Curso Online de Filosofia

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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 269
1º de novembro de 2014

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue este material.

Boa noite a todos.

Nós vamos prosseguir aqui hoje com esse assunto de Kant, que ainda vai nos tomar várias
aulas pela frente. O plano de estudos foi concebido nas seguintes etapas:

1ᵃ etapa: reconstituir quais eram, por assim dizer, os ideais pré-filosóficos do Kant − ideais aos
quais ele adere sem discuti-los filosoficamente de maneira muito aprofundada. Ideais dos
quais ele participa junto com uma comunidade de outras pessoas e que não são tematizados,
não se tornam temas propriamente da sua filosofia, mas que orientam a vida inteira dele. Em
resumo: refazer a forma, a figura desses ideais que orientam a atividade de Kant.

2ᵃ etapa: mostrar como os trabalhos mais técnicos de filosofia de Kant estão articulados com
esses ideais objetivos e só se explicam em função deles; ou seja, são meios de realização
desses ideais.

3ᵃ etapa: mostrar como esta influência de Kant se alastrou para dentro do mundo moderno,
para muito além da área especificamente filosófica, penetrando então na política, na educação,
na religião etc.

Nós estamos ainda na etapa de delinear os ideais. È claro que todo o filósofo, no início da sua
atividade, tem muitas coisas que lhe parecem verdade, que dá por pressupostas e não as
discute. E, às vezes, a chave inteira do sistema, caso haja um sistema, reside precisamente aí.
Então, aquilo que parece ao filósofo tão óbvio que não precisa ser discutido, é justamente isso
que, às vezes, dá a forma da sua mentalidade inteira.

Eu vou dar dois exemplos: quando John Locke elabora a sua filosofia política, ele toma o
sistema inglês político da sua época como se fosse um fenômeno universal e o parâmetro, a
unidade de medida de todos os sistemas políticos do mundo. Só que, evidentemente, quando
você sai do quadro inglês e aplica aquilo a um outro país, a coisa, às vezes, nem faz o menor
sentido.

Do mesmo modo, Karl Marx vivia em uma época em que tudo induzia as pessoas a acreditar
que viviam em um mundo marcado pela concorrência − concorrência, em primeiro lugar,
econômica, mas também biológica, como se vê no evolucionismo de Darwin −, e em função
desses modelos que pegavam alguns fenômenos da natureza e os tomavam como se fossem a
natureza inteira, como se fossem a verdadeira substância da realidade. Assim, na época de
Karl Marx a economia − que era evidentemente uma parte da sociedade, um aspecto da
sociedade − havia assumido uma importâ ncia tal que parecia ser o centro da vida social. Todo
mundo tinha esta impressão.

Milhões de pessoas tinham sido deslocadas das regiões em que viviam, onde, ou trabalhavam
como camponeses, ou exerciam algum [outro] ofício, e tinham sido levadas para a cidade para
formar o proletariado urbano. Então, a economia dirigia toda a vida dessas pessoas. Veja que
na Idade Média, por exemplo, um camponês trabalhava apenas seis meses por ano; quer dizer,
ele tinha um monte de outras atividades que não tinham nada a ver com economia, sobretudo
atividades de ordem religiosa. De repente, o sujeito ia para a cidade e trabalhava, dez, doze,
quinze horas por dia em uma luta pela sobrevivência. Então, é claro que economia era tudo. E
tudo que Marx escreveu foi sobre a impressão deste fenômeno, que era um fenômeno local. Se
você saísse dali e fosse para a China, ou para a Arábia Saudita, a experiência humana era
completamente diferente e este primado do econômico não se observava de maneira alguma.

Só que Karl Marx teve a impressão de que todas as sociedades eram assim: de que existe uma
base, um fundamento econômico de tudo, e que tudo que se constrói em cima são, em geral,
superestruturas, de algum modo dependentes da economia. Sim, naquele momento e naquele
lugar eram realmente dependentes, só que ele, sob o impacto deste fenômeno local, tal como
tinha feito Locke, toma uma situação local como se fosse a condição humana universal.

Essas premissas, que eles aceitam sem discuti-las, dão, por assim dizer, a base inteira do seu
sistema filosófico. Justamente aquilo que não faz parte dele é o que o delimita, e na medida em
que o delimita, ele dá a forma; justamente a fronteira entre o que ele discute e o que não
discute, aquilo que lhe parece tão óbvio que não precisa ser discutido e a nós cabe justamente
discutir isso. É isso aí é o que vai dar a forma integral da mentalidade desse ou daquele
filósofo e, portanto, orientar a sua filosofia de algum modo.

O número de filósofos que são capazes de raciocinar sobre a sua própria situação existencial
de maneira mais analítica, sem se deixar se impressionar por uma situação local e, sobretudo,
sem tomá-la como unidade padrão universal, é muito pequeno. Veja, por exemplo, que
Aristóteles, na ciência política, teve o cuidado de examinar as constituições de mais de cem
cidades em torno para não tomar Atenas como se fosse um modelo universal e criar uma
filosofia política de valor supostamente universal com bases em conceitos e critérios que só
valiam nesta cidade. Por que ele teve este cuidado? Porque não havia nascido em Atenas; ele
vinha da Macedônia, tinha visto uma situação completamente diferente. Então, Aristóteles
tinha um plano de comparação e percebia que não podia se deixar enganar por uma situação
local. Platão também teve algumas experiências no exterior e estava advertido com relação a
isso.

É por isso que estas filosofias têm para nós uma validade imensamente mais ampla e mais
incondicional do que a de John Locke ou de Karl Marx. Elas conquistam o seu patamar de
universalidade justamente porque não tomam como premissas universais os dados que estão
meramente circulando, que fazem parte e compõem o seu ambiente imediato. Nós podemos
chamar esse fenômeno de uma espécie de um provincianismo: o provinciano, o caipira é o
sujeito que acha que o mundo inteiro é igual àquela cidadezinha, àquela vila, onde ele nasceu,
e não se lembra de que as coisas podem acontecer de maneira completamente diferente.

Veja que as tendências, quando o sujeito tenta aplicar as categorias do pensamento de John
Locke, por exemplo, à América Latina, você tem uma série de monstrengos intelectuais,
porque são países de onde você passa de uma ditadura para outra, de uma ditadura para uma
revolução, de uma revolução para uma ditadura, e tem em cima uma camada de intelectuais
discutindo as instituições democráticas, a constituição, as liberdades civis etc. Isso é muito
bonito para ser discutido na Inglaterra, seja no tempo de John Locke, seja até hoje — se bem
que a Inglaterra já está mudando de tal maneira que, daqui a pouco, essas categorias também
não se aplicarão lá.

Esse deslocamento entre a situação real e os conceitos é uma forma de alienação


extremamente grave e que tem de ser corrigida logo no início da nossa vida de estudos. Se
você vai estudar direito ou ciência política no Brasil, os caras vão te encher de idéias,
conceitos e termos que não servem absolutamente para descrever a situação. Como é que
você vai equacionar [0:10] em termos de direito constitucional clássico o que está acontecendo
no Brasil, por exemplo: uma eleição onde apenas vinte e três pessoas controlam a votação? E
ninguém mais tem acesso, a votação é secreta. Acho que não existiu votação secreta não
existiu nem na União Soviética, é um fenômeno só do Brasil.

Como você vai explicar isso nos termos da teoria política clássica? É impossível. Então,
particularmente nos países do terceiro mundo, que são culturalmente dependentes, todos os
conceitos em circulação, em geral, são importados. Importados, portanto, foram criados para
outras situações e não se aplicam à situação local. Mas as pessoas tentam usar esse aparato,
porque é o que aprenderam na universidade, e os resultados são cada vez mais alienantes;
quer dizer, o sujeito vai para longe da realidade local. Pior: a realidade local, como não tem
conceitos e termos para expressá-la, se torna um fenômeno mudo e indizível, por assim dizer,
e adquire uma aura misteriosa e quase fantasmal. Isso é o que acontece realmente no terceiro
mundo, especialmente nós vemos isso acontecer no Brasil.

Nesta semana, quando você vê, por exemplo, esse ministro do TSE recusando pedido de
revisão da eleição com base no pressuposto de que nós estamos em uma democracia, tudo
está funcionando regularmente e que uma investigação desse tipo pode denegrir a nossa
democracia. O que é isso? É uma alienação: o sujeito está usando um conceito de ordem
democrática que absolutamente não se aplica à situação presente. Na verdade, a situação
presente no Brasil é sui generis; aí, você precisa criar conceitos específicos para poder
descrevê-la. Mas para fazer isso é preciso que você tenha se colocado a pergunta, se colocado
a questão e, evidentemente, isso é algo que a maioria das pessoas, seja ele acadêmico, seja
político, seja jurista, não quer fazer. Primeiro, porque tem preguiça; segundo, porque não tem
capacidade e terceiro, porque, às vezes, isso vai contra os seus interesses. Mas mesmo que a
pessoa não tenha nenhum interesse em jogo, existe a limitação intelectual do provinciano que
não está fazendo questão de entender muito as coisas; o que ele quer é apenas se acalmar.
Então a primeira explicaçãozinha calmante que acha para ele está bem.

E no case do Kant, justamente estes textos que estamos expondo aqui, são sobre temas que ele
não aprofunda na sua obra filosófica maior. E justamente porque não aprofunda, ele, nestes
textos, se exprime com uma espécie de uma fé ou de uma credulidade um pouco assombrosa
para um autor de um treco que leva o nome de filosofia crítica. Aqui, não exerce crítica alguma
em cima desses conceitos que está usando, ele simplesmente os subscreve e manda bala. E, ao
mesmo tempo, você vê que Kant acredita neles profundamente. Mesmo quando está apenas
fazendo uma conjectura imaginativa, acredita nesta conjectura imaginativa, como nós
veremos não neste texto, mas no outro que vamos estudar adiante. Eu vou ler e comentar este
texto aqui, "O Iluminismo segundo Kant":
"O nome “Iluminismo”, ou “Esclarecimento”, como símbolo auto-identificador da mentalidade
modernizante pré-revolucionária no século XVIII, já circulava fazia tempo entre os intelectuais
quando Kant, em 1784, publicou “Uma Resposta à Pergunta: Que é o Iluminismo?”1

Como outros escritos menores do autor, esse breve ensaio tem uma importância medular
porque expressa, mais explicitamente do que as obras maiores, os ideais transformadores a
cujo serviço o filósofo consagrava o esforço inteiro da sua existência e aos quais, portanto,
aquelas obras mesmas se subordinavam."

Isso será demonstrado mais tarde. Porque o sujeito pode perguntar: “o que isso tem a ver com
A Crítica da Razão Pura?”. Tem tudo que ver. Primeiro, porque isto aqui foi escrito três anos
depois d’A Crítica da Razão Pura; claro que depois Kant introduz umas modificações neste
último livro na segunda edição de 1787. Mas estas modificações são de ordem técnica e dizem
respeito à gnoseologia, e não a estes pontos.

"Também à semelhança de outros escritos menores consagrados a temas políticos, este é de


caráter ostensivamente normativo, empenhando-se, não em analisar fatos ou conceitos, mas
em prescrever regras de pensamento e de conduta que, no entender do autor, deveriam ser
seguidas, em princípio, por toda a humanidade.

O iluminismo, aqui, não é estudado como fato histórico, como movimento cultural e político,
mas apenas como o ideal de vida que, na imaginação do autor, inspirava ou deveria inspirar
esse movimento.

A formulação que Kant dá a esse ideal dirige-se, antes de tudo mais, aos indivíduos:"

Vamos aqui à fórmula dele:

“Iluminismo é emergir de uma imaturidade auto-imposta. Imaturidade é a inabilidade de usar do


próprio entendimento sem o guiamento de outrem. É auto-imposta se a sua causa não é a falta
de entendimento, mas da resolução e da coragem de usar dele sem o guiamento de outrem.”

Veja que esta idéia aqui se incorporou de tal modo na cultura ocidental inteira, inclusive nas
culturas mais periféricas, que, hoje, praticamente ninguém se diz guiado por outro, todo
mundo pensa com sua própria cabeça. Vocês já repararam nisso? Penso com meus próprios
miolos, como diria o Francisco Razzo. É claro que é uma expressão que é mais fácil de usar do
que entender o que o sujeito quer dizer com isso.

Acredito que, por exemplo, Newton, quando descobriu a lei da gravitação universal, pensou
com a própria cabeça porque não existia nenhuma lei de gravitação universal antes para ele
aprender. Mas foi só nisso que ele foi original, no resto, recebeu milhares de influências, como
todo mundo. E em uma vida inteira de estudos ele teve uma coisa que ele pensou por si
mesmo, o resto tudo, foi ajudado a pensar. Mas a facilidade com que as pessoas usam esse
termo de uma maneira leviana mostra que isso se incorporou como um valor inquestionado e
inquestionável: é obrigação de todo mundo pensar com a própria cabeça e não se deixar guiar
por ninguém.

"Se cada um tem de ser o guia do seu próprio entendimento, esse apelo não poderia dirigir-se a
uma comunidade enquanto tal, mas tão-somente às consciências individuais."

1
“Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?”, Kants Werke, Frankfurt am Main, Insel-Verlag, 1964, Band VI, pp.
53-61.
Isso eu acho que decorre do próprio teor da norma, tal como expressa pelo Kant: cada um tem
de pensar por si mesmo; por exemplo, cada um individual, você não pode se deixar por outro.
Assim, ele está falando, não para uma comunidade − ou seja, vocês como grupo têm de ser de
independentes de outro grupo −, mas está falando para um indivı́duo: você enquanto
indivíduo tem de ser independente dos outros indivíduos.

"Para que estas exerçam plenamente a sua capacidade de julgar por si próprias, é preciso
apenas uma precondição: a liberdade.

Mas, após ter dito que “o dever de todos os homens é pensar por si mesmos”, Kant vai
introduzir nessa norma uma limitação crucial. Ele reconhece que a ordem pública tem de ser
mantida e que, para isso, os homens, enquanto discutem livremente, (...)"

Cada um pensando com sua própria cabeça.

"(...) têm de continuar obedecendo a leis que não são afetadas pela discussão. “Seria muito
prejudicial se um funcionário público em serviço (...)"

Ou, digamos, um oficial, um soldado das Forças Armadas.

"(...) ao receber uma ordem, a questionasse abertamente... Ele deve simplesmente obedecer”.”

Isso quer dizer que na vida social existe uma série de afirmações − sejam a irmações de fato,
sejam afirmações normativas − ordens, que não serão discutidas. Pelo menos, não serão
discutidas naquele momento e naquele lugar; tem simplesmente de obedecer, senão nada
poderia funcionar: nem a justiça, nem as Forças Armadas, nem as fábricas, nem as escolas,
nem coisíssima nenhuma. Se não há uma disciplina, não há uma hierarquia de comando, nada
poderia funcionar, nem mesmo em uma família. Você imagina se em uma família todas as
crianças começassem a discutir tudo o que elas devem fazer, o que o pai deve fazer; quer
dizer, você viveria em uma espécie de parlamento onde as discussões poderiam se prolongar
indefinidamente e nada se poderia fazer.

"O que tem de ser livre, explica o filósofo, é “o uso público da razão”. Por esse termo ele
entende “o uso que qualquer um possa fazer dela enquanto homem de estudos que se dirige a
todo o público leitor” (grifos dele)." [0:20]

Veja a passagem: "todos têm obrigação de pensar por si mesmo sem ser guiados por outrem".
De repente, quem tem esta obrigação? Só aqueles homens de estudos que têm condição de se
dirigir ao público inteiro. Então, são todos ou são só estes?

"Pode-se conceber que todos os seres humanos, incluindo os mais humildes funcionários
públicos e trabalhadores braçais, se transmutem, fora do horário de expediente, em “homens
de estudos” com acesso a “todo o público leitor”?"

O socialismo prometeu fazer isso. Trotski dizia que no socialismo qualquer varredor de rua
seria um novo Leonardo da Vinci. É claro que isso não aconteceu e ninguém sabe como fazer
isto.

"Só nessa situação hipotética de universal erudição poderia valer o princípio de que “o dever
de todos os homens é pensar por si mesmos”. Até lá, “pensar por si mesmo” não é de modo
algum o dever de todos, mas apenas o direito de alguns; daqueles que se qualificaram, como
homens de estudos, para merecer a atenção do público leitor."
Kant não era nenhum jumento, era um homem que, às vezes, demonstrava uma acuidade fora
do comum. Mas como é que ele escreve uma coisa dessas assim: dez linhas depois, diz que é
isso e dez linhas depois, diz que não é isso? E não discute o problema; quer dizer, a
contradição fica aí e das duas uma: ou você a percebe ou não a percebe. Em geral, não a
percebe. E por quê? Porque você está lendo um texto de um autor de enorme prestígio e você
não se aventurará a discutir com ele. Então, simplesmente, se percebeu a contradição, ela
ficou meio que no inconsciente e isto aqui, a contradição não percebida e não trabalhada
imediatamente, vai para o inconsciente e cria um bloqueio. Na hora em que você deixa de
perceber uma contradição, acredita em uma coisa, continua acreditando, sem perceber que
ela traz uma brutal contradição embutida, você bloqueou, de alguma maneira, o
funcionamento de uma parte da sua consciência. E essas partes podem ir se acumulando até
que tudo vire um bloqueio geral.

"Como será possível que um filósofo tão hábil e meticuloso meta os pés pelas mãos ao ponto de
afirmar como princípio universal algo que ele mesmo, linhas adiante, reconhece não ser senão
uma possibilidade acidental?"

Vocês já viram alguém discutir isso aqui a respeito de Kant? Ninguém discutiu isso aqui. Por
quê? Porque, dizem, esse é um texto menor. Veja que a maior parte das histórias das filosofias,
inclusive a de Philippe Nemo − que é magistral, dois volumes de mil e quinhentas pá ginas
cada um, são três mil páginas; é um trabalho monumental − viu Kant apenas como mais um da
corrente liberal. Sim, se você for ver só pelo conteúdo explícito das doutrinas é isto, mas
quando você vai analisar Kant mais em profundidade, parece que ele sozinho exerceu mais
influência do que o pensamento liberal inteiro. Portanto, interessa para nós conhecer os
meandros e as estruturas íntimas desse pensamento para que ao seguir essa corrente você
não se deixe atrapalhar por contradições embutidas que você, por assim dizer, reprimiu e
chutou para o inconsciente.

Veja como isso tem importância não para o estudo da filosofia, mas para a nossa vida de todos
os dias. Todas aquelas pessoas que dizem que pensam com a própria cabeça, que pensam com
seus próprios miolos, estão caindo nesse problema. Como faz para pensar com os próprios
miolos? Quem é você? É um homem de estudos, que tem acesso a todo o público? Não, você é
apenas um estudante, um funcionário, um sargento do Exército, qualquer coisa assim. E a
maior parte do seu tempo você está apenas obedecendo, sem poder questionar; as coisas que
você pode questionar são ínfimas em relação àquilo que tem de obedecer e engolir sem
questionar. Mais ainda: você questionou a possibilidade de pensar com a própria cabeça? Eu
questionei, mais de trinta, quarenta anos atrás, e vi que isso era muito difícil ou quase
impossível.

Então, na hora em que o sujeito afirma a sua independência no mesmo instante em que está
aceitando com subserviência uma norma que ele não aceitou criticamente, então já tem um
bloco, uma espécie de escotoma, quer dizer, uma mancha na sua consciência que não vai te
deixar ver uma série de coisas a respeito da sua própria situação e, portanto, daquilo que você
está estudando também. E é com isso que você vai criando vícios e deformidades mentais que,
depois de uma certa idade, não tem cura mais.

"Para complicar mais as coisas, Kant afirma que só “pensa por si mesmo” aquele que prescinde
do “guiamento de outrem”. Mas como se transmutará o cidadão comum, o funcionário, o
trabalhador, em “homem de estudos”, sem um período de aprendizado, sem deixar-se guiar por
mestres qualificados, talvez pelo próprio Kant?"
Ou seja, ninguém nasce como erudito, como um homem de estudos, e, muito menos, ninguém
nasce tendo o público leitor inteiro à sua disposição. Isso é uma coisa que tem de ser
conquistada e é difícil, e o processo pelo qual se realiza isso é o processo de aprendizado, que
é um processo de guiamento. Não tem outra maneira de fazer.

Portanto, veja que essas normas que Kant está baixando aqui são um abacaxi, um problema,
uma dificuldade, e ele não parece estar se dando conta desta dificuldade. Ele passa em cima
delas como um trator e segue adiante. Portanto, você vê que o interesse dele neste texto não
era examinar criticamente ou analiticamente coisíssima nenhuma; era proclamar valores e,
por assim dizer, criar um texto normativo, dar uma ordem: "vocês têm de fazer isto, mais isto
e mais isto...".

"Mesmo os que são homens de estudos por vocação e ofício precisam de quem os instrua,
quanto mais não precisará de instrutores e guias o cidadão comum que só fala como “homem
de estudos” fora do expediente, isto é, como amador?"

Vamos supor a hipótese: aqui você tem o sargento do Exército, ele passa o dia inteiro
obedecendo, mas aí saiu do quartel, agora está vestido de civil, não está falando como
sargento, está falando como cidadão e está se dirigindo ao público leitor, ao público ouvinte.
Mesmo para fazer isso, ele precisa de algum guiamento; quer dizer, se até um homem da
estatura de um Kant precisa de instrutores, como ele sempre os teve, como é que este sujeito
vai passar da obediência total para a independência total sem que ninguém o ajude?

"Simplesmente não é concebível que um professor, célebre pela sua capacidade didática, (...)"

como Kant indiscutivelmente o era,

"(...) ignorasse a utilidade da sua profissão ao ponto de supor que, sem guiamento nenhum,
cada homem pudesse começar magicamente a “pensar por si mesmo” pelo simples fato de o
fim do expediente o transformar de cidadão comum em homem de estudos."

Terminou expediente, eu virei agora um homem de estudos e agora eu falo com minha própria
cabeça. E se não precisa de professores, então para o que se precisa de Kant? Isso aqui são
pequenas amostras de uma paralaxe cognitiva na qual o indivíduo está analisando situações
hipotéticas sem, de maneira alguma, buscar a raiz delas na situação real na qual ele mesmo
está discursando. Se Kant perguntasse, para quem ele está falando isso: "estou falando para
todos os homens, estou falando somente para aquele homem de estudos ou estou falando
para aqueles cidadãos comuns que pretendem se transformar em homem de estudos?". Então,
Kant está discursando, por assim dizer, urbi et orbi, quer dizer, para uma platéia indefinida, e
ele mesmo fala urbi et orbi, desde um lugar indefinido e de uma situação indefinida.

"Tão ostensiva inabilidade lógica não é verossímil num filósofo treinado, muito menos num
homem de gênio como Immanuel Kant.

Só resta conjeturar que o filósofo está usando de uma linguagem dupla para transmitir alguma
idéia perigosa sob uma camuflagem de afirmativas desencontradas."

Existe toda uma corrente de estudos que começa com Leo Strauss, que investiga essa questão
da linguagem dupla na filosofia; o filósofo está dizendo uma coisa, mas no fundo quer dizer
uma outra completamente diferente. Então, é o problema do esotérico e do exotérico. [0:30]
Saiu agora um livro muito interessante chamado Filosofia nas Entrelinhas, que é uma
continuação, uma aplicação das técnicas do Leo Strauss, as quais ele usou especialmente para
os seus estudos sobre Espinoza e Maquiavel.

Não fiz nenhum estudo especializado sobre isso, apenas li um pouco do Leo Strauss e este
livro que saiu agora, Filosofia nas Entrelinhas, mas sei que o fenômeno existe. No próprio
livretinho que escrevi sobre Maquiavel, você vê que Maquiavel não está usando uma
linguagem exotérica para falar com um público maior e uma linguagem esotérica para falar
com um público de pessoas mais preparadas, aqueles que já são iniciadas, não é só isso. O
discurso de Maquiavel tem vários andares, várias camadas de significado e essas camadas
estão muito mal articuladas de modo que ele mesmo não sabe do que está falando, de tanto
tentar ser exotérico ele acabou confundindo a si mesmo em uma espécie de aprendiz de
feiticeiro. Também não conheço nenhum estudo sobre esta questão da linguagem dupla no
Kant, então estou sondando, pode ser que exista, este estudo deve existir, mas não conheço
nenhum, então estou arranhando o tema aqui corrigindo o Kant sem nenhum guiamento,
posso errar, evidentemente.

“Pequenos ilogismos quase imperceptíveis espalhados nos parágrafos iniciais de um texto,


sobretudo em uma linguagem que vem com a aparência da sensatez e da moderação, amortece
as faculdades críticas do leitor e o preparam para aceitar tranquilamente, em seguida, alguma
absurdidade maior que o escandalizaria se apresentada sem este prólogo anestésico.”

Veja, você quer dizer uma absurdidade, uma coisa chocante, você começa a colocar essas
pequenas contradições que o sujeito não vai perceber e que vão amortecer seu entendimento,
quando chegar adiante e você diz a absurdidade, ela não vai chocar tanto, é exatamente o que
Kant faz neste texto.

“Antes de exibi-la, porém, Kant aumenta um pouco a dose do anestésico. Prosseguindo sua
distinção entre o cidadão enquanto funcionário e enquanto homens de estudos, Kant
reconhece que o clérigo tem a obrigação de instruir os fiéis segundo as doutrinas da sua
religião. Mas só tem esta obrigação, prossegue ele, enquanto empregado da igreja que
pertence: “Enquanto erudito, tem a completa liberdade assim como a obrigação de repassar ao
público todos os seus pensamentos, bem examinados e bem intencionados, sobre os aspectos
errôneos desta doutrina.”.”

Ou seja, aqui eu sou um padre, um pastor e, no horário de expediente ensino para os fiéis a
minha religião, mas depois eu tiro a batina, visto o guarda-pó de erudito e digo – bom, eu acho
que aquilo tudo está errado.

“Isso cria imediatamente um problema. Um clérigo, por definição, não é um funcionário e sim
uma alma consagrada: está a serviço da sua igreja vinte e quatro horas por dia até o instante da
morte.”

A não ser que ele saia, ele pode romper com a igreja: “não acredito mais, tchau e benção.”

Não há um “horário de expediente” fora do qual esteja livre para seguir sua opinião pessoal em
vez dos ensinamentos da igreja. Justamente na sua atividade intelectual, quando fala para “o
inteiro público leitor”, é quando o pastor, o padre, o sacerdote representa a sua igreja no
sentido mais pleno e formal.”

Não faz sentido ele representar a igreja enquanto está falando para meia dúzia de fiéis
sentados no banco da igreja e depois falar para o público leitor em geral contra tudo aquilo
que ele ensinou; por isso que, justamente, quanto mais elevado, capacitado e maior o público,
mais ele tem que representar a igreja perante este público, se não é a mesma coisa que dizer
que ele só pode ser, prestem bastante atenção no que está embutido aqui, ele só pode
representar a igreja em privado, em público ele está livre desta obrigação e pronto para expor
apenas suas opiniões pessoais. Veja que, toda uma noção que hoje aparece (noção iraniana)
consiste em você poder praticar a sua religião em casa, mas não falar dela em público. Esta
noção está sendo imposta no Ocidente hoje, e qual é a origem disso? Está aqui no Kant. Ele não
diz: “você só pode praticar religião em privado”. Mas quando você analisa esse parágrafo,
fazendo a seguinte pergunta: “como seria praticar isso, como seria fazer isso que você está
dizendo?” Seria exatamente assim. Enquanto empregado da igreja eu repito a doutrina dela,
repito para os fiéis que foram lá para isto, porém, quando falo para o público maior, o público
leitor inteiro, deixo de ser representante da igreja e falo como um crítico que contesta
abertamente e livremente a doutrina da própria igreja. Então inverteu. Se dissesse: “você
enquanto padre, sacerdote, é obrigado a transmitir ao público a doutrina da sua igreja, mas se
em privado tiver alguma dúvida, pode conversar com um amigo ou com um confessor, todo
mundo tem direito de ter dúvidas”. O Kant inverte o negócio. O ensino religioso, o ensino da
doutrina religiosa só pode ser em privado, dentro da igreja na hora do expediente. Quando vai
falar ao público, para o leitor em geral, inverte o negócio e o sacerdote deixa de ser sacerdote
para ser um homem de estudos.

Então é justamente quando fala para o público inteiro, público leitor, o pastor, padre ou
sacerdote, representa sua igreja no sentido mais pleno e formal. Imagine se um Papa, por
exemplo, só pregasse a doutrina da Igreja Católica no seu círculo privado dentro da igreja e
quando ele fala na televisão para um público inteiro ele diz tudo o contrário, é uma situação
tão absurda e cômica, que parece que Kant não sabe o que está falando. Mas não, ele sabe sim,
mas ele vai preparando você para engolir uma coisa terrível que depois ele vai dizer.

“Se expusesse suas dúvidas e objeções ante um círculo privado, como quem falasse a um
confessor, aí sim teria o direito e até o dever de abrir seu coração, de expor suas dúvidas e
objeções com toda a franqueza. Mas esperar que ele faça isso “ante o público leitor inteiro” é
desejar que o sacerdote ao invés da fé, transmita dúvidas e contestações.
É impossível que Kant não percebesse, de imediato, que esta proposta tornaria inviável
qualquer pregação religiosa e equivaleria os expulsar os fiéis do templo.”

Note bem que, em um primeiro instante essa distinção dele não parece ter nada de mais. O
fato de você ser um empregado da igreja não impede que você tenha suas concepções
pessoais e que você possa expressá-la, parece uma coisa simples; pois agora vamos fazer isso
na realidade e não no mundo das palavras para ver como fica.

Mas, como, além de expressar-se em frases longas e tortuosas que parecem incompatíveis com
qualquer intuito de pregação revolucionária, Kant diz tudo naquele tom de serenidade e
ponderação que acalma toda suspeita de sentimentos ímpios, é bem provável que o leitor
comum, julgando até bem sensata a distinção entre o clérigo e o intelectual — impossível na
língua francesa onde a palavra clerc significa inseparavelmente as duas coisas —, nada visse de
maligno no que vem em seguida.

Eis o que vem em seguida:

“Mas não deveria uma sociedade de clérigos, por exemplo um sínodo eclesiástico ou um
venerável presbitério (como o chamam os holandeses) ter o direito de comprometer-se
por juramento com um certo conjunto inalterável de doutrinas, de modo a assegurar
para todos os tempos sua condição de guardião de todos os seus membros e, através
deles, de todo o povo?”
Então ele reconhece que talvez pudesse ter uma exceção ao que ele está dizendo. Então um
grupo de clérigos tem o direito de se comprometer com uma doutrina e repeti-la fielmente
para os membros da igreja e para todo o público.

“Respondo que isto é totalmente impossível.

Um contrato dessa natureza, firmado em vista de prevenir para sempre todo


esclarecimento posterior da humanidade é absolutamente inválido e nulo...”

Se um grupo de sacerdotes combinasse, fizesse um pacto: “agora nós vamos transmitir essa
doutrina sem alterá-la pelos séculos dos séculos”, esse acordo [0:40] seria inválido e nulo.

“Uma era não pode entrar numa aliança sob o juramento de colocar a era seguinte
numa posição em que lhe fosse impossível estender e corrigir os seus conhecimentos...
Isso seria um crime contra a natureza humana, cujo destino originário reside
precisamente nesse progresso.”

Nós vimos no texto anterior, onde ele diz que a escalada do ser humano em direção à perfeita
racionalidade, não só do indivíduo como da sociedade, é o plano secreto da natureza que
dirige invisivelmente toda a história humana e que esta, portanto, é a finalidade. E se não
fosse isso a história seria um absurdo, a nossa existência seria um absurdo e então nós temos
que aceitar que a natureza está nos dirigindo para uma finalidade maravilhosa que vem no fim
e que beneficiará, segundo ele, “as últimas gerações”.

Então isso seria um crime contra a natureza humana cujo destino originário reside
precisamente nesse progresso que ele descreveu no escrito anterior, Idéias para uma História
da Humanidade, sob o ponto de vista cosmopolita.

“ “As gerações seguintes tem perfeitamente o direito de impugnar este acordo como
inautorizado e criminoso.”

Para medir as consequências apocalípticas dessa proposta, basta confrontá-las com o que disse
Jesus no evangelho,

“O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão.” (Lc. 21:33).

“Não passará da lei um iota, um só acento, sem que tudo seja cumprido.” (Mt. 5:18).

Ou mais ainda, comparar com a maldição final do apocalipse de São João:

“Porque eu protesto a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro que, se alguém
lhe ajuntar alguma coisa, Deus o castigará com as pragas que estão descritas neste livro; E, se
alguém tirar alguma coisa das palavras do livro desta profecia, tirará Deus a sua parte do livro
da vida, e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro.” (Ap. 21:18,19).

Um pouco antes Kant já havia afirmado que “dogmas e fórmulas” são “a corrente e bola de
ferro” que mantém as pessoas no estado de imaturidade. Mas a afirmativa poderia soar como
mera figura de linguagem usada para designar toda sorte de restrições que se opõem à
liberdade e ao uso da razão.
Agora, porém, está claro que ele fala do dogma cristão e da função do clero como seu
mantenedor e transmissor. A Enciclopedia Cattolica2 ensina que “a religião cristã é um
παραθηχη3, um depósito (I Tim 6:20; II Tim 1:13 ss.), expressão jurídica usada para designar
uma coisa que o possuidor legítimo entrega em custódia a um outro com seu procurador com o
propósito de que a conserve e a restitua intacta”.

Daí a noção mesma do dogma: aquilo que é afirmado, decidido, postulado de uma vez para
sempre. Embora a palavra no seu sentido atual só tenha se consolidado no uso geral a partir do
século XVIII, a noção já estava fixada desde os tempos bíblicos: “A idéia geral assim expressa é
de que a religião cristã é um complexo de fatos e doutrinas absolutamente objetivo, não
inventado por aqueles que o pregam, mas simplesmente dado por Deus por meio de Jesus
Cristo, de tal modo que os propagadores do evangelho não têm outra tarefa se não recebê-lo,
conservá-lo intacto e transmiti-lo sem nada modificar”4.”

Portanto esse pacto, esse juramento, esse compromisso que alude Kant não é uma hipótese,
ele aconteceu realmente, isto é a igreja, a igreja é este pacto. Nós recebemos aqui o depósito
da fé e nós vamos transmiti-lo geração após geração sem modificar absolutamente nada.

“Quanto à interpretação da mensagem recebida, pode haver discussões, e a igreja fala mesmo
de uma evolução do dogma.”

Mas qual é a noção de evolução do dogma?

“Mas cada capítulo da discussão encerra-se com uma decisão papal que se incorpora de uma
vez para sempre na doutrina e não tem mais como ser modificada.”

A discussão pode prosseguir por dois ou três séculos, chega uma hora que o Papa diz: “bom,
agora vou dar a conclusão da discussão, e é isso aqui”. Aquilo não volta mais a ser discutido.

“A evolução acrescenta esclarecimentos, precisões e conseqüências, mas não volta atrás no que
foi dito, não repõe em discussão o que foi decidido: o dogma, por assim dizer, cresce, mas não
se modifica.

A função do clero católico é portanto precisamente a de “comprometer-se por juramento com


um certo conjunto inalterável de doutrinas, de modo a assegurar para todos os tempos sua
condição de guardião de todos os seus membros e, através deles, de todo o povo”. Kant dixit.”

O que ele define como acordo criminoso era exatamente aquilo que define a função do clero.

“E é precisamente esse compromisso que Kant declara impossível, inválido e criminoso.”

Eu acho que nunca ninguém escreveu alguma coisa pior contra a Igreja Católica do que isso.
Você diz: “olha, Jesus Cristo é um criminoso, comprometeu as pessoas com um compromisso
eterno de repetir a mesma coisa, e isso tem que acabar, isso é inválido e um crime”, ninguém
disse isto antes. É curioso que mesmo os críticos do Kant dizem: “não, mas ele era um homem
cristão, ele acreditava em Deus etc.”. De onde vem esse estado de anestesia com o qual as
pessoas leem o Kant? É simples, elas prestaram muita atenção nas grandes obras do Kant,
Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática, Crítica do Juízo etc., e leram isso aqui como um
mero enfeite.

2 Firenze, Sansoni, 1950, vol. IV, pp. 1794 ss. Uso esta edição por ter sido a última autorizada pelo Papa Pio XII e
seguramente a melhor de todas.
3 Parathékhe.
4 Enciclopedia Cattolica, loc. cit.
Não vejo a mínima possibilidade de admitir que o filósofo, ao escrever isso, não tivesse
consciência de que estava propondo a extinção da Igreja Católica — bem como de todas as
igrejas cristãs que seguissem orientação semelhante — e a criminalização não só de todos os
seus membros consagrados, mas também e principalmente d’Aquele que, ao dizer “minhas
palavras não passarão”, havia exigido deles esse “compromisso criminoso”.

Foi próprio Jesus que mandou eles repetirem as palavras tal como ele tinha dito.

“Se ainda pudesse restar alguma dúvida de que este era o principal objetivo do iluminismo tal
como Kant o compreendia, (...)”

Muitas pessoas falam: “não, o iluminismo tem muitas outras coisas, ele é a democracia
parlamentar, ele é a ciência etc., não é necessário nenhum ataque à religião”, ou seja, pegar as
idéias do iluminismo sobre a religião e colocá-las em um patamar secundário para que
ninguém preste muita atenção, isto é a orientação praticamente geral.

“(...) o próprio Kant se encarrega de eliminá-la ao afirmar, logo mais adiante, que “os assuntos
de religião são o ponto focal do iluminismo”.”

Missão número um do iluminismo, exterminar a religião cristã. As outras missões, se der;


democracia parlamentar, pode ser, liberdade civil, pode ser, mas este ponto é o ponto focal.

“Será exagero imaginar que o homenzinho gentil e bondoso de Königsberg teve alguma
responsabilidade ao menos indireta nas matanças de cristãos que se tornaram endêmicas na
França, na Espanha, na Itália, no México — e hoje em dia um pouco por toda a parte?”

Se você diz isso, que Kant começou tudo isso, as pessoas ficam chocadíssimas. Escrevi um
artigo no qual no final eu fazia uma alusão ao Kant e dizia: “ele é o pai de toda porcaria
moderna”. Vocês precisam ver a indignação das pessoas. Kant tem mais fãs que a Dilma, são
mais e mais devotos do que a Dilma, porque muitos veem nele a única alternativa ao
marxismo e ao socialismo, ou seja, o mundo se divide em Kant e Marx: ou você vai para um
lado ou vai para outro.

“Será possível admitir que ele fosse ingênuo ao ponto de imaginar que a erradicação mundial
do “compromisso criminoso” pudesse se realizar sem violência e derramamento de sangue? Se
ele o imaginasse, não teria ao menos aplaudido a Revolução Francesa.”

Ele viu na revolução francesa a realização de algo que ele esperava que acontecesse.

“Mas o que singulariza o pensamento de Kant neste ponto não é somente a condenação radical
do cristianismo histórico, e sim a modalidade muito peculiar do raciocínio lógico que ele
emprega para chegar a essa proposta. Ele começa por imaginar uma hipotética sociedade
futura na qual uma ordem estatal perfeita tenha desenvolvido em todos os homens a
capacidade racional de “pensar por si mesmo sem o guiamento de outrem; e, embora
reconhecendo que este estado é difícil e talvez até impossível de alcançar, ele diz que esforçar-
se para chegar a tanto é obrigação estrita de todos os [0:50] homens, (...)”

Então Kant diz que todos os homens tem a obrigação de pensar por si mesmos sem ser
guiados por outros. Já que não dá para fazer isso, então nós temos de nos esforçar para chegar
a ordem estatal perfeita onde todos poderão fazer isso. Nesta ordem estatal perfeita, vigorará
a mesma distinção que ele já aplica à situação atual onde diz que, por um lado você vai ter a
liberdade total e por outro lado você vai ter um poder invencível e incontestável que controla
tudo. Então é a mesma situação, enquanto estou trabalhando para um poder invencível e
incontestável, obedeço e digo amém; fora do horário de expediente eu como um intelectual
me dirijo ao público todo e digo o bem entendo.

“(...) de vez que a tendência em direção a esta ordem social perfeita não é uma mera proposta
social entre outras, mas o desígnio secreto universal da natureza que ordena levar os homens e
as nações até o seu mais elevado patamar de capacidade racional. Dito isto, ele toma esse
estado hipotético como norma e padrão para o julgamento presente de toda a história passada,
daí concluindo, evidentemente, que tudo que se opõe a tão elevado ideal é “invalido” e
“criminoso”, a começar pelos dogmas da Igreja.”

Embora subscrevendo, em outros escritos da mesma época, o preceito de que a experiência é,


em última análise, a única fonte válida de todo conhecimento possível, Kant não hesita em
afastar-se desse princípio ao ponto de consagrar como juiz não só dos conhecimentos, mas de
todas as condutas humanas, uma hipótese remota que ele mesmo admite ser altamente
problemática e talvez irrealizável.

Como não reconhecer aí a inversão do tempo, que, em outros trabalhos, diagnostiquei como um
dos elementos estruturais permanentes da mentalidade revolucionária?”

É claro que o pensamento de Kant se apresente claramente como uma estrutura determinada
pela inversão do tempo e com uma proposta muito mais ousada do que as pessoas poderiam
imaginar. O mais interessante é que, como será demonstrado em seguida, tudo que ele faz, na
gnosiologia, de metafísica, de ética, está condicionado a isto aqui. Tudo isso é um plano de
uma mutação civilizacional total na qual a antiga religião dogmática será eliminada e
substituída por uma nova religião, criada por quem? Immanuel Kant!

Por incrível que pareça, esta nova religião de Immanuel Kant, está cheia de adeptos na Igreja
Católica, no meio protestante, por tudo quanto é lado. Será na Crítica da Razão Prática que ele
fundará os preceitos desta nova religião; neste livro e na Metafísica da Moral. Mas para chegar
lá nós precisamos examinar mais alguns destes escritos políticos e depois examinar a Crítica
da Razão Pura e outros livros à luz do que nós descobrimos aqui. Eu já li muita coisa sobre
Kant, muita coisa boa, muita coisa certa, porém, todo mundo está se perdendo em detalhes
sem pegar qual é a estrutura inteira do negócio tal como o próprio Kant a via. Não olhando
aquilo pela escala de interesses do ensino da filosofia ou pela escala de interesses do
historiador da filosofia que procura ver, por exemplo, a evolução do pensamento de um
filósofo para outro etc. Entre os livros do Kant, uns podem ser mais importantes do que outros
para nós, mas quem disse que um filósofo escreve mais sobre aquilo que lhe parece mais
importante? As coisas simplesmente não são assim. Eu acredito que não escrevi nenhum livro
sobre todas as coisas que me parecem mais importante, vou escrevendo livros à medida que
vão surgindo oportunidades e dá para explorar este assunto ou aquele assunto, a estrutura de
uma obra escrita é uma coisa a estrutura do pensamento do sujeito é outra. Não se pode
esquecer que o indivíduo é um ser humano real, ele não é um tratado de filosofia, em alguma
coisa ele acredita e alguma coisa ele quer.

É preciso restaurar esta perspectiva biográfica verdadeira para saber como é que o sujeito lia
seus próprios escritos, meu Deus do céu. Se não estarei projetando sobre ele uma escala de
interesses que não é a dele, mas que é das épocas seguintes. Foi justamente isto que, quando
escrevi o Maquiavel, eu vi que Sir Isaiah Berlin havia escrito um livro muito bom sobre
Maquiavel, mas era o seguinte: “o que é o Maquiavel é para nós”, “o que Maquiavel tem
significado para nós”, isso ele já fez e agora vou fazer outra coisa: “o que significa Maquiavel
para Maquiavel”, como ele se via. Essa noção, que eu acho importantíssima, do horizonte de
consciência: o que o sujeito está enxergando, qual é a hierarquia de valores e de importância
que ele vê nas coisas e qual é o limite, a fronteira para onde o qual ele não enxerga mais. Isso
seria o verdadeiro perfil intelectual de Maquiavel, Kant, Descartes etc.

Está é uma perspectiva na qual a análise dos textos e a perspectiva biográfica se articulam de
uma maneira um pouco diferente do usual. Existem várias hipóteses nesse aspecto. Nietzsche,
por exemplo, achava que tudo é biografia. Uma filosofia não passa de uma série de
acontecimentos que sucederam na mente de um sujeito e que expressam a forma da sua
personalidade, a forma da sua mente, Nietzsche achava isso e tem gente que acha até hoje.
Outros dizem: “não, a biografia não interessa, interessa só a estrutura dos textos etc.: a
filosofia é concebida como uma estrutura objetiva independente do seu criador”, o que é
absolutamente falso.

Isto vale para obras de arte. A partir da hora em que Michelangelo completou a Capela Sistina,
não interessa mais saber quem foi Michelangelo porque tal obra está ali completa e ela não
depende de outra obra para ser compreendida. Porém, um livro de filosofia sempre depende
de outro escrito e, outro escrito, porque a filosofia não consiste na produção de obra, ela é
uma atividade de reflexão que continua necessariamente e que sempre pede novos
esclarecimentos. Então esses esclarecimentos podem ser dados em uma edição subsequente,
pode ser dado em outro livro, pode ser em uma conversação pessoal, em uma aula ou pode ter
ficado guardado na cabeça do sujeito e você tem que adivinhar. Esta idéia de que da estrutura
do texto você apreende a estrutura do pensamento é uma projeção sobre a filosofia de critério
interpretativo que vale muito para a história da literatura, história da pintura, história da
música etc., onde a noção fundamental é uma noção de obra. Você pode conceber um filósofo
sem obra? É claro que pode, o primeiro deles, Sócrates, foi assim. Não tem obra de Sócrates.
Em outros casos a obra é toda picotada, como Nietzsche. Nietzsche não tem obra, mas sim
uma série de notas que ele foi soltando para cá e para lá. O que são os pensamentos de Pascal,
é uma série de papeizinhos que ele grudava, tinham uma série de alfinetes na mesa que ele
grudava e de vez em quando ele mudava a ordem, até hoje ninguém se sabe qual é a ordem,
não se sabe qual é a estrutura do pensamento de Pascal, existem duas ordenações que se
tornaram clássicas, as duas completamente diferente.

Quando você pega, por exemplo, o que é a obra de Edmund Husserl. Nós conhecemos 20% da
obra de Edmund Husserl, o resto continua taquigrafado, guardado nas gavetas, ninguém
descobriu, ninguém publicou até agora; e nem por isso você deixa de conhecer a filosofia de
Edmund Husserl, você a conhece, só desconhece quais os acréscimos e aperfeiçoamento que
ele pode ter feito em outros lugares, mas essa busca permanente do acréscimo, do
aperfeiçoamento, do esclarecimento, faz parte da filosofia. Pode-se dizer que o filósofo pode
não tem uma filosofia completa até o último dia da sua vida, o dia que ele morreu: “cadê sua
filosofia?”, “ah, não completei ainda”. Isto é perfeitamente possível. Agora o que é um pintor
que nunca acaba um quadro, um compositor que nunca termina uma música, é inconcebível;
um arquiteto que nunca termina um edifício. Portanto, você vê que a noção de obra é feita [1:00]
especialmente para os domínios das artes e não se aplica exatamente a filosofia. Você sempre
tem uma tensão entre a documentação escrita e a biografia do filósofo — essa coisa nunca se
resolve inteiramente.

E foi pensando nisso que coloquei esse problema: algo nós temos de saber sobre como o
filósofo se interpretava a si mesmo e como ele se entendia. Ele certamente não se entendia só
por aquilo que ele escreveu. Isso é impossível. Nenhum filósofo se resume àquilo que ele
escreveu, muito menos se resume a isso a seus próprios olhos: ele tem outras idéias, ele
continua pensando, pensa até quando está dormindo. Nietzsche que sofria de sífilis, tinha
aquelas dores de cabeça horríveis, tomava mercúrio, dormia, às vezes acordava com uma
idéia, ia lá correndo, escrevia rapidinho, voltava a dormir, nem lembrava do que tinha escrito.
Este problema da articulação da estrutura de uma filosofia com a estrutura da obra escrita e
com a biografia, ainda é um abacaxi. E esses livros que estou fazendo sobre Descartes, sobre
Maquiavel e agora sobre Kant, todos eles exploram essa tensão em busca da resposta: o que
ele pensava do que ele estava fazendo? O que ele queria? Aonde ele queria chegar? E teve um
objetivo constante ou se atrapalhou no meio, como Maquiavel? Maquiavel evidentemente se
atrapalha muitas vezes. Ele pensa que é uma coisa, depois muda de idéia. Nietzsche também.
Mas outros não. Kant tem um objetivo constante, Descartes tem um objetivo constante e assim
por diante. Espero que tenha ficado claro até aqui, mas ainda tem muito mais abacaxi para
frente.

Há várias perguntas aqui que são ainda sobre Kant, mas são sobre tópicos que serão
estudados nas próximas aulas e que não gostaria de mexer agora de maneira um pouco
amadorística. Eu queria fazer tudo com base no exame dos textos para que não sobre
nenhuma dúvida.

Aluno: Existe uma relação entre a influência de Kant sobre o construtivismo?

Olavo: Sem dúvida. Só que é uma influência indireta e precisa ser descrita de maneira correta
para que não façamos saltos interpretativos, quer dizer, colocar o construtivismo como filhote
direto de Kant quando não é absolutamente, é um filhote indireto.

Aluno: Estou buscando financiamento de empresários para o seu curso de formação de líderes.
Se houver tempo na aula, o senhor indica as informações...

Olavo: A coisa é muito simples. Um grupo de alunos que venha para cá, que quer estudar esse
negócio de liderança política, essa coisa toda, vai ter de ficar aqui um tempo, e isso custa
muito caro. Eu não posso custear, eu mesmo, dez, quinze pessoas, não tenho recurso para isso.
Eles talvez também não tenham – senão vai ser um curso para pessoas muito ricas que
possam, durante três ou seis meses, financiar-se a si mesmo. Se aparecer algum empresário
capaz de pagar a viagem e a estadia deles, eu agradeço. Eu mesmo não vou cobrar nada para
esse curso, mas também não posso pagar tudo. É só isso o negócio. Agora, eu estou falando
isso há mais de um ano e não apareceu nenhuma boa alma ainda para fazer esse negócio. Note
bem, não estamos pedindo nada, isso aí é obrigação estrita, tem de exigir: tem de mandar dez
ou quinze pessoas para lá antes que seja tarde. E vai levar tempo para preparar essas pessoas,
também não é do nada que sai.

Aluno: A teoria kantiana do Estado, como também a teoria estatista hegeliana, se eu entendi
corretamente, desubstancializam a liberdade espiritual da pessoa humana individual para
colocá-la em função da pessoa coletiva.

Olavo: Sim, Kant faz isso. Mas o principal problema com Kant, nesses textos que lemos, é uma
confusão que, creio, é proposital entre a liberdade no sentido metafisico e a liberdade no
sentido civil. Ele fala que precisamos segurar a liberdade. Quando você pergunta que é a
liberdade, ele diz que liberdade é o sujeito transcender as suas limitações instintivas, ele ser
capaz de contrariar o seu instinto. Então é a liberdade interior, de tipo metafísico, a liberdade
de decidir. Não tem nada a ver com a liberdade externa. Com relação à liberdade externa, ele
diz que o Estado tem de assegurar a liberdade de todos, mas é a liberdade de transcender os
seus instintos, e que, por outro lado, tudo isso terá de ser controlado por um poder
irresistível. Eu acho um pouco ingênuo imaginar que Kant está discursando no mesmo sentido
dos liberais gerais. Ele usa um vocabulário que parece o deles, mas o que ele está querendo
dizer é uma coisa muito diferente. Na verdade, ele está menos interessado na organização do
Estado do que, como ele mesmo declarou, no aspecto religioso. Ele quer fundar uma nova
religião, nada menos do que isso.

Aluno: Umas influências maléficas do pensamento de Kant...

Olavo: As influências de Kant são mais para adiante ainda. Primeiro examinar essas idéias
políticos e civilizacionais, depois a obra filosófica, mais técnica, e ver com uma coisa se
articula com a outra, e daí, armados disso, vamos entender todo o mistério da influência
kantiana. Mas de certo modo ela está presente em tudo. Não vou ler a pergunta inteira, mas
vou responder sinteticamente.

Kant faz todo o conhecimento humano depender de duas coisas: a experiência, mas a
experiência somente das aparências fenomênicas, e as categorias da razão, que são as mesmas
em todos os seres humanos. Ele diz que o mundo objetivo existe, que o mundo externo existe,
até certo ponto ele pode ser conhecido, porém o conhecimento que dele obtemos não possui
propriamente veracidade, e sim validade pelo fato de ser subscrito por toda a espécie
humana, já que todos têm as mesmas categorias de pensamento. A categoria central do
pensamento de Kant, neste aspecto, é a categoria de comunidade humana. É a comunidade
humana que valida todo o conhecimento e é o juiz supremo de todo o conhecimento. Para isso,
ele precisará introduzir ali um erro, na verdade.

Para a filosofia antiga e medieval, os objetos, os seres em si mesmos, têm uma forma
substancial que corresponde neles ao seu aspecto inteligível. Então a coisa tem um aspecto
sensível que revela um aspecto inteligível. No ato de apreensão, não podemos perceber as
coisas só com os sentidos nem só com a inteligência, mas as duas operam de uma maneira
articulada e muito complexa, na qual a inteligência, a partir das imagens dos entes percebidos
pelos sentidos, puxa a sua forma substancial. Este é o conteúdo [1:10] inteligível, por assim
dizer o conteúdo cognoscitivo ou conteúdo intelectual que está em todos os objetos. Nesse
sentido, eu dou sempre este exemplo: se você pegar uma biblioteca de mineralogia, você tem
uma imensidão de conhecimentos dos minerais lá; mas se você pegar todos os minerais do
planeta Terra e dos outros planetas, você tem um depósito de conhecimento muito maior, que
está num estado um pouco mais primitivo, mas que pode ser puxado de lá de dentro.

Kant diz que isso não existe de maneira alguma: nenhum objeto tem nenhum conteúdo
cognoscitivo, o objeto é apenas dado aos sentidos. Isso é uma impossibilidade porque, se você
perceber a coisa só pelos sentidos, não dá para fazer. Onde termina os sentidos e onde começa
a inteligência? Este é outro problema também. Eu não sei resolver e Kant também não. Já que
você apreende as coisas só pelos sentidos e as categorias da razão, que são as mesmas, não
tem nada a ver com aquilo que você está apreendendo, então surge para ele o problema: como
a razão se conecta com os seres percebidos? Ele vai dizer que isso é um trabalho da
imaginação. De certo modo, ele está certo, mas ele vê a imaginação como uma cola que se
interpõe entre duas coisas heterogêneas. Aristóteles via a imaginação como uma das etapas
do trabalho da apreensão dos seres. Quer dizer, a imaginação está articulada com os sentidos
e com a razão desde o início.

Agora, vamos falar o português claro: Kant não conhecia Aristóteles. Ele conhecia muito mal, e
conhecia muito todo o pensamento antigo. Tanto que, quando ele vai negar a existência da
substância – não existe substância nenhuma, só existe o fenômeno, para trás dele deve existir
um númeno incognoscível –, ele a define no sentido que Spinoza defendia. Spinoza coloca que
“substância é aquilo que existe por si independentemente de qualquer coisa”. Se Aristóteles
lesse isso, diria: “Então só Deus é substância, o resto não é”. A noção aristotélica de substância
não é uma coisa totalmente independente do resto, ao contrário: a dependência da substância
em relação às outras substâncias é dada pela sua simples condição existencial, ou seja, para
que uma coisa exista, ela precisa de outras. A essência, portanto, é algo que se apresenta não
como uma coisa dada de uma vez para sempre, mas como um conjunto de possibilidades que
se esforça para se realizar. A essência em Aristóteles é como se fosse um algoritmo: o conjunto
de transformações que uma coisa pode sofrer. Por exemplo, um gato pode crescer e virar um
gatinho, ele pode morrer no meio do caminho, ele pode virar uma cuíca, mas ele não pode
fazer um curso de grego e falar grego; e Aristóteles, por sua vez, não pode virar cuíca. A
essência de uma substância é o conjunto das suas possibilidades, das quais algumas de
realizam e outras não. É uma coisa muito mais complexa, mas Kant nunca soube disso. Ele está
discutindo na realidade com o racionalismo clássico, com Spinoza, com Leibniz etc.,
acreditando que está discutindo com toda a tradição anterior. A substância, tal como Spinoza
a definiu, não existe absolutamente. Então Kant tem razão em dizer que ela não existe, já que
substância não é isso que ele afirma. Então aí é um conjunto de equívocos medonho que
aparece nessa época.

Até a semana que vem, muito obrigado.

Transcrição: Tamas Souza, Samuel Gouvêa Pereira e Jussara Reis de Abreu


Revisão: Éricson Rojahn

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