Estado Sociedade Sob Olhares Interdisciplinares RI
Estado Sociedade Sob Olhares Interdisciplinares RI
Estado Sociedade Sob Olhares Interdisciplinares RI
SOB OLHARES
INTERDISCIPLINARES
EXPERIÊNCIAS PARTICIPATIVAS,
DISPUTAS NARRATIVAS,
TERRITÓRIO E DEMOCRACIA
Ana Carneiro
Rafael Andrés Patiño
Valéria Giannella
Likem Edson Silva de Jesus
Ykaro da Cruz Pereira
(Organizadores)
O esforço do Programa de Pós-Graduação em
Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB) tem sido o de
construir diálogos interdisciplinares entre as
ciências humanas e sociais, abrindo também
para o cruzamento com outras áreas nas quais
os problemas colocados pela relação entre
Estado e sociedade possam ser tematizados.
Tal proposta pode parecer demasiado ampla,
abarcando conceitos cujos sentidos são alvo
de disputa e controvérsia entre as áreas que
buscam dialogar. Somam-se a isso os efeitos
criativos da articulação entre pesquisa, ensino
e extensão, incluindo nas reflexões o que
surge também do diálogo com práticas de
conhecimento externas à produção acadêmica.
Sendo, além disso, um jovem programa,
pertencente a uma das mais novas instituições
de ensino superior do país, em uma época
de intensas crises – política, econômica e
sanitária –, não é pequeno o desafio de buscar
retratar, mesmo que parcialmente, esse espaço
de produção coletiva do conhecimento.
Conforme sugerido no subtítulo, a associação
entre os temas das experiências participativas,
disputas narrativas, território e democracia
funciona como guarda-chuva para diferentes
– quiçá divergentes – abordagens sobre os
impasses, possibilidades e interrogações que a
relação entre Estado e sociedade nos coloca.
ESTADO E SOCIEDADE
SOB OLHARES
INTERDISCIPLINARES
EXPERIÊNCIAS PARTICIPATIVAS,
DISPUTAS NARRATIVAS,
TERRITÓRIO E DEMOCRACIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva
Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira
Assessor do reitor
Paulo Costa Lima
Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa
Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Ana Carneiro
Rafael Andrés Patiño
Valéria Giannella
Likem Edson Silva de Jesus
Ykaro da Cruz Pereira
(Organizadores)
Salvador
Edufba
2020
2020, Autores.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o depósito legal.
Projeto Gráfico
Gabriela Nascimento
Foto da capa e separatriz
Salvatore Selicato
Instagram: @Terrafertilceramica
Revisão
Mariana Rios
Normalização
Sandra Batista
Contém biografia.
ISBN: 978-65-5630-095-5
CDD – 320
Editora filiada à:
EDUFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina
Salvador - Bahia • CEP: 40170-115 • Tel.: (71) 3283-6164
www.edufba.ufba.br
[email protected]
Sumário
Prefácio 9
Marcos Otavio Bezerra
Introdução 15
Ana Carneiro, Álamo Pimentel e Likem Edson Silva de Jesus
DISPUTAS NARRATIVAS
Uma breve análise da circulação das fake news na pandemia da Covid-19 357
Ykaro da Cruz Pereira
9
– “negacionismo” – no conteúdo de disciplinas ou o uso de fake news no con-
texto de controle da pandemia da Covid-19, os artigos constituem registros de
configurações e momentos distintos do Estado e de suas relações com a socie-
dade. A constatação dessas variações nas diretrizes e formas de intervenção das
instituições estatais justifica, portanto, o afastamento de visões essencialistas do
Estado e chama atenção para o modo como este se inscreve na sociedade mais
ampla como parte dos conflitos entre suas forças sociais e disputas ideológicas.
Alinhados com as reflexões recentes desenvolvidas no campo das ciências
humanas, os artigos constituem evidências a favor dos argumentos sobre a
multiplicidade de formas que assume o Estado quando olhado da perspectiva
de suas representações, da atuação de seus agentes e do modo como se faz pre-
sente no cotidiano das pessoas. Cada um dos capítulos conduz o(a) leitor(a) a
observar um modo específico de manifestação e experiência com as instituições
do Estado. São exemplo, nesse sentido, a participação da população na execu-
ção de políticas públicas no âmbito de conselhos municipais, as políticas de
desenvolvimento territorial, a ressignificação do rural e de seus modos de vida,
a mobilização do direito nas lutas sociais, as formas de exclusão e de violência
exercidas pelos serviços públicos, o lugar das escolas públicas na construção da
percepção dos estudantes sobre seus corpos e as expectativas de populações
em situações de exclusão social de obter o mínimo apoio do poder público –
uma forma de presença do Estado nutrida pela sua ausência efetiva. Os artigos
compõem, desse modo, um mosaico de relações distintas tecidas com as insti-
tuições e ações tidas como estatais. Considerando o ponto de vista da variedade
de relações e experiências inscritas nessa espécie de mosaico, não parece fazer
sentido conceber ou descrever o Estado como algo unificado e singular.
Esse afastamento analítico da visão do Estado como uma entidade abstrata
dá lugar, no conjunto dos artigos, a uma abordagem que valoriza sua com-
preensão a partir de olhares sobre seu funcionamento ordinário. Observa-se,
nesse sentido, o modo como instituições estatais, políticas públicas, agentes
públicos e ideias políticas, entre outros aspectos, se inscrevem no dia a dia
e, desse modo, contribuem para a definição das condições de existência de
pessoas e coletividades como usuários do serviço público de saúde, povos tra-
dicionais, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), artesãos e
jovens indígenas, estudantes de escolas públicas, jovens rurais, mulheres grá-
vidas, populações ciganas, moradores das beiras de rodovias, entre outros.
p r e fác io 11
desconhecidos, permito-me aqui compartilhar uma possibilidade de análise.
Posto que essas diretrizes apontam para um desmonte das experiências parti-
cipativas na gestão pública, lembro que, do ponto de vista heurístico, o estudo
dos processos de retirada das instituições e dos serviços públicos do dia a dia das
pessoas é, como o exame dos processos de formação, uma das vias para a apreen-
são dos significados e das relações sociais que se articulam em torno do Estado.
A independência e autonomia em relação ao Estado são, por sua vez, va-
lores políticos presentes em organizações e movimentos sociais examinados
nos trabalhos. Eles integram diversas formas e experimentos de organizações
coletivas – associações, redes, teias de povos, territórios de identidades, fóruns
– que investem, por exemplo, no aprofundamento dos princípios democráti-
cos, na defesa das condições e modos de vida autóctones, na descolonização do
conhecimento e das práticas, na autogestão e na valorização do “princípio polí-
tico do comum”. Ao abordarem esses temas, os trabalhos aqui reunidos lançam
luz e dialogam com experiências que emergem como respostas aos desafios
criados pela crise da democracia e pela desconstrução do Estado promovidas
pelas políticas neoliberais.
A formação de grupos e identidades sociais é um dos efeitos do poder do
Estado na sociedade. Através de seus regulamentos, discursos e classificações
oficiais, as instituições do Estado participam, desse modo, da conformação de
realidades sociais ao fixar direitos, produzir representações sobre categorias
sociais e territórios e incluir e excluir pessoas nos limites das medidas adminis-
trativas. Essa dimensão da relação entre Estado e sociedade pode ser observada
nos textos. Ela está presente, por exemplo, na definição de pessoas como re-
fugiados, no reconhecimento de povos como tradicionais e na delimitação de
territórios como indígenas e quilombolas. A situação de pessoas que habitam
e produzem suas roças nas beiras das rodovias é um exemplo oposto. Vivendo
em condições de extrema precariedade e invisibilidade, os “beiradeiros” bus-
cam algum tipo de reconhecimento junto às instituições públicas, de modo
que possam acessar seus serviços e obter algum tipo de auxílio.
Essas situações evidenciam, entre outros aspectos, a importância da aná-
lise sobre o direito nos estudos sobre as políticas públicas. Considerando as
contribuições dos artigos, cabe destacar a questão recorrente do abismo entre
a existência do direito – na sua forma codificada de lei, regulamento oficial
ou política – e o uso efetivo desse direito por parte das pessoas que a ele po-
dem recorrer. Em outras palavras, nota-se que as lutas e os acordos políticos
p r e fác io 13
ser incorporada com o mesmo tipo de afinco às investigações desenvolvidas.
Penso, em termos amplos, na dinâmica interna de funcionamento dos órgãos
estatais, nas relações das instituições públicas com os setores e classes domi-
nantes e no ponto de vista das elites administrativas e dos agentes públicos
que atuam na região. Essas são dimensões da relação entre Estado e sociedade
que, em razão do lugar que ocupam na reprodução das relações de poder e
desigualdades sociais, merecem ser analisadas e, certamente, teriam muito a
ganhar com as contribuições do PPGES/UFSB.
Em março de 2017, pude participar das atividades de abertura do semestre
letivo do programa. A oportunidade me foi proporcionada pelo generoso con-
vite da coordenadora do PPGES, Dr.ª May Waddington. Ao longo de três dias,
que incluiu um sábado de visita e defesas de trabalhos finais de graduação no
Vale Verde, ouvi ótimos relatos de pesquisas e participei de instigantes discus-
sões. No entanto, dessa curta estadia, carrego outro vívido registro. Encontrei
no PPGES e na UFSB um clima eletrizante. Colegas e estudantes altamente
motivados com seus estudos e pesquisas, mobilizados, preocupados com os
desdobramentos políticos do golpe jurídico-parlamentar de 2016 e com proje-
tos que não cabiam nas 24h.
Esse entusiasmo se alimentava da energia, das inquietações e esperanças
de estudantes oriundos de diferentes cantos do sul da Bahia e do país. Nos
olhares, nos sorrisos e nas disputas para tomar a palavra nas rodas de conversa,
se observavam nitidamente a alegria e o orgulho de estudar numa universi-
dade pública. Para mim, esses eram sinais claros do sucesso e do importante
papel que a UFSB vinha cumprindo como instituição de ensino, pesquisa e
extensão na região.
Esta coletânea, desse modo, dá continuidade, em particular, mas não ex-
clusivamente, ao compromisso e diálogo do PPGES/UFSB com os moradores
e as populações do sul da Bahia. É um testemunho, sem dúvida, das contribui-
ções que as ciências humanas podem oferecer para a boa formação de pessoas
que aí vivem e atuam, para o aperfeiçoamento dos serviços ofertados e para a
diminuição das desigualdades econômicas e sociais, que, lamentavelmente, re-
sistem como marca do país. O livro, portanto, celebra a importância da região
sul da Bahia não só pela dimensão simbólica que ocupa no imaginário nacional
como lugar de fundação do Brasil, mas, especialmente, pela sua riqueza ecoló-
gica, diversidade cultural e valor de suas vidas humanas.
Ana Carneiro
Álamo Pimentel
Likem Edson Silva de Jesus
15
seria o artigo de Francisco Cancela, que aborda a obra do príncipe, naturalis-
ta e explorador alemão Maximiliano de Wied Neuwied. Mas, ao propor uma
leitura decolonial dessa memória, Cancela encontra os demais capítulos da co-
letânea em suas análises críticas sobre nossas formas estruturais de hierarquia
e opressão.
Nosso esforço no PPGES/UFSB tem sido o de construir diálogos inter-
disciplinares entre as ciências humanas e sociais, abrindo-nos também para o
cruzamento com outras áreas nas quais os problemas colocados pela relação
entre Estado e sociedade possam ser tematizados. De um lado, a diversida-
de dos recortes possibilitados por essa proposta pode nos parecer demasiado
ampla, abarcando conceitos cujos sentidos são alvo de disputa e controvérsia
entre as áreas que buscam dialogar. Além disso, a articulação entre pesquisa,
ensino e extensão, com intuito de investigar e propor ações a partir do diálogo
com práticas de conhecimento externas à produção acadêmica, torna ainda
mais amplo e criativo nosso leque de possibilidades. De outro lado, somos um
jovem programa, pertencente a uma das mais novas instituições de ensino
superior do país. Não é pequeno, portanto, o desafio de definir uma seleção
que forneça um retrato desse espaço de produção coletiva do conhecimento –
desafio este que engaja um processo de autorreflexão necessário a toda traje-
tória de amadurecimento.
Com esse propósito, o colegiado definiu uma comissão editorial formada
pelos docentes Ana Carneiro, Rafael Patiño e Valéria Giannella e pelos discen-
tes Likem Edson Silva de Jesus (doutorado) e Ykaro da Cruz Pereira (mestrado).
Com o auxílio financeiro do Edital da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
(PROPPG/UFSB) nº 04/2020, a comissão estabeleceu uma bem-vinda parce-
ria com a Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba) e abriu chamada
para submissões de artigos, sem delimitar previamente quaisquer temas, abor-
dagens ou recortes. A única condição era que o(a) autor(a) proponente fosse
vinculado(a) ou egresso(a) do programa. Nosso objetivo, como se diz por aí,
era o de “ver que bicho vai dar”. Os textos recebidos foram encaminhados
a pareceristas ad hoc em cuja avaliação nos baseamos para chegar à seleção
dos 20 artigos aqui publicados. Apenas depois dessa definição, preocupamo-
-nos em buscar um fio condutor para a variedade de temas e abordagens que
chegaram às nossas mãos. Foi então que a perturbação causada pela heteroge-
neidade dos títulos selecionados cedeu lugar à descoberta de um interessante
i n trod u ç ão 17
inovadoras no âmbito territorial de sua inscrição. O encontro entre intelec-
tuais no âmago da proposta mais ampla de interdisciplinaridade da UFSB
viabilizou a criação de um programa de pós-graduação notadamente compro-
metido com novas emergências teórico-metodológicas, pluralidade temática
e ênfases em novas relações de ensino, pesquisa e extensão de cunho inter-
disciplinar. Somava-se a essas diretrizes fundantes da política de produção do
conhecimento do PPGES o compromisso social com as populações do entorno
da região sul da Bahia e com os desafios inerentes à inclusão de amplos seg-
mentos da sociedade brasileira para uma vida mais inclusiva e democrática.
A transição entre a criação e aprovação da proposta no âmbito da Capes e a
formação das primeiras turmas de mestrado e doutorado com efetiva operacio-
nalização institucional do PPGES contou com a liderança de dois importantes
pesquisadores do campo das ciências humanas e sociais. Carlos Caroso teve
um papel fundamental na articulação que gerou as bases conceituais, es-
truturais e operacionais tanto da proposta apresentada à Capes quanto na
reestruturação do corpo docente induzida pelo retorno de alguns colaborado-
res e colaboradoras às suas instituições de origem. No ano de 2017, o primeiro
coordenador do PPGES encerrou o seu tempo de permanência na UFSB e
retornou à UFBA. May Waddington Telles Ribeiro, colaboradora atuante da
primeira geração docente do PPGES, assumiu a liderança dos trabalhos que
vinham sendo desenvolvidos, sendo a coordenadora do primeiro colegiado
eleito do PPGES, tendo como vice-coordenadora a professora Janaína Losada.
O compartilhamento das formulações conceituais e operacionais que deram
origem ao PPGES, assim como dos primeiros processos institucionais consti-
tutivos da implementação do PPGES entre Carlos Caroso e May Waddington,
foi fundamental para as primeiras ações fundantes do nosso programa. Parte
significativa das configurações atuais do nosso programa resulta do trabalho
seminal de Caroso e May.
O primeiro processo seletivo, realizado no ano de 2016 para ingresso no
ano de 2017, apresentou de maneira significativa respostas muito positivas para
os esforços coletivos que tornaram possível a existência do PPGES em meio a
uma das maiores crises da democracia na história do Brasil. Os projetos de
pesquisa que inauguraram os trabalhos da nossa pós-graduação apresentavam
o pluralismo temático e a inscrição de profissionais das mais diferentes áreas
de atuação com expressiva implicação territorial no âmbito da região sul do
i n trod u ç ão 19
da graduação à formação mais avançada na pós-graduação. Além do vínculo
formal do programa com a área interdisciplinar da Capes com ênfase na área
básica das ciências sociais e humanidades, dentro da UFSB, conseguimos arti-
cular com os demais ciclos de formação a oferta global das etapas de formação
acadêmica coerentes com a proposta da nossa universidade. Alguns estudantes
egressos dos cursos da UFSB e das instituições públicas e privadas da região
constituem parte significativa dos discentes do nosso programa.
Isso tem produzido repercussões muito promissoras no cumprimento das
missões da universidade na pesquisa, no ensino e na extensão desde o lugar
ocupado pelo PPGES. No âmbito da pesquisa, conforme sinalizado anterior-
mente, além de os temas e as questões de trabalho estarem enraizados nos
contextos locais, a produção do conhecimento tem resultado em proces-
sos e produtos de grande relevância, tanto para alimentar outros processos
formativos em nível de graduação e pós-graduação na região quanto para a
internacionalização das nossas relações institucionais.
No ensino, o projeto político-pedagógico do programa investe na intera-
ção dos mestrandos, das mestrandas, dos doutorandos, das doutorandas e seus
orientadores e orientadoras com os cursos de graduação, por meio dos estágios
docentes, dispositivos curriculares obrigatórios, assim como da organização
de eventos, projetos de iniciação científica e ofertas de vagas para estudantes
da graduação da UFSB, de outras instituições de ensino da região, bem como
para profissionais já graduados das comunidades e municípios do entorno.
É importante ressaltar que as interações entre discentes da pós-graduação e
discentes da graduação têm criado campos de pesquisa, assim como cenários
de experimentações didáticas e pedagógicas com as produções dos cursos de
mestrado e doutorado.
Os grupos de pesquisa inscritos no PPGES expressam grande força na
realização de atividades de extensão universitária. Além de articular redes
de cooperação com outros grupos sociais e coletivos da região, os projetos e
programas de extensão que envolvem os nossos grupos de pesquisa criam con-
dições de democratização dos seus processos de produção do conhecimento,
ao mesmo tempo em que se colocam em regime de coparticipação com outros
setores das comunidades locais.
Os egressos da primeira turma do curso de mestrado qualificaram suas in-
serções nos setores públicos e privados em que atuam ou passaram a atuar logo
A coletânea é dividida em três partes, com duas seções cada. A primeira par-
te, intitulada “Democracia e território”, abre-se com a seção “Estado, sociedade
e democracia: propostas de abordagem na filosofia e no direito”, que reúne um
texto da filosofia e dois do direito. No instigante artigo de Márcio José Silveira
Lima, “Nietzsche e Chantal Mouffe: sobre democracia e sociedade”, a relação
entre esses dois conceitos é avaliada a partir de um diálogo entre as obras dos
dois filósofos. Ao refutar a avaliação corrente de que haveria uma ausência de
pensamento político na filosofia nietzschiana, Lima se baseia na distinção, ela-
borada por Mouffe, entre os âmbitos ôntico e ontológico na política e defende
que as críticas à democracia feitas pelo filósofo às vezes parecem contradizer o
ponto de partida de seus próprios argumentos. As aproximações e os distancia-
mentos entre esses dois autores baseiam-se na ideia, defendida por ambos, da
política como espaço de agonismos que permeiam toda sociedade.
A abstração do debate filosófico é seguida de uma análise do pluralis-
mo jurídico recortada pelo caso concreto do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). No capítulo “MST: pluralismo jurídico na prática”,
i n trod u ç ão 21
Ilan Fonseca de Souza e Elisângela Melo de Menezes remetem-nos à discussão
sobre sociedade, democracia e política partindo de uma breve reflexão sobre
a função social da propriedade na Constituição Federal de 1988, para então
mostrar a insuficiência do Estado na resolução do antigo problema da con-
centração fundiária e dos conflitos agrários no Brasil. Apresentando como o
pluralismo jurídico é vivido dentro do MST, com as especificidades de sua or-
ganização e cultura jurídica, o artigo busca mostrar como as práticas de embate
do movimento afetam ou podem afetar o campo jurídico-social mais amplo.
Com recorte mais amplo, é também sobre o tensionamento entre Estado e
sociedade que Likem Edson Silva de Jesus e Carolina Bessa Ferreira de Oliveira
constroem sua análise. No capítulo “O papel do direito na análise de políti-
cas públicas: um debate interdisciplinar”, os autores partem da relação entre
política, direito e ação do poder público para, em seguida, apontar possíveis
articulações entre a dimensão jurídico-institucional dos processos político-ad-
ministrativos do Estado e as demandas sociais por participação e realização de
direitos sociais. Ancorados sobretudo nas análises de Maria Paula Dallari Bucci,
os autores apresentam como os aspectos jurídicos que permeiam as políticas
públicas afetam seus processos de formulação e implementação. O campo de
reflexão do direito mostra-se, assim, fundamental à necessária construção de
uma abordagem interdisciplinar sobre a ação do Estado e dos instrumentos de
efetivação dos direitos sociais.
O capítulo “À beira da vida: vulnerabilidade social dos beiradeiros do ex-
tremo sul da Bahia, Brasil”, de Oneide Andrade da Costa e Herbert Toledo
Martins, abre a seção intitulada “Problematizando a dicotomia rural-urbano:
território e desigualdade”. Em uma pesquisa de rara sensibilidade, os autores
despertam nosso olhar para a vida rural às margens da BR-101, em Teixeira de
Freitas, onde um trecho de terras lindeiras tornou-se opção de moradia para
indivíduos e famílias que o artigo denomina “beiradeiros”. Quem são eles? De
onde vieram? Por que ocupam as margens da rodovia? Como se reproduzem
socialmente? Casas feitas de barro, sucata ou folhas de zinco, junto a áreas de
cultivo para autoconsumo, caracterizam a paisagem revelada pela investiga-
ção, na qual os beiradeiros são descritos como “posseiros que constroem um
modo de vida sui generis em condições de extrema vulnerabilidade social”.
No capítulo seguinte, “Novas ruralidades no distrito do Vale Verde: para
além do rural e do urbano”, de Ivaneide Almeida da Silva e May Waddington
Telles Ribeiro, a localidade do Vale Verde, em Porto Seguro (BA), aparece como
i n trod u ç ão 23
A segunda parte da coletânea, “Experiências participativas”, traz pesquisas
que abordam as relações entre o Estado e uma diversidade de atores sociais,
envolvidos direta ou indiretamente no planejamento e na implementação de
políticas públicas, processos decisórios e de governança. Desse modo, tensio-
nam os limites impostos pela atual conjuntura política, à inclusão e ao diálogo
com movimentos sociais, grupos identitários e classes populares na esfera pú-
blica. A primeira seção agrupa trabalhos com recortes no campo da saúde. No
artigo “O processo deliberativo nas instituições participativas e a capacidade
de influenciar políticas de saúde: uma consequência ou um desafio?”, Betânia
do Amaral e Souza e Sandra Adriana Neves Nunes apresentam um estudo de
caso realizado no Conselho Municipal de Saúde de Teixeira de Freitas (BA),
com o fim de identificar os obstáculos enfrentados pelos seus membros para
a efetivação e potencialização dos processos deliberativos desenvolvidos pelo
órgão, o que contribui para a garantia da gestão democrática e participativa do
Sistema Único de Saúde (SUS).
Também explorando a interlocução entre sociedade civil e agentes do
Estado na gestão pública da saúde, Eduarda Motta Santos e Rafael Andrés
Patiño trazem, no capítulo “Vozes da violência obstétrica no Fórum da Rede
Cegonha da região de saúde de Porto Seguro”, a análise documental das atas e
apresentações de 15 encontros realizados no âmbito do fórum, grupo interins-
titucional e multiprofissional que têm o objetivo de discutir e debater sobre a
atenção perinatal à mãe e à criança. No texto, à luz da teoria do reconhecimen-
to intersubjetivo de Axel Honneth, são analisadas as experiências de violência
obstétrica relatadas pelas participantes do coletivo e é discutida a complexidade
das múltiplas formas de desrespeito que atravessam as vidas das mulheres viti-
madas por essa forma de violência, com efeitos nas esferas do amor, do direito
e da solidariedade.
Encerrando a seção, o trabalho de Dayse Batista Santos e Sandra Adriana
Neves Nunes, intitulado “(Re)pensando o SUS para atender às necessidades e
particularidades da população cigana em tempos de pandemia”, revela, a partir
de levantamento bibliográfico documental e da própria experiência de uma
das autoras como enfermeira da rede pública, que as dinâmicas de exclusão
e invisibilidade que afetam a população cigana incluem o despreparo do SUS
para atendê-la em suas necessidades e particularidades durante a pandemia da
Covid-19. O estudo destaca-se não somente pela atualidade e emergência do
i n trod u ç ão 25
aldeia Nova Coroa. A partir de dados etnográficos em uma perspectiva compara-
tiva, os autores refletem sobre como a manufatura do artesanato engaja formas
de pertencimento, sociabilidade e resistência nas comunidades, fortalecendo-as
para além dos ganhos comerciais com seus produtos turísticos e mercantis.
Encerrando a seção, Altemar Felberg e Valéria Giannella, no capítulo
“Conselho da Juventude Pataxó da Bahia: um espaço de participação alter-
nativo, inventado, não formal, livre e vivido”, contribuem para as reflexões
sobre alternativas mais eficazes de participação sociopolítica e de diálogo com
o Estado. Partindo da experiência do Conjupab, um espaço de participação,
resistência e autonomia autodeterminado pelos jovens indígenas, os pesquisa-
dores entendem as categorias analíticas do título como possíveis marcadores
da experiência em análise, de modo a delinear as diferenças em relação aos de-
mais conselhos de políticas públicas. Indicam, assim, novas perspectivas para
as instâncias participativas que resistem ao cenário de crise.
“Disputas narrativas”, terceira e última parte do livro, congrega trabalhos
que problematizam a construção e legitimação de discursos por governos,
setores do Estado e setores hegemônicos da sociedade. Ao serem reproduzi-
dos, esses discursos podem incorrer na manipulação de fatos históricos, no
apagamento e/ou criminalização de determinadas visões de mundo, na des-
valorização de grupos sociais determinados, no fortalecimento de paradigmas
neoliberais e em silenciamentos epistemológicos.
A primeira seção, intitulada “Educação, ensino e sociedade”, inicia-se
com o artigo “História ameaçada: bolsonarismo, negacionismo e ensino de
História”, de Fernando Santana de Oliveira Santos, que nos fornece um re-
trato da conjuntura política brasileira atual ao analisar como a negação do
fato histórico da ditadura militar, o desprezo pela ciência e a ressignificação
de termos como “comunismo” e “socialismo” – táticas recorrentes do discurso
do governo Bolsonaro – tolhem a construção do pensar historicamente. Além
disso, o autor mostra como tal estratégia discursiva é prejudicial à democracia
e desrespeita políticas educacionais brasileiras, corroborando com um projeto
de poder com viés autoritário.
Tratando dos fatores psicológicos, sociais, culturais e biológicos definido-
res das maneiras como os indivíduos veem a si mesmos, pensam que são vistos
e veem os outros, o capítulo “O corpo e a imagem corporal: percepções dos
estudantes da Educação de Jovens e Adultos de uma escola pública municipal
i n trod u ç ão 27
para a discussão conceitos hoje em evidência, como “pós-verdade”, o autor
discute a crescente difusão da desinformação no contexto da pandemia da
Covid-19, cujas consequências se apresentam como um risco à própria sobre-
vivência, e acena para caminhos pautados pela escolarização crítica e por uma
educação midiática, a fim de combater as poderosas e invisíveis redes de infor-
mações inverídicas em sociedades modernas e globalizadas.
Encerrando a coletânea, Fábio Júnior da Luz Barros e Nadson Vinicius
dos Santos trazem o artigo intitulado “Lei Non Refoulement: um discurso
geoestratégico sobre a guerra na Síria e os refugiados”, no qual abordam as
mudanças legislativas acerca dos refugiados e destacam a influência da Rússia,
dos Estados Unidos e dos países mais ricos da Europa nesses arranjos legais.
O estudo trata da resistência da Síria frente ao imperialismo do século XXI e
questiona quais são os povos prejudicados historicamente por esses processos
pautados por conflitos geopolíticos que definem as fronteiras entre as nações,
causam os fluxos migratórios e dão o tom de sua regulamentação.
Enfim, esperamos que essa variedade de análises provoque as leitoras e os
leitores a pensar Estado e sociedade não como entidades monolíticas, previa-
mente supostas e mutuamente isoladas, mas sim em suas múltiplas dinâmicas
de interações, relações de poder, produção discursiva, agências e formações
de sujeitos individuais ou coletivos – dinâmicas essas que se tornam visíveis
por indagações científicas comprometidas com a realidade em que atuam.
Desejamos uma boa leitura!
Democracia
e território
ESTADO, SOCIEDADE E
DEMOCRACIA: PROPOSTAS
DE ABORDAGEM NA
FILOSOFIA E NO DIREITO
Nietzsche e Chantal Mouffe: sobre
democracia e sociedade
Introdução
Foi preciso um trabalho intenso da Nietzsche-Forschung para desfazer os abu-
sos das apropriações políticas da obra de Nietzsche, em especial as dos nazis-
tas, e muitos estudiosos, além e a despeito disso, têm apontado a falta de um
pensamento político em sua filosofia.1 Em verdade, os problemas próprios da
política são tomados em consideração quase sempre em outros campos, como
o da cultura, da arte, da psicologia e da moral, ou ainda associados aos grandes
temas de seu pensamento, especialmente ao da vontade de potência.2 É o que
acontece, por exemplo, com a democracia, cujas exposições estão imiscuídas
nas críticas aos valores, e não propriamente ao que se poderia denominar de
uma “ciência” política.
1 Em obra recém-publicada no Brasil, Fornari (2019) faz um estudo exaustivo da história da recepção
da obra de Nietzsche e de como as diferentes edições estiveram ligadas aos contextos políticos
conturbados do século XX, ao mesmo tempo em que mostra todo o trabalho da pesquisa inter-
nacional sobre Nietzsche em desfazer o legado dessas apropriações. Centrando sua análise nos
escritos de juventude, Julião (2016) analisa elementos do pensamento político do filósofo, sem
escamotear os problemas que dele decorrem, além de apresentar um panorama histórico e atual
das intérpretes para a questão.
2 Céline Denat (2013, p. 45) analisa as afirmações de Nietzsche sobre seu posicionamento pessoal
contrário à política, como quando afirma não ser um zôon politikon, assim como as passagens em
que ele escreve o oposto. A seu ver, não se trata de compreender o filósofo como antipolítico nem
como adepto de uma nova política. A especificidade da posição de Nietzsche está em sustentar a
política como um epifenômeno, um instrumento para a cultura.
33
Os comentadores da obra de Nietzsche, como é comum entre intérpretes,
também têm dividido sua obra por períodos, em geral na tentativa de indicar
os temas próprios de cada momento e as mudanças que ocorrem nesse percur-
so. Independentemente das variações por que passam essas divisões de acordo
com quem interpreta e de como o desenvolvimento temático vai se mostran-
do ao longo das transformações, é possível perceber uma certa constância na
abordagem do filósofo acerca da democracia. De fato, do início ao fim, a crí-
tica à democracia atravessa de ponta a ponta a obra de Nietzsche. Se é preciso
compreender essa crítica no fluxo do pensamento do autor, também pode ser
interessante, por outro lado, ver no refluxo outros elementos da mesma filo-
sofia. Vistas aos olhos de uma análise política mais ampla, se a visão negativa
sobre as formas de vida democrática acaba por forjar um certo tipo de valores,
a crítica aguda feita à moral pode equacionar de outra forma a questão política
na filosofia nietzschiana.
Essa proposta de uma leitura heterodoxa nos permite encontrar fora da
obra de Nietzsche elementos para com ela dialogar. Nessa esfera, a distinção
que Chantal Mouffe faz entre as dimensões ontológica e ôntica da política tor-
na possível compreender a visão nietzschiana sobre a democracia de forma
a separar os níveis de análise em que elas se enquadram. E essa proposta de
diálogo não é gratuita, uma vez que a defesa que a filósofa faz dos princípios
democráticos evoca as importantes concepções de agon e de luta, tão caras a
Nietzsche. Assim, funcionando com um princípio regulativo, a distinção entre
o ontológico e o ôntico nos dará elementos gerais para compreender a visão
de Nietzsche sobre a democracia, revelando os limites dessa compreensão,
ao mesmo tempo em que, à luz da concepção de agon, podemos pensar em
dinâmicas da sociedade em que o filósofo alemão tem a oferecer uma outra
perspectiva.
Nietzsche e a democracia
Dois alertas óbvios, mas necessários: ao ler as críticas de Nietzsche à democra-
cia, tanto temos de levar em consideração a distância temporal que nos separa
do filósofo, como temos de compreender a própria democracia no contexto
em que a crítica se dá. Talvez seja mesmo possível ver esse duplo alerta como
uma mesma questão de fundo que se desdobra em duas vertentes. Em primeiro
n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 35
dessa tradição, para defender a razão, o espírito, precisaram combater o corpo.
A filosofia platônica seria, por isso mesmo, o mais longo erro da história do
Ocidente, porque cristalizou um tipo de dogmatismo que se renovaria atra-
vés dos tempos. Herdeiro desse legado seria, por exemplo, o cristianismo. E,
prossegue Nietzsche, quando foi travado um combate em que essa tradição pu-
desse ser derrotada, ela acabou por se impor devido à força de seus defensores.
Dois desses aliados seriam, na modernidade, o jesuitismo e 0 Esclarecimento
democrático (demokratische Aufklärung). (NIETZSCHE, 1999a, p. 8)
No contexto da obra de Nietzsche, menos do que uma avaliação e uma
análise de um regime de Estado ou uma forma de governo, a democracia é
vista pelos valores que expressa; por isso o filósofo a enxerga como um dos
bastiões das ideias modernas, um rebento tardio de uma tradição valorativa
muito antiga no Ocidente, que remonta a Sócrates e Platão. Acima de tudo, é
preciso ter em mente essa mudança de ênfase da abordagem democrática para
que possamos compreender essa crítica. De saída, soa bastante estranho, por
exemplo, combater a tradição valorativa desencadeada por Sócrates e Platão
e incluir nela justamente a democracia como um de seus valores; os dois filó-
sofos gregos, como sabemos, eram críticos ferrenhos do regime democrático.
Nunca é demais lembrar, além disso, que Sócrates foi condenado à pena capital
quando da restauração da democracia em Atenas.
Essa singularidade com que Nietzsche pensa o campo da política gera
um sem número de dificuldades, especialmente, no caso, a democracia, cujas
análises pertencem a uma tradição que desde sempre procurou unir o que é
de natureza axiológica com as experiências fáticas dos regimes, aquilo que
Maquiavel (2008, p. 73) denominou de “verdade efetiva das coisas”. A compara-
ção com o pensador florentino pode ser frutífera, sobretudo se considerarmos
os elogios a ele destinados por Nietzsche. No Crepúsculo dos ídolos, ao explicar
por que deve muito aos antigos, afirma que dois importantes aliados contra
Platão foram Tucídides e Maquiavel:
n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 37
que, a princípio, poderiam parecer estranhos, por estar em íntima associação,
só poderão ser compreendidos no contexto dessa crítica. Da mesma forma que
a caracterização da verdade apresenta a democracia moderna como um va-
lor que remonta ao projeto filosófico de Platão, frutos tardios dessa mesma
vontade de verdade seriam tanto a religião como a ciência modernas. Não im-
porta a Nietzsche que a aventura democrática na modernidade se inicia com
os questionamentos acerca de legitimidade do poder divino dos reis e que a
noção de soberania popular se erga sobre os escombros da milenar tradição das
monarquias cristãs. Interessa-lhe, como uma típica ideia moderna, como um
valor fundamental da modernidade, a defesa de igualdade como um princípio
posto em circulação pelo cristianismo a partir do mandamento de que todos
são iguais diante de Deus e que a defesa desse princípio tenha sido tão bem-
-sucedida porque amparada na invenção platônica da verdade, esse erro mais
antigo de um dogmático.4
Por exemplo, fazer essa distinção sugere uma diferença entre dois
tipos de abordagem: a da ciência política, que opera com o campo
empírico da ‘política’, e a teoria política, que é o domínio dos filó-
sofos que investigam não os fatos da ‘política’, mas a essência do
‘político’. Se quiséssemos expressar tal distinção de maneira filosófi-
ca, poderíamos, tomando emprestado o vocabulário de Heidegger,
afirmar que a política se refere à dimensão ‘ôntica’ enquanto o po-
lítico tem a ver com o ‘ontológico’. Isso significa que o ôntico tem
a ver com as diferentes práticas da política convencional, ao passo
que o ontológico se relaciona com as muitas formas com as quais
a sociedade é instituída. (MOUFFE, 2005, p. 8-9, tradução nossa)
4 Para uma visão geral de como Nietzsche elabora, em diferentes momentos de sua obra, uma crítica
à democracia pelos valores que ela defende, ver: Hatab (2010, p. 263).
n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 39
p. 14, tradução nossa) Nem toda relação nós/eles se converte em amigo/inimi-
go. Mas pode ser que isso ocorra, instalando, assim, uma relação antagonista
entre formas de coletividade, tais como etnias, religiões etc. Pertencendo à es-
fera do político, o antagonismo deve ser visto sempre como uma possibilidade.
Diferente de Schmitt, que não via espaço na vida pública porque o antagonis-
mo era uma ameaça ao político, Chantal Mouffe acredita que não há como
negar sua existência, mas sim apontar para outro modo de conformação. Não
se pode superar a relação nós/eles por sua negação: é preciso uma reelabora-
ção. Essa nova elaboração é o que a filósofa chama de agonismo.
Democracia e agonismo
Diante do que expusemos brevemente na seção anterior, é possível consi-
derar alguns aspectos defendidos por Chantal Mouffe que nos permitem
estabelecer um vínculo com as visões de Nietzsche sobre a política e sobre
a democracia. No horizonte da leitura que Habermas fez da modernidade,
concedendo a Nietzsche o lugar de destaque por ter inaugurado uma tradi-
ção de ataque a uma racionalidade que seria preciso retomar como forma de
defesa do Esclarecimento, Peter Sloterdijk propôs uma outra interpretação
da questão dionisíaca em Nietzsche, tomando como epicentro da obra seu
primeiro livro, O nascimento da tragédia, aquele que, de modo geral, serve
também como locus privilegiado, embora de forma implícita, da leitura haber-
masiana. Sloterdijk afirma que, nessa obra, Nietzsche elege como problema
central o Esclarecimento e sua incapacidade de cumprir com suas promes-
sas. Considerando uma crítica decisiva na proposta estética de uma filosofia
dionisíaca, Sloterdijk cunha o conceito de algodiceia (Algodizee).5 Incapaz de
cumprir sua promessa de participação geral, o Esclarecimento engendra uma
síndrome do ativismo social moralizante que se torna, de forma involuntária,
cúmplice e parte de uma tendência que acaba por produzir uma proliferação
sem precedentes do sofrimento, justamente quando, ao contrário, tinha por
promessa o progresso humanitário. (SLOTERDIJK, 1986, p. 160-161)
Chantal Mouffe interpreta de maneira similar as críticas de Nietzsche à
democracia como uma das ideias modernas. Para isso, ela retoma a análise
de Claude Lefort, para quem a revolução democrática moderna se torna um
espaço vazio porque carente de um fundamento, pois falta à democracia um
5 “Algodiceia significa uma interpretação metafísica doadora de sentido para a dor. Ela entra em
cena na modernidade no lugar da teodiceia, e como sua inversão. O que está em jogo na teodiceia
é: como é possível compartilhar o mal, a dor, o sofrimento e a injustiça com a existência de Deus?
Agora, a questão é: se não há nenhum Deus e nenhum nexo de sentido mais elevado, como é que
ainda conseguimos suportar a dor? Imediatamente se mostra a função da política como um subs-
tituto da teologia”. (SLOTERDIJK, 2012, p. 606)
n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 41
fundamento último, tal como o príncipe era o poder encarnado, ao mesmo
tempo em que sua autoridade estava ligada a um poder transcendental. Nessa
esfera, a crítica de Nietzsche à democracia se filia ao combate aos valores e à
moralidade cristã, porque ele já teria percebido isso quando proclamou que a
morte de Deus é inseparável da crise do humanismo. (MOUFFE, 1993, p. 11-12)
Se afirmamos antes que a distinção entre a dimensão ôntica e a ontológica do
político nos oferece uma possibilidade interessante de diálogo entre Chantal
Mouffe e Nietzsche, essa conversação pode ser ampliada também pela com-
preensão que ela e ele têm dos limites da democracia pelo viés da crítica à
racionalidade moderna. Essa crítica passa, por fim, pela noção do agonismo
com elemento principal da política e da vida.
Encontramos uma expressão bem delineada dessa visão de Nietzsche em
um texto pertencente a seus escritos iniciais. Em A disputa de Homero, ao fazer
o elogio dos gregos antigos e deplorar os modernos, o filósofo defende que eles
tinham uma ética baseada na ação da disputa (That des Wettkampfes) e uma
educação agônica (agonalen Erziehung). O ponto de partida para compreen-
der esses dois elementos do mundo grego antigo é negar a tese de fundo dos
contratualistas de que o Estado deve ser instituído pela superação da condição
natural, independentemente da versão antropológica, ou seja, se o homem é
mau ou bom por natureza. Essa separação entre as qualidades humanas e as
qualidades naturais é fruto, afirma Nietzsche, do medo moderno de enfrentar
essa realidade. Todas as qualidades tidas como ruins, tais como a inveja, o ódio,
a ambição, aquilo que conduz os homens à disputa, ao aniquilamento, recebe-
ram a partir de Homero uma direção ética que se tornou o solo em que brotou
a cultura mais rica e, por isso, humana dos tempos antigos.
Antes de rechaçar essas qualidades terríveis, os gregos lhes deram uma di-
reção e uma forma em que um indivíduo não levasse o outro à destruição, mas
que, sob o signo da luta, se erigisse uma cultura artística, filosófica, e assim
por diante. Nietzsche menciona os versos iniciais de Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo, nos quais o poeta distingue duas Éris, a deusa da discórdia. Haveria,
pois, duas tradições a cultuar essa deusa, uma que representa o combate que
é mau e destrutivo; outra, nascida dessa mais velha, conduz o homem à ação,
nunca a aniquilação: mesmo aquele que é destituído de qualquer qualidade,
por inveja do vizinho, quer agir da mesma maneira. Essa ação baseada na dis-
cordância e na disputa, em que cada qual se espelha no outro, mesmo no seu
6 Keith Ansell-Pearson (1997, p. 91) afirma que o pensamento político de Nietzsche se baseia na
depreciação da política tal como era praticada na época de ouro da democracia ateniense, o que o
colocaria mais próximo de Sócrates, apesar das divergências, como também já mencionamos.
7 Hatab (2010) se ancora no texto sobre a disputa em Homero para defender uma visão de Nietzsche
como um pensador político a partir do qual é possível pensar uma democracia agonística. Ele lem-
bra passagens na obra do filósofo em que há tanto uma defesa da lei como das instituições.
n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 43
Nietzsche e Chantal Mouffe: aproximações e
distanciamentos
Ora, apesar de reconhecer o acerto de Nietzsche em sua dupla denúncia da mo-
dernidade, ou seja, pela sua incapacidade de cumprir com suas promessas de
emancipação política e pela falta de um fundamento que institua a democracia
como forma dessa realização, Chantal Mouffe se afasta de qualquer possível
filiação de seu modelo de uma política agônica com a do filósofo. (MOUFFE,
2000, p. 107) A despeito disso, ainda no contexto do escrito nietzschiano sobre
Homero, seria mesmo possível associar aquele momento de viragem da sabe-
doria mítica das duas deusas Éris com a conversão paradigmática que Chantal
Mouffe propõe, ou seja, na possibilidade de a polarização nós/eles sair do anta-
gonismo para o agonismo.
Nietzsche interpreta a duplicidade com que os gregos cultivavam a deusa
Éris como testemunho temporal de que os ímpetos destrutivos com que ini-
cialmente agiam eram uma forma de expressar a discórdia da Éris má. Contudo,
com Homero, grande educador da cultura grega, esse ímpeto recebe uma outra
direção, ganha forma, e a discórdia passa a ter outra forma de atuação, aquela
da disputa boa, produtiva, responsável pelos grandes feitos e obras. Vemos em
Chantal Mouffe a exposição de um contexto similar, situado agora na cultura
pluralista da democracia moderna. Como o fundo que move a ação humana é
a disposição dos afetos, a qual, por sua vez, estabelece o antagonismo do nós/
eles, é preciso que haja uma modificação na forma como deve atuar essa polari-
zação. Não mais num contexto em que cada lado da disputa veja o outro como
inimigo a ser destruído, mas como adversário a quem se reconhece inteira le-
gitimidade no espaço público da vida política.
Embora o texto do jovem Nietzsche ainda nos permita encontrar uma
abertura para defender nele a democracia como expressão da disputa entre os
gregos, esse aspecto da luta, da pluralidade de forças que atuam em conflito,
que será defendido na filosofia tardia, sobretudo com a teoria da vontade de
potência, não permite encontrar uma fresta pela qual pudéssemos ver uma
defesa da democracia. Dois dos princípios mais caros à tradição democrática
e ao Esclarecimento, como a igualdade e a liberdade, serão combatidos por
Nietzsche como sintomas valorativos da moral do ressentimento e como sinal
de declínio e decadência cultural. Eis por que Chantal Mouffe não se filia à
n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 45
de extrema direita, que fazem apelo a noções morais baseadas nos afetos e em
categorias coletivas e tradicionais, como nação e povo.
As fragilidades das correntes racionalistas podem ser vistas pela ascensão
de partidos e de políticos com viés autoritário, que apelam a valores morais
que lidam com afetos da população e de grupos sociais. Por isso, essas verten-
tes autoritárias têm conseguido a hegemonia no espaço público da política.
Nesse aspecto, para além da exegese textual e dos posicionamentos políticos
de Nietzsche, é possível retomar sua penetrante crítica da moral como forma
de atuação na esfera política em que se dá a luta por hegemonia e na qual o
conflito agonístico é o elemento principal. Não foi Nietzsche quem perseguiu
como uma das metas principais de sua filosofia revelar o que estava por trás
de todo discurso em defesa da verdade? Não foi ele quem mostrou ter sido sob
o signo da veracidade que os valores morais conseguiram perpetuar-se, numa
longa história de um erro?
No espaço agônico em que a disputa adversarial ocorre, se olharmos
justamente os principais valores mobilizados pelos grupamentos que têm con-
quistado a hegemonia política, inclusive no Brasil, veremos que eles figuram
entre os artigos de fé que Nietzsche tanto combateu, como a dominação exer-
cida pela moral cristã, a defesa do nacionalismo e, sobretudo, a atribuição de
uma superioridade moral de parte de quem professa esses valores; mostrou,
por fim, como a estratégia de defesa da verdade serve à causa desses grupos,
uma vez que negam toda e qualquer possibilidade de conflito, de luta entre va-
lores opostos. Quem sabe à revelia do próprio Nietzsche, sua análise refinada
das estratégias dos moralistas, que disfarçam sua esperança da vingança, seu
ódio ao inimigo em clamor por triunfo da justiça divina (NIETZSCHE, 1998,
p. 38-39), possa ainda contribuir para que as visões antagônicas e agonísticas
coexistam no mesmo espaço pluralista das democracias.
Referências
ANSELL-PEARSON, K. Nietzsche como pensador político. Rio de Janeiro: Zahar,
1997.
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MST: pluralismo jurídico na prática
Introdução
Na segunda metade do século XX, assistiu-se a um amplo movimento em bus-
ca da consagração de direitos subjetivos, particularmente direitos humanos.
(BOBBIO, 2004) A luta pela positivação de direitos transfigurou-se em luta por
efetivação de direitos, pois, segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio (2004,
p. 23), “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não
é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não
filosófico, mas político” – e quanto ao direito de propriedade não foi diferente.
John Locke entendia a propriedade como um direito natural que antecede o
Estado. Apropriando-se desse pensamento, para a corrente conservadora, toda
propriedade deve permanecer nas mãos de quem a detém, não havendo que
se falar em um Estado transformador do sistema de distribuição de riquezas,
consagrando-se o direito absoluto à propriedade do Código Civil brasileiro
de 1916. De matiz jusnaturalista, sua visão enxerga o Estado como mero reco-
nhecedor de um direito subjetivo, preexistente à própria formação estatal. No
entanto, esse pensamento não está imune a críticas, visto que inexiste direito
de propriedade sem que haja Estado, posto que, em última instância, é o apa-
rato judicial e policial quem garante a propriedade. Não seria ele, pois, direito
natural, mas sim construído socialmente e garantido pelo ente estatal.
Ambas as correntes bebem da mesma fonte, a do monismo jurídico, mas
será mesmo o Estado o centro único do poder político e a fonte exclusiva de
toda a produção do direito? (WOLKMER, 2017) O pluralismo jurídico, nos
moldes como defendido por Antônio Carlos Wolkmer, dirá que não. Para isso,
49
o autor faz um resgate dos precedentes históricos que deram origem a essa
visão. O capitalismo funda-se na propriedade privada dos meios de produção,
no trabalho assalariado, no sistema de mercado, na racionalização de métodos
e na valorização do capital: monismo jurídico, capitalismo e propriedade pri-
vada são conceitos intrinsecamente ligados.
Os movimentos sociais, no entanto, defendem uma pauta diferenciada,
muito mais próxima do pluralismo que do monismo. Primeiro, o pluralismo
jurídico funda-se na construção de uma juridicidade espontânea no interior
das comunidades formadas por uma identidade da condição de exclusão, mar-
ginalização e abandono pelo Estado (direito comunitário); segundo, como
modo de superar a vulnerabilidade que essa exclusão alimenta, o pluralismo
invade o Estado, no reclamo que esses movimentos lhe fazem de novos direitos
e de participação nas decisões e ações estatais. (ALBERNAZ; WOLKMER, 2012,
p. 142-143)
Foi empreendida revisão bibliográfica em trabalhos acadêmicos disponí-
veis em meios digitais, selecionando-se autores que tenham pesquisado essa
temática. Também utilizou-se de conhecimentos empíricos verificados durante
visitas em campo, de curta duração, a assentamentos situados no sul e extre-
mo sul da Bahia, como o assentamento Terra a Vista, no município de Arataca,
no ano de 2017, e o assentamento Alfredo Dutra, em Guaratinga, no ano de
2019, mediante conversas informais com lideranças. Este artigo tem por objeti-
vo apresentar dados empíricos atualizados; promover uma revisão da literatura
sobre o tema; bem como analisar como o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) se insere na racionalidade emancipadora que é a tônica do
pluralismo jurídico, ou, melhor dizendo, investigar se o MST adota na prática
princípios dessa corrente teórica, buscando confrontar as práticas realizadas
pelo movimento com os conceitos basilares do pluralismo jurídico.
mst 51
tradicionais, como o Estado, partidos e sindicatos, embora pudesse interagir
com eles. (SCHIOCHET, 1988) No caso do MST, desde o princípio ocorreu a
identificação com a Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica, e com o
Partido dos Trabalhadores.
Na década de 1980, o Brasil vivia um momento de capitalismo associado
com ditadura. A modernização agrária se iniciara com o golpe de 1964 (MAIA,
2013), e a desigualdade social fora o resultado natural dessa conjugação de
fatores. O desenvolvimento do capitalismo aumentava o nível do piso no po-
rão do edifício social e talvez o tenha tornado mais higiênico do que antes.
(MARSHALL, 1967, p. 78) Com a modernização, o minifúndio que antes con-
vivia com o latifúndio foi praticamente extinto, e uma massa rural foi expulsa,
formando-se, a partir de então, trabalhadores volantes. Com essa consciência,
o MST iniciou a luta pelos camponeses que não possuíam terras, mas deseja-
vam produzir nas terras improdutivas do país. Daí surgiu o cunho político que
envolveu o movimento pela redistribuição dessas terras, com o que seria feita
justiça social não só para os camponeses, mas também para indígenas, quilom-
bolas e todos aqueles que almejavam uma mais justa distribuição de terra.
O MST atualmente atua em 24 estados da Federação, de maneira organiza-
da e estruturada, com a conquista do direito de propriedade para mais de 350
mil famílias. (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA,
[200-]) Se o abismo entre pobres e ricos é uma constante do monismo jurídico
capitalista, o MST deitou suas raízes em um pluralismo jurídico comunitário
e participativo.
ocupar
mst 53
essencial, e o MST assumiu esse papel, ao mesmo tempo transgredindo as leis
– ou testando seus limites – e subsumindo-se a elas. O Estado e a comunida-
de passaram, então, a dar enfoque maior ao reconhecimento da participação
dos movimentos sociais no intento de fazer justiça. O objetivo do MST, assim
como dos demais movimentos e organizações semelhantes no Brasil, é a luta
pelo direito à posse e à propriedade da terra enquanto condição de uma vida
digna ao trabalhador rural e à sua família. (ALBERNAZ; WOLKMER, 2012)
A estratégia do MST é a presença ativa no espaço público, ocupando terras
e prédios e exigindo vistorias em terras improdutivas. Busca o MST desvin-
cular o direito à propriedade do direito civilista e identificá-lo com o direito
agrário, pois a terra deve ser vista como fruto do trabalho. (MAIA, 2013) As
táticas utilizadas pelo MST são diversas e vão desde o fechamento de estradas
e acampamentos provisórios em repartições públicas até a ocupação de áreas
rurais (DUTRA, 2014, p. 102), num cenário clássico de desobediência civil.
Para organizar essas ocupações, uma “frente de massa” é enviada pelo MST
a uma nova região a fim de contatar as famílias sem-terra que delas partici-
parão. Essa frente envolve, além dos militantes do MST – já experientes em
outras ocupações –, lideranças locais, que conhecem melhor os problemas, o
clima, a geografia e a cultura da região. Os militantes e líderes conversam, en-
tão, com os moradores para identificar áreas férteis com disponibilidade de
água, de titularização questionável – terras devolutas ou objeto de grilagem –,
propriedade improdutiva ou produtora de monocultura comercial social ou
ambientalmente agressiva. Escolhida a área, reunidas as pessoas, planejada a
ocupação, os transtornos também são inevitáveis. (ALBERNAZ; WOLKMER,
2012) Tais ocupações, como novo direito coletivo de luta pela terra, também
são formas de denúncia e de proteção aos reivindicantes.
O MST demonstra intento humanista e assume o papel de instrumento
possível para quebrar as algemas que aprisionam os sem-terra nas opressões e
espoliações e para transformar seus destinos em direção emancipadora, como
tarefa não isolada, mas de modo solidário. (SOUSA JÚNIOR, 2008) O Estado,
que ainda detém oficialmente o poder de “dizer o direito”, não mantém mais
essa prerrogativa como um dogma inquestionável, uma vez que, na passagem
ao século XXI, os novos atores sociais conquistaram um espaço que não retroa-
girá. (DUTRA, 2014, p. 154)
mst 55
orientar as ações para criação, implantação, desenvolvimento e consolidação
das novas unidades de produção, propiciando ou favorecendo a organização
socioeconômica dos beneficiários e o atendimento aos serviços básicos de assis-
tência técnica, crédito rural e de infraestrutura econômica e social vinculados
ao programa nacional de reforma agrária. (INCRA, 2020b) O assentamento é,
assim, o retrato físico da reforma agrária. Nasce quando o Incra, após imitir-se
na posse da terra, a recebe legalmente e a transfere para trabalhadores rurais a
fim de que cultivem e promovam seu desenvolvimento econômico. O assen-
tamento é, portanto, razão de existência do Incra, que, por sua vez, também é
palco de disputas e contradições. (POULANTZAS, 2015)
Em síntese, no MST, existem dois tipos diferentes de autonomia. Para
com o Estado, ele possui uma autonomia relativa, uma vez que necessita fre-
quentemente dialogar para obter êxito em suas demandas e não pode ignorar
a existência e a força do ente público. Quanto a si mesmo, suas estratégias
– ocupação, pressão institucional, presença ativa em espaços públicos – são
formas de reconstrução de conceitos jurídicos em busca de um direito: o real
acesso à terra. Essa ressignificação jurídica, porém, não vem sem retaliações.
resistir
mst 57
ensejando ordens, muitas vezes liminares, de reintegração e de manutenção de
posse em favor dos proprietários e evocando o Poder Executivo. O enquadra-
mento da ação do MST em tipos penais também é comum, principalmente nos
tipos de esbulho possessório, furto simples e qualificado, dano simples e quali-
ficado, formação de quadrilha ou bando, cárcere privado e sequestro mediante
extorsão,1 agravados pela condição de formação de quadrilha. (ALBERNAZ;
WOLKMER, 2012)
Wolkmer (2017, p. 72) enxerga nos movimentos sociais uma atitude mili-
tante que pede a reinserção do direito na política. Trata-se da dialética social
do direito, a qual buscará “devolver o fenômeno jurídico ao seio do qual surge”
(WOLKMER, 2017, p. 77), evidenciando as forças sociais em conflito e com
pretensões normativas distintas. Através do “uso alternativo do direito” ou do
“instituído relido”, o MST denuncia as ações possessórias como respostas coer-
citivas estatais num esforço de manutenção da concentração da terra. (PACKER,
2005) Verifica-se que, para sobreviver, o MST precisa defender-se juridicamente,
ou seja, dentro das margens do direito estatal monista – sem prejuízo da uti-
lização dos mecanismos sociopolíticos de pressão que comumente utiliza –,
contratando advogados, impetrando habeas corpus, contestando ações judi-
ciais, recorrendo contra decisões judiciais ou administrativas provenientes do
Incra, ou mesmo fazendo um trabalho de base parlamentar, de forma que o
conjunto desses aspectos evidenciam o elevado grau de complexidade e auto-
nomia em seu modus operandi. Ocupar e resistir são, no entanto, duas faces de
uma mesma moeda, cuja finalidade é a produção.
produzir
1 Respectivamente, compõem o artigo 161, inciso I; artigo 155, caput e parágrafo 4º; artigo 163; artigo
168; e artigo 159, pertencentes ao Código Penal.
mst 59
2014, p. 107) O assentado recebe um documento com valor legal, expedido pelo
Incra, que concede o direito de propriedade sobre a sua parcela de terra no
assentamento. Mas é fundamental que o assentamento crie uma associação,
organizada pelos integrantes, para representá-los junto a entidades, governa-
mentais ou não, para discutir o seu processo de desenvolvimento e determinar
os rumos que serão tomados pela comunidade em busca de melhores condi-
ções e principalmente para exercer a cidadania.
Na década de 1990, a solução elaborada pela direção do MST priorizou as
organizações coletivas de produção no formato de Cooperativas de Produção
Agropecuária (CPA). Os princípios normativos dessa forma de organização dos
assentados eram econômicos – cooperação agrícola e organização da produ-
ção nos moldes de uma empresa econômica moderna – e político-ideológicos,
de tons socialistas marxistas-leninistas. As bases desse sistema foram lança-
das em 1986, no texto “Elementos sobre a teoria da organização do campo”,
de Clodomir Santos de Morais, publicado nos Cadernos de Formação. A ideia
foi formar cooperativas de serviços que facilitariam, na obtenção de crédito, a
compra de insumos e de sementes, além da venda da produção, o que foi aceito
pelos assentados, que formaram suas comunidades.
Nos dias atuais, segundo Brenneisen (2002, p. 67-68), vê-se que a ideia da
construção de uma sociedade socialista está sendo gradativamente substituída
pela ideia de um “projeto popular” para o Brasil, considerando as especificidades
históricas e a diversidade dos segmentos sociais envolvidos na transformação
da sociedade brasileira. Em vista disto, foi criado um fórum, denominado
“Consulta Popular”, envolvendo o MST e as demais forças e movimentos so-
ciais. A produção coletiva continua sendo importante, tanto que, na atualidade,
as experiências dos assentamentos do MST têm sido analisadas sob o prisma
do paradigma da economia solidária, além de que tal produção se sustenta em
princípios da agroecologia. (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS
SEM TERRA, [200-]; FIDELES, 2006) A tônica do modo de produção é, portan-
to, a autonomia coletiva. Há, no entanto, uma autonomia ainda maior e mais
localizada no que diz respeito à criação de normas disseminadas dentro do
grupo e que devem ser seguidas rigidamente. (DUTRA, 2014, p. 146)
mst 61
representantes para a coordenação nacional, e esta elege 18 membros para a
direção nacional, que é composta por 21 membros. (STEDILE; FERNANDES,
2012, p. 40-44) Esse encadeamento representativo é importante para manter
a unidade entre cada acampamento, estado, região e o movimento nacional.
Tem-se, portanto, uma direção colegiada, jamais individual. Turatti (2005) in-
forma que os coordenadores do grupo promovem reuniões com as famílias
que lhes estão subordinadas, cumprindo os papéis de levar-lhes as discussões
e resoluções da reunião da coordenação geral e de receber reclamações, suges-
tões e reivindicações a serem encaminhadas para a pauta da reunião seguinte.
Ao denunciar que assentados tomaram para si determinados papéis antes
restritos ao gênero masculino, o MST, através da presença de ambos os gê-
neros em cada núcleo de um assentamento ou acampamento e em parceria
com estudantes universitários, trabalha o gênero como uma construção cul-
tural que impõe tais papéis a esses homens e mulheres. (PACKER, 2005) São,
enfim, cidadãos políticos, que participam das deliberações de seus espaços de
coexistência através de instrumentos horizontais de decisão e que podem, po-
tencialmente, modificar as formas de acesso à justiça da sociedade brasileira,
hoje tão castradas.
Para o movimento, a educação acontece em processo com a participa-
ção das crianças, dos pais, da juventude e dos idosos, num esforço para que
a estrutura educativa respeite todas as esferas de relações desses indivíduos
como verdadeiros espaços educativos, incluindo manifestações públicas, cur-
sos, ocupações etc., sempre considerando o meio sociocultural em que vivem.
A metodologia educacional baseia-se, sobretudo, nas ideias desenvolvidas por
Paulo Freire, o que significa que, através da problematização da realidade do
educando, este não faz meras cópias de sílabas e palavras, mas escreve a própria
vida. (PACKER, 2005) O MST formulou seu próprio material de estudo escolar,
partindo da realidade dos estudantes, do seu cotidiano e trabalhando com ele-
mentos mais próximos do conhecimento deles. (DUTRA, 2014, p. 57)
No acampamento, realiza-se uma assembleia por dia, pelo menos, para re-
latar os progressos e para resolver as queixas. (STEDILE; FERNANDES, 2012,
p. 85) Segundo Silva (2004 apud DUTRA, 2014, p. 113), o dia começa com a
reunião de várias comissões, seguida pela reunião dos líderes dos núcleos. Os
conflitos são solucionados por votação coletiva, cujo impasse só termina quan-
do a solução vencedora angaria 51% dos votos. Se só há minorias divididas,
suspende-se a questão até que a mesma seja trabalhada melhor no coletivo
Conclusão
No Brasil, é flagrante a necessidade de luta pela reforma agrária. As ocupações,
instrumentos legítimos dos movimentos sociais, que, em determinados mo-
mentos, assumem a condição de transgressão, afirmam um direito garantido
no texto constitucional, o que estabelece um contexto complexo e contraditó-
rio no qual se desenvolvem as ações sociais no campo. (MAIA, 2013) O direito
não é; ele se faz nesse processo histórico de libertação, enquanto desvenda pro-
gressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais.
Portanto, considerando os elementos constantes da teoria do pluralismo
jurídico comunitário-participativo, pode-se afirmar que a normatização criada
e disseminada no cotidiano dos acampamentos do MST constitui uma forma
de produção jurídica paralela ao Estado, fundada na democracia e na participa-
ção, escrita ou não, mas não menos importante. (DUTRA, 2014) Vimos aqui a
mst 63
importância histórica do MST na positivação de direitos à propriedade e à sua
função social, bem como em aspectos que sugerem a efetivação do pluralismo
jurídico no interior dos assentamentos por ele administrados.
Referências
ALBERNAZ, R. O.; WOLKMER, A. C. Pluralismo jurídico, estado e Movimento
dos Trabalhadores sem Terra (MST) no Brasil. Crítica Jurídica, México, D.F.,
n. 33, 141-178, 2012.
INCRA. Reforma Agrária. Brasilia, DF, 28 jan. 2020b. Disponível em: http://
www.incra.gov.br/pt/reforma-agraria.html. Acesso em: 31 out. 2020.
mst 65
SOUSA JÚNIOR, J. G. de. O direito como liberdade: o direito achado na rua.
2008. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de
Brasília, Brasília, DF, 2008.
Introdução
O tema das políticas públicas, em seu estudo e campo teórico, vem ocupan-
do cientistas e campos de pesquisa sob diferentes enfoques. Trata-se de um
debate transversal que possibilita múltiplos olhares e evoca uma necessária
interdisciplinaridade por abarcar áreas das ciências humanas e sociais, como
a sociologia, a ciência política e a administração, associando-se de maneira
preponderante à problemática do Estado e da promoção de ações públicas e
sociais.
No caso do direito, é possível observar um crescente interesse de pesqui-
sadores sobre o tema, sobretudo no que se refere aos estudos a respeito da
judicialização de políticas públicas e do papel do direito na instrumentaliza-
ção e legitimação jurídica delas, com ênfase nas práticas estatais e demandas
sociais dirigidas à realização de direitos sociais que emergem no contexto pós-
-Constituição Federal de 1988, como exemplifica estudo de Comparato (1997).
Por outro lado, há um campo a se avançar no que diz respeito aos estudos sobre
o papel do direito sob um prisma interdisciplinar na análise das políticas públi-
cas – e até mesmo na sua formulação e implementação.
Nesse sentido, partindo da relação entre política, direito e Estado, e
como resultado de reflexões teórico-metodológicas realizadas no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade
67
Federal do Sul da Bahia (UFSB),1 o presente capítulo visa promover esse debate.
Para tanto, fundamenta-se em uma abordagem qualitativa e em estudo biblio-
gráfico, primando por referenciais ancorados, notadamente, nas pesquisas de
Maria Paula Dallari Bucci.
O artigo estrutura-se em duas seções temáticas, iniciando-se pela discussão
sobre a relação entre política, direito e ação do poder público voltada à con-
cretização de direitos sociais, cujo conteúdo perpassa as dimensões históricas
dos direitos no Estado moderno, e busca articular as tensões entre a dimensão
jurídico-institucional dos processos político-administrativos do Estado e as
demandas sociais por participação, realização e proteção de direitos sociais,
cuja concretização é eficientemente verificada por meio da implementação de
políticas públicas. A segunda parte apresenta reflexões sobre as políticas públi-
cas como objeto de análise jurídica, apontando a centralidade governamental
no processo de planejamento e execução das políticas, e, em seguida, proble-
matiza uma crescente agenda de pesquisa que busca conciliar o direito com a
análise desse fenômeno, que constitui um campo de estudos eminentemente
interdisciplinar.
1 A referida pesquisa parte de uma análise jurídica do programa Minha Casa, Minha Vida, política
habitacional implementada pelo Governo Federal em 2009, para investigar as suas implicações
com a interdição do direito à cidade aos seus beneficiários, baseando-se no referencial teórico-
-metodológico explorado no presente artigo. O trabalho é financiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).
Considerações finais
A ampliação do papel do Estado, evidenciada historicamente, demanda dele
novas capacidades e a criação de um ambiente institucional que contenha es-
paços representativos, participativos e de controle, suficientes para promover a
inclusão dos múltiplos sujeitos e suas necessidades. Nesse cenário, à luz do que
primam as constituições modernas, a administração pública precisa mediar,
de um lado, os tensionamentos que surgem no seio das sociedades visando à
efetividade e ao alargamento do rol de garantias fundamentais, bem como do
ideal de democracia e bem-estar social, e, do outro lado, as burocracias típicas
da ação política. Desse aparente conflito, nascem as políticas públicas, prepon-
derante instrumento de concretização dos direitos sociais, cuja participação
estatal tem uma dimensão ativa.
Ao longo do texto, demonstrou-se que há, nesse processo, uma proximi-
dade de ordem prática entre o direito e o campo das políticas públicas. Em
busca de uma conciliação que seja também acadêmica, o principal desafio
dessa agenda de pesquisa consiste na formação de profissionais capazes de
entender que a construção e o desenvolvimento das bases institucionais que
materializam os princípios e normas que preconizam os direitos de igualdade,
Referências
Introdução
Para os(as) viajantes que transitam pela BR-101 na região do extremo sul da
Bahia pela primeira vez, uma imagem que certamente impressiona o olhar
mais atento recai sobre as casas de indivíduos e famílias que residem à mar-
gem da estrada, nas faixas de terras de domínio do Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (DNIT). Em sua maioria, são famílias que não
estão ali acampadas, não são membros de movimentos sociais reivindicando a
posse da terra, mas residem e vivem ali na beira da rodovia, cultivando mandio-
ca, urucum, pimenta, mamão, milho, feijão, hortaliças e frutas diversas. Moram
em casas de pau a pique, lonas, tábuas de madeira, folha de zinco; algumas são
de alvenaria. A maioria vive sem água potável, energia elétrica e banheiro den-
tro de casa. Trata-se, portanto, de uma população que possui um modo de vida
sui generis, cujos estudos pelas ciências sociais são rarefeitos,1 e que permane-
ce invisível aos olhos do Estado, posto que sequer será recenseada em 2020,
conforme informação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Seguramente, a invisibilidade dessa população traz consequências graves para
seus membros em termos de saúde, educação e assistência social, sobretudo
para crianças e idosos, que vivem em situação de extrema vulnerabilidade social.
1 Registra-se o único artigo sobre essa população: MITIDIERO Júnior, Marco Antônio. “Agricultura
de beira de estrada ou agropecuária marginal ou, ainda, o campesinato espremido”. Acessar:
http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/2263.
85
Nessa perspectiva, o objetivo mais geral do presente artigo é apresen-
tar ao público leitor o perfil dessa população e revelar a sua existência.
Especificamente, pretende-se aqui caracterizar e dar visibilidade a esses in-
divíduos e famílias, para que, dessa maneira, possam ser alvo de políticas
públicas de proteção e promoção social, posto que o avanço mais profundo da
democracia requer que as políticas públicas tenham um foco nas populações
em maior vulnerabilidade social. Mas, para tanto, é importante e até mesmo
necessário nomear, pois, “se não se nomeia uma realidade, nem sequer serão
pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”. (RIBEIRO, 2019,
p. 41) Desse modo, imbuídos da tarefa de nomear essa população, de dar a ela
visibilidade, atribuímos, então, o nome de “beiradeiros” a esses indivíduos e
famílias que detêm a posse de faixas de terra de domínio da União nas beiras
das rodovias do país.
As pessoas entrevistadas se autodenominam como moradores “da beira da
pista”, “da BR-101”, “da beira da BR-101”, “da pista”. Não se trata, portanto, de
uma categoria nativa, mas que busca resumir as diversas designações encontra-
das no contexto da pesquisa, ao tempo que faz analogia às pessoas que já são
assim chamadas por ocupar as margens dos leitos dos rios, sobrevivendo do que
plantam e colhem nas margens fertilizadas pelas vazantes pluviais. (VARGAS,
1987; VELHO, 2009)
Desse modo, na pesquisa que ora apresentamos, foram entrevistados 68 mo-
radores ao longo de 25,7 km da BR-101, que corta o município de Teixeira de
Freitas (BA), na direção norte. A pesquisa foi aprovada e registrada pelo Comitê
de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
A investigação recaiu sobre o levantamento de dados socioeconômicos com
aplicação de 68 questionários estruturados, com perguntas objetivas, que foram
analisados com a ajuda das informações complementares registradas no caderno
de campo produzido, constituindo-se num censo sobre dados socioeconômicos
e demográficos. As visitas a campo foram feitas, em sua maioria, aos domin-
gos pela manhã e iniciadas em setembro de 2018, estendendo-se até o mesmo
mês do ano seguinte. Inicialmente, foram realizadas três visitas exploratórias, de
modo a identificar o dia da semana e o horário mais apropriado para viabilizar a
pesquisa, além de estabelecer os primeiros contatos com os moradores.
Havia um temor no início da pesquisa de como seríamos recebidos, pois
queríamos evitar ser reconhecidos como membros do DNIT ou de qualquer
à b e i r a da v i da 87
está diretamente vinculada à formação do campesinato e da questão agrária
brasileira, isto é, ao tipo ou modelo de ocupação, posse e distribuição das ter-
ras, bem como às transformações nas relações sociais trabalhistas de produção:
como se produz, de que forma se produz. (SILVA, 1981)
As origens dos posseiros remontam ao período colonial, quando a Coroa
portuguesa adotou o monopólio da propriedade exclusivamente sob sua égide
(STEDILE, 2005), não se constituindo, até então, bem capital passível de co-
mercialização. Mas, com o intuito de atrair investidores portugueses para que
aplicassem capital na produção de mercadorias a serem exportadas ao merca-
do europeu, a monarquia adotou, então, o sistema de “concessão de uso”, com
direito de transmissão por herança, não sendo permitida, no entanto, a venda
da terra, mantendo-se a propriedade sob o poder de Portugal. (STEDILE, 2005,
p. 22)
Os posseiros foram os precursores da pequena propriedade camponesa.
“A princípio, as invasões limitavam-se às terras de ninguém nos intervalos en-
tre as sesmarias, depois voltaram-se para as terras devolutas e, não raramente,
para as áreas internas dos latifúndios sub explorados”. (GUIMARÃES, 1964,
p. 102) Sob o regime de sesmarias, estavam excluídos do direito de propriedade
os negros escravizados, “os índios, que até o início do século XVII eram escra-
vos reduzidos à condição de peça, e os filhos de brancos sem pureza de sangue,
os bastardos”. (MARTINS, 1981, p. 32) Além desses grupos, vieram engrossar a
massa de pessoas às quais o direito da propriedade era interditado os excluí-
dos do sistema de morgadio, que determinava que a herança seria transmitida
ao filho varão primogênito. Esse sistema, que durou até 1835, fazia dos outros
herdeiros uma espécie de agregados do patrimônio herdado com base na pri-
mogenitura. Contudo, o morgadio “não impedia a abertura de novas fazendas
e a constituição de novas propriedades mediante simples ocupação e uso da
terra”. (MARTINS, 1981, p. 33)
A ocupação fazia parte do processo de obter uma sesmaria. “O futuro ses-
meiro ocupava antes a terra, abria sua fazenda e só assim se credenciava para
obter a concessão e a legitimação da sesmaria. O emprego útil da terra era a
base da legitimação”. (MARTINS, 1981, p. 33) Cumprido esse requisito e sendo
branco de puro sangue, o título de sesmeiro era concedido. O mestiço ou bas-
tardo pobre podia abrir a sua fazenda e ocupar a sua posse, mas, devido ao fato
à b e i r a da v i da 89
O perfil socioeconômico dos beiradeiros
A partir dos dados e das informações levantadas pelos questionários aplicados
e anotações no caderno de campo, observou-se que a maioria dos beiradeiros
conhece seus vizinhos e mantém boas relações. Há uma repetição de relações
de parentesco, com primos e outras pessoas do seio familiar, que se aventuram
nas margens da rodovia. O entrevistado nº 7 revelou que, quando não se com-
pra o direito de ocupar, “não é só chegar e se instalar”; é preciso que haja uma
espécie de anuência por parte dos que já se encontram naquela localidade.
Entre os entrevistados, houve predominância de indivíduos do sexo mas-
culino, com 41 (60,3%), enquanto 27 (39,7%) eram mulheres. A maior frequência
etária se deu na faixa de 36 a 45 anos (26,7%), seguida das faixas de 46 a 55 anos
(21,7%), 26 a 35 anos (20%), 55 a 60 anos (18,3%) e acima de 60 anos (13,3%). Sobre
o estado civil, a maioria declarou-se casada ou convivente (67,6%), ao passo que
22% são solteiros, e divorciados e viúvos somam 10,4%.
Sobre os rendimentos, mais da metade declarou viver com renda de até
um salário mínimo (54,4%), enquanto outros vivem com um a dois salários
(7,4%), com mais de dois até três salários (1,5%), com mais de três até cinco sa-
lários (1,5%), e houve uma frequência significativa quanto à opção “sem renda”
(35,2%). Alguns moradores vendem alguns dos itens que produzem em uma
barraquinha instalada na beira da estrada ou fazem “bico” como pedreiros em
construções na zona urbana, ou ainda são recrutados por alguns fazendeiros
como mão de obra temporária e prestam serviços da roça, como consertar cer-
cas, plantar e arar a terra. Outros trabalham na época da colheita do café, como
relata a entrevistada nº 2, que conta que, no período de colheita de café, prefere
ir para o Espírito Santo, principalmente pela diferença no pagamento, pois,
enquanto no Espírito Santo recebem R$ 11,00, em média, por saco de café co-
lhido, na Bahia os produtores pagam R$ 8,00, R$ 7,00 ou até R$ 6,50.
Perguntados sobre a origem, 79,4% informaram que nasceram na Bahia, de-
monstrando a predominância de baianos, e 20,6% nasceram em outros estados,
como Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco e Rondônia. Sobre a
naturalidade, 14,7% dos entrevistados nasceram em Teixeira de Freitas, 64,7%
nasceram em outras cidades do extremo sul baiano, como Itamaraju, Medeiros
Neto, Alcobaça, Prado, Guaratinga, Itanhém, Vereda, Jucuruçu e Itabela.
Infere-se desses dados que se trata de um movimento migratório característico
Sobre o tempo que residem na estrada, havia pessoas com apenas seis me-
ses de moradia (10,3%), com seis meses até um ano (7,4%), com mais de um ano
até três anos (23,5%), com mais de três anos até cinco anos (16,2%), com mais
de cinco anos (11,8%), com mais de dez anos (30,8%). A moradora nº 25 conta
que já mora ali há cerca de 30 anos, que veio de Itajuípe (BA), porque “as coisas
estavam difíceis”, e que não havia nem asfalto. “A gente ajudava nos acidentes,
tapava buracos com terra pra ganhar um trocado dos motoristas!”. Todos os sete
filhos nasceram ali, tendo o mais velho 27 anos de idade.
No quesito religião, 50% são evangélicos, 36,8% católicos, 10,2% sem reli-
gião, 1,5% de religiões de matriz africana e 1,5% de outras religiões. No perímetro
da pesquisa, encontramos pelo menos duas igrejas destinadas ao culto evangé-
lico e uma igreja católica. Apenas um entrevistado é praticante de religião de
matriz africana, residente de uma ocupação que fica num morro de terra, um
terreiro de candomblé denominado “Novo Quilombo”, nome dado, segundo o
morador, pelos próprios orixás.
Sobre tipo de aparelhos domésticos existentes nas casas dos beiradeiros,
em 52 ocupações (76,47%), existem celular e fogão a gás. Nem sempre é possível
à b e i r a da v i da 91
comprar o botijão de gás, inviabilizando a utilização do aparelho, de modo que
o jeito é usar o fogão a lenha. A geladeira está presente em 27 casas (39,70%); 24
têm televisão e rádio (35,29%), mas a maioria desses objetos é fruto de doação.
A dificuldade de acessar energia elétrica é um fator impeditivo para usufruir
desses bens, principalmente no que diz respeito ao uso da geladeira, que se-
ria imprescindível para armazenar alimentos de forma adequada, assim como
assistir televisão.
Dos 68 entrevistados, 20 afirmaram haver crianças na ocupação (29,42%),
enquanto 48 (70,58%) responderam negativamente. Alguns preferiram que as
crianças e adolescentes, ainda em idade escolar, permanecessem na zona urba-
na, seja com os avós ou com os cônjuges de relacionamentos anteriores.
Das famílias pesquisadas, 66 (97%) são de pessoas que se declaram agricul-
tores, sendo que 30 (45,45%) vendem os produtos; 16 (24,25%) em feiras livres,
20 (30,30%) entregam em algum comércio ou vendem para atravessadores ou
ali mesmo na beira da estrada, improvisando uma barraca onde os motoristas
costumam parar para conferir. Entre eles, 58 (87,87%) plantam mandioca, além
de itens como feijão, milho, pimenta do reino, abóbora, acerola, arroz, batata,
cacau, cana-de-açúcar, goiaba, jaca, limão, manga, maracujá, quiabo e frutas
diversas. Dos 66 agricultores, 60 (90,90%) cultivam plantas medicinais, como
erva-doce, boldo, capim-santo ou capim da lapa, hortelã, que são utilizadas
para fazer chá e combater sintomas de gripe, febre e má digestão, sendo esse
último item referido reiteradamente também como “barriga fofa” ou dor de
barriga, sintomas que podem estar relacionados à forma de coleta e armazena-
mento da água, bem como às condições sanitárias de cada ocupação.
A negociação dos terrenos é feita pelos ocupantes levando em considera-
ção, além do valor pago na aquisição, as benfeitorias realizadas, como banheiro
e, principalmente, a quantidade de unidades plantadas: pés de urucum, man-
dioca, pimenta-do-reino, dentre outras culturas. A comercialização das áreas
na faixa de domínio à beira das estradas não é uma prática legalizada: não há
documentação formal que comprove a titularidade da posse, pois, como se trata
de terras da União, não são passíveis de aquisição. Os beiradeiros demonstram
ter ciência do fato e ignoram a vedação legal, realizando a transmissão dos
terrenos informalmente, pois, segundo eles, o que está à venda é o “direito” à
terra, e placas sinalizando “vende-se” são encontradas por toda a estrada. Entre
à b e i r a da v i da 93
Na pesquisa de campo, constatou-se que há diversas comunidades ao lon-
go da rodovia baseadas em laços de parentesco, compadrio ou amizade. É o
caso dos ocupantes do trecho da rodovia conhecido como “km 857”. Em pelo
menos seis casas visitadas, os moradores possuem algum vínculo de ordem
familiar. Mesmo vivendo sob estruturas de adobe com cômodos improvisados,
a notícia do êxito na ocupação chega ao conhecimento de outros familiares,
que se aventuram a ocupar a beira da estrada e fazer dali a morada do grupo
familiar.
Com relação ao acesso à educação, 42,6% dos beiradeiros afirmaram que
as crianças frequentam a escola, seja em alguma localidade situada nas pro-
ximidades da rodovia, nos distritos vinculados ao município ou mesmo em
escolas na zona urbana, revelando que o município proporciona o acesso delas
à educação independentemente do local onde moram, pois, mesmo sendo área
de jurisdição do Governo Federal, o trecho da estrada pesquisado se encontra
nos limites do município de Teixeira de Freitas. Pelo menos 26 crianças es-
tão cursando o ensino fundamental e 53 delas têm entre 0 e 12 anos. Entre os
adolescentes, 38 estão entre 13 e 18 anos de idade, configurando um número
significativo de crianças e adolescentes vivendo às margens das rodovias. Os
dados coletados indicam que, das crianças que estudam, 86,2% são usuárias
de transporte escolar disponibilizado pela Secretaria Municipal de Educação.
Sobre o acesso à água nas faixas de domínio da União, não há abasteci-
mento desse recurso essencial à vida humana através de encanamento pela
empresa autorizada competente, assim como não há rede coletora de esgoto
nem saneamento básico. Os beiradeiros cavam poços artesianos dentro da sua
posse, nas áreas contíguas e, em alguns casos, na fazenda com a qual faz vi-
zinhança, mediante autorização do proprietário. Também procuram represas
naturais, córregos e coletam água da chuva – o importante é encontrar água
para garantir a sobrevivência das pessoas, dos animais, tanto de estimação
quanto de criação para abate, além de alguns casos de irrigação da plantação.
O acesso à água em poço ou nascente dentro da posse é realizado em 39
casas (57,4%), enquanto 17 (25%) dos entrevistados buscam água fora da área
da posse e 12 (17,6%) captam água fora da posse e armazenam em recipientes
plásticos. Muitos que têm poço artesiano informam que retiram a água e en-
chem reservatório com ajuda de bomba hidráulica, que precisa de combustível
(gasolina) para funcionar. O entrevistado nº 60 informou que coleta água de
à b e i r a da v i da 95
responderam que a fossa é séptica, enquanto outros 6 lançam os dejetos em
vala e um morador lança o esgoto no rio.
Quanto ao acesso dessas pessoas à energia elétrica, assim como a água,
não há disponibilização regular do serviço pela concessionária de energia. Nas
visitas às ocupações, 25 entrevistados informaram não haver energia na casa
(36,8%), enquanto 43 ocupações (63,2%) têm alguma fonte de energia elétrica.
Das casas com energia, 23 acessam energia elétrica por concessão do fazendei-
ro das proximidades (53,5%), mas é importante frisar que essa permissão não se
dá de forma gratuita. Esse acesso é realizado mediante pagamento mensal e,
em alguns casos, o proprietário ou gerente da fazenda informa qual é o valor
correspondente e o grupo de beiradeiros que se utiliza daquela fonte de ener-
gia se divide e se mobiliza para pagar o valor informado. Há, ainda, 12 pessoas
(27,9%) que instalaram placa fotovoltaica e conseguem converter energia solar
em elétrica, mas nem sempre a energia advinda dessa fonte é suficiente para fa-
zer funcionar aparelhos domésticos convencionais, como geladeira e televisão.
Apenas um entrevistado mencionou ter um gerador de energia. A dificuldade
em fontes de energia influencia, inclusive, no armazenamento adequado de
alimentos, uma queixa frequente. Flagramos alguns alimentos sendo guarda-
dos de forma duvidosa, o que pode comprometer seriamente a saúde.
Existem pelo menos três grupos que se organizaram para obter energia
elétrica junto aos fazendeiros. Os ocupantes da beira da pista que ficam mais
próximos da sede do município informaram que “energia vem da Prainha, de
seu Ivo”. A Prainha seria uma fazenda situada nos limites de Teixeira de Freitas.
Atualmente, são 16 pessoas que se utilizam dessa forma de distribuição de
energia. Seu Ivo, que tem 81 anos, conta que chegou à região antes do desma-
tamento realizado para dar lugar à criação de gado, serrarias – havia cerca de
60, na época –, além das plantações de eucaliptos, que alimentariam as indús-
trias de celulose que se instalaram no extremo sul da Bahia e norte do Espírito
Santo. Conta que seus avós vieram do Congo como escravos e, ainda, que ali
antes era a Fazenda Nova América.
Apenas 9 pessoas informaram que recebem aposentadoria, sendo que há
pelo menos 16 pessoas maiores de 60 anos nas 68 ocupações visitadas. Dos
entrevistados, 25 declararam receber Bolsa Família e apenas 6 recebem Bolsa
de Prestação Continuada (BPC), seja a pessoa com necessidades especiais ou
algum idoso.
à b e i r a da v i da 97
Quando visitamos a ocupação nº 20, o morador contou que funciona
como um local de apoio para atendimento da equipe de ESF. Em visita ao re-
ferido posto na zona urbana, o enfermeiro responsável pela equipe da ESF II,
Jorge, confirmou a informação do beiradeiro, acrescentando que as visitas são
mensais, para viabilizar o acesso das pessoas da estrada aos serviços de saúde
do município. A equipe é composta por profissionais de saúde, incluindo um
médico e, algumas vezes, um dentista. Há um cronograma de atendimentos,
além da distribuição de medicamentos, mensalmente afixado no mural inter-
no do posto. Os casos mais complexos são encaminhados para o posto fixo na
zona urbana ou mesmo inseridos na rede de saúde via regulação. Apesar de a
pesquisa identificar que 85,3% dos entrevistados possuem o cartão do SUS, cri-
tério preferencial para acesso à rede pública de saúde no Brasil, os beiradeiros
relatam que o acesso é difícil e demorado.
Conclusões
O presente capítulo pretendeu trazer ao conhecimento do público leitor uma
população até então praticamente desconhecida, invisível aos olhos do Estado,
e que vive em condições de extrema vulnerabilidade social, não obstante o po-
der público municipal garantir o acesso das crianças à educação fundamental,
ao Bolsa Família e ao SUS. No entanto, falta ainda a garantia de acesso a di-
reitos e a políticas públicas sociais – energia, saneamento básico, moradia, se-
gurança alimentar, renda básica etc. –, o que poderá ser um marco diferencial
na ampliação da qualidade de vida dessa população. A ocupação irregular não
pode ser justificativa para que as políticas públicas que a sociedade contempo-
rânea foi capaz de produzir não alcancem os beiradeiros.
Ao traçar o perfil dos beiradeiros, observa-se que são posseiros oriundos,
em sua maioria, do interior da Bahia (79,4%), sendo que 14,7% dos entrevista-
dos nasceram em Teixeira de Freitas e 64,7% nasceram em outras cidades do
extremo sul da Bahia próximas a Teixeira de Freitas. Os motivos pelos quais os
beiradeiros ocupam as margens da rodovia são reveladores da vulnerabilidade
social em que vivem. Tomando por base as respostas a essa pergunta, vimos
que 37% dos entrevistados foram morar na beira da estrada por não conse-
guirem pagar o aluguel, e 10,2% consideram que morar na beira da estrada
tornou possível a subsistência da família, isto é, o acesso a itens alimentares
Referências
à b e i r a da v i da 99
MITIDIERO JUNIOR, M. A. Agricultura de Beira de Estrada ou Agropecuária
Marginal ou, ainda, O Campesinato Espremido. Revista Nera, Presidente
Prudente, SP, ano 16, n. 23, p. 43-59, jul./ dez. 2013.
101
legislação dedicada às áreas rurais reconheça a pluriatividade no campo e esteja
familiarizada com a realidade do novo rural no Brasil.
O contato estabelecido com membros das associações de moradores e agri-
cultores, com os produtores agrícolas e não agrícolas, as visitas, observações e
o acompanhamento de atividades nas comunidades desse distrito possibilita-
ram refletir sobre as mudanças e transformações ocorridas na localidade.3 Isso
nos levou a indagar, afinal, o que vem a ser o rural e de que modo essa definição
serve para pensar a realidade do Vale Verde, inserindo-nos em uma discussão
crítica que se atualizou nas últimas décadas no Brasil.
Sumariamente, o rural corresponde ao que não é urbano, e sendo defini-
do em oposição e juntamente ao urbano, como na separação entre campo e
cidade, contrastam-se particularidades que os distinguem entre si. Ao rural/
campo, são atribuídas características como a falta, a escassez e o atraso em
um espaço exclusivamente associado à atividade agrícola. Considera-se que a
organização social de quem ali vive apresenta uma relação mais íntima com
a natureza, com baixa densidade demográfica e constituindo um pequeno
universo autárquico e comunitário, tal qual o Gemeinschaft (comunidade) de
Tönnies, em que valores tradicionais e religiosos fundamentam uma sociabi-
lidade baseada em relações de interconhecimento. O urbano, representado
pela cidade, em contraposição, seria o lugar da Gesellschaft (sociedade), a qual
Tönnies (1947 apud BRANCALEONE, 2008, p. 99) aponta como a sociedade
diversa e impessoal das relações burocratizadas, que floresce junto às fábricas,
indústrias e ao comércio.
Embora esse entendimento tenha sido problematizado nas últimas déca-
das por vários analistas, a abordagem dicotômica entre o rural/urbano não está
superada, restando ainda a necessidade de entendermos como as diferenças
entre os dois espaços têm se modificado, com a aceleração tecnológica e com
as mudanças territoriais, para que interpretações hegemônicas simplificadoras
não impeçam o entendimento da sociedade imbricada e complexa que se de-
senha. Segundo Silva (1997, p. 43), por exemplo, as diferenças entre o rural e o
4 Sobre os mitos do rural brasileiro, ver: Carneiro (2008), Silva (2001) e Veiga (2006).
5 Segundo Laurenti e Del Grossi (2008), o IBGE classifica o município em áreas rurais e urbanas, e,
entre as áreas rurais, há uma subdivisão. Uma delas é a “extensão urbana”, que é a área urbanizada
adjacente ao perímetro urbano.
6 Apesar de contrapor os limites do rural e do urbano, Veiga (2005) ainda debate as definições con-
ceituais desses espaços, buscando entender as dinâmicas de cada um. Para o autor, o rural não
abrange somente aquelas áreas que estão fora do contorno oficial dos municípios, mas também
áreas de baixa intensidade demográfica que apresentem um menor grau de “artificialização dos
ecossistemas”, embora sejam apresentadas como urbanas.
7 Estudar o sistema de valores existente no imaginário social, ou seja, compreender o rural ou interpre-
tar a esfera do rural a partir do seu interior. (GIORDANO, 1989, p. 410 apud CARNEIRO, 2008, p. 23)
8 O Plano Diretor Municipal Participativo de Porto Seguro cita a sede do distrito de Vale Verde como
urbana: “As intervenções situados na área compreendida entre a Rodovia BA-001 e o Vale do Rio
Buranhém, em um raio de 2,00 km (dois quilômetros) da Praça Central da sede, deverão ser objeto
de análise pelo IPHAN e de aprovação pelo CONCIDADES, ou outros conselhos que venham a ser
criados para opinar, apreciar as diretrizes estratégicas, prioridades e instrumentos para a política
de desenvolvimento urbano de Porto Seguro”. (PORTO SEGURO, 2006, grifo nosso)
A autora afirma que não é o caso de abolir ou reafirmar o uso das catego-
rias rural e urbano, completando:
13 O Projeto Vale Verde é o assentamento agrícola mais antigo do Vale Verde, criado em 1982 pelo
Governo do Estado da Bahia, por meio da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR).
Sobre a política de assentamentos no Brasil, ver: Santos, Ribeiro e Santos (2011).
14 Parque Nacional do Pau Brasil, no município de Porto Seguro, criado pelo decreto de 20 de abril de
1999.
15 A BA-001 é uma rodovia que percorre o litoral da Bahia, ligando o litoral sul até a Ilha de Itaparica,
fazendo integração com a capital do estado através do sistema do ferryboat. É constituída por
trechos não conectados, interrompidos na foz dos rios. No município de Porto Seguro, ela interliga
a BR-367 aos distritos do Vale Verde, Arraial d’Ajuda, Trancoso e Caraíva. (ARAUJO, 2004)
Estabelecimentos/atividades Quantidade
Comércio
Mercados 3
Farmácias 1
Cachaçarias 1
Postos de gasolina 1
19 Embora a Cooperativa Agrícola Mista dos Produtores do Vale Verde (Coprovale) esteja, atualmen-
te, desativada, o sistema ainda tem características de cooperativismo, especialmente na produção
da farinha.
Indústrias de transformação
Fábricas de lajes 1
Fábricas de blocos 2
Carpintarias 1
Fábricas de beiju 8
Alimentação
Restaurantes 2
Lanchonetes 2
Padarias 2
Bares 7
Alojamento
Comércio e serviços
Borracharias 1
Bicicletarias 1
Educação
Igrejas 5
Considerações finais
Em todo o distrito do Vale Verde, a atividade agrícola é marcante, e o interesse
na continuidade dessa atividade existe em quase todas as localidades visitadas.
Mesmo assim, praticamente todas as famílias incluem membros em atividades
não agrícolas, nas quais se destacam mulheres atuando como professoras ou
Referências
IZIQUE, Cláudia. O novo rural brasileiro. Revista Pesquisa Fapesp, São Paulo,
n. 52, 2000. Seção Humanidades.
Introdução
Com as mudanças ocorridas nos últimos anos no Governo Federal, após 2016,
a descontinuidade de programas e o enfraquecimento de políticas públicas
têm sido comuns em áreas prioritárias de desenvolvimento social. No âmbito
das políticas de desenvolvimento rural direcionadas à agricultura familiar, esse
cenário ficou evidente. E para sustentar essa observação, se apresenta como re-
corte de estudo a estrutura da Política Pública de Desenvolvimento Territorial
(PPDT) adotada pelo governo anterior, desde 2003, em que se presumia cumprir
os três ciclos de implementação do Programa Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat) em 32 anos ininterruptos, nos 450
territórios rurais que se estimava existirem e serem organizados no país. Outro
ponto a apresentar para reflexão são os desafios da autogestão desses terri-
tórios rurais na forma institucionalizada de colegiados, formados por diver-
sos atores, a partir da observação do Território de Identidade Extremo Sul da
Bahia (Ties).
Portanto, para analisar a estrutura dessa política, revisitamos o processo de
planejamento, implementação e acompanhamento para verificar se tem sido
realizado conforme seus próprios objetivos. A metodologia para fins desta aná-
lise foi, inicialmente, a revisão bibliográfica sobre a trajetória das três etapas
da PPDT com base nos modelos de análise institucional e de processo, o que
119
permitiu visualizar como a política em tela se qualifica na pauta de análise de
política pública de desenvolvimento rural. Utilizou-se também de estudos já
realizados em outros territórios, cujas conclusões não se distanciam de práticas
locais. Além disso, coube o olhar do pesquisador a partir de vivências, observa-
ções e reflexões pela experiência adquirida no acompanhamento dessa política
durante o desenvolvimento de projeto de extensão universitária (2014-2016),
para criação do Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial (Nedet),
em que se pode avaliar a maneira de articulação e participação dos diversos
atores num novo ordenamento do Colegiado de Desenvolvimento Territorial
(Codeter), do Ties, que se iniciou naquela época. Isso nos permitiu fazer infe-
rências relativas à implementação dessa política e ao processo participativo.
Estudiosos como Majone e Quade (1980, p. 5), citados em D’Ascenzi e
Lima (2013, p. 101), afirmam que analisar políticas públicas “[...] é uma forma
de pesquisa aplicada desenhada para entender profundamente problemas so-
ciotécnicos e, assim, produzir soluções cada vez melhores”. De forma parecida,
Dewey (1927) já chamava atenção para a necessidade de cientistas investiga-
rem problemas concretos da vida social e buscarem solução para situações que
fossem percebidas como problemáticas. Rosana Boullosa (2013, 2019) aponta
para a necessidade de perceber e estudar diferentes modos de compreender
os processos de políticas públicas em geral, de explorar novos olhares e no-
vos modelos normativos que deem conta de suas complexidades e incertezas.
Portanto, na perspectiva da análise de políticas públicas, no contexto de pro-
cessos e de análise institucional, teremos como base o trabalho de Dye (2005) e
utilização da teoria da mirada ao revés (BOULLOSA, 2013) para compreender
o fluxo de atores envolvidos. Tais abordagens contribuirão para compreensão
do tema proposto.
A abordagem territorial é uma forma de analisar espaços econômicos,
sociais e culturais, organizações, atuação do Estado e atores que tornam pos-
sível, a princípio, um modelo de gestão participativa. Conforme Leite (2020),
“a política de desenvolvimento territorial [...] é vista como um exemplo impor-
tante ao enfrentar desafios e dilemas caros ao universo rural, tais como: a luta
social contra a pobreza; o combate à desigualdade; a estruturação de cadeias
produtivas e a geração de riqueza e renda social”. Do ponto de vista de polí-
ticas públicas, é também uma estratégia de desenvolvimento com respeito à
diversidade, à solidariedade e à justiça social, conseguidos com a participação
Considerações finais
Contudo, reconhecemos que a PPDT, conforme as análises baseadas nos mo-
delos institucional e de processo, bem como pela mirada ao revés, que per-
mitiu conhecer sua estrutura e o fluxo das ações, assim como a correlação de
atores envolvidos, mostra que foi um avanço no processo participacionista do
Referências
Introdução
O presente estudo compõe um programa de pesquisas que surgiu a partir de
uma pesquisa exploratória inicial que, ao longo de 2017 e 2018, mapeou as
principais dinâmicas sociais e territoriais ocorridas nas últimas três décadas no
território que abrange o entorno do Parque Nacional do Pau Brasil, onde se lo-
caliza um conjunto de pequenos povoados, incluídos no distrito do Vale Verde.
Conhecida entre os cidadãos de Porto Seguro e pelos visitantes turistas que
frequentam a região como o mais antigo aldeamento jesuíta no Brasil, datado
ainda no século XVI, visualizamos a imagem da pequena vila, dona de um belo
“quadrado jesuítico” de casinhas coloridas, semelhante àquele de Trancoso. No
entanto, por não estar diante da mesma vista esplendorosa para o mar, praias
brancas e ricos coqueirais, o Vale Verde1 não se projetou internacionalmente
como um destino turístico para uma elite privilegiada, como aconteceu com
Trancoso. O simpático conjunto de casas da antiga Vila do Espírito Santo dos
Índios, depois Vila Verde e, atualmente, Distrito do Vale Verde, ainda pertence
a moradores nativos, em sua grande maioria, não atraindo o mesmo fluxo de
1 A vila foi incluída como parte do conjunto arquitetônico e paisagístico inscrito no Livro Histórico e
no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico no momento da rerratificação do perímetro da área
de tombamento pela Portaria Ministerial nº 140, de 2000.
135
turistas que as vilas à beira mar. Vale Verde está localizado a 39 km da cidade
de Porto Seguro.
Este levantamento exploratório foi realizado através de extensas entre-
vistas estruturadas em 16 comunidades circunvizinhas ao Parque Nacional
do Pau Brasil, que proporcionou uma entrada em campo de muito boa qua-
lidade para um grupo de pesquisadores vinculados ao grupo de estudos em
Dinâmicas Territoriais, Etnicidades e Ruralidades Contemporâneas (Diterc),
ligado ao Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS) da
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Buscou-se levantar a história
socioambiental através da memória dos entrevistados mais antigos e da docu-
mentação encontrada. Além do processo de exploração florestal e dos atores
que chegaram à região através dele, identificaram-se algumas intervenções
fundamentais na modificação das dinâmicas locais, como a abertura da estrada
BA-001 e a retificação do Rio Buranhém. Esta última teve consequências dra-
máticas para a população originária, os moradores do quadrado da Vila do Vale
Verde. Notadamente, tratava-se de um campesinato pesqueiro que vivia princi-
palmente da pesca fluvial de camarões do tipo pitú, que desapareceram com a
retificação. Foram vendidas para novos proprietários as terras alagadas, tradi-
cionalmente ocupadas pelos descendentes tradicionais do aldeamento jesuíta,
que as manejavam para a pesca de camarões e peixes de várias espécies como
parte vital de um sistema de manejo territorial camponês que praticamente se
extinguiu.
A maioria dos projetos vinculados ao grupo de pesquisa pretendeu alcançar
um aprofundamento etnográfico em alguns dos pontos levantados pela pes-
quisa exploratória inicial e, assim, os resultados desta serviram como base para
a presente pesquisa, iniciada em 2019, que pretendeu imergir nesse território
dando atenção especial à juventude que nele habita e produz suas territoriali-
dades específicas.
O sul e o extremo sul da Bahia têm se destacado como uma das regiões
mais violentas do Brasil, especialmente no que tange ao assassinato de jovens
negros. (IPEA; FBSP, 2017) Em Porto Seguro, surgem como palco de chacinas
e violentas disputas territoriais entre grupos de jovens envolvidos pelo tráfico
o grande complexo de bairros conhecido como “o Baianão”, que reúne uma
enorme população de migrantes oriundos das regiões cacaueiras atingidas
2 A vassoura de bruxa foi uma praga que assolou as lavouras cacaueiras no sul da Bahia a partir da
década de 1980, reduzindo drasticamente a produção da cultura na região e impactando, notada-
mente, a sua oferta no país.
Uma importante análise feita por outra ótica sobre esse tema é uma abor-
dagem que coloca em oposição as condições geracionais. Para Foracchi (1972),
quando a idade biológica não é suficiente para determinar a condição limite de
representação do jovem, a juventude vai se configurar como etapa do ciclo de
vida na qual o indivíduo está exposto às crises do sistema, visto como uma re-
presentação de uma nova possibilidade de existência social. Segundo Margulis
(1996, p. 9):
3 Para Troian e Breitenbach (2018), são elas: faixa etária; ciclo de vida; geração; cultura ou modo de
vida; e representação social.
4 O número de homicídios na unidade federativa de residência foi obtido pela soma das seguintes
Classificações Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CIDs) 10: X85-Y09
e Y35-Y36, ou seja: óbitos causados por agressão mais intervenção legal. Consideraram-se jo-
vens indivíduos entre 15 e 29 anos. Elaboração da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das
Instituições e da Democracia (Diest)/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Fonte: IBGE/Diretoria de Pesquisas. Coordenação de
População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica e MS/
SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM.
5 Disponível em: sim.saude.gov.br
6 A meta projetada era de 4,3 para esse ano (2017). A média do país no ensino médio foi de 3,8,
enquanto a de Porto Seguro foi de 3,6. (CERQUEIRA, 2017)
7 A opção pelo ocultamento dos nomes dos entrevistados se deu pelo desejo de proteção da identi-
dade deles.
8 Identificou-se em trechos da entrevista da jovem a noção de habitus: “Uma das funções da noção
de habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente
singular ou de uma classe de agentes”. (BOURDIEU, 2011, p. 21)
Conclusão
Desde o início das pesquisas no campo do Vale Verde, o território e todas as
suas maneiras de ser encarado têm sido os principais elementos de interse-
ção entre as possíveis investigações já identificadas. Os relatos colhidos e as
vivências captadas no exercício etnográfico em campo demonstraram a ca-
pacidade e o ímpeto de perpetuação das práticas da agricultura familiar, que
movimentam a economia da localidade, pelos jovens. Além disso, a percepção
da noção de pertencimento e responsabilidade sobre o território demonstrou
Referências
ABRAMO, H. W.; LEÓN, O. D. Juventude e adolescência no Brasil: referências
conceituais. Organização Maria Virgínia de Freitas. São Paulo: Ação Educativa,
2005.
CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Ipea: FBSP, 2017.
CASTRO, Elisa Guaraná de. Entre ficar e sair: uma etnografia da construção
social da categoria jovem rural. 2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social)
– Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
PORTO Seguro está abaixo das médias baiana e brasileira no Ideb. Jornal do Sol,
Porto Seguro, p. 1, 27 set. 2017. Disponível em: http://www.jornaldosol.com.br/
index.php/component/content/article/43-educacao/2179-porto-seguro-esta-
WULFF, Helena. Introduction: introducing youth culture in its ouw right: the
state of the art and new possibilities. In: AMIT-TALAI, V.; WULFF, H. (ed.).
Youth Cultures: a crosscultural perspective. Londres: Routledge, 1995. p. 1-18.
Experiências
participativas
POLÍTICA PÚBLICA,
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
E SAÚDE
O processo deliberativo nas instituições
participativas e a capacidade de influenciar
políticas de saúde: uma consequência
ou um desafio?
155
Dentre essas instituições, destacam-se os conselhos de saúde, que surgem
de uma das diretrizes organizativas do Sistema Único de Saúde (SUS): a parti-
cipação da comunidade. Eles foram absorvidos como estratégia política pelos
projetos das diferentes instâncias governamentais nos anos de 1990; contudo,
a disseminação desses órgãos pelo país tem revelado uma série de problemas
relacionados a questões diversas; dentre elas, a de natureza deliberativa.
Diante disso, nesta escrita, fazemos convite a uma reflexão sobre a reali-
dade operacional de um espaço público, considerado um campo privilegiado
de análise da relação entre o governo e a sociedade civil que, apesar de ter
sido criado recentemente, já tem sua existência ameaçada pelo atual Governo
Federal. O espaço eleito para investigação foi o Conselho Municipal de Saúde
de Teixeira de Freitas (CMS/TF), que, de modo particular, permitiu que viven-
ciássemos a experiência da gestão participativa, incentivando-nos a contribuir
para o aperfeiçoamento desse órgão.
O que este texto procura apresentar, de maneira breve, é um recorte da
pesquisa intitulada “Participação, sociedade civil e a capacidade de influen-
ciar políticas sociais: o caso do Conselho Municipal de Saúde de Teixeira de
Freitas” (2020), de Betânia do Amaral e Souza. Tal estudo buscou abordar as
variáveis que interferem na efetividade deliberativa das instituições participa-
tivas, bem como examinar o grau de efetividade do conselho pesquisado a fim
de identificar os acertos e desafios vivenciados para a definição de aspectos
que pudessem contribuir para o aprimoramento do desempenho encontrado.
Assim, este texto discutirá uma dimensão importante da efetividade delibera-
tiva: a “capacidade deliberativa”, entendida como a “capacidade dos conselhos
em produzir debates e decisões que tivessem a possibilidade de influenciar
efetivamente a produção da política pública”. (CUNHA, 2007, p. 142) Ou seja,
trataremos de um importante indicador da qualidade do processo decisório
empreendido no interior das instituições participativas. (ALMEIDA, 2006)
A relevância científica e social deste estudo assenta-se na certeza de que
é fundamental conhecer os conselhos para reconhecê-los como locais de
interação entre a sociedade e o Estado nas decisões políticas sobre o SUS, des-
tacando-os como uma importante inovação democrática. Pretende-se, ainda:
a) fornecer informações que possibilitem a potencialização do processo deli-
berativo realizado no CMS/TF; b) valorizar a participação social visando à sua
sobrevivência e resistência, em razão das ameaças às instituições participativas
Procedimentos metodológicos
Este trabalho consiste em um estudo descritivo, baseado em pesquisa docu-
mental que adotou, com adaptações, variáveis de análise propostas em outros
estudos, como os de Avritzer e demais autores (2005), Cunha (2007) e Souza e
Heller (2019). Considerou-se para investigação as variáveis reveladoras da di-
nâmica do processo deliberativo desenvolvido nas instituições participativas:
igualdade deliberativa; decisões prevalentes; funções prevalentes; e número de
resoluções publicadas e não publicadas.
Para o estudo dessas variáveis, foram analisadas 14 atas registradas no
CMS/TF nos anos de 2018 e 2019. Procedeu-se à análise de conteúdo das atas
1 Os temas foram agrupados do seguinte modo: 1. Proposição sobre a política: deliberação sobre a
política, deliberação sobre o fundo; 2. Controle da política: deliberação sobre questões gerais da
política, a gestão dos serviços, a gestão de especialidades e gestão do atendimento; 3. Outras deli-
berações: organização interna do CMS; violência e saúde; convites/avisos/manifestação; controle
da política; coordenação entre os níveis da política de saúde; expressão (tematização) de proble-
mas públicos não relacionados à política pública e questões gerais.
Igualdade deliberativa
Identificar quem fala no CMS é importante para examinar a capacidade de
expressão dos diferentes atores, conselheiros ou não, em especial a dos ato-
res da sociedade civil (VALE NETO, 2015); afinal, espera-se que as práticas de
negociação de políticas públicas nesse órgão envolvam a pluralidade de atores
sociais que o compõem, quebrando o monopólio estatal nas decisões sobre es-
sas políticas que dizem respeito a toda sociedade. (ALMEIDA, 2006) Com esse
Prestador – 0% – 0% 0 0%
Fonte: elaborada pelas pesquisadoras a partir das atas de reunião do CMS/TF (2018 e 2019).
Funções
Categorias N Total %
prevalentes
Gestão de especialidades 13
Violência e saúde 02
26 39%
Outras Convites/avisos/manifestações 16
deliberações Controle da política –
Total 66 66 100%
Fonte: elaborada pelas pesquisadoras a partir das atas de reunião do CMS/TF (2018 e 2019).
2019 02 02 100% – 0%
Fonte: elaborada pelas pesquisadoras a partir da consulta realizada no Diário Oficial do Município de Teixeira de Freitas
e das resoluções do CMS (2018 e 2019).
Fonte: elaborado pelas pesquisadoras a partir das atas e resoluções do CMS (2018 e 2019) e dos critérios de classificação
de Souza e Heller (2019).
Considerações finais
A análise aqui empreendida revelou que os conselhos gestores possuem grande
importância na democracia brasileira, pois foram instituídos em decorrência da
intensa mobilização dos diversos movimentos sociais durante o processo de re-
democratização. Essa mobilização foi capaz de abrir espaço para a regulamenta-
ção desses locais plurais, permitindo a inclusão da sociedade no debate político
brasileiro e estabelecendo, assim, uma nova relação entre o Estado e a sociedade.
Nesse contexto, os conselhos de saúde foram criados para garantir a in-
serção dos indivíduos na gestão pública da saúde e, hoje, são considerados os
Referências
ALMEIDA, D. C. R. de. Conselhos municipais de saúde e educação: distintos
padrões de participação política. 2006. Dissertação (Mestrado em Ciências
Política) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2006.
Introdução
O Fórum da Rede Cegonha (RC) da região de Porto Seguro iniciou-se em 22 de
agosto de 2018, tendo sido realizados 15 fóruns até o momento. O Fórum da
RC se configura como um grupo interinstitucional e multiprofissional, com
o objetivo de discutir e debater sobre a atenção perinatal a mães e crianças,
colocando em evidência os problemas da linha do cuidado materno e infantil.
(BAHIA, 2016) Um dos temas recorrentes nos fóruns é a violência obstétrica,
que aparece como assunto a ser discutido e enfrentado ou como depoimento
de experiências das participantes do fórum. As denúncias de violência obsté-
trica foram uma das molas propulsoras do surgimento desse fórum, já que, em
2017, aconteceu uma conferência livre de mulheres de Porto Seguro, na qual
foi apresentada uma série de denúncias de violência obstétrica no município.
Motivado por tais denúncias, foi realizado o primeiro encontro entre gestão
hospitalar, base regional de saúde, Secretaria Municipal de Saúde e controle
social para discutir formas de enfrentamento ao problema, o que pode ser con-
siderado a semente do fórum regional.
No Brasil, a violência obstétrica vem sendo debatida por movimentos so-
ciais e divulgada a cada dia, especialmente através de redes sociais – sites, blogs,
171
vídeos etc. –, a exemplo da “[...] ReHuNa (Rede de Humanização do Parto e
do Nascimento), nascida em 1993, como articuladora de estudos e de propos-
tas críticas do modelo de assistência médica ao nascimento vigente no país”.
(CARNEIRO, 2013, p. 52)
Apesar de o tema da violência obstétrica já aparecer internacionalmen-
te desde a década de 1950, denunciando os maus-tratos na hora do parto, e,
no Brasil, embora já houvesse estudos e pesquisas que abordassem o tema, a
pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado (2010) “con-
tribuiu de forma inédita para a visibilidade do tema da violência obstétrica,
despertando surpreendente interesse da grande mídia”. (DINIZ et al., 2015,
p. 378) Essa pesquisa apontou que uma entre quatro mulheres sofreu violên-
cia obstétrica, dado que expressa a magnitude do agravo e impacto na saúde
pública no Brasil. A própria nomeação “violência obstétrica” é polêmica, sendo
também conhecida como violência institucional, maus-tratos no parto, vio-
lência de gênero, entre outras. Neste trabalho a opção é de nomear e tratar a
violência obstétrica como tal, já que ela é descrita pelas mulheres na relação
com a equipe responsável pelo acompanhamento da gestação ou no processo
do parto. O conceito de violência obstétrica foi legalizado em alguns países, a
exemplo da Venezuela, que tipifica como:
2 Episiotomia é uma incisão efetuada na região do períneo – área muscular entre a vagina e o ânus
– para ampliar o canal de parto.
Sobre o fórum
Os fóruns contaram com a presença dos seguintes representantes: Área
Técnica de Saúde da Mulher, Diretoria de Atenção Básica, Núcleo Regional
Extremo Sul e Base Regional Eunápolis, vinculados à Secretaria da Saúde do
Estado da Bahia (Sesab); Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde
(Cosems); prefeitos; gestores municipais dos oito municípios que compõem
a região, representados por secretários de saúde, atenção básica, hospitalar,
fatores estruturais
fatores organizacionais
fatores culturais
3 A manobra de Kristeller consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar (e acelerar)
a saída do bebê, o que pode causar lesões graves, como deslocamento da placenta, fratura de
costelas e traumas encefálicos.
Tipos de Esferas de
Formas de
violência reconhecimento Autorrelação Exemplo
desrespeito
obstétrica feridas
Maus-tratos físicos “Aí toda hora elas vem e faz
Amor e violação Autoconfiança um toque, faz um toque,
Abuso físico
Direito Privação de direitos Autorrespeito toda hora um toque. Cada
e exclusão toque doía na alma”
“Hoje a gestante não tem
Maus-tratos físicos espaço para opinar ou fazer
Imposição de
Amor e violação Autoconfiança perguntas dos procedimen-
intervenções
Direito Privação de direitos Autorrespeito tos que serão realizados e
não consentidas
e exclusão das coisas às quais serão
submetidas”
Considerações finais
Apesar de as esferas de reconhecimento – amor, direito e solidariedade – serem
categorias analíticas separadas, na prática elas formam uma tessitura complexa
e, por isso, na violência obstétrica, estão geralmente relacionadas. As formas
de desrespeito atravessam a mulher ameaçando sua integridade pessoal e a
relação consigo mesma, afetando sua autoestima, seu autorrespeito e sua au-
toconfiança não apenas no momento da gestação e do parto, mas por longo
período, muitas vezes para toda vida. Dentre as formas possíveis de ressignifi-
cação dessa experiência de violência, Honneth (2003) aponta o envolvimento
em lutas sociais.
Referências
AMARAL, R. D. S. et al. A inserção da enfermeira obstétrica no parto e
nascimento: obstáculos em um hospital de ensino no Rio de Janeiro. Escola
Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 1-10, 2019. Disponível em: https://www.
scielo.br/pdf/ean/v23n1/pt_1414-8145-ean-23-01-e20180218.pdf. Acesso em:
30 jul. 2020.
BOWSER, D.; HILL, K. Exploring evidence for disrespect and abuse in facility-
based childbirth: report of a landscape analysis. Boston: USAID-Traction Project:
Harvard School of Public Health, 2010. Disponível em: https://www.ghdonline.
org/uploads/Respectful_Care_ at_Birth_9-20-101_Final1.pdf. Acesso em:
30 jul. 2020.
FÓRUM DA REDE CEGONHA, 12., 2019, Eunápolis. Ata do XII Fórum da Rede
Cegonha da Região de Saúde de Porto Seguro. Eunápolis, 26 nov. 2019b.
Introdução
Não se sabe ao certo a origem do povo cigano, embora, por questões linguís-
ticas, a maioria dos estudiosos a relacione à Índia. Sua existência, envolta em
mistérios e lendas, sempre despertou muito fascínio, temor e curiosidade, mas
muito pouco compromisso social e político direcionado ao grupo. Seja rom,
calon ou sinti, o povo cigano tem resistido na luta pela preservação da sua
cultura e habitus étnicos.
Considerados “caminhantes inumeráveis” pela vivência muitas vezes
nômade e, diga-se, tantas vezes forçada, ainda quando seminômades e/ou
sedentários, os ciganos sempre foram excluídos dos programas e políticas pú-
blicas, a exemplo da saúde. Ausente dos dados demográficos oficiais, a etnia
cigana nunca foi prioridade de gestores e trabalhadores do Sistema Único de
Saúde (SUS). A inexistência dessas informações a respeito do grupo dificulta o
conhecimento das taxas de natalidade, morbidade, mortalidade materno-in-
fantil, expectativa de vida e outras relativas a ciganas e ciganos. (SILVA JÚNIOR,
2018) Ainda que representem uma grande conquista para o movimento ciga-
no brasileiro, a elaboração e a implantação da Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani, no ano de 2018, até o momento, em
nada modificou esse cenário.
189
A ocorrência da pandemia da Covid-19 tem sido um forte sinalizador da
fragilidade do SUS perante o compromisso de oferecer um serviço de saúde
igual para todos os brasileiros, em cumprimento ao artigo 6º da Constituição
Federal de 1988, que define a saúde enquanto direito de todos e dever do
Estado. Fragilidade também é verificada no que se refere à efetivação do prin-
cípio da equidade, que versa tratar de forma desigual os desiguais, com amplo
respeito à pluralidade, bem como daquele que preconiza o cuidado para além
das questões biomédicas, com atenção plena às necessidades sociais e cultu-
rais, individuais e coletivas, com vistas a garantir a integralidade.
Documentos, matérias, áudios e vídeos têm sido publicados para exibir
como a população cigana vem sendo tratada pela sociedade e pelo poder pú-
blico em tempos de pandemia, sob a forma de manifestações de repúdio em
todo o país. Dentre os primeiros manifestos, a nota publicada pelo Sindicato
Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES, 2020)
trouxe um repúdio à ciganofobia e à violência do poder público com os povos
ciganos, sobretudo em um momento de crise de saúde pública mundial, a par-
tir de denúncias de discriminação nas cidades de Dois Vizinhos, Guarapuava e
Imbituva, no Paraná, e Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul. O documento
solicita a efetivação da Política Nacional de Atenção Integral ao Povo Cigano/
Romani – Portaria nº 4.348, de 28 de dezembro de 2018 – como uma estratégia
para a redução e o combate à ciganofobia ou romafobia. (NOTA..., 2020) Em
outro documento, há denúncias do descaso e do racismo de que está sendo víti-
ma o povo cigano em muitas cidades brasileiras. Pesquisadores e ativistas, entre
os quais muitos ciganos, alertam para o racismo contra grupos ciganos durante
a pandemia e cobram um plano de saúde emergencial para essa população. Na
Bahia, os primeiros relatos públicos remetem à cidade de Camaçari, onde o des-
preparo dos gestores e profissionais da saúde é denunciado através do Relatório
Denúncia Covid-19 (2020), ofício elaborado por lideranças ciganas da Bahia em
parceria com a Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK)/Brasil.
Assim sendo, considerando tal contexto, este estudo tem como objeti-
vo discutir acerca do despreparo do serviço público de saúde brasileiro para
atender às necessidades sociais em saúde da etnia cigana durante a pandemia
da Covid-19, ao tempo em que pretende fomentar reflexões quanto à rele-
vância da elaboração de projetos que reconheçam, respeitem, estimulem e
valorizem a interculturalidade na produção do cuidado. Trata-se de um estudo
Ciganidade
Falar sobre ciganidade é uma necessidade e um desafio. A condição de povo
ágrafo é um fator que dificulta as minuciosas análises e a pesquisa acerca da
cultura e da identidade étnica cigana. Não se sabe ainda ao certo a sua origem,
tampouco quantos ciganos existem hoje espalhados pelo mundo. Assim, en-
voltos em mistérios e costumes próprios, os ciganos sempre despertaram fascí-
nio, medo e interesse. Foi a partir do que consideram uma evidência linguística
que muitos ciganólogos passaram a defender a origem indiana do grupo. No
entanto, é possível que tal semelhança linguística demonstre que os ciganos
viveram na Índia, mas não é o suficiente para provar que sua origem é indiana,
pois tal assimilação pode ter sido resultante do contato com o híndi fora da
Índia. (MOONEN, 2013)
Demarcada por características próprias, a etnia cigana está dividida em
grandes grupos, dentre eles: os calon, os rom e os sinti. Embora possuam na
sua formação identitária elementos que os unificam como uma grande nação
cigana, a exemplo do amor pela liberdade, o respeito ao código de conduta
cigana, a bandeira, o hino e outros componentes, cada grupo possui costumes
e tradições particulares que os diferenciam. De acordo com Moonen (2000), os
rom ou roma falam a língua romani e são predominantes nos países balcâni-
cos, tendo, a partir do século XIX, migrado para outros países europeus e para
as Américas. Os sinti falam a língua sintó e são normalmente encontrados na
Alemanha, Itália e França, enquanto os calon ou kalé falam a língua caló e são
os “ciganos ibéricos”, encontrados principalmente em Portugal e na Espanha,
“onde são mais conhecidos como Gitanos [...], mas que no decorrer dos tempos
se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou
migraram inclusive para a América do Sul”. (MONEEN, 2000, p. 12)
É importante evidenciar que a forma como as ciganas e os ciganos se re-
lacionam com a comunidade gadjé (não cigana) tem estreita relação com as
práticas e os costumes do grupo a que pertencem. Em comum, eles possuem
entre si a certeza de que precisam fortalecer uma identidade étnica cigana,
capaz de suplantar os estigmas históricos e excludentes. Em outras palavras,
Considerações finais
A implantação de uma política não é fator determinante para promover mu-
danças de atitudes que, antes, exigem mudanças de concepções e padrões
culturais. Da mesma forma, a Recomendação nº 035, de 11 de maio de 2020,
do Conselho Nacional de Saúde, que sugere ações relativas à saúde do povo
Referências
ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL MAYLÊ SARA KALÍ - AMSK/ Brasil
012/2020. Relatório Denúncia COVID 19 CAMAÇARI-BA/Brasil. Camaçari, 2020.
Ofício.
Valéria Giannella
Fernanda Hellmeister de Oliveira Martins
Introdução
Este trabalho se insere na pesquisa sobre “Perspectivas e desafios da participa-
ção em tempos de crise democrática”, ativa no Programa de Pós-Graduação em
Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)
desde 2017. Naquele momento, ainda em estado de choque pelo golpe contra
a presidenta Dilma Rousseff, começamos um processo de reflexão sobre de-
mocracia e participação à luz do novo contexto político que ia se desenhan-
do e que, infelizmente, piorou a partir das eleições de 2018, que levaram Jair
Bolsonaro à presidência da república.
O Comum1 é um conceito que tem certa história nas ciências sociais e que
encontra nos últimos anos uma atenção renovada. (BOLLIER, 2016; DARDOT;
LAVAL, 2016; HARDT; NEGRI, 2016; SAVAZONI, 2018) São diversas as nuan-
ces teóricas e compreensões, e não é nosso intuito aqui aprofundar diferenças
e potenciais, mas apenas acenar para algumas vertentes capazes de dialogar
com o campo de reflexões que estamos a propor. A declinação do conceito que
nos interessa é a em que ele, em vez de ser considerado um simples adjetivo
(bem comum), se constitui enquanto substantivo (DARDOT; LAVAL, 2016) e
1 Nestas páginas, usaremos “Comum” e “Gestão Social” com iniciais maiúsculas quando nos referir-
mos ao princípio ou aos campos de estudos. Laboratórios do comum e experiências públicas serão
tratados em minúsculo.
209
verbo (BOLLIER, 2016; OSTROM, 2002; SAVAZONI, 2018) e nos traz instiga-
ções práticas e conceituais no processo de imaginar outros futuros possíveis,
alternativos aos que o capitalismo globalizado nos propõe como inexoráveis.
Este capítulo tem como objetivo explorar os nexos que apostamos existir
entre o campo do Comum e a Gestão Social de cidades e territórios, trazendo
como sujeito de indagação os laboratórios do comum, isto é, práticas sociais
em que coletivos mais ou menos organizados e institucionalizados experimen-
tam um agir-comum ao identificar coletivamente o que faz problema em seus
contextos vividos e ao criar processos para o tratamento deles, protótipos de
soluções sociotécnicas (PARRA, 2019b) que agem criando fragmentos da socie-
dade desejada. Existem, no Brasil e no mundo, laboratórios que adotam esse
nome e esse objetivo explícito; no entanto, a hipótese que queremos trazer
aqui é que, no limiar da pandemia e ainda antes da sua eclosão, muitas ações
e mobilizações que surgiram, nas periferias e nos centros das cidades, nas al-
deias e nos territórios rurais, se aproximam dessa lógica, ressignificando temas
históricos da luta dos movimentos sociais brasileiros, tais quais a luta contra
a fome, a autonomia alimentar, o direito à saúde, à informação e à moradia, o
direito à terra e ao território, que vêm a se configurar enquanto Comuns.
A partir da observação das mobilizações sociais e políticas dos anos re-
centes, confirmadas pela eclosão de intervenções de coletivos e grupos nesse
período pandêmico, reconhecemos um deslocamento nos modos de pensar e
de fazer política, assim como da possibilidade de pensar e fazer políticas pú-
blicas.
A hipótese em que avançamos remete à possibilidade de uma convergência
entre o campo dos estudos do Comum, especialmente o relacionado à expe-
riência dos laboratórios, e o campo da Gestão Social, através do conceito de
experiência pública, como definido e elaborado em Peres (2020).2 Os dois con-
ceitos nos chamam atenção por uma série de ressonâncias e proximidades, mas
o que mais nos interessa é que ambos buscam descrever e analisar um campo
multiforme de práticas que escapa às categorias analíticas mais tradicionais
de ação política e propõe o desafio de lapidar novos descritores. Ambos nos
parecem capazes de descrever não apenas a amplidão, mas também o potencial
2 Em sua tese de doutoramento, Peres aprofunda o conceito de experiência pública a partir do caso
movimento hip hop da Ceilândia, no Distrito Federal, em interação com fluxos de políticas públicas.
3 Para Miraftab, espaços convidados de participação são aqueles cujas regras e gramáticas são san-
cionadas pelos grupos dominantes e com as quais os atores devem apenas se conformar; os espa-
ços inventados são aqueles em que os próprios atores que os instituem produzem e validam regras
e lógicas de interação.
4 Definimos arranjos sociotécnicos como o resultado da interconexão entre pessoas, cultura,
política e tecnologias. Uma boa referência para aprofundar mais o conceito é através dos Estudos
Sociais em Ciência e Tecnologia (ESCT).
5 Disponível em: https://youtu.be/Rc9Jl1aA6qQ.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 211
ainda não plenamente conscientes dessa proximidade, e ampliar e consolidar a
compreensão das hipóteses já acenadas. Excertos desse debate – oportunamen-
te reformulados para transitar do código da oralidade para o da escrita – serão
utilizados neste capítulo, sinalizando devidamente a sua origem.
6 Mesmo reconhecendo as enormes desigualdades existentes diante da pandemia, ela recorta co-
munidades diversamente afetadas.
7 René Thom é o matemático que desenvolveu, ao longo dos anos 1980, a referida teoria, a qual
antecipa em vários aspectos a visão da teoria do caos e dos sistemas complexos.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 213
Ainda, a pandemia escancarou como nunca antes as desigualdades radicais
geradas pelo neoliberalismo exacerbado e nos colocou diante de uma encru-
zilhada. Naturalmente, a fragilidade, uma vez revelada, impulsiona a busca de
respostas, mas seria ingênuo pensar que a reformulação da nossa forma de or-
ganização social e econômica com base em novos princípios esteja facilmente
ao nosso alcance nesse momento. Ao contrário, como nunca, o nosso futuro
está em disputa (KLEIN, 2020), e a pandemia pode ser tanto o acelerador de
uma tendência autoritária e securitária quanto uma janela de oportunidade
para enveredar num caminho de construção solidária de um modelo baseado
no conceito de bem-viver para todas e todos.
Curiosamente, ambos os cenários se baseiam no uso intensivo de tecnolo-
gias, mas, olhando mais de perto, reconhecemos que os princípios orientadores
são distintos, até mesmo antagônicos. Sintetizando e polarizando, para fins
analíticos, reconhecemos: de um lado, um princípio de competição e indi-
vidualismo, que é o que norteia o desenvolvimento mundial há séculos; do
outro, o Comum enquanto princípio ontológico e político. Ontológico, porque
ressalta a condição de interconectividade e interdependência que nos carac-
teriza enquanto humanos na relação com qualquer outro ser e com o próprio
planeta. Político, no momento em que destaca a condição relacional como
fundamental para o nosso estar no mundo e valoriza a unidade-diferença da
nossa condição de humanos enquanto potencial indispensável para enfrentar
a complexidade dos desafios contemporâneos.
10 Quando nos referimos a “um dos lados da disputa”, não estamos considerando que a disputa pelo
futuro se dá apenas entre as duas racionalidades aqui expostas: a do Comum e a do sistema mundo
capitalista. Sabemos que a discussão não é dicotômica e que existem diversas nuances e hibrida-
ções entre essas lógicas; no entanto, para fins deste artigo, trabalharemos com essas polaridades.
11 Os problemas não são fatos naturais; não os encontramos prontos, mas os construímos, individual
ou coletivamente. Conforme Boullosa (2013, p. 76), um problema social é “uma construção coletiva,
plural, êxito de muitas interpretações e particularizações sobre e para o mesmo [...]”.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 215
que está tentando ocupar uma praça, um grupo que está querendo
participar de uma rede de produção de cultura popular, de gente
que quer produzir ciência aberta. São muitos os lugares onde o
Comum pode ser praticado. (SAVAZONI, 2020)
O que nos interessa aqui é de que forma o debate sobre o Comum lança
luz nessas práticas, possibilitando uma mudança no regime de sensibilidade
(FUTUROS..., 2020) para indagar o que está sendo produzido no presente e
imaginar outros futuros possíveis. Tanto os laboratórios do comum que oficial-
mente assumem essa terminologia quanto as tantas outras práticas espalhadas
mundo afora que não a assumem estão, de fato, apontando para a mesma
questão: a afirmação do Comum enquanto princípio que é, ao mesmo tempo,
ontológico e político.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 217
Talvez a proposta que aprofundaremos na seção seguinte, o conceito de
experiência pública (PERES, 2020), nos ofereça um vocabulário ampliado e
mais um recurso conceitual para abarcar esse conjunto vasto e dificilmen-
te predefinível de ações/mobilizações. Entre os muitos elementos que Peres
(2020) traz na tentativa de defini-las e diferenciá-las de outros conceitos mais
consolidados – por exemplo, o de novos movimentos sociais –, gostamos de
destacar um que nos parece bastante pertinente ao momento. Falando das ex-
periências públicas, ela afirma: “Distinguem-se, ainda, por sua reflexividade:
a capacidade de, simultaneamente, fazer e sofrer, agir e refletir, abrir novos
mundos para dentro e para fora”. (PERES, 2020, p. 86)
Avançamos, então, na hipótese de que o princípio do Comum e o concei-
to de experiência pública, atuando no cenário da pandemia entendido como
“catástrofe” – no sentido já destacado –, manifestam as possibilidades de reati-
vação de uma inteligência coletiva e de uma convocação de saberes e práticas
que ensejam alternativas ao próprio cenário. Dessa forma, o Comum enquan-
to princípio e os laboratórios do comum enquanto práticas que o afirmam e
materializam nos convidam à interpretação dessas ações coletivas, apontando
além do objetivo específico que cada uma delas pretende alcançar, em direção
a um redesenho das formas da convivência, da participação e, afinal, do sentido
possível de uma democracia que sabemos sempre mais esvaziada de sentidos.
16 No campo da Gestão Social, existe uma forte vertente deliberacionista. Ver: Tenório (2013).
17 Esse uso do conceito de perspectivismo, oriundo dos campos da filosofia e antropologia, precisaria
de maiores aprofundamentos, aqui impossíveis, mas que serão objeto de próximos escritos.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 219
dos laboratórios, definir esse segundo conceito não é fácil, justamente pelo
fato de que ele busca abarcar, com a maior abertura possível, a multidimensio-
nalidade e a complexidade das práticas sociopolíticas que pretende interpretar.
Ainda em coerência com a opção epistemológica adotada, escolhe-se apontar
o que esses conceitos, assim como outros, podem ser – como podem ser com-
preendidos –, em vez de sancionar o que são, deixando em aberto o diálogo
possível para outras compreensões. Eis uma descrição, entre as muitas possí-
veis e complementares:
18 Ver: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/14645_ALANA+MORAES+HENRIQUE+Z+M+PARRA.
No site indicado, encontram-se diversos textos de Parra e Moraes, nos quais é possível verificar as
convergências sinalizadas.
19 Um trabalho mais detalhado de reconstrução arqueológica dos dois conceitos seria possível e
interessante, mas aqui é impossível devido às limitações de espaço.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 221
A cultura popular, por exemplo, ou os coletivos não instituciona-
lizados, falam uma outra língua, é uma outra forma de produção
de conhecimento, e às vezes não é nem língua, é corpo, é toque, é
ritmo, e aí eu fico me perguntando se agora a gente não tem que
de uma vez por todas radicalizar esse lugar também de construção
democrática. (FUTUROS..., 2020)
O mundo que a gente acredita existe. Não é que ele vai existir [...]
E eu experimento ele várias vezes. Eu poderia até dizer que eu ex-
perimento ele todos os dias [...]. Não é uma promessa de um bem
estar eterno e nem de um bucolismo do grande dia que chegará
em que conviveremos todos em grande paz, porque isso não existe.
(FUTUROS..., 2020)
Referências
5ª JORNADA DE AGROECOLOGIA DA BAHIA. Indígenas Gamela tiveram
membros do corpo decepados durante ataque no MA: sobe o número de baleados
e feridos. 2 maio 2017. Disponível em: http://jornadadeagroecologiadabahia.
blogspot.com.br/. Acesso em: 13 jul. 2020.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 223
KLEIN, N. Corporações tentam acelerar distopia tech: outras mídias, tecnologia
em disputa. Outras Mídias, São Paulo, 18 maio 2020. Disponível em: https://
outraspalavras.net/outrasmidias/naomi-corporacoes-tentam-acelerar-distopia-
tech/. Acesso em: 25 jun. 2020.
MORAES, A. Antes e depois das paredes: o comum urbano entre mulheres sem-
teto na periferia de São Paulo. Antes e depois das paredes: o comum urbano
entre mulheres sem-teto na periferia de São Paulo. arq.urb, São Paulo, n. 23,
p. 64-81, set./dez. 2018. Disponível em: https://revistaarqurb.com.br/arqurb/
article/view/39. Acesso em: 20 jun. 2020.
t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 225
Articulação e autonomia para os povos em
movimento: reflexões sobre a construção da
Teia dos Povos
Introdução
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o processo de construção da
Teia dos Povos, criada em 2012 com a proposta de articular diversos movimen-
tos sociais, comunidades e povos tradicionais da região sul e extremo sul da
Bahia. Destaco alguns princípios da organização da Teia dos Povos a partir da
análise de seus documentos – cartas, manifestos e outras publicações –, traçan-
do um diálogo com o referencial teórico sobre movimentos sociais latino-ame-
ricanos dos últimos anos e enfocando as discussões sobre redes e autonomia,
assim como os estudos sobre os processos de territorialização e colonização
que se relacionam ao tema aqui proposto. A análise documental e a pesquisa
bibliográfica fornecem, desse modo, as bases metodológicas para este trabalho,
como ponto de partida para tecer as reflexões sobre a constituição das redes e
as possibilidades de autonomia na Teia dos Povos.
A Teia dos Povos surge com a proposta de dar continuidade às articulações
promovidas na I Jornada de Agroecologia da Bahia1 (2012), construindo uma
rede entre diferentes sujeitos coletivos a partir da criação de um eixo comum,
pautado na luta por terra, território e agroecologia. Mais recentemente, a Teia
1 A partir de então, a Teia dos Povos passa a organizar periodicamente as Jornadas de Agroecologia,
que se tornam um de seus eventos de maior projeção, contando com grande número de parti-
cipantes nas atividades promovidas, como apresentações, debates, rodas de conversa, plenárias
e oficinas que giram em torno do eixo da terra, território e agroecologia. Para mais detalhes, cf.
cartas das Jornadas de Agroecologia (2013, 2014, 2015, 2017 e 2019), publicadas pela Teia dos Povos,
disponíveis em: https://teiadospovos.org/.
227
busca ampliar sua rede, agregando movimentos e experiências coletivas de ou-
tras regiões, sendo que os principais grupos participantes são
4 As distintas correntes das teorias dos novos movimentos sociais trouxeram para o centro do debate
as questões da identidade, da cultura política e das formas de organização dos novos sujeitos e suas
ações coletivas, exercendo especial influência nas análises sobre os movimentos sociais na América
Latina. Nessas teorias, o que caracteriza o novo desses movimentos, no que pese sua heterogenei-
dade, refere-se genericamente a um distanciamento das formas tradicionais de organização do mo-
vimento operário ligado à luta de classes no contexto do capitalismo industrial. Para um panorama
geral dessas teorias e suas implicações, ver a síntese de Alonso (2009) e Gohn (1997).
6 Uma relação dos elos e parcerias da Teia pode ser conferida no documento A Teia do povo (2014).
7 Trata-se de um artigo cuja autoria conta com a participação de integrantes da Teia dos Povos.
Diante dessas colocações, a articulação proposta pela Teia dos Povos pode
ser compreendida como parte da construção das redes dos povos em movi-
mento, que buscam parâmetros de autonomia para sua organização. A próxima
parte do trabalho apresenta um recorte no qual é possível refletir sobre essa
relação.
8 Cf. Carta da III Jornada de Agroecologia (2014) e Carta final da V Jornada de Agroecologia (2017).
[na] potencialização das lutas ancestrais pela terra por parte dos
movimentos indígenas e camponeses, assim como no surgimento
de novas formas de mobilização e participação cidadã, centradas
9 A agroecologia, nesse sentido, aparece como opção que faz contraponto ao agronegócio, ligan-
do-se à terra e ao território como modo de vida. Para mais detalhes, ver: Carta da II Jornada de
Agroecologia (2013).
10 A autonomia como categoria de análise volta à cena com a crise de 2008. (OLIVEIRA; DOWBOR,
2020)
É sobre esse alicerce da vida prática e cotidiana dos povos que a autonomia
afirma-se como um princípio da Teia dos Povos, no seu esforço de agregar os
diferentes movimentos e comunidades que dela participam a partir do mote
comum da luta por terra, território e agroecologia.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho, busquei algumas análises que permitem relacionar a
discussão sobre as redes de movimentos sociais com a questão da autonomia
dentro do contexto mais recente que marca as experiências de diversos sujei-
tos coletivos latino-americanos. Como ponto de partida, apresentei a constru-
ção da Teia dos Povos, de forma a traçar um diálogo com o referencial teórico
que aborda o campo dos movimentos sociais no que diz respeito à dinâmica
dos povos em movimento.
A formação da Teia dos Povos, com sua proposta de articular movimentos
distintos em torno de um eixo comum, abarca diferentes sentidos de auto-
nomia que estão presentes nessa construção, como busquei demonstrar. Sua
proposta de articular em uma rede diferentes povos, comunidades e sujeitos
coletivos representa uma inovação do ponto de vista organizacional, propor-
cionando o encontro da unidade na diversidade como um de seus princípios.
Esse movimento refere-se ainda à preservação de saberes, culturas e tradições,
que se traduzem nas práticas cotidianas dos povos em movimento como parte
de suas lutas com base nos processos de territorialização.
A trama tecida pela Teia dos Povos pode ser compreendida, assim, como
parte do processo em que as redes contribuem para o fortalecimento dos movi-
mentos e lutas de distintos povos, apontando a autonomia como um princípio
e valor a ser reafirmado, potencializando as formas de organização autôno-
mas, nos vários sentidos que esse processo implica. Na dinâmica dos povos em
Referências
ALMEIDA, A. W. B. Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”,
“castanhais do povo”, faxinais e fundos de pastos: terras tradicionalmente
ocupadas. 2. ed. Manaus: PGCSA-UFAM, 2008.
LIMA, M.C. de A. Pra aprender tem que botar sentido: diálogos sobre
despossessão, terra e conhecimento com Mestres do Assentamento Terra Vista.
2017. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências
Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.
TEIA DOS POVOS. A TEIA. Teia dos Povos. [2014?]. Disponível em: http://
teiadospovos.redelivre.org.br/a-teia. Acesso em: 20 abr. 2018.
Introdução
Este artigo deriva da pesquisa que originou a dissertação de mestrado Tecendo
o viver sossegado: as artes de rexistência da Reserva Pataxó da Jaqueira, defendi-
da em 2020 por Alicia Araújo da Costa Silva no âmbito do Programa de Pós-
-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Atualmente, a pesquisa está sendo realizada em nível de douto-
rado,1 no mesmo programa. Tomaremos alguns dados etnográficos empresta-
dos de ambas as pesquisas para compor aqui um estudo comparativo, com o
objetivo de explorar os pontos de convergência entre etnoturismo, afirmação
cultural e arte em dois territórios da Terra Indígena (T.I.) de Coroa Vermelha
localizada na chamada Costa do Descobrimento, sul da Bahia, com contextos
etnoturísticos e políticos distintos. São eles: a Reserva Pataxó da Jaqueira, loca-
lizada em uma área de proteção permanente situada dentro dos limites territo-
riais regularizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1998, com 827
hectares de Mata Atlântica preservada; e a aldeia Nova Coroa, uma área urbana
situada em uma região retomada que ficou fora dos limites de demarcação da
T.I. Vejamos a descrição que Rego (2012, p. 59) fornece acerca do território2
pataxó em Coroa Vermelha:
243
A [...] ‘gleba urbana’, está situada entre a BR-367 e a praia, e se desti-
na à habitação e ao comércio, contendo os principais equipamentos
comunitários da aldeia, como a Escola Indígena, o Posto de Saúde,
o Parque Indígena e seu Centro Cultural. A segunda gleba, referen-
te à Reserva da Jaqueira e à Agricultura, está posicionada seis quilô-
metros a oeste da anterior. [...] Para além do território regularizado,
[...] outras quatro áreas em estudo: Juerana e Aroeira, ‘retomadas’
em 2003; e Nova Coroa e Tapororoca, ‘retomadas’ em 2006. As duas
primeiras tangenciam, respectivamente, a Jaqueira e a Agricultura.
Nova Coroa e Tapororoca, por sua vez, estão separadas da ‘gleba
urbana’ apenas pela BR-367 – e entre si pelo rio Jardim.
3 “We often speak of traditional culture, but what is traditional? I believe that we still rely on a
conception of culture that is too ‘archeological’; as if authentic culture were something that must
be from the past. On the other hand, all contemporary cultural creation is perceived as if it must
be authenticated, perhaps by surviving the test of time. Yet the existential dimension of our patri-
mony appears thanks to the youth of today – in music and new cultural forms which express not
the viewpoints of a hundred years ago, but speak of the suffering, the joys, of life today”.
Etnoturismo é resistência
O sistema de produção, circulação e venda de artesanato em contexto turísti-
co na T.I. Coroa Vermelha configura-se tanto como uma forma de existência,
4 Ver exemplos de como a comunidade da Reserva da Jaqueira se articula nesse sentido em Costa
(2020).
5 A experiência etnoturística, ou seja, a visita do turista a uma comunidade indígena, vem sendo cha-
mada pelos pataxó de “vivência”. A ideia de vivência traduz como essa experiência deveria se dar,
idealmente, na perspectiva desses anfitriões: uma imersão prolongada na vida cotidiana da aldeia.
9 Festa ritual que ocorre todo ano em celebração à resistência pataxó e à recuperação do território
da Reserva da Jaqueira.
Tem muitos povos que às vezes guarda o seu conhecimento para você. E quando
você guarda o conhecimento com você, quando você morre, você leva com você.
E o povo pataxó tem isso muito, de passar para as próximas gerações. ‘Eu vou
fazer isso, vou passar pros meus filhos’, porque assim... Tem gente mesmo que não
sabe fazer; por quê? Porque o pai sabia fazer, mas não passou pra ele. Então, isso
é questão de você guardar o seu conhecimento. Acho que é por isso que se fala
muito que o povo pataxó, o pataxó, ele sempre sabe fazer alguma coisa, brinco,
tapeçaria, filtro dos sonhos... [...] eu mesmo gosto de ensinar... Ensinando a gente
aprende! A gente aprende formas diferentes de fazer as coisas. Porque, às vezes,
você tem esse padrão de fazer. Mas você pode fazer outro desenho que eu não sei
fazer. Você pode criar.11 (Ariel Pataxó)
10 A expressão “crescer na cultura” é usada pelos pataxó para designar alguém que estudou em co-
légio indígena pataxó desde a infância, que aprendeu o idioma patxohã, que aprendeu a fazer
artesanatos, que sabe cantar e dançar no Awê etc.
11 Transcrição do trecho de conversa gravada em 30 de agosto de 2019.
Considerações finais
Como tentamos argumentar até aqui, os pataxó se apropriam do turismo na
região da chamada Costa do Descobrimento para reafirmar a sua indianidade,
12 Via: @furiosaisis.
Referências
ALARCON, D. F. O retorno da terra: as retomadas na aldeia Tupinambá da Serra
do Padeiro, sul da Bahia. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2013.
LEFEVRE, T. Fibre Skirts and Dance Battles. In: THOMAS, N.; BOLTON, L.
(ed.). Melanesia: Art and Encounter. London: British Museum Press, 2013.
p. 326-329.
Altemar Felberg
Valéria Giannella
261
nos meados da década de 1980, o que, dado o limite de páginas deste texto, não
será possível aqui resgatar.
No exercício de interpretação desse estado de coisas, marcado pelo fecha-
mento do ciclo de democratização brasileira – por consequência do golpe de
2016, que destituiu o governo de Dilma Rousseff e, logo depois, com a ascensão
do governo de Jair Bolsonaro –, observamos a retomada do protagonismo da
sociedade civil e de seus personagens e movimentos de base. Se, até os primei-
ros protestos de 2013,2 a institucionalização tornara-se a principal aposta para
o “fazer político”, depois disso, é consenso que o padrão de participação no
Brasil voltou a privilegiar as ruas, enquanto espaços de livre expressão, con-
forme o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Analisando esses
movimentos, Zibechi (2017, p. 4) defende que “Trata-se de construir, mais que
de ocupar as instituições existentes”, o que, segundo o autor, já está em curso
no interior dos “novos movimentos sociais”, de onde vêm germinando prá-
ticas insurgentes e autônomas, protagonizadas especialmente por mulheres,
negros, indígenas e jovens.3
Nesse novo padrão, um dos segmentos sociais que ocupou a cena política
nos últimos anos foi a juventude. Para Novaes e demais autores (2006), isso não
é por acaso, mas depende do fato de o jovem figurar como, talvez, o segmento
mais vulnerável diante das mudanças sociais que acometem o mundo globali-
zado. Nessa trama sociopolítica, destaca-se, ainda, o protagonismo dos povos
indígenas, que reforçam sua “atorialidade”, deslegitimando qualquer percep-
ção estática ou a-histórica a seu respeito, atuando hoje como velhos atores em
novas cenas. Considerando essa interseccionalidade – geracional e étnica –,
observamos esses estratos no sentido de destacar sujeitos que não desejam re-
gressar à “normalidade” das democracias liberais, cujas regras são ditadas pela
globalização e hegemonia do capital financeiro, mas despertar para a possibili-
dade de novas experiências democráticas e participativas.
c) Espaço não formal: para Gohn (2006), existem espaços formais (organiza-
ção sistemática e disciplinar, a exemplo da escola), não formais (espaços
livres, de interação e construção de saberes coletivos) e informais (espaços
d) Espaço livre: para Queiroga (2014), os espaços livres são espaços para os
fluxos da vida cotidiana, de convivência comunitária, de constituição da
esfera de vida pública, para o “viver em público”. Já para Santos (1996), o
espaço é entendido como um híbrido entre materialidade e sociedade,
forma e conteúdo, fixos e fluxos, sistema de objetos e sistema de ações,
caracterizando-se, portanto, como uma instância social. As ruas são um
bom exemplo desses espaços, como evidenciado durante as manifesta-
ções de junho de 2013.
4 “Enquanto em 1970 não havia nenhuma organização indígena reconhecida, em 2001, já eram 347
organizações indígenas na Amazônia legal”. (BANIWA, 2012, p. 211) Hoje, a mais representativa é a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), criada durante o Acampamento Terra Livre (ATL)
de 2005, uma mobilização nacional anual, para tornar visível a situação dos direitos indígenas e
reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas e reivindicações dos povos indígenas.
5 Os povos indígenas “mais antigos” têm cadeira fixa; outros, recém-reconhecidos, fazem rodízio.
6 Foram identificados 12 órgãos colegiados somente na Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e
Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS/BA). Não se sabe o número total de conselhos em
toda a estrutura administrativa do Governo do Estado da Bahia, o que está sendo levantado.
Na área da saúde, a gente não tinha representação, e daí a questão indígena era
pensada somente no âmbito federal. Isso muda com a entrada de um conselheiro
indígena na saúde, e muda muito, porque aí não é mais aceita a ideia de que a
saúde é só do Governo Federal, mas que cada ente tem sua responsabilidade:
o município, o governo do estado tem sua responsabilidade, então isso acaba
mudando, inclusive com a criação de coordenação específica que trata da saúde
indígena dentro da própria Sesab [Secretaria da Saúde do Estado da Bahia],
exatamente pela participação indígena no conselho.
A gente ainda tem muito a se qualificar para a gente ter condições de fazer uma
disputa por igualdade. A Cepram é o conselho mais formalista, tudo na formalidade,
a gente recebe todos os processos com antecedência para analisar e dar o nosso
voto baseado nisso. Imagine os indígenas que não têm o conhecimento desses
documentos, imagina ler isso tudo para participar desse conselho? [...] precisa de
formação para ocupar esses espaços deliberativos.7
7 Vale lembrar que a formação, mesmo que fundamental, ainda não resolve a questão da dominância
do código tecnicista, racionalista, da competição entre os melhores argumentos. Nos anos dos
governos do PT, foram investidas verbas copiosas em formação de conselheiros, sobre cujos resul-
tados ainda nos interrogamos.
8 O Mupoiba representa 23 povos reconhecidos, além de três em processo de reafirmação.
São espaços participativos, que podem ser tanto O Conjupab também se configura como um espaço
consultivos como deliberativos. (BRASIL, 2012, de consulta e deliberação, mas é, sobretudo, um
p. 19) Todavia, não há consenso sobre se todos os espaço de resistência, afirmação e autodetermina-
conselhos considerados deliberativos (por força de ção. A deliberação coletiva é respeitada pelo grupo,
lei, decreto ou portaria) efetivamente exercem essa não havendo margem para deliberação unilateral
atribuição. por parte do presidente, por exemplo.
Em tese, foram criados com o objetivo de ope- Sua criação foi idealizada e reivindicada durante
racionalizar os ideais participativos previstos na a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista,
CF/88, com vistas a garantir à população brasileira realizada pela Funai em 2015, a qual não previa a
o direito de acesso aos espaços de formulação, discussão de políticas para a juventude indígena.
implementação e controle social das políticas Nesse sentido, também é resultado de luta pelo
públicas. (BRASIL, 2012, p. 23) direito à participação e voz dos excluídos.
Fontes: elaborado pelos autores com base em Brasil (2012) e Tatagiba (2002, 2004).
Referências
APPEL-SILVA, M.; WENDT, G. W; ARGIMON, I. I. de L. A teoria da
autodeterminação e as influências socioculturais sobre a identidade. Psicologia
em Revista, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, p. 351-369, ago. 2010. Disponível
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-
11682010000200008&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 19 jan. 2020.
Disputas
narrativas
EDUCAÇÃO, ENSINO
E SOCIEDADE
História ameaçada: bolsonarismo,
negacionismo e ensino de História
Introdução
Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da república em 2019, formou-
-se um cenário bastante complexo e contraditório no Brasil, em que vozes au-
toritárias ecoam como se fossem gritos de liberdade e o retrocesso social se
apresenta como progresso. Pesquisadores e pesquisadoras da política têm se
dedicado a entender o bolsonarismo a partir de diferentes instrumentais teó-
ricos: para alguns, trata-se de neofascismo e, para outros, de um populismo
autoritário. (CAVALCANTE, 2020; CUNHA, 2019) O fato é que esse ainda é
um fenômeno a ser aprofundado conceitualmente. Sem a pretensão de ingres-
sar nesse debate teórico, esboçam-se aqui apenas algumas características que
permitem reconhecê-lo como uma ameaça ao ensino escolar de História.
Denomina-se bolsonarismo o movimento político impulsionado pelo
fortalecimento de grupos de direita no Brasil, que culminou na eleição de
Bolsonaro para a presidência da república em 2018, cujo governo, embora
marcado por perdas de direitos sociais, ataques à democracia e instabilida-
de política, ainda dispõe de considerável legitimidade junto a seu eleitorado.
O bolsonarismo não é um acontecimento inusitado ou estranho à realida-
de brasileira; é, principalmente, produto do capitalismo, que precisa exercer
controle sobre o Estado para se reproduzir. Também guarda relações com o
fortalecimento de outros movimentos de direita no mundo e preenche espa-
ços em uma democracia golpeada com o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff em 2016.
285
O movimento conjura diferentes forças políticas e quadros de apoiado-
res bastante diversos. Segundo pesquisa etnográfica realizada pela Fundação
Escola de Sociologia e Política, sob a coordenação de Isabela Kalil (2018), que
acompanhou grupos em mobilizações e redes sociais entre 2016 e 2018, os
eleitores e apoiadores de Bolsonaro compõem uma multiplicidade de perfis.
Os resultados da pesquisa permitiram agrupá-los em ao menos 16 tipos, que
variam entre grupos anticorrupção, anticomunistas, haters, militares, monar-
quistas, religiosos, liberais e conservadores de diferentes matrizes. Certamente,
o bolsonarismo não pode ser definido apenas pelo que representam os grupos
que o seguem. No entanto, a análise desses perfis permite identificar frentes
preferenciais de ação que focam nas insatisfações mais frequentes dessa base
tão diversificada.
hi s tór i a a m e aç a da 287
própria história e a de seus adversários, com mais força a partir de 1945, para
se livrar da pecha de fascista e se recolocar no jogo político. (VICTOR, 2013)
Segundo Vidal-Naquet (1988), o negacionismo histórico é prática antiga, mas,
no Ocidente, ganhou projeção após o holocausto judeu, com leituras históricas
que se prestavam a relativizar ou mesmo negar o genocídio hitlerista. Assim,
o negacionismo funciona como prática consciente que se destina a “privar
ideologicamente uma comunidade do que representa sua memória histórica”.
(VIDAL-NAQUET, 1988, p. 40) Mas, geralmente, não se trata apenas de priva-
ção; também se empenha em fornecer uma versão do passado que possa reper-
cutir positivamente em um presente em que não há muito o que comemorar.
(HOBSBAWM, 2013)
Há autores que utilizam a expressão “revisionismo histórico” para se referir
ao que se tem chamado aqui de negacionismo, como é o caso de Vidal-Naquet
(1988). Pode-se dizer que o negacionismo, em sentido estrito, seria uma forma
mais radical do revisionismo, que se dedica a negar fatos, e não apenas a distor-
cê-los ou relativizá-los. A opção pelo termo “negacionismo” visa evitar confusão
com a revisão de interpretações históricas realizada quando a disponibilidade
de novas fontes ou a aplicação do método historiográfico assim exigirem, que é
tarefa própria do ofício de historiador. No revisionismo que chamamos de ne-
gacionista, não há qualquer ética ou técnica, mas apenas o desejo de substituir
uma verdade dolorosa por uma mentira tranquilizadora, como bem assinalou
Vidal-Naquet (1988). Defende-se, ainda, que o termo “negacionismo” é mais
adequado porque, antes de qualquer tentativa de reescrever o passado, a pro-
posta revisionista supõe negação de princípios da ciência.
É equívoco pensar a ciência hoje, em qualquer que seja a sua subdivisão,
como saber incontestável, perene e neutro. No entanto, não parece que a ciên-
cia abandonou a verdade, aqui entendida como construção pautada em regras
próprias, que é flexível, mas sempre no limite da ética e de consensos minima-
mente construídos no interior do campo científico. Segundo Le Goff (1990),
embora não seja mais admissível o entendimento de que a história é produzi-
da objetivamente, sem intervenção do sujeito que escolhe um tema, seleciona
fontes e constrói o fato histórico, a ciência histórica não cedeu a um ceticismo
deliberado, a ponto de abdicar da noção de verdade.
O principal empreendimento do negacionismo é substituir a história pro-
duzida dentro das regras da ciência por uma mentira ou por uma recuperação
hi s tór i a a m e aç a da 289
que o negacionismo histórico não é apenas um inconveniente para pessoas
que trabalham com o ensino e a pesquisa histórica, acusadas pelo bolsona-
rismo de promoverem “doutrinação marxista”; mas, fundamentalmente, uma
inadequação às políticas educacionais desenvolvidas em diferentes épocas da
educação brasileira.
A história ensinada na escola, segundo Cerri (2011), é apenas um dos tipos
de conhecimento histórico e não se confunde com o conhecimento histórico
produzido academicamente. É certo que este último tem servido de importan-
te referência para a história escolar; todavia, a interlocução entre um e outro é
mediada por outros saberes. A noção de consciência histórica, entendida como
prática social construída a partir de pontos de vistas e experiências que con-
dicionam o sujeito, a sua percepção de tempo e os sentidos que ele atribui ao
mundo, para Cerri (2011), demonstra que, bem antes de ingressar no ambiente
escolar, os indivíduos já dispõem de conhecimento histórico. A compreensão
de que estão inseridos no tempo e em sociedade, e mesmo diferenciações sim-
ples, como infância e vida adulta, já lhes fornecem tais saberes.
Segundo Cerri (2011, p. 61), o papel principal do ensino de História deve ser
gerenciar o fenômeno pelo qual diferentes saberes históricos são relacionados,
produzidos e modificados, assim como o de fomentar o pensar historicamente,
ou seja, “a capacidade de beneficiar-se de características do raciocínio da ciên-
cia histórica para pensar a vida prática”. O negacionismo atua justamente na
contramão, na desqualificação do ensino ministrado pelas escolas, na produ-
ção de verdades pretensamente incontornáveis, no falseamento da realidade
e no uso deliberado de anacronismos e generalizações indevidas. Em resumo,
cuida de substituir o pensamento crítico por mentiras resignantes.
hi s tór i a a m e aç a da 291
(USTRA, 2007) Tanto o discurso de Bolsonaro quanto a obra recomendada são
representativas do ardil negacionista: desqualificam especialistas em escrever
e ensinar a história não pelas suas qualidades profissionais, mas por um supos-
to vínculo ideológico.
A ameaça negacionista não opera apenas de forma reflexa sobre o ensino de
História. Há também ataques diretos às práticas escolares, como o estímulo à
filmagem de aulas (BASÍLIO, 2019) e propostas de revisão do conteúdo dos
livros didáticos. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em abril de 2019,
Ricardo Vélez Rodriguéz, primeiro escolhido para a pasta da Educação no go-
verno Bolsonaro, falou da necessidade de realizar mudanças progressivas nos
livros didáticos para “resgatar uma versão da história mais ampla”, visto que,
para ele, o 31 de março de 1964 não foi um golpe, mas uma “decisão sobera-
na da sociedade brasileira”. (MINISTRO..., 2019) No início do ano de 2020,
ao falar com jornalistas na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro criticou
a qualidade do ensino nacional, a influência de Paulo Freire na educação e os
livros utilizados nas escolas, que seriam “amontoados” de coisas e precisariam
ser “suavizados”. (BOLSONARO..., 2020a) Dias depois, o segundo ministro da
Educação escolhido por Bolsonaro, Abraham Weintraub, por meio da rede so-
cial Twitter, endossou as palavras do presidente ao falar do comprometimento
do governo com o fornecimento de livros novos, mais baratos e sem “ideo-
logia”. (GOVERNO..., 2020) Nessas ocasiões, Bolsonaro e Weintraub foram
menos específicos do que Vélez Rodriguéz, mas, no conjunto do bolsonarismo,
é possível dizer que reescrever a história do período militar contida nos livros
didáticos é uma prioridade para o governo.
Não é a primeira vez, na história brasileira, que um governo demonstrou
tanta urgência em “atualizar” livros didáticos. Na década de 1970, a indústria
editorial recebeu diversos incentivos dos governos militares com o objetivo de
fomentar o modelo econômico desenvolvimentista e de difundir os ideais da
doutrina de segurança nacional, por meio de livros didáticos e paradidáticos.
(FONSECA, 2003) Conforme assinala Bittencourt (2008), o livro didático é um
material complexo, que pode ser considerado uma mercadoria, um suporte de
conhecimentos escolares, um suporte de métodos pedagógicos e, ainda, um
veículo de um sistema de valores. Portanto, é preciso duvidar do afã de revisar
os livros no atual governo, especialmente os de História, pois, aliado ao nega-
cionismo, para além de erros historiográficos, pode resultar na precarização de
hi s tór i a a m e aç a da 293
conteúdos curriculares da educação básica devem observar a difusão de valores
fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito
ao bem comum e à ordem democrática. (BRASIL, 1996) Em síntese, a lei, apesar
de elaborada e publicada em governos fortemente marcados por políticas neo-
liberais, prescreve uma série de diretrizes e valores que devem conduzir uma
educação para a democracia e para o exercício da cidadania.
Pode-se argumentar, por diversas razões, a existência de um abismo histó-
rico entre o legislado e o praticado, especialmente no que se refere à valorização
do trabalho na educação. É possível, ainda, questionar qual a cidadania a que
a LDB se refere. Nos anos de 1960 e 1970, o ensino de História foi largamente
utilizado na difusão de uma cidadania excludente, que se voltava à formação
cívica, ao ajustamento da juventude aos interesses do Estado e à supressão de
sujeitos e lutas históricas. (FONSECA, 2003) No conjunto do texto legal, não
parece ser essa mesma cidadania referida nas diretrizes atuais, mas outra, que
se une à pluralidade de ideias e ao pensamento crítico. Apesar das ressalvas,
não se pode olvidar que, desde 1988, as políticas educacionais passaram a in-
cluir a democracia como princípio inafastável da educação escolar.
Ao revés do estatuído na LDB, o bolsonarismo tem se esforçado para reci-
clar o autoritarismo, suprimir o diálogo e disseminar a intolerância. Por meio de
uma espécie de auditoria fantasiosa à história acadêmica, despida de qualquer
princípio ético ou metodológico cientificamente reconhecido, um passado
medonho é reacendido como clareira para um futuro utópico. No entanto,
esse passado, na forma como é idealizado pelos negacionistas, não fornece aos
sujeitos instrumentos que possam lhes servir à vida pessoal e coletiva dentro
de um contexto democrático, pois é um passado obscurecido e recauchutado
apenas para servir a um projeto de poder personalista e autoritário.
Em específico, quanto aos saberes históricos prescritos, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino de História, publicados em 1998,
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, incluem, dentro do eixo
“História das representações e das relações de poder”, temáticas como as dita-
duras do Estado Novo e a iniciada em 1964, reconhecendo-as como períodos
de “supressão de direitos políticos e civis”. (BRASIL, 1998, p. 72-73) Apesar da
publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os PCNs continuam
vigentes, orientando a elaboração de currículos de História e o trabalho docente.
Portanto, toda proposta de ensino que ratifique o regime iniciado em 1964
hi s tór i a a m e aç a da 295
a leitura e o estímulo à atitude investigativa dos estudantes e apoiar a atuali-
zação, a autonomia e o desenvolvimento profissional do professor. Além disso,
no artigo seguinte, estabelece, entre outros princípios: o respeito ao pluralis-
mo de ideias e concepções pedagógicas e o respeito à autonomia pedagógica
das instituições de ensino. Na mesma linha, adota como um dos critérios de
seleção de materiais didáticos a observância aos princípios éticos necessários
à construção da cidadania e ao convívio social republicano, conforme inciso II
do artigo 10. (BRASIL, 2017)
Na contramão do que está delineado no PNLD, o negacionismo não se
permite conviver com a pluralidade de ideias, com o estímulo à atividade in-
vestigativa nem com os princípios republicanos. Não se apresenta como uma
possibilidade interpretativa, mas como a única verdade possível, capaz de subs-
tituir as múltiplas análises então existentes. Não consegue sobreviver de outra
forma, pois, se não se firma como dogma, o argumento negacionista sucumbe
à crítica historiográfica. Do mesmo modo, ao invés de fomentar a autonomia
dos profissionais da educação, a tática negacionista se propõe a silenciá-los, a
fim de preservar o fundamentalismo que o alimenta.
É certo que o negacionismo dificulta, mas não impossibilita que o ensino
escolar de História forneça ferramentas ao pensar historicamente. Aliás, refletir
sobre o bolsonarismo é uma boa oportunidade para desenvolver esse raciocínio,
no sentido de demonstrar como, no tempo presente, a produção de uma versão
do passado pode ser utilizada para forjar uma ideia de futuro. A mediação do-
cente sempre será um divisor de águas nessa tarefa. Em razão do negacionismo
que se institucionaliza, o ensino escolar de História se vê diante de um difícil
impasse: disputar narrativas com representantes do Estado. Trata-se de uma
tarefa custosa, pois, no outro extremo, figuram aqueles que detêm poder para
elaborar e impor políticas educacionais, além de visibilidade suficiente para
confundir discentes e constranger profissionais da educação.
Considerações finais
O enxovalhamento do ensino de História é apenas mais dos ataques do bol-
sonarismo à educação, que se soma a outros projetos, como o estímulo à
filmagem de aulas e o Escola Sem Partido, que, sob a pretensão de eliminar
“influências ideológicas”, atingem diretamente a autonomia da escola e de seus
hi s tór i a a m e aç a da 297
Referências
BASÍLIO, A. L. Filmar professores em sala de aula é um direito, declara
Weintraub. Carta Capital, São Paulo, 29 abr. 2019. Disponível em: https://www.
cartacapital.com.br/educacao/filmar-professores-em-sala-de-aula-e-um-direito-
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São Paulo, 3 jan. 2020a. Disponível em: https://exame.com/brasil/bolsonaro-
diz-que-livros-didaticos-tem-muita-coisa-escrita/. Acesso: 23 jul. 2020.
BOLSONARO elogia Enem “sem polêmica” e diz que não houve ditadura no
Brasil. Uol Notícias, São Paulo, 14 nov. 2019b. Disponível em: https://noticias.
uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/11/14/bolsonaro-elogia-enem-sem-
polemica-e-diz-que-nao-houve-ditadura-no-brasil.htm. Acesso em: 18 jul. 2020.
FILHO, João. Todos nessa foto prometeram jamais receber dinheiro do governo.
A maioria recebeu. The Intercept, [s. l.], 1 mar. 2020. Disponível em: https://
theintercept.com/2020/03/01/allan-terca-livre-governo-bolsonaro/. Acesso em:
17 jul. 2020.
hi s tór i a a m e aç a da 299
FRANCO, A. P.; SILVA JUNIOR, A. F. da; GUIMARÃES, S. Saberes históricos
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em Re-Vista, Uberlândia, v. 25, n. 4, p. 1016-1035, 20 dez. 2018. DOI: https://doi.
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HOBSBAWM, E. Sobre história: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses
“Sobre o conceito de História”. São Paulo: Boitempo, 2005.
MINISTRO promete promete mudar livros didáticos por “visão mais ampla”
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TRUFFI, R. Ditadura ficou fora do Enem porque tema não está ‘pacificado’, diz
Weintraub. Valor Econômico, Brasília, DF, 17 jan. 2020. Disponível em: https://
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porque-tema-nao-esta-pacificado-diz-weintraub.ghtml. Acesso em: 23 jul. 2020.
hi s tór i a a m e aç a da 301
O corpo e a imagem corporal: percepções
dos estudantes da Educação de Jovens e
Adultos de uma escola pública municipal em
Teixeira de Freitas1
Introdução
É possível constatar que há uma produção teórica e pesquisas empíricas signi-
ficativas sobre o corpo e a imagem corporal, o que demonstra que esse assunto
vem ganhando dimensão pela centralidade que o corpo adquiriu na contem-
poraneidade. As discussões sobre as dinâmicas do corpo, atualmente, têm sido
reduzidas a uma aparência “saudável” e à estética, o que é perceptível principal-
mente em rodas de conversa entre os adolescentes nas escolas. Nota-se que o
“padrão de beleza” a ser alcançado é influenciado pelos símbolos eurocêntricos
que são difundidos por diversos canais e interiorizados pelos estudantes. Nessa
perspectiva, tem crescido o volume de pesquisas destacando a necessidade de
reflexão sobre as implicações das demandas sobre o corpo e sua imagem no
contexto das sociedades contemporâneas e a necessidade de se aproximar dos
jovens – e adultos, por que não? – a partir de uma postura de escuta e de res-
peito pela alteridade.
Neste estudo, especificamente, o interesse pela investigação surgiu após
pesquisa empírica realizada no dia 20 de novembro de 2017 pelo professor
de Matemática da Escola Municipal Gessé Inácio do Nascimento. Esta foi
1 Artigo original publicado na Revista Mosaicum (v. 16, n. 31, p. 69-80), disponível em: https://revista-
mosaicum.org/index.php/mosaicum/article/view/8.
303
desenvolvida durante o evento de comemoração do Dia da Consciência Negra
e contou com a estatística como procedimento metodológico para a análise
dos dados. No decorrer da investigação, observou-se que, nessa escola – loca-
lizada no município de Teixeira de Freitas, na Bahia, inserida em um cenário
marcado pela diversidade resultante de um processo de desenvolvimento eco-
nômico, político, social e cultural –, cujo público é predominantemente de cor
preta, os alunos não se identificavam/autodeclaravam como tal. Esse fato cha-
mou a atenção do corpo docente e, inicialmente como projeto de intervenção,
este estudo foi concretizado.
Sabendo-se que sentidos e valores que exprimem identificações e diferen-
ciações são agregados ao corpo e que esses sentidos são capazes de influenciar
a percepção que o adolescente e o adulto têm de si próprios e a construção da
identidade pessoal e social desses indivíduos – aqui entendidas como “atribu-
tos específicos do indivíduo” e “atributos que assinalam a pertença a grupos ou
categorias”, respectivamente (JACQUES, 1998, p. 161) –, surgiu a necessidade
de investigar a satisfação dos alunos com o seu corpo e sua imagem corporal,
bem como de verificar se os padrões de gostos dominantes causam efeitos so-
bre os corpos e sobre a vida dos estudantes, principalmente porque eles têm
acesso à mídia, que constrói visões, categorias e classificações às quais todos
somos “obrigados” a nos referir. Nesse sentido, para tratar das influências
eurocêntricas relativas à imagem e propiciar o debate acerca do assunto na
escola, a pesquisa descrita foi desenvolvida no mês de abril do ano seguinte,
2018, convertendo-se neste artigo.
Para tanto, definiu-se como objetivo geral investigar a satisfação dos ado-
lescentes e adultos com seu corpo, com sua imagem corporal e sua origem,
buscando, além disso: 1. identificar se a mídia é capaz de influenciar a observa-
ção do seu corpo e da sua imagem corporal; 2. observar se existe influência da
família e da escola no tocante à observação do corpo e da imagem corporal; e
3. compreeender os motivos da não identificação com a cultura negra consta-
tada na pesquisa empírica realizada.
Procurou-se, neste texto, apresentar contribuições importantes para se
pensar no corpo, no gosto, na influência cultural eurocêntrica na construção
da imagem corporal e na identidade segundo os trabalhos de Schilder (1994),
Bhabha (1998), Bourdieu (2007), Silva (2014), Hall (2014), Fanon (2008), Mbembe
(2014), Santos (2012), entre outros, bem como possibilitar a discussão e reflexão
o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 305
tem-se a identificação, influência ou modelação sobre esse indivíduo. Na se-
gunda, o indivíduo “foge” e abre mão de sua imagem corporal através da não
aceitação, fuga ou negação da identidade. (SCHILDER, 1994) Com base nessas
informações, pode-se constatar que questões relacionadas à imagem afetarão
a percepção do corpo do indivíduo e a estrutura de sua identidade – que pode
ser considerada como uma “força” unificadora, que transmite a segurança do
pertencimento –, influenciando a maneira de enxergarmos a nós mesmos e aos
“outros”. (HALL, 2014)
Como o corpo e a imagem corporal são potencialmente suscetíveis às in-
terferências externas e internas, observa-se que as sociedades contemporâneas
vêm apresentando uma excessiva preocupação com a “beleza”, buscando a
ostentação de um “corpo belo”. (ALVES et al., 2009) Esses padrões de beleza
surgem através das influências socioculturais reconhecidas como fatores de
risco para o aumento da insatisfação corporal, tais como: exposição a figuras
idealizadas pela mídia, dieta de familiares, valorização da magreza e ofensas
pessoais perpetradas pelos pares em razão do sobrepeso. (SILVA; TAQUETTE;
COUTINHO, 2014) Em consequência disso, a busca incessante pelo “corpo
belo” tem influenciado negativamente alguns aspectos da vida dos indivíduos,
principalmente no que tange ao comportamento alimentar, psicossocial, físico,
cognitivo e à autoestima. (SMOLAK, 2004)
Essa busca pelo padrão estético difundido pela sociedade nos remete ao pen-
samento de Bourdieu (2007), que afirma que o gosto serve como um marcador
nas estruturas sociais, servindo para distinguir diferentes grupos na sociedade.
Sobre esse aspecto, o autor concebe a vida cotidiana como uma constante luta a
respeito da palavra final para determinar o que é o “bom” gosto, que afirma ser
“universal”. Essa luta, como entende, é um jogo cultural do qual ninguém pode
escapar, traduzida numa relação em que alguém classifica a si mesmo e é clas-
sificado pelos outros. Assim, o autor afirma que “[...] o gosto é o princípio de
tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo
que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado”.
(BOURDIEU, 2007, p. 56) Ele complementa:
o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 307
representação do poder, pois, como visto, essa prática de opressão e discrimi-
nação tem sua origem em nosso passado colonial, que manteve e perpetuou
um discurso de dominação e supremacia da raça branca europeia sobre todas
as outras.
Segundo Santos (2012),
4. família; e
o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 309
cinco alunos em cada, pois a redução do número de participantes nos gru-
pos é importante para que ocorra maior liberdade de expressão de ideias entre
eles. (MINAYO, 2004) Decidiu-se realizar os grupos de discussão separados
por sexo, já que pesquisas anteriores sugerem que normas e regras sobre ima-
gem corporal são diferentes para mulheres e homens. (SILVA; TAQUETTE;
COUTINHO, 2014) Não foi possível organizar a mesma quantidade de grupos
focais para cada sexo, uma vez que a divisão praticada contemplou todos os
estudantes que se dispuseram a participar da dinâmica proposta.
Definidos os grupos, foram-lhes explicitados o objetivo da pesquisa e a
importância de suas participações no desenvolvimento do tema estudado. As
discussões ocorreram por 80 minutos, seguindo o roteiro preestabelecido com
tópicos que forneceram a base para o debate, no qual os adolescentes e adultos
puderam expressar os seus pensamentos. As conversas foram centralizadas em
torno da imagem corporal e da importância que lhe é atribuída no dia a dia; nos
fatores que podem influenciar os sentimentos dos estudantes em relação aos
seus corpos, como pais, pares, mídia etc.; no ideal de beleza apresentado pela
mídia e pela sociedade; na possibilidade de repensar o belo de forma ampla e
diferente do que habitualmente se pensa; no pertencimento e na identificação
com a cultura afro-brasileira; na prática de exercícios físicos; e no padrão de
beleza idealizado por eles.
Para a análise dos dados, buscou-se compreender e interpretar os sentidos
das narrativas e suas contradições, apreendendo o contexto, as razões dos su-
jeitos e a lógica interna do grupo.
Resultados e discussão
Constatou-se que os jovens entrevistados vivem um momento de grande insa-
tisfação com o corpo, visto que constantemente tentam modificar a sua apa-
rência. Ficou evidente, através dos relatos impregnados do modelo vigente de
beleza divulgado pelos meios de comunicação, que, independentemente da
idade ou da fase da vida, a insatisfação com a imagem corporal pode ser mani-
festada. Nesse contexto, esses fatores midiáticos foram identificados como di-
fusores de um ideal de corpo belo e perfeito, determinando o padrão de forma/
aparência física e de consumo para os estudantes de ambos os sexos – e todas
as idades –, que consomem não “apenas bens materiais, mas também ideias e
o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 311
Damasceno e demais autores (2006) complementam a explicação afirman-
do que a insatisfação com a imagem corporal aumenta à medida que a mídia
expõe belos corpos, fato que, nas últimas décadas, tem provocado uma com-
pulsão a buscar a anatomia ideal.
Observou-se também, nas conversas, resistência quanto à identificação com
a cultura negra, que já havia sido constatada na pesquisa realizada pelo profes-
sor de Matemática na ocasião da comemoração do Dia da Consciência Negra,
em novembro de 2017. Tal resistência foi compreendida como fuga das visões
estereotipadas sobre a população negra, do preconceito e da opressão, visto que
muitos alunos afirmaram ser “julgados” pela sociedade pela cor da sua pele.
Esse julgamento foi abordado por Mbembe (2014) em sua obra Crítica da
razão negra. O autor acredita que o conceito eurocêntrico de civilização de-
terminou a construção da inferioridade negra, fazendo com que o elemento
negro passasse a ser visto como objeto de perigo que não poderia coexistir.
Para o autor, a relação senhor/escravo impôs ao negro um modo de se ver e de
ser visto. Assim sendo, negro é aquele que ninguém desejaria ser, um sinônimo
de subalternidade, uma maldição. Fanon (2008) complementa esse raciocínio
ao afirmar que a cor também é um marcador da distribuição de privilégios, co-
locando os brancos no topo da pirâmide. Desse modo, o racismo é uma forma
de garantir os privilégios das elites brancas com consequente manutenção das
estruturas sociais.
Conclusão
As relações sociais exercem um papel fundamental na transformação da ima-
gem corporal dos indivíduos da sociedade atual. O símbolo representado pelo
corpo tornou-se fator fundamental de inserção social, especialmente entre os
jovens. Ou seja, a “beleza” tornou-se uma cifra necessária para que o corpo
consiga circular na sociedade; porém, constata-se que a noção do que é belo
foi importada.
O pensamento moderno-ocidental tem influenciado o juízo de estética
corporal dos alunos – adolescentes e adultos – observados, universalizando o
seu jeito de pensar, principalmente por meio da mídia, pois “[...] a propaganda
visa um todo tão indistintamente [...]”. (ROSEIRO; RODRIGUES; ALVIM, 2018,
p. 280) Dessa forma, as particularidades estão sendo posicionadas à margem
da sociedade, ficando desvalorizadas. Pode-se concluir, então, que a sociedade
Referências
ALVES, D. et al. Cultura e imagem corporal. Motricidade, Santa Maria da Feira,
PT, v. 5, n. 1, p. 1-20, 2009.
o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 313
BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EdUSP;
Porto Alegre: Zouk, 2007.
KITZINGER, J. Focus groups with users and providers of health care. In: POPE,
C.; MAYS, N. (ed.). Qualitative research in health care.2nd. ed. London: BMJ
Books, 2000. p. 20-29.
o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 315
Notas para uma análise da formação em
Psicologia: reflexos da mercantilização na
educação superior brasileira
Caio Rudá
Gabriela Andrade da Silva
Rafael Andrés Patiño
Introdução
No Brasil, a formação em Psicologia sempre foi uma temática amplamente
estudada e debatida entre atores da própria categoria profissional e em am-
bientes acadêmicos. (COSTA et al., 2012) Nos últimos anos, resultado de trans-
formações do país em seu processo de consolidação democrática, a atuação em
diversas políticas públicas em curso tornou-se um dos assuntos mais recorren-
tes no âmbito dessa temática.
Atuantes em serviços de saúde pública e assistência social, espaços escolares,
entre outros diversos locais, hoje as psicólogas conformam uma categoria de sig-
nificativa relevância na execução de políticas públicas, frequentemente atuando
com marcado compromisso ético-político que as coloca como elementos cen-
trais no processo de combate aos problemas sociais. Em face desse cenário, o
presente trabalho busca examinar os atuais desafios da formação da psicóloga
para atuação em políticas públicas no âmbito da garantia de direitos sociais a
grupos populacionais historicamente submetidos a práticas de exclusão.
Inicialmente, apresentaremos uma síntese da constituição da psicologia
como profissão no país e, em seguida, analisaremos o cenário de atuação da
psicóloga nas políticas públicas, identificando as principais problemáticas
com ênfase no cenário de formação. Por fim, analisaremos algumas políticas
317
educacionais e indicadores de qualidade do ensino sob uma perspectiva analí-
tica que põe destaque em aspectos macrossociais na determinação do processo
formativo da psicóloga, com especial atenção às relações entre as finalidades
desse processo e ao movimento de mercantilização da educação superior.
Para tanto, o estudo se valeu de uma estratégia metodológica bibliográfica
e documental, tendo sido examinadas:
1. publicações relacionadas ao desenvolvimento histórico da psicologia no
Brasil;
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 319
o Currículo Mínimo (CM), marco normativo da formação à época, se trans-
formou no epítome de um modelo de formação reprovado, considerado
insuficiente para os desafios de um país diverso e marcado por desigualdades
sociais. (RUDÁ; COUTINHO; ALMEIDA FILHO, 2015) Após um longo pro-
cesso de negociação entre os atores envolvidos com a formação e atuação da
psicóloga, impulsionadas pela aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), em 1996, e por uma série de alterações na legislação
educacional que se seguiram, foram implementadas, em 2004, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para os cursos de Psicologia (DCN/Psi), marco norma-
tivo mais flexível que estabelece orientações gerais para uma formação ética,
política e tecnicamente competente.
As DCN/Psi modificaram o marco normativo da formação após mais de 30
anos de CM, na perspectiva de contemplar novas dinâmicas da atuação pro-
fissional.1 Mais do que uma mudança normativa, buscavam representar uma
proposta prática de solução à principal crítica direcionada à formação, que vi-
nha sendo propalada desde os anos 1970: a desconexão com a realidade social
do país e falta de referenciais teóricos adequados para dar conta dos problemas
sociais. (RUDÁ; COUTINHO; ALMEIDA FILHO, 2015) Devem ser entendi-
das, portanto, não como um documento casual, criado meramente a partir de
uma determinação legal ocasionada com a nova LDB, mas, ao contrário, como
síntese de um processo de oposição e crítica sistemática a uma perspectiva for-
mativa defasada, configurando um instrumento de transformação em direção
ao fortalecimento do compromisso social.
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 321
saúde; no caso do Suas, essa proporção caiu para 7%, sendo 27.832 as psicólogas
atuantes em serviços de assistência social – contra 14% e 9%, respectivamente,
no levantamento realizado em 2012. Essa retração sugere que, nos últimos anos,
tem havido uma desaceleração dos investimentos em políticas públicas, e não
uma saturação de psicólogas atuantes nessas políticas. Consequentemente, en-
tende-se que o desafio de consolidação do compromisso social da psicologia se
mantém, sendo necessária a continuação nos esforços de transição identitária
em direção ao desenvolvimento de práticas, como a clínica ampliada, dentre
outras, pertinentes a novos e distintos cenários de atuação.2
Em que pesem os esforços da categoria para que as práticas formativas
atuais possam dar conta do desenvolvimento do compromisso com a redução
das desigualdades e processos de exclusão, ainda persiste uma série de limita-
ções e desafios quanto à formação da psicóloga, especialmente no que tange
às flagrantes incongruências entre atuação e o que é preconizado pelas polí-
ticas, a exemplo da execução de um trabalho clínico individual, estritamente
referenciado na psicologia, no âmbito de serviços que prezam pelo trabalho
multirreferenciado em equipe. (BEATO; FERREIRA NETO, 2016; GUZZO,
2018; RODRIGUES; ZANIANI, 2017)
Diante desse cenário de avanços limitados, é possível pôr em escrutínio
a efetividade das DCN/Psi para a concretização desse processo de transição.
Teriam sido elas, de modo geral, um documento capaz de fomentar as mudan-
ças almejadas para a formação da psicóloga? Teriam superado todas as críticas
direcionadas ao CM? Enfim, teria a psicologia se preparado para a atuação em
políticas públicas? Tais perguntas, por merecerem um exame minucioso, não
serão respondidas nos limites deste texto. Buscaremos, no entanto, discuti-las
à luz da análise de resultados e políticas educacionais, sob uma perspectiva
crítica acerca da formação superior em saúde, apresentada em sequência.
2 Estes e demais dados estatísticos apontados neste capítulo foram extraídos de bases de dados pú-
blicas governamentais. Em função das características próprias da pesquisa documental, entenden-
do que tais dados são o próprio objeto de estudo, optamos por não apresentar a fonte para cada
ocorrência no texto, tendo sido feita sua apresentação geral na seção metodológica do capítulo,
disposta na introdução.
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 323
profissional, garantida pelo sistema educacional, como também de condições
de saúde necessárias para o seu exercício ocupacional. Nesse sentido, a psi-
cóloga assume relevância significativa, posto que sua atuação é marcada pelo
objetivo precípuo de conservação da força de trabalho, mantendo-a saudável
física e mentalmente. (HORST; SOBOLL; CICMANEC, 2013) Para mais, apon-
tamos, apoiados em Rose (1998), que a atuação da psicóloga pode configurar
um mecanismo de controle ideológico e produtor de modos de subjetivação
hegemônicos, atrelados à manutenção da ordem social. Consequentemente,
sob essa perspectiva, a formação e a atuação da psicóloga, que, são afinal, um
contínuo do mesmo processo, não devem ser tomadas como fenômenos neu-
tros ou desinteressados, mas como elementos da formação social que garantem
a reprodução do modo de produção capitalista.
A adoção dessa perspectiva analítica foge ao senso comum de que o estudo
do processo formativo se reduziria à consideração de aspectos tais como titu-
lação do corpo docente, matriz curricular ou conteúdos do curso, por exemplo.
Diversamente, a análise do fenômeno deve considerar a complexa interação
entre:
1. as políticas e regulamentações do Estado;
3. as relações de ensino-aprendizagem.
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 325
consolidou uma característica que hoje marca o sistema de ensino superior bra-
sileiro: a formação de grandes oligopólios educacionais, decorrentes da compra
e venda de instituições por grupos financeiros que operam no mercado de
ações e cuja valorização está assegurada por investimentos públicos. Entre 2003
e 2017, os recursos destinados à expansão da educação superior privada, por
meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e do Programa Universidade
para Todos (Prouni),3 cresceram 1.316,2%, enquanto o aumento de investimento
em todas as universidades federais ficou em 155,6%, o que evidencia uma clara
opção do Estado por expandir o sistema a partir da rede privada com o massivo
financiamento público. (CHAVES; SANTOS; KATO, 2020)
O outro conjunto de medidas controversas apontado diz respeito à exe-
cução da política regulatória na educação superior. A LDB, embora ressalte a
preservação do interesse social das práticas educativas, abre a possibilidade de
que o ensino esteja a cargo de instituições com fins lucrativos. Desse modo, o
Estado assume para si a função de regulação, estabelecendo regras e normas
que assegurem qualidade na oferta educacional, em vinculação às avaliações
preconizadas pelo Sinaes. Como expõem Barreyro e Rothen (2006), sendo
híbrida sua finalidade, o sistema incorpora modelos avaliativos de caráter
emancipatório/formativo e de controle/regulação, com o duplo objetivo de
contribuir para a tomada de decisão quanto à abertura de cursos e Instituições
de Ensino Superior (IES) e de garantir a qualidade do ensino, mensurada tanto
por indicadores e exames em larga escala de caráter quantitativo quanto pelo
aprofundamento dos compromissos e das responsabilidades sociais das IES.
Portanto, sem entrar no detalhamento da complexa política avaliativa em
curso no país, cumpre destacar que ao Estado cabe a prerrogativa de autorizar
ou não a implantação ou o aumento de vagas, devendo observar a demanda
educacional, o potencial formativo das IES e o impacto social no território de
implantação e para a sociedade como um todo. Entretanto, alguns números
relativos à formação da psicóloga parecem evidenciar uma execução diversa da
política de regulação. Em 2018, havia 349.317 estudantes de Psicologia matri-
culados, número quase equivalente ao de psicólogas registradas no sistema de
Conselhos de Psicologia: 375.963. Entre 2001 e 2017, o crescimento do número
de IES que ofertam cursos de Psicologia foi maior que o aumento do núme-
ro de matrículas: 314% contra 221%. Ademais, a ampliação das matrículas em
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 327
de ensino-aprendizagem. (CHAVES; SANTOS; KATO, 2020; MACEDO et al.,
2018; RUDÁ; SILVA, 2020)
O regime de trabalho docente, por exemplo, é um dos fatores que mos-
tram a precarização do trabalho nas IES privadas. Para permitir a dedicação
às atividades de ensino, pesquisa e extensão, além de participação em órgãos
colegiados e outras atividades administrativas, é preciso que exista uma efetiva
vinculação do docente por meio de regime de tempo integral. De acordo com
dados usados para o cálculo do CPC do ano de 2018, em média, a proporção
de docentes com regime de tempo parcial ou integral nos cursos de Psicologia
foi de 100% para as IES públicas federais; 96,6% para as públicas estaduais,
86% para as privadas com fins lucrativos; e 80,3% para as privadas sem fins
lucrativos. A proporção de docentes com titulação de doutorado também foi
mais alta nos cursos de IES públicas federais (80%), seguidas pelas IES públicas
estaduais (69%), privadas sem fins lucrativos (43,1%) e privadas com fins lucra-
tivos (41,2%).
Ao observarmos os resultados do Enade, constatamos que, em 2006, es-
cores mais elevados, superiores a cinco – em escala de zero a dez –, foram
alcançados por mais de dois terços dos(as) estudantes de IES públicas, mas por
apenas 27% dos(as) estudantes de IES privadas. (BASTOS et al., 2011) A dife-
rença entre desempenhos de cursos por categoria administrativa se manteve
no Enade 2015: dentre os 23 cursos que tiveram o conceito máximo (cinco), 21
eram públicos. Já em 2018, dos 36 cursos avaliados com conceito cinco, 35 eram
oferecidos em IES públicas e apenas um em IES privada.
Tais números acendem o sinal amarelo quanto ao cenário da formação, vis-
to que o setor privado tem sido responsável pela maior parte das psicólogas
graduadas no país. Sob nosso modelo analítico, não apenas causam apreensão
os indicadores educacionais medianos a ruins, mas, sobretudo, o fato de que,
em função de sua prerrogativa de lucratividade, as práticas educacionais no
contexto privado parecem se encontrar mais vulneráveis às determinações da
necessidade de reprodução da estrutura social. Desse modo, torna-se mais pro-
vável que esses egressos venham a atuar no contexto das políticas públicas sem
o preparo necessário para lidar com situações desafiadoras, como a garantia de
direitos a sujeitos historicamente submetidos a práticas de exclusão e cercea-
mento de direitos, ao encararem com menos estranhamento o status quo.
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 329
garantir as suas condições de produção e reprodução. Isso equivale a dizer que,
mesmo com toda a ação coletiva em busca de um viés crítico para a profissão,
continuam existindo estruturas sociais dominantes que buscam neutralizar
quaisquer esforços que visem à sua desconstrução.
O presente trabalho buscou desvelar essa complexa engrenagem de repro-
dução não num sentido de conformidade, mas para que seja possível estabelecer
linhas de ação pragmáticas de contraponto a essa estrutura social. Logo, acre-
ditamos ser necessário, antes de mais nada, levar essa abordagem analítica a
uma análise empírica, de modo que seja possível aprofundar a compreensão
dos nexos entre os elementos que compõem o modelo de formação apresen-
tado. Surgem, portanto, como possibilidades de investigação: o impacto do
regime e das condições de trabalho docente na qualidade da formação; a efi-
cácia e/ou limites de revisões curriculares orientadas para o fortalecimento da
discussão sobre políticas públicas; a correlação entre categoria administrativa
e organização acadêmica e desempenho estudantil; entre vários outros temas
que podem ajudar a consolidar ou refutar esse modelo analítico de formação.
Por fim, acreditamos ser de relevância que a análise empírica proposta seja
acompanhada do exame de duas questões em particular com que encerramos
este trabalho. Estaria a psicologia necessariamente condicionada ao capital?
Em caso afirmativo, como promover a emancipação do sujeito em relação à
violenta ideologia capitalista, estruturante de modos de subjetivação homo-
geneizados? Talvez essas indagações sejam não o nosso desfecho, mas nosso
ponto de partida para continuar pensando a formação da psicóloga.
Referências
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3. ed. Lisboa:
Editorial Presença; São Paulo: Martins Fontes, 1980.
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 331
COSTA, J. P. et al. A produção científica sobre a formação de psicólogos no
Brasil. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 130-138, 2012.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psipesq/v6n2/v6n2a06.pdf.
Acesso em: 31 jul. 2020.
SILVA, G.; RUDÁ, C. Formación del psicólogo en Brasil: ¿Qué cuentan los
números? In: CONGRESO INTERNACIONAL DE INVESTIGACIÓN Y
PRÁCTICA PROFESIONAL EN PSICOLOGÍA, 11., 2019, Buenos Aires. Anais
eletrônicos […]. Buenos Aires: Ediciones de la Facultad de Psicología, Universidad
de Buenos Aires, 2019. p. 8-11.
nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 333
DISPUTAS NARRATIVAS
Os “habitantes originais” de Porto Seguro
na Viagem ao Brasil de Maximiliano de Wied
Neuwied: uma reflexão sobre decolonização
da história das ciências e protagonismo
indígena
Francisco Cancela
Introdução
O quadro de óleo sobre tela a seguir, pintado pelo príncipe Karl de Wied
Neuwied, é um retrato de Quäck, produzido por volta de 1830. Ao ganhar es-
paço destacado na galeria do castelo de Neuwied, em meio a outros retratos da
nobre família de condes e condessas da região do Rio Reno, na atual Alemanha,
esse importante personagem de uma das primeiras viagens científicas realiza-
das no Brasil no início do século XIX conquistava a eterna “lembrança” de um
seleto grupo de naturalistas da época. Não que tivesse entrado para a história
das ciências, com reconhecimento público de suas contribuições para a botâni-
ca, a zoologia, a antropologia ou a linguística. Tratava-se de um rito de registro
na esfera privada. Ingenuamente, podia ser visto como ato afetivo e de gratidão
por quem se dedicou, desde quando chegou à Europa, a animar uma “multidão
337
embasbacada”, que, vendo-o como objeto, inspecionava, investigava e matava
a curiosidade diante de um “selvagem civilizado”.
Na história das ciências propriamente dita, nenhum espaço foi reserva-
do para Quäck. Aliás, pouco se sabe sobre sua própria história individual.
A sua trajetória, como a de vários indígenas do Brasil ao longo do período co-
lonial, foi profundamente marcada pelos inúmeros contatos com as frentes
de expansão – econômica, territorial e cultural – movidas pelo processo de
ocidentalização. Quando tinha pouco mais de dez anos, foi capturado numa
das expedições de guerra justa que assolavam a região do atual extremo sul da
Bahia. Depois de ser arrancado de sua família e de seu território, certamente
numa experiência violenta e assassina, foi entregue ao ouvidor José Marcelino
da Cunha, que o deixou aos “cuidados” do professor de gramática da vila de
Porto Seguro, senhor Antônio Joaquim Moreira de Pinho. Para demarcar sua
entrada na sociedade luso-brasileira, foi batizado no rito católico e recebeu o
nome de Joaquim.
1 De acordo com Quijano (2005, p. 231), “os colonizadores exerceram operações que dão conta
das condições que levaram à configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de
2 Quando descreveu a abertura de uma estrada entre a vila de Porto Alegre e Minas Gerais, Wied
Neuwied (1989, p. 175) revelou: “Para a derrubada [da floresta para criação da estrada] aos poucos,
foram chegando, de S. Mateus, Viçosa, Porto Seguro, Trancoso, e outros pontos da costa oriental,
muitos homens, na maior parte índios, enviados com esse objetivo”.
Para obter fibras põem as folhas [de tucum] na água para amolecer a
parte carnuda e retiram depois a película externa. Essas cordas du-
ram tanto quanto as de cânhamo. Não falta com que fabricar cor-
doalha nas matas virgens da América, pois para tal fim existem, além
de outros, o pau de estopa (Lecythis) [sic], o pau de embira, a embira
branca, a barriguda (Bombax) [sic]. (WIED NEUWIED, 1989, p. 295)
Referências
ABDALLA, F. T. de M. O peregrino instruído: um estudo sobre o viajar e o
viajante na literatura científica do Iluminismo. 2012. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.
PESTRE, D. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas
definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG/UNICAMP, Campinas,
v. 6, n. 1, p. 3-56, 1996.
RÖDER, Josef. Vida e viagens de maximiliano, príncipe de Wied. In: WIED, M.,
Prinz von. Viagem ao Brasil 1815-1817. São Paulo: Melhoramentos, 1969. p. 5-17.
WIED NEUWIED, M., Prinz von. Viagem ao Brasil. Tradução Flávio Süssekind
de Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EdUSP, 1989. (Coleção Reconquista do Brasil. 2. série, v. 156).
Introdução
Nos últimos anos, temáticas como a circulação de fake news, desinformação
e pós-verdade têm sido cada vez mais recorrentes na mídia jornalística, aca-
dêmica e em discursos políticos. Essa discussão tem ganhado vertiginosa im-
portância na medida em que a difusão das informações entre as pessoas tem
aumentado e não se limita mais àquilo produzido pelas mídias tradicionais,
jornalistas profissionais e especialistas nos assuntos abordados. Além disso,
destacam-se a velocidade desse espalhamento e o alcance que essas informa-
ções podem obter em um contexto de popularização crescente da internet e
das redes sociais, fazendo com que um grande número de pessoas possa tomar
atitudes informadas em bases falsas.
A internet, particularmente, possui uma característica que a difere fun-
damentalmente de outros meios de comunicação de massa – como o rádio
e a televisão –, que é proporcionar um alto grau de interatividade entre o
emissor e o receptor da mensagem, potencializando uma ruptura com a di-
nâmica comunicacional tradicional. (BRAGA, 2018, p. 203-204) Unindo isso à
possibilidade da manutenção do anonimato do emissor, a internet torna-se
um campo fértil para que as notícias falsas se reproduzam e, por vezes, criem
situações que substanciam crises no mundo real, afetando a vida de pessoas e
instituições, causando perturbações sociais e buscando desconstruir de forma
deliberada e ilegítima os conhecimentos científicos, baseados no rigor teórico-
-metodológico.
357
A exemplo disso, pode-se destacar o bombardeio diário de notícias falsas
referentes ao novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador da doença
Covid-19, que foi decretado como pandemia no dia 13 de março de 2020 pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse contexto, existe a possibilidade
de as populações serem atingidas por uma nova pandemia: a desinformação.
Esse fenômeno foi alertado pela OMS, que descreveu como “infodêmica”
a superexposição de informações, verdadeiras e falsas, sobre uma doença.
(GIMÉNEZ et al., 2020)
A disseminação de fake news1 na “era da informação”, em que “pseudofa-
tos se fazem passar por fatos” (LEVITIN, 2019), pode ser compreendida pela
análise de um fenômeno contemporâneo denominado por pesquisadores do
comportamento social de “pós-verdade”. A pós-verdade tem a ver com a ma-
neira como as pessoas discernem o que é real e o que é falso. É, portanto, uma
verdade contextual que não se preocupa, no campo das informações, com refe-
rências a fatos e verificações objetivas e não tem interesse em confirmações de
fontes, pondo em xeque a validade do que, normalmente, pode ser considerado
confiável – seja a ciência, a academia ou a imprensa livre – ao colocar de lado
a evidência, o pensamento e a análise crítica em favor da emoção, valorizando,
assim, a intuição pessoal como base para suas ações e julgamentos. (DUNKER,
2017; HEZROM; MOREIRA, 2018) Dessa forma, a percepção de cada um sobre
os fenômenos passa a ser a verdade, independentemente de essa percepção ter
referência factual ou não.
No entanto, a pós-verdade traduz o discurso do que seria uma “verdade útil”,
que possui uma finalidade prática, de ser consumível e consumida, de ter fácil
circulação, de ser publicitária e alimentar as mídias (TIBURI, 2017), podendo,
dessa forma, implicar cenários políticos, morais, institucionais e da vida civil.
O presente estudo tem como finalidade trazer à discussão os malefícios
provocados pela difusão de notícias falsas e seus possíveis danos sociais no
contexto atual, em que o espalhamento delas se potencializa por razão da
popularização da internet e das mídias sociais. Destaca-se aqui, sobretudo, a
1 Aqui, a compreensão do que é fake news vai além da sua tradução direta – notícias falsas. Trata-se
de um fenômeno de tendência internacional, partilhando da descrição de Braga (2018, p. 205), em
que há disseminação, por qualquer meio de comunicação, de notícias sabidamente falsas com o
intuito de atrair a atenção para desinformar ou obter vantagem sobre outrem – política ou econô-
mica, por exemplo.
Infodemia
O termo “infodemia” remete ao grande aumento no volume de informações
associadas a um assunto específico que podem se multiplicar exponencialmen-
te em pouco tempo devido a um evento específico, como o caso da pandemia
do novo coronavírus. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus,
declarou na Conferência de Segurança de Munique, em 15 de fevereiro de 2020,
que: “Não estamos apenas combatendo uma epidemia; estamos lutando contra
uma infodemia”. (MESQUITA et al., 2020; PAHO, 2020; ZAROCOSTAS, 2020)
De acordo com a Pan American Health Organization (Paho), escritório re-
gional para as Américas da OMS, a busca por atualizações sobre a Covid-19 na
internet cresceu de 50% a 70% em todas as gerações, e, levando-se em consi-
deração essa busca tão grande por informações virtuais, a OMS tem reforçado
a importância da conscientização das pessoas para procurar fontes confiáveis,
pois, além da saúde física, a saúde mental pode ser afetada pela propagação da
desinformação. (PAHO, 2020, p. 2)
É importante salientar que, além do que é espalhado pelas mídias sociais,
muitas das informações incorretas também são divulgadas pela mídia de massa
tradicional, como a divulgação de imagens chocantes, às vezes descontextua-
lizadas, com o objetivo de chamar atenção do seu público, por vezes, sendo
publicadas em todos os lugares, enviando uma mensagem errada aos seus re-
ceptores e ficando à frente das evidências. (ZAROCOSTAS, 2020)
Nesse sentido, vale destacar que, em uma sociedade que não prima pela
educação de qualidade, a maioria das pessoas não sabe distinguir o que é uma
fonte confiável. Não sabe sequer que é preciso conferir a fonte ou caminhos
para isso, senão aquele baseado no poder da autoridade de quem diz: autorida-
des religiosas ou políticas, por exemplo, como se elas tivessem conhecimento
2 A desinformação, corroborando-se o descrito por Lima e demais autores (2020, p. 3), inclui in-
formação errada, memes e sátiras, mas, perigosamente, um acúmulo cada vez maior de notícias
e mensagens produzidas deliberadamente para enganar, manipular e causar danos por motivos
políticos, financeiros e sociopsicológicos e que encontram caldo de cultivo na “era da pós-verdade”,
do negacionismo científico e da espetacularização da vida.
3 Entende-se aqui como dano social aquele que causa um rebaixamento no nível de vida da coleti-
vidade, decorrente de condutas socialmente reprováveis. Seus efeitos podem se dar no aspecto
tanto moral e intelectual quanto patrimonial dos indivíduos afetados. (PIRES, 2016)
Considerações finais
A pandemia do coronavírus abriu um panorama de aditamento de vicissitu-
des e do surgimento de novas crises nos vários setores da vida social, seja na
economia, na educação, no assistencialismo, nos sistemas de saúde etc. Essa
pandemia também evidenciou uma nova forma de contágio com efeitos virais:
a desinformação. Embora se saiba que a difusão de notícias falsas está longe de
ser um fenômeno novo, a forma, o alcance, a intensidade e os desdobramentos
do espalhamento dessas mensagens possuem proporções nunca vistas como
agora, na “era da informação”. Essa verdadeira infodemia e seus efeitos de dano
social têm feito parte dos noticiários diariamente, assim como têm convocado
a atenção de pesquisadores acadêmicos e de lideranças políticas. Isso indica,
portanto, um novo modus vivendi globalizado e irreversível das sociedades mo-
dernas interconectadas e cada vez mais digitais.
Assim, o pensamento pós-verdadeiro, que se embasa numa espécie de
“messianismo” de discursos contra-hegemônicos, antipolíticos e de “novas ver-
dades”, põe em xeque a validade, a necessidade e a importância da checagem
Referências
ALBUQUERQUE, C. Fake news circularam na imprensa na epidemia de 1918.
Revista História Ciências Saúde, Rio de Janeiro, mar. 2020. Disponível em: http://
www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/fake-newsla-em-1918/. Acesso em: 30 abr. 2020.
BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde sem fake news. Brasília, DF, 2020.
Disponível em: https://www.saude.gov.br/fakenews. Acesso em: 2 ago. 2020.
FIOCRUZ. Qual a origem desse novo coronavírus? Rio de Janeiro, 24 jun. 2020.
Disponível em: https://portal.fiocruz.br/pergunta/qual-origem-desse-novo-
coronavirus. Acesso em: 1 ago. 2020.
LEMOS, V. A farsa dos caixões vazios usados para minimizar mortes por
covid-19. BBC News Brasil, São Paulo, 8 maio 2020. Disponível em: https://www.
bbc.com/portuguese/brasil-52584458. Acesso em: 2 ago. 2020.
LOVISI, P. Xenofobia, uma outra doença que veio com o coronavírus. Estado de
Minas, Belo Horizonte, 27 abr. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/
app/noticia/gerais/2020/04/27/interna_gerais,1142295/xenofobia-uma-outra-
doenca-que-veio-com-o-coronavirus.shtml. Acesso em: 2 ago. 2020.
MESQUITA, C. T. et al. Infodemia, fake news and medicine: science and the
quest for truth. International Journal of Cardiovascular Sciences, Rio de Janeiro,
v. 33, n. 3, p. 203-204, May/June 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/
ijcs/v33n3/2359-4802-ijcs-20200073.pdf. Acesso em: 28 jul. 2020.
PIRES, M. R. Dano social. Revista Âmbito Jurídico, São Paulo, 1 mar. 2016.
Disponível em: https://bit.ly/3gocvRV. Acesso em: 2 ago. 2020.
SHIMIZU, K. 2019-nCoV, fake news, and racism. The Lancet, London, v. 395,
n. 10225, p. 685-686, 2020. Disponível em: https://www.thelancet.com/action/
showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930357-3. Acesso em: 29 abr. 2020.
Introdução
Nas primeiras duas décadas do século XXI, fluxos migratórios de pessoas
vêm crescendo visivelmente em todo o globo, sobretudo no norte da África e
Oriente Médio em direção ao continente europeu. Esses níveis de mobilidade
territorial da população aumentaram significativamente, oriundos principal-
mente da Síria, país localizado no Oriente Médio, região da Ásia Ocidental. Ao
longo do presente escrito, demostraremos em números a migração de pessoas
indo da Síria em direção ao continente europeu. Vale ressaltar que, neste arti-
go, trataremos das causas e consequências das migrações provindas de confli-
tos militares na região do Oriente Médio, exatamente na Síria; e observaremos
tal questão eximindo as migrações causadas por fome e/ou fatores naturais,
como também por oscilações no mercado financeiro.
A migração é um fenômeno que esteve presente na história humana até
os dias atuais e muito provavelmente continuará ocorrendo em todo globo.
Segundo Oliveira, Peixoto e Góis (2017), em 2015, as Nações Unidas estima-
ram cerca de 244 milhões de migrantes internacionais no mundo, integrando
esse grupo todos os indivíduos que residiam num país diferente daquele onde
1 Pesquisa financiada, via bolsa, pela Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (Fapesb).
375
nasceram; e segundo o mesmo estudo, dentro desse total explicitado, 19,6
milhões de pessoas eram de refugiados, isto é, 8% de todos os migrantes inter-
nacionais.
Tratando do fluxo migratório atualmente para a Europa, Oliveira e demais
autores (2017, p. 74) explicam que este aconteceu “[...] com maior ou menor
intensidade, permanecem como uma dimensão estrutural das migrações
nas últimas sete décadas”. Estudos vêm mostrando que os movimentos mi-
gratórios do início do século XXI são quase similares ao pós-Guerra Mundial
(1939-1945), quando, de acordo com Oliveira, Peixoto e Góis (2017, p. 76), esti-
ma-se que “tenha havido cerca de 60 milhões de deslocados”. Já em 2014, esse
número chegou a incríveis 59,5 milhões de pessoas, cerca de 22 milhões a mais
em comparação com os anos 2000.
Tanto a migração quanto o direito ao refúgio em outras nações começaram
a ter um debate efetivo juridicamente após a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), devido à grande onda de pessoas fugindo, principalmente do continente
europeu, em razão da fome, da miséria e outros fatores causados pela citada
guerra. Diante disso, foi debatido, votado e aprovado na convenção das Nações
Unidas o Estatuto dos Refugiados, adotado em 28 de julho de 1951, entrando
em vigor em abril de 1954, como parte da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948. Sendo assim, tal estatuto assegura que seja “direito de qual-
quer pessoa perseguida em seu Estado solicitar proteção a outro Estado, mas
não estabelece o dever de um Estado conceder asilo”. (JUBILUT, 2007, p. 36)
Hoje, a maioria dos emigrantes não foge dos seus países por conta de temores
endógenos, como a fuga por perseguições políticas, religiosas ou por catástrofes
climáticas. Na verdade, conforme Harvey (2014), são temores provocados por
governos exógenos que implantam o caos e a turbulência à procura de fontes
energéticas, em especial o petróleo e, consequentemente, o poder e a riqueza.
A guerra na Síria, hoje, envolve grandes nações que arrogam estar com-
batendo o terrorismo, porém, segundo Junskowski (2017, p. 37), “terrorismo”
é um termo muito complexo, pois “[...] nomear um grupo ou ação utilizan-
do o termo terrorismo, pressupõe julgamento moral e pode ser usado a partir
de interesses ideológicos e políticos para depreciar um indivíduo ou coletivo”.
O conflito a que estamos assistindo na Síria, desde 2011, foi travado por interes-
ses russos e norte-americanos, juntamente com os seus aliados, sob o pretexto
de combater o terror. Contudo, sabe-se que são interesses geopolíticos e geoes-
tratégicos para dominar o território sírio e seus bens, como historicamente é
verificado.
Silva e Silva (2018) demonstram a teoria Rimland2 ou teoria das Frímbrias,
do geógrafo holandês Nicholas John Spykman, inspirada nas ideias da
heartland de H. Mackinder. A teoria do geógrafo holandês trata da importância
do controle da Eurásia. Silva e Silva elucidam que, segundo essa teoria, quem
controlar essa faixa do globo comandará várias passagens geoestratégicas im-
portantes para traçar rotas comerciais, além de estar geograficamente em um
ponto estratégico para usar certas táticas militares. Tal região é considerada o
coração do mundo. Além disso, esse pensamento se alinha com as teorias do
geógrafo britânico David Harvey, as quais explicaremos a seguir.
3 Ver: https://www.publico.pt/2020/04/02/mundo/noticia/refugiados-polonia-hungria-republica-
-checa-violaram-lei-tribunal-europeu-1910722.
6 Poderia citar mais estereótipos pejorativos criados sobre vários outros povos, religião etc., mas por
delimitação do tema trato somente da questão árabe.
Considerações finais
As grandes nações, através de suas corporações, dominam outros territórios
sempre com pretextos relacionados à intervenção para manter a paz, contra
ditaduras etc. Entretanto, há interesses coletivos via o Estado e vice-versa.
Essas políticas geram a destruição material e imaterial das pequenas nações
e, consequentemente, a expropriação de pessoas pelo mundo, essencialmente
aquelas que possuem como destino as nações mais desenvolvidas financeira-
mente à procura de uma vida melhor e mais digna.
As intervenções militares proporcionadas pelas grandes nações causa-
ram uma grande destruição econômica, social e cultural em todo Oriente
Médio. No momento em que alguns refugiados oriundos dessa região chegam
à Europa, primeiramente, há uma grande burocracia para deixá-los se fixar.
Segundo alguns nativos, os estigmatizam baseados nas ideias difundidas em
alguns filmes, como os citados, que servem para confundir a população an-
fitriã sobre o que de fato causa a intensificação da migração e dos pedidos de
refúgio, especialmente os provenientes do Oriente Médio para a Europa.
Desse modo, a população em geral fica impossibilitada de saber as causas e
as consequências das guerras que certas grandes nações financiam no mundo.
Tais informações tendem sempre a ficar fora de circulação social para que a
Referências
AFEGANISTÃO lidera crescimento do PIB. Correio Braziliense, Brasília, DF,
8 nov. 2009. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/
noticia/economia/2009/11/08/internas_economia,153399/afeganistao-lidera-
crescimento-do-pib.shtml. Acesso em: 1 jul. 2020.
Álamo Pimentel
Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-
-doutor em Sociologia do Conhecimento pelo Centro de Estudos Sociais
da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi professor da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) entre os anos de 2003 e 2013, atuou no
Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) entre os anos
de 2013 e 2015 e, atualmente, é professor associado III da Universidade Federal
do Sul da Bahia (UFSB). Lidera o grupo de pesquisa Sociedade, Educação e
Universidade (SEU). Tem experiência na área de educação, com ênfase em
ciências sociais aplicadas à educação.
E-mail: [email protected]
Altemar Felberg
Doutorando em Estado e Sociedade pelo Centro de Formação em Ciências
Humanas e Sociais (CFCHS) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Humanidades
e Tecnologias (ULHT), Lisboa. Especialista em Estudos Transdisciplinares em
Cultura e em Gestão Pública pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Especialista em Educação, Desenvolvimento e Políticas Educativas pelo Centro
Integrado de Tecnologia e Pesquisa (Cintep) da Faculdade Nossa Senhora de
Lourdes (FNSL). Graduado em Administração com Habilitação em Marketing
pela Faculdade do Descobrimento (FACDESCO). Membro do grupo Laboratório
389
de Pesquisa Transdisciplinar sobre Metodologias Integrativas para a Educação e
Gestão Social (Paidéia). Integrante do projeto de pesquisa “Perspectivas e desa-
fios da participação em tempos de crise democrática” (CFCHS/UFSB).
E-mail: [email protected]
Ana Carneiro
Graduada em Comunicação Social-Jornalismo pela Escola da Comunicação
(ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra, doutora e
pós-doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-MN) da (UFRJ). Atualmente, é
professora adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Tem expe-
riência em redação e roteiro para ONGs e empresas privadas. Entre outras publi-
cações, é autora dos livros O povo parente dos buracos: sistema de prosa e mexida
de cozinha (E-Papers, 2015), Que é feito de você, Mangueira (Vermelho Marinho,
2016) e Retrato da repressão no campo (MDA, 2010, com Marta Cioccari). Integra
os grupos de pesquisa Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi), Núcleo de
Antropologia da Política (Nuap), ambos no PPGAS-MN/UFRJ, e Dinâmicas
Territoriais, Etnicidades e Ruralidades Contemporâneas (Diterc), no Programa
de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES/UFSB).
E-mail: [email protected]
Caio Rudá
Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Graduado em
Psicologia e mestre em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade pela
s ob r e o s au tor e s 391
Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Especialista em Saúde
Coletiva pela UFSB, em Gestão da Saúde pelo Hospital Sírio Libanês e em
Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto. Servidora
pública estadual, atuando no Núcleo Regional de Saúde Extremo Sul, Base
Eunápolis. Teve seu artigo “O Projeto Terapêutico Singular em uma Unidade
de Saúde da Família em Porto Seguro: uma atividade de trabalho em debate”,
publicado em 2019 na Revista Ergologia.
E-mail: [email protected]
Francisco Cancela
Doutor em História. Professor titular do Departamento de Ciências Humanas
e Tecnologias, campus XVIII, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Coordenador técnico do Museu de Arte Sacra da Misericórdia e docente do
Programa de Pós-Graduação em Povos Indígenas, Estudos Africanos e Cultura
Negra (UNEB) e do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade
(PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
E-mail: [email protected]
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experiência na área de sociologia, atuando principalmente nos seguintes te-
mas: administração de conflitos, drogas, criminalidade, violências, populações
de beira de estrada, recursos de uso comum e comuns.
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Emancipatórios do Direito, vinculado ao Centro de Formação em Ciências
Humanas e Sociais (CFCHS).
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(Diterc). Mestra em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Professora do Instituto Federal Baiano (IF Baiano), campus Teixeira de Freitas.
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Valéria Giannella
Professora associada da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Pós-
-doutora pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA) com o projeto:
Metodologias não convencionais para a educação e a gestão social. Doutora em
Políticas Públicas do Território pela Università Iuav di Venezia. Graduada
em Planejamento Urbano e Regional pela Escola de Arquitetura pela
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ana carneiro
Professora da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Graduada em Comunicação Social-
Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Mestra, doutora e pós-doutora
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional (PPGAS-MN/UFRJ).
valéria giannella
Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB). Pós-doutora pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Graduada em Planejamento
Urbano e Regional pela Escola de Arquitetura da
Universidade de Veneza.