por uma máquina, era considerada livre das in-
fluências subjetivas, e, portanto, encarada como prova concreta
da realidade que se apresentava na frente da câmara escura.
A ciência logo passaria a utilizar o registro fotográfico como
documento de registro do conhecimento científico, atribuindo à
fotografia o caráter de prova. Essa imagem fotográfica, objetiva
e mecanizada, permitia ainda a produção de um inventário das
coisas, hierarquizando e catalogando a realidade tratada como
objeto de estudo pela ciência.

3 Disponível para consulta em: <https://basearch.coc.fiocruz.br/>. Acesso


em: 4 dez. 2020.

134 ∫ Lucas Cuba Martins


No Instituto Oswaldo Cruz, desde seus primeiros passos
no circuito científico nacional, a fotografia esteve presente, tan-
to como documento e prova da ação institucional e científica
(nas imagens de obras e do dia a dia dos trabalhadores de Man-
guinhos), quanto como representação do objeto de estudo da
ciência (no caso das imagens de microscopia, peças anatômicas
e doentes). A imagem fotográfica assumiu importante papel ins-
titucional, fato comprovado pela contratação de um fotógrafo
para o quadro permanente da instituição, com status igual a ou-
tros serviços auxiliares, reportando-se diretamente à direção do
Instituto. O trabalho de fotografia produziu um colossal conjun-
to de fotografias que registram a história do sonho de Oswaldo
Cruz e seus discípulos, permitindo o estudo da história das ciên-
cias e da saúde no Brasil.
Com a criação da Casa de Oswaldo Cruz, nos anos 1980, e
seu estabelecimento como unidade técnico-científica, garantindo
paridade em relação a outras unidades da estrutura FIOCRUZ,
diversas ações relacionadas ao tratamento dos acervos históricos
tiveram lugar. Após o trabalho de reunião das parcelas dispersas
entre diferentes atores institucionais, seguiu-se o tratamento téc-
nico desse material e a criação do arquivo histórico, hoje sob a
guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa.
Benchimol (2020) salienta que:

Quando foi criada a COC, havia na Fiocruz um pequeno mu-


seu dedicado ao patrono e documentação de grande valor para
a história das ciências e da saúde nos mais inusitados desvãos
da instituição. Um material nos atraiu de imediato: belíssimas
fotografias produzidas no começo do século XX por expedições
médicas enviadas ao interior do Brasil, que resultaram também
em relatórios ricos em informações sobre a realidade social e sa-
nitária das populações que lá viviam.

O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 135


Outro conjunto de fontes atraiu de imediato a atenção dos his-
toriadores da COC. Belas fotografias da instituição desde os seus
primórdios, a revelar a intenção de Oswaldo Cruz e sua equipe
de documentar em detalhes a trajetória de um projeto que nascia
com a ambição de marcar época (p. 18).

Dois tempos de pioneirismo institucional se encontram


nos projetos da Casa de Oswaldo Cruz. O acervo pioneiro de
imagens da ciência, produzido e acumulado a partir da intenção
inovadora de Oswaldo Cruz, que incorporou a fotografia como
objeto de documentação e estudo da ciência e a recuperação des-
se material, disperso e carente de sentido, décadas depois, consti-
tuindo o acervo histórico da Fundação Oswaldo Cruz.
Os trabalhos de pesquisa atuais, incluindo este, se dedicam
a apontar caminhos para a ampliação do valor documentário das
fotografias, ao mesmo passo que restabelecem vínculos entre o
conjunto documental e seu contexto de criação, promovendo
arcabouço para o tratamento, conservação e difusão dos acervos.
Pesquisar a história arquivística, o contexto de produção e cir-
culação dos arquivos fotográficos, é especialmente eficaz em res-
gatar os vínculos e aprimorar as descrições arquivísticas. Lacerda
(2003) aponta que:

Sobretudo o trabalho de organização desses acervos tende a fazer


tábula rasa da dimensão genética da documentação, ou seja, das
características que marcaram sua formação e que contribuíram
para moldar seus contornos pelo acúmulo e guarda no tempo,
em outras palavras, da ‘biografia’ do conjunto documental (p.
241).

Ainda a esse respeito a autora afirma que não basta verificar


proveniência e conteúdo da imagem, e que o esforço deve ser a
fim de

136 ∫ Lucas Cuba Martins


[...] investigar as razões da concepção e do nascimento do arqui-
vo ou coleção, seu desenvolvimento no tempo, os atores envol-
vidos no processo [...] os sentidos investidos na documentação
pelo produtor ou guardador, as práticas que nortearam a produ-
ção das imagens, as funções que elas representaram no ambiente
doméstico ou institucional do qual são substratos importantes,
dentre outros aspectos relevantes (p. 242, grifo nosso).

Todo trabalho que considere essas características da foto-


grafia científica, trazendo luz ao processo de produção, conside-
rando as intenções e os atores presentes no processo, são bem-
-vindos, por contribuírem com o fortalecimento do estatuto de
documento de arquivo da fotografia, muitas vezes enfraquecido.
Este estudo conta com financiamento da bolsa de pesqui-
sa do Programa de Incentivo ao Desenvolvimento Institucional
(PIDI), da Fundação Oswaldo Cruz e da Fundação para o De-
senvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (FIOTEC), a
quem agradecemos o apoio. Agradecemos também ao Departa-
mento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz,
pela disponibilização do material de arquivo utilizado como fon-
te para a pesquisa.

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O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 137


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O acervo fotográfico do Instituto Oswaldo Cruz em dois tempos ∫ 139


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140 ∫ Lucas Cuba Martins


6.
A UTILIZAÇÃO DE METADADOS EMBUTIDOS
NO OBJETO DIGITAL: ESTRATÉGIA
PARA ORGANIZAÇÃO E RECUPERAÇÃO
DE DOCUMENTOS FOTOGRÁFICOS NATO
DIGITAIS

Jeferson Mendonça1
Aline Lopes de Lacerda2

1 Fotógrafo vinculado ao Serviço de Arquivo Histórico – SAH, do Depar-


tamento de Arquivo e Documentação – DAD, da Casa de Oswaldo Cruz –
COC/ Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Mestre pelo Programa de Pós-
-Graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e
da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a
dissertação intitulada “O Patrimônio Fotográfico na era Digital: Gestão de
Documentos Fotográficos Nato Digitais no Departamento de Arquivo e Do-
cumentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz”, sob orientação da professora
doutora Aline Lopes de Lacerda, em 2021. Contato: [email protected].
2 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, pes-
quisadora do Departamento de Arquivo e Documentação – DAD, da Casa
de Oswaldo Cruz – COC/ Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. Contato:
[email protected]

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 141


A
fotografia como instrumento de registro de ativida-
des é valorizada na Fundação Oswaldo Cruz (FIO-
CRUZ) desde seu início, em 1900, quando ainda se
chamava Instituto Soroterápico Federal. Oswaldo Cruz e seus
contemporâneos registravam e documentavam, por meio das
imagens, o dia a dia da instituição, os grandes feitos, os mo-
mentos importantes vividos por eles e as atividades exercidas
em seus cotidianos, bem como a localidade circunvizinha da
instituição e as expedições científicas feitas pelo Brasil no in-
tuito de realizar estudos que pudessem auxiliar na manuten-
ção da saúde da população.
Essa relação do patrono da instituição com a fotografia e
a importância a ela atribuída tornam-se ainda mais evidentes
quando observamos que “na gestão de Oswaldo Cruz passou a
ser obrigatório apresentar à direção um relatório anual de ativi-
dades com informações veiculadas na forma de textos e imagens”
(Lacerda & Penido, 2014, p. 76).
Este interesse voltado para a produção de documentação
das ações cotidianas daquela época possibilita, nos dias atuais,
obter informações sobre o passado da FIOCRUZ por meio des-
tas imagens e auxiliar no processo de compreensão de iniciativas
tomadas que contribuíram para o desenvolvimento do campo da
saúde pública em nosso país, justificando, assim, a importância
da preservação do acervo fotográfico institucional.

142 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Figura 1. Medicamento em processo de embalagem no Ins-
tituto Oswaldo cruz em 1930. Fotografia de J. Pinto.
A direita registro fotográfico de expedição de Carlos Chagas (ao
centro), no Rio Negro. À sua esquerda Pacheco Leão e mem-
bros da expedição. São Gabriel da Cachoeira – AM, 1913.

Fonte: Base Arch. Código da ima- Fonte: Base Arch. Código da ima-
gem: IOC_V_II_2472. Acervo da gem: IOC_V_II_0330. Acervo da
Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ.

Tal prática se perpetua até os dias atuais, pois a instituição


continua a gerar um vasto acervo de documentos fotográficos,
sendo ele um importante ativo da memória institucional e da
saúde no Brasil.
Do surgimento da fotografia até hoje, passamos por muitas
mudanças, muitos avanços nesse campo. Com o advento da era
digital vivenciamos a potencialização das tecnologias de infor-
mação e comunicação e, com elas, um notório crescimento do
consumo da fotografia e um aumento exponencial da produção
de imagens fotográficas, se comparados com o período em que
esses dispositivos de produção de imagens nato digitais ainda
não existiam.
Como consequência do crescimento do número de ima-
gens produzidas, nos deparamos com uma questão preocupante:

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 143


a gestão e preservação desses arquivos, um dos grandes desafios
deste século. Essa afirmação pode ser ratificada com a publicação
recente do Arquivo Nacional (AN) que nos diz que:

com os avanços tecnológicos, houve grande produção e acúmulo


das fotografias digitais sem gestão arquivística. Isso acarretou o
armazenamento descontrolado e a ocupação de espaço de me-
mória de forma dispendiosa e desordenada. Tal situação, além
de aumentar a massa documental acumulada, ameaça a fidedig-
nidade, a autenticidade, o acesso e a preservação de longo prazo
desses documentos (AN, 2021, p. 2).

Trazendo o olhar para o nosso universo institucional, iden-


tificamos o Laboratório Fotográfico J. Pinto, inserido no Servi-
ço de Arquivo Histórico (SAH), do Departamento de Arquivo
e Documentação (DAD), da unidade Casa de Oswaldo Cruz
(COC), da FIOCRUZ como responsável por grande parte da
produção fotográfica nato digital da unidade, por meio das co-
berturas fotográficas de seus eventos e dos registros fotográficos
de bens e serviços oferecidos pela COC para a promoção e a
divulgação da ciência gerando, ao longo dos anos, extenso acer-
vo de imagens nato digitais que integram o arquivo da unidade.
Além disso, o laboratório atua na preservação digital do acervo
arquivístico físico custodiado pela COC, produzindo represen-
tantes digitais dos documentos históricos analógicos.
Além de pensarmos a problemática da preservação desses
documentos imagéticos digitais a longo prazo, precisamos en-
tender que, diante dessa massa documental fotográfica digital,
são necessários mecanismos que também facilitem a sua gestão
durante a primeira fase de vida desses registros, ou seja, naquela
em que estão sendo produzidos e inicialmente organizados pelos
seus produtores. A utilização de metadados embutidos direta-
mente no arquivo digital que contém a imagem fotográfica é um

144 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


dos mecanismos facilitadores para organização, recuperação da
informação, uso e reuso desses documentos fotográficos digitais,
bem como para a sua preservação.

Objeto digital

Partindo do entendimento prévio da relação da fotografia


com os arquivos e com a memória institucional; do reconheci-
mento da fotografia como item de coleção, artefato de evidência
e de valor probatório e, também, de seu reconhecimento como
documento arquivístico e suporte de memória, vamos começar
compreendendo alguns conceitos importantes neste trabalho.
De acordo com Ferreira (2006, p. 70), um objeto digital
é “[. . . ] todo e qualquer objeto de informação que possa ser re-
presentado através de uma sequência de dígitos binários (bits-
tream)”. Sendo assim, objeto digital é a nomenclatura dada ao
arquivo digital em si.
Esses objetos digitais podem ser oriundos de duas origens:
o nato digital, que é o objeto digital gerado a partir de um dis-
positivo digital (câmeras fotográficas, celulares, tablets, drones
etc.), ou o representante digital, que é o objeto digital criado
a partir do processo de digitalização de um documento previa-
mente existente, no formato analógico. No caso das fotografias,
o representante digital é criado a partir da digitalização de uma
fotografia existente em algum suporte físico (papel fotográfico,
negativos de vidro, negativos em triacetato etc.).
É importante entender que um objeto digital está classifi-
cado em três níveis: conceitual, lógico e físico. O primeiro deles,
o nível conceitual, refere-se à imagem reproduzida na tela do
dispositivo de leitura (celular, tablet, computadores, TVs etc.), é
a imagem que vemos. O segundo nível, o lógico, é o formato de
arquivo que constitui o objeto digital (JPEG, TIFF, PNG etc.).

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 145


O terceiro nível, o físico, está relacionado ao tipo de suporte ou
mídia em que esse objeto digital está armazenado (DVD, HD,
SSD etc.).

Figura 2. Níveis de abstração de um objeto digital

Fonte: Ferreira, 2006, p. 25.

Acervos analógicos e digitais

Uma vez entendidos os significados de objetos digitais e


suas possíveis origens (nato digital ou representante digital),
podemos começar a falar sobre o acervo que, de acordo com a

146 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


política de preservação dos acervos científicos e culturais da FIO-
CRUZ, é um “conjunto de bens que integram o patrimônio de
um indivíduo, de uma instituição, de uma nação, agrupados por
atribuição de valor, segundo sua natureza cultural ou científica e
seguindo uma lógica de organização” (FIOCRUZ, 2020, p. 10).
As fotografias são importantes ativos dentro dos acervos
pessoais e institucionais e, na era digital, isso não é diferente.
Compreendemos a igual legitimidade entre os documentos fo-
tográficos nato digitais e os analógicos, logo devemos ter as mes-
mas preocupações com sua preservação.
A gestão de um acervo, seja ele analógico ou digital, pode
ser uma tarefa árdua e complexa. Em ambos os casos são neces-
sários mecanismos que garantam sua integridade, fidedignidade
e permanência no tempo. Precisam ser organizados, classificados
e ter meios que facilitem a recuperação dos documentos que o
integram, bem como as informações existentes nesses documen-
tos de forma rápida e simples, facilitando o dia a dia do produtor
e do usuário desse acervo. É importante também que tais ações
contribuam, se possível, para as estratégias que garantam sua
existência e acesso a longo prazo.

Figura 3. Visão de acervos analógico e digital não organizados.

Fonte: Criado pelo autor.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 147


Na figura 3, podemos criar um paralelo entre dois cenários
caóticos em distintos acervos. Na esquerda, um acervo analógico
e, na direita, um acervo digital. Olhando a imagem do acervo
analógico, percebemos um grupo de documentos aparentemente
organizados em prateleiras nas estantes e, no chão, muitos ma-
teriais totalmente desordenados, tornando muito difícil a tarefa
de encontrar e recuperar algum documento, alguma informação
específica.
Quando olhamos para imagem do acervo digital, apesar
da aparente organização, na prática, não existe muita diferença
entre esse acervo e o analógico, pois ambos apresentam, em al-
gum nível, um elevado grau de desordem. Na primeira janela do
acevo digital encontramos um conjunto de pastas nomeadas por
datas no padrão AAAA-MM (ano-mês), o que contribui para a
ordenação e organização dessas pastas, mas só isso não é o su-
ficiente para garantir uma recuperação eficiente da informação
contida nesse acervo digital.
Quando entramos em uma das pastas desse grande acervo
digital — janela pequena à direita sinalizada pela seta — po-
demos ver que não há mais nenhuma organização secundária,
os objetos digitais estão todos agrupados e seus nomes são os
atribuídos automaticamente pelos dispositivos que geraram tais
objetos digitais.
Olhando a imagem do conteúdo existente dentro de uma
pasta do acervo digital e olhando para os materiais ao chão do
acervo analógico, nos deparamos com o mesmo problema, ou
seja, a dificuldade de recuperação de algum documento, alguma
informação específica contida em um documento físico (no caso
do acervo analógico) ou alguma informação específica contida
em um desses objetos digitais (no caso do acervo digital).

148 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


O produtor-preservador

Em relação aos documentos fotográficos digitais, precisa-


mos pensar em mecanismos facilitadores para sua gestão, desde
o momento de sua concepção, e manter as condições desta pre-
servação e deste acesso por todo o tempo em que o documento
permanecer sob a guarda do produtor.
No mundo digital, o produtor, em muitos casos, também
desempenhará a função de preservador por um tempo significa-
tivo, pois nem sempre os documentos fotográficos digitais pro-
duzidos serão imediatamente tratados como documentos perma-
nentes, ou seja, de valor para integrar um arquivo em caráter
definitivo.
Ter uma estrutura de nomes para as pastas e os objetos digi-
tais, preferencialmente pautada em princípios arquivísticos e ob-
servando as limitações do sistema digital utilizado (obedecendo
ao tamanho máximo de caracteres para nomeação de arquivos e
pastas e não utilizando caracteres especiais, por exemplo) contri-
buirá para uma gestão mais eficiente.
Na perspectiva da recuperação da informação contida nes-
ses objetos digitais ainda sob a guarda do produtor, um impor-
tante recurso é a utilização de metadados embutidos no próprio
objeto digital.

Metadados

Para os fins que o trabalho propõe, é necessário definir o


que são metadados. Segundo Santos (2018, p. 131)

Metadados são informações estruturadas que descrevem, ex-


plicam, localizam ou tornam mais fácil recuperar, utilizar ou

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 149


g­ erenciar um recurso de informação. São frequentemente cha-
mados de dados sobre dados ou informações sobre a informação.

Partindo desse conceito, podemos compreender que a uti-


lização de metadados não é algo novo, relacionado apenas à era
digital. Eles estão incorporados em nosso cotidiano há muito
tempo, pois já eram utilizados nos documentos físicos na era
analógica.
À guisa de exemplo, era comum, nos documentos fotográ-
ficos, encontrar anotações em seu verso contendo informações
descritivas sobre aquela imagem — o local, o item retratado, a
data de produção da imagem etc. Essas eram informações rela-
cionadas àquela imagem, ou seja, metadados daquela imagem.
Na figura 4, observa-se a frente e o verso de uma fotografia.
No verso, podemos visualizar as anotações sobre o evento (local,
ano, autor da foto), metadados da imagem.

Figura 4. Frente – Cerimônia de Criação da Casa de Oswaldo


Cruz. Verso – Anotações manuscritas referente a imagem, onde
podemos identificar o evento, local, ano e autor da imagem

Fonte: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ.

Além de informações inscritas no próprio documento, catá-


logos, inventários ou listagens, instrumentos de pesquisa que an-
tecederam as bases de dados informatizados, também ­continham

150 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


os metadados resultantes do trabalho de organização dos acer-
vos. Podemos ver na figura 5 o exemplo de uma fotografia e sua
descrição catalográfica, após processo de identificação e organi-
zação. A imagem integra o Fundo Carlos Chagas, e o catálogo
fotográfico, com a descrição dos documentos textuais, faz parte
do inventário do arquivo publicado pelo Departamento de Ar-
quivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ.

Figura 5. A esquerda, descrição da foto da visita


de Albert Einstein à instituição (p. 103 do i­nventário)
e a direita a foto descrita (p. 129 do inventário)

Fonte: Acervo da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ.

Assim como na era analógica era possível ter as anotações


informativas referentes à imagem diretamente no verso da fo-
tografia, ou seja, no próprio objeto, também é possível, na era
digital, tê-las embutidas no próprio objeto digital.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 151


Figura 6. Visualização de alguns ­metadados
­embutidos diretamente no objeto digital

Fotos: J. Mendonça. Fonte: Acervo Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ.

Na figura 6 é possível visualizar alguns metadados ao pas-


sar o mouse por cima da imagem no gerenciador de arquivos do
Windows. Vemos a data e horário no qual a imagem foi concebi-
da, tipo e tamanho do arquivo, evento, local, entre outros. Essas
são as anotações feitas diretamente no objeto digital.
Na literatura, encontramos diferentes modelos de divisão
de grupos de metadados. Para Kenney et al. (2001) os metada-
dos dividem-se em três grupos na área de preservação e digita-
lização de acervos de imagens: metadados descritivos, que têm
por função descrever o conteúdo dos recursos informacionais;
metadados estruturais, que têm a função de fornecer insumos
sobre infraestrutura; e metadados administrativos, que fazem o
controle de acesso a cada um dos recursos informacionais, dando
apoio aos processos de gestão no ciclo de vida dos recursos infor-
macionais. Incluem metadados referentes aos direitos relaciona-
dos ao recurso em questão, bem como informações relacionadas
à sua criação e razão de ter sido criado.
Já para Gilliland-Swetland (2002), os metadados são divi-
didos em cinco tipos, conforme tabela 1:

152 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Tabela 1. Reprodução dos tipos de metadados quanto à sua função

TIPO DEFINIÇÃO EXEMPLOS


Administrativo Metadado utilizado na ad- • Aquisição de informação
ministração de recursos de • Direitos de reprodução
informação • Critérios de seleção para
digitalização etc.
Descritivo Metadado para descrição de re- • Catalogação de registros
cursos de informação • Índices especializados etc.

De Metadado utilizado para preser- • Documentação das con-


Preservação vação de recursos de informação dições físicas dos recursos
etc.
Técnico Metadado utilizado para co- • Hardware e software
nhecer as funções de um siste- • Dados de segurança
ma ou o comportamento dos • Documentação etc.
metadados
De Uso Metadado relativo ao nível e • Registros de exibição
tipo de uso de um recurso de • Sumário de reúso e de ver-
informação sões etc.
Fonte: Gilliland-Swetland (2002, p. 5).

Sobre este assunto, a FIOCRUZ produziu, no ano de 2020,


o documento Padrão de Metadados de Documentos Arquivísticos
Digitais da Fundação Oswaldo Cruz (Manual de aplicação para
a fase produção de documentos), no qual oferece orientações para
a realização da descrição dos objetos digitais, sendo eles nato
­digitais ou representantes digitais. Voltado para as ações na fase
de produção de documentos, o documento define a utilização de
metadados mínimos, apenas de dois tipos, descritivos e técnicos,
conforme tabela 2:

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 153


Tabela 2. Lista de metadados descritivos e metadados técnicos
PADRÃO DE METADADOS MÍNIMOS PARA
­UTILIZAÇÃO (Gênero Iconográfico)
Metadados Descritivos Metadados Técnicos
1. Número do documento 1. Formato do arquivo
2. Tipo de meio 2. Tamanho do arquivo
3. Título 3. Resolução linear
4. Nome(s) do(s) produtor(es) 4. Profundidade de cor
5. Data de produção 5. Responsável pela digitalização
6. Local de produção 6. Responsável pela modificação do
7. Assunto arquivo
8. Descrição 7. Software de captura da imagem
9. Colaborador(es) 8. Software de processamento da imagem
10. Relação com outros documentos 9. Data da digitalização
11. Localização do arquivo 10. Data da modificação do arquivo
11. Código de referência do documento
original
12. Modo de cores
Fonte: Padrão de Metadados de Documentos ­Arquivísticos
Digitais da Fundação Oswaldo Cruz, 2020.

As orientações contidas nesse documento buscam contri-


buir para a padronização dos metadados em diferentes gêneros
do acervo arquivístico institucional e preparar tais documentos
para o momento da preservação permanente, quando serão en-
caminhados para o Repositório Arquivístico Digital Confiável
(RDC-Arq).3

3 Conjunto de procedimentos normativos e técnicos que tem por finalidade


manter a autenticidade dos materiais digitais nele custodiados, garantindo
sua preservação e dando acesso a eles pelo tempo necessário. Para saber

154 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


É importante assinalar que existem diversos padrões de me-
tadados, tais como: PREMIS, Dublin Core, MODS, MARC,
EXIF, XMP, IPTC core, IPTC Extension. No caso das foto-
grafias, os que mais contemplam suas especificidades são os pa-
drões IPTC e XMP, por terem sido pensados para esse gênero
documental.
Tratando-se de documentos fotográficos nato digitais, uma
gama de metadados técnicos é gerada e embutida no próprio
objeto digital, automaticamente, no momento de sua concep-
ção. Ao produzirmos uma fotografia em um celular, ou câmera
fotográfica digital, ou tablet, ou drone etc., alguns metadados téc-
nicos são criados e inseridos no arquivo gerado pelo dispositivo.
Como exemplo, uma fotografia concebida a partir de uma câ-
mera fotográfica digital teria certos metadados técnicos gerados
automaticamente, como o modelo da câmera e da lente utiliza-
das, data e horário de produção da imagem, sensibilidade ISO,
abertura do diafragma (f/stop), modo de flash, balanço de branco,
dentre outros. Esses são exemplos de metadados técnicos do pa-
drão EXIF.
Neste capítulo, falaremos apenas de metadados descritivos
do padrão IPTC, por ser o padrão pensado para a fotografia e,
por isso, utilizado em softwares voltados para o trabalho fotográ-
fico, além de possuir campos necessários para a criação da relação
entre a imagem digital e seu contexto de produção.

mais, consultar: <https://www.tre-to.jus.br/transparencia-e-prestacao-


de-contas/gestao-documental/rdc-arq#:~:text=Reposit%C3%B3rio%20
Arquiv%C3%ADstico%20Digital%20Confi%C3%A1vel%20%2D%20
RDC,a%20eles%20pelo%20tempo%20necess%C3%A1rio>. Acesso em: 20
out. 2022.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 155


Embutindo metadados nos objetos digitais

A utilização de metadados nos objetos digitais fotográficos


é uma prática indispensável quando se pensa em preservação di-
gital. Fazer uso desses metadados embutidos é o que garante que
o documento fotográfico digital, ou seja, o objeto digital fotográ-
fico, esteja sempre acompanhado de seus respectivos metadados.
Dessa forma, garantimos a permanência dos dados associados à
origem do documento, tornando possível a sua recuperação e as-
segurando a compreensão do objeto digital fotográfico em todo
o seu tempo de vida e uso.
Poder extrair de uma coleção de milhares de documentos
fotográficos digitais somente aqueles pertencentes a um deter-
minado acontecimento, ou aqueles produzidos em um determi-
nado lugar, ou que retratam apenas uma pessoa ou um grupo
de pessoas, ou mesmo ter como resultado a combinação de al-
guns critérios como os expostos anteriormente, são algumas das
vantagens de se trabalhar com metadados embutidos no objeto
digital fotográfico.
Existem diferentes maneiras e diferentes softwares para em-
butir metadados nos objetos digitais. Em relação a softwares, te-
mos os livres (softwares que têm seu código fonte aberto, ou seja,
seus códigos são disponibilizados para uso ou modificações, de
acordo com as necessidades dos usuários ou desenvolvedores),
como o XnView MP e o DigiKam, e os proprietários (softwa-
res que têm direitos exclusivos para aqueles que os produziram),
como o Adobe Bridge, o Adobe Lightroom e o Windows Explo-
rer (gerenciador de arquivos do sistema operacional Windows),
por exemplo. Nos deteremos nos softwares proprietários men-
cionados, dos quais os dois primeiros — Adobe Bridge e Adobe
Lightroom — possuem mais recursos e são mais utilizados pelos
profissionais da fotografia.

156 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Uma questão sempre levantada é o porquê de a comuni-
dade de profissionais da fotografia, principalmente os fotógra-
fos, darem preferência à utilização de softwares proprietários em
vez dos softwares livres. Isso acontece pelo fato de os softwares
proprietários terem mais recursos disponíveis para o trabalho
de pós-produção da imagem (momento do tratamento das ima-
gens), além de já possuírem suporte para trabalhar os metadados
da imagem, proporcionando que todo o fluxo de trabalho seja
feito no mesmo conjunto de ferramentas, tornando o processo
de trabalho mais fluido e eficiente.
Um cuidado que se deve ter ao trabalhar com metadados
embutidos diz respeito ao fato de que alguns softwares e apli-
cativos removem os metadados (WhatsApp, por exemplo) ou
sobrescrevem esses metadados. Antes de adotar determinada fer-
ramenta de forma definitiva, é necessário fazer testes com cópias
de documentos para se certificar de que tudo funciona conforme
o esperado.
Ao trabalhamos com metadados embutidos diretamente
no objeto digital fotográfico, precisamos garantir que os cam-
pos de metadados escolhidos para preenchimento de informa-
ções garantam a conexão dos objetos digitais fotográficos a seus
contextos de produção. Sendo assim, seja por meio do preenchi-
mento dos campos de metadados ou apenas com a utilização de
palavras-chave, precisamos responder minimamente às seguintes
perguntas: Onde? Quando? Quem? O quê? As respostas a essas
perguntas básicas permitirão identificar cada imagem digital.
Para que isso ocorra, temos de registrar o local e a data
da produção da imagem, quem ou o que está sendo retratado e
qual o assunto. Além desses campos, é importante também do-
cumentar o demandante daquele registro e o autor da produção.
Os primeiros registros dizem respeito ao conteúdo informativo
da imagem e serão úteis para a compreensão do que a fotogra-
fia mostra, seu potencial informativo. Já os últimos registros são

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 157


importantes para entendermos a origem institucional (ou pes-
soal) de uma imagem, o demandante de sua produção e sua lo-
calização na estrutura institucional — que aponta para a função
projetada para aquele documento —, bem como o autor da fo-
tografia, informação fundamental para garantir futuros usos, de
acordo com a legislação do direito autoral.
Existem muitos outros campos que podem ser utilizados
no momento da inserção de metadados no objeto digital foto-
gráfico. Caberá a cada produtor analisar quais outros campos são
pertinentes ou não, segundo suas necessidades e as necessidades
de sua instituição.
Uma das maneiras mais simples de inserir os metadados
no objeto digital é utilizando o próprio gerenciador de arquivos
do sistema operacional do computador, por exemplo, o Windo-
ws Explorer do sistema operacional Windows. Outra forma, bem
conhecida na comunidade de fotógrafos, é por meio do software
Bridge (software catálogo de imagens do pacote Adobe).
Neste trabalho, detalharei a inserção de metadados a partir
do Lightroom – LR por ser um software mais completo e que utili-
zo tanto em meu cotidiano de trabalho no Laboratório Fotográ-
fico J. Pinto, quanto na carreira autônoma. Esse software permite
fazer a inserção dos metadados no momento da pós-produção
e com possibilidades de otimização de processos que aceleram
e simplificam essa ação. Além dele, mencionarei brevemente o
software Adobe Bridge e a inserção de metadados por meio do
gerenciador de arquivos do Windows (o Windows Explorer).

Embutindo metadados no objeto digital


com o software Adobe Lightroom

Para melhor compreensão, vejamos o processo prático de


inserção de metadados nos objetos digitais, por meio do software

158 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Adobe Lightroom – LR. Ele possui um fluxo de trabalho específi-
co, graças ao fato de ser um software que vai além do trabalho de
pós-produção de imagens, funcionando como um verdadeiro ca-
tálogo de imagens que permite o desempenho de várias funções.
Quando criamos um catálogo de imagens no LR, criamos
um ambiente virtual de pós-produção, no qual é possível, em
vez de alterar as imagens originais, trabalhar com representantes
dessas imagens por meio do processo de importação (processo
responsável por gerar representantes das imagens originais den-
tro do catálogo do software), garantindo, assim, a integridade do
objeto digital original — aquele arquivo do jeito que foi conce-
bido, da maneira como foi capturado pela câmera.
No Lightroom é possível classificar, catalogar e gerenciar
objetos fotográficos digitais. Por meio dele, podemos fazer a in-
serção de metadados nos objetos digitais, seja de forma indivi-
dualizada ou por lotes de imagens.
O LR possui várias abas de trabalho, cada uma com sua es-
pecificidade. Para o preenchimento dos metadados, trabalhamos
na aba “Biblioteca”, em que podemos ver as propriedades de
cada objeto digital fotográfico, ou seja, os metadados do objeto
digital selecionado.
Para fazer o preenchimento dos metadados, primeiro pre-
cisamos definir o que queremos preencher. Essa ação pode ser
realizada de duas maneiras: acionando o menu “Predefinição”,
na aba lateral direita, ou escolhendo o menu “Metadados”, op-
ção “Editar predefinições de metadados”.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 159


Figura 7. Opção de início do processo de predefinição de
metadados pelo menu “Metadados”, item “Editar pre-
definições de metadados” do software Lightroom

Fonte: Criado pelo autor.

Em ambas as opções, o usuário é direcionado para esta ja-


nela de edição dos metadados, possibilitando predefinir os cam-
pos que são relevantes para o conjunto de imagens digitais em
questão.

160 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Figura 8. Visão das abas contidas na caixa de diálogo para
preenchimento dos metadados no software Lightroom

Fonte: Criado pelo autor.

Dentro de cada uma das abas (Informações básicas, Infor-


mações da Câmera, Conteúdo IPTC etc.), existe um conjunto
de informações que pode ser preenchido.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 161


Figura 9. Visão dos campos para preenchimento de algumas
abas da caixa de diálogo dos metadados no software Lightroom

Fonte: Criado pelo autor.

Ao final do preenchimento dos campos disponíveis na ja-


nela, é possível salvar como uma predefinição. Fazendo uso deste
recurso, é possível ter um conjunto de metadados predefinidos,
prontos para serem incorporados a novas imagens a qualquer
momento.

162 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Figura 10. Visão dos campos para preenchimento de algumas
abas da caixa de diálogo dos metadados no software Lightroom

Fonte: Criado pelo autor.

Outra informação importante diz respeito à possibilidade


de escolher predefinições de metadados prontas para serem utili-
zadas, de acordo com a natureza de cada trabalho. Por exemplo,
imaginemos um produtor que produza dois tipos de conteúdo
frequentemente: cobertura de reuniões de uma diretoria e acom-
panhamento periódico de obras de um determinado prédio.
Dois tipos de trabalhos fotográficos bem distintos. Esse produtor
poderia criar um conjunto de metadados voltados para a realida-
de de cada um desses eventos e fazer uso dele quando necessário,
sem precisar preencher todos os campos a cada novo trabalho,
preenchendo somente as informações específicas de cada even-
to fotográfico, por exemplo, os integrantes que participaram de
determinada reunião ou o local exato do prédio onde foi feito o
reparo retratado.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 163


Utilizando palavras-chave

As palavras-chave são termos que sintetizam um conteúdo,


servem para representar o assunto ou o tema do documento tor-
nando possível, com seu emprego, a recuperação de determinado
item específico ou um conjunto de informações, a partir de uma
busca por esses termos. As palavras-chave são um campo de me-
tadados de grande relevância para os mecanismos de busca na
hora de se pesquisar algum conteúdo.
Podemos observar, na imagem abaixo, um conjunto de fo-
tos que está inserido em um catálogo do Lightroom. No item
1, temos a imagem que foi escolhida para receber a inserção de
palavras-chave (metadados).

Figura 11. Detalhe da janela de preenchimento de palavras-chave

Fonte: Criado pelo autor.

O LR permite que seja feita a inserção de metadados de


maneira singular ou em lote. Isso é um recurso importante para
missões fotográficas formadas por imagens muito semelhantes e

164 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


que podem ser descritas em conjunto, sem perda de informações
de conteúdo e de contexto de produção.
Da mesma forma, no tratamento de arquivos fotográficos
permanentes, também é facultado ao organizador/descritor a de-
cisão metodológica de tratar a imagem como item ou como inte-
grante de um dossiê ou série, o que significará, nesse último caso,
uma única descrição para um conjunto de imagens que guardam
entre si relações de produção, de conteúdo, de tema ou assunto.
No item 2 se encontra a janela de inserção das palavras-
-chave. Ali, separadas por vírgula ou ponto e vírgula, podemos
inserir o conjunto de palavras que irão ser embutidas nas ima-
gens que estiverem selecionadas. As palavras-chave irão integrar
a catalogação dessas imagens, permitindo uma busca direcionada
posteriormente.
Para obtermos um resultado relevante nesse processo é im-
portante a adoção de um vocabulário controlado para atribuição
destes termos (palavras-chave), pois a atribuição de termos livres
nessa ação impactaria, de forma negativa, o futuro processo de
busca das informações. A esse respeito, a Casa de Oswaldo Cruz,
em sua Política de Indexação dos acervos da Casa de Oswaldo Cruz,
sugere que “havendo uma padronização, reduz-se a quantidade
de termos utilizados, facilitando o trabalho do documentalista e
evitando excessivas variações na indexação” (2019, p. 10).
Ao inserirmos uma palavra-chave em uma ou mais fotos
do catálogo em utilização, o Lightroom acumula essa palavra de
forma incremental, armazenando-a em uma área onde fica dis-
ponível para novas utilizações. Essa área é a janela de sugestões
de palavras-chave (item 3). Dessa maneira cria-se, de forma au-
tomática, um banco de palavras-chave. Como dissemos, é reco-
mendado o controle de produção desse vocabulário, o que pode
ser feito mediante a consulta de listas controladas já existentes
na instituição, por exemplo, em bibliotecas. Os novos termos
sugeridos pela organização de outros tipos de acervo, como é o

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 165


caso de fotografias, tornam-se termos candidatos e podem vir a
ser incluídos na listagem controlada, mediante avaliação.
Quanto a isso, a Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ desen-
volveu o Manual de Boas Práticas de Indexação dos Acervos da Casa
de Oswaldo Cruz, publicação integrante da política de indexação,
já mencionada, que tem por objetivo auxiliar os profissionais que
realizam o tratamento técnico dos acervos visando possibilitar
uma recuperação mais eficiente e uniforme de informações.
As palavras-chave exibidas nesta janela podem ser inseridas
na imagem selecionada, a partir de um simples toque sobre a pa-
lavra, não sendo necessário digitá-la no campo de inserção. Esse
recurso fica disponível apenas durante a utilização do catálogo
em uso. Ao iniciar um novo catálogo essa janela de sugestões vol-
ta a ficar vazia, esperando a inserção das primeiras palavras-chave
do novo trabalho fotográfico.
O item 4, é a janela de conjunto de palavras-chave. Assim
como podemos criar vários padrões predefinidos de conjunto de
metadados — assunto já tratado aqui — nessa janela podemos
fazer algo semelhante, porém, com as palavras-chave, ou seja,
podemos ter vários conjuntos de palavras-chave predefinidos de
acordo com determinado assunto. Por exemplo, um conjunto
de palavras-chave para fotografia de arquitetura, outro para pai-
sagens, outro para recepções etc. Esse recurso, uma vez criado,
fica disponível para os novos catálogos que venham a ser criados.
A última janela, item 5, é a janela de lista de palavras-chave.
Nela constam todas as palavras-chave que estão cadastradas no
catálogo corrente, ou seja, todas as palavras-chave já embutidas
em alguma imagem. Percebam que algumas dessas palavras estão
com suas caixas de seleção marcadas, elas são as que estão em
uso na imagem ou imagens selecionadas na coluna central. Essa
é outra maneira de visualizar a lista de palavras-chave existente
no catálogo corrente, permitindo escolher, a partir da caixa de

166 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


seleção contido ao lado de cada uma delas, quais queremos in-
corporar na imagem ou nas imagens selecionada(s).

Embutindo metadados no objeto digital


com o software Adobe Bridge

A aparência da área de trabalho do software Adobe Bridge


guarda semelhança com a do Adobe Lightroom, uma vez que sua
estrutura é dividida em três colunas, tendo, à esquerda a coluna
de navegação da estrutura de pastas contidas no dispositivo de
armazenamento em uso (HD, SSD etc.), na coluna central, as
imagens da pasta explorada e, à direita, as informações referentes
à imagem ou às imagens selecionada(s).

Figura 12. Aparência da área de trabalho do software Adobe Bridge

Fonte: Criado pelo autor.

Assim como no LR, no Adobe Bridge também é possível


criar padrões predefinidos de metadados. Para isso, acessamos o
menu “Tools” e a opção “Create Metadata Template”.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 167


Figura 13. Detalhe da área de trabalho do software Adobe
Bridge, mostrando o conteúdo do menu “Tools”

Fonte: Criado pelo autor.

No Bridge, assim como no Lightroom, temos uma janela


de cadastro dos metadados. Ao entrarmos em cada um dos itens
(IPTC Core, IPTC Extension, Camera Data (Exif) etc.) encon-
tramos os campos disponíveis para preenchimento.

168 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Figura 14. Janela de template de ­criação
de ­metadados do Adobe Bridge

Fonte: Criado pelo autor.

Na figura 15 podemos visualizar o grupo de campos exis-


tente dentro do IPTC Core e parte do existente dentro do IPTC
Extension.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 169


Figura 15. Detalhe da área de trabalho do software Adobe Bridge,
mostrando campos preenchíveis dentro das abas de metadados

Fonte: Criado pelo autor.

O Adobe Bridge, por ser um software de catálogo de ima-


gens, é uma ferramenta de grande potencial na prática de in-
serção de metadados diretamente no objeto digital fotográfico.
Ele possui uma ampla abrangência de campos de metadados
disponíveis para preenchimento. Além dos campos de metada-
dos preexistentes, ele ainda permite a criação de novos campos
— sendo possível, dessa forma, adequar os tipos de metadados
a serem utilizados de acordo com as necessidades do produtor.
Assim como o Lightroom, o Bridge também tem suporte para
operar sobre uma única imagem ou sobre um conjunto delas
simultaneamente.

170 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Embutindo metadados no objeto digital
com o gerenciador de arquivos do Windows

Outra maneira de introduzir metadados diretamente no


objeto digital fotográfico é por meio da utilização do gerenciador
de arquivos do sistema operacional (como exemplo, o Windows
Explorer, que é o gerenciador de arquivos do sistema operacional
Windows).
Essa é uma maneira mais simples e mais limitada — sem
a disponibilidade de tantos campos como os demais softwares.
Porém, tendo como base uma boa estratégia de metadados, é
possível dar o suporte necessário para uma recuperação mais efi-
ciente da informação contida no objeto digital fotográfico. Um
ponto em comum com os demais softwares é a possibilidade de
inserir metadados em uma única imagem ou em um grupo delas.

Figura 16. Detalhe do processo de inserção de


­metadados em objetos digitais a partir do ­Windows
­Explorer (gerenciador de arquivos do Windows)

Fonte: Criado pelo autor.

Na figura 16, podemos acompanhar o processo de inserção


de metadados diretamente no objeto digital por meio do Win-
dows Explorer. A partir do acesso à pasta em que estão armaze-
nadas as imagens que deverão receber os metadados, seleciona-se

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 171


a imagem ou as imagens a serem submetidas ao processo de in-
serção (primeiro quadro da figura, no sentido da esquerda para
a direita).
Uma vez selecionada(s), deve-se clicar com o botão direito
do mouse e selecionar a opção “Propriedades” (segundo quadro
da figura). Ao abrir a janela de propriedades, entra-se na aba
“Detalhes” (terceiro quadro da figura). A partir dessa janela, é
possível acessar alguns campos preenchíveis com os metadados,
como: título, assunto, comentários, marcas (que são nossas pala-
vras-chave), autores, dentre outros.

Recuperando a informação

Após compreendermos as possibilidades de inserção de me-


tadados diretamente no objeto digital em diferentes softwares,
vale discutir a etapa de recuperação da informação contida nos
documentos fotográficos digitais.
Existem diferentes maneiras de obter essa recuperação, de-
pendendo da ferramenta escolhida para essa ação. Aqueles que
trabalham com o Lightroom, podem fazer buscas utilizando di-
versas formas de cruzamento de dados para encontrar um resul-
tado mais refinado. O LR tem uma área totalmente dedicada à
pesquisa em seu catálogo, na qual podem ser utilizadas, como
ponto de acesso, palavras-chave, marcações por cores, sistema de
ranking com atribuições de estrelas (caso o produtor tenha defi-
nido algum para as imagens), como também pesquisar pelo tipo
de equipamento que produziu a imagem ou, até mesmo, por
imagens que foram feitas com determinada lente, determinada
abertura de diafragma etc.

172 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Figura 17. Vista da área de pesquisa do software Lightroom

Fonte: Criado pelo autor.

Já para aqueles que trabalham com o software Adobe Bridge,


podemos fazer uma busca rápida pela janela de busca (seleção 1),
ou utilizar uma busca mais refinada, a partir do menu “Edit” e
opção “Find”, ou por seu atalho na coluna da direita da área de
trabalho do software (seleção 2).

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 173


Figura 18. Vista da área de pesquisa do software Adobe Bridge

Fonte: Criado pelo autor.

Na figura 19, podemos ver a janela de busca mais refinada


do Adobe Bridge, em que podem ser determinados o local espe-
cífico da pesquisa e seus critérios, permitindo também o cruza-
mento de informações a partir do uso multinível de critérios,
assim como o Lightroom, ou seja, é possível pedir novas linhas de
critérios a partir do botão “+” e utilizar múltiplos critérios para
deixar a busca mais específica.

174 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


Figura 19. Vista da área de pesquisa refinada do software Adobe Bridge

Fonte: Criado pelo autor.

As duas opções de busca apresentadas até aqui são mais


aprimoradas destacando, principalmente, a ferramenta do LR.
Porém, nem todos têm acesso ou trabalham com estes softwares.
Como solução para isso, sugerimos a opção de realizar as buscas
pelos metadados inseridos diretamente no objeto digital, utili-
zando como ferramenta o próprio gerenciador de arquivos do
sistema operacional. A figura 20 ilustra o processo de busca por
meio do Windows Explorer, que é o gerenciador de arquivos do
sistema operacional Windows.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 175


Figura 20. Vista do processo de pesquisa feito pelo Windows Explorer

Fonte: Criado pelo autor.

No quadro à esquerda, item 1 na figura 20, visualizamos


a área do gerenciador de arquivos do Windows, contendo uma
série de documentos e pastas. No quadro superior à direita,
percebemos que o usuário inseriu um termo (castelo) para ser
pesquisado na janela de pesquisa do Windows Explorer e, como
resultado, obteve três imagens.
No quadro inferior à direita, percebe-se um refinamento
dessa pesquisa, combinando um novo termo ao já inserido (jar-
dim) para a pesquisa. Nesse caso, as imagens recuperadas serão
aquelas que contêm ambos os termos (castelo e jardim) e, como
resultado, se recupera apenas uma imagem.
No caso dessa pesquisa em particular, foram utilizados ape-
nas termos que estavam cadastrados no campo de palavras-cha-
ve com o objetivo de mostrar que, mesmo utilizando apenas o
campo das palavras-chave, já é possível recuperar um conteúdo
existente no objeto digital, ou seja, mesmo que a inserção de
metadados seja feita pelo gerenciador de arquivos do sistema

176 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


o­ peracional, o usuário conseguirá recuperar as informações de
forma simples e eficiente.
Para finalizar, gostaria de relembrar a imagem do acervo
digital não organizado (figura 3), para traçar um paralelo com o
momento de recuperação da informação contida no objeto digi-
tal fotográfico com base em pesquisa por metadados (figura 20).
Percebemos que, com a utilização dos metadados embutidos di-
retamente no objeto digital, seria possível recuperar uma infor-
mação ou um documento até mesmo em um cenário de acervo
digital não organizado.

Considerações finais

O problema gerado pelo boom da era digital, que levou


à necessidade de desenvolver meios de administrar o número
crescente de arquivos digitais (sejam eles nato digitais ou repre-
sentantes digitais), deu origem a numerosos debates acerca da
preservação e do acesso a esses acervos. A inserção de metada-
dos diretamente no arquivo destaca-se como um facilitador na
recuperação de um objeto digital fotográfico tanto em acervos
permanentes quanto em ferramenta cotidiana de trabalho em
acervos de uso corrente.
Na gestão dos documentos fotográficos nato digitais, é ne-
cessário refletir sobre mecanismos que identifiquem cada objeto
digital de forma única, permitindo que seja possível recuperá-lo
a partir do mecanismo de busca mais simples possível por meio
do uso de codificações que os diferenciem. É importante lembrar
que esses mecanismos devem, preferencialmente, ser pautados
em princípios arquivísticos e que também respeitem as limita-
ções do sistema digital utilizado. A adoção de um vocabulário
controlado para utilização de palavras-chave contribuirá para
maior relevância do processo de recuperação da informação.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 177


A utilização de metadados embutidos diretamente no obje-
to digital fotográfico é uma premissa básica que auxilia na gestão
dos documentos fotográficos digitais, garantindo a identificação
dos contextos de sua produção, bem como potencializando ma-
neiras de organizar, referendar, pesquisar e recuperar determi-
nada imagem, de acordo com os parâmetros utilizados para a
pesquisa, facilitando o acesso, a interoperabilidade, o uso e o
reúso dos dados e, posteriormente, a preservação digital.

Referências

ARQUIVO NACIONAL. Recomendações para o tratamento de


fotografias digitais no contexto da gestão de documentos. Rio de
Janeiro, jul. 2020. Atualizado em: 20-5-2021. Disponível
em: <https://www.gov.br/arquivonacional/pt-br/centrais-de-
conteudo-old/recomendacao-05-2020-a-pdf>. Acesso em: 10
out. 2022.
CASA DE OSWALDO CRUZ. Política de indexação dos acervos da
Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/COC. 2019.
24p. Disponível em: <http://www.coc.fiocruz.br/images/stories/
PDFs/OK_politica_indexacaoo_digital.pdf>. Acesso em: 10
out. 2022.
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actuais consensos. Guimarães, Portugal: Escola de Engenharia do
Minho, 2006.
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dexação da Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/
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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (ed.). Política de Preservação
dos acervos científicos e culturais da FIOCRUZ. Rio de Janeiro:
2020. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/
icict/44749/2/politica_acervos_Fiocruz_2020.pdf>. Acesso em:
11 out. 2022.

178 ∫ Jeferson Mendonça & Aline Lopes de Lacerda


GILLILAND-SWETLAND, A. J. Introduction to metadata: setting
the stage. 2002. Disponível em: <https://www.getty.edu/
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Informação – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Ho-
rizonte, 2018.

A utilização de metadados embutidos no objeto digital... ∫ 179


7.
NARRATIVAS E AUTORIDADES:
SUBSÍDIOS PARA UMA CURADORIA
COMPARTILHADA NO MUSEU AFRODIGITAL
DO RIO DE JANEIRO

Suzana Camillo Marques1

E
ste capítulo é resultado do mestrado Narrativas e Au-
toridades: subsídios para uma curadoria compartilhada
no Museu Afrodigital do Rio de Janeiro, defendido em
2020, pelo Programa de Pós-Graduação da Casa de Oswaldo
Cruz (COC/FIOCRUZ), em Preservação e Gestão do Patri-
mônio Cultural das Ciências e da Saúde (PPGPAT).

1 Museóloga. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Preservação e


Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo
Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a dissertação intitulada “Narrati-
vas e Autoridades: subsídios para uma curadoria compartilhada no Museu
Afrodigital do Rio de Janeiro”, sob orientação do professor doutor Rafael
Zamorano Bezerra, em 2020. Contato: [email protected].

180 ∫ Suzana Camillo Marques


A pesquisa teve como objeto de estudo o Museu Afrodi-
gital do Rio de Janeiro, vinculado à Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), criado em 2009 e aprovado em 2010.
O Museu Afrodigital da UERJ faz parte de uma rede de mu-
seus afrodigitais,2 que teve seu início na Universidade Federal da
Bahia (UFBA), pelo professor, pesquisador e antropólogo Livio
Sansone. Segundo Sansone (2012; 2013) o projeto do Museu
Digital, era denominado de “Museu Digital da Memória Africa-
na e Afro-Brasileira”, surgindo a partir da experiência adquirida
em projetos vinculados a arquivos antropológicos sobre a diás-
pora africana no Brasil, como o “Arquivo Digital dos Estudos
Afro-Baianos”, o projeto “Fábrica de Ideias” e o projeto “Com-
parando Pobrezas”.
Cada museu da rede possui autonomia para administrar
as atividades, já que atendem a aspectos particulares que cada
região demanda. Portanto, a missão do Museu Afrodigital da
UERJ consiste na digitalização e exposição de documentos sobre
a memória de negros no Rio de Janeiro. Assim, por meio de um
“museu digital”, buscam incluir, repatriar e divulgar documen-
tos sobre a memória da população negra.
Conforme Gabriel da Silva Vidal Cid (2012),3 o museu so-
brevive de editais, como o programa da Fundação Carlos Chagas
de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)/
Pensa Rio de Apoio ao Estudo de Temas Relevantes e Estratégias
para o Estado do Rio de Janeiro (2009), que deu origem ao mu-
seu. Desde 2019, está vinculado ao Programa de Extensão ligado

2 Além dos museus afrodigitais do Rio de Janeiro e da Bahia, participam da


rede o Museu Afrodigital da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e da Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT).
3 Membro do conselho consultivo/gestor e do conselho curador e de redação
no Museu Afrodigital.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 181


ao Departamento Cultural da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (DECULT).
O estudo foi realizado em decorrência do advento da inter-
net e sua relação com as esferas de poder e controle, assim como
as transformações ocorridas no âmbito da museologia e dos
museus. Também se abordou a relação entre museus e poder,
discutindo os principais atores envolvidos e quais dispositivos
de autoridade (Bezerra, 2014) que eles mobilizam no proces-
so de construção da narrativa museográfica que usam a inter-
net como ferramenta para a divulgação da memória da diáspora
afro-brasileira.
Asa Briggs & Peter Burke (2006) e Manuel Castells (1999;
2003), explicam que a internet foi criada nos Estados Unidos
da América, no fim da década de 1970, com o objetivo cien-
tífico-tecnológico de auxiliar nas estratégias de guerra. Nesse
mesmo período, as autoridades ligadas a ambientes acadêmicos
e de pesquisas e envolvidas com a finalidade militar, também
usaram o aparato para fins de estudos e para a comunicação aca-
dêmica. No final da década de 1980, mediante pressão social
e do mercado, foi liberada para uso pessoal. Assim, com a po-
pularização da internet e as possibilidades que poderia oferecer
a inovação, diversos setores passaram a utilizá-la para diversos
fins, por exemplo, o Museu da Pessoa,4 que fez suas primeiras
experimentações virtuais a partir de 1991. O Museu da Pessoa,
segundo seu próprio site, é um museu virtual (não possui sede
física) e colaborativo. Possui cerca de 18 mil depoimentos e 60
mil fotografias que têm como intuito mostrar variadas histórias
de vida dos séculos XX e XXI.
Em um espaço temporal muito curto, passou a dominar to-
dos os setores de nossas vidas (político, cultural, social, ­científico,

4 Museu da Pessoa. Sobre. Linha do tempo. Disponível em: <https://


museudapessoa.org/sobre/linha-do-tempo/>. Acesso em: fev. 2023.

182 ∫ Suzana Camillo Marques


tecnológico, religioso e econômico). Assim, já na década de 1990
podíamos visualizar a produção de conteúdo cultural para a in-
ternet, com destaque para os conteúdos produzidos pelos mu-
seus. Isso está relacionado à necessidade de um novo olhar para
os museus, principalmente entre as décadas de 1970 e 1980, em
que se discutia a sua função social e criticavam seu papel social
na sociedade contemporânea, em especial os vínculos de tais ins-
tituições com a memória das elites políticas5 e do exercício do
poder. Como consequência dessas discussões, novas tipologias
de museus foram concebidas baseadas em uma relação dialógica
entre os museus e seus públicos, nesse cenário destacam-se os
denominados “museus virtuais”.
Assim, o campo da museologia insere-se neste “labirinto”
em meio a sites de museus presenciais, notícias, redes sociais di-
versas de divulgação e comunicação com usuários, museus híbri-
dos (concebidos como não presenciais, mas que eventualmente
podem gerar ações presenciais) e os museus concebidos especifi-
camente para esse meio, sem a visitação presencial, como é o caso
do objeto de estudo desta investigação. Nesse sentido, os museus
também se inserem nessa relação de disputas de poder e controle
na internet, necessitando melhor entendimento e discussão so-
bre o ambiente e o discurso que ele produz.

Método

Este trabalho estudou um “museu virtual” estruturado em


ambiente acadêmico e que tem como acervo documentos sobre

5 Autoridades da oligarquia brasileira que estão envolvidas em questões polí-


ticas. No entanto, usufruíram desse status para manter seus privilégios como
classe dominante e para narrar discursos nos quais ponderavam a sua visão da
história em relação aos demais.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 183


a memória afro-brasileira do Rio de Janeiro. Dessa forma, o Mu-
seu Afrodigital do Rio de Janeiro, projeto vinculado à UERJ,
pretende digitalizar e expor documentos que abordem a memó-
ria de negros no estado do Rio de Janeiro. Seu objetivo princi-
pal é buscar incluir a população negra no universo dos museus,
repatriar e divulgar documentos que se referem à sua história e
democratizar o acesso ao saber. Ou seja, buscam não só a coleta,
a guarda e a divulgação de informação sobre o acervo, como
também a participação e o diálogo com os agentes sociais que
estão ligados ao acervo do museu.
Considerando as potencialidades e dificuldades do Museu
Afrodigital da UERJ na internet, no ambiente acadêmico e no
alcance do diálogo com a comunidade, a pesquisa foi estruturada
da seguinte forma: a primeira parte procurou versar a relação ho-
mem, máquina e museu e a segunda foi direcionada à análise do
objeto de estudo, com seus objetivos, estrutura organizacional,
acervo, missão e curadoria. A escolha da bibliografia foi voltada
à análise crítica da construção da internet, à memória dos negros
no Rio de Janeiro e como elas se relacionam com os museus.
Assim, buscou temas pertinentes à sociedade da informação, ao
desenvolvimento do ambiente virtual, às relações de poder e aos
discursos de autoridades, à museologia social, aos museus e à
diáspora africana no Brasil, à comunicação em museus e à cura-
doria digital.
A pesquisa envolveu a revisão bibliográfica, a análise de sites
e redes sociais associadas ao Museu Afrodigital da UERJ e uma
conversa com o doutor em sociologia Gabriel da Silva Vidal Cid,
representante e participante do projeto desde seus primórdios. A
análise deste objeto de estudo foi construída mediante a observa-
ção, pois não faço parte da equipe do museu. O estudo do objeto
concentrou-se no processo de construção de sua narrativa mu-
seográfica na internet, buscando compreender, principalmente,
a gestão e a curadoria do museu. Foram analisadas as páginas em

184 ∫ Suzana Camillo Marques


suas respectivas redes sociais (Facebook e YouTube), além de
algumas notícias de imprensa circuladas na internet. Sem entrar
em profundidade, também passaram pela análise o compreendi-
mento da “rede de museus afrodigitais”, da qual nasceu a pro-
posta. No entanto, consubstancial foi a conversa com Gabriel
Cid que mostrou em sua fala a trajetória do museu, a organiza-
ção, os objetivos, e também os resultados positivos e negativos
do museu que determinaram a escolha do produto final.
Após a análise do objeto de estudo, o produto final da pes-
quisa foi a construção de subsídios para uma curadoria com-
partilhada. Seguindo as palavras de Rosali Maria Nunes Henri-
ques (2018), de que um “museu virtual” é um museu paralelo
que não é superior e nem inferior a outras formas de museus,
mas um complemento que vem agregar o campo museal. Tam-
bém seguindo a ideia de Pierre Lévy (1996; 1999), de que o
real (matéria) não difere do virtual porque se assemelha com a
possível realização de uma matéria ainda não manifestada. E,
sendo ressaltado por Sansone (2012; 2013), um dos idealizado-
res do projeto, de que o museu criado na internet não substitui
outros tipos de museus, sendo uma nova ferramenta presente
em nosso cotidiano e que traz novas possibilidades. Os subsídios
foram construídos pensando na complementaridade entre mu-
seus presenciais e aqueles ambientados na internet e nessa relação
entre “real” e “virtual”, procurou-se não fazer distinções muito
contundentes que aumentassem as barreiras e críticas entre as
tipologias de museus. A proposta foi buscar meios iniciais de
se promover boas relações, organização e ideias para o Museu
Afrodigital que pudessem contribuir para suas atividades futuras.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 185


Resultados e discussões

As transformações ocorridas no âmbito da museologia e


dos museus, principalmente nas décadas de 1970 e 1980, deram
mais ênfase ao papel social dos museus, condenando a centrali-
dade da coleção nas ações museológicas. Com isso, novas práti-
cas museológicas foram desenvolvidas, como aquelas que per-
mitiram que territórios fossem musealizados; que requisitaram
maior presença da memória das minorias e dos silenciados; que
reprovaram a abordagem colonial das museografias tradicionais,
ressaltando a importância da educação e a participação e o diálo-
go entre museus e sociedade.
Essas transformações, articuladas ao surgimento e ao de-
senvolvimento da internet, contribuíram para a criação de novas
tipologias de museus, entre elas os chamados “museus virtuais”.
Entretanto, a denominação “museu virtual”, amplamente utili-
zada, julgo não cabível. Isso porque, como Lévy (1999), o “real”
é a potência já materializada e o “virtual” é a potência não pre-
sente fisicamente ainda, mas que pode materializar-se. Diferin-
do-se da separação feita pelo senso comum entre mundo virtual
(fictício) e mundo real (verdadeiro).
Mas, não entrando na confusão terminológica existente en-
tre os autores que estudam o tema, porque esse não é o foco desta
pesquisa, o Museu Afrodigital da UERJ se considera um “museu
digital”. Myrian Sepúlveda dos Santos (2010, p. 79) acredita que
um Museu Digital é “uma inovação tecnológica a ser considerada
na produção de arquivos, museus e memórias”. Complementan-
do, Santos (2012, p. 287) informa que “[...] um museu digital
pode substituir o museu tradicional e ser colocado a serviço da
inclusão de diversos setores da população, que foram excluídos
de outros espaços institucionais formais”. No entanto, cabe dizer
que considero os museus na internet, museus complementares.
Henriques (2018), explica que um museu complementar pode

186 ∫ Suzana Camillo Marques


trazer outras possibilidades para a museologia. Assim, um museu
presencial possibilita experiências que um museu na internet não
substitui e vice-versa.
Além do mais, assim como Asa Briggs & Peter Burke (2006)
declaram, as máquinas interferem e são interferidas pela socieda-
de. Portanto, concordo com Lévy (1996) quando ele argumenta
que o nosso pensamento é um conjunto de vivências humanas
(reais ou imaginadas), ou seja, não está apartada de nossas vidas,
não são individuais e nem apartidárias. A virtualização afeta to-
dos os campos de nossas vidas, assim, construímos máquinas por
um determinado interesse, agregamos a ela ações que cogitamos
o que nos é conveniente e a usamos para nossos propósitos.
Portanto, o uso da internet por instituições culturais, como
os museus, não é isenta de juízo de valores, não as separa das
relações conflituosas entre as esferas de poder e controle. Sendo
assim, nela permeiam conflitos e disputas pelo poder entre diver-
sos atores, como os grupos que procuram defender os princípios
da liberdade de expressão, da criatividade e da troca de conhe-
cimento, assim como movimentos sociais de resistência ao pre-
conceito, ao racismo, às guerras, à homofobia, ao xenofobismo,
à intolerância religiosa, aos sistemas autoritários, ao machismo,
constituindo-se, também, em um espaço de luta pelas causas so-
ciais e pelos direitos humanos.
O Museu Afrodigital da UERJ, em sua proposta embrioná-
ria almejava utilizar a própria dinâmica da internet, de ­possibilitar
edições, para que as narrativas não estivessem vinculadas somen-
te a certas autoridades, apartadas daqueles que ­realmente foram e
são produtores da memória da diáspora africana no Brasil.

A associação do conceito de hipertexto à internet possibilitou


ao usuário comum a transferência cruzada de conhecimento de
qualquer parte do globo com um simples toque de dedos; os
computadores pessoais e as novas ferramentas de comunicação

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 187


modificaram o ritmo e a maneira de viver. Como qualquer outra
ferramenta de comunicação, as novas redes digitais podem ter
diferentes usos, de meras linhas de entretenimento a importantes
instrumentos políticos e financeiros. É preciso que haja incentivo
às iniciativas que visem manter controle sobre esta nova tecno-
logia com posturas que sejam democratizantes e emancipadoras
(Santos, 2010, p. 81).

Mas, as dificuldades vieram com o baixo aporte econômico


e o reduzido poder político diante de estruturas de maior poder.
Isso porque as autoridades mobilizadas no processo de constru-
ção das narrativas museográficas, acabam priorizando aqueles
que possuem maior aporte econômico e acesso ao saber acadê-
mico. Também pode ocorrer de ser instalado um governo que
menospreza ou prioriza outros setores, em detrimento da cultura
e da educação. Santos (2012) comenta que no início do projeto,
em 2010, os idealizadores estavam esperançosos com o contexto
político vigente, com forte apoio à cultura (principalmente em
sua diversidade, talvez seja possível falar em culturas, no plural),
à execução de políticas públicas e ações afirmativas que apoiavam
grupos sociais historicamente excluídos da garantia de direitos
básicos. Porém, o país foi passando por diversas perturbações e
a instabilidade foi dando lugar à insegurança. O panorama foi
ficando instável após o impeachment da presidenta Dilma Rous-
seff, que teve seu mandato interrompido em 2016. No decorrer
dos anos, os ataques aos direitos humanos e à democracia, as-
sim como o desmantelamento dos setores cultural e educacional,
além do negacionismo da ciência, trouxeram retrocessos até en-
tão inéditos no país.
Além dessa visão mais geral sobre os diversos discursos que
permeiam a internet e os privilégios concedidos a alguns gru-
pos, o Museu Afrodigital da UERJ possui outro problema: a
construção do discurso por instituições culturais e acadêmicas,

188 ∫ Suzana Camillo Marques


que ao longo da história foram baseadas em discursos coloniais.
Apesar de o intuito de construir relações mais democráticas, que
aumentem a diversidade e permaneçam em constante diálogo
com a comunidade envolta dos “muros das universidades”, essa
relação ainda é hierárquica. Cid (2020) explica que embora o
propósito de formar uma rede de apoio a “resistência negra” na
internet, a equipe do museu sabe que as barreiras são históricas
e complexas:

A gente entende o Museu Afrodigital como uma ferramenta pra


reduzir essa estrutura de poder que a gente sabe que existe [ . . . ]
a gente ciente de que tem essa estrutura de poder, de que ela tá
aí e que ela é inerente, inclusive todos esses processos museológi-
cos ou de construção de arquivos, ou de construção de museus,
de construção de narrativas, de construção de curadoria, a gente
sabe que essa estrutura de poder tá aí de alguma forma, então
a gente entende que o museu deve ser pensado de uma forma
que ele minimize essa estrutura de poder, de você combater essa
estrutura e ao mesmo tempo de permitir que novas narrativas
aconteçam, que novos documentos apareçam, que novas possibi-
lidades de leitura surjam (Cid, 2020, informação oral).

Portanto, a instituição da qual nasce o projeto, também


traz algumas implicações, pois Cid (2020) declara que as expo-
sições realizadas pelo museu, normalmente, por facilidade de
intercâmbio, convidam pessoas de sua rede de relacionamentos,
como colegas e pessoas indicadas. Santos (2015) esclarece que
a coleta e a seleção dos documentos do Museu Afrodigital são
realizadas por professores e estudantes. É a universidade quem
representa a autoridade de quem seleciona, discursa e produz a
narrativa na plataforma virtual. O museu compreende que isso
gera limitações e procura expandir esse círculo e diversificar sua
rede de contatos.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 189


Quando a gente chega da universidade para falar com as pessoas,
ou com movimentos sociais, ou com movimentos culturais, ou
seja, com movimentos que a gente se coloca em aberto para rece-
ber a documentação dessas pessoas ou para disponibilizar ou para
construir uma exposição, para fazer um trabalho de curadoria,
por mais que a gente tente não estar nessa posição de poder, a
gente tá. Então, é uma tentativa ciente de que a gente tem essa
posição, a gente tenta reduzir o dano disso e ao mesmo tempo
a gente se abrir pra novas curadorias. É um projeto nosso que a
gente tem curadorias para além do ambiente acadêmico, além
do ambiente curatorial, forjado nessa estrutura de poder [ . . . ] A
gente já conseguiu? Acho que ainda não, mas é um projeto que a
gente consiga ser mais abertos a curadorias, que venham de fora
da academia, que venha de fora desse ambiente tradicional dos
museus. Agora é um processo, é um caminho [ . . . ] uma tentativa
[...] essas estruturas de poder sempre irão existir. É uma luta
constante diante dessa estrutura de poder (Cid, 2020, informa-
ção oral).

Cid (2020) complementa e expõe que isso decorre quan-


do o contato parte de um representante de fenótipo “branco”,
assim, certos limites são colocados nas conversas com grupos so-
ciais de outros fenótipos, pois compreendem que não é seu lugar
de fala e repassam a fala para os movimentos negros, procurando
romper com a unilateralidade do discurso. Há de se atentar, que
o estado do Rio de Janeiro possui grande população afro-brasi-
leira que carrega suas manifestações culturais e seus problemas
históricos. Nesse sentido, em virtude dessas problemáticas, reco-
nhece que o museu não é imparcial, ele faz seus recortes e planeja
o discurso.
Assim, na análise realizada em cima da curadoria digital do
Museu Afrodigital da UERJ sobre a produção de uma memória
de uma diáspora negra no Brasil, foram apontadas e observadas

190 ∫ Suzana Camillo Marques


mais algumas adversidades. Primeiramente, Cid (2020) relata os
transtornos ocasionados pela falta de estrutura física de trabalho
e a sobrecarga de trabalho em relação ao quantitativo reduzido
da equipe. Acreditando que com a melhoria desses problemas o
diálogo poderia ocorrer da forma como esperam que seja. Isso
decorre porque eles não possuem uma sala própria e adequada
para a recepção de pessoas, a sala que está disponibilizada para o
museu é do Instituto de Ciências Sociais (ICS)/UERJ. Além do
mais, salienta a disponibilidade de possuir na equipe um profis-
sional da área museologia, de informática e/ou design, especifi-
camente para atender as demandas do museu, pois Cid (2020)
explica que a ideia inicial era que o visitante entrasse no site do
museu e pudesse montar uma exposição. Mas, aconselhados por
pessoas da área de informática e pelo departamento jurídico da
UERJ desistiram da ideia de exposição compartilhada, porque
implicaria no tópico sobre os processos de direitos autorais. Cid
(2020) também ressalta que a burocracia acadêmica traz alguns
transtornos:

[...] o museu surgiu dessa vontade nossa [ . . . ] lá em 2009/2010,


a gente conseguiu um recurso na FAPERJ [ . . . ] formalmen-
te, embora fosse um projeto coletivo, participasse professores,
inclusive de outras instituições [...] o projeto era vinculado à
professora Miryan [...] isso era um problema pra gente daqui
da UERJ [...] não é nem por uma questão de autoria, mas por
justificar suas horas de trabalho [...] aí juridicamente pra você
pedir o recurso pra FAPERJ ou qualquer outra instituição de
fomento, você entra como se fosse um pedido do Instituto de
Ciências Sociais, no qual a Miryan faz parte, a gente queria rom-
per com isso [...] eu [...] sou o único que não sou efetivo do
quadro de professor da UERJ [...] esse projeto envolvia vários
professores, mas não estava vinculado a um instituto só, a for-
ma como conseguimos mudar isso e de alguma forma também

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 191


entrar pra estrutura administrativa da UERJ, era o projeto virar
um programa [...] como se fosse a reunião de vários projetos
de pesquisa, mas que tem a cara de algo mais permanente [. . . ]
(Cid, 2020, informação oral).

Cid (2020) relata que o museu não possui uma devida


gestão documental e de informação. A curadoria digital dos
dados permitiria, por exemplo, a preservação dos dados a lon-
go ­prazo, o melhor aproveitamento da qualidade do que está
sendo ­divulgado e possibilita que se conheça melhor as prefe-
rências dos usuários. Mas, a maioria dos profissionais envolvi-
dos com o ­trabalho do museu não estavam preocupados com
a curadoria de documentos, ou seja, com a devida organização
e ­administração do que está sendo selecionado, salvaguardado
e divulgado. A prioridade era compartilhar a informação. Cid
(2020) destaca que a ideia inicial do museu e da formação de
equipe ­contribuíram para que a curadoria fosse desconsiderada,
porque, segundo ele:

[...] a gente surge desse grupo de professores e alunos [ . . . ] en-


tão assim, cada um puxava para um lado, eu, por exemplo [ . . . ]
minha formação é História [...] então eu era um cara de arqui-
vo, biblioteca nacional, microfilme [.. . ] então eu puxava um
pouco o museu pra ser um arquivo [.. . ] já Miryan, Maurício
puxava mais [...] curadoria [...] com essa coisa de cada um pu-
xar pra um lado, o museu ficou um pouquinho com esse formato
que acho que ora ele é um arquivo, ora ele é um museu (Cid,
2020, informação oral).

Dentre as ferramentas museológicas de gestão de acervo,


­temos a documentação museológica. A documentação museoló-
gica possibilita o controle do acervo e da informação, que a­ uxiliam
na recuperação e na divulgação, crucial para ­compreender as

192 ∫ Suzana Camillo Marques


­ emandas do público e criar estratégias de pesquisa e atividades
d
que sejam mais direcionadas. A preocupação com a gestão do
acervo existe, mas não colocada em prática, Cid (2020) assume
que:

Algumas coisas fizemos, outras não, inclusive é um grave erro


nosso que precisamos consertar [...] a gente não tem, por exem-
plo, todos os níveis preenchidos da Dublin Core,6 a gente tem
usado Dublin Core, mas não estão todos os documentos com
informação no Dublin Core [...] é um problema que precisamos
rever (Cid, 2020, informação oral).

O problema da gestão da informação pode trazer transtor-


nos, difíceis de reparar ao longo do tempo conforme o aumento
do acervo documental, mesmo que ele seja nato digital ou digital
ou digitalizado.7 Há de se enfatizar a necessidade do desenvol-
vimento e da importância da documentação nos museus para
realizar pesquisas de público. Segundo Cid (2020):

[...] a gente tenta dividir o site em arquivos e exposições [ . . . ]


a gente tá inclusive fazendo uma remodelada no site, em breve a
gente deve mudar bastante, como a gente vai ver o acervo, mas a

6 De acordo com a Biblioteca Digital do Museu Nacional, “O padrão Dublin


Core foi desenvolvido pela Dublin Core Metadata Initiative e corresponde
a um esquema de metadados que visa a descrever objetos digitais de forma
acessível a pessoas não familiarizadas com gerenciamento de sistemas de in-
formação”. É gratuito e com acesso livre, mas o uso é restrito para pesquisas
e/ou estudos. Disponível em: <https://obrasraras.museunacional.ufrj.br/faqs.
html>. Acesso em: jan. 2022.
7 O nato digital é o documento que já nasce digital. O documento digitaliza-
do é o que passa por um processo técnico para adquirir um código digital. O
documento digitalizado não significa, necessariamente, o descarte do suporte
físico, podendo existir nas duas formas. Assim como um documento nato
digital pode adquirir um suporte físico.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 193


ideia é essa que a gente tenha arquivos e exposições [ . . . ] a nossa
ideia de arquivo é que tenha uma constância, uma coisa que é
constantemente atualizada [...] e a ideia de exposição são coisas
mais [...] que passam por uma curadoria, que tenha alguém
assinando [...] e que de alguma forma isso seja temporário [ . . . ]
eu fico chamando um pouco pro meu lado é das nossas expo-
sições não saírem do ar, por mais que saiam da página princi-
pal, isso entrar num arquivo das exposições do museu, porque a
gente tem recebido muito retorno de pessoas que usam a docu-
mentação que a gente coloca pra fazer [ . . . ] pra fazer pesquisa,
preparar aula, então eu acho que é muito rico, acho que uma dos
principais ganhos [...] é isso, disponibilizar informação [ . . . ] eu
penso [.. .] no museu também ser isso, uma espécie de repositó-
rio (Cid, 2020, informação oral).

No tocante a apresentação do site do museu, sua organiza-


ção de tópicos e seus conteúdos e como torná-lo atrativo e parti-
cipativo é outro fator de desconforto para a equipe. Cid (2020)
informa que uma das referências para a criação da página, foi
o site do Museu Afrodigital da Universidade Federal do Mara-
nhão e explica que o museu entrou com recurso na FAPERJ para
contratar uma empresa para rever a identidade visual. Conforme
Nandia Leticia Freitas Rodrigues & Maria José Vicentini Joren-
te (2015) abordam, a apresentação do espaço virtual deve ser
atrativa, de fácil leitura, acessível, que proporcione a liberdade
do público e disponha conteúdo de boa qualidade.
Outro problema, mais de conteúdo de informação do que
comunicação visual, é que na “apresentação” o museu aponta
que o projeto tem como objetivo principal “construir um acer-
vo digital e exposições virtuais sobre as práticas daqueles que se
identificam a si mesmos ou são identificados como afrodescen-
dentes” (Museu Afrodigital Rio de Janeiro, 2020), manifestando
o interesse de que a população participe do projeto, mas não

194 ∫ Suzana Camillo Marques


existem campos no site, que orientem o público para um contato
direto e ativo com o museu. Mas, como já mencionado, as expo-
sições são escritas por “pesquisadores-curadores”, que devem se-
guir o modelo de texto breve e explicativo, nem sempre seguido.
Além disso, Santos (2015) revela que o museu possui duas
redes sociais: o Facebook e o YouTube para poder tentar dialo-
gar com o público, utilizando ferramentas que estão mais pró-
ximas do gosto popular na internet. Contudo, a interação não
ultrapassa os comentários e as curtidas das páginas. Ademais, o
público não possui o poder de fazer alterações, o que permitiria
fazer complementações e compartilhar as informações.
Outro ponto a ser considerado é a ausência de um projeto
educativo que procure ir além da própria página, das publicações
e dos seminários ofertados. Os projetos educativos para o museu
serviriam para entender e instigar a interatividade e a participa-
ção do público.

[...] embora complementares, exposição e educação problema-


tizam aspectos diferentes. A problemática expositiva é aquela que
se materializa, pois a linguagem expositiva se manifesta fisica-
mente. A problemática educativa, por sua vez, se sustenta no
subliminar. Se a exposição é o “texto” (ou “hipertexto”), a edu-
cação é o “subtexto” invisível (Cury, 2006/2007, p. 82).

O diálogo permaneceu sendo reproduzido, majoritaria-


mente, entre as autoridades da instituição universitária. San-
tos (2018) declarou em um seminário internacional realizado
no Museu de Arte do Rio (MAR) que a ideia inicial do Museu
Afrodigital de estabelecer diálogos e compartilhamentos com a
sociedade encontra diversas barreiras de cunho tecnológico, fi-
nanceiro e de qualificação de pessoal, principalmente na área da
informática.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 195


Tabela 1. Subsídios para uma curadoria participativa

SUBSÍDIOS PARA UMA CURADORIA PARTICIPATIVA

1 Considerar na história dos museus a existência de uma tradição pautada por


uma chave de leitura baseada em hierarquias culturais e étnicas, oriundas
da forma colonial que os museus se constituíram como instituição. Posi-
cionar-se criticamente e conscientemente sobre essa tradição é fundamental
aos projetos de museus inclusivos e com funções sociais harmonizadas aos
preceitos democráticos e emancipadores da educação.
2 Compreender os museus como lugares de poder e disputas. Faz-se necessário
desnaturalizar os valores das coleções e dos atributos culturais, tendo em
vista serem categorias que reafirmam os discursos da dominação colonial,
como cultura popular e erudita, ideologias racistas, universalismos, critérios
de superioridade e inferioridade cultural, entre outros.
3 Considerar que os museus não são guardiões da verdade histórica. Faz-se ne-
cessário indagar os lugares de fala, as autoridades mobilizadas na construção
e formação das coleções e quais relações isso tem com o discurso produzido
na instituição.
4 Compreender os museus como espaços políticos em que conflitos em torno
da construção de memória e história são desencadeados, mesmo em períodos
estáveis. Faz-se necessário considerar que as mudanças políticas do ambiente
externo ao museu podem desencadear novas posturas, novas coleções e mu-
seografias, necessitando novos rumos e readequações dos projetos.
5 Sendo a gestão memória social um dos ativos sociais mais valorizados nas
políticas culturais de vários países ocidentais, faz-se necessário entender os
museus como ferramentas de transformação social, especialmente úteis em
contextos nos quais o autoritarismo ganha força. Processos de construção
de memória participativos engajam a sociedade civil na defesa da memória
como um direito social.

196 ∫ Suzana Camillo Marques


6 Perceber que não existem métodos unívocos. Cada experiência de curadoria
compartilhada deve ser planejada conforme as demandas sociais dos grupos
sociais que se relacionam com o museu, levando em consideração suas espe-
cificidades e como se relacionam com a instituição e seus valores.
7 Reconhecer quem são os atores sociais que precisam ser mobilizados — caso
não seja espontâneo — nas ações museológicas de curadoria na instituição.
Para tanto, faz-se necessário entender os museus como instrumentos para a
formação de sujeitos autônomos e emancipados, capazes de refletir, indagar
e interferir socialmente.
8 Perceber que os museus não se limitam aos objetos, ao passado, às coleções
reais e aos edifícios monumentais. É um espaço republicano de pesquisa e
educação, onde relações sociais podem ser construídas por meio de processos
museológicos.
9 Compreender que participação é um dos fatores que auxiliam o Estado na
tomada de decisões. Somente com a participação da sociedade civil, engajada
e consciente de seus direitos poderá fazer que haja pressão para que o poder
público ponha em execução os interesses dos cidadãos.
10 Entender que a participação e o compartilhamento de autoridade em pro-
jetos de curadoria compartilhada não significam a criação de novas hierar-
quias. Deve haver um equilíbrio entre saber e as demandas científico, religio-
so e tradicional, por isso, a ênfase deve ser na comunicação dialógica.
Fonte: Suzana Camillo Marques, 2020.

Assim, compreendendo as limitações impostas pelas tecno-


logias digitais e o contexto de produção social e política, além
da própria estrutura do museu, que busca incorporar e dialogar
com variados atores, foram desenvolvidas algumas recomenda-
ções para uma curadoria compartilhada.
O bom relacionamento entre a academia e os grupos sociais
é uma finalidade importante para o projeto, porque viabiliza a
democratização, a diversidade e o diálogo com a sociedade. A

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 197


própria proposta de se construir um “museu” para a internet,
vinha em conjunto com a ideia principal de diálogo, participa-
ção e concretização de ideias que não podiam ser colocadas em
prática por diversos fatores, principalmente por falta de respaldo
financeiro e em decorrência das instabilidades políticas, no qual
as instituições públicas são diretamente afetadas.

Considerações finais

A pesquisa verificou que o Museu Afrodigital da UERJ pos-


sui quatro grandes dificuldades: a própria estrutura acadêmica
da qual nasce o projeto; a falta de infraestrutura para a execução
de suas atividades; a ausência de gestão dos documentos e da in-
formação e, como o próprio museu concluiu, colocar em prática
o diálogo e a participação, pois não são tarefas fáceis de serem
realizadas, como aparentava ser para a equipe do museu.
Como visto, a trajetória dos museus está ligada aos confli-
tos de poder e às estratégias de controle que envolvem a socie-
dade. Com a revolução tecnológica e o surgimento das Novas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) a velocidade
e o acúmulo da informação ultrapassam as limitações humanas.
Concomitante a essa revolução, considera-se a ausência ou defi-
ciência de uma educação digital que auxiliasse a construção do
conhecimento crítico diante dos discursos de valores e das rela-
ções de poderes produzidas nesse ambiente.
O uso da internet por instituições e grupos sociais vem cres-
cendo junto com as dinâmicas das redes e o aumento do acesso
à internet a variadas camadas da população. No entanto, parte
da população ainda não possui total acesso aos equipamentos e
à educação digital necessários que permitam melhor aproveita-
mento e crítica das redes. O movimento social de resistência do
negro procura reivindicar a representação de sua memória na

198 ∫ Suzana Camillo Marques


história de nosso país e também vem buscando apropriar-se do
ambiente virtual para divulgar sua memória e lutar por direitos.
É por isso que, ao final do estudo, optou-se pela produ-
ção de alguns subsídios para uma curadoria participativa que
buscassem inspirar as primeiras condutas voltadas para a gestão
museológica do museu. Entende-se, aqui, que para a construção
de uma curadoria digital em conjunto com a população afro-
-brasileira, são necessárias criar ações que incluam a participação
e o diálogo. Assim, projetos como o Museu Afrodigital da UERJ
poderão ser transformados não só na divulgação da memória da
diáspora africana do Rio de Janeiro, mas também transformar-se
em resistência política e cultural desses agentes.
A proposta é que muitas outras ideias possam surgir e que
estes subsídios para uma curadoria compartilhada, sejam úteis
às estratégias para o uso da internet como espaço museológico,
que não se limite à produção de conteúdo supérfluos, discrimi-
natórios e elitistas, reproduzindo, assim, as hierarquias sociais e
raciais postas no mundo físico.

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Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 199


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200 ∫ Suzana Camillo Marques


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sites/default/files/vs6-int-mar_seminario_1810010.pdf>. Acesso
em: set. 2019.

Narrativas e autoridades: subsídios... ∫ 201


8.
MEMÓRIAS DE ESPECTADORES
DOS CINEJORNAIS DA AGÊNCIA NACIONAL

Amanda Heloisa Souza Custódio1

E
ste capítulo reconhece o registro de memórias de es-
pectadores dos cinejornais da Agência Nacional como
um patrimônio que deve ser preservado, pois apenas
a sobrevivência ao tempo não atribui este valor aos objetos.
Conforme Guimarães (2012), são as relações de poder e a
produção de saberes históricos, ao elaborar narrativas sobre o
passado, que alteram o sentido original e fazem essa atribuição,
transformando-os em uma tentativa de reconstrução de expe-
riências pretéritas que estão vinculadas às gerações presentes.

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Memória e Acervos da Funda-


ção Casa de Rui Barbosa (FCRB), no qual defendeu a dissertação intitulada
“Memórias de Espectadores de Cinejornais da Agência Nacional”, sob orien-
tação da professora doutora Ana Maria Pessoa dos Santos, em 2022. Contato:
[email protected].

202 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


Sobre o conceito de memória, entende-se que se trata de
uma propriedade coletiva que constitui a identidade dos sujeitos
e dos grupos aos quais pertencem (Halbwachs, 1990); e as lem-
branças e os esquecimentos são moldados nos enfrentamentos
que se desenvolvem na sociedade (Pollak, 1989). Desse modo,
as recordações particulares dos espectadores levantadas por este
trabalho não estão isoladas e podem ser representativas de muitas
outras ainda não acessadas.
Os cinejornais, produzidos por empresas públicas e privadas
ao longo do século XX, consistiam em um “noticiário produzido
especialmente para apresentação em cinemas [...] geralmente
um curta-metragem periódico, exibido como complemento de
filmes em circuito comercial. Diz-se também atualidades ou jor-
nal da tela” (Barbosa & Rabaça, 2001, p. 133). Outra definição
é de uma “produção que contém uma diversidade de noticiários,
variando em conteúdos que vão desde estilo de vida até eventos
internacionais. Os cinejornais normalmente tinham cerca de dez
minutos [. . . ]” (Library of Congress, 1988).
Por muito tempo existiram dificuldades no Brasil para a
realização de pesquisas com os cinejornais em razão da ocorrên-
cia de incêndios e enchentes que extinguiram muitos acervos
(Souza, 2003). Destaca-se, como exemplo, o quinto incêndio
ocorrido na Cinemateca Brasileira de São Paulo em 29 de julho
de 2021, o qual destruiu cerca de quatro toneladas de materiais
históricos, inclusive importantes séries de cinejornais. As auto-
ridades competentes foram notificadas do risco, mas não houve
ações de prevenção.
O Arquivo Nacional do Rio de Janeiro é o responsável pela
guarda e preservação das obras produzidas pela Agência Nacio-
nal (1945-1985), órgão oficial que por meio de veículos escritos,
iconográficos, sonoros e audiovisuais difundia notícias de inte-
resse coletivo e as realizações da administração federal (Arquivo
Nacional, 2014).

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 203


A partir da digitalização do fundo Agência Nacional, os ci-
nejornais foram disponibilizados on-line, por meio do Sistema
de Informação do Arquivo Nacional (SIAN) e das mídias sociais
da instituição, desburocratizando o contato com os documentos
de arquivo e alcançando um público além daquele formado por
pesquisadores acadêmicos.
A difusão na internet permitiu que estes documentos his-
tóricos fossem amplamente discutidos e reinterpretados, como
nos exemplos a seguir que mostram comentários de usuários das
redes sociais do Arquivo Nacional nas publicações que apresen-
tam cinejornais produzidos no período da ditadura civil-militar.

Figura 1. Mensagens de usuários do Facebook do Arquivo Nacional

Fonte: Facebook do Arquivo Nacional. Disponível em: <https://www.


facebook.com/watch/?v=116837293575118>. Acesso em: 21 jul. 2021.

A figura 1 apresenta interpretações diferentes de dois usuá-


rios sobre o desempenho dos governos militares na construção
da ponte Rio-Niterói, em uma publicação de uma reportagem

204 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


da Agência Nacional. Assim como essa, muitas podem ser loca-
lizadas, evidenciando uma disputa de memórias sobre o período.

Figura 2. Mensagens de usuários do Facebook do Arquivo Nacional

Fonte: Facebook do Arquivo Nacional. Disponível em: <https://www.


facebook.com/watch/?v=969477513556881>. Acesso em: 21 jul. 2021.

Por sua vez, a figura 2 apresenta comentários sobre uma


produção da Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa, que
reporta a praia de Ipanema durante o período da ditadura civil-
-militar brasileira. São dois dos muitos saudosistas a respeito do
regime militar que se respaldam nos filmes de arquivo como um
indício da veracidade de suas opiniões.
É importante ressaltar que as atuais dinâmicas políticas se-
guem marcadas por debates acerca da ditadura civil- militar, pois

[...] a partir do contexto de polarização política iniciado em


2013-4, a históriado golpe de 1964 e da ditadura se tornou mais
presente no cenário nacional. Isso porque a história recente pas-
sou a ocupar lugar de destaque nos discursos dos diferentes agen-
tes em disputa pelo poder (Motta, 2021, p. 10).

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 205


Assim, as interpretações a respeito dessa conjuntura são dís-
pares. De acordo com o historiador Motta (2021),

Para os setores da direita, especialmente a ala mais radical e auto-


ritária, 1964 é um episódio a ser valorizado e comemorado, pois
marcou a derrota da esquerda e o início de um regime político
orientado para a “ordem e o progresso” ou para o “desenvolvi-
mento com segurança”. Para a esquerda, e para alguns segmentos
da direita liberal, 1964 representa o início de uma era de ditadu-
ra, de violência política e desrespeito grave aos direitos humanos,
cujo legado deve ser enfrentado e superado para a construção de
uma verdadeira democracia (pp. 10-1).

Maia (2018) averiguou que os cinejornais produzidos du-


rante o regime militar destacavam em seus discursos

[...] os elementos conciliatórios, ordeiros e pacíficos do cará-


ter nacional; a grandiosidade e exuberância do país continental;
a importância da intervenção estatal na condução dos destinos
nacionais; o caráter “revolucionário” de 1964 frente ao que con-
sideravam à desordem e à ameaça comunista; a proximidade do
regime com o empresariado nacional e os estratos médios da po-
pulação; a adoção de políticas sociais restritas com manutenção
da ordem; a existência de uma cidadania amputada e controlada
pelo Estado (p. 30).

Diante da urgência deste debate na atualidade e a compro-


vação destes comentários nas redes sociais do Arquivo Nacional,
houve o questionamento sobre como em momentos de lazer, tal
qual ir ao cinema, os indivíduos atribuíram significados aos fil-
mes de propaganda do Estado em circunstâncias de autoritaris-
mo, pois as análises fílmicas devem considerar não só aquilo que
é captado pela câmera, como imagens, sons, cenários e outros

206 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


elementos, mas igualmente “o autor, a produção, o público, a crí-
tica, o regime de governo. Só assim se pode chegar à compreensão
não apenas da obra, mas também da realidade que ela represen-
ta” (Ferro, 2010, p. 33, grifo nosso).
Nesse sentido, as memórias de espectadores destes cinejor-
nais permitem compreender também a relação do público com o
regime de governo. A Agência Nacional teve o seu apogeu quan-
do o cinema era um dos principais meios de comunicação de
massa, mas declinou na década de 1970, no período em que a
ditadura civil-militar investia em novas mídias, sobretudo a tele-
visão, e reconfigurava as técnicas de apresentação de suas mensa-
gens. Por isso, a pesquisa teve como foco esse recorte temporal.

Metodologia

Para a coleta dos dados, foram selecionadas reportagens


do Cinejornal Informativo e Brasil Hoje dos governos de Emílio
Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974- 1979)
disponíveis no SIAN. Esses noticiários foram exibidos aos parti-
cipantes das entrevistas, um total de oito pessoas, que residem no
Rio de Janeiro e com recordações de terem assistido cinejornais
da Agência Nacional no período em que os militares estiveram à
frente do Poder Executivo. O objetivo da exibição não consistiu
em centralizar as perguntas sobre os filmes triados para exibição,
mas sim contribuir com o processo de rememoração das expe-
riências dos espectadores.
É necessário ressaltar que a pesquisa foi desenvolvida em
um contexto de restrições de contato por causa da pandemia de
Covid-19 e a faixa etária dos participantes os enquadram como
grupo de risco, o que implicou a redução dos entrevistados. A
maioria dos que puderam colaborar compartilharam suas me-
mórias por meio de videoconferência. Observou-se que muitos

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 207


com idade mais avançada e que tinham a maioridade plena na
década de 1970 tiveram dificuldades com essa tecnologia e não
conseguiram conceder entrevista.
A respeito do uso da videoconferência nesta pesquisa, é pre-
ciso expor que entre intelectuais do campo da história oral há
controvérsias sobre a eficácia de entrevistas realizadas à distân-
cia, já que a interação com a presença física possibilita a obser-
vação de gestos, expressões faciais, entonação, interação com o
ambiente, entre outras particularidades do desempenho corporal
que executam um importante subtexto da narrativa (Santhiago
& Magalhães, 2020).
No entanto, existem vantagens no uso das videoconferên-
cias, como a contribuição para superar limitações geográficas e
a diminuição de custos da pesquisa. Além disso, estudiosos da
comunicação apontam a própria fala como uma tecnologia, um
prolongamento artificial. Dessa forma, esse procedimento inte-
gra as mudanças tecnoculturais, as quais se tornaram ainda mais
evidentes com a necessidade de isolamento social no contexto de
pandemia de Covid-19. Logo, não é producente rejeitá-lo, ainda
que seja fundamental superar as limitações ao acesso tecnológico
(Santhiago & Magalhães, 2020).
Além desse aspecto, foi necessário também lidar com a
recusa de pessoas que não queriam relembrar o período por se
tratar de um tema sensível. Apesar da existência de cinemas no
subúrbio, outras declinaram o convite sob a alegação de que nes-
se tempo residiam distante das áreas zona sul e centro da cidade,
onde havia concentração de cinemas, afirmando que isso tornava
a atividade de lazer com custo pouco acessível.
Para facilitar a busca por entrevistados optou-se por conta-
tar pessoas sensíveis aos temas relacionados ao cinema, aos filmes
de arquivo, à publicidade e ao jornalismo, amostragem a partir
de indicações da rede de referências da pesquisadora. Na tabela
1 é apresentada a relação dos participantes por ordem alfabética,

208 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


elencando nome, data da entrevista, idade, profissão e as regiões
em que frequentavam cinemas no Rio de Janeiro. No universo
dos oito entrevistados, seis são professores.

Tabela 1. Dados dos entrevistados no Rio de


­Janeiro entre os anos 2021 e 2022
Data da Regiões dos cine-
Nome Idade Profissão
entrevista mas frequentados
Arquiteta e profes-
Ana Lúcia 08.03.2022 64 zona sul e centro
sora universitária
Professor de História
na Rede Federal de zona oeste e
Eduardo 19.02.2022 63
Ensino e pesquisa- zona norte
dor audiovisual
Publicitário e pro-
Identificação
27.01.2022 74 fessor universitário zona sul
não autorizada
aposentado

Josephina 29.01.2022 91 Secretária aposentada zona sul e centro

Engenheiro de
Marco 24.03.2022 72 Telecomunica- Niterói
ções aposentado
Engenheiro
Arquivista e profes-
Rosale 08.04.2021 62 Paulo de Frontin
sora universitária
e zona sul
Jornalista e profes-
Rose 28.02.2022 68 zona sul
sora universitária
Professor de História
na Rede Federal de
Wolney 12.01.2021 62 zona norte
Ensino e pesquisa-
dor audiovisual
Fonte: Autora, 2022.

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 209


De acordo com Alessando Portelli (1997), ouvir é a arte
essencial do historiador oral e que sua escuta deve estar alicer-
çada em uma abordagem gentil, o que além de boas maneiras e
respeito significa estabelecer uma conversa com o interlocutor
e não um interrogatório. Ademais, o profissional necessita estar
flexível para o que o entrevistado julga importante expressar em
vez de limitar o diálogo ao que se deseja saber, pois desse modo
é provável que as descobertas superem as expectativas. Assim,
se aprende com os que gentilmente compartilham informações,
superando a noção de que são meros objetos de estudo.
Tendo em vista esses apontamentos, as perguntas aos entre-
vistados não foram limitadas ao contato com os cinejornais, mas
consideraram também a trajetória de vida e a relação que tinham
com o espaço do cinema, pois se entende que esses aspectos in-
terferem na apreensão das informações compartilhadas nestas re-
portagens. Foram questionadas igualmente as impressões acerca
da conjuntura do regime militar.
Por fim, houve o desenvolvimento do endereço eletrônico
<memoriasdecinejornais.com.br>, acesso em: 2 nov. 2021, com
a finalidade de ser um repositório das memórias dos espectadores
dos cinejornais entrevistados, no qual outras entrevistas poderão
ser armazenadas posteriormente, contribuindo para uma inves-
tigação contínua. Isso se deu, porque, de acordo com Casadei
(2009), assim como o ambiente on-line possibilita uma recon-
figuração nos modos de empreender a história, “em uma socie-
dade que se vê defrontada com as novas configurações destes
difusores comunicacionais, podemos delinear uma nova arena
de batalha privilegiada na atribuição de significados ao passado”
(p. 5).

210 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


Memórias sobre a conjuntura política
da década de 1970 e os cinejornais
da Agência Nacional

Em março de 1964 houve a deposição do presidente João


Goulart por um golpe civil-militar que instaurou um regime di-
tatorial até 1985. A destituição foi legitimada por discursos anti-
comunistas que circulavam no país desde a década de 1930, re-
forçados pelo contexto da Guerra Fria e pelas medidas adotadas
por Goulart, encaradas como representativas de um iminente
Estado comunista no Brasil por setores conversadores das clas-
ses médias, políticas, militares, religiosas e empresariais, os quais
justificaram a ação dirigida por membros das Forças Armadas
como uma contrarrevolução (Motta, 2021).
Entre os entrevistados, alguns compartilharam memórias
sobre essa conjuntura política. Josephina afirmou que “os mili-
tares tiveram razão em entrar, no meu ponto de vista, pra ser ho-
nesta. Eu acho que os militares evitaram realmente que houvesse
um governo de esquerda”.
Ana Lucia lembrou a reação dos pais diante desse acon-
tecimento. Declarou que a família não estava envolvida com a
militância política, mas por estar em um meio composto por
intelectuais de diferentes vertentes, isso contribuiu para que cul-
tivassem um posicionamento crítico ao governo militar e parti-
cipassem indiretamente em situações de resistência. Assim, com-
partilhou sua recordação sobre o dia “[...] em que a revolução
estourou, eu me lembro muito bem de ser falado na minha casa
a questão do terrorismo, que muitos amigos dos meus pais ti-
nham filhos envolvidos. Eu me lembro do meu pai sair no meio
da noite, porque precisava esconder alguém”. Contudo, ressalta
que “o fato dos meus pais serem críticos do governo militar e
considerarem que aquilo era uma ditadura não impedia que

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 211


ele levasse a gente para assistir à parada de Sete de Setembro. O
governo era uma coisa, a pátria era outra, digamos assim, existia
essa diferença” (Ana Lucia, 2022, informação oral).
Por sua vez, o entrevistado não identificado vivencia-
va a adolescência considerando-se de esquerda, assim como os
irmãos. Isso implicou em divergências com o pai que era um
médico militar da marinha. A família estava na Europa quando
precisou retornar ao país às vésperas do golpe civil-militar. O
entrevistado narra que em “fevereiro de 64 houve um comu-
nicado que todo mundo em comissão que estava no exterior
tinha que voltar ao Brasil. Já estavam preparando o golpe e aí
nós voltamos” (Entrevistado, 2022, informação oral). Em casa,
os conflitos com o pai tinham como pauta a oposição ao regime
militar e a defesa ao comunismo.
Rose compartilha que nesse contexto, aos dez anos, não ti-
nha consciência do que estava acontecendo, mas tem memórias
sobre as comemorações no bairro de Copacabana no dia em que
o golpe foi concretizado. Lembra-se do “irmão mais velho pi-
cando jornal e jogando pela janela [...]. Todo mundo estava
jogando papel, mas não estava entendendo o que estavam feste-
jando, não sabia. Minha família não era politizada ou não que-
ria ser politizada”. Rememora imagens televisivas que assistiu e
que a marcaram, interpretadas como mensagens representativas
de um triunfo contra o comunismo; diz que “uma era da Praça
Vermelha, na Rússia, como se fosse perigo comunista chegando
ao Brasil e os militares teriam tirado os comunistas do poder. A
outra foto era do Palácio Laranjeiras, onde se instalaria o novo
governo militar” (Rose, 2022, informação oral).
Foi, portanto, inserida nesses diferentes espectros ideoló-
gicos que parte dos entrevistados vivenciou o prenúncio de um
regime ditatorial de 21 anos no Brasil, governado pelos mili-
tares Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967),
Artur da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici

212 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


(­­1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista de
Oliveira Figueiredo (1979-1985).
Os governos sustentaram-se com diversos mecanismos de
vigilância e repressão política, como, por exemplo, os Atos Insti-
tucionais, decretos emitidos pelo Executivo com poderes consti-
tucionais, os quais foram utilizados para

extinguir partidos, cassar mandatos parlamentares, exonerar ser-


vidores públicos, exercer censura, suspender decisões judiciais,
fechar temporariamente o Congresso e reduzir os direitos das
pessoas acusadas de crimes políticos (Motta, 2021, p. 102).

O início da década de 1970 foi assinalado por uma escalada


repressiva, o que marcou o período como “anos de chumbo”.
Durante o governo Médici houve um significativo aumento do
aparato coercitivo, da censura prévia sobre os meios de comu-
nicação e produções artísticas, além da adoção de violência sis-
temática contra sujeitos e movimentos de oposição, sobretudo
os envolvidos com a luta armada, com instrumentalização de
aparatos de tortura direcionados aos presos políticos. Além dis-
so, diversas manifestações sociais foram severamente reprimidas,
como a proibição de levantes grevistas pelos trabalhadores que
vivenciavam situação de arrocho salarial (Napolitano, 2014).
Este período foi marcado também por um acelerado cresci-
mento econômico — conhecido como “milagre econômico bra-
sileiro” —, industrialização financiada pelo capital estrangeiro e
investimentos em grandes obras de infraestrutura que amplia-
vam a oferta de empregos. Por esses motivos, para as camadas
sociais beneficiadas foram considerados anos de ouro (Napoli-
tano, 2014).
De acordo com Napolitano, para uma parcela que não tinha
envolvimento com as ideologias da esquerda ou posicionamento
político evidente “o Brasil vivia tempos gloriosos no começo dos

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 213


anos 1970: pleno emprego, consumo farto com créditos a perder
de vista, frenesi na bolsa de valores, tricampeão do mundo de
futebol”. O historiador acrescenta o impacto das notícias sobre
os projetos desenvolvimentistas, com “grandes obras ‘faraônicas’
[que] eram veiculadas pela mídia e pela propaganda oficial como
exemplos de que o gigante havia despertado, como a Ponte Rio-
-Niterói, a Usina de Itaipu e a Rodovia Transamazônica”. Em
conjunto, esses aspectos eram “a materialização do projeto Brasil
Grande Potência, o auge da utopia autoritária da ditadura, que
não deixou de seduzir grande parte da população e da mídia”
(Napolitano, 2014, p. 125).
O autor acrescenta assim que “para os mais pobres, a far-
tura, ainda que concentrada, fazia sobrar algumas migalhas” (p.
125). Entretanto, é preciso frisar que essa perspectiva não era
unânime. O entrevistado Eduardo, por exemplo, que nesse con-
texto era um adolescente de classe baixa ressaltou em sua fala
que “não sabia que estava havendo milagre econômico. Meu pai
trabalhava pra caramba e não via milagre econômico em casa
não. Milagre econômico era ele que fazia, ele e minha mãe,
entendeu?”.
No governo Geisel (1974-1979), a crise do petróleo de
1973 impactou a euforia alcançada com o milagre econômico
brasileiro, havendo um crescimento da inflação e da dívida ex-
terna. No entanto, o otimismo da política desenvolvimentista
permaneceu, com investimentos em bens de capital e preocupa-
ção com o setor energético, algo que pode ser evidenciado pela
construção da hidrelétrica de Itaipu (Napolitano, 2014).
Na política institucional, essa fase foi marcada pelo cres-
cimento do discurso favorável à transição do regime para um
governo com representatividade civil, a partir de uma abertura
política denominada “lenta, gradual e segura”, ou seja, tutelada
pelos militares. Contudo, mantinham-se os aparatos repressivos
e a contínua negação da existência dos mecanismos de tortura,

214 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


apesar da repercussão de casos como o assassinato do jornalista
Vladimir Herzog e do operário metalúrgico Manoel Filho, simu-
lados como suicídio, nas dependências do Centro de Operações
de Defesa Interna e Destacamento de Operações e Informações
(CODI/DOI), órgão de inteligência e repressão (Napolitano,
2014).
Outro aspecto significativo na gestão de Geisel foram as
tentativas de controlar o avanço do único partido de oposição
autorizado pela ditadura, o Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), o qual obteve vitórias expressivas a partir das eleições de
1974. Para tentar contornar a situação e manter o predomínio
do partido do regime, a Aliança Renovadora Nacional (ARE-
NA), foram aplicadas medidas como a Lei Falcão, a qual limitava
a exposição dos candidatos nas mídias televisivas e radiofônicas;
o Pacote de Abril que incluía os senadores biônicos (investidos
sem sufrágio), além da extensão do mandato presidencial. No
entanto, os movimentos de oposição de diversas ramificações
cresciam e pressionavam pelo fim do regime militar, o que se
concretizou em 1985 (Napolitano, 2014).
Muitos destes acontecimentos estiveram presentes nas me-
mórias de entrevistados. A maior parte compartilhou que, em
decorrência da faixa etária, somente a partir da década de 1970
desenvolveu conhecimento sobre a conjuntura política do país.
Entre as narrativas, verificam-se memórias de resistência, como
as manifestações de que Rose participou na universidade e o en-
volvimento de Wolney no movimento estudantil, em cineclubes
e associações de moradores.
No caso dos outros entrevistados, atesta-se que apesar de
não haver envolvimento com a militância política, por temor ou
outras questões pessoais, existia consciência crítica sobre o apa-
rato repressivo utilizado pelo Estado. A perspectiva de Josephina,
entretanto, diferencia-se dos demais quando ressalta a segurança
que o governo lhe transmitiu; é também um reflexo do apoio

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 215


social que garantiu a permanência, visto que regimes ditatoriais
não se sustentam apenas com métodos coercitivos.
Além do arraigado medo do comunismo utilizado como
justificativa, houve um largo uso de propaganda para influen-
ciar a opinião pública, com investimentos em publicidades mais
requintadas e o uso de tecnologias mais modernas, o que impli-
cou o declínio das mídias tradicionais, como os cinejornais da
Agência Nacional, que por muitos anos eram um dos principais
expoentes da propaganda oficial do Estado, considerando o cine-
ma como um importante meio de comunicação de massa. Nesse
sentido, Eduardo declarou:

Eu me lembro que eu já vi um anúncio assim “1930, cinema em


Vaz Lobo. Inauguração do cinema em Vaz Lobo, o presiden-
te Getúlio Vargas não pode vir, mas mandou um representante
para a inauguração do cinema”. Então, você vê, nos anos 30, 40,
cinema já foi um meio de comunicação de massa mesmo e no
final dos anos 70, início dos anos 80, esse modelo, esse paradig-
ma de cinema entrou em crise. Então, quer dizer, eu peguei uma
parte assim da época do milagre econômico, mesmo o cinema
poeira ainda dava para funcionar, para ver alguns filmes, e no
final dos anos 70 já começava a dar sinal de deterioração, o que
se completou nos anos 80 (Eduardo, 2022, informação oral).

As memórias dos entrevistados sobre os conteúdos dos ci-


nejornais da Agência Nacional são escassas e imprecisas, visto
que não era esse o propósito da ida ao cinema, mas o de assistir
aos filmes em circuito comercial. Assim sendo, os entrevistados
enfatizaram em suas narrativas as impressões que tiveram no pas-
sado durante o contato com esses audiovisuais.
Em suas falas, independente da inclinação política, alega-
ram que os cinejornais da Agência Nacional eram enfadonhos,
encarados como um obstáculo à atração principal. Josephina,

216 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


por exemplo, mesmo considerando o regime militar necessário,
declarou

a gente queria ver o filme e não acabava de passar o tal jornal.


[...] A gente tinha que ver, porque era obrigado a ver. [. . . ]
Tudo que é obrigatório é muito chato, a verdade é essa” (Jose-
phina, 2022, informação oral).

Todos os entrevistados compreendiam que a finalidade dos


filmes da Agência Nacional era a propaganda política. Ainda as-
sim, enquanto a maioria considerou que havia um falseamento
dos dados da realidade, houve uma contraposição na fala de Jo-
sephina sobre as informações transmitidas, argumentando que:
“a gente achava que tudo aquilo era verdade, não se tinha dúvi-
da. Hoje as coisas dão muito mais margem a você ter dúvida do
que naquela época. O pessoal era mais correto, viu?” (Josephina,
2022, informação oral).
Contudo, a discrepância entre a realidade vivida e a proje-
tada nos cinejornais também foi uma questão apresentada e pode
ser evidenciada nas memórias de Rosale e Wolney, por exem-
plo. A primeira, como moradora do interior do estado do Rio
de Janeiro, em região com pouco acesso a outros veículos de
comunicação, compartilhou que esses cinejornais tinham como
objetivo “fazer com que a gente acreditasse que o Brasil era um
Brasil único, que era tudo homogêneo, que todo mundo tinha
acesso à educação, que todo mundo tinha acesso à informação”,
o que não era comprovado em seu município. Por sua vez, Wol-
ney como morador da zona norte conta: “eu vi a favela crescer
nos anos 70, tomou conta de tudo aquilo [...] e eu não via isso
nesses filmes. [...] Não via pobre, eu não via povo, eu não via
dificuldades, eu não via questões relacionadas a saneamento bá-
sico [ . . . ] ” (Wolney, 2021, informação oral videoconferência).

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 217


Apesar disso, em alguns casos, evidenciou-se certo interesse
nos cinejornais que expunham temas sobre cultura, como na
experiência do entrevistado não identificado e de Ana Lucia. Ela
discorre que os que abordavam solenidades oficiais de fato eram
monótonos, mas aqueles que apresentavam a cultura popular
regional brasileira a interessavam e tinham uma função educa-
tiva. Em sua perspectiva, o cinema possuía um relevante caráter
informativo quando muitas pessoas continuavam sem aparelhos
televisivos. Conta que em seu meio

A gente conseguia ver aquilo também como uma produção do


país, do povo brasileiro, mas que era gente como a gente, ci-
dadãos brasileiros trabalhando e produzindo. Isso tinha algum
interesse, não sei se pra todo mundo, muita gente devia achar
aquilo uma chatice [...]. Como eu tinha interesse em conhe-
cer outras partes do Brasil, que também eles mostravam, o que
essas pessoas faziam no Norte, o que as pessoas faziam no Sul,
isso pra mim era interessante (Ana Lúcia, 2022, informação oral
videoconferência).

Entretanto, a respeito dos cinejornais considerados de fato


representativos de uma cultura popular, a maioria dos entrevis-
tados enfatizou os exibidos pelo Canal 100 (1959-1986), o qual
recebia financiamento privado e patrocínio estatal, era elaborado
por Carlos Niemeyer Produções Ltda. e seguia a tendência de
fortalecer as narrativas otimistas do governo. Ademais,

pode-se dizer que o Canal 100 reforçou o discurso da imprensa


como um todo, levantando o aspecto democrático do golpe tal
qual poderia ser percebido no discurso dos políticos mais conser-
vadores (Maia, 2006, p. 50).

218 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


Todavia, foram constantes as comparações entre os cinejor-
nais da Agência Nacional e o Canal 100, principalmente quan-
to ao destaque que esse último dava ao futebol como símbolo
nacional. Foi comum entre alguns entrevistados cantarolarem a
música Na Cadência do Samba, com o verso “que bonito é...”, a
qual era tema do Canal 100.
A questão da memória sonora é um aspecto a ser destacado,
pois demonstra que os registros de lembranças dos cinejornais,
ainda que poucos, não se limitaram às mensagens transmitidas
pelas imagens ou pelos narradores com a técnica voice-over, indi-
cando o importante papel da trilha sonora na composição.
Enquanto Na Cadência do Samba é recordada de maneira
agradável pelos entrevistados, Wolney, por exemplo, teceu críti-
cas à sonoridade adotada pelos cinejornais da Agência Nacional e
declarou que: “essas músicas que eles utilizavam, essas orquestras
sinfônicas tocando nesses documentários da época dos cinejor-
nais da época do Médici eram horrorosas. Aí entrava a Ama-
zônia, devastando tudo, aí entra O Guarani, o que O Guarani
tem a ver com isso, entende?” (Wolney, 2021, informação oral
videoconferência).
Estabelecendo comparações entre os cinejornais da Agência
Nacional e o Canal 100, Marco afirmou:

Acho que o Canal 100 ele era mais popular, digamos assim, ele
atraía a atenção com temas mais, assim, de fácil digestão pelo
público que assistia. Ele botava futebol, ele botava concursos de
miss. [...] O Pelé e o jogo do Santos que ganhou a taça Liberta-
dores da América. Então, ele tinha temas mais, não chamaria de
mundanos, mas eram no sentido de mais populares, mais acessí-
veis ao povo comum, ao público médio [ . . . ] . E já o da Agência
Nacional era uma coisa mais quadradinha, devia ter regras, só
pode mostrar isso, só pode mostrar aquilo, não pode mulher de
maiô [...] (Marco, 2022, informação oral videoconferência).

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 219


Em sua pesquisa sobre o Canal 100, Maia (2006) discorre
sobre a tomada da câmera em close-up nos torcedores durante as
partidas de futebol, buscando representar o homem comum e es-
timular a identificação dos espectadores. Nesse mesmo sentido,
o entrevistado não identificado declarou:

Canal 100 era uma coisa que atraía, era atraente, pra mim era
atraente ver futebol. E o Canal 100 tinha já uns clichês dele que
era mostrar pessoas, personagens na arquibancada geral, perso-
nagens pobres, desdentados, negros, coisas que fazia um cartoon,
ele explorava isso. Isso me incomodava um pouco. Na passagem
de uma jogada pra outra, ele sempre colocava um personagem
no fundo grotesco, era pitoresco, mas grotesco. Isso me inco-
modava pela forma desrespeitosa [...], mas era a descrição da
partida de futebol, o lance, a jogada, o jogador, a bola, isso tudo
ele explorava de forma criativa (Entrevistado, 2022, informação
oral videoconferência).

Quando perguntados sobre os cinejornais da Agência


Nacional, outra comparação evidenciada foi com o programa
Amaral Netto, o Repórter, apresentado pelo jornalista e deputa-
do federal conservador que dava nome à produção televisiva
exibida na extinta TV Tupi e também na TV Globo. Consistia
em séries jornalísticas de perfil documentário com assuntos ali-
nhados à ideologia da ditadura civil-militar.
Essa associação ocorreu não só pelos temas abordados no
programa, que eram semelhantes aos dos cinejornais da Agên-
cia Nacional, como também, de acordo com Wolney,“o Amaral
Netto ele canibalizava, né? Ele pegava imagens de cinejornais e
botava no programa dele”, e acrescenta que “[...] ele fazia aque-
las cenas de eu me ufano do Brasil, né? Brasil maior país do mun-
do, melhor, mais belo, aqui não tem guerras, não tem nada, não
tem fome, não tem miséria, não tem furacão, não tem t­ erremoto

220 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


[ . . . ] ele produzia isso [...] era uma coisa que ele fazia até bem
feito” (Wolney, 2021, informação oral videoconferência).
Por sua vez, Rose diz que

[ ...] Amaral Netto, o Repórter, que era um cara super reacionário


que fazia essa coisa da descoberta do interior do Brasil. Ele ia
para as tribos dos índios, isso me marcou muito, e isso também
tinha no cinejornal. Eu não vi todos os cinejornais que você está
mencionando, mas eles tinham muito essa pegada de ir para o
interior, mostrar a pororoca, as Sete Quedas, a construção de
Furnas, essa coisa grandiosa, Transamazônica, isso eu me lem-
bro, né? (Rose, 2022, informação oral videoconferência).

No mesmo sentido, sobre o programa Rosale afirmou

[...] eu me lembro como se fosse hoje ele no Rio Amazonas,


então eu acho que tinha também esse objetivo desenvolvimen-
tista, tinha de divulgar um Brasil grande, um Brasil que tinha
que se aumentar os territórios. Quer dizer, aumentar os terri-
tórios não, divulgar, ampliar, adentrar, civilizar, então eu acho
que era mais ou menos por aí (Rosale, 2021, informação oral
videoconferência).

No decorrer das falas dos espectadores dos cinejornais da


Agência Nacional na década de 1970, as comparações com outros
cinejornais são principalmente sobre as técnicas c­ inematográficas
empregadas e os conteúdos que aproximariam esses outros a um
público mais popular, ainda que compactuem com as mensagens
de ufanismo, desenvolvimentismo e exaltação dos governos mili-
tares. Pelas narrativas, pode-se concluir que para os entrevistados
os cinejornais da Agência Nacional eram produtos expositivos,
burocráticos e de pouco ou nenhum valor criativo. Contudo,
consideraram a importância do valor histórico desses filmes.

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 221


Conclusão

O levantamento destas memórias possibilita, conforme de-


clarou Ana Lucia, “ter esse referencial de como era o mundo e
como a gente via o mundo, porque nisso tem o olhar oficial, que
é sobre o que o governo militar estava fazendo, mas é também
como a gente via e filtrava o que estava acontecendo”. Compro-
vou-se então que, para os entrevistados, a filtragem estava entre
a indiferença e/ou o repúdio, ainda que em certos casos houvesse
interesse pelos recortes culturais dos cinejornais.
Igualmente, o levantamento destas memórias permitiu ve-
rificar a existência de impressões que atribuíam um caráter de
verdade inquestionável ao que era documentado nestes cinejor-
nais, com a noção de que a manipulação de informações e notí-
cias fakes são recursos apenas do tempo presente.
Atualmente, a digitalização dos cinejornais da Agência Na-
cional pelo Arquivo Nacional possibilitou compartilhá-los em
diversas mídias sociais, mas sem o desenvolvimento de uma aná-
lise histórica, o que pode reforçar este status de verdade.
Diante da necessidade de promover uma perspectiva crítica
sobre estes documentos de arquivos, fontes de leitura sobre o
passado, e de preservar a memória dos espectadores para con-
tribuir com as políticas de conservação dessas obras, foi criado
o endereço eletrônico <www.memoriasdecinejornais.com.br>,
acesso em: 2 nov. 2021, tendo por objetivo reunir e compar-
tilhar na íntegra as entrevistas concedidas pelos espectadores
dos cinejornais produzidos pela Agência Nacional na década de
1970, a fim de ser um canal de aprendizado sobre a relação entre
memória, cinema e política.
Além das entrevistas que fundamentaram esta pesquisa, in-
divíduos de diversas localidades poderão enviar um áudio com
suas recordações, respondendo as mesmas perguntas ­realizadas

222 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


aos entrevistados deste trabalho, para compor o acervo de
memórias.
No endereço eletrônico há explicação sobre o que são os
cinejornais e as indicações dos locais em que os cinejornais da
Agência Nacional podem ser localizados. Ademais, é compos-
to por seções que abordam a conjuntura política da década de
1970 e os objetivos das produções da Agência Nacional; mas
espera-se, sobretudo, que a escuta ativa das lembranças narradas
pelos entrevistados possibilitem um aprendizado sobre as distin-
tas experiências de contato com estes jornais de tela, inseridas em
vivências diversas durante a ditadura civil-militar.
Por fim, o endereço eletrônico poderá contribuir também
com as políticas de preservação destes documentos audiovisuais,
pois conforme avalia Maria Laura Bezerra (2015), é urgente que
poderes públicos e sociedade civil comprometam-se com uma
política nacional para a preservação das imagens em movimento,
superando fragmentações e divergências setoriais. Para tanto, é
de suma importância a participação ativa de “historiadores, as-
sim como museus, arquivos e cinematecas, [que] exercem um
papel ativo de seleção do que sobreviverá, do que estará dispo-
nível para as gerações futuras, ou seja: do que será lembrado ou
esquecido” (pp. 8-9).

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224 ∫ Amanda Heloisa Souza Custódio


Entrevistas

Ana Lúcia. Entrevista. [08 mar. 2022]. Entrevistadora: Amanda Cus-


tódio. Rio de Janeiro, 2022, plataforma Meet. (34min)
Eduardo. Entrevista. [19 fev. 2022]. Entrevistadora: Amanda Custó-
dio. Rio de Janeiro, 2022, plataforma Meet. (32min)
Entrevistado não identificado. Entrevista. [27 jan. 2022]. Entrevis-
tadora: Amanda Custódio. Rio de Janeiro, 2022, plataforma
Meet. (56min)
Josephina. Entrevista. [29 jan. 2022]. Entrevistadora: Amanda Custó-
dio. Rio de Janeiro, 2022, plataforma Meet. (2h)
Marco. Entrevista. [24 mar. 2022]. Entrevistadora: Amanda Custó-
dio. Rio de Janeiro, 2022, plataforma Meet. (1h)
Rosale. Entrevista. [04 abr. 2021]. Entrevistadora: Amanda Custódio.
Rio de Janeiro, 2021, plataforma Meet. (49min)
Rose. Entrevista. [28 fev. 2022]. Entrevistadora: Amanda Custódio.
Rio de Janeiro, 2022, plataforma Meet. (32min)
Wolney. Entrevista. [12 jan. 2021]. Entrevistadora: Amanda Custó-
dio. Rio de Janeiro, 2021, plataforma Meet. (3h)

Memórias de espectadores dos cinejornais da Agência Nacional ∫ 225


9.
O ACERVO DO BANCO DE IMAGENS DARCY
RIBEIRO

Claudio Oliveira Muniz1

O
Banco de Imagens Darcy Ribeiro é o objeto de pes-
quisa deste capítulo. Trata-se de um arquivo audio-
visual que integra o acervo da Escola Técnica Esta-
dual Adolpho Bloch (ETEAB), em São Cristóvão, no Rio de
Janeiro. Ele contém parte da documentação do Complexo
de Produção Tele Educativa, quando no prédio funcionava

1 Professor da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch (ETEAB), ministran-


do as disciplinas de Técnicas de Gerenciamento de Informações e Produção
Executiva no curso de Produção Audiovisual (PAV), e pesquisador do Banco
de Imagens Darcy Ribeiro. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Pre-
servação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde da Casa de
Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a dissertação intitulada O
acervo do banco de imagens Darcy Ribeiro, sob orientação da professora douto-
ra Ana Luce Girão Soares de Lima, em 2022. Contato: claudioliveiramuniz@
gmail.com

226 ∫ Claudio Oliveira Muniz


a ­Secretaria Extraordinária de Projetos Especiais, coordenada
por Darcy Ribeiro, de 1983 a 1987, e de 1991 a 1996. Con-
tém o acervo do programa Educação pela TV,2 que foi a pro-
posta de videoeducação dos Centros Integrados de Educação
Pública (CIEPS), os videoaulas da Universidade Aberto do
Brasil, quando funcionou no prédio a Secretaria de Ciência
e Tecnologia do Estado do Rio de Janeiro, de 1996 a 1998,
o acervo do Centro de Produção Audiovisual (CPAV) da
ETEAB, com os trabalhos dos primeiros alunos, e o acervo
ETEAB, com as primeiras atividades pedagógicas e educativas
da escola.
Sou professor da ETEAB desde sua inauguração em 1998
e esse convívio possibilitou que eu conhecesse o acervo e a ini-
ciativa pioneira de Darcy Ribeiro no campo da videoeducação,
um universo familiar ao curso de produção audiovisual. Cada
programa visto, individualmente ou em sala de aula, serviu para
aprimorar a minha visão sobre o rico valor e conteúdo dos pro-
gramas, a qualidade e a dedicação com que foram elaborados e as
referências ao que Darcy Ribeiro considerava de importante na
formação continuada de professores e alunos. Além disso, o cur-
rículo dos profissionais que elaboraram os programas era de refe-
rência.3 Trabalharam no Educação pela TV4 cineastas como Isa

2 Educação pela TV – Catálogo da Programação, Secretaria Extraordinária de


Programas Especiais – Governo do Estado do Rio de Janeiro – Universidade
do Norte Fluminense – Programa de Educação a Distância, p. 5 e p. 24, Rio
de Janeiro, 1994.
3 O mesmo aconteceu com o acervo da coleção Universidade Aberta do Bra-
sil, idealizada por Darcy Ribeiro, em consórcio entre o Centro de Ensino a
Distância do Rio de Janeiro (CECIERJ), o governo do estado, a Universidade
de Brasília (UNB) e o governo federal.
4 Educação pela TV é o programa (1983 a 1987, e de 1991 a 1996) que pos-
sui o maior número de séries e aulas do acervo do Banco de Imagens Darcy
Ribeiro. O Educação pela TV foi idealizado inicialmente para a formação

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 227


Grynspum Ferraz, ex-diretora do Complexo de Produção Tele
Educativa, Beth Formagini, Lucia Murat, Walter Lima Jr., Tizu-
ca Yamasaki, dentre outros. O staff técnico era composto por
profissionais da TV Manchete, que mantinha, na época, con-
trato com o governo do estado para a veiculação dos programas.

Figura 1. Fachada da ETEAB.

Foto Claudio Oliveira Muniz.

continuada de professores, mas logo foi utilizado também com os alunos do


segmento do fundamental dos CIEPS e médio dos ginásios públicos.

228 ∫ Claudio Oliveira Muniz


A pesquisa também destaca o legado institucional da
ETEAB, pois contribuiu para o prestígio de ser a escola pioneira
no ensino médio profissionalizante audiovisual no Brasil, além
de mantenedora de um importante acervo de valor histórico e
educacional. Esses atributos contribuíram para que eu escolhesse
o acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro como meu objeto
de estudo, o que resultou na elaboração desse capítulo, permitin-
do que outros interessados possam estudá-lo.
O referencial teórico deste trabalho aborda temas como
o acesso à informação, a digitalização de acervos, a difusão e a
proposta educacional do Banco de Imagens Darcy Ribeiro, sen-
do, portanto, composto de uma bibliografia que ressalta autores
como Bruno Delmas (2010) que criticam aqueles que conside-
ram a tecnologia como solução para tudo. O autor lembra do pa-
pel dos arquivistas como fundamental para tornar compreensível
aquilo que com o passar do tempo se tornou incompreensível.
Delmas reconhece a tecnologia como aliada, mas ela deve vir
acompanhada da possibilidade de uso, em um tempo justo, hábil
e com recursos que a torne possível.
Utilizamos, também, uma literatura apropriada para escla-
recer o conceito de difusão, em que destacamos Marcelo Chaves
(2020a) e a sua citação sobre o empenho do Arquivo Público do
Estado de São Paulo (APESP) para que a pesquisa e a consulta se
tornassem mais acessíveis ao cidadão comum. Ele observa sobre
a valorização da difusão, como exemplo de renovação e postura,
para que o público possa entender a estrutura dos arquivos e
obter melhores resultados em suas demandas.
Ainda, sobre acesso aos acervos, citamos Rodrigo Garcia
(2021) e a contribuição dos usuários, formado por um público
variado, que vai desde o pesquisador profissional aos trabalhado-
res de outros segmentos, na possibilidade de gerar novas formas
de conhecimento ao desenvolver a sua pesquisa. Eliane Cristina
de Freitas Rocha & Ivana Denise Parrela (2020) comentam o

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 229


exemplo do Arquivo Nacional com o programa “Com a palavra
o usuário”, postado no YouTube, do Arquivo Nacional, em que
destacam as experiências dos usuários no Sistema de Informa-
ções do Arquivo Nacional (SIAN), além de os procedimentos
que levam a instituição a organizar seus documentos mediante
um determinado critério.
Quanto a proposta educacional do Banco de Imagens Dar-
cy Ribeiro e dos CIEPS fizemos uso de referências a Paulo Freire
quando a sua palavra se alia a de Darcy Ribeiro no uso da tec-
nologia, permitindo que o aluno abandone conceitos atrasados e
repressores da “educação bancária” (Freire, 2001, p. 98). Tanto
para Paulo Freire (2001) quanto para Darcy Ribeiro, o homem
concreto deve se instrumentar com o recurso da ciência e da
tecnologia para melhor lutar pela causa de sua humanização e de
sua libertação.
As fontes documentais pesquisadas fazem referência às
prerrogativas fundamentais do cidadão, citadas no artigo 5.°, que
destaca “o direito à vida, igualdade, liberdade, propriedade e à
segurança, para que todos possam viver da melhor forma pos-
sível”, o artigo 37, que observa os princípios constitucionais da
Administração Pública, dentre esses a construção de leis e juris-
prudências, “sem os quais, na atuação da Administração Pública,
o ato se torna nulo”, o artigo 216 que estabelece que o Estado
“garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização
e a difusão das manifestações culturais” da Constituição de 1988
e a Lei de Acesso à Informação (Lei n.° 12.527, de 18 de novem-
bro de 2011), que regulamenta o direito constitucional de acesso
dos cidadãos às informações públicas, aplicável aos três Poderes
da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Encontramos informações sobre o funcionamento do
Complexo de Produção Tele Educativa nos documentos do ar-
quivo administrativo da Secretaria Extraordinária de Programas

230 ∫ Claudio Oliveira Muniz


Especiais, nos arquivos da secretaria escolar da ETEAB e em pes-
quisas realizadas na internet, como, por exemplo, o decreto que
extingue a Secretaria Extraordinária, e determina a transferên-
cia do patrimônio do Complexo de Produção Tele Educativa, e
todo o acervo do Educação pela TV para a Fundação de Apoio
à Escola Técnica (FAETEC).5 Encontramos também informa-
ções na Base Arch6 sobre o 2.° Programa Especial de Educação
(2.° PEE) da Secretaria Extraordinária de Programas Especiais
do Governo do Estado do Rio de Janeiro, no inventário do ar-
quivo pessoal do professor Hésio de Albuquerque Cordeiro,7
que foi secretário de Educação do estado de 1991 a 1992. Da
mesma forma, sites, revistas eletrônicas, depoimentos em vídeo,
foram consultados. Em 18 de maio de 2022, por exemplo, a
equipe do Banco de Imagens Darcy Ribeiro realizou uma entre-
vista ao vivo pelo YouTube, no canal do Centro de Memórias
da Adolpho Bloch (CEMEAB), com Isa Grynspum Ferraz, ex-
-diretora do Complexo de Produção Tele Educativa, que serviu
para esclarecer várias dúvidas de como o projeto funcionava. A
entrevista serviu como atividade de participação do Banco de
Imagens Darcy Ribeiro, na 6.ª Semana Nacional de Arquivos,8
promovida pelo Arquivo Nacional e pelo International Council

5 Por meio do Decreto n.o 25.077, de 17 de dezembro de 1998, o Complexo


de Produção Tele Educativa, instituído no 2.o Plano Estadual de Educação,
implementado durante o segundo governo de Leonel Brizola no Rio de Janei-
ro, é extinto e são transferidas a administração e a guarda dos equipamentos e
demais bens para a FAETEC, destinados à utilização da ETE Adolpho Bloch,
Unidade da Rede que ocupa o mesmo prédio anteriormente ocupado pela 2.ª
Secretaria de Programas Especiais de Darcy Ribeiro. <http://www.silep.fa-
zenda.rj.gov.br/decreto_25_077_17121998.htm>. Acesso em: 28 ago. 2022.
6 <basearch.coc.fiocruz.br> – código de referência: BR RJCOC HC-RI-PC-05.
7 Cordeiro de Albuquerque, Hésio, basearch.coc.fiocruz.br – código de refe-
rência: BR RJCOC HC-RI-PC-05, consultado: 21 fev. 2023.
8 Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=tr8hzjnyRXM&t=85s>.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 231


on Archives (ICA). Posteriormente, em 10 de agosto de 2022,
realizamos na ETEAB o Seminário “Darcy e a Educação” que
fez parte das celebrações do Centenário de Darcy Ribeiro, e foi
um dos produtos desenvolvidos como conclusão do Mestrado
Profissional, quando foram convidadas várias pessoas que par-
ticiparam da Secretaria Extraordinária e do Educação pela TV,
que deram informações que ajudaram a elucidar o cotidiano do
projeto.

Figura 2. Catálogo do Educação pela TV encontrado pe-


los professores na primeira organização do acervo. Consta de
observações a lápis feitas pela equipe da época e está guardado entre
os documentos impressos do Banco de Imagens Darcy Ribeiro

Foto Claudio Oliveira Muniz.

Durante o mesmo seminário esclarecemos algumas dúvidas


sobre a coleção Rede Escola, da Universidade Aberta do Brasil,
e que também faz parte do acervo do Banco de Imagens Darcy
Ribeiro. Destacamos a palestra do professor Wanderlei de Sou-
za, durante o seminário, e a entrevista de Carlos Bielschowsky,

232 ∫ Claudio Oliveira Muniz


para a revista Campo Minado, em que os dois lembram de Darcy
Ribeiro como o idealizador do ensino a distância da Universida-
de Aberta do Brasil em consórcio que reunia a Universidade de
Brasília (UnB), a Universidade do Norte Fluminense (UENF) e
o CECIERJ.
Devemos citar as dificuldades que tivemos no acesso às fon-
tes de pesquisa. Muitas instituições mantiveram-se fechadas em
razão da Covid-19 e não havia como agendar reuniões regulares
com a equipe para refletir sobre os produtos que compunham
o compromisso deste trabalho. As redes sociais, por mais rápi-
das e instantâneas que sejam, ainda impedem o alcance de uma
compreensão ampla que não se consegue abarcar com a comuni-
cação digital. A demora no retorno às atividades presenciais e a
exclusão tecnológica sofrida por alunos e professores resultaram,
portanto, na necessidade de reformulação de alguns dos objeti-
vos iniciais do presente projeto.
Após o estabelecimento de protocolos de conduta para se
protegerem da Covid-19, a Comissão de Organização do Plano
de Ações, com a direção da ETEAB, as coordenações de cursos,
o Centro de Memória da ETEAB, o Centro de Memórias da
FAETEC (CEMEF), o CPAV da ETEAB elaboraram uma pro-
gramação que buscou atender à comunidade escolar por meio
dos produtos: o e-book, o seminário e o vídeo documentário. Foi
desenvolvido, portanto, o evento “100 em 24: O Povo Brasi-
leiro”, de 10 a 17 de agosto de 2022, na ETEAB, que incluiu o
Seminário “Darcy e a Educação”. Incialmente, não faziam par-
te dos planos da Comissão de Organização algumas atividades
propostas pela comunidade escolar, como a roda de pagode, a
oficina de pintura de corpo, a oficina de coleta reciclável, mas es-
sas foram agregadas no rascunho final da programação para que
se alcançasse a adesão ao evento dos cursos e projetos existentes
na ETEAB. A inclusão dessas atividades fez parte de um diálo-
go mediante acordos e concessões mútuas entre a C ­ omissão de

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 233


Organização do evento e a comunidade escolar para que ­assim
fossem mantidos os objetivos finais da proposta, que eram di-
fundir o Banco de Imagens Darcy Ribeiro, celebrar o centenário
de Darcy Ribeiro e os 24 anos da ETEAB. Ao término de sua
­execução, consideramos que o Plano de Ações caracterizou o êxi-
to das atividades propostas e o alcance dos seus objetivos.

O Banco de Imagens Darcy Ribeiro

Figura 3. Sala do acervo

Foto: Claudio Oliveira Muniz.

234 ∫ Claudio Oliveira Muniz


O Banco de Imagens Darcy Ribeiro possui 4.500 fitas de
vídeo,9 dentre elas estão as BETACAM SP10 que reúnem 90% do
acervo, um número reduzido de fitas U-Matic e de fitas VHS. O
acervo é composto pelo Educação pela TV, pelo Rede Escola, e
pelas coleções ETEAB e CPAV, que guardam a memória audio-
visual da escola de sua fundação em 1998 até 2005.11 A ETEAB
é uma instituição pública estadual, pertencente à rede FAETEC,
que oferece o ensino técnico e profissionalizante voltado para a
indústria criativa e do entretenimento. Ela foi fundada em 10 de
agosto de 1998, e recebeu esse nome em homenagem ao empre-
sário das comunicações e então proprietário da TV Manchete,
Adolpho Bloch.
O Complexo de Produção Tele Educativa, subordinado à
Secretaria Extraordinária de Programas Especiais, e que esteve
instalado no prédio hoje ocupado pela ETEAB,12 foi o respon-
sável pela produção do Educação pela TV, sendo inaugurado
por Darcy Ribeiro em 1991, com instalações próprias de uma
emissora de TV. Tatiana Chagas Memória, subsecretária da Se-
cretaria Extraordinária de Programas Especiais do Estado do Rio
de Janeiro, era a responsável pelo órgão na ausência de Darcy

9 O Educação pela TV é o projeto maior com 80% a 90% dos programas do


acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro.
10 BETACAM SP (Beta Camera Special Player) é uma família de equipa-
mentos analógicos de uso profissional para televisão, com bitola de meia po-
legada (1/2”) nas fitas magnéticas, que reúne câmeras de videoteipes para
gravação, aparelhos de videoteipes para edição e fitas magnéticas de 90, 60,
20, 15 e 5 minutos, criados pela empresa japonesa Sony em 1982.
11 Até 2005, os alunos da ETEAB usavam os equipamentos, os editores BE-
TACAM SP e as câmeras BETACAM SP, de versão analógica, que perten-
ceram ao Complexo de Produção Tele Educativa, para realizarem os seus
trabalhos acadêmicos e registrarem os eventos da escola. Após essa data os
equipamentos analógicos passaram a ser substituídos pouco a pouco por ou-
tros mais modernos na versão digital.
12 Avenida Bartolomeu de Gusmão, n.o 850, São Cristóvão, Rio de Janeiro.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 235


Ribeiro, que nesse período cumpria mandato legislativo como
senador pelo estado do Rio de Janeiro (1991-1997). Isa Grys-
npum Ferraz era a responsável pela administração do Comple-
xo de Produção Tele Educativa. Em 1996, Darcy Ribeiro afas-
tou-se da Secretaria Extraordinária de Programas Especiais para
­dedicar-se à elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), e posteriormente terminar o seu livro O Povo
Brasileiro, além de se submeter a um tratamento contra o câncer.
Em 1997, a Secretaria Extraordinária foi extinta e o Comple-
xo de Produção Tele Educativa transferido para a Secretaria de
Ciência e Tecnologia.13
Em 1998 foi inaugurada a ETEAB,14 e as instalações do
Complexo de Produção Tele Educativa passaram a abrigar as
salas de aula e os laboratórios do curso de Produção Audiovisual.
A FAETEC, responsável pela rede de escolas técnicas, ao qual
a ETEAB é subordinada, passou a ser responsável pela guarda
e conservação do acervo de fitas de vídeo. As coleções CPAV e
ETEAB tornaram-se parte do acervo algum tempo depois, com
as produções dos trabalhos acadêmicos das primeiras turmas do

13 Por meio do Decreto n.o 25.077, de 17 de dezembro de 1998, o Com-


plexo de Produção Tele Educativa, instituído no 2.º Plano Estadual de Edu-
cação, implementado durante o segundo governo de Leonel Brizola no Rio
de Janeiro, é extinto e são transferidas a administração e a guarda dos equi-
pamentos e demais bens para a FAETEC, destinados à utilização da ETE
Adolpho Bloch, Unidade da Rede que ocupa o mesmo prédio anteriormente
ocupado pela 2.a Secretaria de Programas Especiais de Darcy Ribeiro.
14 A ETEAB foi inaugurada subordinada ao CETEP Darcy Ribeiro (Cen-
tro Tecnológico Profissionalizante), que se trata de uma estrutura acadêmico
administrativa que ainda pode ser encontrada em algumas unidades da FAE-
TEC. Até 2002, a Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch irá permanecer
subordinada ao CETEP Darcy Ribeiro, que possuía o seu espaço no mesmo
prédio da ETEAB. Após essa data, o CETEP Darcy Ribeiro foi extinto man-
tendo-se apenas a Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch.

236 ∫ Claudio Oliveira Muniz


curso de Produção Audiovisual (PAV), além das gravações de
eventos referentes aos outros cursos.
A partir de 2001, a convite da professora Irene Ferraz,15 na
época diretora do CETEP Darcy Ribeiro (Centro Tecnológico
Profissionalizante) a cineasta Beth Formagini, ex-produtora do
Complexo de Produção Tele Educativa, realizou algumas visitas
à ETEAB, onde reconheceu nas fitas BETACAM SP, que esta-
vam na sala 602 do prédio, o acervo que compunha o Educação
pela TV. A partir de então, em parceria com os professores do
curso de Produção Audiovisual da ETEAB, decidiram nomear
a sala 602: Banco de Imagens Darcy Ribeiro, um espaço que
visa preservar, guardar e conservar a memória do que foram os
CIEPS, o que foi a Secretaria Extraordinária de Projetos Espe-
ciais, o Complexo de Produção Tele Educativa, o início do Rede
Escola e a Universidade Aberta do Brasil e o início das atividades
na ETEAB. Também compõem essa proposta o acervo de fitas
magnéticas, o acervo dos ex-alunos (coleção CPAV) e de eventos
da ETEAB e os documentos referentes aos projetos de ensino a
distância que ali foram executados.
Em 2002, a FAETEC instituiu os Centros de Memória
mediante processo constituído pelo professor doutor José Anto-
nio Sepulveda, e que foi seguido por outras gestões dentre essas
a da professora doutora Isabela Gaze, iniciada em 2010 e que se
mantém até a finalização dessa pesquisa, com o objetivo de man-
ter e preservar a história de cada unidade escolar da FAETEC.
Em 2011, foi criado o Centro de Memória da ETE Adolpho
Bloch (CEMEAB), que participa da coordenação e preservação
do Banco de Imagens Darcy Ribeiro.

15 Irene Ferraz foi casada com Darcy Ribeiro e é a atual diretora do Instituto
Brasileiro de Audiovisual – Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Disponível em:
<https://www.escoladarcyribeiro.org.br>. Acesso em: 5 mar. 2023.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 237


Figura 4. Sala do acervo

Foto: Claudio Oliveira Muniz.

O Educação pela TV foi veiculado de 1983 a 1987, e de


1991 a 1996, no 1.° e no 2.° Programa de Educação Especial
(PEE), pela TV Manchete. Essa coleção compõe 90% do acer-
vo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro sendo formada pelas
matrizes dos programas em fitas BETACAM SP de 90 minu-
tos, totalizando 600 episódios editados e subdivididos nas séries:
“Programas Cultura Geral”, “CLAC (Curso Livre de Aprimora-
mento de Conhecimentos)”, “Rede Geral” e “TV Ontário”.
O Rede Escola, que funcionou no prédio da ETEAB de
1996 até 1998, foi uma proposta de educação a distância tam-
bém idealizada por Darcy Ribeiro, porém, executada pelos pro-
fessores Carlos Bielschowsky, atual professor da Universidade
de São Paulo (USP), fundador e ex-presidente do Consórcio
CEDERJ-CECIERJ, e pelo professor Wanderley de Souza,

238 ∫ Claudio Oliveira Muniz


ex-secretário de Ciência e Tecnologia do segundo governo de
Leonel Brizola. Refere-se ao projeto de ensino a distância com
videoaulas e acesso pioneiro à internet, por meio do convênio
entre a Universidade de Brasília, a FAPERJ, a SECTEC-RJ, o
Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado
do Rio - CECIERJ, o governo federal, a IBM e a SchoolNet, do
Canadá. Esse projeto surgiu a partir do desejo de Darcy Ribeiro
de ampliar a ações da Universidade de Brasília com a criação da
Universidade Aberta do Brasil, com ensino a distância. A coleção
Rede Escola é formada por fitas de vídeo BETACAM SP, com
toda a programação ainda em seus originais com a duração de
90 minutos, com programas editados e em razoável condição de
conservação. As fitas estão organizadas, identificadas e em con-
dições de acesso.
A Coleção CPAV é formada por 300 fitas de vídeo BETA-
CAM SP de diversas durações e fitas VHS (Vídeo Home Sistem)
utilizadas para a realização de trabalhos de alunos do curso de
PAV, seja por criações documentais, ficcionais ou trabalhos de
reportagens nas gravações de eventos na ETEAB. São gravações
e edições com recursos analógicas, pois foi somente a partir de
2008 que o curso de PAV da ETEAB recebeu a sua primeira
câmera digital e as gravações passaram a ser guardadas em car-
tuchos. No final de 2019, dois desses aparelhos de videoteipes
BETACAM foram recuperados para serem utilizados no projeto
do Banco de Imagens Darcy Ribeiro, o que permitiu a digitaliza-
ção de uma parte do acervo que se encontrava em fitas de vídeo.
A “Coleção ETEAB” é composta de gravações de outros
cursos da ETEAB, entre os quais destacam-se os de publicidade
e propaganda e o de eventos. Também estão guardadas nessa
coleção as gravações das sete primeiras edições do Bloch AV,
a Semana de Audiovisual da ETEAB, algumas fitas referentes
ao BlochTur, evento ligado ao curso de turismo, 2 fitas BETA-
CAM referentes às eleições para diretores da ETEAB e 1 fita com

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 239


g­ ravações sobre o Dia do Índio, quando alguns participantes da
Aldeia Maracanã foram convidados para se apresentarem no au-
ditório da ETEAB.

Difusão de arquivos

O Estado Democrático tem como uma das suas prerro-


gativas possibilitar o acesso dos cidadãos às informações que se
encontram sob a sua guarda e as que são produzidas com base
em suas ações. Essa postura amadureceu com a redemocratiza-
ção, tomou amplitude com a criação de mecanismos legais no
decorrer dos anos, e em 2011, houve a sanção da Lei de Acesso
à Informação (LAI – Lei n.°12.527/11), que regulamentou os
dispositivos da Constituição de 88, definindo que a informação
pública é um bem público, sendo direito de todos a sua disponi-
bilização e o acesso amplo e em tempo justo.

Tornar acessível a informação pública tão logo seja possível, sal-


vo os casos de informações classificadas como sigilosas, não só
cumpre o objetivo de transparência e com a legislação corres-
pondente (Lei n.° 12.527/11) como facilita ações, correções e in-
tervenções técnicas e estratégicas na busca da melhoria da gestão
institucional (Rockembach, 2015, p. 110).

A difusão de arquivos aparece neste panorama como uma


atividade que “vise promover, divulgar, engajar e informar à co-
munidade de usuários e potenciais usuários de uma instituição
arquivística. Essa definição é importante do ponto de vista da
busca do estado da arte que buscamos descrever e sistematizar”
(Barros, 2020, p. 69).
Por outro lado, a difusão de acervos pode ainda valorizar
a memória coletiva ao divulgar informações que trazem novas

240 ∫ Claudio Oliveira Muniz


visões e abordagens à história. Tomamos como exemplo a live
“Arquivos como janela e suporte da democracia”,16 do Arqui-
vo Público do Estado de São Paulo (APESP), transmitida em
30 de junho de 2022, pelo YouTube, quando José D’Amico
Bauab, responsável pelo Centro de Memória Eleitoral (CEMEL)
do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, mencionou a im-
portância da participação da população nas eleições de 2022 por
meio da exibição de um vídeo didático do acervo do CEMEL,17
que ensinava como o eleitor deveria proceder diante da urna
eleitoral no pleito de 1945. Lembrou também da contribuição
da Revolução Constitucionalistas de 1932 para a validação do
voto feminino, do voto secreto e da criação da Justiça Eleitoral.
Atividades de difusão como essa só se tornaram possíveis
a partir do momento em que o APESP encontrou um caminho
em sua política de difusão de modo a tornar-se mais ampla e
acessível ao usuário. Chaves (2020a) destaca a experiência do
APESP:

Decorrente disso implementou-se o que chamamos de circuito


de difusão em que se busca explorar ao máximo os esforços de
pesquisa para realização de eventos, conforme o seguinte pro-
cesso: estudo da produção nas áreas técnicas para se conceber o
planejamento de difusão (anual e mais) => estudo de efemérides
capazes de potencializar eventual abordagem temática, a partir
da produção das áreas técnicas e do potencial do acervo => feitos
esses estudos, elaboram-se planejamento e produção de eventos
=> realização de eventos e de exposição física com máxima explo-
ração temática, mas ressaltando-se os trabalhos arquivísticos =>

16 Disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=WFwwLyWIy8k&t=7091s.> Acesso em: 23 mar. 23.
17 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Q5cyzya8raA>.
Acesso em: 23 mar. 23.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 241


realização de seminários de lançamento e eventos de capacitação
durante a vigência da exposição => transformação da exposição
física em virtual => transposição do tema para o formato da pu-
blicação periódica e, se possível, em outras publicações => lança-
mento de periódico semestral (p. 56).

Para o autor é importante que a difusão auxilie no uso am-


plo dos arquivos não se limitando ao atendimento escolar de
visitas guiadas aos estudantes, a pesquisa histórica, as atividades
de complementação pedagógica, as exposições, as publicações,
os calendários, dentre outras iniciativas. A difusão deve trabalhar
com o atendimento para que a pesquisa e a consulta se tornem
acessíveis ao cidadão comum. Em sua experiência, o APESP re-
pensou a difusão, porém manteve as ações que já existiam como
publicações, revistas, calendários, realizações de exposições, se-
minários e visitas guiadas. A renovação da política de difusão
passou a valorizar procedimentos arquivísticos fundamentais
que possibilitam ao público entender a estrutura da instituição.
Esclarecer como os arquivos se organizam traz benefícios,
pois se trata de um processo que acontece durante toda a cons-
tituição da instituição e que funciona para a gestão e para a di-
fusão. Garcia (2021) explica a importância de um arquivo bem
definido e que irá possibilitar ao usuário interpretar as informa-
ções obtidas.

Todos nós, pesquisadores e arquivistas, adoramos quando so-


mos os primeiros a encontrar um documento interessante. Mas,
convenhamos, isso é um tanto primário, senão infantil. Nosso
objetivo, que sabemos nunca será totalmente alcançado, dado o
volume de documentos, é dar a conhecer fundos, coleções, séries
e documentos com seus vínculos e contexto de produção, de-
vidamente estabelecidos. Ao pesquisar deveríamos proporcionar
um salto para além dos dias ou semanas em que ele se dedica à

242 ∫ Claudio Oliveira Muniz


a­ bertura de caixas e teria no final, talvez um pequeno momen-
to de regozijo. Que ele encontre orientação atalhos nos instru-
mentos de pesquisa e possa dedicar seu tempo a interpretar e
ressignificar o que encontrou. Isso não quer dizer que uma boa
­pesquisa possa ser feita sem um enfrentamento árduo, moroso
que se derrame por um sem-número de documentos, reconhe-
cendo conexões entre eles e destes com o período ou tema estu-
dado (p. 229).

O diálogo do usuário com o arquivista é enriquecedor, por-


que permite que ele participe do processo de organização com
as suas experiências, ampliando as formas de acesso. O uso do
arquivo por um público variado, que vai desde o pesquisador
profissional aos trabalhadores de outros segmentos, além do ci-
dadão comum, possibilita a aquisição de novas formas de conhe-
cimentos. Rodrigues (2020) descreve a contribuição de usuários
na elaboração de fichas práticas, por exemplo, mostrando que
a experiência do pesquisador nos arquivos mudou, pois já não
ocupa um lugar passivo, secundário, destacado daquilo que é
desenvolvido pelos especialistas. Essa concepção já foi ultrapas-
sada porque: “desde o final da década de 70, em muitos países,
o princípio de que uma das principais finalidades do trabalho
do arquivista é disponibilizar e valorizar os arquivos, sendo os
usuários os principais sujeitos dessa ação” (p. 223).
Se os arquivos não forem usados, nem reconhecidos, ainda
que estejam organizados, estruturados, conservados e preserva-
dos, podem acabar com suas funcionalidades reduzidas, desvalo-
rizando o trabalho daqueles que se empenham no resguardo e na
preservação da memória.

[...] ensinar história ou construí-la, de maneira que o documen-


to não represente uma mera ilustração, mas, sim, que ele suscite
várias perguntas, e que respostas sejam construídas por meio de

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 243


sua problematização. Além disso, os laços entre arquivo e ensino
se estreitam na medida em que o trabalho educativo oferece ao
público escolar ações voltadas à conscientização sobre a impor-
tância de se preservar a memória (Barbosa & Silva, 2012, p. 45).

A difusão de arquivos deve esclarecer sobre a formação da


instituição, as suas origens, como foi estruturada, enriquecen-
do a população de informações para que possa ser oferecido um
serviço de qualidade aos que não possuem o hábito de frequen-
tar esses espaços. Duff (2022) caracterizou esse exemplo como
“arquivos lentos”,18 em que a eficácia se encontra na referência
transformando esses espaços em representações da cidadania. Se-
gundo a autora, o atendimento que pretende ser ampliado ao
cidadão deve criar elementos de identificação com o acervo. De-
ve-se procurar entender o que o cidadão realmente quer e pre-
cisa, para que se possa entregar a ele, o que realmente deseja. O
pesquisador que está acostumado a atender ao público especiali-
zado, por exemplo, não terá como destinar o mesmo tratamento
ao cidadão que busca dados sobre a sua ancestralidade. A ideia
é que se desburocratize o atendimento e que os profissionais de
arquivo dediquem um tempo a entender o que o cidadão real-
mente quer. Se não forem adotadas práticas democráticas como
essas no atendimento, a tecnologia somente não fará milagres.

A frieza da burocracia estatal administrativa, o excessivo tecnicis-


mo da linguagem arquivística e a falta de mecanismos mais justos
no atendimento, tem afastado os que mais necessitam do acesso à
informação. A tecnologia só não produz milagres e a ­instituição

18 O conceito de “arquivos lentos” foi exemplificado por Wendy Duff durante


palestra na VII Reunião Brasileira de Ensino e Pesquisa em Arquivologia
(REPARQ), no dia 20 de junho de 2022. <https://www.youtube.com/
watch?v=vP7T1KWTZ14&t=4007s>, 1h10min. Consultado em: 21 fev.
2023.

244 ∫ Claudio Oliveira Muniz


será democrática se forem adotadas práticas democráticas que
reduzam os impactos emocionais no trato das informações, prin-
cipalmente para as camadas da população que são reconhecida-
mente mais vulneráveis (Duff, 2022, 1h,6min46seg).

É certo que as redes sociais facilitaram o acesso ao registro


dos fatos de uma forma sem precedentes na história, desempe-
nhando um papel importante na interação entre as pessoas, por
meio da instantaneidade e da portabilidade das informações.
Elas também possibilitaram o surgimento das fake news, um fe-
nômeno que tem o Brasil, em particular, como um campo fértil,
pois se somam aos aspectos citados o imaginário teológico-polí-
tico da tradição de um Estado forte que descredencia a imprensa
séria, abala a credibilidade de instituições públicas ou privada
de referência e desconstrói a confiança na ciência e na educação.
Essa situação se alimenta da fragilidade coletiva agindo em
detrimento da credibilidade, da experiência e dos compromissos
com a sociedade. É o que se verifica, no pouco destaque ofereci-
do aos arquivos, como espaços democráticos, que guardam indí-
cios, vestígios e provas de atividades pessoais e institucionais. Os
arquivos públicos ocupam um papel importante na democracia,
já que, a partir das suas atividades e funções, busca-se preservar,
organizar e difundir as fontes documentais que garantem direi-
tos sociais em um país de dimensões territoriais, com uma po-
pulação de baixa renda, pouco letrada e que necessita reivindicar
seus direitos e memórias.
Com a pandemia de Covid-19, os arquivos aumentaram
vertiginosamente o atendimento remoto, e a digitalização permi-
tiu a consulta aos documentos o que impôs uma nova realidade
aos arquivos. A digitalização mostrada como solução, guarda
em seu âmbito complicações que ainda estão por serem resol-
vidas, como a falta de recursos financeiros, de suporte técnico
e de atualizações de dispositivos tecnológicos. Delmas (2010)

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 245


critica a disposição em considerarem que esta é a única solução
e ­destaca que a presença da tecnologia, apesar de fundamental,
deve vir acompanhada da real possibilidade de uso em um tempo
justo e hábil. A tecnologia é um facilitador, quando se soma aos
recursos que tornem o seu uso possível.

Os arquivos permitem-nos conhecer dos documentos, tal como


das velhas ferramentas, sua razão de ser e seu uso. O papel dos
arquivistas é de decifrar, para os usuários atuais, os códigos es-
quecidos dos documentos, qualquer que seja a sua época, e de
tornar compreensível e acessível aquilo que com o passar do tem-
po, se tornou incompreensível. Inútil dizer que essa concepção
recoloca em questão muitas das práticas passadas do ofício de
arquivista e ressalta a importância da cultura histórica na sua for-
mação (p. 116).

A referência permanece, como um dos serviços essenciais


na manutenção dos arquivos, ao possibilitar o alcance às infor-
mações para que o usuário tenha plena eficiência nas pesquisas.
Não basta que o arquivista tenha consciência das suas tarefas
quanto ao recolhimento, ao processamento, à avaliação, à clas-
sificação, ao arranjo, à descrição e à proteção à integridade dos
documentos. Há a necessidade de uma interação com o usuário,
uma condição que nenhum aparato tecnológico pode oportuni-
zar, e que só o envolvimento humano pode oferecer. Para Duff
(2016) o arquivista de referência deve administrar características
específicas para o exercício de sua função.

Eles necessitam de diversos tipos de conhecimento técnico e de


habilidades, mas Le Roy Barnet nos lembra que a boa referên-
cia vem tanto do cérebro quanto do coração. O trabalho de re-
ferência é uma arte de fazer conexões entre pessoas. Portanto,
um serviço de referência de excelência começa com o desejo de

246 ∫ Claudio Oliveira Muniz


c­ ompreender e atender às necessidades individuais dos usuários.
Os bons arquivistas de referência são imparciais, paciente e cria-
tivos. Eles possuem boa memória, além de se interessarem por
resolver problemas e gerenciar mudanças (p. 187).

A experiência no Setor de Consulta do Centro de Acer-


vo Permanente do Arquivo Público do Estado de São Paulo
(APESP) corrobora com a descrição feita por Le Roy Barnet,
citada por Duff (2016), sobre o que é trabalhar na referência e
a atenção que os arquivistas devem dedicar ao usuário e os cui-
dados que devem ter no envolvimento emocional de situações
diversas, além dos desafios em praticar a máxima publicização do
acervo. Destacamos as declarações de Garcia (2021), do Setor de
Consulta do Centro de Acervo Permanente do Arquivo Público
do Estado de São Paulo, no trabalho com “documentos sensí-
veis”, referentes às vítimas da repressão, tortura e morte durante
a ditadura militar, ou de quem busca as suas mães biológicas.

Nós temos segmentos do acervo que poderíamos incluir na cate-


goria de sensíveis. E aqui cabe um parêntese: documentos sensí-
veis demandam um atendimento sensível. Não é raro ver servi-
dores e consulentes segurando o choro, por exemplo, na consulta
aos documentos do DEOPS19 ou da Maternidade de São Paulo;
é preciso saber lidar com esse tipo de situação, mas também é
muito recompensador, temos orgulho em servir a esse cidadão
que vem em busca de documentos probatórios e ao mesmo tem-
po conhecer sua própria história ou de sua família num ponto
agudo de sua trajetória (p. 225).

19 DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criado em 30 de de-


zembro de 1924, foi um órgão do governo brasileiro utilizado principalmente
durante o Estado Novo e mais tarde na ditadura militar.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 247


A difusão com o público escolar permite o contato com um
material que não se encontra nos livros didáticos, cujo uso vem
sendo estimulado pelos docentes, gerando o hábito de os arqui-
vos serem frequentados pelos mais jovens de modo a contextua-
lizarem o passado por meio dos documentos e ressignificarem o
presente. Com esse objetivo, o Arquivo Público do Estado de
São Paulo desenvolveu entre os anos de 1997 e 2005 oficinas pe-
dagógicas no Programa de Educação Continuada, direcionadas
aos professores para ensinar sobre o uso de fontes iconográficas
e documentos oficiais na construção do conhecimento histórico
em sala de aula.
A inclusão em sua política ou plano de difusão de uma
explicação, ou de uma definição das técnicas arquivísticas, suas
características e seus detalhes, usados no cotidiano e na rotina
que compõem os arquivos, possibilitaria o melhor uso dos recur-
sos disponibilizados. Tal postura contribuiria significativamente
para o entendimento do papel dos arquivos e para o seu uso pela
população, em suma, para a compreensão de sua função e im-
portância para a sociedade. Rocha & Parrela (2020) comentam
o exemplo dos vídeos existentes no programa “Com a palavra o
usuário”, postados no canal do YouTube do Arquivo Nacional.
No programa, técnicos do Arquivo Nacional convidam aqueles
usuários que mais frequentam os seus serviços a darem o seu de-
poimento, destacando as suas experiências no uso do SIAN, dos
mecanismos e das estratégias de buscas elaboradas, além dos pro-
cedimentos que levam a instituição a organizar seus documentos
a partir de um determinado critério.

Independentemente das características das pesquisas, sejam


acadêmicas das áreas de história e comunicação/audiovisual ou
de fins probatórios (práticos), emergiu o papel fundamental
do trabalho mediado exercido pelo atendente do Arquivo Na-
cional. Para o usuário 1, o ‘atendimento próximo, no início, é

248 ∫ Claudio Oliveira Muniz


f­undamental’, pois muitas pesquisas surgem dentro do próprio
arquivo, com a exploração dos materiais.
Sem o trabalho de vocês não tem como fazer a pesquisa aqui
dentro. [...] A cabeça do arquivista [.. . ] opera de maneira di-
ferente da do historiador. [...] A gente passa por outros cami-
nhos. Aquilo que para vocês é simples, a notação se faz assim, o
número 3, o 4, o 7, o 8. É nesta ordem porque é assim. A gente
não pensa assim (AN, 2017a, usuário 1 apud Rocha & Parrela,
2020, p. 230).

Essa proposta facilita o acesso aos acervos, pois leva o usuá-


rio, ainda que de forma relativa, a entender o pensamento dos
arquivistas e a adotar técnicas de organização, possibilitando au-
xiliar nas demandas de pesquisa e levarem o cidadão comum a
conhecer e a frequentar os arquivos. Outra iniciativa interessante
é a citada por Cabral (2012) na Revista do Acervo na qual as expe-
riências sobre difusão de arquivos corroboram para a construção
de uma memória social. Nos Archives Nationales, na França, o
cidadão comum é incentivado a frequentar a instituição forta-
lecendo para a construção de uma memória social. Durante a
semana, os usuários dos Archives Nationales são convidados a
levarem um objeto, como uma foto, documento ou objeto anti-
go, que por meio de depoimentos fazem uma análise descritiva e
associativa do objeto relacionando-o com a história de um ente
querido ou da sua própria família.

100 anos de Darcy Ribeiro

Plano de Ações

Uma das ações de difusão do Banco de Imagens Darcy Ri-


beiro promovida em 2022 foi o evento “100 em 24: O Povo

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 249


Brasileiro”, que celebrou o centenário de Darcy Ribeiro junta-
mente com o aniversário de 24 anos da ETEAB. Tratava-se de
um Plano de Ações que incluiu um seminário com duas mesas
de debates. A iniciativa teve a participação de segmentos vincula-
dos a cursos e projetos diversos já desenvolvidos na ETEAB e na
FAETEC, como o CPAV, o Centro de Memória da FAETEC,
o curso de PAV, o curso de eventos, a agência modelo do curso
de eventos Ventura, a direção da ETEAB, o Centro de Memó-
rias da FAETEC, o curso de publicidade e propaganda, o curso
de dança, o projeto Leiturando, as coordenações dos cursos e o
Cineclube Olho na Cena. Consideramos que foi executado com
pleno êxito e alcançou os objetivos propostos, que foram:
• Tornar o Banco de Imagens Darcy Ribeiro mais conhe-
cido na ETEAB e fora dela.
• Contribuir com a presença de outras instituições e seg-
mentos para participem da reestruturação e manuten-
ção do Banco de Imagens Darcy Ribeiro na busca por
novos recursos que oportunizem melhores condições
de acondicionamento do acervo e a ampliação das pro-
postas de digitalização.
• Estabelecer uma seleção do que se encontra ainda em
fitas de vídeo mediante sugestão da equipe do Banco de
Imagens Darcy Ribeiro, CEMEAB, estagiários e parti-
cipantes do evento “100 em 24: O Povo Brasileiro” e
propor a digitalização.

Seminário Darcy e a educação

O Seminário “Darcy e a Educação”, que integrou o evento


“100 em 24: O Povo Brasileiro”, aconteceu no dia 10 de agosto
de 2022, data em que também se comemorou o aniversário de
24 anos da ETEAB. O seminário aconteceu presencialmente e
contou com transmissão pelo Instagram do curso de eventos,

250 ∫ Claudio Oliveira Muniz


com 412 seguidores. Durante a exibição do seminário pela ma-
nhã 100 pessoas participaram do chat enviando comentários.
Durante à tarde, por questões técnicas, a transmissão no Insta-
gram não foi realizada.
O seminário atingiu principalmente o público formado por
alunos, professores e funcionários da ETEAB, mas contou com a
presença, em menor escala, de ex-professores e ex-funcionários,
fundadores da ETEAB, que estão aposentados, mas que costu-
mam participar das atividades culturais, como palestras, Festa
Junina, almoços e lanches de confraternização, dentre outros.20
Também tivemos a presença de representantes do CEMEF
(Centro de Memória da FAETEC), da direção da FAETEC, de
professores das redes municipal e estadual, e ex-funcionários do
Complexo de Produção Tele Educativa.
Uma das preocupações que surgiu com a formação da Co-
missão de Organização, em junho de 2021, foi a necessidade de
ter de realizar um evento remoto, em virtude da Covid-19. Por
essa data, a FAETEC sinalizava o retorno regular às aulas pre-
sencias, entretanto, havia muita incerteza sobre o contágio cole-
tivo em ambientes fechados, em especial nas salas de aula e nos
transportes públicos. O retorno aconteceu de forma temerosa,
preocupante, sob constrangimentos, e com o risco de um recru-
descimento à fase aguda da doença. Assim, foram diagnosticados
os prejuízos que a exclusão tecnológica por causa do isolamento
causou ao aprendizado e no psicológico dos jovens. A Comis-
são de Organização do Plano de Ações teve de lidar com essas

20 A presença dessas pessoas na ETEAB caracteriza o vínculo afetivo que a


escola gerou no decorrer dos anos. Esses ex-funcionários tomaram parte e
presenciaram a inauguração da ETEAB sendo testemunhas de sua trajetória,
como a professora Teresa Julieta Andrade que foi a elaboradora do primeiro
projeto FAPERJ sobre o Banco de Imagens Darcy Ribeiro. O mesmo aconte-
ce com os ex-alunos que são convidados a darem palestras para os mais jovens
em que destacam como a escola contribui para a sua carreira.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 251


i­ntercorrências, porém mesmo assim rascunhou uma versão pre-
sencial do evento, sem ter a certeza se poderia ou não o elaborar,
com uma programação que dependia da agenda dos convidados,
e a escolha de uma data preliminar que não conflitasse com ou-
tras atividades sobre Darcy Ribeiro que estavam ocorrendo, sob
o risco de não contar com palestrantes nem ter público.

Figura 5. Palestrantes da mesa da manhã: professora ­Marcia


Farinazo (FAETEC), professor João Alegria (Fundação
­Roberto Marinho), professora Prisciliana (UNIRIO) e teve
como mediadora a professora Kely (EVT, ETEAB)

Foto: Claudio Oliveira Muniz.

Dessa forma, buscava-se informalmente o compromisso


com algumas pessoas e instituições para auxiliar na divulgação
do evento, ainda que antecipadamente, como a Fundação Darcy
Ribeiro (FUNDAR) e a Fundação Roberto Marinho, que seria
organizado no segundo semestre de 2022. Contou-se, portanto,
com a presença da professora doutora Lucia Veloso Mauricio,
o professor José Ronaldo, ambos da FUNDAR, e o professor
João Alegria, presidente da Fundação Roberto Marinho. Em 21

252 ∫ Claudio Oliveira Muniz


de outubro de 2021, por exemplo, como forma de divulgação
do Centenário de Darcy Ribeiro, foi realizada a live com Isa
Grynspum Ferraz,21 durante a participação do Banco de Imagem
Darcy Ribeiro na 7.a Semana Nacional de Arquivos. A divulga-
ção também ocorreu nos grupos e em mensagens individuais de
WhatsApp feitas pelos componentes da Comissão de Organi-
zação em escala menor, porém de forma pontual, com convites
de comparecimento a contatos em suas redes sociais. Foram en-
viados e-mails para instituições que possuíam afinidade com o
tema solicitando a divulgação como: Academia Brasileira de Le-
tras, Museu Nacional, Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
Universidade de Brasília (UnB), Arquivo Nacional, FIOCRUZ
(CAD – Centro de Apoio ao Discente – stories do Instagram),
FUNDAR, Prefeitura de Maricá, dentre outras.
O Instagram e o Facebook dos cursos de PAV e eventos,
também destacaram a programação, sendo que o Instagram do
curso de eventos transformou-se no canal oficial do seminário,
por ter maior número de inscritos. Durante o seminário da ma-
nhã, houve uma transmissão de 50 minutos, quando teve a inte-
ração com os internautas. Não conseguimos manter o Instagram
transmitindo por mais tempo em razão da queda na internet. À
tarde não houve transmissão também por falta de acesso à in-
ternet. Foram impressos cartazes e colocados nos murais da es-
cola e em outros espaços. A Comissão de Organização não teve
como se comprometer em permitir a entrada livre de público nas
­dependências da ETEAB, como se cogitou a princípio, por meio
dos aplicativos Simpla, Even 3 ou Ingresse. A ETEAB possui um
auditório grande, que comporta um número razoável de pessoas,

21 Isa Grynspum Ferraz, , participação na live em 21 de outubro de 2021,


transmitido ao vivo, no Cineclube Beijódromo — Mistura e Invenção —
YouTubeCineclube Beijódromo — Mistura e Invenção. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=TFBB9PF3inA>. Acesso em: 25 out.
2021.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 253


entretanto a escola não possui funcionários o suficiente para dar
suporte nas condições de acesso, segurança e permanência nas
instalações do prédio, caso o público comparecesse em um núme-
ro maior do que o que ocorreu. Por se tratar de uma escola públi-
ca, com alunos adolescentes que permanecem sob a responsabili-
dade da FAETEC, a Comissão de Organização decidiu controlar
o acesso de pessoas que não frequentavam com habitualidade a
ETEAB. Os que compareceram ao seminário foram convidados
pontualmente por membros da Comissão de Organização.

Figura 6. Auditório cheio.

Foto: Claudio Oliveira Muniz.

254 ∫ Claudio Oliveira Muniz


O Seminário “Darcy e a Educação” ocorreu no dia 10 de
agosto com uma mesa de debates pela manhã e outra à tarde. A
mesa da manhã teve como tema “Educação para a igualdade”, e
propôs a seguinte reflexão: “Em um país como o Brasil, de pro-
porções continentais, diversidade e desigualdade convivem lado a
lado. Se é certo que a educação é um direito de todos, garantido
pela Constituição Federal de 88, perguntamos: Como fazer uma
educação igualitária? Darcy Ribeiro tinha essa resposta?”. A mesa
da tarde teve como tema, “Comemorar o presente para o futuro”,
e propôs a seguinte reflexão: “Presente, passado e futuro? Tolice.
Não existem. A vida é uma ponte interminável. Vai-se construin-
do e destruindo” (Darcy Ribeiro - Utopia Brasil). “Nas vidas aqui
presentes neste passado-futuro iremos darcynear a todos saindo
da ninguedade e nos tornando pontes vivas dessa educação co-me-
morada. Vamos comemorar os 100 em 24? Entre Darcy e a ETE
Adolpho Bloch estamos nós pelo povo brasileiro nesta mesa”.

Figura 7. Mural alternativo de ráfia de 2mx6 m feitos com tinta


de piso e pigmentos que se remetem ao universo de Darcy Ribeiro
elaborados pela professora Georgia Moreira Firpo de Andrade e os
alunos, na disciplina de artes. Tema: Darcy Ribeiro: indianista

Foto: Claudio Oliveira Muniz.

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 255


Aferição de resultados

Um questionário individual composto de sete perguntas foi


submetido aos alunos envolvidos no evento e também aos que
fizeram parte do público, uma semana após o término da progra-
mação. O objetivo foi levantar o impacto do evento nesse grupo
e avaliar as suas impressões. O questionário foi dado durante a
disciplina de produção executiva. Houve o retorno de 20 ques-
tionários e as perguntas foram as seguintes:
1. Qual a sua avaliação do evento?
2. O que você mais gostou?
3. O que você não gostou? Por quê?
4. O que é o Banco de Imagens Darcy Ribeiro?
5. Você se interessaria em conhecer mais sobre o Banco de
Imagens Darcy Ribeiro?
6. O que do acervo você gostaria de conhecer mais?
7. Quais as propostas que você gostaria de verem realiza-
das em 2023 que incluem o Banco de Imagens Darcy
Ribeiro?

O questionário revelou que alunos e alunas consideraram


positiva a participação no Plano de Ações que organizou o even-
to “100 em 24: O Povo Brasileiro”. As respostas destacaram
o interesse em saber mais sobre o acervo do Banco de Imagens
Darcy Ribeiro, seus programas e videoaulas. Também foi ob-
servado uma curiosidade, em particular, sobre a personalidade
de Darcy Ribeiro, sobre o que ele escreveu no tema educação e
como ela é importante para o panorama de uma sociedade. Des-
tacaram a boa oportunidade que tiveram de ouvir aqueles que
foram testemunhas da construção dos CIEPS, da formação da
Secretaria Extraordinária de Projetos Especiais e do Complexo
de Produção Tele Educativa, referências da história da ETEAB.

256 ∫ Claudio Oliveira Muniz


Alunos e ­ alunas revelaram que em 2023 esperam realizar
­atividades r­ elativas ao acervo do Banco de Imagens Darcy Ribei-
ro mediante a digitalização das fitas BETACAM e a organização
de uma mostra de vídeo com alguns programas e videoaulas, ou
desenvolvendo outras atividades de pesquisa no acervo que possa
nutrir os seus trabalhos acadêmicos.
O seminário foi considerado exitoso pela Comissão de
Organização, pois atingiu os objetivos de divulgar o acervo do
Banco de Imagens Darcy Ribeiro e propor uma reflexão sobre
a educação que desejamos. A intenção é que em 2023 eventos
ligados ao Banco de Imagens Darcy Ribeiro venham a fazer parte
da rotina da ETEAB, gerando novos desdobramentos para as
turmas que irão compor os próximos anos letivos da escola. Uma
das propostas é a realização de um festival de cinema de arquivo
nos moldes da Oficina Lanterna Mágica, realizada pelo Arquivo
Nacional durante a realização do Festival Arquivo em Cartaz.

Considerações finais

Em nossas considerações finais ratificamos o Banco de Ima-


gens Darcy Ribeiro como patrimônio da ETEAB, mediante o
reconhecimento do valor dos seus programas e aulas. O acervo
contribui para a valorização do legado e da memória de uma pro-
posta educacional revolucionária que pretendia gerar uma edu-
cação básica de qualidade, inclusiva e socialmente referenciada,
que atendesse a todos os públicos, que foram os CIEPS. As fitas
de vídeo que compõem o acervo do Banco de Imagens Darcy
Ribeiro são a prova material dessa iniciativa, notadamente no
campo da videoeducação.
O Plano de Ações proposto para difundir o Banco de
Imagens Darcy Ribeiro corrobora a crítica de Darcy Ribeiro ao

O acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro ∫ 257


­ estino educacional de nosso país. Darcy Ribeiro não viveu a in-
d
ternet, nem as Novas Tecnologias de Comunicação e ­Informação
(NTCI’s), mas as suas críticas permanecem vivas quando obser-
varmos os efeitos nocivos do Novo Ensino Médio, da redução
de disciplinas como filosofia, artes e história, da educação me-
canicista e do empreendedorismo escolar. Essas incorporações
ao currículo pela gestão escolar se mostram “revolucionárias”,
“novidadeiras” e salvacionistas, mas possuem o mesmo verniz
ideológico do neoliberalismo observado por Darcy Ribeiro.
A crítica de Darcy Ribeiro aponta para o “projeto de derro-
cada” da educação, que em nosso tempo deixa de ser um direito
para tornar-se uma mercadoria, reconhecendo que as relações
materiais e as relações de dominação estão presentes nesse deba-
te. A resistência existe, conforme declarou Darcy Ribeiro, com
um pé na escola e um pé na sociedade, mas para isso, há a ne-
cessidade do desenvolvimento de uma educação libertária que
possibilite ao trabalhador escolher de forma livre o seu caminho,
independente das condições em que foi formado.
Nesse contexto, o Banco de Imagens Darcy Ribeiro resgata
a memória educacional dos CIEPS. Só no Rio de Janeiro foram
construídas 500 escolas, em um programa educacional destinado
a educar meio milhão de crianças, pondo em prática as ideias
de Anísio Teixeira e do Movimento Escola Nova. Além disso,
criticamos a falta de apoio e de medidas que tornem os arquivos
públicos acessíveis de modo a viabilizar o acesso à informação na
luta pela educação. Somente ações que preservem os acervos e os
tornem organizados e acessíveis, e assumem o debate público em
torno de direitos sociais permitirão a construção de uma propos-
ta melhor para a educação.
A difusão do acervo do Banco de Imagens Darcy Ribeiro
contribui, portanto, para a história da educação pública no Rio
de Janeiro, pois o apagamento dessa trajetória faz a sociedade se
tornar um campo aberto para o esquecimento e a destruição dos

258 ∫ Claudio Oliveira Muniz


direitos sociais, da negação da ciência e de manifestações cada
vez mais explícitas do autoritarismo que pedem pela violência
do estado. O Banco de Imagens Darcy Ribeiro contribui para o
estudo da história da educação no estado do Rio de Janeiro e do
audiovisual na educação.
Esse acervo apresenta características históricas que desper-
tam o interesse daqueles que estudam as propostas de Darcy Ri-
beiro. Assim, buscamos tornar o Banco de Imagens Darcy Ri-
beiro mais conhecido para que todos possam se apropriar desse
patrimônio e obtenham amplo uso dele, no seu contexto históri-
co, político, educacional, social e arquivístico. Após a realização
do evento “100 em 24: O Povo Brasileiro” acreditamos que os
alunos irão se interessar mais pelo acervo, estudando, exibindo
e utilizando-o nas suas realizações. Pudemos verificar o interesse
a partir da motivação de alunos, professores e funcionários em
quererem saber mais sobre o que foi o Educação pela TV e os
CIEPS. A intenção é que em 2023 eventos ligados ao Banco
de Imagens Darcy Ribeiro venham a fazer parte da rotina da
ETEAB gerando novos desdobramentos para as turmas que irão
compor os próximos anos letivos da escola.

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ca, Rio de Janeiro, vol. 4, n.o 1, pp. 98-118, jan.-jun., 2015.
RODRIGUES, G. M. A difusão digital de dados em ciências humanas
e sociais – Guia de boas práticas éticas e jurídicas. Revista Acervo,
Rio de Janeiro, vol. 33, n.o 3, pp. 221-5, set.-dez. 2020.

260 ∫ Claudio Oliveira Muniz


10.
PROPOSTA DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
PARA A COLEÇÃO DADINHO

Thalles Yvson Alves de Souza1

A
s ações educativas no campo do patrimônio cultural
ganham relevância uma vez que propõem um traba-
lho sistemático e permanente com intuito da apro-
priação dos bens culturais pelos sujeitos envolvidos fortalecen-
do, até mesmo, suas identidades individuais e coletivas.

A ação educativa deve ter como objetivo atingir todos os tipos


de público, uma vez que o patrimônio cultural diz respeito, ao
mesmo tempo, a cada indivíduo e à coletividade, já que é um

1 Departamento de Artes da UFRRJ. Mestre pelo Programa de Pós-Gradua-


ção em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde
da Casa de Oswaldo Cruz (PPGPAT/COC), no qual defendeu a dissertação
intitulada Coleção Dadinho: uma proposta de educação patrimonial, sob orien-
tação da professora doutora Sônia Aparecida Nogueira, em 2021. Contato:
[email protected].

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 261


conjunto de bens usufruídos por todos. Os bens tombados são
de propriedade e/ou estão sob a responsabilidade de um público
que é muitas vezes incluído no rol de indivíduos que deveria ser
atingido pela educação patrimonial, porém, na prática é conside-
rado público-alvo de poucas ações empreendidas. Em última ins-
tância, isso tem como consequência uma potencial descaracteri-
zação, degradação ou mesmo destruição de vários bens culturais
importantes pela falta de conscientização desse grupo (Oliveira,
2011, p. 12).

Partindo desse objetivo, o capítulo propõe práticas de Edu-


cação Patrimonial tendo como objeto a Coleção Dadinho. Essa
coleção é composta por seis esculturas de madeira, representan-
do um panorama da diversidade de temas que o artista desen-
volveu, e é considerada a maior até então registrada. São deno-
minadas “Obra de arte do escultor Geraldo Marçal” (conhecida
por “Cidade”), “Cobra sucuri esculpida em galho”, “Poltrona de
madeira com busto” (figura 1), “Poltrona de madeira com cara
de boi”, “Obra de cobra naja em tronco” e “Bíblia Sagrada” (fi-
gura 2), e fazem parte do acervo da Casa de Cultura Ney Alberto
(CCNA), localizada em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. As ações
desenvolvidas como proposta, tiveram em seu objetivo principal,
compartilhar conhecimentos com o público escolar e o público
visitante, sobre o artista Dadinho, sua produção no campo das
artes, seu modo de fazer, seu contexto em Nova Iguaçu, e em sua
importância no âmbito cultural local.

262 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Figura 1. “Obra de arte do escultor Geraldo Marçal” (Cidade), “Co-
bra sucuri esculpida em galho”, “Poltrona de madeira com busto”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo CCNA

Figura 2. “Poltrona de madeira com cara de boi”, “Obra


de cobra naja em tronco”, “Bíblia Sagrada”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo CCNA

Ressalta-se, desde já, que para que as atividades voltadas


à Educação Patrimonial possam ser desenvolvidas e tenham re-
sultados efetivos, é preciso que as peças de acervos e coleções
estejam ajustadas às exigências museológicas, no sentido das con-
dições mínimas necessárias para o acesso dos públicos-alvo. Nes-
se sentido incorporamos ao trabalho ações de catalogação e de
restauração de bens móveis, visando que as peças tivessem con-
dições estruturais para uma interação com o público visitante.
Superada as duas etapas, as atividades de Educação Patri-
monial podem ter efetividade e cumprir os objetivos de ampliar

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 263


o conhecimento sobre o artista Dadinho, as técnicas da escultu-
ra, seu modo de fazer e sua produção, além de sugerir uma série
de ações relacionadas a essa coleção.

O artista Dadinho

Antes de aprofundar no tema, é interessante conhecer um


pouco sobre a trajetória de Geraldo Marçal dos Reis. Conheci-
do como Dadinho, nasceu em Diamantina, cidade que fica na
região nordeste de Minas Gerais, no dia 30 de junho de 1938.
Entre seus oito e dez anos, migrou com a família para o estado
do Rio de Janeiro e se estabeleceu na região da Baixada Flumi-
nense, primeiro na cidade de Nilópolis e, logo depois, na região
de Nova Iguaçu.
Filho de Raymunda Firminio de Araújo e Pedro Felicidade
dos Reis, era o caçula de sete irmãos. Seu pai, além de apai-
xonado pela sanfona, era marceneiro de profissão e foi por ele
que Dadinho aprendeu o ofício. A relação de aprendiz desde pe-
queno com o pai se torna determinante em sua formação como
escultor:

Trabalhei com meu velho pai até os 15 anos. Aprendi com ele a
marcenaria, a levantar casa, fazia cama, guarda-roupa. O pai fazia
barcos, buscava gameleiras lá na mata. Tinha gameleiras de três
metros de largura, botava carro de boi, levava três, quatro meses
para furar (Zaluar, 1997, p. 7).2

Na chegada a Nova Iguaçu, se integrou à vida do bairro


de Santa Eugênia, principalmente pelo futebol, paixão que o

2 Trecho de entrevista feita por Amélia Zaluar por ocasião da montagem da


exposição “Dadinho – Escultor das Cidades” em 1997, na Sala do Artista
Popular do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

264 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


a­companhou por toda sua vida. Algum tempo depois, casa-se
com Dona Isolete e dessa união nascem três filhos: Gilberto, Ge-
raldo Luis e Nilberto.
Segundo Dadinho, “a descoberta” de seu talento para a es-
cultura se deu ainda na infância. Por volta de doze anos, em uma
roda de amigos, na beira do campo de futebol Flamenguinho em
Nilópolis, onde costumava brincar, na espera entre uma partida
e a seguinte:

Passou uma cara em um caminhão de laranja, pegou uma bruta


laranja e jogou pra pegar na gente. Caiu de eu pegar e segurar
a laranja. Tinha uma casca grossa, bonita. Peguei aquela laranja
brincando, sentei num canto, nem futebol peguei naquele dia. . .
Fiquei cortando a laranja. Fiz família de índios, dois filhos, a
mulher e ele, um bezerro do lado, um cachorro e um porco, tudo
ao redor da laranja e uma cerquinha entalhada. O pessoal falou
“Isso é coisa de valor, rapaz. Não joga fora, não!” (Zaluar, 1997,
pp. 9-10).

Mesmo trabalhando em outros ramos, a escultura sempre


fez parte da sua rotina. Sua produção vai se desenvolver entre a
vontade de se expressar em formatos que extrapolam as d­ imensões
convencionais, e as encomendas esporádicas de pequenas peças.
Foi por meio do seu fascínio por raízes e troncos de ár-
vores, portanto pela madeira, que iniciou um trabalho de es-
culpir formas de cidades, especialmente inspirado na cidade de
Nova Iguaçu, região metropolitana do Rio de Janeiro (Masce-
lani, 2002). A inspiração nasce naturalmente “olhando para a
raiz já vem a ideia na cabeça” (Zaluar, 1997, p. 11). Essas raízes
eram extraídas na área nordeste do maciço do Medanha, região
que ficava cerca de dois quilômetros de sua residência. Segundo
ele, em meia hora de caminhada chegava lá. Essas árvores, que
o próprio Dadinho identifica como sendo de pequiá-marfim,

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 265


permanecem presas nas pedras depois das queimadas que ainda
acontecem com frequência. Dadinho aproveitava suas raízes em
que o fogo não alcançava, já que é resistente às intempéries da
natureza, característica marcante dessa espécie de árvore.
O trabalho escultórico de Dadinho é intenso, denso e cheio
de possibilidades de interpretação. Abarca desde o mais simples
objeto até a mais complexa obra, cheia de detalhes. Percebe-se,
porém, duas vertentes na sua criação: na primeira aparecem re-
presentações de animais e figuras humanas, ora em detalhes ora
em seu formato integral. Já na segunda vertente há uma poética
de cronista urbano que percebe o crescimento da cidade onde
viveu, e a retrata com uma sinuosidade singular. Pode-se dizer
que “a escultura de Dadinho é um verdadeiro micro urbanismo
que representa o crescimento desordenado das cidades contem-
porâneas, ainda que busque baseá-lo na originalidade de imensas
raízes esgalhadas de árvores” (Frota, 2005, p. 58).
Na década de 1980, participou de pequenas exposições em
Nova Iguaçu e regiões vizinhas, mas o primeiro grande evento
que conta com a participação de uma de suas peças acontece em
1987, na exposição que tem a curadoria de Lélia Coelho Frota3
Brésil, Art Populaire Contemporain, no Grand Palais na cidade
de Paris, França. Essa exposição foi um projeto do Ministério
da Cultura atendendo solicitações de outros países para que se
reunisse e enviasse uma amostra da produção artística popular.4
A peça “Cidade Grande” (figura 3) fez parte dessa mostra.
Após o retorno ao país, o conjunto de peças reunidas por Lé-
lia Coelho Frota participa de uma exposição itinerante ­chamada

3 Lélia Coelho Frota (Rio de Janeiro, 1938 - Rio de Janeiro, 2010). Antropó-
loga, escritora e museóloga. Uma das maiores especialistas em cultura popular
no Brasil.
4 No catálogo da Exposição “Brasil: Arte Popular Hoje”, está registrado com
o número 288 a peça “Cidade Grande” como coleção MinC (Frota, 1987b,
p. 62).

266 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


“Brasil: Arte Popular Hoje”. Logo em seguida, são doadas por
intermédio do então ministro Celso Furtado ao recém-inaugura-
do Centro Cultural São Francisco (CCSF) no estado da Paraíba,
se tornando hoje uma exposição permanente (Frota, 1987a).

Figura 3. “Cidade Grande”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo Centro Cultural São Francisco.

No ano de 1997, após proposta de Amélia Zaluar,5 ocorreu


sua única exposição individual registrada. Chamada “Dadinho
– O Escultor de Cidades” (figura 4), ocupou a Sala do Artista
­Popular (SAP), no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popu-
lar, localizado no bairro do Catete, na cidade do Rio de Janeiro.

5 Em reportagem do jornal O Globo Baixada, de 23 de novembro de 1997,


Amélia Zaluar encontrou Dadinho em um Centro Integrado de Educação
Pública (CIEP) no bairro da Chatuba na cidade de Nilópolis.

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 267


A exposição proporcionou a ampliação de sua relevância e a SAP
se torna o lugar de consagração do artista.

Figura 4. “Catálogo Dadinho o Escultor das Cidades SAP 071”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo do autor.

No ano de 2004, a Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu


negociou a compra de seis esculturas com Dadinho para compor
um acervo de obras de arte de artistas da cidade e inaugurar a re-
cém-criada Casa de Cultura. Atualmente, as peças se encontram
em reserva técnica, com restrição de entrada de público, em área
destinada à guarda tanto das peças como de outros acervos do-
cumentais relacionados às atividades culturais.
Dadinho faleceu em decorrência de um infarto em 22 de
fevereiro de 2006. Estava em plena atividade, tinha acabado de
chegar de bicicleta e iria limpar um ventilador, mas não houve

268 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


tempo para levá-lo a uma emergência. Foi enterrado no cemité-
rio Jardim da Saudade, na cidade de Mesquita.

Documentação da Coleção Dadinho –


uma proposta de fichamento catalográfico

A partir do momento em que as esculturas foram adquiri-


das, por meio de compra, para constituir o início de um acervo
de trabalhos artísticos oriundos do município de Nova Iguaçu,
as peças da Coleção Dadinho passaram a ser consideradas como
bens culturais musealizados, sob a guarda da CCNA. Esse acervo
é aderente à definição do Decreto n.o 8.124 no seu 2o artigo, in-
ciso 1o, sobre bem cultural como sendo, “todo aquele produzido
pela cultura humana ou pela natureza, que se transformam em
testemunhos materiais e imateriais da trajetória do homem sobre
o seu território” (Brasil, 2013).
A CCNA não é considerada um museu em suas caracterís-
ticas primordiais de preservação, pesquisa e comunicação. En-
tretanto, por ser instituição pública responsável pela entrada de
peças de valor histórico e artístico por meio de doação ou de
compra, pode assumir a responsabilidade sobre um patrimônio
museológico. Além de executar ações de conservação e adotar
prerrogativas para o conhecimento dos acervos, possibilita a in-
teração com o campo educacional e com a apreciação expositiva.
Com isso, a CCNA se enquadra nos termos do artigo 1o, pará-
grafo único da Lei n.o 11.904 como “instituições e os processos
museológicos voltados para o trabalho com o patrimônio cultu-
ral e o território visando ao desenvolvimento cultural e socioeco-
nômico e à participação das comunidades” (Brasil, 2009).
Até a presente pesquisa não foram encontradas referên-
cias documentais sobre a entrada das peças na CCNA, e elas
foram registradas como “bens móveis” na Secretaria Municipal

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 269


de Administração do município, constando código de classifica-
ção, número de inventário, descrição simples e valor (figura 5),
informações muito simplificadas para objetos tão distintos e com
características tão complexas.

Figura 5. Arrolamento de bens móveis da


Secretaria Municipal de Cultura

Fotografia: Thalles Yvson, 2020.


Fonte: Prefeitura da Cidade de Nova Iguaçu.

A documentação de acervos museológicos ocupa um pa-


pel importante no sistema de informação museológica tendo em
vista sua atribuição de fornecer informações detalhadas dos itens
por meio da descrição e imagem fotográfica do objeto, sendo
concomitantemente capaz de transformar os acervos em fontes
de pesquisa e em ferramentas de transmissão de conhecimento.
Ademais, para que a documentação tenha informações eficientes,

270 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


é necessário conhecer a estrutura informativa do objeto. Quanto
aos aspectos intrínsecos, faz-se uma descrição física do objeto,
e quanto aos extrínsecos busca-se sua essência contextual, com
uma apreensão para além da sua fisicalidade (Ferrez, 1994).
Nesse processo distinguem-se algumas referências básicas:
com relação à propriedade física, sua composição material, técni-
cas construtivas, dimensões espaciais, padrão de cores e de acaba-
mento; com relação à função e ao significado, a interpretação do
objeto quanto à funcionalidade e/ou sua expressão emocional e
simbólica; e quanto a sua referência histórica, deve ser observado
o processo de criação e de transformação da matéria em objeto,
o uso inicial e sua possível reutilização; as marcas que vão sen-
do impressas com o tempo, fatores ambientais tanto endógenos
quanto exógenos e, por fim, sua conservação e restauração.
A documentação assinalada é, em última instância, desen-
volvida com o objetivo de preservação e gestão do bem museali-
zado. Procedimentos técnicos que visam fornecer subsídios para
a pesquisa também se tornam importantes para a proteção do
patrimônio cultural, em respeito ao artigo 216 da Constituição
Federal de 1988, em seu parágrafo primeiro: “O poder público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o pa-
trimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação” (Brasil, 1988). Desse modo, in-
ventariar os acervos salvaguardados em qualquer instituição pú-
blica, ou privada é uma obrigação legal e constitucional.
Tendo em vista a elaboração de um documento com in-
formações sobre as características das esculturas da Coleção Da-
dinho, apresentamos uma proposta de ficha catalográfica para
esse acervo, tendo como referência o sistema de documentação
museológica, com base no código de ética tanto do Conselho
Internacional de Museus (ICOM) como do Conselho Federal
de Museologia (COFEM). Outra referência de documentação

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 271


utilizada é a ficha catalográfica que registra a escultura denomi-
nada “Cidades”, que se encontra sob a guarda do Museu do Fol-
clore Edison Carneiro (MFEC),6 além da metodologia adotada
pelo Sistema Donato/Simba (desenvolvido em 1993 pelo Museu
Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, e que se
tornou referência no Brasil, chancelado pelo Instituto Brasileiro
de Museus).
A ficha apresentada está dividida em campos, facilitando
assim a visualização e o entendimento das informações, e pro-
pondo uma padronização a ser adotada pelos profissionais da
CCNA, já que “regras e rotinas bem definidas são a garantia do
fácil acesso e manutenção do sistema e devem estar consolidadas
em manuais de serviço” (Ferrez, 1994, p. 7). Na proposta apre-
sentada (figuras 6 e 7) foram estabelecidos os campos de iden-
tificação com espaços para as informações gerais de cada peça,
contemplando as respectivas imagens fotográficas; o campo da
descrição visual e da análise formal das peças; e um campo con-
templando informações concernentes ao âmbito da conservação
preventiva e possíveis ações de intervenção em restauração. Des-
sa forma consolida-se mais um documento para que os objetos
adquiridos pela CCNA se tornem, de fato, bens culturais musea-
lizados, contribuindo para sua divulgação e seu conhecimento, e
fomentando a relação entre o público e a instituição.

6 Esta peça ilustra a capa do catálogo “Dadinho – Escultor de Cidades” (fi-


gura 4).

272 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Figuras 6 e 7. “Proposta de Fichas Catalográficas – Coleção Dadinho

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 273


Fotografia: Thalles Yvson, 2018.
Fonte: Acervo CCNA - Casa de Cultura Ney Alberto.

274 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Restauração e exposição da Coleção Dadinho

Em termos gerais, o trabalho da restauração de bens móveis


visa a assegurar a legibilidade do objeto, apoiado em referên-
cias intrínsecas às obras e em documentos de registros dos bens.
Diante dessas premissas, entende-se por restauração, “qualquer
intervenção voltada a dar novamente eficiência a um produto
da atividade humana” (Brandi, 2005, p. 25). Respeitar as carac-
terísticas materiais e imateriais do bem cultural constitui-se um
passo crucial na formulação do projeto de restauração. Outro
detalhe a ser levado em conta diz respeito às habilidades e ao
rigor das técnicas envolvidas.
Após um levantamento do estado de conservação da Co-
leção Dadinho, foi verificado um processo considerável de de-
terioração, em situação de risco, configurando a necessidade de
intervenção. De acordo com as premissas assinaladas, foi elabo-
rado relatório preliminar do estado de conservação e proposta
de intervenção de restauração para cada peça (figuras 8 e 9).
Utilizamos como referência, publicação coordenada pelo Mu-
seu Casa do Pontal (MCP) em parceria com a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNES-
CO) em que são apresentados procedimentos metodológicos de
conservação e restauração desenvolvidos em peças com suporte
de madeira pertencente ao acervo da instituição, de acordo com
critérios que contemplam os aspectos de concepção da obra, sen-
do eles: históricos, estéticos e funcionais. Esclarecendo em cada
aspecto respectivamente:

O primeiro trata da originalidade do trabalho, da fidelidade a


seus materiais e elementos tais como foram inicialmente produ-
zidos pelos artistas. O segundo refere-se ao caráter visual dos ob-
jetos do acervo, à maneira como eles se apresentam. Já o terceiro
trata da funcionalidade da obra, ou seja, se todos os materiais

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 275


estão cumprindo o seu papel (UNESCO, 2008, p. 27, grifo do
autor).

No documento produzido observou o estado de conserva-


ção das peças evidenciando e numerando as patologias desen-
volvidas por falta de conservação preventiva. Apontou interven-
ções anteriores que ocasionaram danos às peças e, dentro de uma
perspectiva de tratamento visando uma maior durabilidade, foi
indicado uma série de ações em restauração.

276 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Figuras 8 e 9. Relatório preliminar do ­estado de
­conservação e proposta de tratamento

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 277


Fotos: Thalles Yvson, 2018.
Fonte: Acervo Casa de Cultura Ney Alberto.

278 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


A restauração das peças do acervo da Coleção Dadinho en-
contradas na CCNA, e posterior organização do espaço expositi-
vo voltado aos diversos públicos-alvo, incluindo a população de
Nova Iguaçu, tornam possível a elaboração de ações educativas
A conceituação de uma exposição faz parte de um sistema de
comunicação, com lógica e sentido próprios. Um dos objetivos
de uma exposição é representar e comunicar histórias, tradições,
conhecimentos, modos de fazer e uma série de possibilidades de
vivências. É, muitas vezes, o primeiro contato dos visitantes com
determinado assunto, possibilitando o estabelecimento de corre-
lações com o contexto social e temporal do artista e das artes nas
suas mais variadas formas de expressão, das ciências e de tantas
outras áreas do conhecimento humano. Trata-se do resultado
de uma soma de esforços, coletivos e individuais, de conteúdo
teórico e conceitual, transformados na materialidade de elemen-
tos da linguagem visual, das cores, das texturas, na qualidade e
quantidade dos objetos, do local, da iluminação (Cury, 2005).
Com relação à proposta de exposição da Coleção Dadinho,
algumas questões preliminares devem ser consideradas. Uma re-
fere-se aos espaços da CCNA, que tem atualmente salas desti-
nadas às exposições temporárias e a eventos que fazem parte da
agenda da Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu. No pavimento
térreo há duas salas e um hall que dá acesso ao segundo pavimen-
to onde existe um grande salão, espaço mais utilizado na Casa,
e duas salas menores, uma dessas salas é utilizada como reserva
técnica improvisada. Todos esses ambientes são constantemente
utilizados ao longo do ano, porém com restrições à organização
de exposições de longa duração. Em relação a uma proposta ex-
positiva desse acervo, a ideia seria utilizar a sala menor do segun-
do pavimento, com a vantagem de montagem e desmontagem
em função da proximidade da sala da reserva técnica (figura 10).

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 279


Figura 10. Planta baixa, de uma de proposta de projeto
de exposição: “Dadinho o Mestre da Madeira”

Fonte: Arquiteta Andressa Pazianelli, 2020.

Com relação à questão “a quem queremos atingir com a


exposição?” deve-se considerar que, sendo o foco trazer à tona
a existência da coleção e a história do artista, não se pode limi-
tar para um público específico, mesmo porque a CCNA recebe
visitantes dos mais diversos segmentos. É perfeitamente viável
a exposição receber público espontâneo de perfil diverso; no
entanto, é costume da instituição receber visitas das escolas do
município, sendo pertinente que a exposição tenha uma leitura
simples, capaz de atingir a todos que tenham acesso ao local, e
que possibilite uma variedade de atividades educacionais para
aguçar a criatividade e a sensibilização do participante.

280 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Em nossa proposta, aqui apresentada, o percurso diz res-
peito as seis esculturas alinhadas próximas às paredes, a partir da
entrada seguindo o sentido da direita para a esquerda, contor-
nando o perímetro da sala. A primeira refere-se à “Poltrona de
madeira com cara de boi”; em seguida a “Poltrona de madeira
com busto”; ao fundo da sala, a “Cobra sucuri esculpida em ga-
lho”; na parede à esquerda, a “Cidade”; e por fim, as peças “Obra
de cobra naja em tronco” e “Bíblia Sagrada”. O projeto inclui
ainda a confecção de três painéis: o primeiro contando a história
de Dadinho; o segundo descrevendo o seu processo de fazer as
esculturas em madeira; e o terceiro contendo um panorama dos
outros museus onde se encontram peças de seu trabalho. Cada
peça deve ter sua identificação detalhada, todas em suportes mo-
dulares feitos sob medida, com a intenção de proporcionar uma
melhor visualização para o visitante. Esses módulos terão rodí-
zios móveis para facilitar o deslocamento das peças entre a sala
de exposição e a sala de reserva. Dessa maneira, haverá condições
para o desenvolvimento das ações voltadas à Educação Patrimo-
nial, de uma forma simples e objetiva.

Coleção Dadinho: proposta de atividades


para uma ação pedagógica

A aplicação das etapas metodológicas do Guia Básico de


Educação Patrimonial (1999) em atividades educacionais — ob-
servação, registro, exploração e apropriação — voltadas especi-
ficamente para coleções de esculturas é aqui desenvolvida para
o caso da Coleção Dadinho: identificação das esculturas de Da-
dinho no âmbito da percepção simbólica; aprofundamento no
estudo de seu modo de fazer; desenvolvimento das capacidades
de análise formal e histórica; e por fim, a dimensão afetiva em
consonância à missão da preservação do patrimônio cultural.

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 281


A proposta aqui apresentada está configurada para o pú-
blico de estudantes do ensino fundamental e ensino médio, e
está consolidada na “Proposta de Atividades Educacionais para a
Coleção Dadinho”.
Vale ressaltar a necessidade de um trabalho de orientação
prévia com professores da rede pública de educação de Nova
Iguaçu e/ou estudantes de licenciatura da área de humanas, ver-
sando sobre os conceitos de patrimônio cultural, arte popular e
educação patrimonial, além de informações referentes ao artista,
sua obra e sua interação com a cidade que o acolheu. Da mesma
forma deve-se conceber ações estratégicas de capacitação com os
mediadores envolvidos nas atividades da CCNA, além de outros
agentes culturais que fazem parte do corpo de funcionários tais
como: recepcionistas, equipe de limpeza, segurança entre outros.
Possibilitar conhecimento para as equipes auxiliares amplia o
campo da preservação dos bens culturais (Horta, Grunberg &
Monteiro, 1999).
As atividades apresentadas seguem uma dinâmica que co-
meça com a visitação mediada. Ao longo do percurso expositivo,
são indicados pontos-chaves para a sensibilização e o estímulo da
percepção. Após o fim da visitação, o público-alvo é convidado a
participar das atividades, quando terão contato mais aprofunda-
do com as obras expostas e com a história do artista, no sentido
último da apropriação do conhecimento e a consequente preser-
vação do bem cultural.

Atividade 1 – Observação formal dos objetos

No início da visitação à exposição, antes do contato com


a história do artista Dadinho, o mediador entrega ao grupo de
visitantes cartões com imagens de detalhes das esculturas, e pede
para que os visitantes os busquem e os encontrem nas peças

282 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


e­ xpostas. Após esse processo de sensibilização inicia-se a observa-
ção mais atenta das peças da coleção.
Áreas de conhecimento relacionadas: arte; história.

Atividade 2 – O artista Dadinho: vida e obra

O mediador direciona um quiz com cinco perguntas sobre


as fases da vida de Dadinho, como forma de registro das infor-
mações da exposição:
• Em qual cidade Dadinho nasceu?
• Qual o primeiro objeto que Dadinho esculpiu?
• Qual material Dadinho usa nas suas esculturas?
• Quais animais foram esculpidos por Dadinho?
• Quais museus têm peças de Dadinho em seus acervos?
Áreas de conhecimento relacionadas: arte; história; biologia.

Atividade 3 – Criando seu projeto de poltrona

Com foco nas poltronas em madeira de Dadinho, o media-


dor faz referência a outros exemplos desse mobiliário, por meio
de imagens que tenham similaridades estéticas e simbólicas. Uti-
lizando como exemplo as imagens do “Trono de Daomé”,7 do
“Trono Imperial”,8 ou até mesmo a cadeira de balanço dos avós
ou a cadeira predileta da casa. Após essa introdução o visitante
é convidado a desenhar um projeto de como seria sua poltro-
na, quais os elementos que carregaria, se seria ornamentado com
animais preferidos ou rostos de personagens.
Áreas de conhecimento relacionadas: arte; história.

7 Trono de Daomé ou Zinkpo, peça dada de presente à D. João VI pelo Rei


Adandozan em 1810, fazia parte do acervo do Museu Nacional.
8 Trono Imperial, utilizado pelos dois imperadores do Brasil, se encontra no
Museu Imperial de Petrópolis, RJ.

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 283


Figura 11. “Poltronas da Coleção Dadinho”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo CCNA.

Atividade 4 – Representação de animais

Em seu repertório imagético, Dadinho representou alguns


animais, principalmente as cobras, dando a elas características
próprias. Como seria a representação de seus animais? A par-
tir da proposição, o mediador estimula o visitante a desenvolver
com massa de modelar seu próprio animal imaginário.
Áreas de conhecimento relacionadas: artes visuais; ciências
biológicas.

284 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Figura 12. “Animais da Coleção Dadinho”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo CCNA.

Atividade 5 – Libertando as esculturas

A partir do contato manual e sensorial dos alunos com pe-


daços de madeira, o mediador direciona o olhar imagético com
o objetivo de possíveis esculturas a serem idealizadas, desenhadas
e interpretadas pelos alunos.
Áreas de conhecimento relacionadas: artes visuais; ciências
biológicas.

Atividade 6 – A cidade vista do alto

Com fotografias panorâmicas dos pontos onde Dadinho


coletava as raízes, vistos do alto do morro, cada visitante cria,
por meio de desenhos, sua concepção de cidade, com sua própria
visão poética da urbe.
Áreas de conhecimento relacionadas: arte, meio ambiente.

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 285


Figura 13. “Detalhe da Cidade”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo CCNA.

Atividade 7 – Escrevendo para Dadinho

Atividade de estímulo à produção textual em que os es-


tudantes, depois de ouvir o mediador dar informações sobre a
escultura “Bíblia Sagrada”, como se fosse um grande livro em
branco, serão convidados a escrever cada um, em uma página, o
que apreenderam dessa escultura, e da exposição como um todo.
Áreas de conhecimento relacionadas: língua portuguesa;
história.

286 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


Figura 14. “Bíblia Sagrada – vista frontal”

Fotografia: Thalles Yvson, 2018.


Fonte: Acervo CCNA.

Atividade 8 – Criando as cidades com material coletado da


natureza

Com galhos secos, grãos, folhas dos mais variados tipos e


tamanhos, sementes coloridas, fitas adesivas e barbantes, depois
da visita à exposição o visitante é convidado a criar sua própria
visão de cidade a partir dos materiais que estão disponíveis, com
um tempo médio de 30 minutos. O visitante tem a oportunida-
de de aguçar a criatividade construindo sua própria cidade.
Público-alvo: Fundamental I e II.
Área de conhecimento: arte; ciências; meio ambiente.

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 287


Atividade 9 – Teatralizando na Cidade de Dadinho

Com cenários impressos em formato de banner com deta-


lhes das casas talhadas da escultura “Cidade”, o visitante é esti-
mulado a se organizar em grupos e criar pequenas esquetes de
situações que aconteceriam na frente dessas casas.
Público-alvo: Fundamental II e médio.
Área de conhecimento: arte; história.

Atividade 10 – Retratando a Cidade

Após a visita à exposição, o visitante é convidado a dese-


nhar a fachada da sua casa e, após o desenho pronto, pendura em
uma estrutura com barbantes esticados, simulando o movimento
da escultura Cidades.
Público-alvo: Fundamental I e II.
Área de conhecimento: arte; geografia; história.

Considerações finais

O presente capítulo buscou ressaltar o valor de patrimônio


artístico e cultural da coleção de esculturas de Dadinho loca-
lizada na CCNA, e caracterizar esse espaço como um lugar de
memória social, de proteção de bens culturais sujeitos à degra-
dação física e/ou ao esquecimento. Ao mesmo tempo, propõe-se
tornar conhecida a trajetória desse artista popular, por meio de
uma proposta de exposição e de atividades educacionais para um
determinado público-alvo, no âmbito de uma metodologia de
Educação Patrimonial.
Dadinho tentou se colocar no mercado como artista den-
tre várias vertentes produtivas no campo escultórico, seguindo
desconhecido por anos após sua morte. Seu reconhecimento

288 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


o­ correu quando os holofotes de colecionadores e pesquisado-
res dos objetos do universo popular, como Lélia Coelho Frota,
Amélia Zaluar e Jacques Van Beuque encontraram suas obras.
Em relação às questões e ações já consagradas no campo
teórico e metodológico da Educação Patrimonial, que pode ou
deve acionar o caráter transformador que a memória individual
e coletiva possibilita, a proposta aqui desenvolvida visou associar
a dimensão crítica da cultura popular brasileira à centralidade
da produção artística de Dadinho com a madeira, e ao espaço
urbano ao qual pertenceu.
Pelo exposto neste artigo, torna-se fundamental a sensibi-
lização dos agentes públicos da CCNA, assim como da comuni-
dade de Nova Iguaçu como um todo, a fim de se estabelecer par-
cerias institucionais, visando ao aprofundamento da investigação
da obra de Dadinho como lugar de memória da arte popular,
reforçando a necessidade de difusão de sua produção como um
importante valor pertencente ao município de Nova Iguaçu, e
por extensão à Baixada Fluminense.

Referências

BRANDI, C. Teoria da Restauração. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.


BRASIL. Constituição Federal Brasileira de 1988, Cap. III, Sessão II
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dji.com.br/constituição_federal/cf215a216.htm>. Acesso em: 3
fev. 2020.
BRASIL. Lei n.º 11.906, de 20 de janeiro de 2009. Cria o Instituto
Brasileiro de Museus – IBRAM, cria 425 (quatrocentos e vinte
e cinco) cargos efetivos do Plano Especial de Cargos da Cultura,
cria Cargos em Comissão do Grupo-Direção e Assessoramento
Superiores - DAS e Funções Gratificadas, no âmbito do Poder
Executivo Federal, e dá outras providências. Disponível em:

Proposta de educação patrimonial para a Coleção Dadinho ∫ 289


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/
Lei/L11906.htm>. Acesso em: 3 fev. 2020.
BRASIL. Decreto n.º 8.124, de 17 de outubro de 2013. Regulamenta
dispositivos da Lei n.º 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que
institui o Estatuto de Museus, e da Lei n.º 11.906, de 20 de
janeiro de 2009, que cria o Instituto Brasileiro de Museus
- IBRAM. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8124.htm> Acesso
em: 3 fev. 2020.
CURY, M. X. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:
Editora Annablume, 2005.
FERREZ, H. D. Documentação museológica: teoria para uma boa
prática. Estudos de Museologia. Rio de Janeiro: Ministério da
Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal. Departamento de Promoção, 1994, pp. 65-74 (Cadernos
de Ensaios 2).
FROTA, L. C. Brasil: Arte Popular Hoje. Rio de Janeiro: Editora EPC,
1987a.
FROTA, L. C. Brasil: Arte Popular Hoje (catálogo da exposição). Rio de
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FROTA, L. C. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro – Século
XX. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2005.
HORTA, M. L. P.; GRUNBERG, E. & MONTEIRO, A. Q. Guia
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Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
MASCELANI, A. O Mundo da Arte Popular Brasileira. Rio de Janeiro:
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brasileira/Museu Casa do Pontal. Rio de Janeiro: associação dos
amigos da arte Popular brasileira; Brasília: 2008, p. 66.
ZALUAR, A. Dadinho: o escultor de cidades. Rio de Janeiro: FUNAR-
TE, 1997.

290 ∫ Thalles Yvson Alves de Souza


11.
CAROLINA MARIA DE JESUS:
A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
E O IMPACTO NA CONTEMPORANEIDADE
DA LITERATURA PRODUZIDA
PELA MULHER NEGRA BRASILEIRA

Clarice Maria Silva Campos1

E
ste capítulo busca evidenciar a importância do resgate
da vida e da obra literária da escritora negra Carolina
Maria de Jesus em um momento de discussões sobre
interseccionalidade em que mulheres reivindicam seu espa-
ço e sua voz na sociedade. Ao observar a história brasileira,

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Memória e Acervos da Funda-


ção Casa de Rui Barbosa (FCRB), no qual defendeu a dissertação intitulada
Carolina Maria de Jesus: a preservação da memória e o impacto na contempo-
raneidade da literatura produzida pela mulher negra brasileira, sob orientação
do professor doutor Antonio Herculano Lopes, em 2022. Contato: profcla-
[email protected].

Carolina Maria de Jesus... ∫ 291


v­erifica-se que há um discurso colonizador e hegemônico,
carregado de significados que há muito vêm sendo impostos
e fixados em nosso cotidiano. Nesse painel, identifica-se a
mulher como minoria, sobretudo a negra. Ao tematizar sobre
as questões vividas por mulheres negras e pobres, a escritora
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) apresenta uma produ-
ção literária característica por ser contra-hegemônica. É capaz,
com seu texto narrativo, de visibilizar e inspirar mulheres ne-
gras brasileiras ainda na atualidade, após mais de 60 anos da
publicação do Quarto de despejo: diário de uma favelada, seu
livro mais famoso.
Moradora em uma favela na cidade de São Paulo, Carolina
constrói um livro como um diário com a intenção de pensar a
escrita e a própria percepção sobre a sua condição social. Os seus
registros de lembranças em muitos fatos e aspectos constituem
uma ligação com as minhas próprias memórias. Trata-se de uma
espécie de elo relacionando espaços, identidades, origens e pon-
tos comuns das nossas histórias. A leitura de Quarto de despejo,
publicado em 1960, levou-me a entender que além da minha
motivação particular por eu, assim como Carolina, ser uma mu-
lher e negra, necessitava me aprofundar em estudos e dados que
envolvessem a invisibilização histórica da população negra no
Brasil e o contexto dentro do qual Carolina viveu e produziu.
E o que faz a produção de Carolina assumir um valor lite-
rário e um papel importante que continua provocando o forta-
lecimento de causas e, ao mesmo tempo, tensões e polêmicas na
atualidade?
Ainda que a resposta para essa pergunta seja tão múltipla
quanto as buscas feitas por pesquisadores e acadêmicos, é certo
afirmar que os eventos envolvendo a vida e a obra de Carolina,
as homenagens, as festas literárias, a reedição de livros e os lan-
çamentos de textos inéditos estão recuperando a importância da

292 ∫ Clarice Maria Silva Campos


escritora e acendendo luzes sobre as muitas Carolinas do cotidia-
no brasileiro.

A atualidade da produção de Carolina


Maria de Jesus

Temas desenvolvidos em 1960 por Carolina continuam


extremamente atuais, embora haja modificações no discurso
empregado pelas autoras negras hodiernamente, bem como na
própria forma de manifestação e nos meios empregados para tal
(considerando os adventos tecnológicos e as novas maneiras de
disseminação de informação). Assim, outra indagação se mostra
pertinente: considerando a sociedade brasileira, que viveu um
grande ciclo da escravidão negra e foi constituída sob o modelo
patriarcal, de que maneira a literatura produzida pela mulher ne-
gra pode ser compreendida como uma ferramenta de resistência
social? O resgate da voz transgressora de Carolina incorporada à
ideia de enfrentamento a fatores de opressão e hierarquização ge-
rados por questões de gênero, raça, sexualidade e classe, alicerça
o cenário atual de desejo e luta de mulheres negras para que suas
vozes sejam ouvidas.
Carolina, lançando mão de acontecimentos ligados ao co-
tidiano vivido por ela, seus três filhos e pelos vizinhos, tece a sua
própria narrativa. Apresenta-se como uma narradora capaz de
intercambiar e transmitir de forma simples a sua própria história.

[...] Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As mar-


gens do rio são lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela
é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as
margens do rio, perto do lixo. Os homens desempregados subs-
tituíram os corvos (Jesus, 1960, p. 55).

Carolina Maria de Jesus... ∫ 293


A obra e os impactos produzidos pela escrita de Carolina
Maria de Jesus suscitam reflexões sobre questões como rasura no
cânone literário, literatura e poder, silenciamento de mulheres,
representatividade de pessoas negras e direito à escrita como for-
ma de expressão. Enfim, faz-se necessário pensar a própria for-
mação e a estrutura da sociedade brasileira a partir dos marcado-
res identitários gênero, raça e classe. Conforme nos aponta Lélia
Gonzalez (2020): “a nossa sociedade possui um sistema político
de dominação da classe dominante rigoroso, conferindo à popu-
lação negra, uma posição extremamente desvantajosa” (p. 94).
Como agente e mentor de Carolina, o jornalista Audálio
Dantas editou o diário que veio a ser publicado no início do
mês de agosto de 1960 pela editora Francisco Alves. No texto de
apresentação com o título “Nossa irmã Carolina”, Audálio expli-
ca como fez a seleção de trechos, as substituições e interferências
na pontuação. O jornalista pede desculpas aos leitores pelo que
chamou de “pronomes mal colocados e verbos tortos” usados
por Carolina. Sobre a fome, Audálio diz não ser dele, nem de
Carolina e nem dos outros moradores da favela, a frequência
com que o tema aparece no livro.

Quarto de despejo, título do livro, é sugerido pela imagem que


Carolina Maria de Jesus criou para a favela. Imagem perfeita e
exata. Ela diz no bem dizer, que a favela é o quarto de despejo
da cidade, porque lá jogam homens e lixo, e lá se confundem
coisas imprestáveis que a cidade deixa de lado. Os originais que
contêm o diário agora publicado estão em vinte cadernos, quase
todos encontrados no lixo. Há até um que serviu para registro de
compras e outro para registro de despesas operativas. Lendo-os,
quando o tempo sobrava um pouco, demorei uns dois meses.
Depois selecionei trechos, sem alterar uma palavra para compor
o livro. Explico: Carolina conta o seu dia inteiro, com todos os
incidentes, fiel até ao ato de mexer o feijão na panela. A repetição

294 ∫ Clarice Maria Silva Campos


seria inútil. Daí a necessidade de cortar, selecionar as histórias
mais interessantes. A fome aparece com frequência espantosa.
Mas disso não tenho culpa. Nem Carolina. Nem os favelados da
favela do Canindé, seus personagens (Dantas, 1960, s/p).

Figura 1. Carolina de Jesus em sessão de ­autógrafo de


seu livro Quarto de Despejo, agosto de 1960

Fonte: Arquivo Nacional.

A apresentação feita pelo jornalista anuncia que a voz de


Carolina é coletiva, conferindo à autora o papel de porta-voz
que sai do “lixo” para reivindicar causas sociais, econômicas e

Carolina Maria de Jesus... ∫ 295


­ olíticas da época, ao gritar do “quarto de despejo” para a “sala
p
de visitas”. É importante ressaltar que Carolina não apenas rela-
tava o dia a dia da favela, conforme sugere Audálio. Ela ultrapas-
sa os limites do testemunho, refletindo sobre a realidade em que
vivia. No registro do dia 20 de maio de 1958, Carolina escreveu
sobre a percepção que tinha sobre os sentimentos e os papéis
sociais dos poetas, incluindo-se como uma:

Quando cheguei do palácio que é a cidade e os meus filhos vie-


ram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comi-
da era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu
filho João José disse-me: — pois é. A senhora disse-me que não ia
mais comer as coisas do lixo. Foi a primeira vez que eu vi a minha
palavra falhar. Eu disse: — É que eu tinha fé no Kubitschek —
A senhora tinha fé e agora não tem mais? — Não meu filho. A
democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo
está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e
os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia. . .
os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a
morte quando vê o seu povo oprimido (Jesus, 1960, p. 39).

Na edição de 1993 de Quarto de despejo, a primeira pela


editora Ática, outra introdução foi escrita por Audálio Dantas.
Com o título de “A atualidade do mundo de Carolina”, a apre-
sentação ratifica a ideia de que nenhum escritor poderia ter es-
crito melhor aquela história de dentro da favela. O jornalista
atribuiu o sucesso do livro à originalidade e profundidade do
texto e volta a falar sobre o tema da fome, dessa vez, chamando
de irritante a frequência com que ele aparece. “Carolina viu a cor
da fome — a amarela. No tratamento que dei ao original, muitas
vezes por excessiva presença, a amarela saiu de cena, mas não de
modo a diminuir sua importância na tragédia favelada” (Jesus,
2001, p. 3, Prefácio Audálio Dantas).

296 ∫ Clarice Maria Silva Campos


A repetição de temas não pode ser ignorada e o relato de
atividades da vida doméstica, talvez seja o reflexo de uma mu-
lher cuja rotina se concentrava, sobretudo, em torno da criação
dos filhos e da luta diária que consistia, basicamente, em três
tarefas: levantar cedo para pegar água, catar papel e convertê-lo
em alimento e escrever. Audálio, talvez, não pudesse prever que
hoje, passados mais de 60 anos da publicação de Quarto de des-
pejo, o tema fome ainda estaria tão presente entre os brasileiros.
De acordo com os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares
2017-2018: Análise de Segurança Alimentar no Brasil, feita pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a insegu-
rança alimentar grave atinge 10,3 milhões de brasileiros, isto é,
quando há privação no consumo de alimentos. São pessoas que,
como Carolina chegam a passar fome (IBGE, 2020).
Independentemente do que lhe era imposto escrever, Ca-
rolina traçava seu próprio caminho. “Tem pessoas que, quando
estão nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu
escrevia meu diário” (Jesus, 2001, p. 170). A escritora ganhou
notoriedade em um contexto de transformações, disputas e ex-
pansão urbana. A leitura de A Integração do negro na sociedade
de classes, de Florestan Fernandes, publicado pela primeira vez
em 1965, nos ajuda a compreender os lugares ocupados pelos
diferentes grupos humanos na cidade de São Paulo no final do
século XIX e nos primeiros anos do século XX.

O comportamento urbano existia nas intenções e nas aspirações


dos agentes humanos, na ânsia de converter São Paulo numa
cidade culta, moderna e civilizada. Só os que estavam absorvidos
na corrente do progresso se sintonizavam com semelhante estado
de espírito — ou seja, os círculos avançados das camadas domi-
nantes e os imigrantes empenhados no enriquecimento rápido
(Fernandes, 2021, p. 103).

Carolina Maria de Jesus... ∫ 297


A escrita autobiográfica de Carolina representava a posição
deste sujeito que resulta das transformações. Em um cenário em
que se pretendia mostrar uma São Paulo desenvolvida e moder-
na, Carolina revelava para a sociedade as desigualdades e as con-
dições de miserabilidade dos favelados. Carolina rompe o silên-
cio, revelando o descaso do poder público para com os pobres.
O conteúdo de sua obra desconstrói a visão imposta por aqueles
que detêm o poder, denunciando e mostrando o outro lado de
histórias únicas, de estrutura branca e masculina, ancoradas no
mito de que vivemos em uma sociedade justa e com igualdade
de oportunidades. Sobre a intenção explícita de apagamento e
invisibilização, é oportuno lembrar os versos da escritora Esme-
ralda Ribeiro no poema Ensinamentos “o invisível exercita o ser
‘zero à esquerda’, o invisível não exercita cidadania” (Ribeiro,
2008, p. 55).
Isso significa que a literatura é um meio importante para
entendermos as engrenagens de interações sociais, seja pelas pro-
blemáticas que trazem à tona ou pelo lugar social de quem es-
creve. Tanto o texto quanto a própria Carolina se contrapõem
aos modelos literários já fixados no imaginário. Em Casa de Al-
venaria, publicado em 1961, segundo livro de Carolina e editado
também por Audálio Dantas, no texto de apresentação chamado
de “História de uma ascensão social”, o jornalista propõe o en-
cerramento do fazer literário de Carolina deixando claro que ela
não estaria habilitada aos gêneros ficcionais.

Agora você está na sala de visitas e continua a contribuir com


este novo livro, com o qual você pode dar por encerrada a sua
missão. Conserve aquela humildade, ou melhor, recupere aquela
humildade que você perdeu um pouco — não por sua culpa —
no deslumbramento das luzes da cidade. Guarde aquelas poesias,
aqueles contos e aqueles romances que você escreveu. A verdade
que você gritou é muito forte, mais forte do que você imagina,

298 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Carolina, ex-favelada do Canindé, minha irmã lá e minha irmã
aqui (Jesus, 1961, p. 10).

A ordem expressa se relaciona com o valor literário que


­Audálio supostamente pensava não existir nos escritos de Caro-
lina, mas também ao conteúdo do que ela poderia falar. O que
mais Carolina poderia gritar além do relato da pobreza e da vida
na favela?
Ao pedir que Carolina guarde seus escritos, o jornalista re-
prime, controla e censura o que poderia vir a ser segredos de-
sagradáveis revelados. E em certa medida, muitas das verdades
de Carolina continuam guardadas em arquivo, manuscritos e
encobertas por camadas nas correções e supressões das edições.
Aqueles que se sentem autorizados a julgar a qualidade estética e
literária da obra de Carolina conferem à autora o lugar de uma
favelada que escreve, não o lugar de uma escritora. Portanto, nes-
sa visão, Carolina poderia, apenas, escrever sobre o testemunho
do que ela conhecia, e bem: a favela e a miséria.
Regina Dalcastagnè (2012) comenta a respeito dessa restri-
ção imposta aos escritos de Carolina:

É como se a sociedade brasileira estivesse disposta a ouvir as


agruras de sua vida, e só. Ou como se a alguém como Carolina
Maria de Jesus não coubesse mais do que escrever um diário,
reservando-se o “fazer literatura” àqueles que possuem legitimi-
dade social para tanto, especialmente homens, brancos, de classe
média (p. 43).

Quarto de despejo gerou tensões desde o início. Apesar de o


empenho de Carolina para se adequar a critérios e padrões hege-
mônicos e se aproximar do modelo canônico, a crítica destacava
em Quarto de despejo e nos outros textos, os desvios da língua pa-
drão. O preconceito que Carolina sofreu, de acordo com Marcos

Carolina Maria de Jesus... ∫ 299


Bagno, não é uma questão linguística, e sim uma questão social e
política. Pessoas como ela que

Pertencem a camadas sociais desprestigiadas, marginalizadas,


excluídas, que não têm acesso à educação formal e aos bem cul-
turais da elite, e por isso a língua que elas falam sofre o mesmo
preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é
considerada feia, pobre, carente, quando na verdade é apenas
diferente da língua ensinada na escola (Bagno, 2015, p. 67).

O uso das palavras, as construções, as marcas da oralidade,


a acentuação e a pontuação fora dos padrões normativos fizeram
de Carolina alvo de críticas e preconceito. Fanon, conhecido
como um revolucionário que se dedicou a lutar contra questões
racistas e que lutou com as forças de resistência na África e na
Europa durante a Segunda Guerra Mundial, descreveu a situa-
ção do negro antilhano diante da linguagem imposta pelo colo-
nizador. Em sua concepção, o antilhano usava a língua francesa
na tentativa de se aproximar da metrópole, sendo essa situação
comum em se tratando de qualquer homem colonizado.

Todo povo colonizado, isto é, todo povo no seio do qual nasceu


um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua
originalidade cultural, toma posição diante da linguagem da na-
ção civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais
assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado
escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu
mato, mais branco será (Fanon, 2008, p. 34).

No Brasil não foi diferente, no que diz respeito à colonia-


lidade a partir da língua, sabemos que negros e negras foram
retirados de suas terras, escravizados e tiveram sua língua e sua
cultura apagadas.

300 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Pode o subalterno falar?

A indagação feita por Gayatri Spivak em 1985 no artigo


Pode o subalterno falar? tem como resposta, dada pela própria
professora indiana, que o sujeito subalternizado não pode falar,
especialmente a mulher. Essa não pode ser lida ou ouvida, por-
que nenhum valor é atribuído ao que ela diz. Se o sujeito está
posicionado na interseccionalidade, na condição de pobre, negro
e mulher, como é o caso de Carolina, estará envolvido de três
maneiras (Spivak, 2010, p. 110).
Pelo olhar do dominador, para Carolina, a resposta mais
acertada talvez seja a de que ela poderia falar, desde que pelo
tempo que lhe fosse determinado e que falasse sobre e do lugar
de subalterna. Carolina, apesar de seus poucos recursos como
sujeito social, tentava romper as barreiras da invisibilidade e do
silenciamento impostos pelo racismo colonial. Em alguns mo-
mentos, consciente e crítica, denunciava preconceitos e desi-
gualdades, em outros, construía estratégias de aproximação com
o discurso colonizador, isto é, enquadrando-se e integrando-se,
conforme o sinalizado por Fanon.
Carolina se apresentava movida por ideias e causas pelas
quais lutava e princípios nos quais acreditava. A escritora não
tinha medo de falar ao poder, conforme é possível visualizar no
trecho que segue: “Aqui na favela quase todos lutam com difi-
culdades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E
faço isso em prol dos outros” (Jesus, 1960, p. 36). Assim, mesmo
não tendo uma posição política consistente, suas reflexões são de
suma importância para uma desnaturalização da visão da pobre-
za para a cena nacional e internacional, causando estranhamento
e identificação, fato que pode ter sido uma das causas tanto do
seu imediato sucesso, quanto do posterior silenciamento.
Defendendo interesses próprios e interesses dos grupos aos
quais estava vinculada nas disputas de poder, Carolina se declara

Carolina Maria de Jesus... ∫ 301


recorrentemente em seu texto ao grupo ao qual pertence — o
grupo dos subalternos. A escritora faz parte do grupo caracteriza-
do por Lélia Gonzalez como o mais explorado e o mais oprimido
da sociedade brasileira.

Numa sociedade onde o racismo e o sexismo, enquanto fortes


sustentáculos da ideologia de dominação, fazem dos negros e das
mulheres cidadãos de segunda classe, não é difícil visualizar a
terrível carga de discriminação a que está sujeita a mulher negra
(Gonzalez, 2020, p. 109).

É necessário, então, refletir sobre as questões relacionadas à


classe, à raça e ao gênero e como esses marcadores se apresentam
e se relacionam na trajetória intelectual e na subjetividade da
produção literária de Carolina.
Kimberlé Crenshaw, teórica feminista e professora estadu-
nidense, utiliza a metáfora da interseção para explicar as conse-
quências da interação entre dois ou mais eixos de poder (raça,
etnia, gênero, classe etc.). São eixos complexos e constituem
avenidas por onde sistemas distintos e excludentes como o ra-
cismo, o patriarcalismo, a opressão de classe se sobrepõem e se
entrecruzam criando interseções. Mulheres racializadas e pessoas
pertencentes a outros grupos minoritários, por exemplo, estão
posicionadas nessas interseções nas quais dois, três ou quatro ei-
xos se cruzam, e portanto, dentro de um contexto em que são
colididas por um fluxo que vem simultaneamente de várias dire-
ções resultando em colisões simultâneas (Crenshaw, 2002).
Ao reconhecer as conquistas e o protagonismo das feminis-
tas brasileiras, Sueli Carneiro, filósofa, ativista e uma das prin-
cipais autoras do feminismo negro no Brasil, considera que o
movimento teve, inicialmente, um tratamento universalizante
da categoria mulher à semelhança da visão eurocêntrica. E, se-
gundo a intelectual, desconsiderar a interação simultânea dessas

302 ∫ Clarice Maria Silva Campos


avenidas identitárias traz como consequência o não reconheci-
mento de diferenças e desigualdades no universo feminino, além
da identidade biológica. “Dessa forma, as vozes silenciadas e os
corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de
opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibi-
lidade” (Carneiro, 2019, p. 198).
Existem outras questões complexas implicadas nas pautas
interseccionais além das relacionadas ao gênero. O entendimen-
to das divisões sociais como classe e raça, entre outras, também
se apresentam como fundamentais dentro da hierarquização de
poder na sociedade.
A partir das reflexões aqui apresentadas, busquei abordar a
trajetória de vida e de escrita desenvolvida por Carolina Maria
de Jesus, considerando a interseccionalidade como ferramenta
para me instrumentalizar no entendimento da importância do
resgate da autora na sociedade atual, após um longo período de
apagamento.

Ressonâncias: obras de mulheres negras


na atualidade

A escritora Conceição Evaristo considera a publicação de


mulheres negras como ato político e de resistência e explica que
não só a condição de gênero vai interferir nas oportunidades de
publicação e na invisibilidade dessas mulheres, mas também a
condição étnica e social (Evaristo, 2017, s/p). A partir da escrita,
Carolina cria forma de resistência à dominação de gênero e clas-
se, demonstrando consciência do lugar em que se encontrava na
formação hierárquica nos jogos de disputas de poder.
As pesquisas, os eventos e as demais homenagens em torno
do nome e da obra de Carolina além de servirem para desper-
tar a consciência de que uma história pode e deve ser lida por

Carolina Maria de Jesus... ∫ 303


­ iferentes ângulos, ilustra o resultado de lutas de coletivo, de
d
movimentos e de ativismos contemporâneos. A história de vida,
a forma de escrever, de olhar o mundo e de enfrentar a socie-
dade, presentes na narrativa de Carolina é permeada de outras
vozes. Temas relacionados ao racismo e ao preconceito racial não
dizem respeito apenas às histórias vividas, mas também ao desejo
de mudança. “A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que
sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é
que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem
sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”
(Jesus, 1960, p. 160).
Com o objetivo de mostrar com maior clareza as relações
internas e externas, os componentes histórico-culturais, os des-
dobramentos temáticos e as características peculiares nas obras
de mulheres negras na atualidade, entrevistei sete escritoras
negras contemporâneas. Desse modo, entre os anos de 2021 e
2022, as escritoras negras Anamô Soares (Rio de Janeiro, 1983),
Elisa Pereira (Minas Gerais, 1975), Geni Guimarães (São Paulo,
1947), Kiussam Oliveira (São Paulo, 1965), Simone Ricco (Rio
de Janeiro, 1971), Sonia Rosa (Rio de Janeiro, 1959) e Taís Es-
pírito Santo (Rio de Janeiro, 1987) concederam entrevistas para
esta pesquisa.
Assim, as cinco perguntas aqui listadas fizeram parte do
roteiro das entrevistas, as quais as escritoras responderam livre-
mente: Como foi sua relação inicial com a Literatura? Como a
senhora vê a participação atual de escritoras negras no mercado
editorial brasileiro? Como a senhora analisa o movimento negro
brasileiro e como a senhora percebe o engajamento da sociedade
civil em relação ao movimento? Qual a importância na Literatu-
ra, das trajetórias individuais de mulheres negras que vêm se des-
tacando em diversos setores da sociedade? E por último: Existem
características que marcam especificamente as narrativas escritas
por mulheres negras?

304 ∫ Clarice Maria Silva Campos


A análise do material coletado comparou as respostas dadas
pelas escritoras para a mesma pergunta com as leituras teóricas
condizentes com os temas e com os escritos de Carolina Maria
de Jesus.
A escolha dessas autoras se dá pelo fato de as sete entre-
vistadas serem mulheres negras e de origem pobre, embora de
gerações diferentes. Nas respostas e nas obras literárias das sete
escritoras os marcadores gênero e raça se fazem presentes tal qual
na obra de Carolina Maria de Jesus.
Em resposta à pergunta inicial, as sete entrevistadas atribuí-
ram às famílias e aos espaços de convivência e às atividades lite-
rárias tais como as escolas e as bibliotecas comunitárias, o feito
de introduzi-las ao mundo da leitura literária.

A relação com a leitura foi via o olhar da minha mãe. Eu comecei


a ler muito cedo, bebezona. E quando eu completei oito anos
minha mãe comprou uma estante e ela disse que o sonho dela
era ver aquela estante cheia de livros. Pra isso teve uma reunião
em casa, ela e meu pai na hora do jantar e então ela disse: minhas
filhas terão a melhor educação possível nem que a gente continue
a dividir um ovo em quatro (Kiussam de Oliveira, 2021, infor-
mação verbal).2

Os relatos das entrevistadas evidenciam a origem em famí-


lias não leitoras, isto é, por questões históricas o ato de ler não
fazia parte do cotidiano familiar. Entretanto, o percurso leitor de
cada uma envolve pais que acreditavam na leitura como instru-
mento necessário à mudança social.

2 Kiussam de Oliveira. Entrevista. [29 dez. 2021]. Entrevistador: Clarice Sil-


va. Rio de Janeiro, 2021. 1 arquivo WhatsApp Áudio (25min).

Carolina Maria de Jesus... ∫ 305


Eu me aproximei desde criança. Meus pais não tinham muitos
recursos, né? Mas minha mãe sempre entendeu que a leitura era
muito importante. Então, eu não tinha, como minha filha tem
hoje, por exemplo, uma assinatura do Maurício de Sousa, sabe?
Mas ela juntava as moedinhas e fazia questão, todo final de sema-
na a gente comprava um exemplar na banca de jornal. A própria
sala de leitura da escola, onde eu estudava quando criança era
muito viva [...] Então, a minha escrita, ela é consequência de ser
leitora (Anamô Soares, 2021, informação oral).3

Outro aspecto que chama a atenção nas respostas das entre-


vistadas é a evidência da quase ausência de uma produção escrita
com temáticas envolvendo pessoas negras e suas histórias quan-
do elas eram crianças e jovens.

O mercado na época era muito resistente e a gente não tinha


ainda a Lei 10.639/2013,4 que deu uma mexida significativa no
mercado editorial, no tocante a racialidade e/ou representativi-
dade negra com observações visíveis na tonalidade da pele dos
personagens dos livros do catálogo (Sonia Rosa, 2021, informa-
ção escrita).5

O silêncio a que negros foram submetidos não é só de anu-


lação do discurso. O que lhes resta é uma espécie de silenciamen-
to de vida. Assim como Carolina, que utilizava a palavra como
instrumento para lutar e defender seus direitos, as entrevistadas

3 Anamô Soares. Entrevista. [10 dez. 2021]. Entrevistadora: Clarice Silva.


Rio de Janeiro, 2021, plataforma Meet (17 min).
4 Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede
de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira”.
5 Sonia Rosa. Entrevista. [31 dez. 2021]. Entrevistadora: Clarice Silva. Rio
de Janeiro, 2021, arquivo de texto com perguntas respondidas pela autora.

306 ∫ Clarice Maria Silva Campos


nos trazem a ausência dessas narrativas do falar de si, a falta de
encorajamento para que negros e negras sejam narradores das
próprias histórias, além da falta de articulação de espaços para
que essas narrativas sejam ouvidas.
As trajetórias escolares das escritoras apareceram nos de-
poimentos como um momento importante tanto na formação
leitora, quanto na construção de identidades. Nos relatos de
memória, a escola aparece como espaço de experiências signi-
ficativas que marcam as narrativas escritas por elas. As entrevis-
tadas lembraram de professoras e práticas escolares que consi-
deram positivas, entretanto descreveram, ainda, os discursos de
subalternização e os maus-tratos sofridos por personagens negras
apresentadas nos livros e nas histórias que ouviam na infância.

Um exemplo, quando eu fui no Irecê no interior da Bahia, né?


No sertão, a escola estava me lendo, né? E a professora veio fa-
lar comigo antes, porque muitos alunos estavam descobrindo o
racismo a partir desse conto. Muitos alunos, eles estavam perce-
bendo que eles iam nos lugares, não era porque eles estavam de
boné ou não, não era porque eles estavam de chinelo ou não. Era
porque existia o racismo (Tais Espírito Santo, 2021, informação
oral).6

Nilma Lino Gomes (2002) afirma que o comportamento


individual é influenciado pelas representações construídas sobre
o corpo e o cabelo de pessoas negras dentro de uma sociedade ra-
cista. “Existem em nossa sociedade, espaços nos quais os negros
transitam desde criança, em que tais representações reforçam
estereótipos e intensificam as experiências do negro com o seu
cabelo e o seu corpo. Um deles é a escola” (p. 43).

6 Tais Espírito Santo. Entrevista. [29 dez. 2021]. Entrevistadora: Clarice Ma-
ria. Rio de Janeiro, 2021, arquivo WhatsApp Áudio (11 min).

Carolina Maria de Jesus... ∫ 307


Por essa perspectiva, a escola é um espaço onde não so-
mente os conteúdos e saberes escolares são aprendidos e compar-
tilhados, “mas também valores, crenças, hábitos e preconceitos
raciais, de gênero, de classe e de idade” (Gomes, 2002, p. 40). A
escola é um espaço de produção e reprodução de práticas racis-
tas. Assim, as entrevistadas falaram sobre as próprias experiências
e sobre os livros e as histórias que ouviam na infância.
Padrões estéticos e sociais externalizados por meio de dis-
cursos, ações e reproduções negativas operaram nas vidas das au-
toras. As marcas de acontecimentos ocorridos na infância estão
presentes nas repostas das entrevistadas e nas lembranças de Ca-
rolina, registradas no Diário de Bitita (2014).

Amanhã, eu não volto mais aqui. Eu não preciso aprender a ler.


É que eu estava revoltada com os colegas de classe por terem dito
quando eu entrei:
— Que negrinha feia!
Ninguém quer ser feio.
— Que olhos grandes, parece sapo (Jesus, 2014, p. 125).

O espaço da escola não é somente de aprendizagens for-


mais. Nele são travadas interações entre os sujeitos, baseadas em
valores referentes às questões de gênero, étnicas, sociais, econô-
micas, culturais, entre outras. É possível identificar os efeitos da
padronização e classificação racial neste trecho do Diário de Bi-
tita de Carolina:

Eu sabia que era negra por causa dos meninos brancos. Quando
brigavam comigo. Diziam;
— Negrinha! Negrinha fedida!
A avó da minha mãe dizia:
— Eles são como os espinhos, nascem com as plantas.

308 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Não compreendi, mas achei tudo isso tão confuso! Por causa dos
meninos brancos criticarem o nosso cabelo:
— Cabelo pixaim! Cabelo duro!
Eu lutava para fazer os meus cabelos crescerem. Era uma luta
inútil (Jesus, 2014, p. 95).

Com relação à presença de escritoras negras no mercado


editorial atual, as entrevistadas usaram expressões otimistas, em-
bora acompanhadas de um reconhecimento de que essa partici-
pação não está dentro do ideal.

Então, eu vejo uma grande mudança em relação à escrita preta,


né? Tanto a escrita que fale sobre pretitude, mas também os pre-
tos escrevendo sobre pretos. Nós, escrevendo sobre a gente. É,
ainda é pequeno, né? A gente sabe que ainda é pequeno, mas que
a gente tem conseguido chegar a muitos lugares, né? E eu acre-
dito muito nesse mercado. Esse mercado ainda é pequeno, mas
que tem sido muito relevante, né? (Tais Espírito Santo, 2021,
informação oral).

O conhecimento de escritoras de gerações anteriores ocu-


pou um espaço privilegiado dentre as respostas. As entrevistadas
consideram que o conhecimento sobre essas mulheres, sobre o
contexto no qual elas escreveram e sobre o que escreviam, en-
corajam outras mulheres a escreverem suas próprias narrativas.

Eu estou falando de Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, Geni


Guimarães, a própria Lélia Gonzalez. Elas estavam ligadas à edu-
cação, ligadas ao movimento negro, ligadas ao espaço acadêmico
e elas começaram a produzir uma movimentação cultural em tor-
no da produção literária que despertou muitas outras m ­ ulheres

Carolina Maria de Jesus... ∫ 309


pra essa produção e essa produção, ela veio crescendo da década
de 1970 e 1980 (Simone Ricco, 2021, informação oral).7

Quatro entre as entrevistadas mencionaram editoras que


apresentam propostas de diversidade dentro do mercado literário
a partir das relações étnico-raciais e de gênero.

Ainda longe do ideal, mas em processo visível de aumento de


escritoras negras dentro deste mercado. Além das editoras in-
dependentes, que cada vez mais se impõem, de maneira muito
criativa ao mercado editorial publicando mulheres negras (e tam-
bém homens). Quero aqui ressaltar a presença das editoras ditas
negras e/ou que tem essa especificidade racial em seu catálogo.
Elas são relevantes em seu processo: editora Malê, a editora Pal-
las, a editora Mazza, a editora Nandyala, para citar algumas. O
trabalho de Conceição Evaristo junto ao mercado editorial e sua
presença forte nos eventos literários de grande repercussão, como
Jabuti, Flip, bienais e festas literárias espalhadas pelo Brasil fize-
ram a diferença nessa transformação do mercado editorial que
reafirmo aqui que ainda está longe do ideal, mas com conquistas
satisfatórias (Sonia Rosa, 2021, informação escrita).

Carolina era consciente desta organização, ocupação de es-


paços e desigualdades sociais. No dia 30 de novembro de 1960,
já tendo publicado Quarto de Despejo e vivendo fora da favela,
fez o seguinte registro:

[...] Os cultos tem um lugar ao sol. A raça preta não deve ser
indecisa. Não projetar, mas procurar realizar concretisar, só os
ideaes — Declamei as Noivas de maio. — O prefeito gostou da

7 Simone Ricco. Entrevista. [11 jan. 2021]. Entrevistadora: Clarice Silva. Rio
de Janeiro, 2021, plataforma Zoom (34min).

310 ∫ Clarice Maria Silva Campos


poesia. A poesia tem erros gramaticaes. Não ha possibilidade de
correção. É uma advertência social (Jesus, 2021, p. 15).

Os recortes social e racial feitos por Carolina nos ajuda a


entender que o sucesso de textos literários não depende apenas
da qualidade da narrativa. Como salienta Zilá Bernd (1988, p.
17) em sua obra Introdução à literatura negra, “não podemos ser
ingênuos a ponto de ignorar os processos de manipulação que
sofrem os textos literários e que seu sucesso ou seu esquecimento
podem ser forjados de acordo com determinados interesses”.
É possível afirmar que vivemos um contexto da presen-
ça crescente de escritoras negras dentro do mercado editorial.
Nomes como Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Eliana Alves
Cruz, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral, Sonia Rosa, Kiussam
de Oliveira, Lia Vieira, Jarid Arraes, entre outras, vêm aparecen-
do como produtoras de narrativas literárias com certo reconhe-
cimento na academia, entre os leitores e nas premiações. En-
tretanto, a representação de escritoras não brancas no mercado
editorial é ainda bem pequena em relação à totalidade das obras
publicadas, remetendo-nos à necessidade coletiva das mulheres
negras para que suas histórias sejam lidas.
Sonia Rosa destacou conquistas importantes a partir da
atuação dos movimentos negros:

O movimento negro tem atuado bastante na formação de negros


e negras desse país. As conquistas legais como as ações afirma-
tivas, as leis de cotas e a lei da educação 10.639/2003 foram
fruto de posicionamentos incisivos do Movimento negro que se
fez presente na constituição de 1988. Historicamente falando, a
contribuição do Movimento Negro tem sido fundamental para
os avanços das pautas negras em nosso país. A doutora Nilma
Lino Gomes em seu livro O movimento negro educador explici-
ta muito bem todo o caminho dessa presença marcante para o

Carolina Maria de Jesus... ∫ 311


f­ ortalecimento das identidades negras com repercussões relevan-
tes na sociedade civil (Sonia Rosa, 2021, informação escrita).

A escritora Simone Ricco traça um percurso da atuação


destes grupos em movimento:

Então, o movimento negro brasileiro, a gente tem um momento


que ele é abraçado, ele é reconhecido, ele é valorizado, mas o que
predomina é um estigma que existiu no início e aí a gente teve
uma trégua e esse estigma voltou a ser alimentado mais recente-
mente. Então eu percebo que esse movimento foi reconfigurado.
Aquela coletividade que era mais forte e que as pessoas marca-
vam mais o seu lugar como pertencentes ao movimento negro,
ela foi um pouco diluída. As pessoas se posicionam em sintonia
com uma movimentação coletiva, mas hoje você vê muito menos
a institucionalidade. Eu sou do MNU, eu sou da frente negra,
né? Que isso em alguns momentos era bem marcado. Hoje são
as posições, as posturas, os discursos é que marcam essa pertença.
Então eu percebo que nós somos hoje muitos negros e negras
em movimento. Em movimento que são diferenciados. Tem
movimentos que acontecem na cultura, tem movimentos que
acontecem dentro de outros segmentos, dentro da educação, mas
a institucionalidade, eu acho que aconteceu uma ruptura que é
em parte boa e em parte fragiliza. Em parte é ruim e acho que
acaba, acabou instituindo, de uma certa forma, uma perda de
uma unidade mesmo, né? [...] Então eu vejo, os movimentos
negros hoje como desafios que são assumidos individualmente,
mas que vão ficar menos pesados e mais prazerosos se a gente
coletivamente conseguir de fato se aquilombar, além dessa parte
mais festiva, na parte real, na parte que nos dá proteção mesmo.
Nos dá blindagem. Então eu vejo hoje como movimento, né?
Ele tá muito singularizado e eu desejo muito que a gente consiga
fortalecer a coletividade (Simone Ricco, 2021, informação oral).

312 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Essa resposta é muito significativa para percebermos as mu-
danças ocorridas dentro dos movimentos negros desde a atuação
inicial marcadamente revolucionária e contestadora até as estra-
tégias para uma transformação mais ampla dentro da militância
negra. Concomitantemente com essa movimentação de grupos
negros de caráter militante, político e cultural, os anos de 1970
abrigaram as reuniões de poetas negros. “Nesses encontros, a
poesia sempre se fazia presente, quer em representações dramá-
ticas, quer em simples declamações” (Cuti, 2010, p. 126). Eram
encontros de manifestações artísticas e de conscientização políti-
ca, em que escritores mais novos se encontravam com escritores
de gerações anteriores. Entre esses grupos, destaca-se o formado
por Cuti, Hugo Ferreira, Jamu Minka, entre outros, que ideali-
zou, organizou e publicou os Cadernos negros.
Simone Ricco ressalta a publicação dos Cadernos negros
como um marco importante nas trajetórias escritas de mulheres
negras:

A gente marca ali os Cadernos negros que é de 1978, dali por


diante ele veio crescendo, tanto que as primeiras edições come-
çaram com pouquíssimas mulheres, uma mulher, duas mulheres
e hoje em dia as mulheres são a maioria nas edições de contos
e de poemas. Eu estarei na próxima edição de poemas que vai
ser lançada em janeiro. Então essa descoberta, dessa possibili-
dade de colocar na rua a sua própria produção tem mobiliza-
do cada vez mais mulheres que estão nos espaços de formação,
que são uma grande força de resistência na periferia, mas estas
mulheres não estão em grande número dentro do que a gente
pode chamar dessa indústria literária, dessa produção editorial
[...] então, eu percebo que felizmente tem um encorajamen-
to, um empoderamento das mulheres negras, entendendo que
elas podem produzir suas próprias narrativas, colocando a mão
na ­massa pra produzir, mas elas ainda não são vistas por essa

Carolina Maria de Jesus... ∫ 313


­ arte mais ­industrial, a parte que movimenta o dinheiro e paga
p
os cachês, os bons contratos ainda não é o espaço tão acessível e
tão ocupado por mulheres negras na literatura brasileira (Simone
Ricco, 2021, informação oral).

Dentre as entrevistadas, Geni Guimarães participou da Co-


letânea Cadernos negros 4, em 1981 e Simone Ricco na Coletânea
Cadernos negros 43, de 2021. Considerados manifestações literá-
rias importantes para dar visibilidade e instrumentos de luta e re-
sistência de pessoas negras, os Cadernos negros foram publicados
pela primeira vez em 1978. No começo eram coletâneas mimeo-
grafadas de poesias de autores negros e seguem sendo publicadas
anualmente.
Após a discussão sobre os processos coletivos, propus uma
reflexão sobre a importância das trajetórias individuais de mu-
lheres negras que vêm se destacando em diferentes setores da
sociedade. Para Geni Guimarães

Quando nós nos anunciamos através das nossas trajetórias de


gente negra, estamos, como sempre digo, descrevendo a abolição
dessa vez efetiva por estar gotejando as nossas verdades e senti-
mentos. Assim formamos, ensinamos e fazemos a comunicação e
adeptos (Geni Guimarães, 2022, informação oral).8

Para responder sobre o papel das trajetórias individuais,


Kiussam de Oliveira explicita a distinção entre literatura gené-
rica e literatura negro-brasileira. Na visão da autora, enquanto
a primeira causa prejuízos à identidade de mulheres negras, a
segunda é o antídoto e a cura:

8 Geni Guimarães. Entrevista. [2 fev. 2022]. Entrevistadora: Clarice Silva.


Rio de Janeiro, 2022, Arquivo de áudio (3min).

314 ∫ Clarice Maria Silva Campos


A literatura negro-brasileira, ela não foge da temática racial. Ela
traz os conflitos das questões raciais para o campo literário e ali,
pra mim é uma forma muito lúdica, mas também muito lúcida,
trabalha a partir das emoções, zonas da psique humana, que só
o campo das artes consegue trabalhar, entrar. Então, a literatura
genérica pra mim, pouco tem contribuído para o empoderamen-
to, para autoestima, resgate da autoestima, para autonomia, para
a consciência coletiva das mulheres negras e a literatura negro-
-brasileira de encantamento infantil e juvenil, a linebeiju, que
tenho trabalhado nesse campo teórico proposto por mim, tem
o poder de curar as feridas tanto das crianças quanto de adultos
negros e negras (Kiussam de Oliveira, 2021, informação oral).

Para Anamô Soares, quando mulheres ocupam espaços que


até então eram ocupados predominantemente por homens bran-
cos, elas estão conquistando territórios e na opinião da autora,
quando uma mulher assume um papel de destaque, ela está mos-
trando que é possível.

A arte é um lugar assim muito sensível, né? É diferenciado. É


claro que quando a gente encontra uma preta juíza, uma preta
advogada, uma preta médica da mesma maneira é um norte pra
gente espelhar, incentivar, crescer cada vez mais, mas quando
você fala em arte num país como o Brasil, a gente tem que dar
um destaque especial, porque parece assim nas construções so-
ciais do nosso país que a arte é algo irrelevante, você sabe. E não,
é alimento básico. Hoje essas presenças dessas mulheres pretas na
literatura, elas fazem um movimento totalmente diferenciado di-
zendo: olha eu posso estar aqui nesse lugar de deleite, nesse lugar
de prazer. Então é como se fosse uma grande revolução humana,
na minha leitura, né? A gente pode estar na arte também, não só
no arado, não só no trabalho braçal, não só no magistério, por-
que o magistério é sempre o grande sonho de todas as mulheres.

Carolina Maria de Jesus... ∫ 315


Hoje em dia tem milhares de possibilidades e a arte é uma dessas
possibilidades. Quando mulheres fincam lá sua bandeira e mos-
tram. Kiusam de Oliveira, tá mostrando pra gente, olha eu pos-
so, você pode também (Anamô Soares, 2021, informação oral).

O reconhecimento profissional como apontado pela escri-


tora Anamô Soares, é o resultado de uma militância e incide di-
retamente na vida de outras pessoas. Assim, trajetórias de mulhe-
res negras que se destacam em lugares historicamente negados ou
não imaginados, são importantes como caminho para se pensar
meios de realização de sucessos coletivos.
Quando nos debruçamos sobre a obra de Carolina Maria
de Jesus com o objetivo de dimensionar a importância e o fe-
nômeno literário produzido pela autora, podemos perceber que
temas desenvolvidos em 1960 continuam extremamente atuais.
As sete escritoras participantes das entrevistas sinalizaram as con-
fluências que marcam escritas de mulheres negras. A literatura,
de acordo com as respostas dadas, é atravessada pela experiência
de ser mulher e ser negra dentro da sociedade brasileira. Essas
confluências, de acordo com Simone Ricco, acontecem na maio-
ria das escritas, porque elas partem da autorrepresentação.

Ela vai trazer características especialmente do diálogo com a an-


cestralidade, características que vão ser ligadas às relações étnico-
-raciais, às relações raciais que se vivem no Brasil (Simone Ricco,
2021, informação oral).

Kiussam de Oliveira chama a atenção para a produção ma-


nifestada em primeira pessoa nas narrativas de escritoras negras.

Quando elas traçam, quando nós traçamos um poema, nós tra-


çamos a partir do mapa da nossa vida, das nossas experiências,
das nossas realidades de exclusão e da necessidade de cura, da

316 ∫ Clarice Maria Silva Campos


necessidade de falar de amor que nós sentimos. Então, uma des-
sas características, pra mim é falar de dentro, é mergulhar nas
experiências da exclusão. É refletir sobre o racismo, sobre os pre-
conceitos, as discriminações e o quanto elas nos destroem, mas
ao mesmo tempo nos fortalecem. Então é a característica de falar
de amor, de falar de sobrevivência, de falar de poder, de falar de
ancestralidade, de falar de força, de falar sobre o feminino, de
falar sobre o sagrado feminino, de falar sobre as crias, de falar
sobre sororidade, de falar sobre empoderamento, fortalecimento,
coletividade. São escritas que buscam a cura do próprio eu, para
assim compartilhar uma possibilidade de cura para outros eus
entre aspas (Kiussam de Oliveira, 2021, informação oral).

Nas palavras de Geni Guimarães, “as narrativas escritas por


mulheres negras surgem com as características de informar, de-
nunciar e anunciar” (Geni Guimarães, 2022, informação oral).
Além da recorrência nos temas, as escritoras atribuíram à escrita
produzida por mulheres negras o caráter transformador e de de-
núncia como nos traz Sonia Rosa:

Quando a gente escreve, a gente se inscreve. . . premissa impor-


tante que se costuma dizer por aí. Claro que uma escrita feminina
e negra tem as marcas dessa racialidade e desse recorte de gênero.
E isso faz toda a diferença. Vivemos em um país racista e sexista,
logo a nossa maneira própria de dizer, de se anunciar, tem muita
força. As escritas negras são referências para outras mulheres e
podem atuar como letramento racial para os leitores não negros
e não mulheres (Sonia Rosa, 2021, informação escrita).

Consideramos que as escritas produzidas por mulheres ne-


gras vão além da arte e da estética, elas contribuem para desve-
lar preconceitos e discriminação racial, além de servirem como

Carolina Maria de Jesus... ∫ 317


e­ stratégias para disseminação de ideias e encorajamento para que
outras mulheres compartilhem suas narrativas.
Quando faleceu em 1977, Carolina estava praticamente es-
quecida, ignorada pela imprensa e pelas instituições acadêmicas
brasileiras. Houve um apagamento de sua memória e pouco se
sabia a seu respeito. Somente nos anos 1980 a volta de Carolina
à cena literária começou a acontecer. Carolina, então, é redesco-
berta em um contexto de um Brasil que vivia o fim do regime
militar e o início da Nova República, quando os movimentos
negros e identitários estavam mais fortalecidos e um novo fe-
minismo passava a contemplar identidades distintas, incluindo
gênero e raça nas pautas de discussão, abrindo outro espaço para
a leitura da produção da escritora.
Outro fator a ser considerado para que o nome de Carolina
fosse reincorporado ao campo literário é a formação das asso-
ciações negras, entidades culturais e as iniciativas no meio aca-
dêmico. Grupos que, de acordo com Cuti, contribuíram para a
criação de uma vida literária e reforço de uma identidade racial.
“É com vontade coletiva que se fazem as particularidades cultu-
rais dignas de serem estudadas e para servirem de aprendizado a
fim de formar e fazer saber sobre o país” (Cuti, 2010, p. 115).
A partir de então, os diários de Carolina ganharam força
para irem além da representação exótica e testemunho docu-
mental. A escritora foi resgatada por estes grupos e sua obra va-
lorada pelo teor criativo, importância literária e positivação da
representatividade negra. A recuperação de textos, personagens
e ­narrativas de Carolina Maria de Jesus, podem contribuir para
aproximar leitores e preencher lacunas em histórias de experiên-
cias e conquistas de outras pessoas, sobretudo, homens e mulhe-
res negras.
O conhecimento de fatos e eventos estabelecem conta-
tos com integrantes de um mesmo grupo e, segundo Maurice
Halbawachs:

318 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acon-
tecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta
reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns
que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque
elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que
será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo
parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (Halbwa-
chs, 2013, p. 39).

Colaborando com as considerações das escritoras entrevis-


tadas, podemos analisar o estudo feito pelo Grupo de Estudos
em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de
Brasília coordenado pela professora Regina Dalcastagnè. O cor-
pus da pesquisa atingiu um total de 258 obras, que corresponde
à soma dos romances brasileiros do período entre 1990 e 2004,
publicados pelas editoras Companhia das Letras, Record e Roc-
co. Ao todo, o corpus incluiu 165 autores. Nos quadros 1, 2 e
3 podemos ver a divisão de obras publicadas nessas editoras ao
analisarmos o gênero e a cor dos autores.

Quadro 1. Romances incluídos no corpus, por editora


Record 123 47,7%
Companhia das Letras 76 29,5%
Rocco 59 22,9%
Total 258 100%
Fonte: Dalcastagnè, 2012.

Carolina Maria de Jesus... ∫ 319


Quadro 2. Divisão de autores publicados por gênero
Homens 120 72,7%
Mulheres 45 27,3%
Total 165 100%
Fonte: Dalcastagnè, 2012.

Quadro 3. Divisão de autores publicados por cor


Brancos 155 93,9%
Não brancos 6 3,6%
Não identificados 4 2,4%
Total 165 100%
Fonte: Dalcastagnè, 2012.

Nas tabelas 1, 2 e 3 e no quadro 4 podemos analisar as ca-


racterísticas das personagens destas publicações.

Tabela 1. Sexo e posição das personagens dos livros publicados


Protagonista Coadjuvante Narrador(a) Total
Feminino 28,9% 41,5% 31,7% 37,8%
Masculino 71,1% 58,3% 68,3% 62,1%
Outro - 0,1% - 0,1%
Total 100% 100% 100% 100%
n = 342 n = 893 n = 183 n = 1245
Fonte: Dalcastagnè, 2012.

320 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Quadro 4. Cor das personagens dos livros publicados
Branca 994 78,8%
Negra 98 7,9%
Mestiça 76 6,1%
Indígena 15 1,2%
Oriental 8 0,6%
Sem indícios 44 3,5%
Não pertinente 10 0,8%
Total 1.245 100%
Fonte: Dalcastagnè, 2012.

Tabela 2. Cor e posição das personagens dos livros publicados


Sem Não
Branca Negra Mestiça Indígena Oriental
indícios pertinente
Protagonista 84,5% 5,8% 5,8% 1,5% - 2,0% 0,3%
Coadjuvante 77,9% 8,7% 6,3% 1,1% 0,9% 4,0% 1,0%
Narradora 86,9% 2,7% 3,8% - - 4,9% 1,6%
Total 79,8% 7,9% 6,1% 1,2% 0,6% 3,5% 0,8%
n = 994 n = 98 n = 76 n = 15 n=8 n = 44 n = 10

Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “posição”.


Fonte: Dalcastagnè, 2012.

Tabela 3. Sexo, cor e posição das personagens dos livros publicados


Protagonistas Narradores
Brancos Negros Brancos Negros
Homens 206 17 107 4
Mulheres 83 3 52 1
Fonte: Dalcastagnè, 2012.

Carolina Maria de Jesus... ∫ 321


Considerações finais

A partir dos elementos materiais e simbólicos presentes no


espólio literário de Carolina, outras memórias podem ser enri-
quecidas, porém além disso é possível pensar no feito literário de
uma escritora cuja escrita é um marco de alguém que rompeu
as barreiras contra tudo e contra todos os obstáculos impostos a
uma mulher negra, pobre e com pouca escolaridade.
Esta discussão teórico-metodológica nos impulsionou para
as entrevistas com outras narradoras, mulheres e negras no con-
texto intelectual e cultural contemporâneo. Uma geração de es-
critoras negras apontando o que significa ser hoje uma mulher e
negra dentro do mercado editorial e o papel da literatura que vai
além do valor de resistência ideológica. Na análise das respostas
podemos evidenciar congruências, percursos literários e de vida
com algumas semelhanças e diferenças nas escolhas de caminhos
para produção escrita.
As autoras entrevistadas, assim como Carolina, estão sendo
reconhecidas pela qualidade literária de suas produções. As rela-
ções entre gênero e raça, no entanto, continuam ocupando lugar
central nas relações sociais. Desse modo, algumas relações que
atingem, especialmente mulheres negras permanecem inaltera-
das. Assim, Carolina continua ainda hoje causando incômodo e
rejeição em alguns grupos, por outro lado, vem sendo reconhe-
cida com títulos, homenagens e uma gama de estudos sobre a
sua obra.
Os escritos de Carolina revelando os sonhos, as dores e a
intimidade da autora, estiveram sempre destinados à publicação
e à leitura de outros leitores, além da própria autora. Para a ge-
ração atual de pesquisadores, estudiosos e leitores fica o desafio
de interpretar suas narrativas, seus valores e suas reflexões sobre
a vida e a sociedade.

322 ∫ Clarice Maria Silva Campos


Carolina de alguma forma abriu caminhos e, por isso, con-
tinua inspirando como alguém que com sensibilidade conseguiu
transformar a própria realidade, tornando-se referência para as
escritoras contemporâneas. A partir de Carolina houve um avan-
ço na conquista de espaços, entretanto não podemos afirmar
que chegamos ao ideal desejado, e por isso nos mantemos em
movimento.

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324 ∫ Clarice Maria Silva Campos

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