Consumo, Representação e Agência Do Feminino No Cinema Comercial

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CONSUMO, REPRESENTAÇÃO E AGÊNCIA DO FEMININO NO CINEMA

COMERCIAL

Camila Horbatiuk Dutra1

Resumo: Este artigo se propõe a realizar uma reflexão a respeito da forma como a mulher é
representada em filmes do circuito comercial e os problemas decorrentes de certas tipificações e
clichês que são costumeiros nesse meio. Por sua produção e consumo em grande escala, o cinema –
assim como outras mídias de comunicação em massa, como seriados televisivos, músicas e seus
videoclipes, livros e revistas – é responsável pela reprodução e criação de imagens, pressupostos e
expectativas a respeito da realidade e indivíduos que retrata. Isso significa que a forma como as
mulheres aparecem (quando aparecem) nos filmes repercute na maneira na qual são vistas por quem
os assiste, e consequentemente nas suas perspectivas e relações com as mulheres com as quais
interagem. Essas são mídias de produção e reprodução de informação, significado e mesmo
experiência, e é nesse sentido que uma análise do que se apresenta enquanto “mulher” e “feminino”
no universo cinematográfico se faz necessária. Dividido em três tópicos – Consumo e o corpo da
mulher, Personagens femininas e (a ausência de) agência e Representatividade do feminino no
cinema comercial –, o artigo se desenvolve a partir de um referencial teórico da Antropologia,
contando com autores como Everardo Rocha e Sherry Ortner, entre outros.
Palavras-chave: Cinema, gênero, consumo, agência, representatividade.

Introdução
Desde que surgiu, em finais do séc. XIX, o cinema, como arte e veículo de comunicação em
massa, tem somente se expandido, alcançado audiências cada vez maiores e multiplicado propósitos
e formatos utilizados. Ele também se tornou uma ferramenta importante na divulgação da
diversidade de conhecimentos e modos de vida existente, como acontece com produções feitas por
populações não hegemônicas – um bom exemplo sendo o projeto “Vídeo nas Aldeias”, idealizado
por Vincent Carelli e levado adiante por roteiristas, diretores, atores e produtores indígenas das mais
diversas etnias.
Cada filme realizado tem suas particularidades – sua temática, forma de abordagem,
nacionalidade, até especificidades como roteirista, diretor/a e atores/atrizes têm seus diferenciais
que fazem um filme ser muito diferente dos outros. Apesar disso, há que se reconhecer que existe
uma certa padronização no estilo e formato de filmes que compõem o ranking de mais consumidos
no mundo. A indústria cinematográfica estadunidense tem sido a de maior alcance e peso

1
Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2016) e atualmente finalizando o Mestrado
em Antropologia Social na mesma instituição (UFSC), em Florianópolis, Brasil.

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internacionalmente há décadas2, e seu predomínio não é diferente no Brasil. Seja por salas de
cinema tradicionais, canais de televisão (gratuitos ou pagos), serviços de streaming ou pirataria, o
cinema comercial estadunidense marca sua indisputável hegemonia, e isso significa que certas
narrativas provenientes desses filmes, mais do que daqueles de outros países ou até mesmo dos
nacionais, exercem forte influência no repertório imaginativo do público brasileiro.
Considerando a preponderância de filmes do circuito comercial dos Estados Unidos nas
audiências do mundo todo e, em especial, no Brasil, e levando em conta o peso dessa indústria na
construção de representações coletivas sobre as realidades e indivíduos que nos cercam, vou
explorar neste breve artigo a importância de olharmos para a forma como estão sendo arquitetados
os imaginários referente às mulheres através dessa mídia. Faço a ressalva de que não se trata, aqui,
de ignorar as questões envolvendo a representação de personagens masculinos no cinema – que não
são, obviamente, menos importantes ou problemáticas que as que versam de sua contrapartida –,
mas de evidenciar demandas de um gênero numericamente menos representado e cujos efeitos de
tal representação sofre com mais intensidade.
Este artigo se propõe, assim, a realizar uma reflexão a respeito da forma como a mulher é
representada em filmes do circuito comercial e os problemas decorrentes de certas tipificações e
clichês que são costumeiros nesse meio. Por sua produção e consumo em grande escala, o cinema –
assim como outras mídias de comunicação em massa, como seriados televisivos, músicas e seus
videoclipes, livros e revistas – é responsável pela reprodução e criação de imagens, pressupostos e
expectativas a respeito da realidade e indivíduos que retrata. Isso significa que a forma como as
mulheres aparecem (quando aparecem) nos filmes repercute na maneira na qual são vistas por quem
os assiste, e consequentemente nas suas perspectivas e relações com as mulheres com as quais
interagem. Essas são mídias de produção e reprodução de informação, significado e mesmo
experiência, e é nesse sentido que uma análise do que se apresenta enquanto “mulher” e “feminino”
no universo cinematográfico se faz necessária. Dividido em três tópicos – Consumo e o corpo da
mulher, Personagens femininas e (a ausência de) agência e Representatividade do feminino no
cinema comercial –, o artigo se desenvolve a partir de um referencial teórico da Antropologia,
contando com autores como Everardo Rocha e Sherry Ortner, entre outros.

Consumo e o corpo da mulher

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RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004 Liberdade Cultural num Mundo Diversificado.

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Em um livro que reúne artigos sobre publicidade sob o olhar da Antropologia, Everardo
Rocha apresenta e discute anúncios publicitários e suas relações de produção e consumo com a
sociedade de onde provém3. Há que se reconhecer, é claro, que tais anúncios não consistem em
filmes do circuito comercial – o foco, afinal, deste artigo. Dentre as diferenças mais evidentes estão
o propósito explicitamente comercial da publicidade, que faz a ponte entre produção e consumo de
bens, e o propósito primário do cinema, que é o entretenimento. Igualmente, também ressalto que o
próprio universo (mecanismos, ferramentas e lógica) da comunicação em massa mudou
significativamente da época em que foram feitos os anúncios estudados por Rocha e o momento
atual.
Apresentadas tais ressalvas, argumento que, por serem produções da indústria cultural e se
caracterizarem enquanto mídias de comunicação em massa, anúncios publicitários e filmes do
circuito comercial têm muito em comum, de forma que é possível substituir o primeiro termo pelo
segundo em várias passagens do livro de Rocha sem prejuízos na compreensão e interpretação do
texto, especialmente se considerarmos que o importante para esta discussão não é o formato da
mídia, e sim sua relação com o imaginário coletivo de onde e para o qual é produzida.
A indústria cultural coloca a sociedade que a produz diante de um amplo
repertório de ideias, emoções, sensações, escolhas, imposições e práticas. Um
complexo universo ideológico é composto pelas representações dessa sociedade,
que são ali elaboradas, construídas, repetidas, transformadas pela veiculação
rotineira nos textos e imagens de anúncios publicitários, jornais, novelas, revistas,
noticiários, filmes, etc. (ROCHA, 2006: 42)

Essa é a premissa na qual se baseia este artigo: existe, entre a indústria cultural – e aqui podemos
incluir também (mas não exclusivamente) músicas, programas de televisão, jornais, revistas e demais
produções artísticas – e sua sociedade de origem uma espécie de polinização recíproca, em que a primeira
é produzida pela segunda, ao mesmo tempo em que reproduz e cria certas imagens e concepções sobre
ela. Ou seja, tanto a indústria cultural quanto a sociedade criam e são criadas uma pela outra, como as duas
faces de uma fita de Möbius, fomentando uma relação simbiótica cujas implicações sentimos no nosso
cotidiano, ao usar informações provenientes de diferentes mídias para apreciar e julgar pessoas e situações
com que nos deparamos.

Há um artigo em particular que chama atenção nesta obra de Everardo Rocha, e sobre o qual vou
elaborar aqui: “A mulher, o corpo e o silêncio: identidade feminina na publicidade”. Neste capítulo, o autor
analisa anúncios de produtos das classes “cosméticos e toilette” e “vestuário e têxteis” publicados nas

3
“Representações do consumo: Estudos sobre a narrativa publicitária” Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Mauad, 2006

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revistas Veja, Nova, Cláudia, IstoÉ e Playboy durante o segundo semestre de 1980 para discutir a
representação feminina nesta mídia, chegando à conclusão de que existem três principais características
presentes nas mulheres retratadas: a demarcação de individualidade; a fragmentação do corpo; e o
silêncio.

Afirmar a individualidade da mulher na publicidade se trata mais de uma estratégia de venda do


que necessariamente uma problemática específica do gênero feminino, pois o consumidor deve se
identificar com a imagem que vê para considerar que aquele produto pode ser de seu interesse. A questão
se torna de gênero quando se percebe que tais propagandas associam a individualidade ao corpo da
mulher, ou ainda mais explicitamente, com partes desse corpo. O indivíduo-mulher da publicidade,
conforme Rocha pôde averiguar em seu estudo, é fortemente marcado por uma supervalorização do seu
corpo, como se não apenas essa fosse uma característica de sua individualidade, mas seu principal atributo:

Nesse plano, a mulher indivíduo vira corpo e o que entra em jogo é a sua posse,
uso, beleza, tratamento e realce, pois o corpo é a propriedade, bem e valor
fundamental – no limite exclusivo – dessa individualidade. O corpo como
propriedade, pertencimento e posse, um território de ação feminina, fica
estabelecido com muita nitidez em diversos anúncios. (2006: 55)

Não é preciso procurar muito para perceber que essa lógica extrapola os limites cronológicos dessa
pesquisa e se faz presente até os dias de hoje – as propagandas de marcas de cerveja brasileiras são
notórias pela objetificação do corpo feminino, mas não são as únicas. O corpo da mulher – e mesmo por
vezes, como Rocha explica, apenas parte dele4 – aparece como “recompensa” ao uso de desodorantes,
roupas ou perfumes masculinos, é chamariz para eventos culturais como o Carnaval e entretenimento de
programas de auditório.

No cinema, a “mulher-troféu” – uma derivação da “donzela em perigo” – é uma das versões mais
conhecidas dessa objetificação5. Ela é a personagem – sempre jovem, magra, de corpo curvilíneo e na
maioria das vezes branca – que o protagonista salva e/ou conquista, normalmente no final do filme, como
se fosse o prêmio por algum comportamento heroico. São as princesas a serem resgatadas ou mulheres a
serem protegidas que sustentam a lógica por trás da noção atual de “friend zone”, que alega que, por
ajudarem (ou simplesmente mostrarem respeito) alguma mulher, os homens têm direito a alguma
retribuição, normalmente em forma de relações românticas ou sexuais. Quando não recebem tal
retribuição, e são vistos como “apenas um amigo” pela mulher, tal comportamento é entendido como uma

4
“Esse corpo, que pode se dissolver em diversos fragmentos, é o principal poder desse indivíduo mulher. Através dele,
e quase que exclusivamente pelo seu uso, a mulher se faz ousada, moderna, sedutora, assumida, etc.” (ROCHA, 2006:
62)
5
http://nodeoito.com/mulher-trofeu-do-heroi-na-cultura-pop/

4
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depreciação e até mesmo insulto pelo homem em questão e seus pares. Vemos a “mulher-troféu” em
produções como “Shrek”, “Homem-Aranha”, “Transformers”, “Homem-de-Fero”, e o filme que popularizou
a noção de “friend zone” foi “Apenas amigos”.

A objetificação da mulher pela mídia é o resultado de um olhar masculino e heteronormativo – ou


seja, mesmo quando o público-alvo não é explicitamente o gênero masculino, as imagens são feitas para
apelar prioritariamente a homens heterosexuais –, o que, por sua vez, é uma implicação da falta de
mulheres por trás da produção audiovisual e de mídias. Um estudo da New York Film Academy fez uma
análise dos 500 filmes de Hollywood de maior sucesso entre 2007 e 2012 e demonstrou como a
desigualdade de gênero é latente em muitos aspectos dessa indústria6. Apesar de compormos metade dos
consumidores de cinema, constatou-se uma média de 2,5 atores para cada atriz nas telas, sendo que das
personagens femininas retratadas nesses filmes, quase 30% fazia uso de roupas sensuais (em oposição a
7% dos personagens masculinos) e 26,2% ficavam parcialmente nuas (a porcentagem cai para 9,4% quando
se trata dos homens em cena). O estudo também comprova um aumento significativo na quantidade de
personagens femininas em filmes cuja direção foi feita por uma mulher (10,6% a mais) e quando há
roteiristas mulheres envolvidas no projeto (8.7%). Se voltamos nosso olhar para o Brasil, podemos perceber
facilmente alguns dos efeitos desse tipo de representação; o Instituto Geena Davis fez uma pesquisa com
mulheres brasileiras sobre programas televisivos e filmes e chegaram a esses números7: 73% percebe a
imagem da brasileira nessas mídias como hipersexualizada, 25% afirma que histórias de mulheres fortes as
encorajou a sair de uma relação violenta, e 51% acredita que essas mídias reforçam a naturalização do
assédio às mulheres.

Ter mulheres nos bastidores da indústria cinematográfica, redigindo, produzindo e dirigindo filmes
não é apenas uma questão de representatividade numérica – ter mais mulheres nos filmes –, mas
principalmente de representatividade da diversidade de olhares, características e vivências que compõem
as experiências de ser mulher nos dias atuais. Quanto mais mulheres tivermos escrevendo e dando vida a
personagens e enredos, maior a gama de histórias podemos contar, mais mulheres se verão representadas
com densidade e complexidade. É também uma questão de criar novas referências ao imaginário coletivo
sobre o que é ser mulher, e como agimos e somos tratadas, e o que podemos fazer.

Personagens femininas e a (ausência de) agência

6
http://www.nyfa.edu/film-school-blog/gender-inequality-in-film/
7
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1747417-audiovisual-do-brasil-e-sexista-diz-pesquisa-de-ong-de-
geena-davis.shtml

5
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Quando tratando de agência (no sentido de qualidade daquele que age) e relações de poder8, a
antropóloga Sherry Ortner encontrou nos contos dos Irmãos Grimm uma fonte de material de análise para
trabalhar a construção textual da agência. Em tais histórias – os tradicionais contos de fadas –, a presença
ou ausência de agência se determina como atividade e passividade, sendo a primeira a perseguição de
projetos, e a segunda a ausência mesmo de desejo de projetos. Ainda que haja um certo equilíbrio entre
protagonismos femininos e masculinos nos contos analisados, é interessante apontar que as heroínas
meninas/mulheres são, quase sempre, “heroínas vítimas”:

Embora sejam as protagonistas, a ação da história se desenrola em virtude de


coisas ruins que lhes acontecem, e não pelo fato de as protagonistas tomarem a
iniciativa de ações, como no caso da maioria dos heróis masculinos. Assim, a
passividade está, até certo ponto, incorporada à maioria dessas meninas desde o
início. (ORTNER, 2007: 60)

Apesar disso, muitas vezes as protagonistas tomam atitudes (têm agência) em algum momento no
início do conto. Nesse caso, o problema é que elas invariavelmente são castigadas por essas atitudes, e se
vêm impelidas à passividade – como Aurora em “A bela adormecida”, que espeta o dedo em um fuso e
desmaia, ou Branca de Neve em “Branca de Neve e os Sete Anões”, que é enganada pela Rainha e também
desmaia, ambas passando boa parte de suas histórias completamente imóveis.

Ortner sugere a leitura dos contos como histórias de passagem para a vida adulta: os rapazes
concretizam sua agência completando uma tarefa difícil, salvando a donzela e encontrando objetos
perdidos, enquanto que as meninas e moças, para atingirem a idade adulta (e se casarem), precisam
renunciar a qualquer agência – pois são punidas por qualquer atitude que tomem, e compensadas por sua
passividade. Nas estórias onde a personagem feminina é heroína – como a versão de “Chapeuzinho
Vermelho” em que a personagem-título e sua avó conseguem matar o lobo sozinhas, ou em “João e Maria”,
com Maria sendo quem derrota a bruxa – essas personagens são privadas da recompensa de felicidade
eterna e matrimônio (ou seja, não completam a passagem para a vida adulta) que espera suas
companheiras não-agentes, retornando à casa de suas mães, para lá ficarem, como crianças.

Dentro da política cultural de diferença e de desigualdade de gênero que informa


os contos, porém, crescer significa que as duas partes desta relação – que, no final
das contas, é desigual – não podem “ter” agência. Isso é expresso em uma
linguagem de (complementaridade de) atividade e passividade. O príncipe não
pode ser herói se a princesa puder salvar-se a si mesma; até pior, o príncipe não
pode ser herói se a princesa puder salvá-lo. (2007: 62)

8
“Poder e Projetos: Reflexões sobre a Agência” In: Reunião Brasileira de Antropologia (2ª : Goiânia : 2006)
Conferências e práticas antropológicas / textos de Bárbara Glowczewski, ... (et.alli.) ; organizadores Miriam Pillar
Grossi, Cornelia Eckert, Peter Henry Fry. – Blumenau : Nova Letra, 2007.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Minha intenção em apontar para essa análise de Ortner está no fato de que muitos dos traços
apontados pela autora como pertencentes às personagens femininas – passividade, humildade,
subordinação, repercussões negativas à tomada de agência – se mantiveram na adaptação desses contos às
telas de cinema, e se propagaram para outros filmes de contos de fadas, como alguns dos clássicos de
animação dos estúdios Disney: “A Pequena Sereia”, “Cinderela”, “A Bela e a Fera”, por exemplo.

O maior problema dessas representações é o reforço da noção que os atributos físicos de uma
mulher são mais importantes que suas ações ou suas falas em produções voltadas para o público infantil.
Faço um parêntesis aqui para retornar a um ponto abordado anteriormente neste ensaio. Everardo Rocha
aponta para três características das mulheres nos anúncios estudados: a individualidade da consumidora, o
corpo (e sua fragmentação), e o seu silêncio: “Como a individualidade feminina que a publicidade projeta é,
preferencialmente, traduzida pelo corpo, a palavra terá de ser expressa por uma outra instância: o
produto.” (ROCHA, 2006: 60-61). Enquanto na publicidade é o produto que fala pela mulher, no cinema
esse papel é atribuído ao homem, de forma que a mulher se mantém em silêncio também nesse formato
de mídia.

Muitas pesquisas9 têm apresentado dados preocupantes com relação não apenas ao número de
personagens femininas nos filmes, mas também à qualidade de sua presença em cena. A porcentagem de
tempo de fala das meninas e mulheres em filmes, se comparada à dos meninos e homens costuma ser
notavelmente menor. Se tomarmos, por exemplo, um estudo do Instituto Geena Davis em que foram
analisados os 200 filmes de mais sucesso de bilheteria entre 2014 e 2015, veremos que os personagens
masculinos tiveram entre duas e três vezes mais tempo de fala que as femininas, sendo que a maior
diferença se encontra em filmes com protagonistas masculinos (nos filmes que contam com mulheres como
protagonistas há um equilíbrio nos tempos de fala)10.

Ao constatar a discrepância de tempo de fala entre os personagens de filmes, a cartunista Alison


Bechdel criou, em 1985, através de uma história em quadrinhos, o chamado “Teste Bechdel”, que consistia
em três perguntas a se fazer para ter uma noção – mesmo que superficial – da ausência e do silêncio
femininos em qualquer filme11. As perguntas eram as seguintes: há, em tal filme, ao menos duas mulheres
com nomes, que conversam entre si, e cujo assunto da conversa não seja um homem? É claro que esses
três requisitos não refletem a qualidade dos filmes ou mesmo das falas dessas personagens, mas expõem a
realidade da indústria cinematográfica enquanto domínio masculino – feito por homens e para homens.

9
Ver: https://seejane.org/research-informs-empowers/data/, http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2013-
08-15/com-poucos-e-piores-papeis-femininos-hollywood-esquece-mulheres-da-plateia.html
10
https://seejane.org/research-informs-empowers/data/
11
https://feministfrequency.com/video/the-bechdel-test-for-women-in-movies/ , http://bechdeltest.com/

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Apesar de parecer um teste relativamente simples, há muitos filmes famosos que não passam nele,
como “A Rede Social”, “Forrest Gump”, “Avatar”, “Star Wars” (a trilogia original), “Senhor dos Anéis” (todos
os filmes da trilogia), “Piratas do Caribe: O baú da morte”, “Ultimato Bourne”, “500 Dias com Ela”, “Como
se Fosse a Primeira Vez”, “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” e assim por diante12. Mesmo
sendo bastante simples, o Teste Bechdel é um bom começo para percebermos e questionarmos a lógica
que seguem os diretores e roteiristas ao escreverem e dirigirem os filmes que chegam até nós pelas salas
de cinema ou programações de TV – uma lógica que implica na presença feminina sempre relacionada a
algum homem e com poucas interações entre mulheres.

É fácil perceber, assim, como a representatividade feminina nos filmes de circuito comercial é
bastante problemática: há o silenciamento das vozes, a invizibilização de personagens, a hipersexualização
e objetificação dos corpos e a heteronormatividade compulsória que permeia a abundante maioria das
relações nas telas. Mesmo quando aparecemos, temos falas e nosso propósito não é a satisfação e/ou
sedução masculina, nossa representação cinematográfica ainda apresenta falhas, com muitas das
narrativas caindo em um padrão repetitivo de caracterizações e histórias superficiais e estereotipadas.

Representatividade do feminino no cinema comercial


Essa ausência de mulheres nas telas e a forma como as poucas mulheres que aparecem são
retratadas levou a crítica de mídia Anita Sarkeesian a lançar, em 2011, um conjunto de vídeos
chamados “Tropes vs. Women” no seu canal do Youtube “Feminist Frequency”, onde fala de seis
tropes (arquétipos, clichês) que se repetem quando o assunto é personagens femininas em filmes do
circuito comercial. Os clichês são os seguintes: o Princípio Smurfette; a Manic Pixie Dream Girl; a
Mulher na Geladeira; a Sedutora Maligna; a Gravidez Mística e a Feminista Espantalho13.
Esses arquétipos se referem, respectivamente na ordem em que foram listados, aos filmes
com uma única mulher no elenco; às musas idealizadas de forma a terem como único propósito o
crescimento emocional do personagem principal; às mulheres que são (por vezes brutalmente)
mortas para o desenvolvimento do enredo, seja para servirem de fonte de vingança ou para a
complexificação do personagem principal; às personagens que se valem de sua sensualidade para
atrair e manipular os homens, às vezes chegando a matá-los para cumprir suas intenções nefastas;
àquelas que ficam grávidas por terem seus ovários invadidos por aliens, porque serviram de

12
A lista completa e atualizada de filmes que passam ou não no Teste é acessível no site oficial:
http://bechdeltest.com/
13
https://www.youtube.com/watch?v=uqJUxqkcnKA&list=PLBBDFEC9F5893C4AF

8
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incubadoras para demônios ou que, de alguma forma, se tornam anfitriãs biológicas de seres
supernaturais, extraterrestres ou simplesmente desconhecidos; e as personagens que se identificam
(ou são identificadas) como feministas e, de forma bastante simplista, exagerada e muitas vezes mal
representada, servem de recurso cômico ao filme. Alguns exemplos de filmes conhecidos que
apresentam um (ou vários) desses arquétipos são: “Matrix”, “Os Vingadores”, “Tudo acontece em
Elizabethtown”, “500 dias com ela”, “Rocky Balboa”, “Homens de Preto II”, “Transformers 2”, “A
Saga Crepúsculo: Amanhecer”, “Prometheus” e “Legalmente Loira”.
No geral, em filmes de ficção científica, ação, aventura e comédia, as mulheres são
retratadas de forma bastante superficial e, normalmente, em número muito reduzido, de maneira que
uma verdadeira diversidade – em raças ou etnias, orientações sexuais, faixa etária, posicionamentos
políticos, profissões, etc – se torna algo difícil de encontrar. As poucas que aparecem são
personagens pouco desenvolvidos e que acabam sucumbindo a algum desses clichês – ou em mais
de um ao mesmo tempo. Nesse sentido, os filmes cujo enredo se centram em histórias de mulheres
saem em vantagem: a quantidade de personagens femininas que aparecem é muito maior, e assim
costuma haver uma maior diversidade delas.
Mesmo quando são protagonistas, entretanto, as mulheres também sofrem com enredos
clichês, sendo constantemente colocadas em situações em que a beleza física é o seu principal
atributo (e que transformações de vestuário ajudam a personagem a alcançar todo seu potencial e
encontrar um marido), são obrigadas a escolher entre carreira e vida pessoal (onde, novamente, o
casamento aparece como principal argumento), brigam com outras mulheres, são lindas-porém-
desastradas, ou largam tudo (seus empregos, cidade, até família e amigos) para ir atrás do
“verdadeiro amor”14. Essas poucas histórias se repetem em “Uma linda mulher”, “O diário da
princesa”, “Miss Simpatia”, “A Proposta”, “Sem reservas”, “Casa comigo?”, “Escrito nas estrelas”,
“Tudo para ficar com ele”, “Cartas para Julieta”, “É pura sorte”, “Sorte no amor”, “Noivas em
guerra”, “Você de novo” e “Garotas malvadas”.
São muitos os problemas decorrentes do uso e repetição de cada um desses arquétipos e
clichês, principalmente no que se refere às suas influências na criação de expectativas e construção
de imaginários a respeito de mulheres. A presença de personagens femininas sempre brancas,
jovens, magras, que se encaixam no padrão de beleza vigente, cujas histórias giram em torno de
seus relacionamentos afetivos com homens, e são contadas por homens é prejudicial em muitos
sentidos, tanto para meninas e mulheres, que enxergam nessas narrativas um modelo ou padrão a

14
“6 estereótipos femininos que Hollywood precisa parar de usar” (2015), de Lara Vascouto.

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ser seguido, quanto para os meninos e homens, que incluem em seu repertório cultural formas de
agir e se relacionar com mulheres e o que esperar delas.
Há, porém, um outro problema quando se fala em representatividade feminina no cinema
comercial: existe toda uma diversidade de histórias que nunca são contadas e personagens que
raramente são vistas. São as mulheres negras, gordas, lésbicas, bissexuais, transexuais, assexuais,
intersexuais e queer, mulheres mais velhas, de diferentes etnias, mulheres portadoras de deficiências
motoras e intelectuais, entre tantas outras. Essas realidades, quando aparecem, são retratadas por
personagens unidimensionais, cujo propósito único é satisfazer o olhar masculino, como acontece
com a hipersexualização de mulheres do espectro LGBTQ+ e mulheres de etnias diversas,
consideradas “exóticas”. Existe uma ausência significativa de mulheres contado suas próprias
histórias, especialmente aquelas que fogem aos padrões já estipulados.

Considerações finais
Diante do cenário que apresentei neste artigo, pode parecer que a indústria cinematográfica
ostenta um sem-fim de falhas irreparáveis no que se refere à representação do gênero feminino. O
caso não é assim tão desesperador, é claro, pois há filmes que questionam os estereótipos e quebram
os padrões, mesmo dentro do circuito comercial aqui discutido, além de filmes de fora deste circuito
que fogem (e mesmo alguns que sempre fugiram) dessas formas de apresentar as mulheres. Há um
avanço significativo sendo feito nessa indústria nos últimos tempos, e filmes como “Star Wars: O
Despertar da Força”, “Rogue One”, “As caça-fantasmas”, “Frozen”, “Moana” e “Mulher
Maravilha” são alguns dos lançamentos recentes que chamaram atenção por saírem dos moldes com
suas personagens femininas complexas, protagonistas e cujos objetivos não envolviam o
desenvolvimento de um relacionamento romântico com um homem.
Retomando a discussão inicial sobre as mídias de comunicação em massa enquanto
construtoras do imaginário cultura e sua relação simbiótica com a sociedade, não faz sentido termos
tido, por tanto tempo, tantas representações do feminino no cinema que não condiziam com a
realidade. O movimento feito assemelhava-se mais a uma alimentação unilateral da indústria à
sociedade, e pouco da sociedade à indústria, causando assim a disparidade entre uma e outra. Parece
haver agora um esforço no sentido de tentar equiparar os dois polos, diversificando as histórias e
reforçando a presença – e principalmente agência – das mulheres nas telas e por trás delas.

Referências

10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ORTNER, Sherry. “Poder e Projetos: Reflexões sobre a Agência” In: Reunião Brasileira de Antropologia (2ª:
Goiânia: 2006) Conferências e práticas antropológicas / textos de Bárbara Glowczewski, ... (et.alli.) ;
organizadores Miriam Pillar Grossi, Cornelia Eckert, Peter Henry Fry. – Blumenau : Nova Letra, 2007.

RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004 Liberdade Cultural num Mundo Diversificado.

ROCHA, Everardo. “Representações do consumo: Estudos sobre a narrativa publicitária”. Rio de Janeiro: Ed.
PUC-Rio: Mauad, 2006

Sites consultados

FEMINIST FREQUENCY. “Tropes vs. Women”. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=uqJUxqkcnKA&list=PLBBDFEC9F5893C4AF [acessado em
07/07/17]
GEENA DAVIS INSTITUTE ON GENDER IN MEDIA. “The Reel Truth: Women aren’t seen or
heard”. Disponível em: https://seejane.org/research-informs-empowers/data/ [acessado em
07/07/17]
New York Film Academy Blog. “Gender Indequality in Film” Diposnível em:
http://www.nyfa.edu/film-school-blog/gender-inequality-in-film/ [acessado em 07/07/17]
PÉCORA, Luisa. “Com poucos e piores papeis femininos, Holywood ‘esquece’ mulheres da
plateia”. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2013-08-15/com-poucos-e-
piores-papeis-femininos-hollywood-esquece-mulheres-da-plateia.html [acessado em 07/07/17]
PESSOA, Gabriela Sá. “Audiovisual do Brasil é sexista, diz pesquisa de ONG de Geena Davis”.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/03/1747417-audiovisual-do-brasil-e-
sexista-diz-pesquisa-de-ong-de-geena-davis.shtml [acessado em 07/07/17]
SARKEESIAN, Anita. “The Bechdel Test for Women in Movies”. Disponível em:
https://feministfrequency.com/video/the-bechdel-test-for-women-in-movies/ [acessado em
07/07/17]
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VASCOUTO, Laura. “6 Estereótipos Femininos que Hollywood presica parar de usar”. Disponível
em: http://nodeoito.com/6-estereotipos-femininos-que-hollywood-precisa-parar-de-usar/ [acessado
em 07/07/17]
VASCOUTO, Laura. “Mulher-Troféu: A mulher como recompensa do herói na cultura pop”.
Disponível em: http://nodeoito.com/mulher-trofeu-do-heroi-na-cultura-pop/ [acessado em 07/07/17]

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Consumption, Representation and Agency of Women in Comercial Cinema

Astract: This article proposes a reflection on the way in which women are represented in
commercial films and the problems arising from certain typifications and cliches that are customary
in this medium. Because of its large-scale production and consumption, cinema - as well as other
mass media, such as television series, music and video clips, books and magazines - is responsible
for the reproduction and creation of images, assumptions, and expectations about reality and
individuals it portrays. This means that the way women appear (when they appear) in movies has
repercussions on the way they are seen by the viewer, and consequently on their perspectives and
relationships with the women with whom they interact. These are means of production and
reproduction of information, meaning and even experience, and it is in this sense that an analysis of
what is presented as "woman" and "female" in the cinematic universe becomes necessary. Divided
into three topics - Consumption and woman's body, Female characters and (the absence of) agency
and Representation of the feminine in the commercial cinema -, the article develops from a
theoretical reference of Anthropology, counting on authors like Everardo Rocha and Sherry Ortner,
among others.
Keywords: Cinema, gender, consumption, agency, representativity.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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