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ESTADO E SOCIEDADE

SOB OLHARES
INTERDISCIPLINARES
EXPERIÊNCIAS PARTICIPATIVAS,
DISPUTAS NARRATIVAS,
TERRITÓRIO E DEMOCRACIA

Ana Carneiro
Rafael Andrés Patiño
Valéria Giannella
Likem Edson Silva de Jesus
Ykaro da Cruz Pereira
(Organizadores)
O esforço do Programa de Pós-Graduação em
Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB) tem sido o de
construir diálogos interdisciplinares entre as
ciências humanas e sociais, abrindo também
para o cruzamento com outras áreas nas quais
os problemas colocados pela relação entre
Estado e sociedade possam ser tematizados.
Tal proposta pode parecer demasiado ampla,
abarcando conceitos cujos sentidos são alvo
de disputa e controvérsia entre as áreas que
buscam dialogar. Somam-se a isso os efeitos
criativos da articulação entre pesquisa, ensino
e extensão, incluindo nas reflexões o que
surge também do diálogo com práticas de
conhecimento externas à produção acadêmica.
Sendo, além disso, um jovem programa,
pertencente a uma das mais novas instituições
de ensino superior do país, em uma época
de intensas crises – política, econômica e
sanitária –, não é pequeno o desafio de buscar
retratar, mesmo que parcialmente, esse espaço
de produção coletiva do conhecimento.
Conforme sugerido no subtítulo, a associação
entre os temas das experiências participativas,
disputas narrativas, território e democracia
funciona como guarda-chuva para diferentes
– quiçá divergentes – abordagens sobre os
impasses, possibilidades e interrogações que a
relação entre Estado e sociedade nos coloca.
ESTADO E SOCIEDADE
SOB OLHARES
INTERDISCIPLINARES
EXPERIÊNCIAS PARTICIPATIVAS,
DISPUTAS NARRATIVAS,
TERRITÓRIO E DEMOCRACIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor
João Carlos Salles Pires da Silva

Vice-reitor
Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Assessor do reitor
Paulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora
Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial
Alberto Brum Novaes
Angelo Szaniecki Perret Serpa
Caiuby Alves da Costa
Charbel Niño El-Hani
Cleise Furtado Mendes
Evelina de Carvalho Sá Hoisel
Maria do Carmo Soares de Freitas
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Ana Carneiro
Rafael Andrés Patiño
Valéria Giannella
Likem Edson Silva de Jesus
Ykaro da Cruz Pereira
(Organizadores)

ESTADO E SOCIEDADE SOB OLHARES


INTERDISCIPLINARES: EXPERIÊNCIAS
PARTICIPATIVAS, DISPUTAS NARRATIVAS,
TERRITÓRIO E DEMOCRACIA

Salvador
Edufba
2020
2020, Autores.
Direitos para esta edição cedidos à Edufba.
Feito o depósito legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


em vigor no Brasil desde 2009.

Projeto Gráfico
Gabriela Nascimento
Foto da capa e separatriz
Salvatore Selicato
Instagram: @Terrafertilceramica
Revisão
Mariana Rios
Normalização
Sandra Batista

Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Estado e sociedade sob olhares interdisciplinares : experiências participativas, disputas


narrativas, território e democracia / Ana Carneiro... [et al.]. – Salvador : EDUFBA, 2020.
398 p.

Contém biografia.
ISBN: 978-65-5630-095-5

1. Brasil. 2. Estado. 3. Ciência política. 4. Administração pública. 5. Democracia. 6. Direito


I. Carneiro, Ana.

CDD – 320

Elaborada por Jamilli Quaresma CRB-5: BA-001608/O

Editora filiada à:

EDUFBA
Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina
Salvador - Bahia • CEP: 40170-115 • Tel.: (71) 3283-6164
www.edufba.ufba.br
[email protected]
Sumário

Prefácio 9
Marcos Otavio Bezerra

Introdução 15
Ana Carneiro, Álamo Pimentel e Likem Edson Silva de Jesus

PARTE I – DEMOCRACIA E TERRITÓRIO

ESTADO, SOCIEDADE E DEMOCRACIA: PROPOSTAS


DE ABORDAGEM NA FILOSOFIA E NO DIREITO

Nietzsche e Chantal Mouffe: sobre democracia e sociedade 33


Márcio José Silveira Lima

MST: pluralismo jurídico na prática 49


Ilan Fonseca de Souza e Elisângela Melo de Menezes

O papel do direito na análise de políticas públicas: 67


um debate interdisciplinar
Likem Edson Silva de Jesus e Carolina Bessa Ferreira de Oliveira

PROBLEMATIZANDO A DICOTOMIA RURAL/URBANO:


TERRITÓRIO E DESIGUALDADE

À beira da vida: vulnerabilidade social dos beiradeiros 85


do extremo sul da Bahia, Brasil
Oneide Andrade da Costa e Herbert Toledo Martins

Novas ruralidades no distrito do Vale Verde: para além do rural 101


e do urbano
Ivaneide Almeida da Silva e May Waddington Telles Ribeiro

Análise da Política Pública de Desenvolvimento Territorial: 119


participação e multiatorialidade no extremo sul da Bahia
Patricia Ferreira Coimbra Pimentel
Território, educação e violência: ruralidades contemporâneas 135
da juventude de Vale Verde, Porto Seguro (BA)
Matheus Lopes da Silva e May Waddington Telles Ribeiro

PARTE II – EXPERIÊNCIAS PARTICIPATIVAS

POLÍTICA PÚBLICA, PARTICIPAÇÃO SOCIAL E SAÚDE

O processo deliberativo nas instituições participativas e a capacidade de 155


influenciar políticas de saúde: uma consequência ou um desafio?
Betânia do Amaral e Souza e Sandra Adriana Neves Nunes

Vozes da violência obstétrica no Fórum da Rede Cegonha da região 171


de saúde de Porto Seguro
Eduarda Motta Santos e Rafael Andrés Patiño

(Re)pensando o SUS para atender às necessidades e particularidades 189


da população cigana em tempos de pandemia
Dayse Batista Santos e Sandra Adriana Neves Nunes

AUTONOMIA E GRAMÁTICAS PARTICIPATIVAS

Tecendo elos no limiar da pandemia: laboratórios do comum 209


e experiências públicas para a gestão social de territórios
Valéria Giannella e Fernanda Hellmeister de Oliveira Martins

Articulação e autonomia para os povos em movimento: reflexões 227


sobre a construção da Teia dos Povos
Naira Reinaga de Lima

Arte, afirmação cultural e etnoturismo na T.I. Pataxó 243


de Coroa Vermelha, Bahia
Alicia Araújo da Silva Costa e Pablo Antunha Barbosa

Conselho da Juventude Pataxó da Bahia: um espaço de participação 261


alternativo, inventado, não formal, livre e vivido
Altemar Felberg e Valéria Giannella
PARTE III – DISPUTAS NARRATIVAS

EDUCAÇÃO, ENSINO E SOCIEDADE

História ameaçada: bolsonarismo, negacionismo e ensino de História 285


Fernando Santana de Oliveira Santos

O corpo e a imagem corporal: percepções dos estudantes da Educação 303


de Jovens e Adultos de uma escola pública municipal em Teixeira de Freitas
Betânia do Amaral e Souza

Notas para uma análise da formação em Psicologia: reflexos 317


da mercantilização na educação superior brasileira
Caio Rudá, Gabriela Andrade da Silva e Rafael Andrés Patiño

DISPUTAS NARRATIVAS

Os “habitantes originais” de Porto Seguro na Viagem ao Brasil de 337


Maximiliano de Wied Neuwied: uma reflexão sobre decolonização
da história das ciências e protagonismo indígena
Francisco Cancela

Uma breve análise da circulação das fake news na pandemia da Covid-19 357
Ykaro da Cruz Pereira

Lei Non Refoulement: um discurso geoestratégico sobre a guerra na Síria 375


e os refugiados
Fábio Júnior da Luz Barros e Nadson Vinicius dos Santos

Sobre os autores 389


Prefácio

Marcos Otavio Bezerra

Os artigos reunidos nesta coletânea examinam o problema do Estado através


de questões como o funcionamento ordinário de instituições públicas, as inte-
rações que seus agentes mantêm com as pessoas, a legislação oficial, a formula-
ção e a implementação de políticas públicas e as críticas dirigidas às suas formas
de atuação. Eles são resultados do trabalho de formação profissional e diálogo
interdisciplinar iniciado em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Estado e
Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Em con-
sonância com os objetivos do programa, a coletânea disponibiliza informa-
ções consistentes e qualificadas sobre um leque variado de povos tradicionais
e grupos sociais, instituições públicas, modos de existência e experiências de
mobilização coletiva localizados, sobretudo na região sul do estado da Bahia.
Nesse sentido, o livro é uma importante contribuição da UFSB e do PPGES
para os debates sobre Estado e sociedade, os estudos sobre as populações loca-
lizadas na região, os responsáveis pela implementação de políticas públicas e
os moradores do território que, individual e coletivamente, buscam assegurar
as condições para a produção e reprodução de suas vidas.
Do ponto de vista das reflexões sobre a relação entre as instituições do
Estado e da sociedade, o intervalo de tempo abrangido pelos artigos chama
atenção, inicialmente, para as transformações implementadas nas diretrizes
das políticas públicas pelos distintos governos nos últimos anos. Isso impli-
ca, no limite, como publicamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro, o
desmonte do Estado através da extinção de órgãos, redução de investimentos
públicos em áreas como educação, saúde e meio ambiente, alterações na legis-
lação e suspensão de direitos e políticas públicas.
Assim, ao examinarem temas como democracia e participação popu-
lar, gestão coletiva de identidades e territórios, revisão de fatos históricos

9
– “negacionismo” – no conteúdo de disciplinas ou o uso de fake news no con-
texto de controle da pandemia da Covid-19, os artigos constituem registros de
configurações e momentos distintos do Estado e de suas relações com a socie-
dade. A constatação dessas variações nas diretrizes e formas de intervenção das
instituições estatais justifica, portanto, o afastamento de visões essencialistas do
Estado e chama atenção para o modo como este se inscreve na sociedade mais
ampla como parte dos conflitos entre suas forças sociais e disputas ideológicas.
Alinhados com as reflexões recentes desenvolvidas no campo das ciências
humanas, os artigos constituem evidências a favor dos argumentos sobre a
multiplicidade de formas que assume o Estado quando olhado da perspectiva
de suas representações, da atuação de seus agentes e do modo como se faz pre-
sente no cotidiano das pessoas. Cada um dos capítulos conduz o(a) leitor(a) a
observar um modo específico de manifestação e experiência com as instituições
do Estado. São exemplo, nesse sentido, a participação da população na execu-
ção de políticas públicas no âmbito de conselhos municipais, as políticas de
desenvolvimento territorial, a ressignificação do rural e de seus modos de vida,
a mobilização do direito nas lutas sociais, as formas de exclusão e de violência
exercidas pelos serviços públicos, o lugar das escolas públicas na construção da
percepção dos estudantes sobre seus corpos e as expectativas de populações
em situações de exclusão social de obter o mínimo apoio do poder público –
uma forma de presença do Estado nutrida pela sua ausência efetiva. Os artigos
compõem, desse modo, um mosaico de relações distintas tecidas com as insti-
tuições e ações tidas como estatais. Considerando o ponto de vista da variedade
de relações e experiências inscritas nessa espécie de mosaico, não parece fazer
sentido conceber ou descrever o Estado como algo unificado e singular.
Esse afastamento analítico da visão do Estado como uma entidade abstrata
dá lugar, no conjunto dos artigos, a uma abordagem que valoriza sua com-
preensão a partir de olhares sobre seu funcionamento ordinário. Observa-se,
nesse sentido, o modo como instituições estatais, políticas públicas, agentes
públicos e ideias políticas, entre outros aspectos, se inscrevem no dia a dia
e, desse modo, contribuem para a definição das condições de existência de
pessoas e coletividades como usuários do serviço público de saúde, povos tra-
dicionais, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), artesãos e
jovens indígenas, estudantes de escolas públicas, jovens rurais, mulheres grá-
vidas, populações ciganas, moradores das beiras de rodovias, entre outros.

10 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


A atenção ao modo como as instituições, os agentes e as ações estatais existem
em termos práticos para as pessoas permite ir além da visão do Estado descrita
nos documentos, regulamentos e discursos oficiais. Nesse sentido, nos casos
aqui abordados, vemos emergir expectativas, conflitos, sentimentos e efeitos
associados ao poder do Estado dificilmente captáveis se não se leva em conta
o significado efetivo que este, em sua condição multifacetada, adquire para as
pessoas e grupos sociais.
Os textos levantam diferentes questões, e as possibilidades de aproxi-
mações e cruzamentos entre eles são múltiplas, como demonstram aquelas
sugeridas pelos(as) organizadores(as) da coletânea. Desse modo, me arrisco a
elaborar breves comentários sobre alguns dos temas explorados na coletânea,
considerando sua proposta de pensar Estado e sociedade.
A relação entre participação popular e democracia é um dos temas abor-
dados nos trabalhos. Os casos analisados sobre conselhos municipais, fóruns e
redes de movimentos sociais e as discussões sobre representação e deliberação
se inscrevem no processo de construção democrática que ganhou impulso no
país a partir dos anos de 1990 e padece de danoso retrocesso nos tempos atuais.
As experiências focalizadas constituem, desse modo, realizações efetivas da
ideia de constituição de espaços públicos nos quais membros da sociedade
civil participam ou reivindicam participar da formulação e execução de políti-
cas públicas. Os artigos aqui reunidos passam a integrar, portanto, a literatura
disponível sobre o tema ao examinarem questões como o desenho institucio-
nal dos espaços públicos participativos, os processos de tomada de decisão, a
eficiência das políticas públicas, o controle sobre o uso dos recursos públicos,
o enfrentamento das desigualdades sociais, a aproximação entre Estado e mo-
vimentos sociais, entre outras.
Cabe ressaltar, ainda, que as situações empíricas examinadas revelam, en-
tre outros aspectos, a fluidez, as tentativas de fixação e as transformações das
fronteiras legais práticas e imaginárias entre Estado e sociedade. Nesse senti-
do, observa-se, por exemplo, que a incorporação de representantes da sociedade
civil nas tomadas de decisões públicas através dos experimentos participativos
produz mudanças tanto nas organizações sociais quanto na administração go-
vernamental. O sentido dessas mudanças, no entanto, está sendo alterado com
as diretrizes políticas, ideológicas e jurídicas incrementadas pelo governo do
presidente Bolsonaro. Como esses são fatos recentes e cujos efeitos são ainda

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desconhecidos, permito-me aqui compartilhar uma possibilidade de análise.
Posto que essas diretrizes apontam para um desmonte das experiências parti-
cipativas na gestão pública, lembro que, do ponto de vista heurístico, o estudo
dos processos de retirada das instituições e dos serviços públicos do dia a dia das
pessoas é, como o exame dos processos de formação, uma das vias para a apreen-
são dos significados e das relações sociais que se articulam em torno do Estado.
A independência e autonomia em relação ao Estado são, por sua vez, va-
lores políticos presentes em organizações e movimentos sociais examinados
nos trabalhos. Eles integram diversas formas e experimentos de organizações
coletivas – associações, redes, teias de povos, territórios de identidades, fóruns
– que investem, por exemplo, no aprofundamento dos princípios democráti-
cos, na defesa das condições e modos de vida autóctones, na descolonização do
conhecimento e das práticas, na autogestão e na valorização do “princípio polí-
tico do comum”. Ao abordarem esses temas, os trabalhos aqui reunidos lançam
luz e dialogam com experiências que emergem como respostas aos desafios
criados pela crise da democracia e pela desconstrução do Estado promovidas
pelas políticas neoliberais.
A formação de grupos e identidades sociais é um dos efeitos do poder do
Estado na sociedade. Através de seus regulamentos, discursos e classificações
oficiais, as instituições do Estado participam, desse modo, da conformação de
realidades sociais ao fixar direitos, produzir representações sobre categorias
sociais e territórios e incluir e excluir pessoas nos limites das medidas adminis-
trativas. Essa dimensão da relação entre Estado e sociedade pode ser observada
nos textos. Ela está presente, por exemplo, na definição de pessoas como re-
fugiados, no reconhecimento de povos como tradicionais e na delimitação de
territórios como indígenas e quilombolas. A situação de pessoas que habitam
e produzem suas roças nas beiras das rodovias é um exemplo oposto. Vivendo
em condições de extrema precariedade e invisibilidade, os “beiradeiros” bus-
cam algum tipo de reconhecimento junto às instituições públicas, de modo
que possam acessar seus serviços e obter algum tipo de auxílio.
Essas situações evidenciam, entre outros aspectos, a importância da aná-
lise sobre o direito nos estudos sobre as políticas públicas. Considerando as
contribuições dos artigos, cabe destacar a questão recorrente do abismo entre
a existência do direito – na sua forma codificada de lei, regulamento oficial
ou política – e o uso efetivo desse direito por parte das pessoas que a ele po-
dem recorrer. Em outras palavras, nota-se que as lutas e os acordos políticos

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que permeiam e resultam na fixação de legislações – de proteção ao meio am-
biente, de acesso a terra, à saúde etc. – não garantem automaticamente sua
efetividade. A conversão de leis em usufruto efetivo de direitos é mediada,
entre outros aspectos, por novas disputas políticas e decisões de agentes ad-
ministrativos. Essa questão fica evidente na análise sobre as dificuldades de
refugiados sírios para obtenção de asilo em países europeus. Examinar essas
mediações é, portanto, um passo importante para a compreensão do lugar do
direito nas políticas públicas. Daí a importância, como demonstram os textos,
tanto do exame dos processos através dos quais os direitos relacionados às po-
líticas públicas são estabelecidos, quanto dos mecanismos e práticas através
dos quais eles são efetivados ou negados na sua aplicação cotidiana.
Os encontros entre as instituições do Estado e os usuários dos serviços
públicos envolvem riscos como incompreensões, conflitos e violências. Como
mostram as situações examinadas nos textos, esses riscos resultam, em grande
medida, de desencontros entre visões de mundo, valores, modos de organi-
zação do trabalho, concepções sobre direitos e expectativas que orientam os
agentes das instituições públicas e as pessoas que recorrem aos serviços pú-
blicos ou dependem deles. Esses são aspectos que podem ser observados, por
exemplo, no modo como ciganos são atendidos em órgãos de saúde ou nas
concepções distintas de propriedade que informam o MST e as instituições
estatais. Mas as dificuldades podem ganhar o contorno de violência, como
no caso de mulheres que buscam cuidados obstétricos. As incompreensões
não estão ausentes também dos embates em torno de modelos de produção
agrícola que envolvem o poder público e a juventude rural. Considerando o
lugar estrutural que a diversidade social e cultural ocupa no sul da Bahia, as
situações de desencontros e tensões constituem, certamente, uma dimensão
importante das reflexões sobre as instituições públicas na região, uma vez que
as representações e práticas nelas vigentes tendem a contribuir para reprodu-
zir as desigualdades e favorecer as exclusões sociais.
Os comentários aqui feitos referem-se, sem dúvida, somente a algumas
das questões exploradas pelos textos e ressaltam, particularmente, o ponto
de vista e as experiências das pessoas e coletivos alcançados pelas medidas e
ações dos agentes públicos. Como mencionado anteriormente, a atenção a es-
ses aspectos é estratégica para a compreensão dos significados e das formas de
funcionamento ordinário do Estado. Mas gostaria de finalizar lembrando de
outra face do Estado que tem igualmente sido objeto de estudos e que poderia

p r e fác io 13
ser incorporada com o mesmo tipo de afinco às investigações desenvolvidas.
Penso, em termos amplos, na dinâmica interna de funcionamento dos órgãos
estatais, nas relações das instituições públicas com os setores e classes domi-
nantes e no ponto de vista das elites administrativas e dos agentes públicos
que atuam na região. Essas são dimensões da relação entre Estado e sociedade
que, em razão do lugar que ocupam na reprodução das relações de poder e
desigualdades sociais, merecem ser analisadas e, certamente, teriam muito a
ganhar com as contribuições do PPGES/UFSB.
Em março de 2017, pude participar das atividades de abertura do semestre
letivo do programa. A oportunidade me foi proporcionada pelo generoso con-
vite da coordenadora do PPGES, Dr.ª May Waddington. Ao longo de três dias,
que incluiu um sábado de visita e defesas de trabalhos finais de graduação no
Vale Verde, ouvi ótimos relatos de pesquisas e participei de instigantes discus-
sões. No entanto, dessa curta estadia, carrego outro vívido registro. Encontrei
no PPGES e na UFSB um clima eletrizante. Colegas e estudantes altamente
motivados com seus estudos e pesquisas, mobilizados, preocupados com os
desdobramentos políticos do golpe jurídico-parlamentar de 2016 e com proje-
tos que não cabiam nas 24h.
Esse entusiasmo se alimentava da energia, das inquietações e esperanças
de estudantes oriundos de diferentes cantos do sul da Bahia e do país. Nos
olhares, nos sorrisos e nas disputas para tomar a palavra nas rodas de conversa,
se observavam nitidamente a alegria e o orgulho de estudar numa universi-
dade pública. Para mim, esses eram sinais claros do sucesso e do importante
papel que a UFSB vinha cumprindo como instituição de ensino, pesquisa e
extensão na região.
Esta coletânea, desse modo, dá continuidade, em particular, mas não ex-
clusivamente, ao compromisso e diálogo do PPGES/UFSB com os moradores
e as populações do sul da Bahia. É um testemunho, sem dúvida, das contribui-
ções que as ciências humanas podem oferecer para a boa formação de pessoas
que aí vivem e atuam, para o aperfeiçoamento dos serviços ofertados e para a
diminuição das desigualdades econômicas e sociais, que, lamentavelmente, re-
sistem como marca do país. O livro, portanto, celebra a importância da região
sul da Bahia não só pela dimensão simbólica que ocupa no imaginário nacional
como lugar de fundação do Brasil, mas, especialmente, pela sua riqueza ecoló-
gica, diversidade cultural e valor de suas vidas humanas.

14 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Introdução

Ana Carneiro
Álamo Pimentel
Likem Edson Silva de Jesus

Reunimos aqui artigos baseados em pesquisas de docentes e discentes –


incluindo coautores externos – do Programa de Pós-Graduação em Estado e
Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Conforme
indicado no subtítulo, a articulação entre experiências participativas, dispu-
tas narrativas, território e democracia funciona como guarda-chuva para di-
ferentes – quiçá divergentes – abordagens sobre os impasses, possibilidades
e interrogações que a relação entre Estado e sociedade nos coloca. Às vezes, o
foco se volta para as possibilidades e os tensionamentos da participação social
prevista em políticas públicas e formas de institucionalidade. Em outros mo-
mentos, é a própria construção do espaço público que se encontra reinventada
nos termos de formações coletivas que, a despeito de organismos estatais ou
atores dos governos, dão sustentação prática e teórica à ideia de autonomia.
Da mesma forma, em tempos de “pós-verdade”, as disputas narrativas atraves-
sam configurações sociais através das quais os órgãos e agentes públicos ou
governamentais aparecem emaranhados aos mais diversos atores e escalas so-
ciais. O território e a territorialidade são também aspectos desse emaranhado,
e a indagação sobre a democracia, termo tão abrangente quanto vago, perpassa
o conjunto dessas múltiplas reflexões que, ao fim e ao cabo, buscam caminhos
para um país menos desigual.
Qual o lugar, a capacidade e o poder do Estado na construção de uma so-
ciedade mais justa? A reflexão parece-nos urgente no momento atual, pois,
como bem lembra Marcos Otavio Bezerra no prefácio a esta coletânea, as pes-
quisas aqui reunidas, ao se voltarem sobretudo para o presente e para questões
que estão na ordem do dia, retratam contextos sócio-históricos nos quais ob-
servamos o processo de desmonte do Estado. Aparente exceção, nesse sentido,

15
seria o artigo de Francisco Cancela, que aborda a obra do príncipe, naturalis-
ta e explorador alemão Maximiliano de Wied Neuwied. Mas, ao propor uma
leitura decolonial dessa memória, Cancela encontra os demais capítulos da co-
letânea em suas análises críticas sobre nossas formas estruturais de hierarquia
e opressão.
Nosso esforço no PPGES/UFSB tem sido o de construir diálogos inter-
disciplinares entre as ciências humanas e sociais, abrindo-nos também para o
cruzamento com outras áreas nas quais os problemas colocados pela relação
entre Estado e sociedade possam ser tematizados. De um lado, a diversida-
de dos recortes possibilitados por essa proposta pode nos parecer demasiado
ampla, abarcando conceitos cujos sentidos são alvo de disputa e controvérsia
entre as áreas que buscam dialogar. Além disso, a articulação entre pesquisa,
ensino e extensão, com intuito de investigar e propor ações a partir do diálogo
com práticas de conhecimento externas à produção acadêmica, torna ainda
mais amplo e criativo nosso leque de possibilidades. De outro lado, somos um
jovem programa, pertencente a uma das mais novas instituições de ensino
superior do país. Não é pequeno, portanto, o desafio de definir uma seleção
que forneça um retrato desse espaço de produção coletiva do conhecimento –
desafio este que engaja um processo de autorreflexão necessário a toda traje-
tória de amadurecimento.
Com esse propósito, o colegiado definiu uma comissão editorial formada
pelos docentes Ana Carneiro, Rafael Patiño e Valéria Giannella e pelos discen-
tes Likem Edson Silva de Jesus (doutorado) e Ykaro da Cruz Pereira (mestrado).
Com o auxílio financeiro do Edital da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
(PROPPG/UFSB) nº 04/2020, a comissão estabeleceu uma bem-vinda parce-
ria com a Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba) e abriu chamada
para submissões de artigos, sem delimitar previamente quaisquer temas, abor-
dagens ou recortes. A única condição era que o(a) autor(a) proponente fosse
vinculado(a) ou egresso(a) do programa. Nosso objetivo, como se diz por aí,
era o de “ver que bicho vai dar”. Os textos recebidos foram encaminhados
a pareceristas ad hoc em cuja avaliação nos baseamos para chegar à seleção
dos 20 artigos aqui publicados. Apenas depois dessa definição, preocupamo-
-nos em buscar um fio condutor para a variedade de temas e abordagens que
chegaram às nossas mãos. Foi então que a perturbação causada pela heteroge-
neidade dos títulos selecionados cedeu lugar à descoberta de um interessante

16 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


encadeamento temático subentendido no conjunto dos trabalhos. Este define
um campo de diálogo que não pretende absolutamente esgotar as reflexões e
atividades do PPGES, mas apresenta um retrato potente de sua atuação hoje.
O PPGES instituiu os primeiros cursos de mestrado e doutorado da UFSB
e surgiu antes mesmo da PROPPG. A criação e a implementação das suas ati-
vidades ocorreram nos anos iniciais do ciclo de inscrição da universidade na
região sul do estado da Bahia.
A UFSB foi criada no ano de 2013 e, no mês de setembro do ano de 2014, ti-
veram início as atividades letivas dos cursos de primeiro ciclo dos Bacharelados
Interdisciplinares (BIs) e das Licenciaturas Interdisciplinares (LIs). Entre os
anos de 2015 e 2016, a primeira geração de professoras e professores implicados
com as pesquisas no campo das ciências humanas e sociais, com a participação
de pesquisadores e pesquisadoras advindos das áreas de tecnologias e ciências
ambientais, organizou a proposta original para a Avaliação de Programas de
Cursos Novos (APCN) do PPGES enviada à Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) naquele ano.
O período de criação da proposta inicial do PPGES foi marcado por gran-
des instabilidades políticas nos cenários externo e interno da própria UFSB.
O corpo docente que participou da elaboração da proposta original era forma-
do por professoras e professores cedidos pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA) – instituição tutora do processo de implementação da UFSB –, por
docentes advindos por meio de redistribuição de outras universidades do país
e por aqueles recém-concursados. Antes mesmo da abertura do processo sele-
tivo para o ingresso das primeiras turmas dos cursos de mestrado e doutorado,
houve mudanças na formação do corpo docente. Entre a aprovação pela Capes
e a realização da primeira seleção, ocorreu o primeiro processo de alteração no
quadro docente: alguns professores e professoras cedidos pela UFBA voltaram
para as suas unidades acadêmicas de origem e outros docentes que chegavam
à UFSB – alguns como professores visitantes – naquele ano ingressaram no
grupo que participou da implementação das primeiras turmas e do primeiro
colegiado.
Apesar da instabilidade provocada pela rotatividade de docentes na organi-
zação dos primeiros cursos, as múltiplas experiências advindas das produções
intelectuais de outras instituições e áreas de conhecimento conferiram ao
PPGES densidade conceitual e configurações metodológicas e institucionais

i n trod u ç ão 17
inovadoras no âmbito territorial de sua inscrição. O encontro entre intelec-
tuais no âmago da proposta mais ampla de interdisciplinaridade da UFSB
viabilizou a criação de um programa de pós-graduação notadamente compro-
metido com novas emergências teórico-metodológicas, pluralidade temática
e ênfases em novas relações de ensino, pesquisa e extensão de cunho inter-
disciplinar. Somava-se a essas diretrizes fundantes da política de produção do
conhecimento do PPGES o compromisso social com as populações do entorno
da região sul da Bahia e com os desafios inerentes à inclusão de amplos seg-
mentos da sociedade brasileira para uma vida mais inclusiva e democrática.
A transição entre a criação e aprovação da proposta no âmbito da Capes e a
formação das primeiras turmas de mestrado e doutorado com efetiva operacio-
nalização institucional do PPGES contou com a liderança de dois importantes
pesquisadores do campo das ciências humanas e sociais. Carlos Caroso teve
um papel fundamental na articulação que gerou as bases conceituais, es-
truturais e operacionais tanto da proposta apresentada à Capes quanto na
reestruturação do corpo docente induzida pelo retorno de alguns colaborado-
res e colaboradoras às suas instituições de origem. No ano de 2017, o primeiro
coordenador do PPGES encerrou o seu tempo de permanência na UFSB e
retornou à UFBA. May Waddington Telles Ribeiro, colaboradora atuante da
primeira geração docente do PPGES, assumiu a liderança dos trabalhos que
vinham sendo desenvolvidos, sendo a coordenadora do primeiro colegiado
eleito do PPGES, tendo como vice-coordenadora a professora Janaína Losada.
O compartilhamento das formulações conceituais e operacionais que deram
origem ao PPGES, assim como dos primeiros processos institucionais consti-
tutivos da implementação do PPGES entre Carlos Caroso e May Waddington,
foi fundamental para as primeiras ações fundantes do nosso programa. Parte
significativa das configurações atuais do nosso programa resulta do trabalho
seminal de Caroso e May.
O primeiro processo seletivo, realizado no ano de 2016 para ingresso no
ano de 2017, apresentou de maneira significativa respostas muito positivas para
os esforços coletivos que tornaram possível a existência do PPGES em meio a
uma das maiores crises da democracia na história do Brasil. Os projetos de
pesquisa que inauguraram os trabalhos da nossa pós-graduação apresentavam
o pluralismo temático e a inscrição de profissionais das mais diferentes áreas
de atuação com expressiva implicação territorial no âmbito da região sul do

18 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


estado da Bahia. Temas como economia solidária, violência contra a mulher,
saúde coletiva, processos interculturais, educação e cidadania, etnodesenvolvi-
mento, direitos coletivos e o direito à cidade – para citar uma pequena amostra
– passaram a constituir múltiplas emergências da produção interdisciplinar
viabilizada pelo PPGES.
Além das dissertações e teses em curso ao longo dos últimos quatro anos,
eventos, ciclos de estudos, produções artísticas e bibliográficas, redes de coo-
peração com outras instituições locais, regionais, nacionais e internacionais
estendem e fortalecem a presença institucional do programa dentro e fora da
universidade. A produção bibliográfica advinda dos estudos e pesquisas realiza-
dos tem gerado material de grande relevância para os processos formativos da
própria UFSB e de outras instituições da região. Artigos, relatórios de estudos
e pesquisas, dissertações e teses produzidos no PPGES, além de expressarem
temas e questões profundamente contextualizadas na região sul do estado da
Bahia, criam condições de diálogo cooperativo com os estados do Espírito Santo
e Minas Gerais – dada a proximidade territorial em que estamos –, assim como
abrem horizontes para a inscrição dos trabalhos aqui realizados em agendas
de interlocuções transnacionais. Desde a sua origem, o PPGES participa de
cooperações técnico-científicas com instituições dos Estados Unidos, Canadá,
França, Portugal e Colômbia, por exemplo. No Brasil e na Bahia, estamos
presentes em processos colaborativos com outras universidades tais, como:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), UFBA, Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), entre outras.
No modelo curricular da UFSB, os cursos de mestrado e doutorado do
PPGES são denominados cursos de terceiro ciclo. Os cursos de primeiro ciclo
compõem-se dos BIs e LIs, mencionados anteriormente. Os cursos de segundo
ciclo são os cursos regulares de graduação. No momento, o Centro de Formação
em Ciências Humanas e Sociais conta com os cursos de Antropologia, História
e Direito. A presença institucional do nosso programa na articulação curricu-
lar com os cursos de primeiro e segundo ciclo tem sido fundamental para a
consolidação dos fluxos de formação interdisciplinar da nossa universidade,

i n trod u ç ão 19
da graduação à formação mais avançada na pós-graduação. Além do vínculo
formal do programa com a área interdisciplinar da Capes com ênfase na área
básica das ciências sociais e humanidades, dentro da UFSB, conseguimos arti-
cular com os demais ciclos de formação a oferta global das etapas de formação
acadêmica coerentes com a proposta da nossa universidade. Alguns estudantes
egressos dos cursos da UFSB e das instituições públicas e privadas da região
constituem parte significativa dos discentes do nosso programa.
Isso tem produzido repercussões muito promissoras no cumprimento das
missões da universidade na pesquisa, no ensino e na extensão desde o lugar
ocupado pelo PPGES. No âmbito da pesquisa, conforme sinalizado anterior-
mente, além de os temas e as questões de trabalho estarem enraizados nos
contextos locais, a produção do conhecimento tem resultado em proces-
sos e produtos de grande relevância, tanto para alimentar outros processos
formativos em nível de graduação e pós-graduação na região quanto para a
internacionalização das nossas relações institucionais.
No ensino, o projeto político-pedagógico do programa investe na intera-
ção dos mestrandos, das mestrandas, dos doutorandos, das doutorandas e seus
orientadores e orientadoras com os cursos de graduação, por meio dos estágios
docentes, dispositivos curriculares obrigatórios, assim como da organização
de eventos, projetos de iniciação científica e ofertas de vagas para estudantes
da graduação da UFSB, de outras instituições de ensino da região, bem como
para profissionais já graduados das comunidades e municípios do entorno.
É importante ressaltar que as interações entre discentes da pós-graduação e
discentes da graduação têm criado campos de pesquisa, assim como cenários
de experimentações didáticas e pedagógicas com as produções dos cursos de
mestrado e doutorado.
Os grupos de pesquisa inscritos no PPGES expressam grande força na
realização de atividades de extensão universitária. Além de articular redes
de cooperação com outros grupos sociais e coletivos da região, os projetos e
programas de extensão que envolvem os nossos grupos de pesquisa criam con-
dições de democratização dos seus processos de produção do conhecimento,
ao mesmo tempo em que se colocam em regime de coparticipação com outros
setores das comunidades locais.
Os egressos da primeira turma do curso de mestrado qualificaram suas in-
serções nos setores públicos e privados em que atuam ou passaram a atuar logo

20 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


após a conclusão dos seus trabalhos. Digno de destaque é o fato de que mais
da metade da primeira turma prosseguiu com estudos e pesquisas no nível de
doutorado, dentro do próprio PPGES ou em programas de outras instituições
federais de ensino – de 12 mestres e mestras formados, oito deram continui-
dade ao doutorado. Com esses resultados, o nosso programa, apesar do seu
pouco tempo de existência, responde de maneira muito significativa à meta 14
do Plano Nacional de Educação (PNE) – aprovado para o decênio 2014-2024 –,
que, além de prever a elevação de vagas de ingresso em programas de pós-gra-
duação stricto sensu, propõe a elevação dos indicadores de titulações em nível
de mestrado e doutorado.
Nesse sentido, apesar da persistência da crise da democracia, das ameaças à
produção do conhecimento científico em todas as áreas, sobretudo no campo
das ciências sociais e humanidades, e das restrições orçamentárias impostas
às universidades públicas, o PPGES tem apresentado como resposta à socie-
dade brasileira e à sociedade baiana a reafirmação do seu compromisso com o
Estado e a sociedade que também o nomeiam.

A coletânea é dividida em três partes, com duas seções cada. A primeira par-
te, intitulada “Democracia e território”, abre-se com a seção “Estado, sociedade
e democracia: propostas de abordagem na filosofia e no direito”, que reúne um
texto da filosofia e dois do direito. No instigante artigo de Márcio José Silveira
Lima, “Nietzsche e Chantal Mouffe: sobre democracia e sociedade”, a relação
entre esses dois conceitos é avaliada a partir de um diálogo entre as obras dos
dois filósofos. Ao refutar a avaliação corrente de que haveria uma ausência de
pensamento político na filosofia nietzschiana, Lima se baseia na distinção, ela-
borada por Mouffe, entre os âmbitos ôntico e ontológico na política e defende
que as críticas à democracia feitas pelo filósofo às vezes parecem contradizer o
ponto de partida de seus próprios argumentos. As aproximações e os distancia-
mentos entre esses dois autores baseiam-se na ideia, defendida por ambos, da
política como espaço de agonismos que permeiam toda sociedade.
A abstração do debate filosófico é seguida de uma análise do pluralis-
mo jurídico recortada pelo caso concreto do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). No capítulo “MST: pluralismo jurídico na prática”,

i n trod u ç ão 21
Ilan Fonseca de Souza e Elisângela Melo de Menezes remetem-nos à discussão
sobre sociedade, democracia e política partindo de uma breve reflexão sobre
a função social da propriedade na Constituição Federal de 1988, para então
mostrar a insuficiência do Estado na resolução do antigo problema da con-
centração fundiária e dos conflitos agrários no Brasil. Apresentando como o
pluralismo jurídico é vivido dentro do MST, com as especificidades de sua or-
ganização e cultura jurídica, o artigo busca mostrar como as práticas de embate
do movimento afetam ou podem afetar o campo jurídico-social mais amplo.
Com recorte mais amplo, é também sobre o tensionamento entre Estado e
sociedade que Likem Edson Silva de Jesus e Carolina Bessa Ferreira de Oliveira
constroem sua análise. No capítulo “O papel do direito na análise de políti-
cas públicas: um debate interdisciplinar”, os autores partem da relação entre
política, direito e ação do poder público para, em seguida, apontar possíveis
articulações entre a dimensão jurídico-institucional dos processos político-ad-
ministrativos do Estado e as demandas sociais por participação e realização de
direitos sociais. Ancorados sobretudo nas análises de Maria Paula Dallari Bucci,
os autores apresentam como os aspectos jurídicos que permeiam as políticas
públicas afetam seus processos de formulação e implementação. O campo de
reflexão do direito mostra-se, assim, fundamental à necessária construção de
uma abordagem interdisciplinar sobre a ação do Estado e dos instrumentos de
efetivação dos direitos sociais.
O capítulo “À beira da vida: vulnerabilidade social dos beiradeiros do ex-
tremo sul da Bahia, Brasil”, de Oneide Andrade da Costa e Herbert Toledo
Martins, abre a seção intitulada “Problematizando a dicotomia rural-urbano:
território e desigualdade”. Em uma pesquisa de rara sensibilidade, os autores
despertam nosso olhar para a vida rural às margens da BR-101, em Teixeira de
Freitas, onde um trecho de terras lindeiras tornou-se opção de moradia para
indivíduos e famílias que o artigo denomina “beiradeiros”. Quem são eles? De
onde vieram? Por que ocupam as margens da rodovia? Como se reproduzem
socialmente? Casas feitas de barro, sucata ou folhas de zinco, junto a áreas de
cultivo para autoconsumo, caracterizam a paisagem revelada pela investiga-
ção, na qual os beiradeiros são descritos como “posseiros que constroem um
modo de vida sui generis em condições de extrema vulnerabilidade social”.
No capítulo seguinte, “Novas ruralidades no distrito do Vale Verde: para
além do rural e do urbano”, de Ivaneide Almeida da Silva e May Waddington
Telles Ribeiro, a localidade do Vale Verde, em Porto Seguro (BA), aparece como

22 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


um amálgama de produções agrícolas e atividades produtivas, comerciais e de
serviço. A partir de depoimentos dos moradores e dados empíricos coletados
na observação do cotidiano do trabalho em diferentes localidades do distrito, o
texto mostra como nativos, imigrantes e assentados do Vale Verde vivem com-
binações socioeconômicas em que rural e urbano nem sempre são categorias
explicativas adequadas. Dialoga-se, assim, com os estudos sobre novas rurali-
dades, mostrando-se como a “família”, que permanece como unidade básica
de produção tal qual nos estudos clássicos de campesinato, agora é fortemente
marcada pela pluriatividade.
Na sequência, apresentamos dois capítulos que questionam a capacidade
de órgãos e instrumentos da administração pública de democratizar e garantir
processos de inclusão no desenvolvimento territorial do extremo sul da Bahia.
Patricia Ferreira Coimbra Pimentel busca os significados elaborados pelos atores
envolvidos na política pública de desenvolvimento territorial do território de
identidade extremo sul da Bahia. Com base nos modelos de análise institucional
e de processo, investigando documentos oficiais de implementação dessa polí-
tica, a autora realiza observação participante em seus espaços de participação
no capítulo “Análise da Política Pública de Desenvolvimento Territorial: partici-
pação e a multiatorialidade no extremo sul da Bahia”. A autora argumenta que
a dificuldade de participação nesse modelo de política evidencia um “problema
público” e defende que, diante das mudanças políticas na gestão pública desde
2016, faz-se especialmente necessário encontrar outras formas de participação.
Por outro viés e com abordagem distinta, mas também preocupados com a
inserção de grupos sociais locais na dinâmica de espaços institucionalizados vol-
tados ao desenvolvimento territorial, Matheus Lopes da Silva e May Waddington
trazem-nos de volta ao Vale Verde e investigam ali a articulação entre a morali-
dade dos jovens e sua inserção no sistema educacional – escola e universidade.
No capítulo “Território, educação e violência: ruralidades contemporâneas da
juventude de Vale Verde, Porto Seguro (BA)”, os autores descrevem os valores
que orientam escolhas de continuidade ou ruptura desses jovens em relação
ao modo de produção de seus pais, a agricultura familiar. Concluem que “o
poder público não compreende os modelos de produção e as práticas socioe-
conômicas que se sustentam no território, criando uma atmosfera de baixa
interferência e suporte no que se refere ao apoio e à impulsão do desenvolvi-
mento local”.

i n trod u ç ão 23
A segunda parte da coletânea, “Experiências participativas”, traz pesquisas
que abordam as relações entre o Estado e uma diversidade de atores sociais,
envolvidos direta ou indiretamente no planejamento e na implementação de
políticas públicas, processos decisórios e de governança. Desse modo, tensio-
nam os limites impostos pela atual conjuntura política, à inclusão e ao diálogo
com movimentos sociais, grupos identitários e classes populares na esfera pú-
blica. A primeira seção agrupa trabalhos com recortes no campo da saúde. No
artigo “O processo deliberativo nas instituições participativas e a capacidade
de influenciar políticas de saúde: uma consequência ou um desafio?”, Betânia
do Amaral e Souza e Sandra Adriana Neves Nunes apresentam um estudo de
caso realizado no Conselho Municipal de Saúde de Teixeira de Freitas (BA),
com o fim de identificar os obstáculos enfrentados pelos seus membros para
a efetivação e potencialização dos processos deliberativos desenvolvidos pelo
órgão, o que contribui para a garantia da gestão democrática e participativa do
Sistema Único de Saúde (SUS).
Também explorando a interlocução entre sociedade civil e agentes do
Estado na gestão pública da saúde, Eduarda Motta Santos e Rafael Andrés
Patiño trazem, no capítulo “Vozes da violência obstétrica no Fórum da Rede
Cegonha da região de saúde de Porto Seguro”, a análise documental das atas e
apresentações de 15 encontros realizados no âmbito do fórum, grupo interins-
titucional e multiprofissional que têm o objetivo de discutir e debater sobre a
atenção perinatal à mãe e à criança. No texto, à luz da teoria do reconhecimen-
to intersubjetivo de Axel Honneth, são analisadas as experiências de violência
obstétrica relatadas pelas participantes do coletivo e é discutida a complexidade
das múltiplas formas de desrespeito que atravessam as vidas das mulheres viti-
madas por essa forma de violência, com efeitos nas esferas do amor, do direito
e da solidariedade.
Encerrando a seção, o trabalho de Dayse Batista Santos e Sandra Adriana
Neves Nunes, intitulado “(Re)pensando o SUS para atender às necessidades e
particularidades da população cigana em tempos de pandemia”, revela, a partir
de levantamento bibliográfico documental e da própria experiência de uma
das autoras como enfermeira da rede pública, que as dinâmicas de exclusão
e invisibilidade que afetam a população cigana incluem o despreparo do SUS
para atendê-la em suas necessidades e particularidades durante a pandemia da
Covid-19. O estudo destaca-se não somente pela atualidade e emergência do

24 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


tema, mas também por considerar a importância do aspecto intercultural na
construção do cuidado e na (re)construção de políticas públicas de saúde reso-
lutivas, democráticas e capazes de reduzir desigualdades. Demanda-se, assim,
uma agenda de pesquisa e de atuação institucional que desconstrua estigmas
e preconceitos.
Com experiências que escapam à institucionalidade estatal, a seção
“Autonomia e gramáticas participativas” traz pesquisas realizadas com gru-
pos que desenvolvem formas de sociabilidade alternativas e metodologias
integrativas próprias, priorizando valores, saberes e identidades coletivamen-
te construídos e compartilhados. Abrindo a seção, o artigo “Tecendo elos no
limiar da pandemia: laboratórios do comum e experiências públicas para a
gestão social de territórios”, de Valéria Giannella e Fernanda Hellmeister de
Oliveira Martins, explora os nexos entre o campo de estudos do comum e a
gestão social de territórios. A partir da observação de práticas do “agir-comum”
ensaiadas por comunidades e coletivos “mais ou menos organizados”, em mo-
mentos anteriores e durante a pandemia, as autoras focam na experiência dos
“laboratórios do comum”. Buscando caminhos participativos possíveis em um
cenário de crise da democracia representativa, as autoras debruçam-se sobre
modos de fazer que desafiam as formas tradicionais de representação e partici-
pação e alcançam uma multiplicidade de arranjos sociais.
Ainda no debate sobre as inovações trazidas pelas novas formas de orga-
nização para os sujeitos coletivos na atual conjuntura, Naira Reinaga de Lima
parte da análise de uma experiência específica, a construção da Teia dos Povos.
Essa rede de articulação entre movimentos sociais, comunidades e povos tradi-
cionais na região sul e extremo sul da Bahia, desde 2012, busca reunir distintos
sujeitos coletivos em torno de um eixo comum, pautado na luta pela terra, ter-
ritório e agroecologia. No capítulo “Articulação e autonomia para os povos em
movimento: reflexões sobre a construção da Teia dos Povos”, as relações entre
os princípios norteadores da Teia e os movimentos sociais contemporâneos da
América Latina abrem uma importante discussão sobre redes de autonomia e
processos de territorialização e colonização que atravessam o debate.
Em “Arte, afirmação cultural e etnoturismo na T.I. Pataxó de Coroa
Vermelha, Bahia”, Alicia Araújo da Silva Costa e Pablo Antunha Barbosa convi-
dam o leitor a explorar os pontos de convergência entre etnoturismo, afirmação
cultural e produção artesanal em duas aldeias: a Reserva Pataxó da Jaqueira e a

i n trod u ç ão 25
aldeia Nova Coroa. A partir de dados etnográficos em uma perspectiva compara-
tiva, os autores refletem sobre como a manufatura do artesanato engaja formas
de pertencimento, sociabilidade e resistência nas comunidades, fortalecendo-as
para além dos ganhos comerciais com seus produtos turísticos e mercantis.
Encerrando a seção, Altemar Felberg e Valéria Giannella, no capítulo
“Conselho da Juventude Pataxó da Bahia: um espaço de participação alter-
nativo, inventado, não formal, livre e vivido”, contribuem para as reflexões
sobre alternativas mais eficazes de participação sociopolítica e de diálogo com
o Estado. Partindo da experiência do Conjupab, um espaço de participação,
resistência e autonomia autodeterminado pelos jovens indígenas, os pesquisa-
dores entendem as categorias analíticas do título como possíveis marcadores
da experiência em análise, de modo a delinear as diferenças em relação aos de-
mais conselhos de políticas públicas. Indicam, assim, novas perspectivas para
as instâncias participativas que resistem ao cenário de crise.
“Disputas narrativas”, terceira e última parte do livro, congrega trabalhos
que problematizam a construção e legitimação de discursos por governos,
setores do Estado e setores hegemônicos da sociedade. Ao serem reproduzi-
dos, esses discursos podem incorrer na manipulação de fatos históricos, no
apagamento e/ou criminalização de determinadas visões de mundo, na des-
valorização de grupos sociais determinados, no fortalecimento de paradigmas
neoliberais e em silenciamentos epistemológicos.
A primeira seção, intitulada “Educação, ensino e sociedade”, inicia-se
com o artigo “História ameaçada: bolsonarismo, negacionismo e ensino de
História”, de Fernando Santana de Oliveira Santos, que nos fornece um re-
trato da conjuntura política brasileira atual ao analisar como a negação do
fato histórico da ditadura militar, o desprezo pela ciência e a ressignificação
de termos como “comunismo” e “socialismo” – táticas recorrentes do discurso
do governo Bolsonaro – tolhem a construção do pensar historicamente. Além
disso, o autor mostra como tal estratégia discursiva é prejudicial à democracia
e desrespeita políticas educacionais brasileiras, corroborando com um projeto
de poder com viés autoritário.
Tratando dos fatores psicológicos, sociais, culturais e biológicos definido-
res das maneiras como os indivíduos veem a si mesmos, pensam que são vistos
e veem os outros, o capítulo “O corpo e a imagem corporal: percepções dos
estudantes da Educação de Jovens e Adultos de uma escola pública municipal

26 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


em Teixeira de Freitas”, de Betânia do Amaral e Souza, propõe-se a investigar a
influência da imposição de referenciais estéticos eurocêntricos reiterados pela
mídia e reforçados também nos ambientes familiares e escolares, na produção
das narrativas individuais dos estudantes do 9º ano da Educação de Jovens e
Adultos (EJA) da Escola Gessé Inácio do Nascimento. O artigo aborda por esse
caminho as relações dos estudantes com o próprio corpo e com suas respecti-
vas imagens corporais e origens.
Tratando também de processos educativos, mas desta vez com ênfase no
ensino superior, “Notas para uma análise da formação em Psicologia: reflexos
da mercantilização na educação superior brasileira”, escrito por Caio Rudá,
Gabriela Andrade da Silva e Rafael Andrés Patiño, debate os atuais desafios a
uma formação crítica em Psicologia, em especial no que diz respeito à atua-
ção em políticas públicas. O trabalho considera que o sistema educacional
formal atua como garantia de manutenção do modo de produção capitalista
e é um campo de intensas disputas políticas e ideológicas. A prática em psico-
logia assume historicamente um papel estratégico no complexo processo de
reprodução da formação social, sustentando modelos de desenvolvimento e
legitimando a atuação estatal – ainda que repressora – a partir da produção de
subjetividades hegemônicas.
Na seção “Disputas narrativas”, última da coletânea, Francisco Cancela as-
sina o capítulo “Os ‘habitantes originais’ de Porto Seguro na Viagem ao Brasil
de Maximiliano de Wied Neuwied: uma reflexão sobre decolonização da his-
tória das ciências e protagonismo indígena”. O autor assume uma abordagem
decolonial e reivindica a superação das interpretações estabelecidas pela histó-
ria das ciências assentada na colonialidade do poder e do saber. Resgata, assim,
o protagonismo negado aos povos indígenas na produção do conhecimento
que foi apropriado, traduzido e exportado pelo colonizador. Para tanto, re-
visita uma parte da obra de Maximiliano de Wied Neuwied e identifica, na
expedição naturalista do príncipe alemão, os indícios desse silenciamento que
sustenta a supremacia epistemológica dos padrões ocidentais e europeus de
classificação da natureza.
No capítulo “Uma breve análise da circulação das fake news na pandemia
da Covid-19”, Ykaro da Cruz Pereira trata de tema urgente e atual: o compar-
tilhamento de notícias falsas, fenômeno de amplitude mundial em razão dos
sistemas de comunicação de massas potencializados pela internet. Trazendo

i n trod u ç ão 27
para a discussão conceitos hoje em evidência, como “pós-verdade”, o autor
discute a crescente difusão da desinformação no contexto da pandemia da
Covid-19, cujas consequências se apresentam como um risco à própria sobre-
vivência, e acena para caminhos pautados pela escolarização crítica e por uma
educação midiática, a fim de combater as poderosas e invisíveis redes de infor-
mações inverídicas em sociedades modernas e globalizadas.
Encerrando a coletânea, Fábio Júnior da Luz Barros e Nadson Vinicius
dos Santos trazem o artigo intitulado “Lei Non Refoulement: um discurso
geoestratégico sobre a guerra na Síria e os refugiados”, no qual abordam as
mudanças legislativas acerca dos refugiados e destacam a influência da Rússia,
dos Estados Unidos e dos países mais ricos da Europa nesses arranjos legais.
O estudo trata da resistência da Síria frente ao imperialismo do século XXI e
questiona quais são os povos prejudicados historicamente por esses processos
pautados por conflitos geopolíticos que definem as fronteiras entre as nações,
causam os fluxos migratórios e dão o tom de sua regulamentação.
Enfim, esperamos que essa variedade de análises provoque as leitoras e os
leitores a pensar Estado e sociedade não como entidades monolíticas, previa-
mente supostas e mutuamente isoladas, mas sim em suas múltiplas dinâmicas
de interações, relações de poder, produção discursiva, agências e formações
de sujeitos individuais ou coletivos – dinâmicas essas que se tornam visíveis
por indagações científicas comprometidas com a realidade em que atuam.
Desejamos uma boa leitura!

28 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


PARTE I

Democracia
e território
ESTADO, SOCIEDADE E
DEMOCRACIA: PROPOSTAS
DE ABORDAGEM NA
FILOSOFIA E NO DIREITO
Nietzsche e Chantal Mouffe: sobre
democracia e sociedade

Márcio José Silveira Lima

Introdução
Foi preciso um trabalho intenso da Nietzsche-Forschung para desfazer os abu-
sos das apropriações políticas da obra de Nietzsche, em especial as dos nazis-
tas, e muitos estudiosos, além e a despeito disso, têm apontado a falta de um
pensamento político em sua filosofia.1 Em verdade, os problemas próprios da
política são tomados em consideração quase sempre em outros campos, como
o da cultura, da arte, da psicologia e da moral, ou ainda associados aos grandes
temas de seu pensamento, especialmente ao da vontade de potência.2 É o que
acontece, por exemplo, com a democracia, cujas exposições estão imiscuídas
nas críticas aos valores, e não propriamente ao que se poderia denominar de
uma “ciência” política.

1 Em obra recém-publicada no Brasil, Fornari (2019) faz um estudo exaustivo da história da recepção
da obra de Nietzsche e de como as diferentes edições estiveram ligadas aos contextos políticos
conturbados do século XX, ao mesmo tempo em que mostra todo o trabalho da pesquisa inter-
nacional sobre Nietzsche em desfazer o legado dessas apropriações. Centrando sua análise nos
escritos de juventude, Julião (2016) analisa elementos do pensamento político do filósofo, sem
escamotear os problemas que dele decorrem, além de apresentar um panorama histórico e atual
das intérpretes para a questão.
2 Céline Denat (2013, p. 45) analisa as afirmações de Nietzsche sobre seu posicionamento pessoal
contrário à política, como quando afirma não ser um zôon politikon, assim como as passagens em
que ele escreve o oposto. A seu ver, não se trata de compreender o filósofo como antipolítico nem
como adepto de uma nova política. A especificidade da posição de Nietzsche está em sustentar a
política como um epifenômeno, um instrumento para a cultura.

33
Os comentadores da obra de Nietzsche, como é comum entre intérpretes,
também têm dividido sua obra por períodos, em geral na tentativa de indicar
os temas próprios de cada momento e as mudanças que ocorrem nesse percur-
so. Independentemente das variações por que passam essas divisões de acordo
com quem interpreta e de como o desenvolvimento temático vai se mostran-
do ao longo das transformações, é possível perceber uma certa constância na
abordagem do filósofo acerca da democracia. De fato, do início ao fim, a crí-
tica à democracia atravessa de ponta a ponta a obra de Nietzsche. Se é preciso
compreender essa crítica no fluxo do pensamento do autor, também pode ser
interessante, por outro lado, ver no refluxo outros elementos da mesma filo-
sofia. Vistas aos olhos de uma análise política mais ampla, se a visão negativa
sobre as formas de vida democrática acaba por forjar um certo tipo de valores,
a crítica aguda feita à moral pode equacionar de outra forma a questão política
na filosofia nietzschiana.
Essa proposta de uma leitura heterodoxa nos permite encontrar fora da
obra de Nietzsche elementos para com ela dialogar. Nessa esfera, a distinção
que Chantal Mouffe faz entre as dimensões ontológica e ôntica da política tor-
na possível compreender a visão nietzschiana sobre a democracia de forma
a separar os níveis de análise em que elas se enquadram. E essa proposta de
diálogo não é gratuita, uma vez que a defesa que a filósofa faz dos princípios
democráticos evoca as importantes concepções de agon e de luta, tão caras a
Nietzsche. Assim, funcionando com um princípio regulativo, a distinção entre
o ontológico e o ôntico nos dará elementos gerais para compreender a visão
de Nietzsche sobre a democracia, revelando os limites dessa compreensão,
ao mesmo tempo em que, à luz da concepção de agon, podemos pensar em
dinâmicas da sociedade em que o filósofo alemão tem a oferecer uma outra
perspectiva.

Nietzsche e a democracia
Dois alertas óbvios, mas necessários: ao ler as críticas de Nietzsche à democra-
cia, tanto temos de levar em consideração a distância temporal que nos separa
do filósofo, como temos de compreender a própria democracia no contexto
em que a crítica se dá. Talvez seja mesmo possível ver esse duplo alerta como
uma mesma questão de fundo que se desdobra em duas vertentes. Em primeiro

34 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


lugar, estamos habituados a pensar a democracia a partir das conquistas mais
marcantes que foram sendo consolidadas ao longo do século XX, as quais, em
segundo lugar, e em muitos casos, eram apenas promessas ainda não realizadas
ou com um alcance bem pequeno na época em que Nietzsche escreveu. Se con-
siderarmos, por exemplo, uma ampla noção de igualdade social, econômica e
política, tal como ocorreu com o estado de bem-estar social nas democracias
europeias ou, então, o sufrágio universal, veremos que, no século XIX, nada
disso era realidade.
Assim, quando Nietzsche trata com muita acidez a luta por igualdade, o
movimento feminista e, nele, a luta de direitos iguais das mulheres, não pode-
mos avaliar com nosso olhar atual, pois ele está falando de uma democracia em
que a mulher, por exemplo, sequer tem direito ao voto, embora ele argumen-
te como se tivesse. (NIETZSCHE, 1988, v. 11, p. 60) Esse exemplo nos mostra
que as condições definidoras da democracia, como o voto das mulheres, dos
negros e assim por diante, foram conquistas graduais e posteriores e não re-
presentavam um elemento empírico de amplo alcance das democracias e
daquilo que Nietzsche estava criticando. Eram, em seu vocabulário conceitual,
ideias modernas (modernen Ideen). É dessa forma que o filósofo vai combater
a democracia, ou seja, como parte de um conjunto de valores perseguidos na
modernidade.
Em sua “autobiografia”, Nietzsche, comentando sua obra Além do bem e
do mal, afirma ser ela uma crítica à modernidade (Kritik der Modernität), nela
incluídas as ciências, as artes e mesmo a política, reivindicando ser ele próprio,
Nietzsche, um tipo nobre, que diz sim. (NIETZSCHE, 1999b, p. 95) Quando
lemos Além do bem e do mal, já o prólogo corrobora esse comentário, pois ali
há uma série dessas ideias a ser combatida. Assim como em outros momentos,
a democracia serve como um exemplo dos valores da modernidade. Filiada a
um tema candente na obra nietzschiana, o da verdade, a democracia surge no
bojo do desenvolvimento da filosofia dogmática, tendo Platão como arauto
dessa tendência.
Segundo Nietzsche (2001, p. 245), o dogmatismo, aquela vontade de encon-
trar a verdade a todo custo, nada sendo mais importante, legou ao Ocidente
um tipo de racionalização danoso à vida, porque as categorias conceituais e
teóricas mobilizadas para isso tiveram de combater os fenômenos inerentes
à própria vida em suas expressões mais genuínas. Sócrates e Platão, os pais

n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 35
dessa tradição, para defender a razão, o espírito, precisaram combater o corpo.
A filosofia platônica seria, por isso mesmo, o mais longo erro da história do
Ocidente, porque cristalizou um tipo de dogmatismo que se renovaria atra-
vés dos tempos. Herdeiro desse legado seria, por exemplo, o cristianismo. E,
prossegue Nietzsche, quando foi travado um combate em que essa tradição pu-
desse ser derrotada, ela acabou por se impor devido à força de seus defensores.
Dois desses aliados seriam, na modernidade, o jesuitismo e 0 Esclarecimento
democrático (demokratische Aufklärung). (NIETZSCHE, 1999a, p. 8)
No contexto da obra de Nietzsche, menos do que uma avaliação e uma
análise de um regime de Estado ou uma forma de governo, a democracia é
vista pelos valores que expressa; por isso o filósofo a enxerga como um dos
bastiões das ideias modernas, um rebento tardio de uma tradição valorativa
muito antiga no Ocidente, que remonta a Sócrates e Platão. Acima de tudo, é
preciso ter em mente essa mudança de ênfase da abordagem democrática para
que possamos compreender essa crítica. De saída, soa bastante estranho, por
exemplo, combater a tradição valorativa desencadeada por Sócrates e Platão
e incluir nela justamente a democracia como um de seus valores; os dois filó-
sofos gregos, como sabemos, eram críticos ferrenhos do regime democrático.
Nunca é demais lembrar, além disso, que Sócrates foi condenado à pena capital
quando da restauração da democracia em Atenas.
Essa singularidade com que Nietzsche pensa o campo da política gera
um sem número de dificuldades, especialmente, no caso, a democracia, cujas
análises pertencem a uma tradição que desde sempre procurou unir o que é
de natureza axiológica com as experiências fáticas dos regimes, aquilo que
Maquiavel (2008, p. 73) denominou de “verdade efetiva das coisas”. A compara-
ção com o pensador florentino pode ser frutífera, sobretudo se considerarmos
os elogios a ele destinados por Nietzsche. No Crepúsculo dos ídolos, ao explicar
por que deve muito aos antigos, afirma que dois importantes aliados contra
Platão foram Tucídides e Maquiavel:

Meu descanso, minha predileção, minha cura de todo plato-


nismo sempre foi Tucídides. Tucídides e, talvez, o príncipe
(Príncipe) de Maquiavel são os mais próximos a mim mesmo,
pela incondicional vontade de não se iludir e enxergar a ra-
zão na realidade – não na ‘razão’, e menos ainda na ‘moral’ [...]
Desse lamentável embelezamento e idealização dos gregos,

36 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


que o jovem de ‘formação clássica’ leva para a vida como prê-
mio por seu treino ginasial, disso nada cura tão radicalmente
como Tucídides. É preciso revirá-lo linha por linha e ler seus
pensamentos ocultos tanto quanto suas palavras: há poucos
pensadores tão pródigos em pensamentos ocultos. Nele acha
expressão consumada a cultura dos sofistas, quero dizer, a
cultura dos realistas: esse inestimável movimento em meio ao
embuste moral e ideal das escolas socráticas, que então irrom-
pia em toda parte. (NIETZSCHE, 2006, p. 103)

Essa passagem revela posicionamentos importantes de Nietzsche, se olhar-


mos a tradição a que quer se filiar e da qual pretende se afastar. Ao elogiar o
realismo de Maquiavel diante do idealismo de Platão, ele só leva em consi-
deração O príncipe, embora saibamos que essa noção está associada também
com a leitura dos clássicos, e deles foi tomada justamente com uma outra, a da
história como mestra da vida. Essa associação entre realismo e o diálogo com
os clássicos greco-latinos faz de Maquiavel tanto o autor de uma obra teórica
sobre os regimes monárquicos e principescos quanto o teórico do regime re-
publicano. Além disso, encontramos na citação os elogios aos sofistas, aqueles
que Platão tomou como seus adversários filosóficos. Ora, sendo um dos pon-
tos dessa rivalidade justamente as disputas políticas, mais uma vez, Nietzsche,
mesmo se aliando aos sofistas, nega a democracia e se aproxima do idealista
Platão em sua crítica a essa forma de governo.3
Em sua luta filosófica contra o dogmatismo das escolas socráticas, em es-
pecial Platão, e sua meta de combater a vontade de verdade, Nietzsche toma
por aliados uma tradição majoritariamente de pensadores políticos, tais como
Maquiavel e os sofistas, mas, justamente no plano político, vai defender uma
posição, a nosso ver, muito próxima daquela do dogmático Platão, afastando-se,
em contrapartida, dos realistas que tanto elogia. Contudo, é preciso entender a
perspectiva nietzschiana à luz de sua crítica dos valores, pois muitos elementos

3 Ao analisar o realismo político em Nietzsche, especialmente a partir dessa passagem de Crepúsculo


dos ídolos, Conway (2013, p. 16) afirma: “em vez de tratar dos seres humanos e suas entidades po-
líticas em sua realidade demasiado humana, os idealistas preferem teorizar e legislar em favor de
seres irreais e atemporais, e de configurações utópicas que eles supostamente ocupam”. Apesar
de o argumento explicar por que podemos conceber o realismo nietzschiano como afim ao de
Maquiavel, por exemplo, em termos de uma visão sobre o homem e suas disposições para agir,
resta explicar o caráter pouco realista em relação à recusa sempre radical da democracia como um
regime humano, demasiado humano.

n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 37
que, a princípio, poderiam parecer estranhos, por estar em íntima associação,
só poderão ser compreendidos no contexto dessa crítica. Da mesma forma que
a caracterização da verdade apresenta a democracia moderna como um va-
lor que remonta ao projeto filosófico de Platão, frutos tardios dessa mesma
vontade de verdade seriam tanto a religião como a ciência modernas. Não im-
porta a Nietzsche que a aventura democrática na modernidade se inicia com
os questionamentos acerca de legitimidade do poder divino dos reis e que a
noção de soberania popular se erga sobre os escombros da milenar tradição das
monarquias cristãs. Interessa-lhe, como uma típica ideia moderna, como um
valor fundamental da modernidade, a defesa de igualdade como um princípio
posto em circulação pelo cristianismo a partir do mandamento de que todos
são iguais diante de Deus e que a defesa desse princípio tenha sido tão bem-
-sucedida porque amparada na invenção platônica da verdade, esse erro mais
antigo de um dogmático.4

Chantal Mouffe e o político


Uma boa maneira de interpretar os posicionamentos de Nietzsche, nos parece,
é estabelecer um diálogo entre ele e a filósofa Chantal Mouffe, para quem há
uma diferenciação entre o político e a política. Invocando Heidegger, ela afirma
que a política se refere ao nível ôntico e o político ao nível ontológico. Isso leva
a dois tipos de abordagem: a da ciência política, que atua na esfera empírica, e a
da teoria política, que não investiga os fatos, mas a essência do político.

Por exemplo, fazer essa distinção sugere uma diferença entre dois
tipos de abordagem: a da ciência política, que opera com o campo
empírico da ‘política’, e a teoria política, que é o domínio dos filó-
sofos que investigam não os fatos da ‘política’, mas a essência do
‘político’. Se quiséssemos expressar tal distinção de maneira filosófi-
ca, poderíamos, tomando emprestado o vocabulário de Heidegger,
afirmar que a política se refere à dimensão ‘ôntica’ enquanto o po-
lítico tem a ver com o ‘ontológico’. Isso significa que o ôntico tem
a ver com as diferentes práticas da política convencional, ao passo
que o ontológico se relaciona com as muitas formas com as quais
a sociedade é instituída. (MOUFFE, 2005, p. 8-9, tradução nossa)

4 Para uma visão geral de como Nietzsche elabora, em diferentes momentos de sua obra, uma crítica
à democracia pelos valores que ela defende, ver: Hatab (2010, p. 263).

38 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Chantal Mouffe considera que, assim como Hanna Arendt, há quem julgue
o político como um espaço de liberdade e discussão pública. Outros, como a
própria autora, que é um espaço de poder, conflito e antagonismo. Por isso, ela
propõe uma reflexão sobre as práticas democráticas situadas no âmbito ôntico,
embora o desconhecimento do campo ontológico tenha levado a incompreen-
sões sobre o regime. Interessada no futuro da democracia, Mouffe considera
que não se pode abrir mão dessa dimensão do ontológico do político, o que
consiste em compreender a democracia não pelo seu caráter racionalista e
individualista, como faz a tradição liberal, mas reconhecer seu aspecto mais
profundo, que é o do conflito.
A seu ver, o liberalismo acaba por ser uma forma de combate ao Estado
e uma negação da forma mais comum como as pessoas atuam e vivem, que
é a formação de grupos com os quais se identificam. Nessa esfera, Chantal
Mouffe se apropria do pensamento de Carl Schmitt, para quem o político só
pode ser compreendido no contexto dos grupamentos amigo/inimigo (friend/
enemy), independentemente dos aspectos que essa possibilidade implica para
a moralidade, a estética e a economia. (MOUFFE, 2005, p. 11) Essa dicotomia
amigo/inimigo é a medida do político, sua differentia specifica, operando com a
formação de um nós contra eles, que, por sua vez, está relacionado com formas
coletivas de identificação.
Ao negar essas esferas coletivas em favor dos indivíduos que agem por in-
teresse e racionalidade, o liberalismo nega a essência do político; por isso, a
teoria liberal só tende a fracassar, uma vez que não há como negar essa dimen-
são do conflito. Chantal Mouffe afirma a existência de duas correntes liberais:
agregativa e deliberativa. A primeira postula um compromisso entre forças
concorrentes e discordantes. Isso ocorre porque os seres humanos são racio-
nais e agem no mundo de forma operacional. A segunda pretende substituir a
racionalidade instrumental por uma comunicativa. Haveria a possibilidade de
um consenso moral racional por meio da discussão livre.
Todavia, Mouffe nega que a racionalidade seja o caminho para superar o
conflito que se estabelece entre a divisão nós/eles. Ao contrário do que prega
o liberalismo, esse antagonismo não é o real problema, mas a forma como essa
tensão deve ser posicionada. “O que a democracia exige é que elaboremos a
distinção nós/eles de um modo que seja compatível com o reconhecimento
do pluralismo, que é constitutivo da democracia moderna”. (MOUFFE, 2005,

n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 39
p. 14, tradução nossa) Nem toda relação nós/eles se converte em amigo/inimi-
go. Mas pode ser que isso ocorra, instalando, assim, uma relação antagonista
entre formas de coletividade, tais como etnias, religiões etc. Pertencendo à es-
fera do político, o antagonismo deve ser visto sempre como uma possibilidade.
Diferente de Schmitt, que não via espaço na vida pública porque o antagonis-
mo era uma ameaça ao político, Chantal Mouffe acredita que não há como
negar sua existência, mas sim apontar para outro modo de conformação. Não
se pode superar a relação nós/eles por sua negação: é preciso uma reelabora-
ção. Essa nova elaboração é o que a filósofa chama de agonismo.

Enquanto o antagonismo é uma relação nós/eles em que os dois la-


dos são inimigos que não compartilham nenhum ponto em comum,
o agonismo é uma relação nós/eles na qual as partes em conflito,
embora reconhecendo que não há nenhuma solução racional para o
conflito, não obstante reconhece a legitimidade de seus oponentes.
Eles são ‘adversários’, não inimigos. (MOUFFE, 2005, p. 20, tradução
nossa)

Na distinção que propõe entre o político e a política, o conflito que


caracteriza a natureza própria e ontológica do primeiro pode, na esfera empí-
rica – que se revela no nível da política –, manifestar-se de formas diferentes.
A característica principal do âmbito empírico é a relação nós/eles, tal como for-
mulou Schmitt. Contudo, é possível haver uma transformação dessa forma de
relacionar-se entre os grupamentos que se opõem, saindo do embate que se dá
na forma de inimigos para a forma de adversários. Dessa perspectiva, a manei-
ra dos inimigos revela a política como sendo marcada pelo antagonismo, que
pode, contudo, transformar-se num agonismo. Não podendo escapar à natu-
reza conflitual do político, é preciso que os grupos reconheçam a legitimidade
dos demais, o que seria próprio do agonismo.
A fragilidade em que se baseia a teoria liberal é a de supor a racionalida-
de como critério central para a tomada de decisões. Mouffe invoca a tradição
psicanalítica, que vai de Freud a Lacan, lembrando que, nela, os afetos desem-
penham um papel central, assim como a relação dos indivíduos com a cultura
e a civilização. Diante do mal-estar que estas provocam, o gozo é uma forma
de sublimação decisiva para essa forma de mal-estar. Entre os elementos de
coesão social que fazem os indivíduos sentir que pertencem a uma “tribo”, está
o gozo com os ritos sociais. Por isso, as formas contemporâneas com que os

40 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


populistas têm ameaçado a democracia são justamente aquelas que apelam
a esses ritos de coesão que não se fundam na racionalidade, mas, antes, nos
afetos. Daí o grande apelo que ideias como nacionalismo, defesa da pátria e
família têm conseguido.

Democracia e agonismo
Diante do que expusemos brevemente na seção anterior, é possível consi-
derar alguns aspectos defendidos por Chantal Mouffe que nos permitem
estabelecer um vínculo com as visões de Nietzsche sobre a política e sobre
a democracia. No horizonte da leitura que Habermas fez da modernidade,
concedendo a Nietzsche o lugar de destaque por ter inaugurado uma tradi-
ção de ataque a uma racionalidade que seria preciso retomar como forma de
defesa do Esclarecimento, Peter Sloterdijk propôs uma outra interpretação
da questão dionisíaca em Nietzsche, tomando como epicentro da obra seu
primeiro livro, O nascimento da tragédia, aquele que, de modo geral, serve
também como locus privilegiado, embora de forma implícita, da leitura haber-
masiana. Sloterdijk afirma que, nessa obra, Nietzsche elege como problema
central o Esclarecimento e sua incapacidade de cumprir com suas promes-
sas. Considerando uma crítica decisiva na proposta estética de uma filosofia
dionisíaca, Sloterdijk cunha o conceito de algodiceia (Algodizee).5 Incapaz de
cumprir sua promessa de participação geral, o Esclarecimento engendra uma
síndrome do ativismo social moralizante que se torna, de forma involuntária,
cúmplice e parte de uma tendência que acaba por produzir uma proliferação
sem precedentes do sofrimento, justamente quando, ao contrário, tinha por
promessa o progresso humanitário. (SLOTERDIJK, 1986, p. 160-161)
Chantal Mouffe interpreta de maneira similar as críticas de Nietzsche à
democracia como uma das ideias modernas. Para isso, ela retoma a análise
de Claude Lefort, para quem a revolução democrática moderna se torna um
espaço vazio porque carente de um fundamento, pois falta à democracia um

5 “Algodiceia significa uma interpretação metafísica doadora de sentido para a dor. Ela entra em
cena na modernidade no lugar da teodiceia, e como sua inversão. O que está em jogo na teodiceia
é: como é possível compartilhar o mal, a dor, o sofrimento e a injustiça com a existência de Deus?
Agora, a questão é: se não há nenhum Deus e nenhum nexo de sentido mais elevado, como é que
ainda conseguimos suportar a dor? Imediatamente se mostra a função da política como um subs-
tituto da teologia”. (SLOTERDIJK, 2012, p. 606)

n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 41
fundamento último, tal como o príncipe era o poder encarnado, ao mesmo
tempo em que sua autoridade estava ligada a um poder transcendental. Nessa
esfera, a crítica de Nietzsche à democracia se filia ao combate aos valores e à
moralidade cristã, porque ele já teria percebido isso quando proclamou que a
morte de Deus é inseparável da crise do humanismo. (MOUFFE, 1993, p. 11-12)
Se afirmamos antes que a distinção entre a dimensão ôntica e a ontológica do
político nos oferece uma possibilidade interessante de diálogo entre Chantal
Mouffe e Nietzsche, essa conversação pode ser ampliada também pela com-
preensão que ela e ele têm dos limites da democracia pelo viés da crítica à
racionalidade moderna. Essa crítica passa, por fim, pela noção do agonismo
com elemento principal da política e da vida.
Encontramos uma expressão bem delineada dessa visão de Nietzsche em
um texto pertencente a seus escritos iniciais. Em A disputa de Homero, ao fazer
o elogio dos gregos antigos e deplorar os modernos, o filósofo defende que eles
tinham uma ética baseada na ação da disputa (That des Wettkampfes) e uma
educação agônica (agonalen Erziehung). O ponto de partida para compreen-
der esses dois elementos do mundo grego antigo é negar a tese de fundo dos
contratualistas de que o Estado deve ser instituído pela superação da condição
natural, independentemente da versão antropológica, ou seja, se o homem é
mau ou bom por natureza. Essa separação entre as qualidades humanas e as
qualidades naturais é fruto, afirma Nietzsche, do medo moderno de enfrentar
essa realidade. Todas as qualidades tidas como ruins, tais como a inveja, o ódio,
a ambição, aquilo que conduz os homens à disputa, ao aniquilamento, recebe-
ram a partir de Homero uma direção ética que se tornou o solo em que brotou
a cultura mais rica e, por isso, humana dos tempos antigos.
Antes de rechaçar essas qualidades terríveis, os gregos lhes deram uma di-
reção e uma forma em que um indivíduo não levasse o outro à destruição, mas
que, sob o signo da luta, se erigisse uma cultura artística, filosófica, e assim
por diante. Nietzsche menciona os versos iniciais de Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo, nos quais o poeta distingue duas Éris, a deusa da discórdia. Haveria,
pois, duas tradições a cultuar essa deusa, uma que representa o combate que
é mau e destrutivo; outra, nascida dessa mais velha, conduz o homem à ação,
nunca a aniquilação: mesmo aquele que é destituído de qualquer qualidade,
por inveja do vizinho, quer agir da mesma maneira. Essa ação baseada na dis-
cordância e na disputa, em que cada qual se espelha no outro, mesmo no seu

42 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


oponente, como sendo um modelo a seguir, dará contornos a essa educação
agônica, pois cada jovem tem o caráter cultivado para a disputa.
Toda a cultura grega, prossegue Nietzsche, em sua fase de esplendor,
foi modelada por essa ação da disputa. Isso explica a disputa dos heróis em
Homero, como também dos poetas trágicos e épicos, os jogos olímpicos, a ri-
validades entre os filósofos e, por fim, entre as próprias cidades. E o sentido
mais profundo dessa relação agônica está em evitar a supremacia de um em
relação aos demais. A disputa deve preservar as condições da própria rivalidade
e da luta.

É esse o germe da noção helênica de disputa: ela detesta o domí-


nio de um só e teme seus perigos, ela cobiça, como proteção con-
tra o gênio – um segundo gênio. Todo talento deve desdobrar-se
lutando, assim ordena a pedagogia popular helênica, enquanto os
educadores atuais não conhecem nenhum medo maior do que o
do desencadeamento da assim chamada ambição. (NIETZSCHE,
2000, p. 72)

Ora, seria de esperar que todos os argumentos de Nietzsche em favor da


ética da disputa e da educação agônica entre os gregos antigos conduzissem a
uma defesa da democracia como forma mais expressiva da discórdia e da luta,
ou ainda como atos próprios de uma cultura que se equilibra e ganha forma ao
ser moldada pela disputa. Contudo, exceto pela menção ao nome de Péricles,
nada no texto parece sugerir qualquer elo com a democracia. Antes, um silên-
cio completo sobre o tema. Mais uma vez, prevalece a postura antidemocrática
de Nietzsche.6 Mas, em nosso entender, diferente do que ocorre em outros
momentos, em que é possível, nas pegadas de Chantal Mouffe, distinguir o que
é do âmbito da filosofia política daquilo que é da política de fato, nesse caso
particular do agon entre os gregos, não parece ser possível separar, de um lado,
a defesa da disputa agônica como exemplo supremo da ética grega e, do outro,
a democracia como uma dessas expressões. Talvez, por fim, isso explique o
silêncio de Nietzsche no texto.7

6 Keith Ansell-Pearson (1997, p. 91) afirma que o pensamento político de Nietzsche se baseia na
depreciação da política tal como era praticada na época de ouro da democracia ateniense, o que o
colocaria mais próximo de Sócrates, apesar das divergências, como também já mencionamos.
7 Hatab (2010) se ancora no texto sobre a disputa em Homero para defender uma visão de Nietzsche
como um pensador político a partir do qual é possível pensar uma democracia agonística. Ele lem-
bra passagens na obra do filósofo em que há tanto uma defesa da lei como das instituições.

n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 43
Nietzsche e Chantal Mouffe: aproximações e
distanciamentos
Ora, apesar de reconhecer o acerto de Nietzsche em sua dupla denúncia da mo-
dernidade, ou seja, pela sua incapacidade de cumprir com suas promessas de
emancipação política e pela falta de um fundamento que institua a democracia
como forma dessa realização, Chantal Mouffe se afasta de qualquer possível
filiação de seu modelo de uma política agônica com a do filósofo. (MOUFFE,
2000, p. 107) A despeito disso, ainda no contexto do escrito nietzschiano sobre
Homero, seria mesmo possível associar aquele momento de viragem da sabe-
doria mítica das duas deusas Éris com a conversão paradigmática que Chantal
Mouffe propõe, ou seja, na possibilidade de a polarização nós/eles sair do anta-
gonismo para o agonismo.
Nietzsche interpreta a duplicidade com que os gregos cultivavam a deusa
Éris como testemunho temporal de que os ímpetos destrutivos com que ini-
cialmente agiam eram uma forma de expressar a discórdia da Éris má. Contudo,
com Homero, grande educador da cultura grega, esse ímpeto recebe uma outra
direção, ganha forma, e a discórdia passa a ter outra forma de atuação, aquela
da disputa boa, produtiva, responsável pelos grandes feitos e obras. Vemos em
Chantal Mouffe a exposição de um contexto similar, situado agora na cultura
pluralista da democracia moderna. Como o fundo que move a ação humana é
a disposição dos afetos, a qual, por sua vez, estabelece o antagonismo do nós/
eles, é preciso que haja uma modificação na forma como deve atuar essa polari-
zação. Não mais num contexto em que cada lado da disputa veja o outro como
inimigo a ser destruído, mas como adversário a quem se reconhece inteira le-
gitimidade no espaço público da vida política.
Embora o texto do jovem Nietzsche ainda nos permita encontrar uma
abertura para defender nele a democracia como expressão da disputa entre os
gregos, esse aspecto da luta, da pluralidade de forças que atuam em conflito,
que será defendido na filosofia tardia, sobretudo com a teoria da vontade de
potência, não permite encontrar uma fresta pela qual pudéssemos ver uma
defesa da democracia. Dois dos princípios mais caros à tradição democrática
e ao Esclarecimento, como a igualdade e a liberdade, serão combatidos por
Nietzsche como sintomas valorativos da moral do ressentimento e como sinal
de declínio e decadência cultural. Eis por que Chantal Mouffe não se filia à

44 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


teoria agonística defendida pelo filósofo alemão. Na verdade, se discorda da
alternativa racionalista para legitimar a política pluralista da democracia mo-
derna, ela está de acordo com o diagnóstico, pois é preciso justamente defender
os princípios que constituem a razão de ser do espaço democrático, como o da
liberdade e o da igualdade – o que nos conduz ao problema da hegemonia, der-
radeiro tema que gostaríamos de desenvolver, ainda que brevemente, a partir
do diálogo entre Nietzsche e Chantal Mouffe.
Como a polarização nós/eles gera um antagonismo no interior da socie-
dade, engendrando conflitos entre as pluralidades de grupos que dividem o
mesmo espaço, é preciso buscar uma posição hegemônica que possa aclimatar
essas diferenças no interior da política. Se, de uma perspectiva ontológica, o
político se define por esse conflito, no âmbito da efetividade empírica, a de-
mocracia é o melhor regime a expressar a essência do político. Contudo, a
fragilidade que as democracias ao redor do mundo têm demonstrado é resul-
tado de uma proposta que busca fundamentação racional para mediação dos
conflitos e que se tornou hegemônica defendendo um discurso de superação
das velhas categorias da política. Em Sobre o político, Chantal Mouffe confron-
ta autores que ela denomina de pós-políticos por defenderem uma forma de
hegemonia política após a queda do Muro de Berlim e o colapso do modelo
socialista. Para ela, autores como Ulrich Beck e Anthony Giddens julgam não
haver mais espaço para a polarização direita e esquerda, e o mundo caminha
para uma forma de capitalismo hegemônico em que as lutas por direitos se dão
de outra forma, não mais a partir de categorias coletivas, mas de uma perspec-
tiva de vidas individuais, com novas formas de problemas, como os ecológicos.
Ulrich Bech vai defender uma modernização reflexiva e Anthony Giddens,
uma terceira via.
Além disso, a ideia de que a democracia liberal se tornou, enfim, um mo-
delo universal que deve ser levado a todos os cantos do planeta se tornou um
problema, pois ele se coloca de uma perspectiva moral, aquela que postula o
nós/eles em termos de inimigos. Liderado pelos Estados Unidos, esse modelo
considera os outros como inimigos que devem ser eliminados, sendo tratado
de eixo do mal e assim por diante. Para a filósofa, essa tentativa de eliminar as
antigas categorias coletivas, como esquerda e direita, os partidos políticos, e
confiar no exercício racional como forma para resolução dos conflitos demo-
cráticos tem levado justamente ao campo oposto, com a ascensão de partidos

n i e tz s c he e c ha n ta l mo u f f e 45
de extrema direita, que fazem apelo a noções morais baseadas nos afetos e em
categorias coletivas e tradicionais, como nação e povo.
As fragilidades das correntes racionalistas podem ser vistas pela ascensão
de partidos e de políticos com viés autoritário, que apelam a valores morais
que lidam com afetos da população e de grupos sociais. Por isso, essas verten-
tes autoritárias têm conseguido a hegemonia no espaço público da política.
Nesse aspecto, para além da exegese textual e dos posicionamentos políticos
de Nietzsche, é possível retomar sua penetrante crítica da moral como forma
de atuação na esfera política em que se dá a luta por hegemonia e na qual o
conflito agonístico é o elemento principal. Não foi Nietzsche quem perseguiu
como uma das metas principais de sua filosofia revelar o que estava por trás
de todo discurso em defesa da verdade? Não foi ele quem mostrou ter sido sob
o signo da veracidade que os valores morais conseguiram perpetuar-se, numa
longa história de um erro?
No espaço agônico em que a disputa adversarial ocorre, se olharmos
justamente os principais valores mobilizados pelos grupamentos que têm con-
quistado a hegemonia política, inclusive no Brasil, veremos que eles figuram
entre os artigos de fé que Nietzsche tanto combateu, como a dominação exer-
cida pela moral cristã, a defesa do nacionalismo e, sobretudo, a atribuição de
uma superioridade moral de parte de quem professa esses valores; mostrou,
por fim, como a estratégia de defesa da verdade serve à causa desses grupos,
uma vez que negam toda e qualquer possibilidade de conflito, de luta entre va-
lores opostos. Quem sabe à revelia do próprio Nietzsche, sua análise refinada
das estratégias dos moralistas, que disfarçam sua esperança da vingança, seu
ódio ao inimigo em clamor por triunfo da justiça divina (NIETZSCHE, 1998,
p. 38-39), possa ainda contribuir para que as visões antagônicas e agonísticas
coexistam no mesmo espaço pluralista das democracias.

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MST: pluralismo jurídico na prática

Ilan Fonseca de Souza


Elisângela Melo de Menezes

Introdução
Na segunda metade do século XX, assistiu-se a um amplo movimento em bus-
ca da consagração de direitos subjetivos, particularmente direitos humanos.
(BOBBIO, 2004) A luta pela positivação de direitos transfigurou-se em luta por
efetivação de direitos, pois, segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio (2004,
p. 23), “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não
é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não
filosófico, mas político” – e quanto ao direito de propriedade não foi diferente.
John Locke entendia a propriedade como um direito natural que antecede o
Estado. Apropriando-se desse pensamento, para a corrente conservadora, toda
propriedade deve permanecer nas mãos de quem a detém, não havendo que
se falar em um Estado transformador do sistema de distribuição de riquezas,
consagrando-se o direito absoluto à propriedade do Código Civil brasileiro
de 1916. De matiz jusnaturalista, sua visão enxerga o Estado como mero reco-
nhecedor de um direito subjetivo, preexistente à própria formação estatal. No
entanto, esse pensamento não está imune a críticas, visto que inexiste direito
de propriedade sem que haja Estado, posto que, em última instância, é o apa-
rato judicial e policial quem garante a propriedade. Não seria ele, pois, direito
natural, mas sim construído socialmente e garantido pelo ente estatal.
Ambas as correntes bebem da mesma fonte, a do monismo jurídico, mas
será mesmo o Estado o centro único do poder político e a fonte exclusiva de
toda a produção do direito? (WOLKMER, 2017) O pluralismo jurídico, nos
moldes como defendido por Antônio Carlos Wolkmer, dirá que não. Para isso,

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o autor faz um resgate dos precedentes históricos que deram origem a essa
visão. O capitalismo funda-se na propriedade privada dos meios de produção,
no trabalho assalariado, no sistema de mercado, na racionalização de métodos
e na valorização do capital: monismo jurídico, capitalismo e propriedade pri-
vada são conceitos intrinsecamente ligados.
Os movimentos sociais, no entanto, defendem uma pauta diferenciada,
muito mais próxima do pluralismo que do monismo. Primeiro, o pluralismo
jurídico funda-se na construção de uma juridicidade espontânea no interior
das comunidades formadas por uma identidade da condição de exclusão, mar-
ginalização e abandono pelo Estado (direito comunitário); segundo, como
modo de superar a vulnerabilidade que essa exclusão alimenta, o pluralismo
invade o Estado, no reclamo que esses movimentos lhe fazem de novos direitos
e de participação nas decisões e ações estatais. (ALBERNAZ; WOLKMER, 2012,
p. 142-143)
Foi empreendida revisão bibliográfica em trabalhos acadêmicos disponí-
veis em meios digitais, selecionando-se autores que tenham pesquisado essa
temática. Também utilizou-se de conhecimentos empíricos verificados durante
visitas em campo, de curta duração, a assentamentos situados no sul e extre-
mo sul da Bahia, como o assentamento Terra a Vista, no município de Arataca,
no ano de 2017, e o assentamento Alfredo Dutra, em Guaratinga, no ano de
2019, mediante conversas informais com lideranças. Este artigo tem por objeti-
vo apresentar dados empíricos atualizados; promover uma revisão da literatura
sobre o tema; bem como analisar como o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) se insere na racionalidade emancipadora que é a tônica do
pluralismo jurídico, ou, melhor dizendo, investigar se o MST adota na prática
princípios dessa corrente teórica, buscando confrontar as práticas realizadas
pelo movimento com os conceitos basilares do pluralismo jurídico.

A função social da propriedade


No imenso país que é o Brasil, nunca faltou terra, produtiva ou não. Há uma
grande concentração de terras em favor de poucos grupos econômicos e, em
contrapartida, um grande contingente de desvalidos, incapaz de acessar a
propriedade. Para a sociedade, tornou-se evidente que, mais do que garantir
o direito de propriedade, era necessária a criação de um dever específico que

50 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


impusesse obrigações aos latifundiários que, se não atendidas, implicariam re-
distribuição da terra. A ideia foi a implantação de uma reforma agrária menos
política e mais jurídica, surgindo a tão difundida ideia da função social da pro-
priedade, materializada nos artigos 5º (inciso XXIII), 170 e 186 da Constituição
Federal de 1988. A função social é efetivada quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, aos requisitos do aproveitamento racional e adequado do
solo; da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação
do meio ambiente; da observância das disposições que regulam as relações de
trabalho; e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos tra-
balhadores. Por outro lado, a consequência jurídica ao desatendimento de sua
função social é a desapropriação para fins de reforma agrária.
Como se vê, o papel do Estado é fundamental para efetivação dessa política
pública e de outras responsabilidades sociais. (MARSHALL, 1967) Os movi-
mentos sociais redefinem seus valores no sentido de olhar para o Estado não
como para um inimigo, mas como para um interlocutor, um possível parceiro
num campo de disputas políticas em que as demandas têm significados con-
traditórios. (GOHN, 1997, p. 317)

A insuficiência do Estado na implementação da


política pública e o MST
Toda atuação e toda aplicação da justiça são dominadas, em larga medida, por
órgãos oficiais do Estado. A regulamentação jurídica da sociedade moderna
através do monopólio do Estado inviabilizou todo fenômeno de regulação in-
formal proveniente de outros grupos sociais não estatais. (WOLKMER, 2017)
O MST surge para se contrapor a esse dogma.
Antes mesmo da positivação do direito à função social da propriedade
na Carta Magna, em 1984, em Cascavel, Paraná, foi promovido o 1º Encontro
Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, movimento de cunho so-
cial camponês que teve como objetivos realizar a reforma agrária, praticar a
produção de alimentos ecológicos e melhorar as condições de vida no cam-
po, já que, na ditadura militar então vigente, grande concentração de terras
pertencia aos latifundiários, que as acumulavam sem nenhuma produtivida-
de. Esse movimento surgiu como uma experiência organizada de um coletivo
social que estabelece entre si identidades exteriores a organizações políticas

mst 51
tradicionais, como o Estado, partidos e sindicatos, embora pudesse interagir
com eles. (SCHIOCHET, 1988) No caso do MST, desde o princípio ocorreu a
identificação com a Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica, e com o
Partido dos Trabalhadores.
Na década de 1980, o Brasil vivia um momento de capitalismo associado
com ditadura. A modernização agrária se iniciara com o golpe de 1964 (MAIA,
2013), e a desigualdade social fora o resultado natural dessa conjugação de
fatores. O desenvolvimento do capitalismo aumentava o nível do piso no po-
rão do edifício social e talvez o tenha tornado mais higiênico do que antes.
(MARSHALL, 1967, p. 78) Com a modernização, o minifúndio que antes con-
vivia com o latifúndio foi praticamente extinto, e uma massa rural foi expulsa,
formando-se, a partir de então, trabalhadores volantes. Com essa consciência,
o MST iniciou a luta pelos camponeses que não possuíam terras, mas deseja-
vam produzir nas terras improdutivas do país. Daí surgiu o cunho político que
envolveu o movimento pela redistribuição dessas terras, com o que seria feita
justiça social não só para os camponeses, mas também para indígenas, quilom-
bolas e todos aqueles que almejavam uma mais justa distribuição de terra.
O MST atualmente atua em 24 estados da Federação, de maneira organiza-
da e estruturada, com a conquista do direito de propriedade para mais de 350
mil famílias. (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA,
[200-]) Se o abismo entre pobres e ricos é uma constante do monismo jurídico
capitalista, o MST deitou suas raízes em um pluralismo jurídico comunitário
e participativo.

O pluralismo jurídico e o MST


O pluralismo jurídico é consagrado pela Carta Magna no artigo 1º, inciso V,
destacado como um princípio fundamental. Há ainda a figura da democra-
cia direta, prevista no parágrafo único do mesmo preceito, que possibilita
participação e controle da população e dos sujeitos coletivos representativos,
bem como dispõe quanto à iniciativa da sociedade de propor “novos direitos”.
Conforme Wolkmer (2017), podemos elencar como méritos do pluralismo jurí-
dico visto como movimento, e não como doutrina ou teoria jurídica:
a) legitimação de novos sujeitos sociais;

52 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


b) fundamentação na justa satisfação das necessidades humanas;

c) democratização e descentralização de um espaço público participativo;

d) defesa pedagógica em favor da ética da alteridade;

e) consolidação de processos conducentes a uma racionalidade


emancipatória.

A dinâmica do MST aderiu a muitos desses princípios, reconhecendo


o direito pressuposto. (GRAU, 2011) Como a rejeição a procedimentos pa-
dronizados é uma das pautas do pluralismo e do “direito achado na rua”, o
movimento percebeu que a simples luta institucional era insuficiente e frágil,
trazendo consigo algumas reflexões: a simples positivação de direitos – como
a função social da propriedade – era uma válvula de escape para que trans-
formações reais não ocorressem; a luta social e política pela propriedade era
legítima; diante da marcante presença histórica de latifúndios improdutivos
no Brasil, a redistribuição de terras era imperiosa; a violência para a proteção
da propriedade é tão legítima quanto a violência decorrente da luta pela pro-
priedade. O camponês brasileiro, além de pobre e subjugado, não tinha que
ser também passivo e cordial. Há organizações sociojurídicas paralelas, como
o MST, que já exercem práticas emancipatórias que não pretendem a inclusão
a um sistema monista, mas a construção de outro paradigma jurídico-político.
(PACKER, 2005)
O celeiro do mundo continua sendo o nosso país, mas o modelo agroex-
portador de produção latifundiária gera um grande passivo social. (MAIA,
2013) A positivação de direitos e sua efetivação pareciam ser a solução ideal
para essa questão socioagrária; entretanto, as aspirações dos camponeses pela
via exclusiva do Estado, do Poder Judiciário e do direito não foram atingidas, e
o MST tentou fugir a essa lógica.

Ocupar, resistir e produzir, mas principalmente normatizar

ocupar

Esclarece Wolkmer (2017) que não basta destacar os “novos direitos”


advindos das carências e necessidades dos sujeitos sociais, mas é preciso tam-
bém colocá-los em prática. Um ator social, protagonista forte e aguerrido, é

mst 53
essencial, e o MST assumiu esse papel, ao mesmo tempo transgredindo as leis
– ou testando seus limites – e subsumindo-se a elas. O Estado e a comunida-
de passaram, então, a dar enfoque maior ao reconhecimento da participação
dos movimentos sociais no intento de fazer justiça. O objetivo do MST, assim
como dos demais movimentos e organizações semelhantes no Brasil, é a luta
pelo direito à posse e à propriedade da terra enquanto condição de uma vida
digna ao trabalhador rural e à sua família. (ALBERNAZ; WOLKMER, 2012)
A estratégia do MST é a presença ativa no espaço público, ocupando terras
e prédios e exigindo vistorias em terras improdutivas. Busca o MST desvin-
cular o direito à propriedade do direito civilista e identificá-lo com o direito
agrário, pois a terra deve ser vista como fruto do trabalho. (MAIA, 2013) As
táticas utilizadas pelo MST são diversas e vão desde o fechamento de estradas
e acampamentos provisórios em repartições públicas até a ocupação de áreas
rurais (DUTRA, 2014, p. 102), num cenário clássico de desobediência civil.
Para organizar essas ocupações, uma “frente de massa” é enviada pelo MST
a uma nova região a fim de contatar as famílias sem-terra que delas partici-
parão. Essa frente envolve, além dos militantes do MST – já experientes em
outras ocupações –, lideranças locais, que conhecem melhor os problemas, o
clima, a geografia e a cultura da região. Os militantes e líderes conversam, en-
tão, com os moradores para identificar áreas férteis com disponibilidade de
água, de titularização questionável – terras devolutas ou objeto de grilagem –,
propriedade improdutiva ou produtora de monocultura comercial social ou
ambientalmente agressiva. Escolhida a área, reunidas as pessoas, planejada a
ocupação, os transtornos também são inevitáveis. (ALBERNAZ; WOLKMER,
2012) Tais ocupações, como novo direito coletivo de luta pela terra, também
são formas de denúncia e de proteção aos reivindicantes.
O MST demonstra intento humanista e assume o papel de instrumento
possível para quebrar as algemas que aprisionam os sem-terra nas opressões e
espoliações e para transformar seus destinos em direção emancipadora, como
tarefa não isolada, mas de modo solidário. (SOUSA JÚNIOR, 2008) O Estado,
que ainda detém oficialmente o poder de “dizer o direito”, não mantém mais
essa prerrogativa como um dogma inquestionável, uma vez que, na passagem
ao século XXI, os novos atores sociais conquistaram um espaço que não retroa-
girá. (DUTRA, 2014, p. 154)

54 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Uma cultura jurídica pluralista, porém, não pressupõe a supressão total do
Estado: movimentos sociais e Estado aparentam depender um do outro para
completar-se simultaneamente. (DUTRA, 2014) O MST interage de forma dialó-
gica com o Estado e a sociedade civil, aceitando em muitas hipóteses as normas
vigentes. Trata-se, em verdade, de uma estratégia de sobrevivência comum aos
movimentos sociais, visto que a capacidade de mobilização por meio do ati-
vismo público combina pressão social e negociações com o Estado. (CARTER,
2008, p. 203)
Há um processo de retroalimentação nesse caso, pois o MST estimula o
Estado, que também estimula o MST. Para Lyra Filho (1982), em clara alusão
a Marx, toda sociedade mantém contradições estruturais decorrentes do seu
modo de produção: o aparato normativo estatal acaba por também dinamizar
a organização social militante, e o poder acaba sendo dual porque a “coesão
social” não consegue superar contradições estruturais. O direito pressuposto
não precisa, necessariamente, acabar com o direito posto, e ambos podem ser
forçados a conviver. O Estado, assim, não perde a oportunidade de “organizar”
a reforma agrária para evitar (mais) graves conflitos de terra.
A modernização agrária, conduzida pelo Estado através de políticas agríco-
las, foi marcada pela fundação de um novo patamar jurídico para o campo, que
ficou expresso no Estatuto da Terra, que veio a se apresentar como verdadeira
“camisa de força” para os tribunais e programas de governo. (MAIA, 2013) Os
conceitos – ultrapassados – do estatuto convivem com a modernidade cons-
titucional. A ocupação, a resistência e a produção têm que vir associadas à
busca da desapropriação do imóvel ocupado, operacionalizada pela vistoria do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), criado pela Lei
nº 4.504/64, para auxiliar na implementação da reforma agrária no país. Na ló-
gica da economia, durante a ditadura militar, o latifúndio era visto como um
empecilho para o desenvolvimento do Brasil. Por isso, oficialmente, esse estatu-
to consolidou legalmente a desapropriação de latifúndios pelas mãos do poder
público. No entanto, essa lei ficou apenas no papel, e a concentração fundiária
só aumentou durante a ditadura militar no Brasil. (DUTRA, 2014, p. 84)
O Incra é o principal responsável pela implementação da reforma agrária
no Brasil, tendo dado suporte para o MST ser “instituído”. A autarquia federal
tem uma diretoria de assentamento para viabilizar o acesso das famílias à ter-
ra após a imissão de posse nas áreas desapropriadas pelo Governo Federal e

mst 55
orientar as ações para criação, implantação, desenvolvimento e consolidação
das novas unidades de produção, propiciando ou favorecendo a organização
socioeconômica dos beneficiários e o atendimento aos serviços básicos de assis-
tência técnica, crédito rural e de infraestrutura econômica e social vinculados
ao programa nacional de reforma agrária. (INCRA, 2020b) O assentamento é,
assim, o retrato físico da reforma agrária. Nasce quando o Incra, após imitir-se
na posse da terra, a recebe legalmente e a transfere para trabalhadores rurais a
fim de que cultivem e promovam seu desenvolvimento econômico. O assen-
tamento é, portanto, razão de existência do Incra, que, por sua vez, também é
palco de disputas e contradições. (POULANTZAS, 2015)
Em síntese, no MST, existem dois tipos diferentes de autonomia. Para
com o Estado, ele possui uma autonomia relativa, uma vez que necessita fre-
quentemente dialogar para obter êxito em suas demandas e não pode ignorar
a existência e a força do ente público. Quanto a si mesmo, suas estratégias
– ocupação, pressão institucional, presença ativa em espaços públicos – são
formas de reconstrução de conceitos jurídicos em busca de um direito: o real
acesso à terra. Essa ressignificação jurídica, porém, não vem sem retaliações.

resistir

Um ato de desobediência civil não vem desacompanhado de fortes reações


de uma parte da elite da sociedade e do Estado. Por isso, o MST implementa
uma forma de combate às tradicionais estruturas governamentais e da socie-
dade civil através de uma política de conservação em face da oposição civil e
criminal ao movimento. Estado e sociedade civil são, muitas vezes, representa-
dos por conservadores que não pretendem alterar a estrutura vigente no país.
Atrelado ao Estado monista, encontra-se um Poder Judiciário ainda burocra-
tizado e elitista, em que poucas decisões discordam das orientações do grande
capital financeiro. (DUTRA, 2014, p. 164) Para Débora Dutra, o fato de perceber
que o Estado não é o único produtor do direito, mas que pode paralelamente
coexistir com uma produção comunitária de normas, não significa somente
deslegitimar o Estado e evidenciar sua ineficácia; na maioria das vezes, repre-
senta também a denúncia e a necessidade de respeitar a cultura diferenciada,
esquecida e roubada dos povos latino-americanos pelos invasores europeus.
O MST, pelas próprias especificidades de sua organização, é um dos sím-
bolos desses dois processos que afetam o campo jurídico-social. Possui uma

56 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


cultura jurídica própria, que muitas vezes se embate com as regras oficiais, de-
notando uma situação de anomia, em que a problemática social supera os meios
de regulamentação. As práticas empregadas pelo MST na busca de seus objetivos
têm um objetivo claro de questionamento: a concepção vigente no ordenamen-
to jurídico estatal do direito à propriedade. A objetivação da justiça vislumbrada
pelo movimento concebe a ocupação de propriedades improdutivas como for-
ma concreta de protesto contra a utilização da terra de maneira especulativa. O
aparato jurídico estatal, resguardando o direito à propriedade absoluta, é muitas
vezes impelido a contra-atacar, empregando métodos repressivos para impe-
dir a continuidade desse meio reivindicativo. A legitimidade da posse da terra,
contrapondo-se ao arcabouço legal, exige, então, uma revisão de fundamenta-
ção ao direito de propriedade. (PONTES, 1996)
A reação é múltipla e exige resistência por parte do MST frente aos “legali-
zados” métodos de repressão, executados por parte do poder policial, Judiciário,
Legislativo – e, enquanto “quarto poder”, midiático – e/ou por particulares,
com a contratação de pistoleiros e jagunços. (PACKER, 2005) Visualiza-se
essa reação nas constantes suspeitas aos movimentos populares e ao financia-
mento público de suas lutas, como manifestado, em 2003-2005, na Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito da Terra (CPMI da Terra), aberta para inves-
tigar os movimentos sociais do campo. No relatório dessa comissão, em 2005,
as ocupações de terra chegaram a ser classificadas como crimes hediondos.
Em 2009, foi instalada outra Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) agrária,
popularmente conhecida como CPI do MST, que, segundo Sauer (2010), teve
como finalidade apurar as condições e as supostas irregularidades em contra-
tos e convênios entre a União e os movimentos de reforma agrária, verificar a
existência de investimentos clandestinos e o uso dos recursos públicos para
invasão de terras, além de diagnosticar a estrutura fundiária. No bojo dessas
suspeitas e negações, em 24 de maio de 2008, o ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) Gilmar Mendes, em seu pronunciamento de posse na presidên-
cia do STF, posicionou-se pelo endurecimento do poder público no trato com
os movimentos sociais que agem sem o amparo da legalidade. (ALBERNAZ;
WOLKMER, 2012; ESCRIVÃO; FRIGO, 2010, p. 123)
Percebe-se, analisando-se algumas decisões judiciais, que a jurisdição do
Estado brasileiro ainda se coloca numa posição tendencialmente refratária
a qualquer possibilidade de reconhecer o direito alegado pelos acampados
do MST à ocupação e à posse. As ocupações do MST são tidas como ilegais,

mst 57
ensejando ordens, muitas vezes liminares, de reintegração e de manutenção de
posse em favor dos proprietários e evocando o Poder Executivo. O enquadra-
mento da ação do MST em tipos penais também é comum, principalmente nos
tipos de esbulho possessório, furto simples e qualificado, dano simples e quali-
ficado, formação de quadrilha ou bando, cárcere privado e sequestro mediante
extorsão,1 agravados pela condição de formação de quadrilha. (ALBERNAZ;
WOLKMER, 2012)
Wolkmer (2017, p. 72) enxerga nos movimentos sociais uma atitude mili-
tante que pede a reinserção do direito na política. Trata-se da dialética social
do direito, a qual buscará “devolver o fenômeno jurídico ao seio do qual surge”
(WOLKMER, 2017, p. 77), evidenciando as forças sociais em conflito e com
pretensões normativas distintas. Através do “uso alternativo do direito” ou do
“instituído relido”, o MST denuncia as ações possessórias como respostas coer-
citivas estatais num esforço de manutenção da concentração da terra. (PACKER,
2005) Verifica-se que, para sobreviver, o MST precisa defender-se juridicamente,
ou seja, dentro das margens do direito estatal monista – sem prejuízo da uti-
lização dos mecanismos sociopolíticos de pressão que comumente utiliza –,
contratando advogados, impetrando habeas corpus, contestando ações judi-
ciais, recorrendo contra decisões judiciais ou administrativas provenientes do
Incra, ou mesmo fazendo um trabalho de base parlamentar, de forma que o
conjunto desses aspectos evidenciam o elevado grau de complexidade e auto-
nomia em seu modus operandi. Ocupar e resistir são, no entanto, duas faces de
uma mesma moeda, cuja finalidade é a produção.

produzir

Para ser considerado um assentado dentro do programa de reforma agrária


nacional do Incra, o candidato tem que ser um trabalhador rural sem-terra,
que é aquele que trabalha individualmente ou em regime de economia fa-
miliar, assim entendido o trabalho dos membros da família, indispensável à
própria subsistência. Quando uma área é desapropriada para fins de reforma
agrária, o Incra dá prioridade aos que já estão morando nela, como arrenda-
tários, parceiros, colonos etc. Também serão assentadas outras famílias que

1 Respectivamente, compõem o artigo 161, inciso I; artigo 155, caput e parágrafo 4º; artigo 163; artigo
168; e artigo 159, pertencentes ao Código Penal.

58 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


estejam cadastradas pelo Incra e que atendam aos requisitos legais que cons-
tam do cadastramento e seleção. (INCRA, 2020a)
Os assentados, ao tomarem posse da terra e terem o direito de produzir,
principalmente com os incentivos financeiros que são ofertados, tornam-se
seus próprios patrões; porém, a maioria dos sem-terra é de família humilde,
tendo passado grande parte da sua vida trabalhando para grandes fazendeiros e
empresários, não sabendo, portanto, lidar com plantações que não deram cer-
to, por causa, por exemplo, de condições climáticas. Ainda que o Incra possua
programas voltados para administração das terras, vale lembrar que a maioria
dos assentados é pobre, de pouca instrução, cujo sonho é ter um pedaço de
terra para produzir e para morar, mas que não tem qualquer conhecimento
de administração de propriedades. Assim, por vezes, infelizmente, é habitual
observar um assentamento com apenas um produtor real.
O acesso à propriedade da terra visa promover seu aproveitamento
econômico mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuniárias e agroin-
dustriais, através da divisão de áreas em lotes ou parcelas. Um assentamento
pode perfeitamente ser emancipado – fase evolutiva posterior –, desde que
atenda às exigências do Incra, como, por exemplo, ter participado de diver-
sas políticas públicas de apoio e encontrar seu caminho de desenvolvimento
econômico consolidado e apto a integrar-se à vida do município em que está
implantado. A emancipação se dá por ato do Incra, observadas as determina-
ções legais e regulamentares.
Existem programas de crédito voltados para os assentados para que pos-
sam produzir; no entanto, não há um programa de administração dos valores
recebidos, carecendo ainda de apoio administrativo. Para contornar isso, os
assentados contam, na fase do assentamento, com vários cursos técnicos de
apoio à produção de alimentos e cuidados com a terra e, principalmente, com
um conjunto de processos de aprendizagem, que os levam a tomar decisões
que tornem seus assentamentos autossustentáveis em curto prazo, o que fu-
turamente ensejaria uma emancipação socioeconômica. Vê-se, portanto, que
a parceria entre MST e Incra é fundamental para o sucesso dessa empreitada.
São os próprios camponeses que definem as áreas improdutivas a serem
ocupadas, a forma de se organizar, de produzir e de sobreviver nos acampa-
mentos. Arrendar o lote futuramente ou vendê-lo, além de ser prática pouco
comum, é severamente punida com expulsão. (SILVA, 2004 apud DUTRA,

mst 59
2014, p. 107) O assentado recebe um documento com valor legal, expedido pelo
Incra, que concede o direito de propriedade sobre a sua parcela de terra no
assentamento. Mas é fundamental que o assentamento crie uma associação,
organizada pelos integrantes, para representá-los junto a entidades, governa-
mentais ou não, para discutir o seu processo de desenvolvimento e determinar
os rumos que serão tomados pela comunidade em busca de melhores condi-
ções e principalmente para exercer a cidadania.
Na década de 1990, a solução elaborada pela direção do MST priorizou as
organizações coletivas de produção no formato de Cooperativas de Produção
Agropecuária (CPA). Os princípios normativos dessa forma de organização dos
assentados eram econômicos – cooperação agrícola e organização da produ-
ção nos moldes de uma empresa econômica moderna – e político-ideológicos,
de tons socialistas marxistas-leninistas. As bases desse sistema foram lança-
das em 1986, no texto “Elementos sobre a teoria da organização do campo”,
de Clodomir Santos de Morais, publicado nos Cadernos de Formação. A ideia
foi formar cooperativas de serviços que facilitariam, na obtenção de crédito, a
compra de insumos e de sementes, além da venda da produção, o que foi aceito
pelos assentados, que formaram suas comunidades.
Nos dias atuais, segundo Brenneisen (2002, p. 67-68), vê-se que a ideia da
construção de uma sociedade socialista está sendo gradativamente substituída
pela ideia de um “projeto popular” para o Brasil, considerando as especificidades
históricas e a diversidade dos segmentos sociais envolvidos na transformação
da sociedade brasileira. Em vista disto, foi criado um fórum, denominado
“Consulta Popular”, envolvendo o MST e as demais forças e movimentos so-
ciais. A produção coletiva continua sendo importante, tanto que, na atualidade,
as experiências dos assentamentos do MST têm sido analisadas sob o prisma
do paradigma da economia solidária, além de que tal produção se sustenta em
princípios da agroecologia. (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS
SEM TERRA, [200-]; FIDELES, 2006) A tônica do modo de produção é, portan-
to, a autonomia coletiva. Há, no entanto, uma autonomia ainda maior e mais
localizada no que diz respeito à criação de normas disseminadas dentro do
grupo e que devem ser seguidas rigidamente. (DUTRA, 2014, p. 146)

60 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


normatizar

Desde a criação, o movimento já conquistou direitos básicos e garantidos


no rol de direitos fundamentais da Carta Magna, como, por exemplo, o aces-
so à educação e à saúde. Apesar de os acampamentos serem muito precários,
oferecem acesso imediato ao estudo nas primeiras séries. (AUED et al., 2005
apud DUTRA, 2014, p. 110) Ao se organizar a partir de regras próprias – escri-
tas em documentos e cartilhas ou como as decorrentes de costumes internos
do acampamento – e muitas vezes questionar a normatividade do Estado, o
MST coloca-se como fonte de direito, reconhecida por uma coletividade com
identidade própria e dotada, assim, de eficácia. Esse conjunto de regras – os
acampados elaboram seus próprios códigos disciplinares –, todavia, busca
exorbitar os limites do movimento e integrar-se à positividade estatal, pugnan-
do por reconhecimento e assumindo um novo ângulo de produção do direito,
desta feita sob o prisma legal. (PONTES, 1996)
Maia observa que existe de fato uma emancipação dentro do assentamento.
A situação por ele vislumbrada nas ocupações de terra demonstra a possibilida-
de de adoção do paradigma do pluralismo jurídico comunitário-participativo,
pois a ação de ocupar é dirigida pela compreensão de um determinado direito
à terra. (MAIA, 2013) Princípios e valores religiosos são estimulados no inte-
rior dos acampamentos e assentamentos, além de algumas proibições, como o
uso de bebidas alcoólicas. (DUTRA, 2014) Fernandes (1998 apud DUTRA, 2014)
destaca, acerca dos princípios do MST, a importância da divisão de tarefas,
para que em todas as atividades do movimento haja participação do maior nú-
mero possível de pessoas. (FERNANDES, 1998, p. 38)
Quanto ao uso e à ordenação do solo, não há regras específicas, de forma
que, via de regra, as habitações são construídas umas ao lado das outras, dispos-
tas em fileiras. (TURATTI, 2005 apud DUTRA, 2014, p. 111) Feita a ocupação,
uma das primeiras medidas quando se instala um acampamento é a eleição de
um coordenador, além da decisão de formar os núcleos ou setores de atividade,
que são o cerne operativo da vida no acampamento. Cada núcleo, geralmente
composto por parentes ou grupo de afinidades, manda os representantes, um
homem e uma mulher, para formar as comissões de cada uma das atividades
do acampamento. O acampamento elege ainda um representante homem e
uma representante mulher para fazer parte da coordenação regional e ou-
tros dois para a coordenação estadual. Cada coordenação estadual elege dois

mst 61
representantes para a coordenação nacional, e esta elege 18 membros para a
direção nacional, que é composta por 21 membros. (STEDILE; FERNANDES,
2012, p. 40-44) Esse encadeamento representativo é importante para manter
a unidade entre cada acampamento, estado, região e o movimento nacional.
Tem-se, portanto, uma direção colegiada, jamais individual. Turatti (2005) in-
forma que os coordenadores do grupo promovem reuniões com as famílias
que lhes estão subordinadas, cumprindo os papéis de levar-lhes as discussões
e resoluções da reunião da coordenação geral e de receber reclamações, suges-
tões e reivindicações a serem encaminhadas para a pauta da reunião seguinte.
Ao denunciar que assentados tomaram para si determinados papéis antes
restritos ao gênero masculino, o MST, através da presença de ambos os gê-
neros em cada núcleo de um assentamento ou acampamento e em parceria
com estudantes universitários, trabalha o gênero como uma construção cul-
tural que impõe tais papéis a esses homens e mulheres. (PACKER, 2005) São,
enfim, cidadãos políticos, que participam das deliberações de seus espaços de
coexistência através de instrumentos horizontais de decisão e que podem, po-
tencialmente, modificar as formas de acesso à justiça da sociedade brasileira,
hoje tão castradas.
Para o movimento, a educação acontece em processo com a participa-
ção das crianças, dos pais, da juventude e dos idosos, num esforço para que
a estrutura educativa respeite todas as esferas de relações desses indivíduos
como verdadeiros espaços educativos, incluindo manifestações públicas, cur-
sos, ocupações etc., sempre considerando o meio sociocultural em que vivem.
A metodologia educacional baseia-se, sobretudo, nas ideias desenvolvidas por
Paulo Freire, o que significa que, através da problematização da realidade do
educando, este não faz meras cópias de sílabas e palavras, mas escreve a própria
vida. (PACKER, 2005) O MST formulou seu próprio material de estudo escolar,
partindo da realidade dos estudantes, do seu cotidiano e trabalhando com ele-
mentos mais próximos do conhecimento deles. (DUTRA, 2014, p. 57)
No acampamento, realiza-se uma assembleia por dia, pelo menos, para re-
latar os progressos e para resolver as queixas. (STEDILE; FERNANDES, 2012,
p. 85) Segundo Silva (2004 apud DUTRA, 2014, p. 113), o dia começa com a
reunião de várias comissões, seguida pela reunião dos líderes dos núcleos. Os
conflitos são solucionados por votação coletiva, cujo impasse só termina quan-
do a solução vencedora angaria 51% dos votos. Se só há minorias divididas,
suspende-se a questão até que a mesma seja trabalhada melhor no coletivo

62 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


e com deliberação futura. A forma coletiva de deliberação e de ação foi, aliás,
uma opção dos sem-terra para evitar cargos individuais que fizessem com que
poucos centralizassem o poder no movimento, além de ser também uma for-
ma de impedir que esses poucos se tornassem alvos fáceis das balas assassinas
de fazendeiros e de policiais. (ALBERNAZ; WOLKMER, 2012)
Segundo Turatti (2005 apud DUTRA, 2014), acompanhando o cotidiano do
movimento, sabe-se que não são poucos os conflitos dentro do acampamento.
A maioria deles surge de pequenas contendas nos próprios grupos de vizinhança.
Alguns dos conflitos, entretanto, não se esgotam no simples “bate-boca”. Nesses
casos, a coordenação do acampamento julga as alterações e toma as medidas
convenientes, sejam elas a conciliação ou a punição: participar ativa e democra-
ticamente das decisões através da integração dos núcleos e comissões, além de
saber respeitar as normas postas pelo movimento, é preceito fundamental.
Observamos que, em sua normatização, o MST baseia-se no combate a
todas as formas de discriminação social e na difusão de valores socialistas – pro-
dução e apropriação coletiva dos bens materiais e espirituais na humanidade,
a justiça na distribuição desses bens e a igualdade na participação de todos
nesses processos. (GOHN, 2011, p. 126-127) Por isso, as normas encontram-se
muito próximas dos valores cooperativos, com democracia direta – participa-
tiva e comunitária –, os quais, em geral, transmitidos oral e hereditariamente,
mantêm-se fortes no subconsciente humano. (DUTRA, 2014, p. 101)

Conclusão
No Brasil, é flagrante a necessidade de luta pela reforma agrária. As ocupações,
instrumentos legítimos dos movimentos sociais, que, em determinados mo-
mentos, assumem a condição de transgressão, afirmam um direito garantido
no texto constitucional, o que estabelece um contexto complexo e contraditó-
rio no qual se desenvolvem as ações sociais no campo. (MAIA, 2013) O direito
não é; ele se faz nesse processo histórico de libertação, enquanto desvenda pro-
gressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais.
Portanto, considerando os elementos constantes da teoria do pluralismo
jurídico comunitário-participativo, pode-se afirmar que a normatização criada
e disseminada no cotidiano dos acampamentos do MST constitui uma forma
de produção jurídica paralela ao Estado, fundada na democracia e na participa-
ção, escrita ou não, mas não menos importante. (DUTRA, 2014) Vimos aqui a

mst 63
importância histórica do MST na positivação de direitos à propriedade e à sua
função social, bem como em aspectos que sugerem a efetivação do pluralismo
jurídico no interior dos assentamentos por ele administrados.

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66 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


O papel do direito na análise de políticas
públicas: um debate interdisciplinar

Likem Edson Silva de Jesus


Carolina Bessa Ferreira de Oliveira

Introdução
O tema das políticas públicas, em seu estudo e campo teórico, vem ocupan-
do cientistas e campos de pesquisa sob diferentes enfoques. Trata-se de um
debate transversal que possibilita múltiplos olhares e evoca uma necessária
interdisciplinaridade por abarcar áreas das ciências humanas e sociais, como
a sociologia, a ciência política e a administração, associando-se de maneira
preponderante à problemática do Estado e da promoção de ações públicas e
sociais.
No caso do direito, é possível observar um crescente interesse de pesqui-
sadores sobre o tema, sobretudo no que se refere aos estudos a respeito da
judicialização de políticas públicas e do papel do direito na instrumentaliza-
ção e legitimação jurídica delas, com ênfase nas práticas estatais e demandas
sociais dirigidas à realização de direitos sociais que emergem no contexto pós-
-Constituição Federal de 1988, como exemplifica estudo de Comparato (1997).
Por outro lado, há um campo a se avançar no que diz respeito aos estudos sobre
o papel do direito sob um prisma interdisciplinar na análise das políticas públi-
cas – e até mesmo na sua formulação e implementação.
Nesse sentido, partindo da relação entre política, direito e Estado, e
como resultado de reflexões teórico-metodológicas realizadas no âmbito do
Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade

67
Federal do Sul da Bahia (UFSB),1 o presente capítulo visa promover esse debate.
Para tanto, fundamenta-se em uma abordagem qualitativa e em estudo biblio-
gráfico, primando por referenciais ancorados, notadamente, nas pesquisas de
Maria Paula Dallari Bucci.
O artigo estrutura-se em duas seções temáticas, iniciando-se pela discussão
sobre a relação entre política, direito e ação do poder público voltada à con-
cretização de direitos sociais, cujo conteúdo perpassa as dimensões históricas
dos direitos no Estado moderno, e busca articular as tensões entre a dimensão
jurídico-institucional dos processos político-administrativos do Estado e as
demandas sociais por participação, realização e proteção de direitos sociais,
cuja concretização é eficientemente verificada por meio da implementação de
políticas públicas. A segunda parte apresenta reflexões sobre as políticas públi-
cas como objeto de análise jurídica, apontando a centralidade governamental
no processo de planejamento e execução das políticas, e, em seguida, proble-
matiza uma crescente agenda de pesquisa que busca conciliar o direito com a
análise desse fenômeno, que constitui um campo de estudos eminentemente
interdisciplinar.

A relação entre política, direito e a ação do poder


público: a concretização de direitos sociais pelo
Estado
Bobbio (2004, p. 4) explica que os direitos não nascem todos de uma vez, mas
quando devem ou podem nascer, em um ciclo dinâmico e histórico. Essa gê-
nese é propiciada pelas lutas travadas no tecido social, pelos movimentos que
tensionam a ordem política e econômica e que se desdobraram em diferentes
dimensões de direitos civis, políticos, sociais e difusos. O conceito de Estado,
em consequência disso, é constantemente (re)estruturado, tendo em conta que
cada época propicia a elaboração de determinadas práticas jurídicas, por sua
vez vinculadas às necessidades humanas e às relações sociais que as perpassam.
(WOLKMER, 2012, p. 15)

1 A referida pesquisa parte de uma análise jurídica do programa Minha Casa, Minha Vida, política
habitacional implementada pelo Governo Federal em 2009, para investigar as suas implicações
com a interdição do direito à cidade aos seus beneficiários, baseando-se no referencial teórico-
-metodológico explorado no presente artigo. O trabalho é financiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb).

68 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Marshall (1967), ao propor uma reconstrução histórica do direito moderno,
afirma que este se ampliou e se amplia progressivamente, separando sistema-
ticamente as pretensões jurídicas em classes próprias. A doutrina discute se,
quanto a estas, deve-se atribuir a nomenclatura “geração” ou “dimensão” e, em
que pese a nítida evolução histórica dos direitos fundamentais, acredita-se ser
mais coerente a última denominação, tendo em vista que:

Não há como negar que reconhecimento progressivo de novos di-


reitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de
complementaridade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da
expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição
gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira
o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais. (SARLET, 2009, p. 45)

Numa perspectiva cronológica, Marshall (1967) estabelece que a constitui-


ção dos direitos de liberdade deu-se no século XVIII; dos direitos políticos de
participação, no século XIX; e dos direitos sociais de bem-estar, no século XX.
De acordo com essa classificação, os direitos de primeira dimensão referem-
-se às liberdades negativas clássicas, como o direito à vida e à propriedade, que
enfatizam o princípio da liberdade com foco no indivíduo, configurando os di-
reitos civis. A segunda dimensão de direitos é composta por instrumentos que
garantem a participação no exercício do poder político, seja como membro elei-
to de um dos organismos integrantes do Estado ou como seu eleitor. Por fim,
a terceira dimensão centra-se no elemento social, em consonância com a ideia
de igualdade material, e visa à promoção da saúde, da educação, do trabalho, da
moradia e da previdência e assistência social, por exemplo, que demandam uma
atuação estatal prestacional através de políticas públicas e sociais.
Ao abordar esse processo que se desdobra historicamente, Marshall apon-
ta que, enquanto em sociedades pré-modernas/tradicionais, os direitos e os
deveres de cada pessoa dependiam diretamente da honra atribuída ao grupo
a que o sujeito se integrava, vinculando-se à ideia de status, na modernidade
pós-tradicional prevalece o princípio de que todos são livres e iguais. Nesse
sentido, caberia ao Estado moderno uma postura garantidora de direitos fun-
damentais individuais e sociais, que inclusive funcionam como limitante de
arbítrios e abusos no poder político.
Bobbio (2004), em sua categorização, concorda com Marshall quanto à
primeira dimensão relativa aos direitos civis individuais, mas propõe que a

o pa pel do direito n a a n á l i s e de p ol í tic a s p ú b l ic a s 69


segunda se relacione com as liberdades positivas, reais ou concretas, com vis-
tas ao mencionado princípio da igualdade material, que deve ser garantida a
todo ser humano. Traçando um paralelo entre estes e os direitos de primeira
dimensão, Marmelstein (2008, p. 50) elucida:

[...] os direitos de primeira geração tinham como finalidade, sobre-


tudo, possibilitar a limitação do poder estatal e permitir a participa-
ção do povo nos negócios públicos. Já os direitos de segunda geração
possuem um objetivo diferente. Eles impõem diretrizes, deveres e
tarefas a serem realizadas pelo Estado, no intuito de possibilitar aos
seres humanos melhores qualidade de vida e um nível de dignidade
como pressuposto do próprio exercício da liberdade. Nessa acepção,
os direitos fundamentais de segunda geração funcionam como uma
alavanca ou uma catapulta capaz de proporcionar o desenvolvimen-
to do ser humano, fornecendo-lhe as condições básicas para gozar,
de forma efetiva, a tão necessária liberdade.

Ressalte-se que a positivação de tais direitos nos ordenamentos jurídicos


ocidentais é fruto de processos revolucionários e de movimentos constitu-
cionalistas modernos: os direitos de primeira dimensão foram uma resposta
do Estado liberal ao absolutista e corresponderam à fase inaugural do cons-
titucionalismo no Ocidente, reivindicado pelas revoluções liberais francesas
e norte-americanas. A dimensão subsequente, a seu turno, foi impulsionada
pela Revolução Industrial, a partir do século XIX, marcada pela luta do prole-
tariado e fixada após a Primeira Guerra Mundial, no início do século XX, o que
fica evidenciado, dentre outros documentos, pela Constituição do México, de
1917; pela de Weimar, na Alemanha, de 1919; e pelo Tratado de Versalhes, do
mesmo ano. No Brasil, o fenômeno se verifica em 1934, com a promulgação da
primeira Constituição no governo Vargas.
Na sequência da ampliação, para Bobbio (2004), os direitos de terceira
dimensão consagram os princípios da solidariedade ou fraternidade, sendo
atribuídos genericamente a todas as formações sociais, protegendo interes-
ses de titularidade coletiva ou difusa, como o direito à autodeterminação dos
povos, à propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à comu-
nicação, sem se destinar restritamente à proteção dos interesses individuais,
de um grupo ou de um determinado Estado. Sobre o processo evolutivo dos
direitos, o autor arremata:

70 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Os direitos de terceira geração, como o de viver num ambiente não
poluído, não poderiam ter sido sequer imaginados quando foram
propostos os de segunda geração, do mesmo modo como estes últi-
mos (por exemplo, o direito à instrução ou à assistência) não eram
sequer concebíveis quando foram promulgadas as primeiras de-
clarações setecentistas. Essas exigências nascem somente quando
nascem determinados carecimentos. Novos carecimentos nascem
em função da mudança das condições sociais e quando o desenvol-
vimento técnico permite satisfazê-los. (BOBBIO, 2004, p. 10)

Em ambas classificações indicadas, o que se percebe é que, em determinado


momento político-social-histórico, para que se alcance a ideia de cidadania, é
necessário ir além do reconhecimento formal e normativo de uma capacidade
de direitos. O direito de propriedade, de primeira dimensão, não consiste, por
exemplo, na distribuição de terras, mas na possibilidade de adquiri-las e, nesse
caso, protegê-las. De igual maneira, a participação efetiva como membro da
comunidade política e uma série de outras liberdades formalmente asseguradas
só poderiam ser de fato fruídas pelo indivíduo a partir da implementação de
direitos sociais que transformassem os aspectos qualitativos da desigualdade
através de uma atuação positiva do poder público. Chaui (2012, p. 151), nesse
sentido, lembra que a mera declaração do direito à igualdade não faz existirem
os iguais, de modo que seu sentido e sua importância encontram-se no fato
de que ela abre o campo para a criação da igualdade por meio das exigências,
reivindicações e demandas dos sujeitos sociais. De igual modo, a simples de-
claração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo
histórico para a criação desse direito pela prática política. Bucci (2006, p. 4), a
esse respeito, diz:

A percepção dessa evolução evidencia que a fruição dos direitos


humanos é uma questão complexa, que vem demandando um apa-
rato de garantias e medidas concretas do Estado que se alarga cada
vez mais, de forma a disciplinar o processo social, criando modos
de institucionalização das relações sociais que neutralizem a força
desagregadora e excludente da economia capitalista e possam pro-
mover o desenvolvimento da pessoa humana.

Ainda que o Estado tenha evoluído numa perspectiva menos opresso-


ra, não é retirada a sua condição de sociedade política fundada no poder.

o pa pel do direito n a a n á l i s e de p ol í tic a s p ú b l ic a s 71


A resistência a esse poder pelos movimentos sociais produziu um espaço
diferenciado de disputa caracterizado pela busca da cidadania, o Estado de-
mocrático de direito. Nesse contexto, denominado por Santos (2002) de
“capitalismo organizado”, observa-se a necessidade de intervenção do Estado
para regular os mercados e a crescente desigualdade dos agentes econômicos,
de um lado, e, do outro, o crescimento das grandes empresas e do controle
que elas exerciam sobre os processos econômicos e o poder político. Esse reco-
nhecimento político das externalidades sociais do desenvolvimento capitalista
levou à politização de algumas dimensões da questão social.
De acordo com o autor, todo esse cenário é resultado de um pacto social
entre o capital e o trabalho, sob a égide do Estado, que conduz a uma nova
forma de política:

O impacto do novo modo de regulação social no direito foi enorme.


A monitorização intensificada dos processos económicos e sociais
levada a cabo pelo Estado conduziu ao desenvolvimento de novos
domínios do direito, como o direito económico, o direito do tra-
balho e o direito social, todos eles com a característica comum de
conjugarem elementos de direito privado e direito público, esba-
tendo assim ainda mais a linha de demarcação entre Estado e so-
ciedade civil. [...] As constituições deixaram de ser a concepção de
um Estado burocrático e de um sistema político apertadamente de-
finido para se transformarem num terreno de intermediação e ne-
gociação entre interesses e valores sociais conflituantes. (SANTOS,
2002b, p. 149)

Nele, a legitimação e a manutenção do paradigma de dominação são feitas


em torno de direitos fundamentais garantidores de liberdades individuais, de
participação na esfera pública, de condições mínimas de existência humana
digna e da própria perspectiva de democracia. No entender de Santos (2002b,
p. 152), o direito foi despromovido da categoria de princípio legitimador do
Estado para a de instrumento de legitimação do Estado. Isso demanda uma
atuação governamental mais precisa e focalizada, através de políticas públicas.

As políticas públicas como objeto de análise jurídica


As políticas públicas são, em geral, definidas como as decisões e as ações gover-
namentais resultantes da atividade política que mobilizam estrategicamente

72 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


interesses e conflitos da coletividade. Rua (2014, p. 19) acrescenta que esse fe-
nômeno é revestido do poder extroverso – sendo este expressão do poder re-
gulatório estatal que ultrapassa os seus próprios limites organizacionais e se
estende sobre a sociedade como um todo – e da autoridade do Estado, diferen-
ciando-o, dessa forma, das atividades privadas de interesse público.
Secchi (2013, p. 2) define política pública, por sua vez, como “uma dire-
triz elaborada para enfrentar um problema público”. Trata-se, portanto, de um
campo de disputas, conflitos e múltiplos interesses envolvidos, no qual o direi-
to pode funcionar como legitimador de práticas hegemônicas e autoritárias,
mas também como ferramenta de luta e conquistas de novos direitos. Políticas
públicas podem, assim, ser entendidas também como aquilo que um governo
decide fazer ou aquilo que deixa de fazer. (DYE, 1972 apud HOWLETT, 2013)
Também chamando atenção para a centralidade estatal quando se trata da
definição do que seriam as políticas públicas, Souza faz uma breve revisão de
literatura, ressalvando que não existe um único ou melhor conceito:

Mead (1995) a define como um campo dentro do estudo da política


que analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn
(1980), como um conjunto de ações do governo que irão produzir
efeitos específicos. Peters (1986) segue o mesmo veio: política pú-
blica é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente
ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye
(1984) sintetiza a definição de política pública como ‘o que o gover-
no escolhe fazer ou não fazer’. A definição mais conhecida continua
sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises sobre política públi-
ca implicam responder às seguintes questões: quem ganha o quê,
por quê e que diferença faz. (SOUZA, 2006, p. 24)

Não se trata, contudo, de qualquer ação governamental, mas de uma con-


cepção comunitarista e republicana de gestão pública (OHLWEILER, 2007,
p. 269), isto é, que visa à alocação de recursos para proteção e promoção so-
cial através do acesso a bens e serviços, transferências de renda e regulação.
Essa atuação orientada no sentido da igualdade, da justiça e da cidadania so-
cial objetiva a ampliação do alcance dos direitos civis e políticos, que, embora
mais antigos, historicamente destinaram-se às camadas privilegiadas das so-
ciedades, que não dependiam de programas do Estado para satisfação de suas
necessidades básicas.

o pa pel do direito n a a n á l i s e de p ol í tic a s p ú b l ic a s 73


Disso depende a própria noção de democracia, não numa perspectiva libe-
ral, como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais
– afinal, essa definição “significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à
competição econômica da chamada livre iniciativa e à competição política en-
tre partidos que disputam eleições” (CHAUI, 2012, p. 149) –, mas aquela voltada
para a criação de uma sociedade democrática, pautada na soberania popular,
na ampliação de direitos já existentes e no reconhecimento de novos direi-
tos que ampliem o núcleo jurídico da dignidade humana. A figura do Estado,
portanto, é indispensável, considerando que a concretização de um objetivo
de ordem pública – de um direito – demanda a movimentação da máquina
governamental.
O campo de estudo das políticas públicas, que engloba a normatização
dos direitos sociais, a ação do poder público e a concretização da cidadania,
é intrinsecamente interdisciplinar. A análise desse objeto multifacetado com-
bina técnicas das ciências sociais aplicadas, oriundas da ciência política, com
desdobramentos nos campos da economia e da administração pública, visan-
do à aproximação do problema central: o processo decisório governamental.
(BUCCI, 2008, p. 227)
Destaca-se que o aparelho estatal é constituído de instituições jurídicas,
criadas e conformadas pelo direito, que instrumentaliza a ação do poder público.
(BUCCI, 2008) Compreender as políticas públicas dentro dessa categoria de
análise se faz necessário, portanto, a partir do momento em que se buscam
através do direito as formas de implementação e efetividade dos direitos hu-
manos e sociais.
Vale salientar que, na análise aqui proposta, é preciso transpor uma visão
jurídica que se encerra num conjunto de normas estatais e que é reduzida à
pura legalidade, rompendo com abordagens positivistas e apegando-se a uma
visão dialética que contemple as pressões coletivas que surgem no seio da
sociedade civil, como indica a evolução já apontada quanto à positivação de
garantias fundamentais em suas respectivas dimensões. De igual modo, não
se trata de uma perspectiva que coloca o direito em posição de neutralidade,
como mera ferramenta de organização do poder, mas que o localiza dentro do
processo histórico e reconhece a articulação e constante atualização dos prin-
cípios básicos da justiça social, segundo padrões de reorganização da liberdade
que se desenvolvem nas lutas sociais do homem. (LYRA FILHO, 1982)

74 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Essa posição também implica aquilo que Ohlweiler (2007, p. 274) indica
como superação da concepção de estrutura administrativa do modo de ser
liberal, baseada na separação metafísica entre Estado e sociedade, na centrali-
zação do poder e na construção de uma relação hierarquizada com os cidadãos.
Ademais, pensar em políticas públicas dentro das balizas do Estado democráti-
co de direito requer compreender os sentidos do constitucionalismo moderno,
que inclui nas cartas constitucionais normas de caráter programático, orien-
tadas por princípios fundamentais,2 a serem cumpridas e que se tornam, como
aponta Bercovici (2005, p. 58-59 apud OHLWEILER, 2007, p. 275), a premissa
material da atuação política dos governos.
Em verdade, a Constituição Federal como base da fixação das políticas pú-
blicas, que obriga o legislador infraconstitucional e o agente público a seguirem
previamente o caminho traçado ou direcionado em seu texto, por si só denota
a importância do componente jurídico nesse campo de estudo. Agrega-se a
essa questão a dimensão participativa do processo de formulação, execução e
avaliação de políticas públicas, vez que existe o estímulo constitucional para a
parceria entre sociedade civil e poder público na consecução dos objetivos da
república. Isso exige uma mudança de perspectiva na relação entre adminis-
tração pública e cidadãos, no sentido de romper relações hierarquizadas e de
retomar qualificadamente o vínculo entre povo e poder.
Diante disso, Bucci (2006, p. 2) chama atenção para o desafio consistente
na superação daquilo que define como “esterilização do direito público” em
sua função de organização das relações cambiantes e dinâmicas entre Estado,
administração pública e sociedade e que acaba por replicar um padrão episte-
mológico típico do positivismo, em que o direito se reveste de objetividade e
distanciamento das dinâmicas sociais. Para alcançar os valores democráticos e
de cidadania, as questões jurídicas voltadas a esse cenário precisam levar em
conta mais do que regras em sentido estrito, se fazendo necessária uma im-
bricação entre as dimensões política e jurídica que se entrelaçam no interior
do Estado. A referida autora salienta que a tônica não é o controle do poder,
ainda que isso seja importante, de forma renovada, mas examinar, a partir de

2 No caso do Brasil, o artigo 1º da Constituição Federal de 1988 estabelece a cidadania e a dignidade


da pessoa humana como fundamentos da república e indica como objetivos, no artigo 3º, a cons-
trução de uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a
pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

o pa pel do direito n a a n á l i s e de p ol í tic a s p ú b l ic a s 75


categorias jurídicas fundamentais, como se forma e se exerce o poder político.
(BUCCI, 2013)
Tendo em vista que o aperfeiçoamento dos serviços públicos, bem como
das políticas transversais de inclusão social, necessita do domínio técnico dos
mecanismos de funcionamento dos papéis do Estado e do governo, das rela-
ções políticas e da execução das decisões governamentais, o papel do direito
nesta análise é o de contribuir para compreensão

[d]o funcionamento do governo enquanto disparador e condutor


de processos de transformação, com o emprego dos meios próprios
do Estado ou postos à sua disposição, ou seja, os modos pelos quais
se dá a conversão do impulso político em ação governamental,
exposta à participação e ao contraditório social e à incidência das
normas e controles de maneira geral. Não se trata apenas da visão
política do fenômeno do governo juridicizado. Trata-se da perspec-
tiva reversa, da visão a partir do interior do Estado, adotando-se a
posição daquele que ocupa a ‘máquina’ do governo, para examinar
como opera sua instrumentalização jurídica no sentido da realiza-
ção da democracia, em suas componentes políticas, mas especial-
mente sociais e econômicas. (BUCCI, 2013, p. 20)

Trata-se da construção do que Coutinho (2013, p. 188) chama de “tecnolo-


gia de implementação de políticas públicas”, que reconhece a pluralidade de
caminhos estratégicos possíveis para que se cumpram os direitos sociais e o
fato de que as políticas estão em constante processo de adaptação, ajustes e
avaliações, num contraponto com a visão de um direito administrativo que
segue marcadamente liberal, de cunho predominantemente negativo, que se
volta à contenção da discricionariedade do governo mais que à coordenação
de sua ação. (BUCCI, 2002, p. 11)
Essa concepção dialoga com as demais lições de Coutinho (2013), que sis-
tematiza os papéis do direito para as políticas públicas em quatro perspectivas:
1. direito como objetivo, que representa uma dimensão substantiva e
positiva das opções políticas, formalizando-as como cogentes;

2. direito como arranjo institucional, uma dimensão estruturante, que


define tarefas, competências e coordenações;

3. direito como ferramenta, relativa a uma dimensão instrumental, ao


oferecer veículos para implementação dos fins das políticas; e

76 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


4. direito como vocalizador de demandas, que assegura participação,
accountability e mobilização.

O papel do direito na análise interdisciplinar de políticas


públicas: uma agenda de pesquisa?
Como se observa, é sobre o direito que se assenta o quadro institucional no
qual atua uma política. Bucci (2006) aponta que não há um conceito jurídico
de políticas públicas, mas sim um conceito estruturado a partir de categorias
próprias da política ou da administração pública – e de dados históricos, eco-
nômicos e sociais da realidade – e de que se servem os juristas e pesquisadores
da área. Assim, deve haver uma metodologia jurídica que busque descrever,
compreender e analisar as políticas públicas, de modo a conceber as formas e
os processos jurídicos a elas correspondentes, sobretudo quando se considera
que não há na formação jurídica brasileira, de modo geral, uma preocupação
com a compreensão sobre a gestão do Estado (COUTINHO, 2013) e há uma
dificuldade de transpor o sentido jurídico da literatura sobre as políticas públi-
cas. (FARRANHA; MIRANDA; PEREIRA, 2018)
Há um conjunto de publicações e obras de Bucci que inspira reflexões –
como as citadas neste trabalho – e, ao lado de pesquisas e outros trabalhos de
cunho crítico, corrobora para pensar o papel do direito na análise interdiscipli-
nar das políticas públicas como uma crescente agenda de pesquisa, que ainda
tem muito que avançar, rompendo com paradigmas liberais, hegemônicos e
formalistas do direito.
Em 1997, a Bucci apresentou reflexões críticas sobre “por que estudar as
políticas públicas em direito administrativo”, fundando-se em concepções so-
bre a organização estrutural do poder e do Estado, ao que depreendeu serem
as políticas públicas – como coordenação dos meios estatais disponíveis para
a realização de objetivos sociais e políticos – um tema e problema de direito
público. Na ocasião, a autora problematizou constituírem-se as políticas pú-
blicas como uma categoria de análise jurídica, ao passo em que sistematizou
noções sobre a forma como o direito racionaliza o tema e sobre um possível
“regime jurídico das políticas públicas”. Entretanto, ponderou que, embora
a ideia de um Estado provedor de serviços públicos tenha sido sucedida pela
de um Estado implementador de políticas públicas, o direito não foi capaz de

o pa pel do direito n a a n á l i s e de p ol í tic a s p ú b l ic a s 77


elaborar um quadro teórico suficientemente maduro sobre o Estado e a função
administrativa das políticas públicas.
É na obra Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas que
Bucci (2013) vem apresentar argumentos que, efetivamente, balizam uma abor-
dagem jurídica interdisciplinar sobre as políticas públicas, estruturada nesse
regime jurídico, que se constitui como um quadro referencial interdisciplinar
de análise.
Para tanto, desenvolve o que denomina “plano macroinstitucional”, atra-
vessando a noção de governo como motor da política, os seus mecanismos de
funcionamento e a sua progressiva juridificação, em que se verifica a tensão
entre a política e as políticas públicas; “plano microinstitucional”, condizente
à ação governamental como núcleo de sentido das políticas públicas em sua
processualidade; e “plano mesoinstitucional”, dados os arranjos institucionais
que incluem uma conformação jurídica, em que se acionam pontos de cone-
xão entre o direito e as demais ciências sociais, úteis para a compreensão dos
mecanismos de atuação do governo, evidenciando a interdisciplinaridade que
marca esse campo de pesquisa. Atribui-se, portanto, um caráter transversal
ao direito, como elemento que permeia aspectos e processos que plasmam a
agenda, a elaboração e a implementação das políticas públicas. Todavia, não se
pretende reduzir ou limitar as políticas públicas a ele.
Na conclusão do livro, a autora assevera que o estado da pesquisa que rela-
ciona direito e políticas públicas ainda precisa avançar, ao que busca contribuir
apresentando diretrizes para um método jurídico de análise e construção de
políticas públicas, partindo da compreensão de que “a ausência ou debilidade
de método podem comprometer o desenvolvimento de um campo ou aborda-
gem”, razão pela qual “[...] é condição necessária para o trabalho sistemático e
estruturado de análise jurídica das políticas públicas [...]”. (BUCCI, 2013, p. 289)
A capacidade analítica dessa abordagem dependerá de uma visão funcional
do direito. Essa perspectiva também foi destacada por Bucci (2013) ao esta-
belecer que as políticas públicas são estruturadas por meio de um conjunto
de processos que envolve não apenas diversos agentes, mas uma intrincada
rede institucional em que eles atuam em diferentes níveis, constituindo um
complexo sistema de incentivos e desincentivos, limites e encorajamento, coo-
peração e conflito. Como já mencionado, essa visão ultrapassa uma teoria do
direito de cunho positivista, carecendo incorporar elementos que permitam

78 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


discutir as diferentes funções das normas jurídicas que corporificam as políti-
cas públicas e de que modo e em que grau elas influenciam a conduta daqueles
que compõem seu público-alvo e os agentes públicos, estabelecendo, dessa
maneira, uma interface com a sociologia. (CASTRO; MELLO, 2017, p. 13)
A ciência do direito se debruça sobre questões complexas e voltadas a des-
vendar possibilidades emancipatórias de grupos sociais e indivíduos (SANTOS,
2002a), de modo que pesquisas jurídicas a respeito de políticas públicas não po-
deriam analisá-las tão somente como um exercício de regulação social ou uma
sucessão de atos administrativos, mas sim como um processo dinâmico e articu-
lado que pressupõe diferentes papéis e interações desempenhados pelos atores e
instituições, relacionados a um contexto político. Dessa forma, compreende-se
que há latentes possibilidades de fortalecimento de uma agenda de pesquisa para
a área jurídica que endosse o prisma interdisciplinar, em que o direito poderia
compor a partir de um papel mais participativo na discussão acerca dos ciclos e
processos de elaboração e implementação das políticas públicas.

Considerações finais
A ampliação do papel do Estado, evidenciada historicamente, demanda dele
novas capacidades e a criação de um ambiente institucional que contenha es-
paços representativos, participativos e de controle, suficientes para promover a
inclusão dos múltiplos sujeitos e suas necessidades. Nesse cenário, à luz do que
primam as constituições modernas, a administração pública precisa mediar,
de um lado, os tensionamentos que surgem no seio das sociedades visando à
efetividade e ao alargamento do rol de garantias fundamentais, bem como do
ideal de democracia e bem-estar social, e, do outro lado, as burocracias típicas
da ação política. Desse aparente conflito, nascem as políticas públicas, prepon-
derante instrumento de concretização dos direitos sociais, cuja participação
estatal tem uma dimensão ativa.
Ao longo do texto, demonstrou-se que há, nesse processo, uma proximi-
dade de ordem prática entre o direito e o campo das políticas públicas. Em
busca de uma conciliação que seja também acadêmica, o principal desafio
dessa agenda de pesquisa consiste na formação de profissionais capazes de
entender que a construção e o desenvolvimento das bases institucionais que
materializam os princípios e normas que preconizam os direitos de igualdade,

o pa pel do direito n a a n á l i s e de p ol í tic a s p ú b l ic a s 79


de liberdade e, notadamente, sociais são também um objeto de análise jurí-
dica interdisciplinar, que não se encerra nos processos interpretativos de leis
e jurisprudências, mas também alcança a ação governamental e pode, desse
modo, contribuir diretamente para melhoria da qualidade dos serviços ofe-
recidos pelo Estado, paralelamente e em conjunto com trabalhos da ciência
política, da sociologia, da economia, da antropologia, dentre outras áreas do
conhecimento correlatas.
Essa proposta de interdisciplinaridade, que almeja novos horizontes para
produção científica da pesquisa jurídica, atenta para a complexidade das re-
lações sociais e engaja-se numa visão crítica da relação entre direito, Estado
e ação governamental, que perceba as políticas públicas como um fenômeno
político, social e jurídico, indo além da análise tecnocrática de estruturas ló-
gico-formais. Tal aproximação contribui para melhorar o desenvolvimento
das capacidades institucionais da administração pública e compreender os
impasses da efetivação de direitos. Essa nova concepção pode representar um
diferencial em sociedades marcadas pela desigualdade e com histórico recente
de militarização da esfera pública e repressão social, como é o caso do Brasil.

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82 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


PROBLEMATIZANDO
A DICOTOMIA RURAL/
URBANO: TERRITÓRIO E
DESIGUALDADE
À beira da vida: vulnerabilidade social dos
beiradeiros do extremo sul da Bahia, Brasil

Oneide Andrade da Costa


Herbert Toledo Martins

Introdução
Para os(as) viajantes que transitam pela BR-101 na região do extremo sul da
Bahia pela primeira vez, uma imagem que certamente impressiona o olhar
mais atento recai sobre as casas de indivíduos e famílias que residem à mar-
gem da estrada, nas faixas de terras de domínio do Departamento Nacional de
Infraestrutura de Transportes (DNIT). Em sua maioria, são famílias que não
estão ali acampadas, não são membros de movimentos sociais reivindicando a
posse da terra, mas residem e vivem ali na beira da rodovia, cultivando mandio-
ca, urucum, pimenta, mamão, milho, feijão, hortaliças e frutas diversas. Moram
em casas de pau a pique, lonas, tábuas de madeira, folha de zinco; algumas são
de alvenaria. A maioria vive sem água potável, energia elétrica e banheiro den-
tro de casa. Trata-se, portanto, de uma população que possui um modo de vida
sui generis, cujos estudos pelas ciências sociais são rarefeitos,1 e que permane-
ce invisível aos olhos do Estado, posto que sequer será recenseada em 2020,
conforme informação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Seguramente, a invisibilidade dessa população traz consequências graves para
seus membros em termos de saúde, educação e assistência social, sobretudo
para crianças e idosos, que vivem em situação de extrema vulnerabilidade social.

1 Registra-se o único artigo sobre essa população: MITIDIERO Júnior, Marco Antônio. “Agricultura
de beira de estrada ou agropecuária marginal ou, ainda, o campesinato espremido”. Acessar:
http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/2263.

85
Nessa perspectiva, o objetivo mais geral do presente artigo é apresen-
tar ao público leitor o perfil dessa população e revelar a sua existência.
Especificamente, pretende-se aqui caracterizar e dar visibilidade a esses in-
divíduos e famílias, para que, dessa maneira, possam ser alvo de políticas
públicas de proteção e promoção social, posto que o avanço mais profundo da
democracia requer que as políticas públicas tenham um foco nas populações
em maior vulnerabilidade social. Mas, para tanto, é importante e até mesmo
necessário nomear, pois, “se não se nomeia uma realidade, nem sequer serão
pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”. (RIBEIRO, 2019,
p. 41) Desse modo, imbuídos da tarefa de nomear essa população, de dar a ela
visibilidade, atribuímos, então, o nome de “beiradeiros” a esses indivíduos e
famílias que detêm a posse de faixas de terra de domínio da União nas beiras
das rodovias do país.
As pessoas entrevistadas se autodenominam como moradores “da beira da
pista”, “da BR-101”, “da beira da BR-101”, “da pista”. Não se trata, portanto, de
uma categoria nativa, mas que busca resumir as diversas designações encontra-
das no contexto da pesquisa, ao tempo que faz analogia às pessoas que já são
assim chamadas por ocupar as margens dos leitos dos rios, sobrevivendo do que
plantam e colhem nas margens fertilizadas pelas vazantes pluviais. (VARGAS,
1987; VELHO, 2009)
Desse modo, na pesquisa que ora apresentamos, foram entrevistados 68 mo-
radores ao longo de 25,7 km da BR-101, que corta o município de Teixeira de
Freitas (BA), na direção norte. A pesquisa foi aprovada e registrada pelo Comitê
de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
A investigação recaiu sobre o levantamento de dados socioeconômicos com
aplicação de 68 questionários estruturados, com perguntas objetivas, que foram
analisados com a ajuda das informações complementares registradas no caderno
de campo produzido, constituindo-se num censo sobre dados socioeconômicos
e demográficos. As visitas a campo foram feitas, em sua maioria, aos domin-
gos pela manhã e iniciadas em setembro de 2018, estendendo-se até o mesmo
mês do ano seguinte. Inicialmente, foram realizadas três visitas exploratórias, de
modo a identificar o dia da semana e o horário mais apropriado para viabilizar a
pesquisa, além de estabelecer os primeiros contatos com os moradores.
Havia um temor no início da pesquisa de como seríamos recebidos, pois
queríamos evitar ser reconhecidos como membros do DNIT ou de qualquer

86 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


outro órgão do governo com o objetivo de retirá-los das terras ocupadas. Desse
modo, além do carro com a identificação da universidade e o crachá funcional
no peito, sempre apresentávamos os objetivos da pesquisa, as razões de estar-
mos ali buscando informações. Com o andamento dos trabalhos, a notícia da
pesquisa “correu a pista” e a confiança na equipe de pesquisadores prevaleceu,
a ponto de conseguirmos realizar, em dezembro de 2019, o 1º Encontro dos
Moradores da BR-101.
As casas/ocupações visitadas tiveram suas coordenadas geográficas marca-
das através do aplicativo UTM Geo Map (Y2 Technology, Bandung, Indonésia),
além de pontos estratégicos, desde barracas edificadas para vender aos tran-
seuntes o que produzem, placas de sinalização, igrejas, escolas, posto de
gasolina e ponto de apoio para atendimento médico.
A pergunta inicial que motivou a pesquisa foi a seguinte: quem são os bei-
radeiros? A partir dessa indagação, outras perguntas sobrevieram desenhando
a problemática da pesquisa. Quem são essas pessoas? De onde elas vieram?
O que fez com que ocupassem as terras às margens da rodovia? Como se re-
produzem na beira da estrada? Nessa perspectiva, o artigo encontra-se dividido
em três seções além desta introdução. Na primeira seção, caracterizamos os
beiradeiros como posseiros e apresentamos um breve histórico sobre o ins-
tituto da posse, sua origem histórica no Brasil desde o período colonial. Na
segunda seção, são analisados os dados socioeconômicos da pesquisa em diálo-
go com as perguntas dispostas. Por último, são apresentadas as considerações
finais do trabalho.

Os beiradeiros como posseiros


O beiradeiro, como estamos denominando o morador da beira da estrada, é
um posseiro que ocupou uma faixa de terra de rodovia, seja por ter desbravado
com facão e enxada o mato que crescia nos trechos longitudinais entre a cerca
e o asfalto, a partir do acostamento ou da pista propriamente dita, seja por
ter comprado o “direito” de ocupar aquele trecho. Ainda que seja um posseiro
de uma nova época, motivado por mecanismos de exclusão que demandam
estudo adicional que não faz parte do escopo deste trabalho, não é diferente
dos posseiros que a questão agrária brasileira produziu e continua a repro-
duzir ao longo dos séculos. A categoria “posseiro” tem uma longa história e

à b e i r a da v i da 87
está diretamente vinculada à formação do campesinato e da questão agrária
brasileira, isto é, ao tipo ou modelo de ocupação, posse e distribuição das ter-
ras, bem como às transformações nas relações sociais trabalhistas de produção:
como se produz, de que forma se produz. (SILVA, 1981)
As origens dos posseiros remontam ao período colonial, quando a Coroa
portuguesa adotou o monopólio da propriedade exclusivamente sob sua égide
(STEDILE, 2005), não se constituindo, até então, bem capital passível de co-
mercialização. Mas, com o intuito de atrair investidores portugueses para que
aplicassem capital na produção de mercadorias a serem exportadas ao merca-
do europeu, a monarquia adotou, então, o sistema de “concessão de uso”, com
direito de transmissão por herança, não sendo permitida, no entanto, a venda
da terra, mantendo-se a propriedade sob o poder de Portugal. (STEDILE, 2005,
p. 22)
Os posseiros foram os precursores da pequena propriedade camponesa.
“A princípio, as invasões limitavam-se às terras de ninguém nos intervalos en-
tre as sesmarias, depois voltaram-se para as terras devolutas e, não raramente,
para as áreas internas dos latifúndios sub explorados”. (GUIMARÃES, 1964,
p. 102) Sob o regime de sesmarias, estavam excluídos do direito de propriedade
os negros escravizados, “os índios, que até o início do século XVII eram escra-
vos reduzidos à condição de peça, e os filhos de brancos sem pureza de sangue,
os bastardos”. (MARTINS, 1981, p. 32) Além desses grupos, vieram engrossar a
massa de pessoas às quais o direito da propriedade era interditado os excluí-
dos do sistema de morgadio, que determinava que a herança seria transmitida
ao filho varão primogênito. Esse sistema, que durou até 1835, fazia dos outros
herdeiros uma espécie de agregados do patrimônio herdado com base na pri-
mogenitura. Contudo, o morgadio “não impedia a abertura de novas fazendas
e a constituição de novas propriedades mediante simples ocupação e uso da
terra”. (MARTINS, 1981, p. 33)
A ocupação fazia parte do processo de obter uma sesmaria. “O futuro ses-
meiro ocupava antes a terra, abria sua fazenda e só assim se credenciava para
obter a concessão e a legitimação da sesmaria. O emprego útil da terra era a
base da legitimação”. (MARTINS, 1981, p. 33) Cumprido esse requisito e sendo
branco de puro sangue, o título de sesmeiro era concedido. O mestiço ou bas-
tardo pobre podia abrir a sua fazenda e ocupar a sua posse, mas, devido ao fato

88 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


de ser impuro de sangue, dificilmente conseguiria uma sesmaria, ou seja, não
se tornava proprietário de terras. Essa é a origem histórica dos posseiros.
Como agregados, os direitos dos posseiros eram tão somente uma conces-
são dos fazendeiros, “como uma questão privada e não como questão pública”.
(MARTINS, 1981, p. 35; MEDEIROS, 2002) Desse modo, sob a vigência desse
mecanismo de exclusão da propriedade da terra, inicialmente, pela pureza de
sangue e, a partir da Lei de Terras (1850), pelo poder financeiro, foi se consti-
tuindo uma diversidade enorme de categorias que conformam o campesinato
brasileiro, cuja característica principal é estar excluído do acesso à propriedade
da terra.
Contudo, a partir dos anos de 1950, tem início uma revolução tecnoló-
gica no campo, também chamada de industrialização da agricultura (SILVA,
1981), modernização conservadora (GUIMARÃES, 1976) ou modernização da
agricultura. (WANDERLEY, 2014) Basicamente, esse processo significou que
as atividades agrícolas passaram a ser subordinadas ao capital financeiro e in-
dústrias que dominam o setor, o que foi entendido como “adoção de máquinas,
equipamentos e insumos de origem industrial nos processos da produção agrí-
cola”. (WANDERLEY, 2014, p. S028) Todas as regiões do país nas décadas de
1960 e 1970 foram, de alguma forma, afetadas pelo processo de modernização
do campo e pelas políticas desenvolvimentistas em curso, que incentivavam a
industrialização do país à época, com milhares de trabalhadores sendo expul-
sos das terras que ocupavam.
A consequência desse processo foi a expulsão massiva dos camponeses re-
sidentes no interior das grandes propriedades, que passaram a ser contratados
apenas nos momentos de necessidade de trabalho, como na plantação ou na
época da colheita. Com diferenças regionais acentuadas, esse processo ocorreu
praticamente em todo o território nacional. E não foi diferente na região do
extremo sul da Bahia, que, no início dos anos de 1970, se integrava de manei-
ra mais efetiva à região Sudeste por intermédio da pavimentação da BR-101.
Os beiradeiros constituem-se em produto desse desenvolvimento desigual.
Todavia, somente em um estudo mais aprofundado, utilizando metodologia
de pesquisa qualitativa, será possível aferir essa hipótese, o que não foi possível
neste trabalho. Os dados aqui apresentados demonstram a importância desta
pesquisa, revelando a necessidade da propositura de outros estudos científicos
como seus desdobramentos.

à b e i r a da v i da 89
O perfil socioeconômico dos beiradeiros
A partir dos dados e das informações levantadas pelos questionários aplicados
e anotações no caderno de campo, observou-se que a maioria dos beiradeiros
conhece seus vizinhos e mantém boas relações. Há uma repetição de relações
de parentesco, com primos e outras pessoas do seio familiar, que se aventuram
nas margens da rodovia. O entrevistado nº 7 revelou que, quando não se com-
pra o direito de ocupar, “não é só chegar e se instalar”; é preciso que haja uma
espécie de anuência por parte dos que já se encontram naquela localidade.
Entre os entrevistados, houve predominância de indivíduos do sexo mas-
culino, com 41 (60,3%), enquanto 27 (39,7%) eram mulheres. A maior frequência
etária se deu na faixa de 36 a 45 anos (26,7%), seguida das faixas de 46 a 55 anos
(21,7%), 26 a 35 anos (20%), 55 a 60 anos (18,3%) e acima de 60 anos (13,3%). Sobre
o estado civil, a maioria declarou-se casada ou convivente (67,6%), ao passo que
22% são solteiros, e divorciados e viúvos somam 10,4%.
Sobre os rendimentos, mais da metade declarou viver com renda de até
um salário mínimo (54,4%), enquanto outros vivem com um a dois salários
(7,4%), com mais de dois até três salários (1,5%), com mais de três até cinco sa-
lários (1,5%), e houve uma frequência significativa quanto à opção “sem renda”
(35,2%). Alguns moradores vendem alguns dos itens que produzem em uma
barraquinha instalada na beira da estrada ou fazem “bico” como pedreiros em
construções na zona urbana, ou ainda são recrutados por alguns fazendeiros
como mão de obra temporária e prestam serviços da roça, como consertar cer-
cas, plantar e arar a terra. Outros trabalham na época da colheita do café, como
relata a entrevistada nº 2, que conta que, no período de colheita de café, prefere
ir para o Espírito Santo, principalmente pela diferença no pagamento, pois,
enquanto no Espírito Santo recebem R$ 11,00, em média, por saco de café co-
lhido, na Bahia os produtores pagam R$ 8,00, R$ 7,00 ou até R$ 6,50.
Perguntados sobre a origem, 79,4% informaram que nasceram na Bahia, de-
monstrando a predominância de baianos, e 20,6% nasceram em outros estados,
como Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco e Rondônia. Sobre a
naturalidade, 14,7% dos entrevistados nasceram em Teixeira de Freitas, 64,7%
nasceram em outras cidades do extremo sul baiano, como Itamaraju, Medeiros
Neto, Alcobaça, Prado, Guaratinga, Itanhém, Vereda, Jucuruçu e Itabela.
Infere-se desses dados que se trata de um movimento migratório característico

90 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


da região sul da Bahia, sendo a maioria dos beiradeiros da pesquisa pessoas que
sofreram as consequências dos processos de exclusão econômica e social, tanto
no campo quanto na cidade.
Quando o assunto é escolaridade, é notória a discrepância entre os entre-
vistados e a média no Nordeste. E, confrontando com o índice nacional, esse
déficit é ainda maior.
Tabela 1 – Escolaridade do(a) entrevistado(a)

Escolaridade Frequência* Percentual* Brasil** Nordeste**

Sem instrução 18 26,5% 6,8% 13,9%

Ensino fundamental incompleto 40 58,8% 33,1% 36,6%

Ensino fundamental completo 5 7,4% 8,1% 6,5%

Ensino médio incompleto 2 2,9% 4,5% 4,5%

Ensino médio completo 2 2,9% 27,0% 24,5%

Superior incompleto 1 1,5% 4,0% 3,1%

Fonte: elaborada pelos autores.


* Coleta direta de dados.
** PNAD 2018. Dados relativos a pessoas com 25 anos ou mais.

Sobre o tempo que residem na estrada, havia pessoas com apenas seis me-
ses de moradia (10,3%), com seis meses até um ano (7,4%), com mais de um ano
até três anos (23,5%), com mais de três anos até cinco anos (16,2%), com mais
de cinco anos (11,8%), com mais de dez anos (30,8%). A moradora nº 25 conta
que já mora ali há cerca de 30 anos, que veio de Itajuípe (BA), porque “as coisas
estavam difíceis”, e que não havia nem asfalto. “A gente ajudava nos acidentes,
tapava buracos com terra pra ganhar um trocado dos motoristas!”. Todos os sete
filhos nasceram ali, tendo o mais velho 27 anos de idade.
No quesito religião, 50% são evangélicos, 36,8% católicos, 10,2% sem reli-
gião, 1,5% de religiões de matriz africana e 1,5% de outras religiões. No perímetro
da pesquisa, encontramos pelo menos duas igrejas destinadas ao culto evangé-
lico e uma igreja católica. Apenas um entrevistado é praticante de religião de
matriz africana, residente de uma ocupação que fica num morro de terra, um
terreiro de candomblé denominado “Novo Quilombo”, nome dado, segundo o
morador, pelos próprios orixás.
Sobre tipo de aparelhos domésticos existentes nas casas dos beiradeiros,
em 52 ocupações (76,47%), existem celular e fogão a gás. Nem sempre é possível

à b e i r a da v i da 91
comprar o botijão de gás, inviabilizando a utilização do aparelho, de modo que
o jeito é usar o fogão a lenha. A geladeira está presente em 27 casas (39,70%); 24
têm televisão e rádio (35,29%), mas a maioria desses objetos é fruto de doação.
A dificuldade de acessar energia elétrica é um fator impeditivo para usufruir
desses bens, principalmente no que diz respeito ao uso da geladeira, que se-
ria imprescindível para armazenar alimentos de forma adequada, assim como
assistir televisão.
Dos 68 entrevistados, 20 afirmaram haver crianças na ocupação (29,42%),
enquanto 48 (70,58%) responderam negativamente. Alguns preferiram que as
crianças e adolescentes, ainda em idade escolar, permanecessem na zona urba-
na, seja com os avós ou com os cônjuges de relacionamentos anteriores.
Das famílias pesquisadas, 66 (97%) são de pessoas que se declaram agricul-
tores, sendo que 30 (45,45%) vendem os produtos; 16 (24,25%) em feiras livres,
20 (30,30%) entregam em algum comércio ou vendem para atravessadores ou
ali mesmo na beira da estrada, improvisando uma barraca onde os motoristas
costumam parar para conferir. Entre eles, 58 (87,87%) plantam mandioca, além
de itens como feijão, milho, pimenta do reino, abóbora, acerola, arroz, batata,
cacau, cana-de-açúcar, goiaba, jaca, limão, manga, maracujá, quiabo e frutas
diversas. Dos 66 agricultores, 60 (90,90%) cultivam plantas medicinais, como
erva-doce, boldo, capim-santo ou capim da lapa, hortelã, que são utilizadas
para fazer chá e combater sintomas de gripe, febre e má digestão, sendo esse
último item referido reiteradamente também como “barriga fofa” ou dor de
barriga, sintomas que podem estar relacionados à forma de coleta e armazena-
mento da água, bem como às condições sanitárias de cada ocupação.
A negociação dos terrenos é feita pelos ocupantes levando em considera-
ção, além do valor pago na aquisição, as benfeitorias realizadas, como banheiro
e, principalmente, a quantidade de unidades plantadas: pés de urucum, man-
dioca, pimenta-do-reino, dentre outras culturas. A comercialização das áreas
na faixa de domínio à beira das estradas não é uma prática legalizada: não há
documentação formal que comprove a titularidade da posse, pois, como se trata
de terras da União, não são passíveis de aquisição. Os beiradeiros demonstram
ter ciência do fato e ignoram a vedação legal, realizando a transmissão dos
terrenos informalmente, pois, segundo eles, o que está à venda é o “direito” à
terra, e placas sinalizando “vende-se” são encontradas por toda a estrada. Entre

92 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


os entrevistados, 10 declararam que não venderiam a terra por menos de 40
mil reais, e 11 deles informaram que a terra vale de 5 a 10 mil reais.
A pergunta relativa aos motivos de terem vindo se instalar na beira da ro-
dovia foi aberta. Desse modo, os entrevistados alegaram mais de um motivo
em suas respostas. Contudo, considera-se aqui apenas a primeira resposta.
Assim, 37% dos entrevistados justificaram a dificuldade de pagar aluguel. O en-
trevistado nº 57, por exemplo, explica que, por não poder pagar aluguel, ele e a
família enxergaram ali um local para sobrevivência, assim como a entrevistada
nº 35, ao afirmar: “aqui não precisa pagar aluguel”. Dos entrevistados, 8,8% ale-
garam o desemprego como motivo principal para ocupar as terras da rodovia.
Outros 10,2% consideraram como primeira opção a subsistência. É o caso do
entrevistado nº 16, que explicou: estando desempregado na cidade, mas tendo
um pedaço de terra para plantar, na falta do que comer, “posso pegar uma fru-
ta no pé e fazer um suco para minhas filhas”. Já 44% justificaram “ser da roça”,
“gostar da roça” como motivo principal para estar na beira da estrada. O entre-
vistado nº 14, que possuía uma casa no valor de 35 mil reais na cidade e a trocou
por aquela posse na estrada, conta que “na rua tava muito ruim. Aqui pode plan-
tar uma mandioca. Só sairia se desse zebra, se fosse para zona rural também”; e
que, para um dos filhos, que possui patologia mental, “fica mais tranquilo aqui
também”. Algumas declarações espontâneas se tornam emblemáticas: “se eu
vim pra rua, eu morro”, da entrevistada nº 37; assim como as do entrevistado nº
9: “Rua não quero mais nem no sonho”; do nº 4: “todo mundo comprou um direito
pra sair da rua”; além do entrevistado nº 13, que traduz muito bem esse desejo
predominante quando relata que, na rua, não há paz: “O local da paz é a roça”.
Sobre a relação com os fazendeiros, vizinhos de cerca, 56 responderam que
conhecem o proprietário e sempre identificavam a atividade principal das fa-
zendas: criação de gado, plantações de café ou eucalipto. A maioria relatou
que a convivência é pacífica, exceto a entrevistada nº 48, que afirmou que “o
fazendeiro não deixa pegar lenha” e reclamou que aquela ocupação “parece uma
favela”. Já o morador nº 6 diz ter uma boa relação com o fazendeiro vizinho,
que vai à sua casa tomar café, e o entrevistado nº 47 informou que o fazendeiro
lhe fornece esterco de gado para adubo. Dos entrevistados, 95,6% declaram que
são rurais e que só gostariam de sair daquele local se fosse para outro situado
também na roça.

à b e i r a da v i da 93
Na pesquisa de campo, constatou-se que há diversas comunidades ao lon-
go da rodovia baseadas em laços de parentesco, compadrio ou amizade. É o
caso dos ocupantes do trecho da rodovia conhecido como “km 857”. Em pelo
menos seis casas visitadas, os moradores possuem algum vínculo de ordem
familiar. Mesmo vivendo sob estruturas de adobe com cômodos improvisados,
a notícia do êxito na ocupação chega ao conhecimento de outros familiares,
que se aventuram a ocupar a beira da estrada e fazer dali a morada do grupo
familiar.
Com relação ao acesso à educação, 42,6% dos beiradeiros afirmaram que
as crianças frequentam a escola, seja em alguma localidade situada nas pro-
ximidades da rodovia, nos distritos vinculados ao município ou mesmo em
escolas na zona urbana, revelando que o município proporciona o acesso delas
à educação independentemente do local onde moram, pois, mesmo sendo área
de jurisdição do Governo Federal, o trecho da estrada pesquisado se encontra
nos limites do município de Teixeira de Freitas. Pelo menos 26 crianças es-
tão cursando o ensino fundamental e 53 delas têm entre 0 e 12 anos. Entre os
adolescentes, 38 estão entre 13 e 18 anos de idade, configurando um número
significativo de crianças e adolescentes vivendo às margens das rodovias. Os
dados coletados indicam que, das crianças que estudam, 86,2% são usuárias
de transporte escolar disponibilizado pela Secretaria Municipal de Educação.
Sobre o acesso à água nas faixas de domínio da União, não há abasteci-
mento desse recurso essencial à vida humana através de encanamento pela
empresa autorizada competente, assim como não há rede coletora de esgoto
nem saneamento básico. Os beiradeiros cavam poços artesianos dentro da sua
posse, nas áreas contíguas e, em alguns casos, na fazenda com a qual faz vi-
zinhança, mediante autorização do proprietário. Também procuram represas
naturais, córregos e coletam água da chuva – o importante é encontrar água
para garantir a sobrevivência das pessoas, dos animais, tanto de estimação
quanto de criação para abate, além de alguns casos de irrigação da plantação.
O acesso à água em poço ou nascente dentro da posse é realizado em 39
casas (57,4%), enquanto 17 (25%) dos entrevistados buscam água fora da área
da posse e 12 (17,6%) captam água fora da posse e armazenam em recipientes
plásticos. Muitos que têm poço artesiano informam que retiram a água e en-
chem reservatório com ajuda de bomba hidráulica, que precisa de combustível
(gasolina) para funcionar. O entrevistado nº 60 informou que coleta água de

94 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


uma torneira disponível no posto de combustíveis Nova Era. Procuramos o
gerente do posto, que se identificou como Fábio e confirmou a informação,
relatando que moradores da rodovia se utilizam dos banheiros, tomam banho,
coletam a água da torneira que fica logo na entrada do posto e levam para casa
em vasilhames. Já o entrevistado nº 6 consegue água para beber pegando de
forma autorizada no Estacionamento São Cristóvão, que é uma parada para
caminhoneiros que fica no trecho pesquisado da estrada.
Sobre saneamento básico, não há rede de captação de esgotos nem de águas
pluviais. Alguns beiradeiros constroem banheiros, dentro ou fora da casa, ou
improvisam algum local, ainda que seja um buraco, com alguma proteção para
não serem vistos pelos outros moradores ou pelos transeuntes no momento
das dejeções.

Figura 1 – Banheiro ao ar livre


Fotógrafa: Ferreira (2019).

Em 25 moradias, existe banheiro dentro de casa. Em 43, não existe banheiro


dentro da casa, alguns entrevistados respondendo que não há opção, como o
entrevistado nº 55, que disse: “O banheiro é o mato”. Apesar de providenciarem
a construção de sanitários, banheiros dentro ou fora de casa, a princípio, não
se vê preocupação quanto à distância segura para separação de coleta de água e
lançamento de dejetos. Com relação ao esgoto, das 25 moradias com banheiro
dentro de casa, 13 canalizam o esgoto para uma fossa rudimentar, apenas 5

à b e i r a da v i da 95
responderam que a fossa é séptica, enquanto outros 6 lançam os dejetos em
vala e um morador lança o esgoto no rio.
Quanto ao acesso dessas pessoas à energia elétrica, assim como a água,
não há disponibilização regular do serviço pela concessionária de energia. Nas
visitas às ocupações, 25 entrevistados informaram não haver energia na casa
(36,8%), enquanto 43 ocupações (63,2%) têm alguma fonte de energia elétrica.
Das casas com energia, 23 acessam energia elétrica por concessão do fazendei-
ro das proximidades (53,5%), mas é importante frisar que essa permissão não se
dá de forma gratuita. Esse acesso é realizado mediante pagamento mensal e,
em alguns casos, o proprietário ou gerente da fazenda informa qual é o valor
correspondente e o grupo de beiradeiros que se utiliza daquela fonte de ener-
gia se divide e se mobiliza para pagar o valor informado. Há, ainda, 12 pessoas
(27,9%) que instalaram placa fotovoltaica e conseguem converter energia solar
em elétrica, mas nem sempre a energia advinda dessa fonte é suficiente para fa-
zer funcionar aparelhos domésticos convencionais, como geladeira e televisão.
Apenas um entrevistado mencionou ter um gerador de energia. A dificuldade
em fontes de energia influencia, inclusive, no armazenamento adequado de
alimentos, uma queixa frequente. Flagramos alguns alimentos sendo guarda-
dos de forma duvidosa, o que pode comprometer seriamente a saúde.
Existem pelo menos três grupos que se organizaram para obter energia
elétrica junto aos fazendeiros. Os ocupantes da beira da pista que ficam mais
próximos da sede do município informaram que “energia vem da Prainha, de
seu Ivo”. A Prainha seria uma fazenda situada nos limites de Teixeira de Freitas.
Atualmente, são 16 pessoas que se utilizam dessa forma de distribuição de
energia. Seu Ivo, que tem 81 anos, conta que chegou à região antes do desma-
tamento realizado para dar lugar à criação de gado, serrarias – havia cerca de
60, na época –, além das plantações de eucaliptos, que alimentariam as indús-
trias de celulose que se instalaram no extremo sul da Bahia e norte do Espírito
Santo. Conta que seus avós vieram do Congo como escravos e, ainda, que ali
antes era a Fazenda Nova América.
Apenas 9 pessoas informaram que recebem aposentadoria, sendo que há
pelo menos 16 pessoas maiores de 60 anos nas 68 ocupações visitadas. Dos
entrevistados, 25 declararam receber Bolsa Família e apenas 6 recebem Bolsa
de Prestação Continuada (BPC), seja a pessoa com necessidades especiais ou
algum idoso.

96 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Em consulta à Secretaria Municipal de Assistência Social, responsável pelo
credenciamento de munícipes nos programas sociais disponibilizados pelo
Governo Federal, a informação é de que não há um critério que identifique
as pessoas nessas condições de moradia. Caso um dos moradores da beira da
estrada procure o órgão para pleitear algum benefício, será atendido dentro
dos critérios já estabelecidos e, caso forneça todos os documentos e atenda aos
pré-requisitos legais, o pedido será deferido.
Entre os entrevistados, 33,6% afirmaram que as crianças recebem Bolsa
Família, e 14,7% disseram não receber, enquanto 51,7% não responderam ou
não souberam responder. No decorrer das entrevistas, é perceptível que há
muita desinformação sobre o programa Bolsa Família e quais as exigências le-
gais para participação no programa, o que é coadunado pela baixa escolaridade
dos pais. Alguns mencionam que já tentaram inscrever as crianças, mas, mui-
tas vezes, a falta de um ou outro documento exigido leva à desistência.
No que se refere ao acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto
64,7% não recebem visita de agente de saúde, 35,3% dos entrevistados citaram
um mesmo nome, “Rogério”, que seria o agente destacado para atender no pe-
rímetro considerado “rural” e seria lotado nas Unidades de Estratégia de Saúde
da Família (ESF) Rural II e III, que fica na zona urbana, no centro de Teixeira
de Freitas. É importante ressaltar que esse profissional é sempre elogiado por
aqueles que confirmaram suas visitas, que falam de seu profissionalismo e
prestatividade, pois ele costuma trazer-lhes resultados de exames e avisar so-
bre consultas ou procedimentos a serem realizados.
Ao responderem sobre problemas de saúde, 37 (54,41%) entrevistados afir-
maram sofrer algum acometimento em sua saúde, como hipertensão arterial,
problemas de coluna e diabetes. Outras muitas doenças são citadas e deman-
dam exames laboratoriais, como colesterol elevado e anemia, além de doenças
cardíacas, glaucomas e transtornos mentais, como ansiedade e depressão.
Muitos beiradeiros, 26 deles (38,23%), se referem a esses mesmos ESF Rural
II e III, já mencionados, quando perguntados sobre a qual unidade de saúde
costumam se dirigir. Os demais mencionaram outras unidades espalhadas pela
cidade, assim como a do distrito de Santo Antônio. Perguntados sobre como
chegam às unidades de saúde, 25 responderam que vão de ônibus, 11 se loco-
movem de carro, 10 de bicicleta, 8 vão andando, 9 de moto e 5 informam que
vão de ônibus escolar.

à b e i r a da v i da 97
Quando visitamos a ocupação nº 20, o morador contou que funciona
como um local de apoio para atendimento da equipe de ESF. Em visita ao re-
ferido posto na zona urbana, o enfermeiro responsável pela equipe da ESF II,
Jorge, confirmou a informação do beiradeiro, acrescentando que as visitas são
mensais, para viabilizar o acesso das pessoas da estrada aos serviços de saúde
do município. A equipe é composta por profissionais de saúde, incluindo um
médico e, algumas vezes, um dentista. Há um cronograma de atendimentos,
além da distribuição de medicamentos, mensalmente afixado no mural inter-
no do posto. Os casos mais complexos são encaminhados para o posto fixo na
zona urbana ou mesmo inseridos na rede de saúde via regulação. Apesar de a
pesquisa identificar que 85,3% dos entrevistados possuem o cartão do SUS, cri-
tério preferencial para acesso à rede pública de saúde no Brasil, os beiradeiros
relatam que o acesso é difícil e demorado.

Conclusões
O presente capítulo pretendeu trazer ao conhecimento do público leitor uma
população até então praticamente desconhecida, invisível aos olhos do Estado,
e que vive em condições de extrema vulnerabilidade social, não obstante o po-
der público municipal garantir o acesso das crianças à educação fundamental,
ao Bolsa Família e ao SUS. No entanto, falta ainda a garantia de acesso a di-
reitos e a políticas públicas sociais – energia, saneamento básico, moradia, se-
gurança alimentar, renda básica etc. –, o que poderá ser um marco diferencial
na ampliação da qualidade de vida dessa população. A ocupação irregular não
pode ser justificativa para que as políticas públicas que a sociedade contempo-
rânea foi capaz de produzir não alcancem os beiradeiros.
Ao traçar o perfil dos beiradeiros, observa-se que são posseiros oriundos,
em sua maioria, do interior da Bahia (79,4%), sendo que 14,7% dos entrevista-
dos nasceram em Teixeira de Freitas e 64,7% nasceram em outras cidades do
extremo sul da Bahia próximas a Teixeira de Freitas. Os motivos pelos quais os
beiradeiros ocupam as margens da rodovia são reveladores da vulnerabilidade
social em que vivem. Tomando por base as respostas a essa pergunta, vimos
que 37% dos entrevistados foram morar na beira da estrada por não conse-
guirem pagar o aluguel, e 10,2% consideram que morar na beira da estrada
tornou possível a subsistência da família, isto é, o acesso a itens alimentares

98 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


a partir do cultivo próprio, o que na cidade seria improvável, seja por falta de
recursos, seja por falta de terra para plantar. Entre os entrevistados, 8,8% ale-
garam o desemprego como o principal motivo para morar na beira da estrada,
o que talvez explique o aumento de moradores após o término da pesquisa, em
setembro de 2019. Por fim, 44% dos entrevistados justificaram “ser da roça”,
“gostar da roça” como motivo principal para estar na beira da estrada. E aqui
é preciso compreender que esses indivíduos, mesmo possuindo moradias na
cidade, preferem morar na beira da estrada, pois é assim que conseguem estar
na “roça”, posto que, como proprietários de terras na região, isso seria impos-
sível para eles.
Nessa perspectiva, mesmo com todas as externalidades negativas, os beira-
deiros constroem um modo de vida sui generis, estabelecendo entre eles laços
de reciprocidade e rede de afetos, interagindo em comunidade, compartilhan-
do conhecimentos, recursos, pertencimento e proteção mútua e reproduzindo
suas próprias vidas. Mesmo os que não são agricultores descobriram na beira da
estrada uma forma de suprir as necessidades de trabalho, moradia, o bem-viver
e a paz que, na zona urbana, eles não identificam mais. Quando a maioria dos
beiradeiros (95,6%) diz que só sairia para outro local “de roça”, eles traduzem
o desejo de serem reconhecidos como uma população rural, almejando viver
entre parâmetros de cidadania e dignidade humana.

Referências

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extremo sul da Bahia. 2019. 1 fotografia. Fotografia Acervo da Pesquisa.

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100 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Novas ruralidades no distrito do Vale Verde:
para além do rural e do urbano

Ivaneide Almeida da Silva


May Waddington Telles Ribeiro

Vale Verde: entre o rural e o urbano


É fácil encontrar informação ou alguma referência sobre o Vale Verde como
uma “comunidade rural” ou uma “típica vila rural”,1 pelo fato de que, por ser
hoje classificado como um distrito, subentende-se como um espaço rural.
Originalmente, foi constituído como o Aldeamento Jesuítico Espírito Santo
dos Índios e, com as reformas pombalinas, foi transformado em vila – a Vila
Verde. De meados do século XIX até o ano de 1917, foi constituído como muni-
cípio, sendo extinto por meio da Lei Estadual nº 1.190, de 28 de maio de 1917, e
incorporado como distrito ao município de Porto Seguro, passando a ser cha-
mado de Vale Verde.2
O distrito do Vale Verde é entendido como uma localidade rural, apesar da
intensa dinâmica enquanto aldeamento, vila, município e depois simplesmente
como distrito. Mais recentemente, as transformações do distrito do Vale Verde
incitam a pesquisa acadêmica sobre o meio rural e as dinâmicas contemporâ-
neas verificadas nesse espaço. É importante conhecer aspectos e características
dessas mudanças, contribuindo para o debate teórico e para a formulação de
políticas públicas adequadas a essas transformações. É fundamental que a

1 Ver blog do Parque Nacional do Pau Brasil em: http://parnadopaubrasil.blogspot.com/p/o-extre-


mo-sul.html. Acesso em: 26 mar. 2020. Ver também reportagem do jornal A Gazeta da Bahia em:
http://www.agazetabahia.com.
2 Ver histórico de Porto Seguro. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br. Acesso em: 26 mar.
2020.

101
legislação dedicada às áreas rurais reconheça a pluriatividade no campo e esteja
familiarizada com a realidade do novo rural no Brasil.
O contato estabelecido com membros das associações de moradores e agri-
cultores, com os produtores agrícolas e não agrícolas, as visitas, observações e
o acompanhamento de atividades nas comunidades desse distrito possibilita-
ram refletir sobre as mudanças e transformações ocorridas na localidade.3 Isso
nos levou a indagar, afinal, o que vem a ser o rural e de que modo essa definição
serve para pensar a realidade do Vale Verde, inserindo-nos em uma discussão
crítica que se atualizou nas últimas décadas no Brasil.
Sumariamente, o rural corresponde ao que não é urbano, e sendo defini-
do em oposição e juntamente ao urbano, como na separação entre campo e
cidade, contrastam-se particularidades que os distinguem entre si. Ao rural/
campo, são atribuídas características como a falta, a escassez e o atraso em
um espaço exclusivamente associado à atividade agrícola. Considera-se que a
organização social de quem ali vive apresenta uma relação mais íntima com
a natureza, com baixa densidade demográfica e constituindo um pequeno
universo autárquico e comunitário, tal qual o Gemeinschaft (comunidade) de
Tönnies, em que valores tradicionais e religiosos fundamentam uma sociabi-
lidade baseada em relações de interconhecimento. O urbano, representado
pela cidade, em contraposição, seria o lugar da Gesellschaft (sociedade), a qual
Tönnies (1947 apud BRANCALEONE, 2008, p. 99) aponta como a sociedade
diversa e impessoal das relações burocratizadas, que floresce junto às fábricas,
indústrias e ao comércio.
Embora esse entendimento tenha sido problematizado nas últimas déca-
das por vários analistas, a abordagem dicotômica entre o rural/urbano não está
superada, restando ainda a necessidade de entendermos como as diferenças
entre os dois espaços têm se modificado, com a aceleração tecnológica e com
as mudanças territoriais, para que interpretações hegemônicas simplificadoras
não impeçam o entendimento da sociedade imbricada e complexa que se de-
senha. Segundo Silva (1997, p. 43), por exemplo, as diferenças entre o rural e o

3 O distrito do Vale Verde é um campo de estudos e interesse do grupo de pesquisa e extensão


Dinâmicas Territoriais, Etnicidades e Ruralidades Contemporâneas (Diterc), da Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB), que, ao longo dos anos de 2016 a 2019, promoveu nessa localidade
diversas incursões, em que estudantes desenvolveram pesquisa de campo e levantamentos de da-
dos sobre o local, suas comunidades, seus moradores e diversas atividades ali desenvolvidas. Esse
esforço tem resultado em trabalhos de graduação e pós-graduação concluídos e em andamento
sobre diferentes temáticas relacionadas ao distrito.

102 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


urbano deixam de ser relevantes quando ambos passam a ser entendidos espa-
cialmente como um continuum e percebe-se que, economicamente, “as cidades
não podem mais ser identificadas apenas com a atividade industrial, nem os
campos com a agricultura e a pecuária”.
As definições contrastivas entre o rural e o urbano estão relacionadas aos
“mitos do rural brasileiro”, tais como: o rural como sinônimo de atraso; como
majoritariamente agrícola; como espaço do êxodo, por isso com baixo índice
demográfico; e o desenvolvimento rural como exclusivamente agrícola. (SILVA,
2001) Tais mitos4 estão coadunados com as definições das instituições políti-
co-administrativas oficiais do Estado, com objetivos puramente estatísticos e
administrativos, a exemplo do critério do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), o qual aponta:

A situação urbana abrange as áreas, urbanizadas ou não, correspon-


dentes às cidades (sedes municipais), vilas (sedes distritais) ou áreas
urbanas isoladas; a situação rural abrange toda a área situada fora
desses limites, inclusive os aglomerados rurais de extensão urbana,
os povoados e os núcleos. [...] Este critério é também utilizado na
classificação da população urbana e rural. (IBGE, 2019, p. 102)

Esses critérios levam em conta, tipicamente, as atividades econômicas


desenvolvidas, a infraestrutura e os limites geográficos, sendo consideradas
como áreas urbanas as cidades e vilas com construções, ruas, calçamentos e
infraestrutura de serviços, além das áreas chamadas de “extensão urbana”.5 Já
o rural é caracterizado pela falta, escassez e carência daquilo que existe no ur-
bano. Pensando nos interesses fiscais, administrativos e nas políticas públicas
de programas governamentais, essa definição contrastiva pode conter arbi-
trariedades, se não levar em conta a complexidade atual desses territórios em
consideração.
Segundo Veiga (2005), deve-se considerar o rural enquanto setorial, e não
apenas territorial. Para esse autor, os programas governamentais correm o
risco de aplicar o critério de classificação das áreas urbanas do IBGE, destaca-
do anteriormente, considerando as pequenas sedes de municípios e as sedes

4 Sobre os mitos do rural brasileiro, ver: Carneiro (2008), Silva (2001) e Veiga (2006).
5 Segundo Laurenti e Del Grossi (2008), o IBGE classifica o município em áreas rurais e urbanas, e,
entre as áreas rurais, há uma subdivisão. Uma delas é a “extensão urbana”, que é a área urbanizada
adjacente ao perímetro urbano.

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 103


distritais, a exemplo do Vale Verde, como áreas urbanas com status de cidade,
igualando-as aos núcleos de regiões metropolitanas ou aos centros regionais.
Veiga (2005) apontou, na época, como tais critérios inflaram as estatísticas de
urbanização do Brasil, reputando ao país mais de 80% de área e população
como urbanas. Contudo, para o autor, parte significativa desses habitantes
vive em determinados espaços que têm mais feições de vilas, povoados ou al-
deias do que precisamente de cidades. Assim, defende que o Brasil não é tão
urbano quanto as instituições político-administrativas apontam, pois muitas
das áreas consideradas urbanas no país apresentam dinâmicas sociais, políticas
e econômicas que têm muito mais de rural do que de urbano.6 Por isso, acre-
ditamos que se faz necessário pensar, caso a caso, as contradições entre a vida
nas cidades e nas pequenas vilas ou fazendas nos tempos atuais, com distâncias
e temporalidades abreviadas e comprimidas, pois as cidades não são homo-
gêneas e suas diferenças afetam e são muitas vezes construídas pelas relações
estabelecidas com o meio rural.
Infelizmente, o intervalo considerado entre o rural e o urbano não é mo-
nopólio de instituições públicas ou “agências elaboradoras de estatísticas”, mas
também de alguns estudos clássicos das ciências humanas e sociais, como tam-
bém do senso comum e dos representantes dos setores rurais defensores do
agronegócio, que ainda aludem ao rural como o local da escassez, do atraso e
do êxodo. Essa distinção também se estende acerca do modo de vida ou das re-
lações de trabalho de suas populações, como descreve Carneiro (2008, p. 13-14),
apontando para suas consequências:

A figura do agricultor permanece emblemática na representação


do campo no imaginário dos pesquisadores, e no dos habitantes da
cidade e dos ‘neo-rurais’ [...]. No entanto, permanece a ideologia,
que se expressa também em um tipo de política, que continua a
identificar as zonas rurais às atividades agrícolas, como uma ima-
gem consensual que se impõe a todo e qualquer tipo de realidade.

6 Apesar de contrapor os limites do rural e do urbano, Veiga (2005) ainda debate as definições con-
ceituais desses espaços, buscando entender as dinâmicas de cada um. Para o autor, o rural não
abrange somente aquelas áreas que estão fora do contorno oficial dos municípios, mas também
áreas de baixa intensidade demográfica que apresentem um menor grau de “artificialização dos
ecossistemas”, embora sejam apresentadas como urbanas.

104 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Para a autora, a ideia da cidade em oposição ao campo, considerados dis-
tintos e contrastantes, também é reforçada por orientações metodológicas que,
ainda que problematizem7 aquilo que define um ou outro espaço, a constituem.
Como exemplo, Carneiro (2008) complexifica o debate sobre a dualidade entre
campo e cidade que ocorre na sociologia rural, afirmando que, ao mesmo tem-
po em que este reduz o rural às atividades agrícolas, apresenta expectativas do
seu direcionamento à modernização, como se a agricultura alcançasse sua vo-
cação através do processo de urbanização. Sob essa ótica, ou o rural adquiriria
aparência urbana e desapareceria, ou o campo agregaria novas atividades com
a entrada de parcelas de populações urbanas, ou, ainda, ocorreria o empreen-
dimento de atividades não agrícolas pelas populações locais rurais.
O que Carneiro (2008) propõe é pensar como se alteram cada um desses
ambientes a partir de características próprias e verificáveis empiricamente – ao
invés de opor campo e cidade com características abstratas e rígidas –, para daí
entender o mundo rural em sua constante construção e para apreender a sua
“diversidade de dinâmicas e atores sociais” em seu avizinhamento e intercâm-
bio com as cidades. Dessa maneira, propomos pensar o Vale Verde a partir de
suas múltiplas atividades, significações e novos conteúdos sociais.
Para Pérez (1998), o rural se constrói socialmente, está e sempre esteve
submetido a um contínuo processo de transformação. Em outros termos, os
territórios rurais passam por mudanças, mas não necessariamente desapare-
cem ou assumem fisionomia urbana. Determinadas mudanças ocorrem por
influências locais e circundantes, ocasionando ou até facultando manutenção,
sobrevivência ou recriação de características do rural aqui discutido. O que se
percebe é que, cada vez mais, há uma imbricação entre o urbano e o rural, tor-
nando imperativos novos conceitos e categorias que sejam capazes de explicar
essas novas realidades oriundas das mudanças ocorridas no campo.
Isso posto, Carneiro (2008) traz à tona a possibilidade de olharmos para o
mundo rural e enxergarmos uma variedade de espaços socialmente habitados,
nos libertando da noção de dualidade do modelo modernizador do campo.
Nesse sentido, a autora atesta a “heterogeneidade crescente dos espaços ru-
rais” para “interpretar os processos reais de diferenciação espacial” no rural e,

7 Estudar o sistema de valores existente no imaginário social, ou seja, compreender o rural ou interpre-
tar a esfera do rural a partir do seu interior. (GIORDANO, 1989, p. 410 apud CARNEIRO, 2008, p. 23)

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 105


sobretudo, entender a diversidade e heterogeneidade de seus atores, classes
sociais e seus interesses.
Se, de acordo com as definições político-administrativas, o Vale Verde é
um distrito rural, por outro lado, sua sede/núcleo é considerada área urbana,
segundo o IBGE e o Plano Diretor Municipal Participativo de Porto Seguro de
2018.8 No entanto, para esta análise, importa compreender a composição das
diferentes atividades nos territórios do distrito, além das relações entre sua
sede e as pequenas localidades do entorno. Para vermos como a implantação
de diferentes atividades econômicas influencia a dinâmica interna do distrito,
construindo ou reconstruindo esse “rural”, é necessário notar dois aspectos:
1. sua distância de outros centros “urbanos” dos distritos – Vera Cruz, Arraial e
Trancoso –, de Eunápolis e Porto Seguro, além das características desses cen-
tros; 2. o registro dos processos econômicos e sociais contemporâneos que
envolvem esse distrito, tais como o agronegócio (Eunápolis), os assentamentos
(Vera Cruz) e o turismo de luxo (Trancoso e Porto Seguro).
Constatamos que esse “distrito rural” não é constituído apenas de ativida-
des agrícolas, nem se configura como fornecedor de matérias-primas ou mão
de obra para as cidades ou para centros urbanizados, mas apresenta um con-
junto de atividades econômicas não agrícolas, muitas delas desenvolvidas por
famílias de moradores nativos e imigrantes, que alimentam as transformações
naquela localidade. Parte da diversidade de atividades desenvolvidas ali cons-
titui-se a partir da demanda da indústria cultural e do turismo na região pelo
fato de o Vale Verde dispor de patrimônio cultural, arquitetônico e natural, sa-
beres tradicionais, produtos artesanais locais – beiju e cachaça – e festividades
tradicionais e coletivas.
Embora o Vale Verde não concorra com a atenção dos visitantes e turistas
que frequentam os distritos do município de Porto Seguro, que compõe os
destinos do turismo de praia, encontra-se à margem da BA-001, na rota de
passagem entre a sede do município e os distritos mais procurados. A forma
como essa falta de “atrativos” pode vir a ser registrada em estatísticas oficiais,

8 O Plano Diretor Municipal Participativo de Porto Seguro cita a sede do distrito de Vale Verde como
urbana: “As intervenções situados na área compreendida entre a Rodovia BA-001 e o Vale do Rio
Buranhém, em um raio de 2,00 km (dois quilômetros) da Praça Central da sede, deverão ser objeto
de análise pelo IPHAN e de aprovação pelo CONCIDADES, ou outros conselhos que venham a ser
criados para opinar, apreciar as diretrizes estratégicas, prioridades e instrumentos para a política
de desenvolvimento urbano de Porto Seguro”. (PORTO SEGURO, 2006, grifo nosso)

106 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


por exemplo, pode escamotear uma intensa atividade de circulação e de um
turismo religioso e orgânico, que contribui para a organização social local.
Uma investigação mais aprofundada revela que a sede do distrito não
apenas faz parte de um circuito antigo e tradicional de romarias e festejos
religiosos, como também mantém uma intensa vitalidade de visitações e inte-
ração social entre as suas diferentes localidades, através das práticas católicas
de missas, procissões, celebrações e festas. A sede do Vale Verde centraliza os
festejos da Paróquia do Divino Espírito Santo, formando um polo que reúne as
localidades e comunidades do distrito, como Santa Rita, Bom Jesus, São João
Batista, São Miguel e Nossa Senhora da Aparecida, além da participação de
circuitos religiosos maiores que abrangem distritos vizinhos, como Trancoso,
Vera Cruz, Itaporanga e até distritos dos municípios de Santa Cruz Cabrália e
Eunápolis, inclusive São Mateus, no Espírito Santo.9
No que diz respeito aos modos de viver, aos padrões e às experiências de
vida, consumo e moradia, muitos moradores do Vale Verde, tanto da sede do
distrito como das demais áreas, usufruem de todas as trivialidades da vida ur-
bana, tais como casas equipadas com banheiro, cozinha com geladeira e outros
eletrodomésticos; áreas de serviço, algumas com máquina de lavar roupa; salas
com televisão; automóveis particulares; e a maioria das propriedades pos-
sui internet para facilitar a comunicação. Isso significa que, em todas essas
situações, os moradores do Vale Verde atingiram os padrões da maioria dos re-
sidentes das áreas urbanas, preservando, todavia, as relações mais equilibradas
com o ambiente e os padrões de sociabilidade característicos do Gemeinschaft,
as suas interações diretas e pessoais,10 com fortes valores e estratégias de tra-
balho familiar.

9 A comunidade de Nossa Senhora da Aparecida do distrito do Vale Verde é formada principalmente


por imigrantes capixabas que chegaram à região na década de 1970. Os dados foram fornecidos
através da Associação dos Pequenos Produtores do Projeto Vale Verde (ACPROVEM). Para mais
informações sobre esse conteúdo, ver: Silva (2019).
10 Sobre os padrões de relações comunitárias e as relações sociais de interconhecimento, caracte-
rísticas de ambientes rurais, há o ocorrido nas festas religiosas de janeiro de 2020 na sede do Vale
Verde. As festas de São Sebastião, São Braz e Nossa Senhora do Rosário são realizadas aproxima-
damente no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião. A festa é organizada por moradores da sede do
Vale Verde. Na ocasião, são levantados três mastros com imagens dos santos homenageados, que
ficarão ali durante todo o ano, até a próxima comemoração. Nesse ano, a festa foi marcada para o
sábado, 18 de janeiro, quando ocorreu o falecimento de um morador muito conhecido no distrito.
Por isso, a festa foi adiada para o sábado seguinte, dia 25 de janeiro, quando novamente ocorreu
um falecimento, dessa vez do pai de uma professora local, e, por essa razão, a festa foi adiada mais
uma vez para o sábado seguinte, dia 1º de fevereiro, quando ocorreram os festejos.

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 107


Os estudos no Vale Verde poderão nos ajudar a entender como e até que
ponto o recorte rural/urbano, nesse caso específico, pode servir para caracteri-
zar diferenças espaciais e sociais das sociedades contemporâneas, além de até
que ponto as transformações do mundo rural determinarão o seu fim ou possi-
bilitarão a existência de outras realidades no mundo rural, que alguns de nossos
autores chamam de “novas ruralidades” ou ruralidades contemporâneas.

As novas ruralidades: os novos contornos do rural no


distrito do Vale Verde
O espaço rural apresenta expressivas transformações nas últimas décadas, no
Brasil e no mundo, em suas funções, suas práticas e sua população. As suas
dinâmicas ocorreram ininterruptamente, mesmo com velocidades e caracte-
rísticas diversificadas devido aos processos históricos heterogêneos. Ao exami-
narmos o contexto das transformações mais recentes no espaço rural, menos
remoto e mais adjacente, recordamo-nos de Wanderley (2000), que ressalta
que os processos de diversificação social a partir de influências e intercâmbios
com o meio urbano podem perder o caráter de antagonismo quando essa rela-
ção rural/urbano passa a ser de complementaridade. Isso nos obriga a buscar
diferentes conceitos para poder incluir o dinamismo e as novas configurações
com as quais os atores sociais dos espaços rurais convivem e interagem com
novos atores e buscar quais práticas ou formas de vida que lhes são peculiares,
quais são mantidas e quais se diversificam. Nessa direção, ao examinarmos o
distrito do Vale Verde, vamos pensar as especificidades e os contornos desse
rural mais acessível, mais próximo e adjacente ao urbano, que pode albergar
novas combinações socioeconômicas, reduzindo e comprimindo o abismo en-
tre os dois espaços.
Como as dinâmicas do distrito do Vale Verde claramente ultrapassam a
dualidade contrastante e opositora entre o rural e o urbano, para dar conta das
atividades econômicas e sociais que ocorrem nesse distrito e em outros espa-
ços rurais, utilizamos o que Carneiro (2008) denomina de “novas ruralidades”.
A autora nos auxilia a enxergar novas configurações e novos atores sociais no
espaço rural quando questiona:

[...] até que ponto o esgotamento do modelo modernizador nos


possibilitou um olhar crítico no sentido de nos liberarmos da

108 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


imagem hegemônica do rural como espaço da tradição e imper-
meável a mudanças e, assim, passamos a reconhecer, também no
chamado mundo rural, uma diversidade de dinâmicas e de atores
sociais. (CARNEIRO, 2008, p. 16)

A autora afirma que não é o caso de abolir ou reafirmar o uso das catego-
rias rural e urbano, completando:

[...] seria mais prudente, em vez de tentarmos redefinir as frontei-


ras do rural e do urbano ou, mais simplesmente, de ignorarmos as
diferenças culturais compreendidas nesses amplos rótulos, orien-
tarmos nossos esforços para a busca dos significados das práticas
sociais que tornam operacional esse tipo de interação (e distinção)
a partir do olhar dos atores sociais. (CARNEIRO, 2008, p. 28)

Então, é possível pensar que o rural, definido por classificações sociológi-


cas, pode não ser mais explicado a partir da dicotomia com o urbano, nem se
equiparar com este. Assim, nem suas transformações o desconfiguram, e suas
características físicas, estratégias econômicas e dinâmicas culturais podem ser
mantidas, mesmo acessando recursos tecnológicos e institucionais novos. É o
caso, por exemplo, de uma família de agricultores imigrantes especializados
no plantio do café, cujos filhos prosseguem na atividade agrícola em distritos
vizinhos, e todos acessam internet, possuem telefonia móvel, utilizam recur-
sos bancários e possuem membros da família na educação superior em Porto
Seguro.11 Assim começamos a entender o distrito rural do Vale Verde, que, de
acordo com o proposto aqui apresentado, poderá ser pensado a partir dos no-
vos contornos do rural ou das novas dinâmicas da ruralidade.
Wanderley (2000) apontou alguns elementos que reduziram a migração
do campo para as cidades e atraíram grupos para o meio rural, tais como:
ampliação dos meios de transporte e comunicação; fomentos e incentivos ao
desenvolvimento local e regional; e o aumento da ocupação da sua população
com atividades não agrícolas. A fabricação da farinha e as estratégias familiares
de comercialização nas feiras são comuns entre os moradores mais antigos e
tradicionais do território do Vale Verde, cujos filhos e netos prosseguem na ati-
vidade, formando pequenos povoados especializados nessa produção – como

11 Em instituições públicas federais, como a UFSB e o Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia da Bahia (IFBA), campus Porto Seguro.

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 109


Bom Jesus, por exemplo –, enquanto alguns membros assumem ocupações
como a de motoristas e funcionários públicos municipais. Outro exemplo está
em integrantes familiares assentados do Pré-Assentamento Santa Maria12 que
se formam em Pedagogia e trabalham como professores ou agentes de saúde
na região.
Muitas áreas tidas como rurais no Brasil compartilham o espaço entre
atividades agrícolas e uma mescla de outras atividades ligadas à prestação de
serviços, empregos públicos, lazer e pequenas indústrias. Os estudos do rural
brasileiro foram atentos à advertência de Mendras (1984 apud WANDERLEY,
2000, p. 98) quanto ao que poderia se constituir como “a morte do campesi-
nato”: “[...] haverá cada vez menos agricultores no campo porque a população
agrícola ativa diminui mais rapidamente do que a população rural”. No en-
tanto, mesmo na situação em que a área rural não se restringe mais somente
às atividades agrícolas ou pecuárias, acomodando novas atividades econômi-
cas não agrícolas e oportunizando trabalho e renda para as famílias em novos
papéis sociais, o que se configura é que muitas das dinâmicas sociais perma-
necem informadas pelos valores da família, com suas redes de solidariedade, e
pelo valor do trabalho, que congrega os resultados produtivos, característicos
do campesinato.
Podemos observar com alguma nitidez, no Vale Verde, a dinâmica da pluria-
tividade se estabelecendo na medida em que o mundo rural, economicamente,
engloba mais do que o agrícola, incorporando pequenos empreendimentos que
contribuem com a renda familiar ou que se revelam, muitas vezes, mais rentá-
veis do que a produção agrícola tradicional. Como exemplo, podemos relatar
sobre famílias que têm como principal renda a fabricação de beiju, produção
que ali é gerenciada por mulheres, mas cujas filhas ou netas não se dedicaram
à atividade e investiram em empregos públicos. A diversificação das ativida-
des agrícolas pode ter como uma das causas a baixa nos preços dos produtos
agrícolas, mas verificou-se que muitas das famílias não abandonam a atividade
principal, o negócio da família – seja o café, a farinha ou o beiju –, mesmo que
estejam buscando cada vez mais outras ocupações, conciliadas com as agríco-
las, para melhoria da renda familiar e para a sua permanência no campo.

12 O Pré-Assentamento Santa Maria constitui-se de pequenos agricultores familiares ligados à


Associação de Produtores Rurais Unidos Venceremos (Aprunve) e está localizado na Fazenda Santa
Maria, fronteira entre o distrito do Vale Verde e Arraial d’Ajuda.

110 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


O distrito do Vale Verde tem sua população composta por moradores na-
tivos, imigrantes e assentados da reforma agrária que são, em sua maioria, do
entorno, de outras regiões da Bahia e de outros estados. Inclusive, há um grupo
significativo de camponeses, produtores de café e pimenta-do-reino, oriun-
dos do Espírito Santo, conhecidos localmente como “os capixabas”. (SILVA,
2019) Famílias chegaram e fixaram-se, constituindo novos núcleos, como Bom
Jesus, Nossa Senhora da Aparecida, São Miguel, Santa Rita e o Projeto Vale
Verde,13 que fazem parte do distrito do Vale Verde e localizam-se no entorno
do Parque Nacional do Pau Brasil.14 Nessas localidades, há produtores rurais
que se especializaram na produção de café e pimenta-do-reino, vendidos para
cooperativas no Espírito Santo. Os produtores menores, em geral nativos ou
assentados da reforma agrária, apresentam uma produção mais diversificada,
na qual se destacam a mandioca, a horticultura, a fruticultura e as produções
de farinha, beiju e outros derivados da mandioca, sendo a maior parte para
comercialização nas feiras e mercados urbanos do entorno.
Entre as famílias que ocupam a sede, principalmente, a produção de ca-
chaça foi muito expressiva desde a década de 1970 e, atualmente, prossegue
entre pelo menos cinco famílias. Outras tantas se especializaram na fabrica-
ção de beijus, muito populares na região; e mesmo os produtores de café e
pimenta-do-reino já complementaram a renda com o turismo rural. Assim,
vemos que muitas famílias locais têm associado a produção agrícola com ou-
tros investimentos e outras ocupações. O distrito do Vale Verde, portanto, está
diversificado, pois ali coabitam pequenas indústrias, serviços e vias de comu-
nicação ao lado dos empreendimentos agrícolas, que oferecem outras opções
e alternativas profissionais sem, no entanto, deixar de ser a agricultura uma
ocupação prioritária.
Os depoimentos dos moradores nativos da sede do distrito demonstram
que o asfaltamento da BA-00115 marca na memória dos antigos moradores a

13 O Projeto Vale Verde é o assentamento agrícola mais antigo do Vale Verde, criado em 1982 pelo
Governo do Estado da Bahia, por meio da Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR).
Sobre a política de assentamentos no Brasil, ver: Santos, Ribeiro e Santos (2011).
14 Parque Nacional do Pau Brasil, no município de Porto Seguro, criado pelo decreto de 20 de abril de
1999.
15 A BA-001 é uma rodovia que percorre o litoral da Bahia, ligando o litoral sul até a Ilha de Itaparica,
fazendo integração com a capital do estado através do sistema do ferryboat. É constituída por
trechos não conectados, interrompidos na foz dos rios. No município de Porto Seguro, ela interliga
a BR-367 aos distritos do Vale Verde, Arraial d’Ajuda, Trancoso e Caraíva. (ARAUJO, 2004)

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 111


chegada dos primeiros forasteiros, na figura dos técnicos e trabalhadores da
estrada. A rede viária também acelerou, sobremaneira, a extração e exportação
de madeiras no distrito em estudo, incentivando, por sua vez, a chegada dos
capixabas produtores de café à região. A maioria desses imigrantes pioneiros
relata ter tido experiências anteriores, na juventude, na atividade madeireira,
inclusive na região amazônica. E, seguindo um padrão comum em outras re-
giões, a extração da madeira precedeu à implantação da atividade agrícola na
região para as famílias de imigrantes capixabas, que adotaram o cultivo do café
seguindo o modelo das famílias no Espírito Santo.
A implantação da rede viária propiciou, especialmente, a exploração turís-
tica, que logo se consolidou como a principal atividade econômica da região,
em especial do município de Porto Seguro. O distrito do Vale Verde é cortado
pela BA-001, que conecta os importantes destinos turísticos de Arraial d’Ajuda
e Trancoso à BR-367.16 A pavimentação desse trecho chegou no início da década
de 1970 e, com ela, o incremento das atividades do turismo, com a emergência
de algumas atividades econômicas que surgiram a partir das novas dinâmicas
que envolveram todo o município.
A abertura e o asfaltamento da BA-001 e o movimento turístico da sede do
município e de outros distritos fizeram surgir, em Vale Verde, dinâmicas que
contribuíram para diversificar as atividades econômicas. Apesar de o distrito
não ter se constituído como destino turístico, aproveitou suas arestas em ati-
vidades do setor terciário, com serviços que geram renda a partir de vendas na
beira da BA-001, a venda de produtos nas feiras de Arraial d’Ajuda, Trancoso
e Porto Seguro, do emprego em hotéis, em oficinas mecânicas ou em casas de
família, assim como o trabalho como caseiros,17 jardineiros e pedreiros.
A sede do distrito do Vale Verde, área de ocupação mais antiga da locali-
dade,18 também teve a pesca de camarão como uma das atividades econômicas
mais importantes, mas se extinguiu devido à deterioração do Rio Buranhém
em função da dragagem promovida nos anos de 1970. Atualmente, a produ-
ção agrícola, as pequenas indústrias alimentícias, como a cachaça, o beiju e

16 Esta, por sua vez, conecta o município de Porto Seguro à BR-101.


17 “E o caseiro: é um trabalhador rural ou um empregado doméstico?” – questionamento feito por
Izique (2000) que nos permite refletir como são entendidas as novas ocupações rurais.
18 A sede do distrito do Vale Verde tem como centro o Quadrado do antigo Aldeamento Jesuítico do
Espírito Santos dos Índios, da capitania de Porto Seguro. Ver: Silva (2013) e Cancela (2012).

112 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


a cocada, os empregos públicos e o comércio contribuem para a geração de
renda dos moradores locais, além das aposentadorias e Bolsa Família. Naquele
núcleo/sede, vivem aproximadamente 307 famílias, organizadas em associação
desde a década de 1980, constituindo a Associação de Moradores e Amigos de
Vale Verde e Entorno (Asvale).
Se nas áreas rurais do distrito do Vale Verde encontram-se as roças de
produção agrícola, tendo como destaque a produção de mandioca, hortaliças,
mamão, café, pimenta, cana e cacau, entre outras produções (SILVA, 2019),
moradores da sede também possuem roças nas adjacências e também parti-
cipam das vendas nas feiras de Arraial d’Ajuda, Trancoso e Itaporanga, assim
como na sede do município de Porto Seguro e em Eunápolis. As atividades
agrícolas e as não agrícolas, como essas indústrias de transformação, aconte-
cem a partir do trabalho familiar, tendo a família como unidade de produção e
trabalho, e algumas delas em sistema cooperativado.19 A farinha, o beiju e a ca-
chaça, produtos tradicionais do distrito do Vale Verde, são muito procurados e
comercializados ali mesmo no distrito e nas outras localidades rurais e urbanas
próximas e no entorno, como nas feiras, mercados, pontos de turismo e hotéis,
especialmente em razão da movimentação turística local e regional.
Na sede do distrito do Vale Verde, podemos verificar como são diversifica-
das as atividades não agrícolas:
Tabela 1 – Estabelecimentos e atividade da sede do distrito do Vale Verde, 2020

Estabelecimentos/atividades Quantidade

Comércio

Mercados 3

Lojas de material agrícola e de construção 2

Farmácias 1

Lojas de roupas e acessórios 1

Cachaçarias 1

Postos de gasolina 1

Lojas de conveniência e serviços de internet 1

19 Embora a Cooperativa Agrícola Mista dos Produtores do Vale Verde (Coprovale) esteja, atualmen-
te, desativada, o sistema ainda tem características de cooperativismo, especialmente na produção
da farinha.

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 113


Estabelecimentos/atividades Quantidade

Indústrias de transformação

Fábricas de lajes 1

Fábricas de blocos 2

Carpintarias 1

Alambiques – fábricas de cachaça 1

Fábricas de beiju 8

Alimentação

Restaurantes 2

Lanchonetes 2

Padarias 2

Bares 7

Alojamento

Resort Sparvat (pequeno porte) 1

Comércio e serviços

Oficinas elétricas e mecânicas (veículos automotores) 1

Borracharias 1

Bicicletarias 1

Academia de ginástica (atividade esportiva) 1

Espaço para festas e recepção (serviços complementares) 1

Pontos de apoio turístico e vendas de produtos locais 4

Saúde e serviços sociais

Postos de saúde (atendimento médico e odontológico) 1

Educação

Escola Manoel Ribeiro Carneiro (pública municipal) 1

Outras atividades e serviços

Igrejas 5

Associação de Moradores e Amigos de Vale Verde e Entorno (Asvale) 1

Cooperativa Agrícola Mista dos Produtores do Vale Verde (Coprovale) Desativada

Atividades científicas, técnicas e jurídicas

Cartório de Registro Civil 1

114 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Estabelecimentos/atividades Quantidade

Administração pública, defesa e seguridade social

Posto da Polícia Rodoviária Estadual 1

Fonte: elaborada pelas autoras.


Nota: elaboração a partir de dados (não publicados), 2020, fornecidos por Hudson Borges, diretor financeiro da Asvale
e administrador regente do Vale Verde. A formatação e a distribuição dos órgãos, estabelecimentos e outras atividades
têm como base a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) do IBGE.

A Tabela 1 demonstra como houve, em Vale Verde, a diversificação das


atividades econômicas. Podemos perceber também como determinadas pro-
duções agrícolas, como a mandioca e a cana, estão relacionadas às indústrias
de transformação, especialmente as fábricas de farinha, beiju e de cachaça,
que, por sua vez, apresentam interação com o comércio varejista local e regio-
nal. Essa questão é interessante para pensar como os trabalhadores e famílias
rurais podem combinar atividades agrícolas e não agrícolas, ratificando que os
distritos rurais não são marcados somente pela agricultura.
Essa combinação de atividades agrícolas e não agrícolas por trabalhadores
ou famílias rurais, como postos de trabalho mediante o recebimento de salá-
rios, pode ser entendida pela noção de pluriatividade. Ou seja, a agricultura
não se constitui mais como única renda nem ocupa o tempo integral de todos
os trabalhadores rurais. Essa noção permite analisar o resultado das ocupações
não agrícolas sobre o rendimento das famílias rurais agrícolas na melhoria da
sua condição econômica e, sobretudo, na sua permanência no campo.
Na medida em que uma família pluriativa, dona de sua produção agríco-
la, permite que membros de sua família exerçam atividades não agrícolas
assalariadas, em condições de empregados, ela está exposta a interferências nas
estratégias de trabalho familiares e em outras relações no interior do trabalho,
uma vez que as atividades não agrícolas e os novos tipos de ocupação no campo
demonstram como é diverso o destino das “ruralidades” e dos seus atores sociais.

Considerações finais
Em todo o distrito do Vale Verde, a atividade agrícola é marcante, e o interesse
na continuidade dessa atividade existe em quase todas as localidades visitadas.
Mesmo assim, praticamente todas as famílias incluem membros em atividades
não agrícolas, nas quais se destacam mulheres atuando como professoras ou

nova s rura l ida de s no di s tr i to d o va l e v e r de 115


agentes de saúde e homens jovens como motoristas, especialmente em servi-
ços públicos municipais.
Como se pode perceber, há um desenrolar de atividades não agrícolas nesse
distrito, com mostras de que as unidades produtoras são pluriativas, tanto no
centro como nas demais áreas, resultado de uma relação íntima com as ativi-
dades produtivas das áreas do seu entorno e no próprio interior do distrito.
As suas transformações não são exclusivamente agrícolas, e suas mudanças
causaram impacto nas funções e no seu conteúdo social, o que caracteriza as
chamadas novas ruralidades.
Assim, constatamos que não se pode associar o rural ao agrícola; por isso,
a classificação baseada na dualidade rural/urbano não é satisfatória para in-
terpretar o conjunto de mudanças e os impactos na realidade do distrito do
Vale Verde identificados nas últimas décadas, tais como as novas atividades no
campo, as novas ocupações e suas formas de organização.
Portanto, o debate das novas ruralidades é mais adequado para compreen-
der os contornos, as especificidades, representações e mudanças do distrito
aqui estudado, não só em suas atividades econômicas, mas também em suas
novas experiências, significados e atores sociais, permitindo entender as suas
variadas ruralidades.

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118 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Análise da Política Pública de
Desenvolvimento Territorial: participação e
multiatorialidade no extremo sul da Bahia

Patricia Ferreira Coimbra Pimentel

Introdução
Com as mudanças ocorridas nos últimos anos no Governo Federal, após 2016,
a descontinuidade de programas e o enfraquecimento de políticas públicas
têm sido comuns em áreas prioritárias de desenvolvimento social. No âmbito
das políticas de desenvolvimento rural direcionadas à agricultura familiar, esse
cenário ficou evidente. E para sustentar essa observação, se apresenta como re-
corte de estudo a estrutura da Política Pública de Desenvolvimento Territorial
(PPDT) adotada pelo governo anterior, desde 2003, em que se presumia cumprir
os três ciclos de implementação do Programa Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat) em 32 anos ininterruptos, nos 450
territórios rurais que se estimava existirem e serem organizados no país. Outro
ponto a apresentar para reflexão são os desafios da autogestão desses terri-
tórios rurais na forma institucionalizada de colegiados, formados por diver-
sos atores, a partir da observação do Território de Identidade Extremo Sul da
Bahia (Ties).
Portanto, para analisar a estrutura dessa política, revisitamos o processo de
planejamento, implementação e acompanhamento para verificar se tem sido
realizado conforme seus próprios objetivos. A metodologia para fins desta aná-
lise foi, inicialmente, a revisão bibliográfica sobre a trajetória das três etapas
da PPDT com base nos modelos de análise institucional e de processo, o que

119
permitiu visualizar como a política em tela se qualifica na pauta de análise de
política pública de desenvolvimento rural. Utilizou-se também de estudos já
realizados em outros territórios, cujas conclusões não se distanciam de práticas
locais. Além disso, coube o olhar do pesquisador a partir de vivências, observa-
ções e reflexões pela experiência adquirida no acompanhamento dessa política
durante o desenvolvimento de projeto de extensão universitária (2014-2016),
para criação do Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial (Nedet),
em que se pode avaliar a maneira de articulação e participação dos diversos
atores num novo ordenamento do Colegiado de Desenvolvimento Territorial
(Codeter), do Ties, que se iniciou naquela época. Isso nos permitiu fazer infe-
rências relativas à implementação dessa política e ao processo participativo.
Estudiosos como Majone e Quade (1980, p. 5), citados em D’Ascenzi e
Lima (2013, p. 101), afirmam que analisar políticas públicas “[...] é uma forma
de pesquisa aplicada desenhada para entender profundamente problemas so-
ciotécnicos e, assim, produzir soluções cada vez melhores”. De forma parecida,
Dewey (1927) já chamava atenção para a necessidade de cientistas investiga-
rem problemas concretos da vida social e buscarem solução para situações que
fossem percebidas como problemáticas. Rosana Boullosa (2013, 2019) aponta
para a necessidade de perceber e estudar diferentes modos de compreender
os processos de políticas públicas em geral, de explorar novos olhares e no-
vos modelos normativos que deem conta de suas complexidades e incertezas.
Portanto, na perspectiva da análise de políticas públicas, no contexto de pro-
cessos e de análise institucional, teremos como base o trabalho de Dye (2005) e
utilização da teoria da mirada ao revés (BOULLOSA, 2013) para compreender
o fluxo de atores envolvidos. Tais abordagens contribuirão para compreensão
do tema proposto.
A abordagem territorial é uma forma de analisar espaços econômicos,
sociais e culturais, organizações, atuação do Estado e atores que tornam pos-
sível, a princípio, um modelo de gestão participativa. Conforme Leite (2020),
“a política de desenvolvimento territorial [...] é vista como um exemplo impor-
tante ao enfrentar desafios e dilemas caros ao universo rural, tais como: a luta
social contra a pobreza; o combate à desigualdade; a estruturação de cadeias
produtivas e a geração de riqueza e renda social”. Do ponto de vista de polí-
ticas públicas, é também uma estratégia de desenvolvimento com respeito à
diversidade, à solidariedade e à justiça social, conseguidos com a participação

120 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


da sociedade e dos demais atores de um território. Desse modo, a PPDT será
o conceito articulador na relação com outras abordagens que serão tratadas:
modelos de análise de política pública, participação social e multiatorialidade.
Portanto, para compreender o que envolve a PPDT, o trabalho segue com
um breve histórico da política em tela, a apresentação de conceitos sobre
modelos de análise de políticas públicas com o debate que busca associar o
modelo ora implantado com os respectivos modelos revisados e, na sequência,
a apresentação e o mapeamento dos atores envolvidos no constructo dessa po-
lítica. Na discussão final, serão apresentados os pontos positivos e negativos
que indicarão sua densidade no atual contexto do desenvolvimento rural.

O caso em análise: a política de desenvolvimento


territorial no extremo sul da Bahia
O Governo Federal, em 2003, entendeu que, na perspectiva de gestão demo-
crática de modelo participativo, a política territorial, ora desenvolvida com êxi-
to em outros países, se configura numa possibilidade de conseguir atender a
sociedade em seus problemas nos campos político, econômico e social.
Dando encaminhamento para implantar esse novo modelo, o documen-
to Referência para o Apoio ao Desenvolvimento de Territórios Rurais no Brasil
(2005) foi estruturado indicando a orientação estratégica de propor a política
nacional de promoção do desenvolvimento rural com abordagem territorial,
para o desenvolvimento de regiões onde predominam agricultores familiares
e beneficiários da reforma agrária. A gestão do Pronat, por sua vez, envolveu a
articulação de políticas nacionais com iniciativas locais, numa estrutura insti-
tucional, a partir da criação da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT)
como parte do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), para atuar con-
juntamente com outras secretarias e o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Rural Sustentável (CNDRS) como órgão colegiado.
Nesse ínterim, foi formulado o Pronat no âmbito do Plano Plurianual do
Brasil 2004-2007. (BRASIL, 2005) Criou-se também o Codeter como nova ins-
titucionalidade da participação social e escuta popular, com a finalidade de
diagnosticar demandas da sociedade, propor, implementar e acompanhar as
políticas públicas de desenvolvimento rural, que passa a ser presente na agen-
da local para representação dos povos rurais. Na PPDT local, suas demandas e

a n á l ise da pol ít ica púb l ica de de s e n volv i m e n to te r r i tor i a l 121


deliberações acontecem pela organização espacial, social e cultural e pela parti-
cipação formada por representantes do poder público, privado e sociedade civil.
Nessa composição, a SDT tinha a missão de “apoiar a organização e o for-
talecimento institucional dos atores sociais locais na gestão participativa do
desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e promover a implementa-
ção e integração de políticas públicas”, bem como a construção e implementação
de planos territoriais a partir de duas linhas de trabalho: implementação do
Pronat e fortalecimento da Rede Nacional de Órgãos Colegiados, formada
pelos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Desenvolvimento Rural
Sustentável. (BRASIL, 2005)
A implementação do programa, iniciada em 2004, foi proposta em três
ciclos para contemplar todos os 450 territórios previstos existentes no país,
num período presumido de 32 anos, sendo que 15 anos seriam o tempo de con-
templar os três ciclos em cada território. Nesse processo, dentre os territórios
rurais, alguns foram caracterizados como “Territórios da Cidadania” (TCs), por
critérios socioeconômicos que mereciam atenção específica em relação aos
territórios rurais.
Em pleno desenvolvimento desse plano, com quase 280 territórios imple-
mentados, no final de 2016, o MDA foi extinto. De imediato, o processo de
investimento na política territorial foi comprometido e, consequentemente,
houve o enfraquecimento dessa política. Em meio aos esforços de grupos locais,
com apoio de governos dos estados e municípios em continuar com as ações
que já estavam em andamento, no início de 2019, o Governo Federal emite o
Decreto nº 9.784/2019, que extingue ou altera a estrutura e o funcionamento
de vários conselhos, pondo limites à participação social em políticas públicas
e fazendo com que a política territorial fique quase inativada. Entretanto, na
Bahia, toda a estrutura de gestão da política territorial permanece, por ser o
estado que desde o início incentivou tal modelo de desenvolvimento e adotou
uma política própria.
A Bahia, além de atender à demanda e apoiar a política territorial do
Governo Federal, tratou esta como uma política de estado, instituindo a Lei
nº 13.214, de 29 de dezembro de 2014, que estabelece os princípios, as dire-
trizes e os objetivos da política de desenvolvimento territorial da Bahia, bem
como os seus espaços de participação social e de relação entre as representa-
ções dos segmentos da sociedade civil e os poderes públicos federal, estadual

122 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


e municipal. (BAHIA, [201-]) Criou os territórios de identidade rural a fim de
atender às necessidades específicas dos diversos espaços do estado. Segundo
Marcelino de Jesus (2015), na Bahia, coexistem três políticas de indução à
formação de territórios: duas do Governo Federal – a primeira, por meio do
Programa Territórios Rurais (TRs), abarca 13 territórios; já a segunda política,
o Programa TCs, incorporou 9 dos 13 TRs – e uma de âmbito do governo es-
tadual, denominada Programa Territórios de Identidade (TIs), que subdividiu
todo o estado e criou 27 recortes territoriais sobrepostos aos TRs e TCs.
No processo da política territorial a nível local, inicialmente em 2004, foi
criado o Território Rural Extremo Sul, com 21 municípios. No período da im-
plementação da política com apoio do estado e mobilização local de atores
envolvidos, esse território teve o reconhecimento de TI, para se adequar melhor
às políticas de demanda rural, atendendo à diversidade sociocultural de indí-
genas e quilombolas que compõem, com outros povos, sua população. Mais à
frente, em 2014, esse território teve uma nova configuração, dividido em duas
unidades geridas por colegiados diferentes, o Território de Identidade Costa
do Descobrimento (TICD) e o Ties, sendo este último composto por 13 muni-
cípios: Alcobaça, Caravelas, Ibirapuã, Itamaraju, Itanhém, Jucuruçu, Lajedão,
Medeiros Neto, Mucuri, Nova Viçosa, Prado, Teixeira de Freitas e Vereda.
Para Pimentel e Flores (2017), esse território é caracterizado por uma diver-
sidade que se expressa pelos povos quilombolas, indígenas, tradicionais e ainda
forte influência de japoneses que imigraram para explorar a agricultura. Há
também a entrada de capital estrangeiro investido nas culturas de eucalipto,
que influenciam toda a estrutura de produção e comércio da região, impactan-
do nos aspectos culturais e sociais, mais expressivamente nos municípios de
Caravelas, Mucuri, Nova Viçosa e Prado. Por isso, há necessidade de gerenciar
as políticas para atender a essa especificidade, pois o desenvolvimento do Ties
depende da maneira como seus diversos atores participam desse processo e da
mobilização de forças internas.
Em conformidade com a proposta dessa política pública, a metodologia
de criação desse território foi desenvolvida com base no sentimento de per-
tencimento, em que as comunidades, através de suas representações, foram
convidadas a opinar. (BAHIA, [201-]) Nesse contexto, cabe a essa política
identificar prioridades temáticas definidas a partir da realidade local, possi-
bilitando o desenvolvimento equilibrado e sustentável entre as regiões. Desse

a n á l ise da pol ít ica púb l ica de de s e n volv i m e n to te r r i tor i a l 123


modo, diante do mecanismo estrutural de funcionamento da política territo-
rial, procura-se compreender: quais modelos de análise de políticas públicas
representam esse desenho? Como a sociedade civil consegue participar desse
processo no extremo sul e como se dá a ação dos diversos atores envolvidos no
processo? Em que medida se dá a efetividade dessa participação nas relações
entre as representações dos segmentos da sociedade civil e os poderes públicos
e como essa participação poderia ser melhorada?

Modelos para análise da PPDT


De maneira geral, o planejamento da política territorial foi, conforme Silva
(2012), para que as ações desenvolvidas articulassem aspectos de propostas de
políticas “de cima para baixo” (top-down), vinculadas a projetos vindos das pró-
prias comunidades que os recebem, “de baixo para cima” (bottom-up), visando
a um movimento de descentralização de decisões, de transversalidade de po-
líticas e de contínua avaliação do direcionamento dos recursos. Corroborado
por Leite (2020), é um modelo que pressupõe o engajamento, a participação e
o controle social pelos atores from below.
Neste estudo, não se identificou um modelo único de análise da política de
desenvolvimento territorial. O modelo institucional e o modelo de processo
(DYE, 2005) foram os modelos revistos para caracterizar a conformação dessa
política. Dye (2005) estabelece que uma política não se transforma em política
pública antes que seja adotada, implementada e antes que se cumpra por algu-
ma instituição governamental, de modo que alcance legitimidade.
O primeiro modelo permite mapear os arranjos institucionais de nível
federal, estadual e local. O planejamento dessa política configura esse mo-
delo, uma vez que foi estruturada com a participação e interação de vários
ministérios e secretarias a nível federal, seguidos pelas instituições estaduais,
municipais e intermunicipais.
Conforme Dye (2005), os estudos institucionais descrevem as instituições
governamentais específicas – suas estruturas, organizações, suas atribuições e
funções. Por esse modelo, podem-se questionar as relações existentes entre os
arranjos institucionais e o conteúdo das políticas públicas e estudar essas rela-
ções de modo comparativo e sistemático. Pode-se questionar inclusive de que
modo a divisão de responsabilidade entre as esferas federativas afeta o conteúdo
de determinada política pública.

124 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


O modelo de processo tem o objetivo de encontrar padrões identificáveis
de atividades, de modo a visualizar o processo político. Nesse caso, Dye (2005)
reforça uma sequência que é: identificação de problemas, organização de
agenda, formulação, legitimação, implementação e avaliação. Permite estudar
como as decisões são ou deveriam ser tomadas, o que é útil para entender as
várias atividades envolvidas na formulação de políticas.
Conforme documento Referência para o Apoio ao Desenvolvimento de
Territórios Rurais no Brasil (2005), todo o plano de atividades foi amplamente
discutido e divulgado com as ações das respectivas etapas do processo de im-
plementação da política, num desenho geopolítico e perspectiva temporal de
ações, de modo a atender todo o território. Outra forma de ação que corrobora
Dye (2005) nessa política foi a articulação institucional que envolveu os di-
versos órgãos ministeriais e secretarias, dando amplitude e força à política de
desenvolvimento territorial.
Esses dois modelos evidenciam o aspecto estrutural desta política, que tem
no seu fluxo de ações para participação social as plenárias do Codeter, as con-
ferências municipais, territoriais e estaduais e as mobilizações para elaboração
do Plano Territorial de Desenvolvimento Social Sustentável (PTDSS). Nesses
espaços, as demandas e propostas são levantadas na base local, encaminha-
das para uma Coordenação Estadual Territorial (CET) e discutidas no âmbito
federal. Quanto ao PTDSS nesse processo, é um instrumento de referência e
diagnóstico socioeconômico e ambiental estruturado em eixos indicativos de
programas e projetos para o desenvolvimento rural, que, após aprovado pela
Plenária Territorial, segue para o reconhecimento do governo e retorna por
meio de programas ou políticas, como devolutiva à sociedade.
No modelo institucional, conforme orientado por Dye (2005), a política
territorial se conformou em política pública quando foi adotada e articulada
por órgãos do Poder Executivo e normatizada por decreto federal, dando-lhe
respectivamente legitimidade e universalidade, sob o guarda-chuva do MDA
e execução da SDT, que tiveram o papel de planejamento e implementação.
Entretanto, não pôde ser concluída conforme proposta, devido à extinção do
ministério e consequente suspensão das atividades. Por isso, não se pode afir-
mar que a forma institucionalizada de participação social nos processos dessa
política pública, da maneira que foi posta, seria o melhor modelo, porque não
houve continuidade. No entanto, muitos avanços no processo de participação

a n á l ise da pol ít ica púb l ica de de s e n volv i m e n to te r r i tor i a l 125


social foram concretizados pelas estruturas de escuta e participação social,
conforme apresentadas.
Dye (2005) critica a análise política que não extrapola o campo de análise da
estrutura, deixando de abordar o impacto que as características institucionais
têm na política e o impacto dos arranjos institucionais nas políticas públicas.
É um problema que merece ser investigado. O modelo da PPDT, como re-
trata Dye (2005), conseguiu mobilizar, além da estrutura de governo, vários
segmentos. Entretanto, mesmo com os avanços na participação social institu-
cionalizada, nas ações de implementação, ainda se verifica uma necessidade de
maior integração de informações e ações que possam atender de maneira mais
apropriada as necessidades que devem ser supridas pelos programas, além de
outras demandas, que são identificadas nos processos não institucionalizados
de participação, criados pelos atores locais. A falta de participação reverbera
um problema social, pois a presença de uma multiatorialidade nos espaços de
escuta ainda não é satisfatória e, como apontado em estudos, é um fator que
enfraquece essa política pública no modelo em que foi criada.
A fim de identificar e dar significação aos atores que participam do fluxo
de políticas públicas, Boullosa (2013) traz a ideia de analisar a política pública
para além da centralidade do estado, com a proposta de olhar para os diver-
sos atores que atuam no processo. A autora desenvolve estudo que concerne
à inclusão das ações de atores que não são do governo na compreensão do
processo de políticas públicas. Com base na escola policy inquiry, a teoria da
mirada ao revés (BOULLOSA, 2013) considera política pública como um cons-
truto analítico, funcional ao olhar do observador, que identificaria um fluxo de
ações resultantes de uma multiatorialidade ativada pelo interesse em ajudar a
governar um problema de pública relevância. (BOULLOSA, 2013)
Em seus estudos, Boullosa (2013) assume que problema público está além
das muitas interpretações desse conceito, atribuindo ao problema o que justi-
fica diferentes mobilizações de atores, inclusive a do analista ou avaliador de
políticas públicas, e considera ainda que deva haver a presença de numerosos
atores. Com essa premissa, a mirada ao revés abraça a pluralidade e a parti-
culariza, imputando uma forte relação de codeterminação entre as ações do
conjunto de atores mobilizados e os fluxos de políticas públicas em um con-
texto difícil de ser previsto pelo observador – analista de policy. Ou seja, ator
passa a ser aquele que se atoriza no processo, seja individual ou coletivamente,

126 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


não necessariamente ligado ao governo, formal ou informal, declarado ou não,
burocrata de rua, de comunidades epistêmicas, entre outros, cada um com seu
significado no olhar. (BOULLOSA, 2013) Entre estes, os atores ativam para o
governo problemas considerados de pública relevância a partir de uma recom-
preensão individualizada, mas modelada socialmente, daquele problema que
gerou determinado fluxo.
Os espaços de participação social evidenciados na estrutura da PPDT, con-
forme os modelos de análise de política pública institucional e de processos
(DYE, 2005), são repertórios que permitem a entrada e saída de atores que
atuam conformando fluxos que modelam e são modelados por valores que
lhes subjazem. (BOULLOSA, 2019) Conforme Boullosa, trata-se de uma mul-
tiatorialidade em contínua transformação, que não pode ser definida a priori e
que é sempre situada no tempo e no espaço. Nessa perspectiva, esses espaços
de participação, juntamente com os atores e os valores, conformam o fluxo de
políticas públicas.
No fluxo de implementação da política de desenvolvimento territorial, no
caso da Bahia, modificações feitas na organização territorial do estado criaram
novas identidades e foram induzidas pela iniciativa de municípios que não se
identificavam com o território inicialmente estruturado e onde estavam in-
seridos e, ao se mobilizarem, os ajustes foram sendo feitos. No extremo sul,
a desvinculação de outros municípios deu unidade numa região pelo esta-
belecimento de novos vínculos e inter-relações. Esse processo mostrou que,
inicialmente, o fluxo da política foi desenhado pelo Estado (top-down), mas,
por uma recompreensão, foi modificado a partir do envolvimento de atores
que estabeleceram as mudanças e ajustes que precisavam ser feitos (bottom-
-up), demonstrando que estavam inseridos no processo e reconheceram a
necessidade de reconstrução no fluxo da política.
Entre os atores no território do extremo sul da Bahia que compõem a mul-
tiatorialidade tratada por Boullosa e participam da estrutura do Codeter, estão
os representantes de associações rurais, organizações sociais e os de projetos
de pesquisa ou extensão vinculados às instituições de ensino, bem como agen-
tes do governo, entre outros. Todos estes, atuantes ou não, são representados
na Figura 1, desenhada com base na proposta dos modelos de análise e proces-
sos, identificados na estrutura do antigo MDA, a fim de demonstrar a proposta
de interação desses atores no processo da política pública territorial.

a n á l ise da pol ít ica púb l ica de de s e n volv i m e n to te r r i tor i a l 127


Figura 1 – Multiatorialidade no Território de Identidade Extremo Sul da Bahia (Ties), inspirado
em gráfico do MDA
Fonte: produzida pela autora.

Com esse modelo, no objetivo da PPDT, se pressupunha que, de fato,


toda a população do território, organizada pelos diversos comitês – mulhe-
res, jovens, povos quilombolas e comunidades tradicionais –, articulada pelos
Agentes de Desenvolvimento Territorial (ADTs) e pelos técnicos de Assistência
Técnica e Extensão Rural (Ater), com apoio das diversas Organizações Não
Governamentais (ONGs) e instituições de ensino no processo de formação e
assessoria, fosse contemplada. Entretanto, ao acompanhar e observar as re-
uniões do Ties, no período de 2013 a 2018, percebe-se que a participação não
vem acontecendo de maneira efetiva.

Reflexões em construção sobre o fluxo da PPDT


No Ties, ao acompanhar as plenárias e reuniões, se observou uma rotatividade
de participantes, o que implica a falta de continuidade de discussões e deba-
tes sobre os problemas de interesses do território. Os agricultores familiares
têm dificuldade de se organizar, comprometendo as etapas de elaboração de
propostas coletivas para concorrer aos editais com proposição de projetos e

128 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


o acompanhamento durante a execução. Apenas uma pequena parcela deles
tem acesso aos programas e, quando beneficiados, poucos conseguem gerir os
recursos, comprometendo a eficácia da política. Isso se confirma ao percorrer
o território, onde são visualizados diversos empreendimentos que não tiveram
continuidade. De maneira geral, o alvo da política pública em tela carece de
uma estrutura de organização social mais bem acompanhada e orientada, pois
ainda tem dificuldades em sua operacionalização.
Essa dificuldade é corroborada por estudos em outros territórios.
Conforme Freitas e Dias (2015), há fragilidades e limitações nas experiências
de espaços institucionais de participação social no meio rural. Entre outros
problemas, os autores citam a incapacidade de agrupar e possibilitar a expres-
são da diversidade de atores sociais, que se mobilizam e se organizam para
representar interesses nos territórios. Oliveira e Dias (2015) perceberam um
conjunto de dificuldades que limita e fragiliza o processo de gestão, aliado à
incapacidade de articular os diferentes segmentos da sociedade civil, o que
desmobiliza o potencial organizativo, com vistas à interferência na ação do
Estado para transformar as propostas e os projetos locais em políticas. Teses de
avaliação dessa política, com base em levantamentos de programas de inclusão
produtiva, constatam que esse modelo de participação não tem conseguido
atingir o seu objetivo. (FERNANDES, 2018; RODRIGUES, 2016; SOUZA, 2014)
Recentemente, Leite (2020) coloca em questão se os resultados alcançados
pelas políticas de desenvolvimento rural seriam suficientes e dariam “a capaci-
dade de resiliência” para “garantir um mínimo de acúmulos irreversíveis diante
dos momentos críticos na trajetória de políticas públicas”. Nesse caso, com a
extinção do MDA, as mudanças do governo desde 2016 culminaram com al-
terações no CNDRS em 2019, reduzindo a capacidade de escuta da sociedade
pelos canais institucionalizados anteriormente instaurados. Por isso, a estru-
tura da política de desenvolvimento rural ficou totalmente fragilizada.
O modelo de participação da sociedade civil em políticas públicas por meio
de conselhos deu uma aparência sólida de participação social. Entretanto, a
proposta democratizante da política territorial não conseguiu se consolidar e
possibilitar aos atores envolvidos, que são os agricultores familiares, grupos de
mulheres, representantes de comunidades quilombolas e tradicionais, serem
ativos (se atorizar) no processo participativo, enquanto outros, a exemplo de
representantes de empresas que desencadeiam conflitos entre os agricultores,
direta ou indiretamente, têm assento no Codeter.

a n á l ise da pol ít ica púb l ica de de s e n volv i m e n to te r r i tor i a l 129


Com todas as dificuldades de participação que foram postas, se evidencia
um problema de pública relevância para continuidade do projeto de participa-
ção em políticas públicas de desenvolvimento rural. A par disso, ao observar os
atores na perspectiva da mirada ao revés, como sugerido por Boullosa (2013),
será possível identificar os novos caminhos e saídas que têm sido articulados
como alternativas para que a população seja capaz de intervir sobre a reali-
dade que lhe cerca e propor transformações socioprodutivas que dão força e
representatividade para esses grupos. Portanto, o estímulo de pesquisa sobre
a participação social na política territorial é de relevância acadêmica e so-
cial, pois a necessidade de melhorar a gestão por meio do fortalecimento dos
instrumentos de participação popular e a necessidade de qualificação dessa
participação para realizar ações de maneira mais equitativa, a partir da escuta
de demandas, são relevantes.
O estudo de Giannella (2017) propõe uma reflexão sobre o desgaste do
projeto de democracia participativa para entender como a participação ainda
pode acontecer na nova conjuntura política, tendo em vista as mudanças de
governo desde 2016. Repensar as dinâmicas participativas é mister nessa fase,
como põe em nota: “o projeto de democracia participativa em que se investiu
foi protagonizado por sujeitos da esquerda tradicional e não conseguiu engajar
efetivamente sujeitos alheios a este referencial político e cultural”. (GIANELLA,
2017) É uma observação condizente sobre a participação na política territo-
rial e traz à luz problemas estruturais dessa política, uma vez que os Codeter
foram criados com o objetivo de promover maior aproximação entre socie-
dade e governo, mas mostraram não ser suficientes para conseguir superar o
distanciamento que se criticava em governos anteriores. Ademais, as dificulda-
des de participação nas instâncias de tomadas de decisões são problemas que
decorrem da falta de hegemonia para o interesse coletivo, em detrimento de
interesse de grupos do próprio território.

Considerações finais
Contudo, reconhecemos que a PPDT, conforme as análises baseadas nos mo-
delos institucional e de processo, bem como pela mirada ao revés, que per-
mitiu conhecer sua estrutura e o fluxo das ações, assim como a correlação de
atores envolvidos, mostra que foi um avanço no processo participacionista do

130 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


desenvolvimento rural, e muitas conquistas foram conseguidas em devolutiva
às demandas postas nos espaços institucionalizados. No entanto, falta o reco-
nhecimento de outras possibilidades e mecanismos que melhorem a partici-
pação social nos processos de políticas públicas. Em vista disso, é evidente a
necessidade de estudos para compreender o contexto e encontrar novos cami-
nhos para fortalecimento dessa política, levando em conta o passo largo que já
foi dado no processo participativo democratizante e institucionalizado.
Por fim, ao revelar problemas e dificuldades presentes no processo da polí-
tica territorial, corroboramos que a riqueza dos cursos de ações empreendidos
pela multiatorialidade será mais fluida se houver: uma melhor relação entre
os atores; mudanças na cultura política que passam por entender as subjeti-
vidades anunciadas nas atitudes, crenças, sentimentos e valores, expressos no
comportamento de seus atores; valorização das conexões entre indivíduos pelo
grau de confiança que têm nos resultados coletivos a partir da cooperação; e o
fortalecimento de redes.
Estas notas mostram elementos que poderão promover a densidão da po-
lítica territorial, mesmo nos presentes contratempos e incertezas da gestão
pública. Portanto, para melhorar a participação nos processos de implemen-
tação (continuidade) dessa política no Ties, o incentivo seria para ações que
fortaleçam esses elementos e “atorizem” os atores, de modo a melhorar sua
autonomia nos processos de políticas públicas, o que abre um amplo repertó-
rio de pesquisa.

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134 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Território, educação e violência: ruralidades
contemporâneas da juventude de Vale Verde,
Porto Seguro (BA)

Matheus Lopes da Silva


May Waddington Telles Ribeiro

Introdução
O presente estudo compõe um programa de pesquisas que surgiu a partir de
uma pesquisa exploratória inicial que, ao longo de 2017 e 2018, mapeou as
principais dinâmicas sociais e territoriais ocorridas nas últimas três décadas no
território que abrange o entorno do Parque Nacional do Pau Brasil, onde se lo-
caliza um conjunto de pequenos povoados, incluídos no distrito do Vale Verde.
Conhecida entre os cidadãos de Porto Seguro e pelos visitantes turistas que
frequentam a região como o mais antigo aldeamento jesuíta no Brasil, datado
ainda no século XVI, visualizamos a imagem da pequena vila, dona de um belo
“quadrado jesuítico” de casinhas coloridas, semelhante àquele de Trancoso. No
entanto, por não estar diante da mesma vista esplendorosa para o mar, praias
brancas e ricos coqueirais, o Vale Verde1 não se projetou internacionalmente
como um destino turístico para uma elite privilegiada, como aconteceu com
Trancoso. O simpático conjunto de casas da antiga Vila do Espírito Santo dos
Índios, depois Vila Verde e, atualmente, Distrito do Vale Verde, ainda pertence
a moradores nativos, em sua grande maioria, não atraindo o mesmo fluxo de

1 A vila foi incluída como parte do conjunto arquitetônico e paisagístico inscrito no Livro Histórico e
no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico no momento da rerratificação do perímetro da área
de tombamento pela Portaria Ministerial nº 140, de 2000.

135
turistas que as vilas à beira mar. Vale Verde está localizado a 39 km da cidade
de Porto Seguro.
Este levantamento exploratório foi realizado através de extensas entre-
vistas estruturadas em 16 comunidades circunvizinhas ao Parque Nacional
do Pau Brasil, que proporcionou uma entrada em campo de muito boa qua-
lidade para um grupo de pesquisadores vinculados ao grupo de estudos em
Dinâmicas Territoriais, Etnicidades e Ruralidades Contemporâneas (Diterc),
ligado ao Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS) da
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Buscou-se levantar a história
socioambiental através da memória dos entrevistados mais antigos e da docu-
mentação encontrada. Além do processo de exploração florestal e dos atores
que chegaram à região através dele, identificaram-se algumas intervenções
fundamentais na modificação das dinâmicas locais, como a abertura da estrada
BA-001 e a retificação do Rio Buranhém. Esta última teve consequências dra-
máticas para a população originária, os moradores do quadrado da Vila do Vale
Verde. Notadamente, tratava-se de um campesinato pesqueiro que vivia princi-
palmente da pesca fluvial de camarões do tipo pitú, que desapareceram com a
retificação. Foram vendidas para novos proprietários as terras alagadas, tradi-
cionalmente ocupadas pelos descendentes tradicionais do aldeamento jesuíta,
que as manejavam para a pesca de camarões e peixes de várias espécies como
parte vital de um sistema de manejo territorial camponês que praticamente se
extinguiu.
A maioria dos projetos vinculados ao grupo de pesquisa pretendeu alcançar
um aprofundamento etnográfico em alguns dos pontos levantados pela pes-
quisa exploratória inicial e, assim, os resultados desta serviram como base para
a presente pesquisa, iniciada em 2019, que pretendeu imergir nesse território
dando atenção especial à juventude que nele habita e produz suas territoriali-
dades específicas.
O sul e o extremo sul da Bahia têm se destacado como uma das regiões
mais violentas do Brasil, especialmente no que tange ao assassinato de jovens
negros. (IPEA; FBSP, 2017) Em Porto Seguro, surgem como palco de chacinas
e violentas disputas territoriais entre grupos de jovens envolvidos pelo tráfico
o grande complexo de bairros conhecido como “o Baianão”, que reúne uma
enorme população de migrantes oriundos das regiões cacaueiras atingidas

136 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


pela vassoura de bruxa,2 e o antigo bairro do Campinho, que reúne os mo-
radores nativos, descendentes de pescadores tradicionais de Porto Seguro.
Ouvimos um alerta importante de um líder do Movimento de Luta pela Terra
(MLT) atuante na região de que, apesar de se darem em zona urbana, esses
conflitos aqui citados são parte do que se chama, de forma mais genérica, de
“violência no campo”. Algumas das pequenas localidades agrícolas, pequenas
vilas próximas à área de nosso estudo, no entorno de Porto Seguro, também
se notabilizaram por crimes violentos descritos como chacinas – Veracruz,
Pindorama e Trancoso.
Foram mapeados diferentes tipos de atores, além dos descendentes dos in-
dígenas originários, moradores do antigo aldeamento do Espírito Santo dos
Índios – atual Vila do Vale Verde. Instalaram-se na região levas de imigração
diferenciadas: assentados de reforma agrária, grupos familiares de produtores
rurais negros ou imigrantes do Espírito Santo, assim como povoados que se ex-
pandiram a partir de antigas farinheiras, geralmente tocadas por descendentes
de indígenas. A inserção de cada grupo na região foi registrada cronologica-
mente, atentando-se à relação entre novos, antigos e originários habitantes
desse território.
Com a necessidade de aprofundar a visão dos jovens em relação ao fu-
turo do território, alguns questionamentos nos encaminharam ao tema do
estudo da juventude rural, que tem sido mais bem desenvolvido pela antro-
pologia e pela sociologia política em anos recentes. Tanto a possibilidade de
permanência no campo quanto a valoração das atividades comuns à economia
da agricultura familiar têm sido temas de estudos que remetem ao papel da
universidade na região, isso porque tanto a formação escolar quanto de nível
superior podem promover valores, entre os jovens, que podem fortalecer ou
desqualificar os modos de vida no campo.
Torna-se necessário compreender se a universidade tem recebido jovens
oriundos do campo, levando em conta suas diferenças e o processo de fragili-
zação dos valores que fortalecem sua autoestima e a identidade coletiva dessas
comunidades, diante do sistema de consumo midiático-televisivo. É funda-
mental ressaltar que esta pesquisa busca apresentar algumas informações sobre

2 A vassoura de bruxa foi uma praga que assolou as lavouras cacaueiras no sul da Bahia a partir da
década de 1980, reduzindo drasticamente a produção da cultura na região e impactando, notada-
mente, a sua oferta no país.

t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 137


os sujeitos no cenário local, como dados do ensino escolar, a universidade na
região e a temática da violência, tendo em vista a influência desses aspectos
na compreensão das perspectivas dessa juventude rural em relação ao respeito
aos valores e da moralidade específica desses grupos. Diante de um mosaico de
tipos diferentes de campesinato convivendo na região, um debate importante
a respeito do conceito de juventude precisa ser posto para que melhor sejam
compreendidos os imbróglios socioantropológicos que enfrentam esses atores
tão plurais que são simplificados nesse conceito que os engloba.

Juventude e juventude rural: compreendendo os


sujeitos sociais
A temática da juventude, mesmo sendo considerada como um objeto de in-
vestigação secundário (WULLF, 1995), reúne um considerável arcabouço de
publicações, principalmente dedicadas à juventude urbana. Mas, no que tan-
ge à categoria “juventude rural”, os referenciais são bem mais escassos, dando
possibilidade de abordar a questão como um campo temático em potencial,
principalmente quando estabelecemos um recorte local – a zona rural do mu-
nicípio de Porto Seguro (BA), onde é praticamente nula a temática de referen-
cial bibliográfico. As produções que existem sobre a temática estão distribuídas
entre diversos recortes e abordagens metodológicas. Para Castro (2005, p. 19):

Três movimentos ou momentos (que eventualmente são sincrôni-


cos) se desenham: a definição da categoria a partir de elementos
físicos/psicológicos, como faixa etária, mudanças físico-biológicas
e/ou comportamentais; a definição substancializada/adjetivada
da categoria; e a crítica a esses recortes e busca de outros vieses.
Atravessando essas abordagens aparece com freqüência a associa-
ção de ‘juventude’ e ‘jovem’ à [sic] determinados problemas socio-
lógicos e/ou como agentes privilegiados de transformação social.

Um dos questionamentos pioneiros feitos pela sociologia sobre a catego-


ria “juventude” vem do sociólogo francês Pierre Bourdieu. O autor estabelece
uma reflexão sobre uma questão-chave: a juventude é apenas uma palavra?
Em sua perspectiva, tanto a juventude como a velhice não são conceitos dados
por si próprios, mas categorias socialmente construídas a partir do confronto
de uma pela outra. Bourdieu (1983) diz que são muito complexas as relações

138 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


entre os movimentos elencados a priori, tais como a idade biológica do indi-
víduo e sua idade social. É de extrema importância perceber a fragilidade em
aglutinar todos os jovens como se fossem um grupo social homogêneo, com as
mesmas perspectivas e cosmovisões, utilizando como critério simplesmente
a idade biológica. Isso por si só já caracteriza uma manipulação de uma idade
biologicamente definida.

Seria preciso pelo menos analisar as diferenças entre as juventudes,


ou, para encurtar, entre as duas juventudes. Por exemplo, podere-
mos comparar sistematicamente as condições de vida, o mercado de
trabalho, o orçamento do tempo, etc., dos ‘jovens’ que já trabalham
e dos adolescentes da mesma idade (biológica) que são estudantes:
de um lado, as coerções do universo econômico real, apenas ate-
nuadas pela solidariedade familiar; do outro, as facilidades de uma
economia de assistidos quase-lúdica [...]. (BOURDIEU, 1983, p. 2)

Uma importante análise feita por outra ótica sobre esse tema é uma abor-
dagem que coloca em oposição as condições geracionais. Para Foracchi (1972),
quando a idade biológica não é suficiente para determinar a condição limite de
representação do jovem, a juventude vai se configurar como etapa do ciclo de
vida na qual o indivíduo está exposto às crises do sistema, visto como uma re-
presentação de uma nova possibilidade de existência social. Segundo Margulis
(1996, p. 9):

A Juventude se ergue como vanguarda portadora de transforma-


ções, evidentes ou imperceptíveis nos códigos culturais, e incorpo-
ra com naturalidade as mudanças nos costumes e nos significados
que foram objetos de luta para a geração anterior; sua sensibilidade,
sistema perceptivo, visão das coisas, atitude frente ao mundo, sen-
tido estético, concepção do tempo, valores, velocidades e ritmos,
nos indicam que estão habitando com comodidade um mundo que
nos vai deixando para trás.

De fato, uma considerável bibliografia que discute as possibilidades e os


limites da categoria “juventude” existe e traz alternativas para pensar e enqua-
drar problemas de pesquisa à realidade social e cultural que é encontrada em
campo. As limitações dessa categoria, por vezes, ultrapassam a intersecciona-
lidade dos corpos considerados jovens, e podem estar nessas sobreposições de

t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 139


identidades sociais valiosíssimas informações para a compreensão dos modos
de vida e sociabilidade da juventude em questão, a juventude rural. (ABRAMO;
LEÓN, 2005)
A juventude brasileira não pode ser compreendida como um bloco que é
privilegiado ou atingido pelos mesmos fatores socioeconômicos e culturais,
por isso a necessidade da busca pela especificação de traçados regionais dessa
categoria de forma que possa, futuramente, ser compreendida e ter seus an-
seios atendidos pela sociedade e, principalmente, pelas políticas públicas pelas
quais o Estado é responsável. Visto que o foco desta pesquisa gira em torno es-
pecificamente da juventude rural, e não somente da juventude, é essencial que
a observemos a partir de uma ótica multidimensional, que permita visualizar
significados plurais, com as especificidades locais que essa construção identitá-
ria carrega. O próprio fazer antropológico, sem dúvidas, é um instrumento que
auxilia na percepção dessas pluralidades. Embora a relativização do conceito
em questão esteja sendo colocada, a busca por um recorte etário foi realizada
durante as incursões a campo, tanto com os próprios jovens enquanto sujeitos
da pesquisa como com os tidos como não jovens nos contextos em cada comu-
nidade. Com isso, foi adotado o padrão de análise do Organismo Internacional
de Juventude para a Ibero-América (OIJ), que considera os indivíduos jovens
quando se encontram na faixa de 15 a 29 anos.
Além desse padrão de análise do OIJ, critérios mais subjetivos foram con-
siderados quando em campo. Analisando uma síntese realizada no estudo de
Troian e Breitenbach (2018), que consideram os critérios utilizados na defini-
ção de juventude com base nas abordagens3 trazidas pelos teóricos Mannheim
(1968) e Weisheimer (2009), foi possível identificar etnograficamente os sujei-
tos quando em confronto com as abordagens.

3 Para Troian e Breitenbach (2018), são elas: faixa etária; ciclo de vida; geração; cultura ou modo de
vida; e representação social.

140 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Figura 1 – Composição fotográfica Gerações do Vale, de Vitória Barreto (Vale Verde, 2019)
Fonte: acervo pessoal do autor.

Para que sejam mais bem compreendidos os sujeitos dentro da categoria


“juventude rural”, é importante que as abordagens sejam observadas con-
comitantemente com perspectiva que os sujeitos que compõem os grupos
analisados atribuem às continuidades ou rupturas das práticas da agricultu-
ra familiar ou produção e os sistemas sucessórios aos quais os jovens estão
submetidos, possibilitando, por exemplo, a identificação dos sujeitos dentro
da categoria a partir de ciclos geracionais. As rupturas e as sucessões, no que
tange aos modos de vida e produção da população camponesa no território em
questão, são definidas por uma série de fatores pelos quais os jovens são atra-
vessados dentro de seus próprios ambientes familiares. Além da perspectiva
econômica na qual os não jovens creditam a maior expectativa sobre a geração
“da vez”, como relatou um de nossos entrevistados, o acesso à educação e o
contato com a violência no campo representam uma significativa influência na
construção das identidades dos jovens que ali habitam.

Educação x violência no campo: a universidade como


perspectiva
Tomar a violência como um tema global, na atualidade, é considerá-la como
um problema social que traz desdobramentos no desenvolvimento individual
e coletivo da sociedade. Consequentemente, este se torna um grande desafio
para o poder público, que tem o dever de elaborar e aprimorar políticas pú-
blicas para amenizar e erradicar tal problema. O conceito de violência numa
perspectiva social se traduz como uma forma de relação baseada na coação e

t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 141


no uso intencional da força (CHAUI, 2010) que é produzida e determinada pela
inter-relação entre fatores individuais, relacionais e contextuais. (MINAYO,
1994) Trata-se de um dos eternos problemas da teoria social e da prática políti-
ca e relacional da humanidade.
O perfil da mortalidade por causas externas no Brasil segue a tendência
mundial, em termos de maior incidência sobre o sexo masculino e faixas etá-
rias jovens, estando mais concentrada em regiões metropolitanas.

A violência contra a juventude negra no Brasil atingiu índices alar-


mantes e precisa ser enfrentada com políticas públicas estruturadas
que envolvam as diversas dimensões da vida dos jovens como edu-
cação, trabalho, família, saúde, renda, igualdade racial e oportuni-
dades iguais para todos. Os jovens de 15 a 29 anos representam um
quarto da população brasileira e estão entre as maiores vítimas de
homicídios. Vale lembrar que essas mortes tem uma geografia [...].
(BRASIL, 2017, p. 11)

Reiteradamente, a bibliografia mais recente que associa juventude ao tema


da violência determina o principal grupo de risco: a população jovem, negra,
de baixa renda, com baixa qualificação profissional e sem perspectivas no mer-
cado de trabalho formal. São membros das camadas sociais em total exclusão,
que, conforme cita Vethencourt (1990), nunca teriam se exposto à delinquên-
cia se tivessem outras opções de percursos honestos e sadios para suas vidas.
As causas estão associadas às extremas desigualdades sociais, que se apro-
fundaram ainda mais a partir da década de 1980 (MINAYO, 1994); à existência
de um Estado omisso e ineficiente na dotação de políticas sociais básicas; às
contradições urbanas e de políticas no campo; em síntese, à ausência de um
projeto nacional capaz de integrar esse grande grupo de risco. Essa situação
estrutural é agravada, conjunturalmente, pela organização do crime em torno
do narcotráfico e do uso de drogas nos grandes centros urbanos, fenômeno
que, além de atrair grandes contingentes de jovens, inclusive os do campo, que
possibilitam uma capilarização desse mercado, envolve autoridades públicas e
empresários, penetrando em todas as camadas sociais.

No país, 33.590 jovens foram assassinados em 2016, sendo 94,6% do


sexo masculino. Esse número representa um aumento de 7,4% em
relação ao ano anterior. Se, em 2015, pequena redução fora registra-
da em relação a 2014 (-3,6%), em 2016 voltamos a ter crescimento do
número de jovens mortos violentamente. (CERQUEIRA, 2017, p. 32)

142 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Pelo que indicam os índices do estudo mais recente sobre violência no
país, o Atlas da Violência4 – que registrou as taxas de homicídios de jovens,
por grupo de 100 mil, por unidades federativas, em 2016 –, a crescente taxa de
mortalidade entre jovens vem ocorrendo em uma perspectiva geral, e a Bahia
é apontada como a unidade da federação que ocupa o terceiro lugar no ran-
king, juntamente com mais outros quatro estados – Rio de Janeiro, Sergipe,
Rondônia e Rio Grande do Norte.
Infelizmente, os dados que representam a realidade da região de Porto
Seguro, especialmente da zona pericentral do município, incluindo a zona ru-
ral – especificamente Caraíva, Arraial d’Ajuda, Trancoso e Vale Verde –, não
apresentam uma boa perspectiva diante do cenário nacional.

No ano de 2010 foram registrados 98 óbitos de jovens do sexo mas-


culino entre 15 e 29 anos, no município de Porto Seguro, dado que
representa uma taxa de 5,5 óbitos para cada 1.000 habitantes com
este perfil, valor superior ao do estado (3 óbitos por 1.000 hab.) e ao
do Brasil (2,4 óbitos por 1.000 hab.). (PORTO SEGURO, 2014)

De acordo com os dados do Sistema e Informação sobre Mortalidade (SIM)5


do Ministério da Saúde, no ano de 2011, ocorreram 129 homicídios no municí-
pio, entre os quais 66 foram de jovens de 15 a 29 anos, sendo 58 jovens negros. Na
última década, os homicídios no município aumentaram, representando uma
variação de 20,5% no total de homicídios por ano. Um importante fator para
considerarmos os dados captados sobre os índices de violência contra jovens
na faixa etária de 15 a 29 anos em Porto Seguro é a vulnerabilidade socioeco-
nômica. Além da composição de renda desses jovens, o que se percebe como
um fator importante de redução da média final do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) do município é o déficit na educação pública do município.
Com base nos dados do Censo 2010, verificou-se que o município possuía 3.730
jovens de 15 a 17 anos fora do ensino médio. Entre estes, 76,5% são negros.

4 O número de homicídios na unidade federativa de residência foi obtido pela soma das seguintes
Classificações Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CIDs) 10: X85-Y09
e Y35-Y36, ou seja: óbitos causados por agressão mais intervenção legal. Consideraram-se jo-
vens indivíduos entre 15 e 29 anos. Elaboração da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das
Instituições e da Democracia (Diest)/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Fonte: IBGE/Diretoria de Pesquisas. Coordenação de
População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica e MS/
SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM.
5 Disponível em: sim.saude.gov.br

t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 143


Numa retrospectiva dos dados relativos à educação básica, o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) aponta
que, no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2011, Porto
Seguro obteve 3,2 pontos. Já no ano de 2017, quando novamente o índice foi
medido, o município não conseguiu atingir nem a média do estado (PORTO...,
2017), nem a média nacional.6 Segundo o Comitê Científico do movimento
Todos pela Educação, formado por especialistas em educação, essa escala distri-
bui o desempenho do aluno em quatro níveis: insuficiente, básico, proficiente
e avançado. Segundo as avaliações, entende-se por aprendizado adequado
aquele que eleva os alunos aos níveis proficiente e avançado. O município não
alcançou nenhum dos dois níveis. Segundo o projeto de implantação do Plano
Juventude Viva em Porto Seguro, a cidade possuía, no ano de 2012, um total
de 163 escolas, sendo 138 públicas. O distrito sede é aquele que possui o maior
número de escolas espalhadas pelo seu território, tanto públicas como priva-
das. Nos distritos pericentrais e rurais, predominam as escolas da rede pública.
Outros dados importantes para compor esse cenário em que se encon-
tram os jovens das zonas pericentrais e rurais do município de Porto Seguro
são aqueles colhidos no último censo divulgado do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) referentes aos setores censitários com maior nú-
mero de domicílios sem acesso a água tratada e sem coleta de lixo – entre 226 e
413 domicílios –, que estão localizados na região de Caraíva, Trancoso, Arraial
d’Ajuda e Vale Verde. Traçando um panorama local referente às informações
colhidas no que diz respeito à vulnerabilidade social, foi possível identificar
quatro áreas com alta vulnerabilidade, sendo elas Caraíva, Trancoso, Arraial
d’Ajuda e Vale Verde. Áreas com uma vulnerabilidade mediana estão presentes
nas porções leste e noroeste da área urbana do município. Segundo o Plano
Juventude Viva, em relação ao ensino superior, 15.684 jovens de 18 a 24 anos
se encontravam fora do ensino superior, sendo que 77,8% desses jovens são
negros. Outro dado apresentado pelo plano é o percentual de 76,5% de jovens
negros no município, com idade entre 15 e 17 anos, fora do ensino médio.
(PORTO SEGURO, 2014)
A direção que compõe as trajetórias escolares dos sujeitos do campo apon-
ta para uma perspectiva nova no cenário rural – o acesso das populações do

6 A meta projetada era de 4,3 para esse ano (2017). A média do país no ensino médio foi de 3,8,
enquanto a de Porto Seguro foi de 3,6. (CERQUEIRA, 2017)

144 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


campo a outros níveis e etapas educacionais ainda é muito desigual e inferior
ao registrado entre grupos urbanos.
Considerar os jovens do campo concluindo suas formações no ensino bási-
co e médio e ingressando no ensino superior é um êxito para as administrações
públicas quando comparado à perspectiva histórica do cenário nacional,
embora este não seja o caso do município de Porto Seguro – que vem apresen-
tando melhora nos seus índices, mas não alcançou as últimas metas projetadas.
Considerar “o prolongamento da escolarização para além do ensino funda-
mental é relativamente recente entre os filhos de agricultores”. (ZAGO, 2016
p. 64) Daí, então, é necessário identificar na região o papel que vem desempe-
nhando a administração local e quais instituições seriam capazes de modificar
e auxiliar de maneira que os objetivos na área da educação não sejam somente
alcançados, mas ultrapassados, atingindo status de referência a nível local e
nacional.
A UFSB está inserida no território sul baiano desde o ano de 2013, quan-
do iniciou seus trabalhos de implantação. Desde então, a instituição aparece
como uma força de atuação na perspectiva do desenvolvimento regional e mu-
dança no cenário local em níveis de educação fundamental, médio e superior.
A implementação dessa universidade federal na região teve como um dos fun-
damentos básicos o fortalecimento da educação básica nos municípios que sua
área abrange, considerando a importância da formação educacional sólida, ca-
paz de inserir os indivíduos na formação profissional e possibilitar mobilidade
social para grupos subalternizados. (BRASIL, 2014, p. 86)
A educação, de fato, é um instrumento de emancipação dos indivíduos, e
a possibilidade de acessar o ensino superior gratuito permite que o jovem do
campo adquira uma formação que seja capaz de promover em sua unidade de
produção familiar uma mudança cultural.

No meio rural brasileiro, as condições dos jovens, filhos de agricul-


tores familiares, são diversas. Há aquelas famílias bem estruturadas
economicamente, existem as famílias com relativa estruturação e
as famílias com insuficientes condições econômicas. Grosso modo,
os filhos que acessam a política educacional são aquelas famílias
que possuem relativa estruturação econômica, pois os gastos em
torno da universidade ainda colocam a família numa condição
peculiar. (REDIN, 2017, p. 249)

t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 145


Nessa perspectiva, as visitas ao campo de pesquisa possibilitaram reconhe-
cer, junto aos jovens na zona rural, as condições de continuidade na formação
educacional e suas perspectivas de acesso ou permanência no ensino superior.
Propositalmente, no formulário de entrevista aplicado junto aos jovens, as
perguntas relacionadas ao entendimento sobre as questões ligadas à violência
no campo e à presença da UFSB no território possibilitaram a identificação
de um fenômeno de extrema importância que gera consequências significati-
vas na sustentabilidade desse território. A impossibilidade da continuidade da
produção nas terras herdadas da família em consequência da proporção das
propriedades para o sustento mínimo é um dos fatores que contribuem para a
marginalização dos jovens no campo e, consequentemente, a ruptura com as
práticas no território. Esse fenômeno coaduna com o envolvimento dos jovens
na violência no campo, segundo relatos de não jovens e jovens do território.
Para R.,7 jovem produtora do Vale Verde e estudante do curso de
Administração na modalidade Educação a Distância (EAD) de uma faculdade
privada da região, “o ingresso na UFSB seria uma tarefa árdua e quase impossí-
vel devido à dinâmica de trabalho e a distância”, que, embora seja relativizada,
se considerada cotidianamente, pesa negativamente. A universidade é consi-
derada importante para a região segundo a estudante, porém, para atender
a juventude rural do território que tem um trabalho diário no campo,8 al-
ternativas deveriam ser pensadas para essa demanda, como a pedagogia da
alternância. (CORDEIRO; REIS; HAGE, 2011)
Uma parte dos jovens cujas famílias possuem um tamanho considerável de
terra continua o trabalho; parte dos que não tem trabalha em outras fazendas,
sítios vizinhos ou migra para o centro. A jovem R. afirma: “quando a terra é
grande, é muito difícil sair”.
Outro jovem entrevistado, G., de 17 anos, que reside no Arraial d’Ajuda por
ser próximo da escola onde estuda para concluir o ensino médio, a roça sempre
foi uma paixão e, desde 2012, ajuda os pais na rotina do trabalho no campo.
Quando questionado sobre a perspectiva de ingresso no ensino superior, G. diz
que pretende cursar Agronomia para continuar os trabalhos na propriedade da

7 A opção pelo ocultamento dos nomes dos entrevistados se deu pelo desejo de proteção da identi-
dade deles.
8 Identificou-se em trechos da entrevista da jovem a noção de habitus: “Uma das funções da noção
de habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente
singular ou de uma classe de agentes”. (BOURDIEU, 2011, p. 21)

146 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


família. Para ele, a UFSB seria uma opção bem mais viável caso houvesse o curso
pretendido; porém, a universidade conta apenas com um curso voltado para a
área rural, Engenharia Agrícola e Ambiental, iniciado em 2018 no campus Jorge
Amado, na cidade de Itabuna – a cerca de 280 km de Porto Seguro.
O que se percebe na realidade local, considerando o cenário rural, é que,
mesmo com seis anos de início de funcionamento, a UFSB pouco alcançou
a juventude rural da região do Vale Verde, por receber, atualmente, apenas
três estudantes da localidade. A política universitária, no intuito de atrair essa
categoria numerosa na região, deve ser pensada e construída de maneira a con-
siderar particularidades desse grupo e não cometer erros incidentes em outras
instituições interioranas, como aborda Redin (2017, p. 245):

A clivagem dos seus conhecimentos rurais anteriores ao ingresso


no ensino superior é pouco explorada até mesmo em cursos vol-
tados à ciência rural. Nesse sentido, o conhecimento empírico é
trocado pelo constante aperfeiçoamento do conhecimento técnico
e teórico.

A pesquisa de campo permitiu perceber uma grande quantidade de jovens


fora do ensino superior, ao mesmo tempo em que, para os que tinham conhe-
cimento da existência da universidade, havia um interesse em ter a UFSB como
possibilidade de continuar os estudos no ensino superior público, possivel-
mente entre cursos ligados às ciências rurais. Além disso, os depoimentos dos
jovens e não jovens durante as incursões a campo revelaram, de maneira geral,
uma visão positiva sobre as possibilidades e as condições que a região oferece
para a perpetuação das práticas agrícolas e dos modos de vida do território.

Conclusão
Desde o início das pesquisas no campo do Vale Verde, o território e todas as
suas maneiras de ser encarado têm sido os principais elementos de interse-
ção entre as possíveis investigações já identificadas. Os relatos colhidos e as
vivências captadas no exercício etnográfico em campo demonstraram a ca-
pacidade e o ímpeto de perpetuação das práticas da agricultura familiar, que
movimentam a economia da localidade, pelos jovens. Além disso, a percepção
da noção de pertencimento e responsabilidade sobre o território demonstrou

t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 147


que os jovens do Vale Verde, de maneira geral, estão conscientes do papel que
exercem dentro dos núcleos familiares e conhecem o histórico das dinâmicas
territoriais enfrentadas pelas famílias até a composição atual das comunidades
e do território.
Os estudos sobre a juventude rural brasileira são importantíssimos para
a compreensão de um futuro que se constrói a partir de gerações que, cada
vez mais, enfrentam mudanças e necessitam de criatividade para se adequar
à modernização e às tecnologias sem perder valores, práticas e sucessões que
compõem e constroem suas identidades. No Vale Verde, os não jovens depo-
sitam nas gerações seguintes maior expectativa no que se refere às práticas
econômicas, ao passo que elas constroem e moldam suas identidades a partir
de vários fatores que envolvem desde o acesso à educação até a possibilidade
do contato com a violência no campo.
Estes fatores se apresentaram ao longo desta investigação sobre a juventu-
de no território: a dificuldade de continuidade na produção; a troca do trabalho
no campo por um trabalho na cidade devido à falta de capacidade da proprie-
dade da família de subsidiar renda; a dificuldade com relação à escolaridade
desde a educação básica até o nível superior; a violência medida através dos
índices de mortalidade da juventude na região; e o avanço do crime organizado
e tráfico de drogas na região pericentral e rural do município. Esses elementos
indicaram que a questão deve ser encarada com seriedade pelo poder público
e pelas instituições locais.
A UFSB vem se constituindo como uma potente agente capaz de contri-
buir para o desenvolvimento sustentável do território em questão. Os jovens
reconhecem a importância de uma instituição de educação pública superior
de qualidade na região e, mesmo ainda pouco informados sobre o modelo da
UFSB, conseguem entrever sua capacidade, mas também as omissões com re-
lação ao potencial e à responsabilidade que carregam os sujeitos deste estudo
para com o desenvolvimento rural.
O cenário político nacional atual, que não valoriza a produção oriunda da
agricultura familiar, e o cenário político local, que não compreende os modelos
de produção e as práticas socioeconômicas que se sustentam no território, criam
uma atmosfera de baixo apoio do poder público no que se refere à impulsão
do desenvolvimento local. As políticas públicas destinadas ao fortalecimento
da agricultura familiar devem ser estimuladas, e novas políticas destinadas à
juventude rural devem ser pensadas numa perspectiva multidimensional que

148 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


considere as particularidades dessa categoria e como ela realmente transforma
o território. Enfim, que considere de que lugar no mundo esses jovens querem
ser enxergados.

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t e r r i tór io, e d u c aç ão e v iol ê nc i a 149


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150 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


PARTE II

Experiências
participativas
POLÍTICA PÚBLICA,
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
E SAÚDE
O processo deliberativo nas instituições
participativas e a capacidade de influenciar
políticas de saúde: uma consequência
ou um desafio?

Betânia do Amaral e Souza


Sandra Adriana Neves Nunes

Pensando sobre o problema


Criados por força dos movimentos populares e da sociedade civil organizada
nos anos de 1970 e 1980, os conselhos gestores de políticas públicas são consi-
derados conquistas da população que lutou pela democratização dos aparelhos
e órgãos estatais. Os princípios participativos e a pluralidade de normas inse-
ridos na Constituição Cidadã de 1988 garantiram o exercício democrático do
poder e abriram a perspectiva para a formalização dessas instâncias participati-
vas, fortalecendo o processo de inserção da sociedade na gestão pública. Assim,
os conselhos gestores são reconhecidos como instrumentos que possibilitam o
exercício de um novo modelo de gestão da “coisa pública” – que inclui a socie-
dade civil e gestores no mesmo espaço e patamar –, de grande importância no
governo democrático e na definição de políticas públicas. Eles se vinculam a
políticas sociais específicas, como infância, educação e saúde, incidindo sobre
todas as fases da gestão destas, desde a formulação até a sua implementação.
Para tanto, preveem a participação voluntária de representantes da sociedade
civil, tornando a política “mais pública” em razão da intensificação dos diá-
logos entre diferentes experiências e saberes na busca de políticas públicas
cada vez mais adequadas às expectativas e necessidades da sociedade. (COSTA;
ALMEIDA, 2017)

155
Dentre essas instituições, destacam-se os conselhos de saúde, que surgem
de uma das diretrizes organizativas do Sistema Único de Saúde (SUS): a parti-
cipação da comunidade. Eles foram absorvidos como estratégia política pelos
projetos das diferentes instâncias governamentais nos anos de 1990; contudo,
a disseminação desses órgãos pelo país tem revelado uma série de problemas
relacionados a questões diversas; dentre elas, a de natureza deliberativa.
Diante disso, nesta escrita, fazemos convite a uma reflexão sobre a reali-
dade operacional de um espaço público, considerado um campo privilegiado
de análise da relação entre o governo e a sociedade civil que, apesar de ter
sido criado recentemente, já tem sua existência ameaçada pelo atual Governo
Federal. O espaço eleito para investigação foi o Conselho Municipal de Saúde
de Teixeira de Freitas (CMS/TF), que, de modo particular, permitiu que viven-
ciássemos a experiência da gestão participativa, incentivando-nos a contribuir
para o aperfeiçoamento desse órgão.
O que este texto procura apresentar, de maneira breve, é um recorte da
pesquisa intitulada “Participação, sociedade civil e a capacidade de influen-
ciar políticas sociais: o caso do Conselho Municipal de Saúde de Teixeira de
Freitas” (2020), de Betânia do Amaral e Souza. Tal estudo buscou abordar as
variáveis que interferem na efetividade deliberativa das instituições participa-
tivas, bem como examinar o grau de efetividade do conselho pesquisado a fim
de identificar os acertos e desafios vivenciados para a definição de aspectos
que pudessem contribuir para o aprimoramento do desempenho encontrado.
Assim, este texto discutirá uma dimensão importante da efetividade delibera-
tiva: a “capacidade deliberativa”, entendida como a “capacidade dos conselhos
em produzir debates e decisões que tivessem a possibilidade de influenciar
efetivamente a produção da política pública”. (CUNHA, 2007, p. 142) Ou seja,
trataremos de um importante indicador da qualidade do processo decisório
empreendido no interior das instituições participativas. (ALMEIDA, 2006)
A relevância científica e social deste estudo assenta-se na certeza de que
é fundamental conhecer os conselhos para reconhecê-los como locais de
interação entre a sociedade e o Estado nas decisões políticas sobre o SUS, des-
tacando-os como uma importante inovação democrática. Pretende-se, ainda:
a) fornecer informações que possibilitem a potencialização do processo deli-
berativo realizado no CMS/TF; b) valorizar a participação social visando à sua
sobrevivência e resistência, em razão das ameaças às instituições participativas

156 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


já mencionadas; e c) difundir e maximizar o alcance dos resultados do estudo
já realizado nesse órgão.

Contextualizando os conselhos de saúde no cenário


político brasileiro
Entre as décadas de 1970 e 1980, emergiram movimentos sociais favoráveis à
reforma do sistema de saúde. Como nesse período também ocorriam manifes-
tações favoráveis à redemocratização do país, esses movimentos podiam ser
confundidos “com o próprio processo de luta contra a ditadura e abertura de-
mocrática”. (PAIVA; TEIXEIRA, 2014, p. 16)
As ideias do movimento favorável à reforma do SUS avançaram, e a saúde
passou a ocupar um lugar privilegiado na Constituição Federal de 1988, sendo
protegida por mais de 30 dispositivos de forma nunca vista nos textos constitu-
cionais anteriores. Assim, o SUS é mencionado no artigo 198, que apresenta as
suas diretrizes, entre as quais está a participação da comunidade, que foi soli-
dificada com a implantação dos conselhos de saúde nas três esferas de governo
após a promulgação da Lei Orgânica da Saúde nº 8.142/90, de 28 de dezembro
de 1990, que contribuiu para o fortalecimento desse processo de participação
na direção do permanente aprimoramento do SUS. Nesse contexto, o controle
social passou a ser realizado de forma institucionalizada nesses espaços, em que
a sociedade civil tem presença significativa, ocupando metade dos postos, con-
forme determina a legislação. Nessas instâncias, a comunidade pode formular,
opinar, definir, acompanhar a execução e fiscalizar as políticas e ações de saúde,
defendendo os seus interesses na gestão da saúde através dos seus representan-
tes. (CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE, 2003)
O CMS/TF, assim como muitos outros, foi instituído em 1990 pela Lei
Orgânica Municipal, tendo passado por sucessivas alterações legislativas que
buscaram afirmar essa instância colegiada como espaço autônomo de delibe-
ração. O seu regimento interno foi aprovado em 25 de setembro de 2014, com
a Resolução do Conselho Municipal de Saúde (CMS) nº 004/2014, e suas com-
petências são atribuídas nesse documento baseadas na Resolução nº 453/2012
do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Para atendimento às especificidades
locais, o CMS/TF é, atualmente, composto de forma paritária por 16 membros,
que devem atuar na proposição de estratégias e no controle da execução da

o processo del ib erat ivo n a s i n s ti tu iç õe s pa rtic i pati va s . . . 157


política de saúde no município, por meio do principal instrumento de nego-
ciação característico dos conselhos: a deliberação.

Deliberação e capacidade deliberativa


Considerando que o tema central deste trabalho é a deliberação, é fundamental
esclarecer qual é a abordagem conceitual aqui proposta. A capacidade delibe-
rativa a qual se busca avaliar está alinhada à ideia de um processo deliberativo
que envolve os conceitos decisionístico e argumentativo. O primeiro privilegia
o momento da tomada de decisão e resume-se a ele, conforme o pensamen-
to rousseauniano. Já o segundo, consolidado por Jürgen Habermas e Joshua
Cohen, considera que a deliberação é um processo no qual um ou mais agentes
avaliam as razões que permeiam uma questão, privilegiando o debate de ideias.
Dessa forma, como consideramos que a deliberação reúne as ações de reflexão,
ponderação, decisão e resolução, ambos os conceitos foram considerados nes-
te estudo. (AVRITZER, 2000)
A natureza deliberativa inerente ao modelo “conselhos” da atualidade os
difere de outras experiências vivenciadas no Brasil, pois o arcabouço normati-
vo dos conselhos ressalta o seu potencial de ir além da expressão de demandas
e consultas à sociedade, valorizando a efetiva partilha de autoridade entre
Estado e sociedade, bem como a indução do Estado à ação. (GOHN, 2011;
TATAGIBA, 2002) Nessa linha, Gohn (2011) afirma que os conselhos de saúde
se constituem em espaços que vão além do debate dos problemas coletivos
da sociedade, sendo, portanto, um lugar de interlocução, negociação, disputa,
discussão, pactuação e compartilhamento de responsabilidades entre a socie-
dade e o governo.
Para Cunha e demais autores (2011, p. 303), a deliberação é um “processo
comunicativo de formação da opinião e da vontade pública [...]” que envol-
ve justificação, discussão, apelos afetivos, argumentos informais, testemunho
pessoal, barganhas, entre outros. Segundo as autoras, esse formato tende a
gerar decisões mais eficientes e mais democráticas quando comparadas a um
processo de simples agregação de preferências, como uma votação, pois, por
meio da deliberação, a intensidade das preferências sobre determinada política
pública é manifestada. Dessa maneira, as decisões são qualificadas e legítimas,
pois surgem a partir de arranjos de opiniões.

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Diante do exposto, constata-se que o desempenho dos conselhos depende
de um intenso processo de negociação. (GOHN, 2011) Estes devem ser capa-
zes de produzir debates e decisões que tenham a possibilidade de influenciar
efetivamente a produção da política pública, como afirma Cunha (2007), que
relaciona a capacidade deliberativa dos conselhos à deliberação pública e in-
clusiva, à igualdade deliberativa entre os participantes e ao controle e à decisão
sobre as ações públicas. Nesse sentido, a capacidade deliberativa se expressa e
pode ser analisada com base em elementos inerentes aos conselhos, como sua
igualdade deliberativa, decisões e funções prevalentes, bem como a publicação
das suas resoluções. (SOUZA; HELLER, 2019)
Para Souza e Heller (2019), a “igualdade deliberativa” baseia-se principal-
mente na capacidade de verbalização e de influência nas decisões tomadas de
cada um dos segmentos que compõe o conselho. A variável “decisões prevalen-
tes” revela os debates travados nos conselhos e os tipos de decisões tomadas,
permitindo identificar as “funções prevalentes” que eles exercem. Para os au-
tores, a primeira função relaciona-se aos aspectos mais centrais da política
à qual o conselho se vincula, compreendendo a distribuição do orçamento,
proposição de planos de ação, entre outros. Já o acompanhamento e a avalia-
ção das ações do município contemplam a função de controle, expressando-se
por meio de denúncias, propostas de intervenção e avaliação dos serviços
prestados. Na categoria “outras funções”, estão inclusos os debates que cor-
respondem à organização interna e às discussões não relacionadas à política
propriamente dita.

Procedimentos metodológicos
Este trabalho consiste em um estudo descritivo, baseado em pesquisa docu-
mental que adotou, com adaptações, variáveis de análise propostas em outros
estudos, como os de Avritzer e demais autores (2005), Cunha (2007) e Souza e
Heller (2019). Considerou-se para investigação as variáveis reveladoras da di-
nâmica do processo deliberativo desenvolvido nas instituições participativas:
igualdade deliberativa; decisões prevalentes; funções prevalentes; e número de
resoluções publicadas e não publicadas.
Para o estudo dessas variáveis, foram analisadas 14 atas registradas no
CMS/TF nos anos de 2018 e 2019. Procedeu-se à análise de conteúdo das atas

o processo del ib erat ivo n a s i n s ti tu iç õe s pa rtic i pati va s . . . 159


citadas visando à compreensão qualitativa e quantitativa da participação dos
diferentes segmentos no processo deliberativo, bem como dos temas aborda-
dos. O pressuposto é de que a análise de conteúdo possibilita não só a descrição
analítica e sistemática do conteúdo das mensagens, mas também a realização
de inferências a partir da análise dos dados estatísticos decorrentes dessa inter-
pretação, como afirma Cunha (2007).
Assim, para análise da igualdade deliberativa, a participação foi vista a partir
do número de intervenções de cada segmento. Já as decisões prevalentes foram
definidas a partir da identificação e categorização dos temas discutidos e deci-
sões tomadas, de acordo com os critérios definidos na classificação elaborada
e testada por Avritzer e demais autores (2005). A partir dessa categorização,
foi possível explorar os dados de forma a verificar a presença de determinados
temas (perspectiva qualitativa) e a frequência com que apareciam (perspectiva
quantitativa). A verificação do tipo de atribuição/função mais exercida pelo
conselho deu-se a partir do agrupamento dos temas tratados nas reuniões
conforme sua pertinência ao controle, à proposição ou a outros aspectos não
relacionados.1 Dessa forma, foi possível verificar quais temas dominaram os
debates, demonstrando se o conselho atuou mais na formulação de estratégias
ou no controle da execução da política de saúde.
Já sobre a análise das resoluções, Souza e Heller (2019) afirmam que a possi-
bilidade de tensão existente entre o conselho e o Executivo pode ser verificada
através do número de resoluções publicadas e não publicadas. Para tal, foram
verificadas sete resoluções elaboradas pelo conselho nos anos de interesse da
pesquisa e foi consultada a publicação no Diário Oficial do Município.
Após o estudo de todas as variáveis especificadas anteriormente, foi ava-
liado o grau de capacidade deliberativa do CMS/TF, adotando-se as quatro
dimensões avaliativas, conforme o Quadro 1:

1 Os temas foram agrupados do seguinte modo: 1. Proposição sobre a política: deliberação sobre a
política, deliberação sobre o fundo; 2. Controle da política: deliberação sobre questões gerais da
política, a gestão dos serviços, a gestão de especialidades e gestão do atendimento; 3. Outras deli-
berações: organização interna do CMS; violência e saúde; convites/avisos/manifestação; controle
da política; coordenação entre os níveis da política de saúde; expressão (tematização) de proble-
mas públicos não relacionados à política pública e questões gerais.

160 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Quadro 1 – Graus de capacidade deliberativa

Dimensão Alto Médio Baixo

Predominância de Predominância de Predominância de


usuários/sociedade trabalhadores/presta- gestores/poder público
Igualdade deliberativa
civil na vocalização e dores* na vocalização e na vocalização e propo-
proposição de temas. proposição de agenda. sição de temas.

Interferência na Controle das ações Questões de menor


Tipo de decisão
elaboração da política públicas. relevância.
tomada
pública.

Prevalência de funções Prevalência de funções Prevalência de outras


Função exercida
propositivas. de controle. funções.

Decisões não requere- Decisões requerem Decisões requererem


rem homologação do homologação do homologação do
Publicização de Executivo; todas são Executivo; pelo menos Executivo; pelo menos
decisões publicadas; o presi- uma não publicada; uma não publicada;
dente é eleito entre os presidente eleito entre presidente membro do
conselheiros. os conselheiros. Executivo.

* Aplica-se somente aos conselhos de saúde.


Fonte: adaptado de Souza e Heller (2019) e Cunha (2007).

Investigando a capacidade deliberativa do CMS/TF


A análise a seguir se encarrega de visualizar como se dá a participação no con-
selho e o que ocupa espaço na pauta das reuniões, já que elas são variáveis
essenciais para verificar a qualidade da participação, conforme afirmam Souza
e Heller (2019). Assim, o processo decisório é esmiuçado e são investigados a
influência dos atores no debate, os temas dominantes e a função prevalente e,
ainda, verificada a publicação das resoluções elaboradas no biênio em estudo.
Por fim, com essas informações, foi possível examinar o grau da capacidade
deliberativa do CMS/TF.

Igualdade deliberativa
Identificar quem fala no CMS é importante para examinar a capacidade de
expressão dos diferentes atores, conselheiros ou não, em especial a dos ato-
res da sociedade civil (VALE NETO, 2015); afinal, espera-se que as práticas de
negociação de políticas públicas nesse órgão envolvam a pluralidade de atores
sociais que o compõem, quebrando o monopólio estatal nas decisões sobre es-
sas políticas que dizem respeito a toda sociedade. (ALMEIDA, 2006) Com esse

o processo del ib erat ivo n a s i n s ti tu iç õe s pa rtic i pati va s . . . 161


propósito, verificou-se a capacidade de vocalização dos membros do CMS/TF
através da análise das atas disponíveis, identificando as intervenções realizadas
por cada segmento. O resultado dessa análise é demonstrado na Tabela 1, na
qual são apresentadas a frequência e a porcentagem de intervenções por cada
segmento, entre outros participantes das reuniões do CMS/TF:
Tabela 1 – Número de intervenções e porcentagens por segmento participante das reuniões plenárias do CMS/
TF em 2018 e 2019

Segmentos N (2018) % N (2019) % Total %

Governo 07 10,6% 17 14,6% 24 13,2%

Prestador – 0% – 0% 0 0%

Trabalhador da saúde 16 24,2% 21 18,1% 37 20,3%

Usuários 14 21,2% 36 31% 50 27,5%

Presidente e vice-presidente 10 15,2% 27 23,4% 37 20,3%

Ator externo/governo 09 13,6% 11 9,5% 20 11%

Ator externo/sociedade 10 15,2% 04 3,4% 14 7,7%

Total 66 100% 116 100% 182 100%

Fonte: elaborada pelas pesquisadoras a partir das atas de reunião do CMS/TF (2018 e 2019).

Constatou-se, a partir dos dados apresentados, que os usuários são os atores


que têm a participação mais expressiva nos debates (27,5%, N = 50). O segundo
ator em importância no debate é o segmento dos trabalhadores da saúde, com
20,3% (N = 37) de participação. Já os representantes da gestão têm uma baixa
participação (13,2%, N = 24) e os prestadores de serviço não participam. O pre-
sidente e vice-presidente acumulam, sozinhos, 20,3% (N = 37) da participação
– mesma quantidade verificada para o segmento dos trabalhadores. Eles, que
representam a mesa diretora, aparecem como os principais fomentadores das
discussões. Apesar do baixo índice de participação no debate (7,7%, N = 14), é
importante notar a presença de atores sociais que não participam formalmente
do conselho, o que o demonstra como espaço democrático permeável às opi-
niões da sociedade e a uma participação política ampliada. (ALMEIDA, 2006)
Dessa forma, pode-se concluir que os procedimentos institucionais adotados
no CMS/TF possibilitaram a participação dos usuários, atores que, historica-
mente, têm tido menos influência nas decisões sobre ações públicas. (CUNHA,
2007) Portanto, segundo os critérios definidos por Souza e Heller (2019), esse
conselho possui grau alto nessa dimensão avaliativa.

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Decisões e funções prevalentes
Seguindo as instruções de Avritzer e demais autores (2005), para identificar as
decisões e funções prevalentes do CMS/TF, o conteúdo das atas desse conselho
foi explorado, classificado e agrupado. Assim, a Tabela 2 apresenta as frequências
dos temas discutidos nas reuniões plenárias que ocorreram no biênio estudado,
bem como a frequência e porcentagem da pertinência desses temas em relação
às funções de controle, propositiva ou a outros aspectos não relacionados:
Tabela 2 – Decisões e funções prevalentes no CMS/TF em 2018 e 2019

Funções
Categorias N Total %
prevalentes

Proposição Controle da política de saúde 10 12 18%


sobre a política Controle do fundo e financiamento da saúde 02

Questões gerais da saúde –

Controle Gestão atendimento – assistência/atenção em saúde 05 28 43%


da política Gestão de serviços 10

Gestão de especialidades 13

Organização interna do CMS 06

Violência e saúde 02
26 39%
Outras Convites/avisos/manifestações 16
deliberações Controle da política –

Coordenação entre os níveis da política de saúde –

Expressão (tematização) de problemas públicos 02

Total 66 66 100%

Fonte: elaborada pelas pesquisadoras a partir das atas de reunião do CMS/TF (2018 e 2019).

Em relação aos temas discutidos, constata-se, inicialmente, a predomi-


nância de temas categorizados como “Convites/avisos/manifestações” (N = 16),
categoria que se refere às informações sobre eventos externos ao CMS e às
demandas por mobilização em relação a temas mais gerais. Em seguida, des-
taca-se a categoria “Gestão de especialidades” (N = 13), que reúne as discussões
sobre os serviços de nível secundário, relacionados aos hospitais, Unidade de
Pronto Atendimento (UPA), centro de reabilitação, entre outros. Por último
e empatadas (N = 10 cada), seguem as discussões sobre os temas classificados

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como “Gestão de serviços” e “Controle da política de saúde”. O primeiro abran-
ge as discussões sobre os serviços de atenção básica relacionados aos postos
de saúde, e o segundo abarca as questões pertinentes à política de saúde.
Observou-se que as demais categorias foram pouco exploradas pelo conselho.
Segundo demonstram esses dados, no CMS/TF prevaleceram, nos anos de
2018 e 2019, debates e decisões relacionados ao controle da política e à fiscali-
zação do que já foi implementado pela gestão (43%, N = 28), em detrimento das
questões mais propositivas em relação à política de saúde (18%, N = 12) e das
questões mais gerais ou que envolviam apenas a sua forma de funcionamento
e organização interna (39%, N = 26).
Observou-se que o CMS/TF tem se ocupado prioritariamente com questões
relacionadas à fiscalização da execução das ações pelo governo – fiscalização
dos serviços, das estruturas físicas das unidades, da paralisação das obras, da
implantação do atendimento humanizado, da marcação de exames, aprecia-
ção de auditoria, entre outros –, abdicando de sua função de propositor das
políticas de saúde do município de forma substantiva na elaboração de nor-
mas para o aperfeiçoamento da saúde, de diretrizes para gestão democrática da
rede, na fiscalização da distribuição de recursos, só para citar algumas de suas
competências. Esses resultados corroboram estudos anteriores que indicam a
baixa capacidade propositiva dos conselhos – como, por exemplo, os trabalhos
de Cunha (2007), Carvalho (1995) e Tatagiba (2002) – e reafirmam a opinião
de Tatagiba (2002) quando a autora declara que os conselhos funcionam
mais como fiscalizadores, no intuito de reduzir a possibilidade de transgres-
são pelo Estado, em razão da forte ligação com a população – funcionando
como porta-vozes das suas demandas –, sendo mais reativos que propositivos,
pela dificuldade de propor ações inovadoras. Portanto, nas variáveis “decisões
prevalentes” e “funções prevalentes”, o CMS/TF foi avaliado em grau médio,
devido à predominância da função de controle. (SOUZA; HELLER, 2019)

Resoluções publicadas e não publicadas


Após o levantamento das resoluções elaboradas em dois anos de atuação do
CMS/TF, observou-se que apenas um pequeno número de decisões foi trans-
formado em resoluções, o que nos leva a questionar a capacidade deliberativa
desse conselho. Para Tatagiba (2002), o número reduzido de resoluções pode

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estar relacionado com o cerceamento intencional da capacidade de deliberação
dos conselhos por parte do Executivo e sua dificuldade de compartilhar o poder.
A seguir, na Tabela 3, são apresentados os resultados da pesquisa acerca da
quantidade de resoluções elaboradas e a publicidade dada a estas:
Tabela 3 – Resoluções do CMS/TF publicadas e não publicadas nos anos de 2018 e 2019

Ano Total de resoluções Publicadas % Não publicadas %

2018 05 02 40% 03 60%

2019 02 02 100% – 0%

Total 07 04 57% 03 43%

Fonte: elaborada pelas pesquisadoras a partir da consulta realizada no Diário Oficial do Município de Teixeira de Freitas
e das resoluções do CMS (2018 e 2019).

Observou-se que, do total de sete resoluções do CMS/TF, 43% (N = 03) não


foram publicadas pelo Executivo. Apesar de a maioria ter sido publicada (57%,
N = 04), o número ainda é baixo, considerando a pequena quantidade de re-
soluções elaboradas. Souza e Heller (2019) afirmam que a obrigatoriedade de
submeter as resoluções à homologação do secretário para sua posterior publi-
cação evidencia uma restrição à capacidade deliberativa dos conselhos. Dessa
forma, conforme a orientação desses autores, como as decisões do CMS/TF
requerem homologação do Executivo e este possui resoluções não publicadas,
essa variável também foi classificada em grau médio.
Portanto, a conclusão da análise das quatro dimensões determinantes para a
verificação da capacidade deliberativa do CMS/TF foi sintetizada no Quadro 2,
a seguir:
Quadro 2 – Graus de capacidade deliberativa do CMS/TF nos anos de 2018 e 2019

Dimensões Grau de avaliação Critérios para enquadramento

Predominância de usuários/sociedade civil na


Igualdade deliberativa Alto
vocalização e proposição de temas.

Tipo de decisão tomada Médio Controle das ações públicas.

Função exercida Médio Prevalência de funções de controle.

Decisões requerem homologação do Executivo;


Publicização de decisões Médio pelo menos uma não publicada; presidente eleito
entre os conselheiros.

Fonte: elaborado pelas pesquisadoras a partir das atas e resoluções do CMS (2018 e 2019) e dos critérios de classificação
de Souza e Heller (2019).

o processo del ib erat ivo n a s i n s ti tu iç õe s pa rtic i pati va s . . . 165


Assim, a partir do posicionamento do conselho em relação ao conjunto
de variáveis que determinam a sua capacidade deliberativa, constatou-se que
o CMS/TF possui média capacidade deliberativa. O déficit em uma das va-
riáveis poderia ser compensado por outras, produzindo um resultado melhor;
entretanto, não houve variação de grau que alterasse significativamente a sua
classificação final. Dessa forma, a capacidade de influenciar e propor políticas
públicas em saúde não é uma consequência do processo deliberativo, mas con-
siste em um desafio a ser superado.
Esses resultados corroboram com estudos anteriores. No plano nacional, há
relatos de investigações conduzidas na Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte
e Pará que demonstram a existência de resultados semelhantes aos encontrados
no CMS/TF. Nos estudos de Cunha (2007), a autora constatou que a maioria
dos conselhos de saúde pesquisados nos estados da Bahia e Pernambuco pos-
suía média capacidade deliberativa; entretanto, ressaltou que os conselhos de
saúde com alta capacidade deliberativa situavam-se em municípios governados
por partidos com projetos políticos sustentados na ampliação da participação
popular. No Conselho Municipal de Saúde de Mossoró (RN), pesquisado por
Vale Neto (2015), também foi constatada uma média capacidade deliberativa
em razão de nesse conselho não ter havido uma participação significativa do
segmento de usuários e por existirem limitações ao exercício da função de for-
mulador da política de saúde, entre outras questões. Por fim, no Conselho de
Saúde de Belém (PA), em pesquisa realizada por Souza e Heller (2019), também
foi identificada média capacidade deliberativa, estando todos esses conselhos
ainda distantes do grau de capacidade deliberativa desejado.

Considerações finais
A análise aqui empreendida revelou que os conselhos gestores possuem grande
importância na democracia brasileira, pois foram instituídos em decorrência da
intensa mobilização dos diversos movimentos sociais durante o processo de re-
democratização. Essa mobilização foi capaz de abrir espaço para a regulamenta-
ção desses locais plurais, permitindo a inclusão da sociedade no debate político
brasileiro e estabelecendo, assim, uma nova relação entre o Estado e a sociedade.
Nesse contexto, os conselhos de saúde foram criados para garantir a in-
serção dos indivíduos na gestão pública da saúde e, hoje, são considerados os

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conselhos mais consolidados do país, através dos quais as responsabilidades
sobre a gestão da saúde são compartilhadas. Para tanto, os conselhos devem se
apresentar como locais em que os usuários têm a oportunidade de se expres-
sar e influenciar as decisões políticas e o controle público sobre as ações e os
recursos públicos utilizados pelo seu município. (CUNHA, 2007) Entretanto, o
estudo empírico do CMS/TF demonstrou que esse conselho, especificamente,
não possui o grau de capacidade deliberativa desejado, considerando os seus
anos de exercício democrático de participação.
A partir da análise de conteúdo das atas das reuniões do CMS/TF, foi possí-
vel verificar, de forma positiva, que os mecanismos que regulam esse conselho
têm proporcionado a escuta dos atores sociais que foram colocados, por muito
tempo, à margem das discussões políticas: os usuários. Porém, quanto à análise
do processo decisório, observou-se que tanto as decisões quanto as funções
prevalentes demonstraram que o CMS/TF tem influenciado pouco a formula-
ção da política pública, restringindo-se ao acompanhamento dela a partir do
controle social. Tal resultado pode ser explicado devido à histórica imposição
– de cima para baixo – de decisões que envolvam planejamento, execução e
avaliação das políticas públicas. Em linhas gerais, entretanto, mesmo diante
das dificuldades para proposição das políticas públicas, é preciso ressaltar que
estas não foram suficientes para impedir que os conselheiros realizassem a
avaliação e o acompanhamento das ações públicas visando a uma rede assis-
tencial de saúde voltada ao atendimento das necessidades da sociedade local.
A consulta às resoluções publicadas e não publicadas feita no Diário Oficial
do Município mostrou que poucas decisões do conselho foram materializadas
em resoluções e, destas, nem todas foram publicadas, refletindo a limitação da
secretaria executiva e do próprio conselho, que não foi capaz de dar publicida-
de ou andamento/efetividade às decisões tomadas em plenária.
Dessa forma, conclui-se, a partir da análise realizada, que, para que o conse-
lho não atue apenas como uma mera instância consultiva e opinativa, mas tenha
capacidade e poderes normativos de decisão com a efetiva participação dos
conselheiros nas demandas da gestão em saúde, é imprescindível desenvolver
algumas condições e articulações e dar peso político a essa representativida-
de e à instituição. Dentre as ações necessárias, destacamos a necessidade de:
1. oferecer as estruturas física, administrativa e pessoal imprescindíveis para o
funcionamento do referido conselho; 2. propiciar condições para a existência

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não apenas de paridade numérica, como também para o acesso e o exercício da
participação, considerando que os sujeitos carregam consigo capitais que são
socialmente herdados – econômico, social, cultural –, capazes de colocá-los em
condições mais ou menos favoráveis diante das exigências do seu papel de con-
selheiro (BOURDIEU, 1992); 3. ofertar não apenas cursos técnicos, mas incluir
cursos de formação, atualização e capacitação ético-políticos dos conselheiros,
que tenham como referência um modelo cidadão de participação social que
vislumbre mudanças na sociedade.
Como esta pesquisa mostrou-se insuficiente para verificar se a partici-
pação nessa instância se traduziu em práticas no âmbito da gestão pública,
sugere-se, para estudos futuros, agregar outros elementos avaliativos para ob-
ter informações em relação aos resultados dos processos deliberativos, como,
por exemplo, quais foram os destinos das decisões, possibilitando verificar em
que medida houve, de fato, a implementação de deliberações do CMS/TF no
âmbito das políticas públicas de saúde do município.

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170 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Vozes da violência obstétrica no Fórum
da Rede Cegonha da região de saúde de
Porto Seguro1

Eduarda Motta Santos


Rafael Andrés Patiño

Introdução
O Fórum da Rede Cegonha (RC) da região de Porto Seguro iniciou-se em 22 de
agosto de 2018, tendo sido realizados 15 fóruns até o momento. O Fórum da
RC se configura como um grupo interinstitucional e multiprofissional, com
o objetivo de discutir e debater sobre a atenção perinatal a mães e crianças,
colocando em evidência os problemas da linha do cuidado materno e infantil.
(BAHIA, 2016) Um dos temas recorrentes nos fóruns é a violência obstétrica,
que aparece como assunto a ser discutido e enfrentado ou como depoimento
de experiências das participantes do fórum. As denúncias de violência obsté-
trica foram uma das molas propulsoras do surgimento desse fórum, já que, em
2017, aconteceu uma conferência livre de mulheres de Porto Seguro, na qual
foi apresentada uma série de denúncias de violência obstétrica no município.
Motivado por tais denúncias, foi realizado o primeiro encontro entre gestão
hospitalar, base regional de saúde, Secretaria Municipal de Saúde e controle
social para discutir formas de enfrentamento ao problema, o que pode ser con-
siderado a semente do fórum regional.
No Brasil, a violência obstétrica vem sendo debatida por movimentos so-
ciais e divulgada a cada dia, especialmente através de redes sociais – sites, blogs,

1 Agradecimentos ao apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq), por meio da Chamada nº 28/2018 – Universal.

171
vídeos etc. –, a exemplo da “[...] ReHuNa (Rede de Humanização do Parto e
do Nascimento), nascida em 1993, como articuladora de estudos e de propos-
tas críticas do modelo de assistência médica ao nascimento vigente no país”.
(CARNEIRO, 2013, p. 52)
Apesar de o tema da violência obstétrica já aparecer internacionalmen-
te desde a década de 1950, denunciando os maus-tratos na hora do parto, e,
no Brasil, embora já houvesse estudos e pesquisas que abordassem o tema, a
pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado (2010) “con-
tribuiu de forma inédita para a visibilidade do tema da violência obstétrica,
despertando surpreendente interesse da grande mídia”. (DINIZ et al., 2015,
p. 378) Essa pesquisa apontou que uma entre quatro mulheres sofreu violên-
cia obstétrica, dado que expressa a magnitude do agravo e impacto na saúde
pública no Brasil. A própria nomeação “violência obstétrica” é polêmica, sendo
também conhecida como violência institucional, maus-tratos no parto, vio-
lência de gênero, entre outras. Neste trabalho a opção é de nomear e tratar a
violência obstétrica como tal, já que ela é descrita pelas mulheres na relação
com a equipe responsável pelo acompanhamento da gestação ou no processo
do parto. O conceito de violência obstétrica foi legalizado em alguns países, a
exemplo da Venezuela, que tipifica como:

Qualquer conduta, ato ou omissão por profissional de saúde, tan-


to em público como privado, que direta ou indiretamente leva à
apropriação indevida dos processos corporais e reprodutivos das
mulheres, e se expressa em tratamento desumano, no abuso da
medicalização e na patologização dos processos naturais, levando
à perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre
seu corpo e sexualidade, impactando negativamente a qualidade de
vida de mulheres. (LEY..., 2017, p. 30 apud TESSER, 2015, p. 3)

Essa noção de violência obstétrica da Venezuela é utilizada integral ou


parcialmente por diversos pesquisadores brasileiros, tais como Diniz e demais
autores (2015); Zanardo e demais autores (2017); D’Oliveira, Diniz e Schraiber
(2002); e Lansky e demais autores (2019). Alguns conceitos de violência obs-
tétrica focam mais nas agressões sofridas pela mulher no momento do parto,
entre elas o uso excessivo de medicamentos e intervenções não consentidas ou
desnecessárias, não baseadas em evidências científicas, tais como: a raspagem

172 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


dos pelos pubianos, episiotomias2 de rotina, realização de enema, indução do
trabalho de parto e a proibição do direito ao acompanhante escolhido pela
mulher durante o trabalho de parto. (DINIZ, 2009; D’OLIVEIRA; DINIZ;
SCHRAIBER, 2002; LEAL et al., 2014) Outros conceitos são mais abrangentes,
envolvendo todo processo, desde o início da gestação até o pós-parto, que en-
volva sofrimento desnecessário imposto por profissional de saúde.
A perspectiva teórico-metodológica da interseccionalidade (CRENSHAW,
1991 apud SANTOS, 2017) permite analisar as desigualdades relativas a ques-
tões de raça, etnia, gênero ou classe social, evidenciando como as mulheres
negras, indígenas e pobres são as que mais sofrem violência obstétrica. Gestar
e parir para uma mulher negra de classe baixa de São Paulo é uma experiência
radicalmente diferente da gestação e parto da mulher indígena da zona rural
da Bahia ou da mulher branca e de classe alta de Brasília. Não só a gestação e
o parto, mas a possibilidade de planejamento sexual e reprodutivo está intrin-
secamente marcada por condicionantes e variáveis históricas, sociais e raciais.
Essa perspectiva denuncia e evidencia as diferentes experiências de materni-
dade vivenciadas por mulheres, muitas vezes ocultas pelo ideal moderno que
homogeneíza os sujeitos e evita identificar como a violência obstétrica afeta as
mulheres subalternizadas. (SANTOS, 2017)
Este trabalho nasce da pesquisa de mestrado em andamento: “Fórum
da Rede Cegonha: um lugar de significações e transformações”. Neste texto,
apresentamos os aspectos e fatores associados às ocorrências da violência obs-
tétrica na região de saúde de Porto Seguro e os tipos de violência relatados a
partir da percepção e das experiências das participantes do fórum.

Discursos e vozes sobre a violência obstétrica no


Fórum da RC: o que nos contam os documentos
Dentro de um estudo de caso qualitativo, visando compreender de forma mais
detalhada a realidade interna do fórum – perfis dos participantes, temas que
permeiam os encontros, referência ao tema e frequência das discussões sobre
violência obstétrica –, foram analisadas as atas das 15 reuniões do fórum, to-
mando como referência a técnica de análise documental.

2 Episiotomia é uma incisão efetuada na região do períneo – área muscular entre a vagina e o ânus
– para ampliar o canal de parto.

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 173


Além das atas, foram integrados à análise uma carta aberta e um ofício,
ambos apresentados no fórum. A carta do coletivo de mulheres Parto Seguro,
apresentada em redes sociais e no XIV Fórum, configura-se como uma reivin-
dicação para a construção de uma casa de parto em Porto Seguro. O ofício,
elaborado pela equipe médica de um hospital da região, denuncia as condições
de trabalho frente à sobrecarga ocasionada pelo elevado número de pacien-
tes. (IGH, 2019) Foi utilizado ainda um vídeo produzido pelo Coletivo Parto
Seguro, com vozes das mulheres que sofreram violência obstétrica durante o
parto no hospital da região. (VIOLÊNCIA..., 2019)
Todos os documentos foram registrados ou apresentados no fórum no pe-
ríodo de agosto de 2018 a junho de 2020, totalizando para análise 15 encontros.
Para cada encontro do fórum, foi elaborada uma ata, registrada por técnicos da
base regional de saúde e aprovada pelos participantes. A análise das atas e das
falas do vídeo foi realizada em uma unidade hermenêutica composta por todos
os textos transcritos e integrados dentro do software Atlas.ti, o qual permite
construir relações entre as categorias orientadoras e emergentes.
A partir da observação participante, constatou-se que as atas nem sem-
pre conseguem captar e/ou registrar o calor e as emoções advindas no fórum.
Talvez por ser um registro formal realizado pela gestão regional, o foco das
atas se concentra nos problemas, nas possibilidades de encaminhamentos e
soluções apresentados no fórum relativos à rede materno-infantil. Mas, em
contrapartida, as atas revelam os pontos de atenção – básica, regulação, trans-
porte, assistência especializada e hospitalar – da rede materno-infantil, seus
nós e seu esforço de tessitura, permitindo avaliar os fatores associados à violên-
cia obstétrica a partir do olhar dos participantes. Já o vídeo transcrito permitiu
a análise dos tipos de violência obstétrica sofridos por essas mulheres.

Sobre o fórum
Os fóruns contaram com a presença dos seguintes representantes: Área
Técnica de Saúde da Mulher, Diretoria de Atenção Básica, Núcleo Regional
Extremo Sul e Base Regional Eunápolis, vinculados à Secretaria da Saúde do
Estado da Bahia (Sesab); Conselho Estadual de Secretários Municipais de Saúde
(Cosems); prefeitos; gestores municipais dos oito municípios que compõem
a região, representados por secretários de saúde, atenção básica, hospitalar,

174 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


regulação e vigilância epidemiológica; representante indígena; diretores e
equipe profissional dos hospitais; profissionais de saúde, como enfermeiro,
médico, técnico de enfermagem, agente comunitário, assistente social, psicó-
logo e doulas; controle social, através do Coletivo Parto Seguro, Conselho de
Saúde e a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Os encontros apresentaram uma média de 35 participantes no geral, tendo
como excepcionalidade o XI Fórum, o de maior público, com 220 participan-
tes, que discutiu o enfrentamento da sífilis congênita ocorrido no município
de Porto Seguro.
As pautas principais (temas) do fórum são escolhidas na sessão anterior em
consenso entre os participantes, assim como é feita a escolha do apresentador
da temática. Os temas principais foram: a política da RC; pré-natal de risco
habitual; saúde indígena e RC; fluxo de cuidado no pré-natal; regulação da ges-
tante; dificuldade de vagas para leitos de alto risco; integração entre atenção
básica e hospitalar; criação do ambulatório de alto risco regional; plano de par-
to; transferência e transporte da gestante através do Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência (Samu); empoderamento das gestantes, com rodas de con-
versa de gestante na atenção básica; situação das maternidades na região de
saúde; Acolhimento com Classificação de Risco (ACCR); enfrentamento da
sífilis congênita. Todas as decisões de encaminhamentos são tomadas a partir
do consenso grupal, em que todos têm direito a fala e voto. A mediação das
discussões é feita pela coordenadora ou vice-coordenadora regional do fórum,
que são técnicas da Base Regional de Saúde Eunápolis.
Ao final de cada fórum, são decididos os encaminhamentos pactuados pe-
los presentes e encaminhados à Comissão de Intergestores Regionais (CIR). Os
encaminhamentos desses encontros que têm relação com o enfrentamento da
violência obstétrica foram: progressão de todos os municípios no componente
pré-natal, conforme Portaria de Consolidação nº 3/2017, anexo II, principal-
mente nos quesitos de captação precoce, classificação de risco gestacional,
vinculação da gestante, construção de fluxo de pré-natal de risco habitual e
pré-natal de alto risco tipo I e tipo II; cumprimento da lei do direito ao acom-
panhante; realização de vistoria hospitalar realizada pela Vigilância Sanitária
(Visa) e por técnicos do Grupo de Trabalho (GT) da RC; contratação de en-
fermeiras obstétricas em todos os municípios; adesão pelos municípios ao
sistema próprio da Central de Regulação, o Sistema de Regulação e Urgência

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 175


(Surem), para regulação hospitalar; abertura de 30 vagas de pré-natal de alto
risco no Hospital Deputado Luís Eduardo Magalhães (HDLEM); necessidade
de construção da casa de parto e/ou maternidade em Porto Seguro; solucio-
nar as dificuldades de atendimento da Samu nas transferências hospitalares;
implantação do formulário Plano de Parto; realização de um plano de enfren-
tamento para a redução de cesárea. Além dessas temáticas associadas, também
é tema central, de forma explícita, a criação de estratégias para combater a
violência obstétrica.
As temáticas e os encaminhamentos dos encontros do fórum são esforços
coletivos de enfrentamento aos entraves técnicos, organizacionais, estruturais
ou culturais, fatores que impedem que a gestante tenha a garantia do direito ao
parto seguro e humanizado previsto na política da RC. Assim como apontam
Diniz e Chacham (2006 apud ZANARDO et al., 2017, p. 8): “há necessidade
de profundas transformações na assistência obstétrica no Brasil, visando à
prevenção de cesáreas e episiotomias desnecessárias e a promoção do parto
vaginal normal, sem intervenções”.

Fatores associados à violência obstétrica


Durante a análise das atas, emergiu uma nova categoria, para além dos tipos
de violência obstétrica, que atravessa as discussões no fórum. Gestores, traba-
lhadores e usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) referem alguns fatores
associados à ocorrência da violência obstétrica. Esses fatores foram agrupados
em três subcategorias: estruturais, organizacionais e culturais.

fatores estruturais

Como questões estruturais, aparecem nas atas a ambiência hospitalar pre-


cária, a ausência de casa de parto e maternidade na região, a alta rotatividade
de profissionais e as dificuldades de transporte.
A ambiência precária é uma realidade de todos os hospitais da região, já
que suas construções são anteriores à Resolução da Diretoria Colegiada (RDC)
nº 36/2008, que prioriza os quartos individualizados, de modo que a gestante
possa realizar o trabalho de pré-parto, parto e pós-parto no mesmo ambiente,
reduzindo o risco de contaminação e de exposição a doenças. A realidade es-
trutural dos hospitais de quartos com vários leitos reduz ou anula o direito

176 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


à privacidade, assim como a existência de enfermarias pequenas com vários
leitos, em alguns hospitais, dificulta a presença do acompanhante e o uso de
métodos não convencionais para alívio da dor – como deambulação e uso
da bola Bobath. O efeito protetor da presença do acompanhante pode inibir
excessos e abusos, além de estimular uma relação mais cordial por parte da
equipe. Essa prática pode ser especialmente importante para mulheres em si-
tuação de vulnerabilidade socioeconômica. (DINIZ et al., 2014, p. 150)
Também contribui para a existência de violência obstétrica a ausência de
casa de parto na região. Embora estejam previstas duas casas de parto no plano
de ação da RC regional, as duas propostas de construção de casa de parto ainda
não se efetivaram. Atualmente, as mulheres não têm outra opção a não ser pa-
rir no hospital geral de seu município ou ir para o hospital estadual em Porto
Seguro. No período de pandemia de Covid-19, essa situação ampliou o descon-
forto e o risco de contaminação das gestantes, já que o hospital estadual, que é
a única referência para parto das habitantes de Porto Seguro, virou referência
para tratamento da Covid-19. Devido ao risco de contaminação no ambiente
hospitalar, as visitas e a presença do acompanhante foram suspensas, deixando
a mulher mais receosa e vulnerável a sofrer violência obstétrica.
A ausência de maternidade em Porto Seguro, município com média de
3 mil partos anuais, provoca a ocupação dos leitos destinados aos partos de alto
risco da região de saúde no HDLEM, gerando uma superlotação do referido
hospital, ocupação indevida de leito de alto risco por gestantes de risco habi-
tual, com consequente desassistência regional para o alto risco.
Finalmente, são relatadas situações que afetam a gestante e puérpera re-
lativas ao transporte. A primeira é a transferência via Samu entre hospitais.
Gestores colocam que a demora do envio da ambulância para o hospital com
porte adequado ao risco clínico coloca a gestante e o bebê em risco de vida.
Essa problemática fere o componente IV, “Sistema Logístico: transporte sa-
nitário e regulação”, da Portaria de Consolidação nº 3/2017, anexo II, no que
se refere à “[...] promoção, nas situações de urgência, do acesso ao transpor-
te seguro para as gestantes, as puérperas e os recém-nascidos de alto risco,
por meio do Sistema de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU Cegonha”.
(BRASIL, 2017a) A segunda é o transporte indevido em ambulância básica,
sem a presença do médico ou outro profissional de saúde, colocando a mulher
em risco durante o transporte e sem comunicação prévia com o hospital de

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 177


destino, como relatado na ata do IV Fórum: “casos graves recentes chegados
no HDLEM como ambulância com gestante de risco, sem nenhum agente de
saúde acompanhando; [...] feto morto em saco junto a gestante”. (FÓRUM DA
REDE CEGONHA, 2018) Esses casos contradizem a Resolução do Conselho
Federal de Medicina (CFM) nº 1.672/2003, que normatiza o transporte inter-
-hospitalar de pacientes.
A pouca quantidade de transporte do Samu avançado para atender toda
a região, tendo que abarcar as emergências em via pública, em domicílio e as
transferências inter-hospitalares, contribui para a demora nas transferências,
assim como informações insuficientes prestadas pelo médico local ao médico
regulador, segundo relato do coordenador da Samu no VI Fórum da RC. Da
mesma forma, a pouca quantidade de membros nas equipes em hospitais de
pequeno porte dificulta a presença do profissional dentro da ambulância, con-
forme o preconizado.

fatores organizacionais

Muitas são as questões organizacionais que se associam à violência obsté-


trica, desde a organização da rede materno-infantil da região até as questões de
gestão interna no hospital. A seguir, serão listadas as principais.
A superlotação no hospital estadual, além de diretamente ligada à ausência
de maternidade no município de Porto Seguro, relaciona-se à não responsa-
bilização dos partos de risco habitual pelos municípios de pequeno porte e ao
excesso de casos leves para consulta obstétrica no hospital, que deveriam ser
referenciados à atenção básica. Outro fato apontado na IV ata é o horário redu-
zido de funcionamento da atenção básica no município de Porto Seguro, que
somente funciona das 8h às 14h, o que leva as gestantes a buscarem o hospital
de referência regional em qualquer tipo de intercorrência no período da tarde.
Os médicos do HDLEM escreveram uma carta aberta ao hospital, apresentada
no fórum, colocando o quanto a superlotação traz sobrecarga de trabalho e
dificulta o devido cuidado à gestante durante o trabalho de parto. Os profis-
sionais denunciam a

[...] exponencial demanda de consultas não urgentes no nosso pron-


to socorro obstétrico, correspondendo a mais de 80% de todos os
atendimentos realizados. Essa situação é inadequada e gravíssima,

178 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


pois toma tempo do obstetra e das enfermeiras plantonistas, que
se veem impelidos a interromper a assistência às pacientes de alto
risco e em trabalho de parto, para atender pacientes não urgentes.
(IGH, 2019, p. 2)

Outros aspectos destacados são a descontinuidade na assistência e a co-


municação falha. A falta de comunicação e de continuidade entre as instâncias
de atenção à saúde dentro do próprio município e entre o município e a re-
ferência hospitalar regional leva a gestante à peregrinação e à desassistência.
A assistência na atenção básica é interrompida em muitos municípios no final
do ano, chegando a ficar três meses sem atendimento, interferindo no pré-na-
tal, que, por sua vez, repercute no parto.
A demora no resultado dos exames é outra questão relatada pelos médicos
como algo que interfere no pré-natal, levando a um encaminhamento para o
hospital, já que a segurança na avaliação clínica fica reduzida. Na ata da IX
reunião do fórum, o médico da atenção básica do município de Guaratinga
colocou: “muitos dos encaminhamentos realizados para hospital decorrem da
dificuldade de acesso a exames e laboratório enfrentados por usuários e pro-
fissionais, que reduz a segurança assistencial” (FÓRUM DA REDE CEGONHA,
2019a), afirmando ainda que, assim como o acolhimento, “[...] a atenção huma-
nizada é essencial no atendimento aos usuários, principalmente aqueles com
baixa escolaridade, como é a realidade da população que assiste”. (FÓRUM DA
REDE CEGONHA, 2019a)
A ausência de organização, prevista na RC, da rede materno-infantil com
plano de parto, vinculação da gestante e ausência de classificação de risco,
dificulta o cuidado humanizado, reduz o protagonismo da mulher no parto,
favorece a peregrinação no momento do parto e dificulta o cuidado obstétrico
no momento oportuno.
A escassez de recursos é uma expressão muito repetida nas atas, geral-
mente usada como empecilho para a mudança, como coloca o secretário de
Saúde do município de Cabrália na V ata do Fórum da RC: “a dificuldade é de
contratação de médicos obstetras e médicos clínicos na região”. Diante dessa
realidade, os gestores dos hospitais se veem impossibilitados de demitir, por
exemplo, um médico que tenha uma conduta não condizente com o cuidado
humanizado preconizado pelos protocolos e diretrizes do Ministério da Saúde.

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 179


Também há escassez de pessoal de enfermagem qualificado na rede de
assistência local. Segundo Amaral e demais autores (2019), a participação das
enfermeiras obstétricas na assistência ao parto e ao nascimento, contribui para
a humanização do parto, segundo as diretrizes da RC, reduzindo o número de
cesárias e intervenções desnecessárias. A falta de enfermeiras obstétricas nos
hospitais de pequeno porte pode ser considerada um impasse para a realização
de partos de risco habitual, tendendo ao encaminhamento para o hospital de
médio porte.
Outro fator organizacional associado à violência obstétrica é a não adesão
às boas práticas de parto e nascimento. Não faltam, atualmente, informações,
protocolos e diretrizes que definam práticas baseadas em evidências científicas
que protegem a mulher de intervenções desnecessárias sobre seu corpo e fa-
vorecem um parto seguro e humanizado. (BRASIL, 2017b; OMS, 1996) Porém,
algumas instituições não se aplicam para implantar as normativas, cedendo à
resistência de alguns médicos e enfermeiros.

fatores culturais

Além das questões organizacionais e estruturais, ainda aparecem nas atas


questões culturais. A região de saúde abarca aldeias indígenas em seu territó-
rio; representantes indígenas participam do fórum, e o XII Fórum foi realizado
dentro da aldeia Reserva da Jaqueira. Na ata do XII Fórum, aparece na fala da
parteira local que a “redução do número de parteiras indígenas também é uma
realidade que vem contribuindo para a redução de partos na aldeia, assim como
o medo das indígenas mais jovens de parir na aldeia”. Com a proximidade da
cultura não indígena, em que o parto foi institucionalizado no hospital, as
jovens indígenas são convencidas pela ideia de que parto seguro é o parto hos-
pitalar, mesmo que seus descendentes tenham nascido em segurança e sem
violência na aldeia, pelas mãos das parteiras. Nessa mesma ata, encontra-se a
fala da parteira da Reserva da Jaqueira:

[...] as mulheres jovens da aldeia têm medo de fazer o parto com


parteiras, não entendo o porquê desse medo, visto que o parto na-
tural é a saúde da mulher, caminhar com a mulher, banho da folha
e flor do mamão macho e para agiliza o delivramento, o banho do
chá de canela. A melhor posição para parto é a de cócoras e que o
parto deitado não é bom, pois o bebê dorme. A parteira só assiste

180 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


ao parto quando é requisitada, que não é contra o médico branco,
mas que na minha opinião, a mulher indígena deve ter seus partos
em casa. (FÓRUM DA REDE CEGONHA, 2019b)

Para as participantes do fórum, esses fatores favorecem que a gestante


ou puérpera sofra algum tipo de desconforto, maus-tratos ou risco de vida.
Adicionalmente, várias das situações relatadas violam os direitos das mulheres
durante a gestação e o parto.

Tipos de violência obstétrica, formas de desrespeito e


esferas de reconhecimento
Existem diferentes classificações e tipos de violência obstétrica. D’Oliveira,
Diniz e Schraiber (2002) identificam quatro tipos, sendo eles: negligência, vio-
lência psicológica, violência física e violência sexual. Já Bowser e Hill (2010)
ampliam a classificação para sete tipos de violência obstétrica e os correlacio-
nam com tipos de direitos feridos correspondentes, afirmando que não são
categorias excludentes, mas geralmente se apresentam justapostas.
A violência obstétrica não é o tema principal das atas dos Fóruns da RC da
região de Porto Seguro, mas foi assunto de discussões em sete encontros, sen-
do citada em 11 atas. Em sete delas, as situações foram trazidas por mulheres
do Coletivo Parto Seguro através de falas, vídeo e carta que denunciam como a
violência obstétrica é presente na região e como isso afeta as mulheres que pas-
saram por essa experiência. Com a observação participante, foi possível verificar
que nem todas as falas sobre violência obstétrica foram registradas em atas.
Tomando como referência os tipos de violência obstétrica descritos por
Bowser e Hill (2010), foram levantadas as seguintes categorias encontradas
nos documentos analisados: discriminação baseada em certos atributos; abuso
verbal e cuidado indigno; abuso físico; imposição de intervenção não consen-
tida; cuidado não privativo; abandono, negligência ou recusa de atendimento;
empecilho ou restrição ao apoio, vigilância e solidariedade. Essa última cate-
goria foi inserida devido à relevância e ao impacto dessa privação de direito da
mulher. Apesar de estar garantida em lei a possibilidade do acompanhante, é
uma prática comum impedir a entrada do acompanhante durante o trabalho
de parto e o parto em si, aumentando a vulnerabilidade da mulher. A categoria
“detenção no serviço” foi suprimida por não aparecer nos documentos.

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 181


Além dessa classificação, tomaremos como referência para a análise das
formas de violência obstétrica a teoria do reconhecimento intersubjetivo de
Axel Honneth (2003), a partir da qual defendemos que tais práticas configuram
formas de desrespeito que ferem a autorrelação das mulheres, afetando sua
autoestima de diversas formas em função da(s) esfera(s) de reconhecimento
afetada(s): amor, direito e/ou solidariedade.
Para Honneth, a construção de uma relação positiva do sujeito consigo
mesmo se dá no âmbito das relações intersubjetivas de reconhecimento em
três esferas. Por esse motivo, as distintas formas de violência afetam inten-
samente a qualidade das relações dos sujeitos consigo mesmos. A forma de
reconhecimento própria da esfera do amor consiste nas relações primárias de
amor e amizade. A essa forma de reconhecimento, correspondem os maus-
-tratos físicos e a violação como tipos de desrespeito. Na violência obstétrica,
o abuso físico frequentemente toma a forma de intervenções não consentidas,
como relatado por uma puérpera da região no vídeo analisado: “[...] aí toda
hora elas vem e faz um toque, faz um toque, toda hora um toque. Cada toque
doía na alma” (Puérpera 1). O toque ginecológico é um procedimento clínico,
mas, quando realizado de modo repetitivo e desnecessário, se torna violento e
invasivo. Quando a participante do vídeo coloca “doía na alma”, pode-se com-
preender que a dor ultrapassa o limite do corpo, porque o ato é significado
como uma conduta realizada com a intenção de causar dano.
Assim como o toque excessivo, a episiotomia e a manobra de Kristeller,3
que são procedimentos obstétricos que deveriam ser utilizados em casos ex-
cepcionais, passaram a ser usados de modo rotineiro, perdendo a indicação
clínica. O protocolo Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal (BRASIL,
2017a), produzido pelo Ministério da Saúde, deixa claro que esses procedimen-
tos não são recomendados no trabalho de parto. No entanto, a partir de falas
presentes no vídeo, fica claro que procedimentos como a manobra de Kristeller
continuam a existir, configurando-se um abuso físico, deixando uma marca
no corpo da mulher. Para além do corpo, sua voz é silenciada, ameaçando sua
integridade física e social, na medida em que se fere seu direito de estar livre de
maus-tratos, de ter suas escolhas respeitadas: “quando o bebê saiu eu chorava

3 A manobra de Kristeller consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar (e acelerar)
a saída do bebê, o que pode causar lesões graves, como deslocamento da placenta, fratura de
costelas e traumas encefálicos.

182 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


de dor, estava toda roxa, porque em nenhum momento eles quiseram me ouvir, foi
um fato que marcou muito minha vida” (Puérpera 2).
A segunda esfera do reconhecimento é o direito, dentro do qual é reco-
nhecido o status jurídico de igualdade a todos os membros de uma sociedade.
(HONNETH, 2003, p. 179) Essa esfera está condicionada histórica e contex-
tualmente. No Brasil, os direitos dos indivíduos e grupos foram se ampliando
historicamente, até chegar aos dias de hoje, em que, legalmente, há igualdade
legal de direitos para todos, independentemente de raça, gênero, idade, classe
social, nacionalidade ou sexo. Esse fato, mesmo que apresente uma discrepân-
cia entre sua teoria e a prática, traz um pertencimento social, uma identidade
cidadã. A forma de desrespeito que corresponde a essa dimensão é a privação
de direitos e a exclusão. Trazendo a discussão para o tema materno-infantil,
cuja portaria normativa visa “[...] assegurar à mulher o direito ao planejamen-
to reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério”
(BRASIL, 2017a), quando a mulher sofre violência obstétrica, ela é privada do
direito à atenção humanizada, sendo uma forma de desrespeito na esfera do
direito.
A proibição ou permissão do acompanhante é um dos maiores exemplos
de como um direito, embora, esteja garantido por lei, pode ser negligenciado.
A lei do acompanhante é uma lei federal de 2005; todavia, as falas transcritas
dos vídeos e as atas revelam que as mulheres não têm esse direito garantido e/
ou respeitado plenamente até os dias de hoje. “Minha bolsa estourou e quem
me ajudou foi a acompanhante de uma grávida, sem minha mãe, sem ninguém,
literalmente sozinha, com 17 anos, sem saber o que fazer com as pessoas me
botando medo” (Puérpera 4). Nessa fala, percebem-se várias formas de violên-
cia: “sem ninguém”, sem o acompanhamento de um profissional de saúde, o
que se caracteriza como negligência; “literalmente sozinha” passa a sensação
de abandono, desrespeitando e privando do direito ao cuidado, à saúde, em
tempo oportuno – e pode-se dizer também que a esfera da solidariedade foi
atingida, já que a sensação de que as pessoas estão a amedrontando em um
momento de fragilização é uma forma de degradação.
Finalmente, “a esfera da solidariedade associa o reconhecimento à esti-
ma social de cada uma das distintas formas de autorrealização de indivíduos
e grupos sociais. Esta permite referir-se positivamente a suas propriedades e
capacidades”. (HONNETH, 2003, p. 198) A degradação e a ofensa são as formas

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 183


de desrespeito que correspondem a essa dimensão do reconhecimento inter-
subjetivo. Diversas experiências relatadas mostram o desrespeito associado a
essa esfera, como evidencia a fala de uma mulher indígena: “tem médico que
olha pra gente, mas tem uns que a gente é invisível”; “a moça do hospital disse
que índio tem que ter filho na aldeia ou não é índio”. São exemplos de como
ocorre a discriminação de uma gestante por seus atributos através da degra-
dação ou ofensa, atingindo sua estima social. Os atributos corporais e etários
também podem ser valorados de forma negativa pela equipe, como se obser-
va no discurso de uma enfermeira, segundo a parturiente 5: “essa aí não vai
aguentar o parto, olha o tamanho dela, olha a idade dela, corre perigo as duas,
a filha e a mãe, de morrer na hora do parto”. A igualdade, a não discriminação
e a equidade da atenção são direitos de todos, mas a realidade no cotidiano das
parturientes ainda é marcada pela discriminação.
A seguir, apresentamos uma tabela que correlaciona os tipos de violência
descritos por Bowser e Hill (2010) com as esferas de reconhecimento e formas
de desrespeito de Honneth (2003). Essa análise é o ponto de partida para iden-
tificar a extensão possível de danos que a violência obstétrica pode causar em
uma mulher. Os exemplos foram coletados das transcrições das vozes das mu-
lheres que sofreram violência obstétrica na região de Porto Seguro, contidas
no vídeo apresentado no II Fórum da RC, produzido localmente, pelo coletivo
de mulheres Parto Seguro, com as mulheres que sofreram violência obstétrica.
Quadro 1 – Tipos de violência obstétrica e esferas de reconhecimento feridas

Tipos de Esferas de
Formas de
violência reconhecimento Autorrelação Exemplo
desrespeito
obstétrica feridas
Maus-tratos físicos “Aí toda hora elas vem e faz
Amor e violação Autoconfiança um toque, faz um toque,
Abuso físico
Direito Privação de direitos Autorrespeito toda hora um toque. Cada
e exclusão toque doía na alma”
“Hoje a gestante não tem
Maus-tratos físicos espaço para opinar ou fazer
Imposição de
Amor e violação Autoconfiança perguntas dos procedimen-
intervenções
Direito Privação de direitos Autorrespeito tos que serão realizados e
não consentidas
e exclusão das coisas às quais serão
submetidas”

184 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Tipos de Esferas de
Formas de
violência reconhecimento Autorrelação Exemplo
desrespeito
obstétrica feridas
Maus-tratos físicos “Não vi só o parto dela, vi
e violação o de várias mulheres que é
Cuidado não Amor Autoconfiança
Privação de direitos uma coisa absurda, estava
confidencial ou Direito Autorrespeito
e exclusão agoniada para sair e lá,
privativo Solidariedade Autoestima
Degradação e não aguentava mais ver
ofensa sofrimento”
“Uma enfermeira que deu
Privação de direitos
risada e disse assim – com
Cuidado indigno Direito e exclusão Autorrespeito
dedinho você tá sentindo
e abuso verbal Solidariedade Degradação e Autoestima
dor, mas na hora de fazer
ofensa
você não sentiu”
“[...] essa aí não vai aguentar
Privação de direitos o parto, olha o tamanho
Discriminação
Direito e exclusão Autorrespeito dela, olha a idade dela,
baseada em
Solidariedade Degradação e Autoestima corre perigo as duas, a filha
certos atributos
ofensa e a mãe, de morrer na hora
do parto”
“Minha bolsa estourou
Abandono, e quem me ajudou foi a
Privação de direitos
negligência Autorrespeito acompanhante de uma
Direito e exclusão
ou recusa de grávida, sem minha mãe,
assistência sem ninguém, literalmente
sozinha, com 17 anos”
Empecilho Privação de direitos
“[...] fora que meu esposo
ou restrição a Amor e exclusão Autorrespeito
tentou entrar e eles não
apoio, vigilância Direito Maus-tratos físicos Autoconfiança
deixaram”
e solidariedade e violação

Fonte: elaborado pelos autores.

Considerações finais
Apesar de as esferas de reconhecimento – amor, direito e solidariedade – serem
categorias analíticas separadas, na prática elas formam uma tessitura complexa
e, por isso, na violência obstétrica, estão geralmente relacionadas. As formas
de desrespeito atravessam a mulher ameaçando sua integridade pessoal e a
relação consigo mesma, afetando sua autoestima, seu autorrespeito e sua au-
toconfiança não apenas no momento da gestação e do parto, mas por longo
período, muitas vezes para toda vida. Dentre as formas possíveis de ressignifi-
cação dessa experiência de violência, Honneth (2003) aponta o envolvimento
em lutas sociais.

voz es da v iol ência ob s t ét ric a no f óru m da r e de c e g on ha . . . 185


Entraves estruturais, organizacionais e culturais favorecem o aconteci-
mento da violência obstétrica, que causa danos à mulher. O Fórum da RC é um
espaço de luta e transformações, em que mulheres reunidas buscam enfrentar
os fatores que impedem um funcionamento adequado da rede de cuidado ma-
terno-infantil.

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188 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


(Re)pensando o SUS para atender às
necessidades e particularidades da população
cigana em tempos de pandemia

Dayse Batista Santos


Sandra Adriana Neves Nunes

Introdução
Não se sabe ao certo a origem do povo cigano, embora, por questões linguís-
ticas, a maioria dos estudiosos a relacione à Índia. Sua existência, envolta em
mistérios e lendas, sempre despertou muito fascínio, temor e curiosidade, mas
muito pouco compromisso social e político direcionado ao grupo. Seja rom,
calon ou sinti, o povo cigano tem resistido na luta pela preservação da sua
cultura e habitus étnicos.
Considerados “caminhantes inumeráveis” pela vivência muitas vezes
nômade e, diga-se, tantas vezes forçada, ainda quando seminômades e/ou
sedentários, os ciganos sempre foram excluídos dos programas e políticas pú-
blicas, a exemplo da saúde. Ausente dos dados demográficos oficiais, a etnia
cigana nunca foi prioridade de gestores e trabalhadores do Sistema Único de
Saúde (SUS). A inexistência dessas informações a respeito do grupo dificulta o
conhecimento das taxas de natalidade, morbidade, mortalidade materno-in-
fantil, expectativa de vida e outras relativas a ciganas e ciganos. (SILVA JÚNIOR,
2018) Ainda que representem uma grande conquista para o movimento ciga-
no brasileiro, a elaboração e a implantação da Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani, no ano de 2018, até o momento, em
nada modificou esse cenário.

189
A ocorrência da pandemia da Covid-19 tem sido um forte sinalizador da
fragilidade do SUS perante o compromisso de oferecer um serviço de saúde
igual para todos os brasileiros, em cumprimento ao artigo 6º da Constituição
Federal de 1988, que define a saúde enquanto direito de todos e dever do
Estado. Fragilidade também é verificada no que se refere à efetivação do prin-
cípio da equidade, que versa tratar de forma desigual os desiguais, com amplo
respeito à pluralidade, bem como daquele que preconiza o cuidado para além
das questões biomédicas, com atenção plena às necessidades sociais e cultu-
rais, individuais e coletivas, com vistas a garantir a integralidade.
Documentos, matérias, áudios e vídeos têm sido publicados para exibir
como a população cigana vem sendo tratada pela sociedade e pelo poder pú-
blico em tempos de pandemia, sob a forma de manifestações de repúdio em
todo o país. Dentre os primeiros manifestos, a nota publicada pelo Sindicato
Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES, 2020)
trouxe um repúdio à ciganofobia e à violência do poder público com os povos
ciganos, sobretudo em um momento de crise de saúde pública mundial, a par-
tir de denúncias de discriminação nas cidades de Dois Vizinhos, Guarapuava e
Imbituva, no Paraná, e Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul. O documento
solicita a efetivação da Política Nacional de Atenção Integral ao Povo Cigano/
Romani – Portaria nº 4.348, de 28 de dezembro de 2018 – como uma estratégia
para a redução e o combate à ciganofobia ou romafobia. (NOTA..., 2020) Em
outro documento, há denúncias do descaso e do racismo de que está sendo víti-
ma o povo cigano em muitas cidades brasileiras. Pesquisadores e ativistas, entre
os quais muitos ciganos, alertam para o racismo contra grupos ciganos durante
a pandemia e cobram um plano de saúde emergencial para essa população. Na
Bahia, os primeiros relatos públicos remetem à cidade de Camaçari, onde o des-
preparo dos gestores e profissionais da saúde é denunciado através do Relatório
Denúncia Covid-19 (2020), ofício elaborado por lideranças ciganas da Bahia em
parceria com a Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK)/Brasil.
Assim sendo, considerando tal contexto, este estudo tem como objeti-
vo discutir acerca do despreparo do serviço público de saúde brasileiro para
atender às necessidades sociais em saúde da etnia cigana durante a pandemia
da Covid-19, ao tempo em que pretende fomentar reflexões quanto à rele-
vância da elaboração de projetos que reconheçam, respeitem, estimulem e
valorizem a interculturalidade na produção do cuidado. Trata-se de um estudo

190 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


teórico-reflexivo, embasado em pesquisas bibliográficas, documentais e na ex-
periência das pesquisadoras.

Ciganidade
Falar sobre ciganidade é uma necessidade e um desafio. A condição de povo
ágrafo é um fator que dificulta as minuciosas análises e a pesquisa acerca da
cultura e da identidade étnica cigana. Não se sabe ainda ao certo a sua origem,
tampouco quantos ciganos existem hoje espalhados pelo mundo. Assim, en-
voltos em mistérios e costumes próprios, os ciganos sempre despertaram fascí-
nio, medo e interesse. Foi a partir do que consideram uma evidência linguística
que muitos ciganólogos passaram a defender a origem indiana do grupo. No
entanto, é possível que tal semelhança linguística demonstre que os ciganos
viveram na Índia, mas não é o suficiente para provar que sua origem é indiana,
pois tal assimilação pode ter sido resultante do contato com o híndi fora da
Índia. (MOONEN, 2013)
Demarcada por características próprias, a etnia cigana está dividida em
grandes grupos, dentre eles: os calon, os rom e os sinti. Embora possuam na
sua formação identitária elementos que os unificam como uma grande nação
cigana, a exemplo do amor pela liberdade, o respeito ao código de conduta
cigana, a bandeira, o hino e outros componentes, cada grupo possui costumes
e tradições particulares que os diferenciam. De acordo com Moonen (2000), os
rom ou roma falam a língua romani e são predominantes nos países balcâni-
cos, tendo, a partir do século XIX, migrado para outros países europeus e para
as Américas. Os sinti falam a língua sintó e são normalmente encontrados na
Alemanha, Itália e França, enquanto os calon ou kalé falam a língua caló e são
os “ciganos ibéricos”, encontrados principalmente em Portugal e na Espanha,
“onde são mais conhecidos como Gitanos [...], mas que no decorrer dos tempos
se espalharam também por outros países da Europa e foram deportados ou
migraram inclusive para a América do Sul”. (MONEEN, 2000, p. 12)
É importante evidenciar que a forma como as ciganas e os ciganos se re-
lacionam com a comunidade gadjé (não cigana) tem estreita relação com as
práticas e os costumes do grupo a que pertencem. Em comum, eles possuem
entre si a certeza de que precisam fortalecer uma identidade étnica cigana,
capaz de suplantar os estigmas históricos e excludentes. Em outras palavras,

(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 191


“a necessidade de construção de uma identidade étnica cigana que fundamen-
te uma solidariedade entre Rons, Sinti e Calons é facilmente justificada pela
história de perseguição e extermínio a que foram submetidos”. (MIGOWSKI,
2008, p. 35) Para Migowski (2008), a criação do hino e da bandeira cigana en-
quanto símbolos significativos para calon, rom e sinti fortaleceu o elo que
universaliza essas identidades.
A respeito do nomadismo, definido como uma característica demarcadora
da identidade cigana e comum a todos os grupos, este foi resultado da busca
pela sobrevivência frente aos constantes conflitos com os não ciganos e pela
preservação da identidade étnica cultural e econômica. Em relação ao noma-
dismo forçado, é possível afirmar:

A discriminação e a ausência de políticas voltadas para o grupo, a


segregação, o degredo constantemente usado como mecanismo de
‘ajustamento social’ a um grupo padrão dito ideal, a tentativa de
escravização de um povo que guarda o sentimento de liberdade e
de não aprisionamento às regras institucionalizadas como preceito
primordial, a incapacidade de reconhecer as peculiaridades da et-
nia cigana, as leis persecutórias e a ausência de leis protetivas, en-
tre outros, são alguns fatores que o tem desencadeado. (SANTOS,
2019, p. 31)

É importante ressaltar que, atualmente, o nomadismo não é mais uma carac-


terística acentuada entre os ciganos. Hoje em dia, muitas famílias estão vivendo
na condição de seminômades e/ou sedentárias. De qualquer forma, o nomadis-
mo, muitas vezes forçado, como já foi dito anteriormente, dificulta o acesso à
saúde, à educação, à água, à moradia digna e aos demais direitos constitucionais
básicos, forçando-os a viver em estado de extrema vulnerabilidade social, fato
que precisa ser levado em conta numa situação de pandemia como a atual.
Em se tratando da situação da etnia cigana no Brasil, a chegada de tal gru-
po ao território remete ao ano de 1574, quando o cigano João Torres, sua esposa
Angelina e seus filhos foram degredados de Portugal. No entanto, a ausência
de registros que comprovem a chegada da família e a existência de documentos
que mostrem outras possíveis datas aumentam as incertezas e tornam impos-
sível precisar com exatidão tal data.
Embora não seja possível determinar com precisão a data da chegada dos
ciganos em território brasileiro, é possível afirmar a presença dos três grupos
ciganos no território nacional: calon, rom e sinti.

192 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


As pesquisas até agora realizadas no Brasil provam a existência de
ciganos de pelo menos dois grupos diferentes: os Calonque migra-
ram para o país, voluntária ou compulsoriamente, já a partir do
Século XVI, e os Rom que, ao que tudo indica, migraram para o
Brasil somente a partir de meados do Século XIX. Nenhuma publi-
cação trata de ciganos Sinti, mas que com certeza também devem
ter migrado para o Brasil, junto com os colonos alemães e italianos,
a partir do final do Século XIX. Segundo dados oficiais, de 1819 a
1959 migraram para o Brasil 5,3 milhões de europeus, dos quais 1,7
milhão portugueses, 1,6 milhão italianos, 694 mil espanhóis, 257
mil alemães e 125 mil russos. No desembarque registrava-se apenas
a nacionalidade do imigrante, e não a sua identidade étnica. É mais
do que provável que no meio dos quase dois milhões de imigrantes
italianos e alemães também tenham vindo ciganos Sinti, principal-
mente durante e após a II Guerra Mundial. (TEIXEIRA, 2008, p. 12)

Relegados à invisibilidade e ao esquecimento, o povo cigano foi excluído


de todos os processos que definem a formação da brasilidade. Assim, negando
todas as contribuições das ciganas e dos ciganos, durante muito tempo, apenas
leis persecutórias e estímulo aos estigmas e mitos lhes foram ofertados.
Outro dado que não se pode afirmar com precisão refere-se ao número de
ciganos existentes hoje no Brasil. Segundo o Relatório Executivo Brasil Cigano
(2013), em 2011, foram identificados 291 acampamentos ciganos, localizados
em 21 estados, sendo que, destes, os estados com maior concentração são:
Minas Gerais (58), Bahia (53) e Goiás (38). Ainda segundo o mesmo documen-
to, os municípios com 20 a 50 mil habitantes concentram o maior número de
acampamentos, e apenas 40 das 291 prefeituras, o equivalente a 13,7% do total,
afirmam desenvolver políticas públicas para os povos ciganos.
Em referência ao movimento cigano no Brasil, este tem seguido uma lenta
e longa caminhada. “Os constantes debates a respeito da multiculturalidade
e das relações étnico-raciais, que deram ênfase às questões afro-brasileira e
indígena, ainda muito pouco incluem o pensamento e diálogo acerca da ciga-
nidade”. (SANTOS, 2019, p. 46)
Somados à Constituição Federal de 1988, artigo 3º, que define enquanto
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação, alguns marcos legais têm sinalizado o movimento
cigano e as conquistas diretas e/ou indiretas de tal grupo. Entre eles, o Decreto

(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 193


nº 10.841, de 25 de maio de 2006, instituído pelo então presidente Lula, foi o
grande marco do movimento cigano no Brasil. Ao definir 24 de maio como Dia
Nacional do Cigano, além de dar visibilidade ao povo cigano, o ato fortaleceu a
compreensão quanto à importância dessa etnia na formação histórica e cultu-
ral da identidade brasileira.

O SUS, a pandemia da Covid-19 e a etnia cigana


Buscando garantir a todos os brasileiros o direito à saúde, com vistas a atender
o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que define a saúde como um
direito de todos e um dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário a ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação, o SUS foi institucionalizado. O SUS nasceu enquanto resultado
de uma forte luta envolvendo profissionais da saúde, estudantes, professores,
lideranças comunitárias, políticos e demais representantes da comunidade, a
partir de um movimento denominado Reforma Sanitária Brasileira, sendo a 8ª
Conferência Nacional de Saúde o seu marco histórico.
Tendo enquanto princípios doutrinários a equidade, a universalidade e a
integralidade e enquanto princípios organizativos a regionalização, a hierar-
quização, a descentralização, o comando único e a participação popular, o SUS
é uma grande conquista do povo brasileiro. A sua missão, a partir dos princí-
pios doutrinários que o regem, é promover, mediante políticas públicas e sem
qualquer distinção de raça, sexo, religião ou qualquer outra forma de discrimi-
nação, o direito e a igualdade de acesso aos serviços de saúde a todo cidadão
brasileiro, com a garantia da compreensão das diversas dimensões que deter-
minam a produção da saúde e da doença e do espaço da diferença, a partir do
reconhecimento da pluralidade e da diversidade da condição humana com as
suas necessidades e as suas potencialidades, buscando atender à diversidade de
necessidades das pessoas e dos grupos sociais. (MOTTA, 2017)
A história humana tem sido marcada pela ocorrência de pandemias com
altos índices de letalidade. Cólera, varíola, tifo, tuberculose e Aids são exem-
plos de patologias que acometeram ou ainda acometem milhares de pessoas
no mundo. A peste bubônica, a gripe espanhola, a gripe suína e, atualmente,
a Covid-19 são exemplos de pandemias que têm alterado significativamente a
estrutura econômica e social global.

194 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Em novembro de 2019 um surto de doença respiratória, causado pelo
novo coronavírus (SARS-CoV-2), foi detectado na cidade de Wuhan,
na China. Em dois meses foram confirmados milhares de casos de
Covid-19 (atual denominação da doença), que resultaram em inú-
meros óbitos. Em março de 2020, o novo coronavírus disseminou-se
para mais de uma centena de países, continuando a causar doença
respiratória e óbitos, especialmente em grupos de risco como idosos,
gestantes, imunodeprimidos e outros. (BRASIL, 2020b, p. 5)

Com seus antecedentes históricos também pautados em ações de controle


sanitário, o SUS teve suas fragilidades e forças reveladas pela Covid-19, além de
ter demonstrado sua importância enquanto a maior política pública brasileira.
Promoveu, inclusive, reflexões a respeito da relevância dos investimentos pú-
blicos no setor, que, apesar das políticas de desmonte e das constantes críticas,
tem apresentado a maior capacidade técnica, estratégica e operacional em
meio à pandemia.

A pandemia da COVID-19 expõe as fragilidades estruturais e os


pontos de estrangulamento do SUS, em particular a falta – ou dis-
tribuição desigual –, no território, de profissionais da saúde e de
infraestrutura da atenção de média e alta complexidade, bem como
a capacidade limitada de produção e realização de testes diagnósti-
cos. Todavia, também traz à tona as fortalezas do maior sistema de
saúde público e universal do mundo, que tem um papel preponde-
rante na vigilância e na assistência à saúde, assim como no ordena-
mento e articulação das ações de enfrentamento à pandemia, nos
três níveis de gestão, em todas as Unidades da Federação brasileira.
(OLIVEIRA et al., 2020, p. 5)

Buscando atender às necessidades de saúde dos brasileiros e reduzir os


índices de morbimortalidade pela Covid-19, o Ministério da Saúde, os esta-
dos e os municípios, através de ações do SUS, têm desenvolvido plataformas,
protocolos, capacitações, atividades informativas, planos de ação com verbas
específicas para ações de controle e/ou combate ao coronavírus, dentre outras
iniciativas. Defendida por profissionais de saúde, pesquisadores e grande parte
da sociedade enquanto medidas mais eficazes durante a pandemia, a testagem
coletiva, a quarentena e o isolamento social, cujos resultados positivos foram
verificados na maioria dos países que adotou tais medidas, vêm sendo um dos
desafios no contexto brasileiro frente aos seus impactos econômicos e sociais.

(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 195


Outro desafio refere-se ao debate quanto à indicação do uso de medi-
camentos como profiláticos e durante o curso da doença sem comprovada
eficácia científica, sustentado por algumas lideranças em saúde e lideranças
políticas, incluindo o presidente da república. No entanto, o maior de todos os
desafios, certamente, tem sido garantir um modelo de atenção que, respeitan-
do os princípios doutrinários do SUS, atenda a todos os brasileiros conforme
suas diferenças, necessidades e vulnerabilidades. E, nesse contexto, o pouco
preparo dos serviços de saúde para lidar com a diversidade tem se manifestado,
dentre outros, pela frágil capacidade de gestores e trabalhadores da saúde para
atender a etnia cigana durante a pandemia. Esse despreparo, ultrapassando os
limites dos serviços de saúde, tem gerado ações discriminatórias e persecutó-
rias para com o povo cigano, expondo-os a riscos de adoecimento e de morte.
No artigo “A inacreditável invisibilidade que cobre os povos ciganos”,
da jornalista Hara Flaeschen, publicado pela Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco) em 2020, a autora afirma que a barreira cultural, embora
mais perceptível nesse momento, não é um problema só durante a pandemia
da Covid-19. Para a escritora, o racismo institucional e estrutural tem sido
responsável pelo distanciamento dos ciganos das unidades de saúde. A ne-
cessidade do respeito aos costumes, tradições e elementos culturais ciganos,
expressos, inclusive, a partir das percepções sobre o processo de adoecimento,
cura e morte, tem sido um dos fatores que tem dificultado a produção do cui-
dado, pelo despreparo dos trabalhadores. Permanece nos serviços de saúde a
vã filosofia do dito “saber de quem sabe” enquanto recurso fundamental para
conduzir o fazer do que supostamente não sabe. E, quando o que supostamen-
te não sabe é ainda historicamente subalternizado, quando não invisibilizado,
princípios como diálogo, amorosidade, problematização, construção compar-
tilhada do conhecimento, emancipação e compromisso com a construção do
projeto democrático e popular são esquecidos.
A elaboração da cartilha Subsídios para o cuidado à saúde do povo cigano
(2016) foi uma iniciativa muito interessante, mas, pela pouca divulgação, não
atingiu o objetivo de empoderar os trabalhadores da saúde a respeito das es-
pecificidades para o cuidado à saúde da população cigana. Da mesma forma, o
desconhecimento – intencional ou não – das diretrizes para a saúde do povo
cigano, definidas na II Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(Conapir), realizada de 25 a 28 de junho de 2009, e do guia Políticas de promoção

196 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


da equidade em saúde, do Ministério da Saúde, publicado no ano de 2013, além
de outros documentos afins, tem sido mais um fator para a justificativa da au-
sência de iniciativas direcionadas ao grupo.
No ano de 2018 – e, diga-se, sem nenhuma ou muito pouca publicação até
o momento –, o Ministério da Saúde instituiu a Portaria nº 4.384, alterando
a Portaria de Consolidação nº 2, do Gabinete do Ministro do Ministério da
Saúde (GM/MS), de 28 de setembro de 2017, para implantar no âmbito do SUS
a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Povo Cigano/Romani. O ob-
jetivo do documento é promover a saúde integral do povo cigano/romani, com
respeito às suas práticas, saberes e medicinas tradicionais, priorizando a redu-
ção e o combate à ciganofobia ou romafobia. Destacam-se ainda os objetivos
de reduzir as iniquidades macrorregionais, regionais, municipais e estaduais
e fomentar a realização de estudos e pesquisas sobre racismo e saúde do povo
cigano/romani no âmbito nacional e internacional. Como dito anteriormente,
há uma ausência de dados sobre indicadores de saúde e de dados epidemio-
lógicos da população cigana no Brasil, e esse parece ser um dos fatores que
dificultam a tomada de decisões embasadas nas necessidades reais do grupo.
Tal assertiva demostra que, para além da elaboração de portarias, carti-
lhas ou políticas de atenção à saúde, faz-se necessário um debate aprofundado
acerca de como repensar as produções de saúde frente às diversidades, vulne-
rabilidades e necessidades oriundas da pluralidade que constitui a sociedade
brasileira. Pensar saúde precisa remeter ao pensar intercultural e intersetorial,
porque pensar apenas na ausência de doenças é retroceder histórica e con-
textualmente. Nesse sentido, o coronavírus tem sido bastante provocador, ao
exigir que gestores e profissionais do setor de saúde compreendam e defendam
a saúde enquanto um estado de completo bem-estar físico, mental e social, o
que requer a garantia das condições básicas de sobrevivência.

Água potável, moradia, saneamento básico, segurança alimentar e


acesso à saúde: as reivindicações são as mesmas, para todos os bra-
sileiros impactados economicamente pela pandemia. A maioriados
ciganos nômades ou semi-nômades, vive de comércios informais,
escambos de produtos de segunda mão (prática denominada gambi-
ra), circo, tarô e leituras de mão, além da mendigagem. Todas essas
atividades estão suspensas, por tempo indeterminado. A renda bási-
ca emergencial é imprescindível para manter a vida dessas pessoas,
durante o isolamento social. No entanto, o trâmite burocrático

(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 197


deixa muitas famílias sem o auxílio – considerando a falta de do-
cumentos de identificação ou de contas no banco. (FLAESCHEN,
2020)

Desconsiderar tais fatores e/ou invisibilizar as particularidades da etnia ci-


gana é falhar no preceito básico do SUS, que é garantir a efetividade dos seus
princípios doutrinários. É uma grande falácia pensar ações e caminhos iguais
para os desiguais. Um dos marcadores identitários da etnia cigana é viver em
comunidades. Mesmo quando não residem na mesma casa, é comum estarem
sempre juntos. Tal comportamento é um dos fatores que comprometem a prá-
tica do isolamento. (FLAESCHEN, 2020) Assim, propor isolamento social para
uma etnia cujas tradições e identidade sempre foram marcadas pelo estar em
coletividade é uma tarefa que exige diálogo, produção de sentido e oferta de
opções e ações construídas no encontro.
Quando as ações do poder público, em meio a uma pandemia, não levam
em consideração as particularidades dos desiguais, podem emergir situações
de preconceito e discriminação social advindas de comunidades não ciganas, o
que vai de encontro à proposição de um SUS democrático, resolutivo e huma-
nizado. Recentemente, no país, assistimos a três exemplos dessas situações que
exigiram posicionamentos contundentes de denúncias por parte da população
cigana e ativistas, como podemos observar:

1. Nota pública de pesquisadores e ativistas alerta para racismo contra


grupos ciganos durante a pandemia e cobra plano emergencial.

As Associações ciganas, grupos de pesquisa, ativistas e pesquisado-


res abaixo assinados, vêm até as autoridades e órgãos competentes
dos governos Federal, Estadual e Municipal; ao Ministério Público
Federal (MPF); aos veículos de comunicação social; e à população
brasileira, denunciar o descaso e a forma racista com que algumas ci-
dades brasileiras estão tratando as comunidades ciganas nômades/
itinerantes durante a pandemia do Covid-19. Segundo a Associação
Social de Apoio Integral aos Ciganos (ASAIC) autoridades munici-
pais de Cachoeira do Sul (RS), Imbituva (PR) e Dois Vizinhos (PR),
expulsaram, na última semana de março, sem qualquer diálogo
grupos de ciganos Calon que vivem de forma itinerante de seus ter-
ritórios de pouso, com a justificativa discriminatória de que seriam
vetores de transmissão do coronavírus. A ASAIC informa que na

198 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


tarde do dia 02 de abril de 2020, autoridades de Guarapuava (PR)
tentaram expulsar um grupo cigano de seus limites, mas após in-
tervenção junto ao Ministério Público e prefeitura, voltaram atrás.
Ao agir desta forma, contrariam o que determina a Constituição
Federal de 1988, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288 de 2010),
a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais (decreto nº 6.040, de 2007); e as orien-
tações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério
da Saúde, para que as comunidades nesta situação se instalem em
cidades pequenas e sejam acolhidas com todos os direitos humanos
e em saúde respeitados. (NOTA..., 2020)

2. Nota da Diretoria do Sindicato Nacional do Andes de repúdio à


ciganofobia e à violência do poder público com povos ciganos.

Na semana de 30/3 a 3/4 duas comunidades de cigano(a)s foram


alvo de ciganofobia no Estado do Paraná, uma no município de
Dois Vizinhos e outra no município de Guarapuava. Em menos de
24 horas mais de cem famílias ciganas foram desabrigadas desses
municípios. Tais regiões são conhecidas como locais de ‘pouso’ das
famílias ciganas e depois da reclamação de vizinhos, alegando que
qualquer pessoa em viagem não pode parar na cidade, fiscais da
prefeitura acompanhados da força policial chegaram ao local man-
dando-o(a)s embora por serem considerados vetores da contamina-
ção do novo coronavírus e poderiam infectar as pessoas da cidade,
por estarem sujo(a)s, imundo(a)s e sem higiene. (ANDES, 2020)

3. Relatório Denúncia Covid-19, de Camaçari, na Bahia, assinado pela


AMSK/Brasil e lideranças ciganas da Bahia.

No dia 28 de maio do corrente, o Sr. Gilson Dantas entrou em con-


tato com a Secretaria de Saúde do Município de Camaçari/BA, a
fim de dar entrada em uma solicitação que requer cuidados, devido
às especificidades das comunidades ciganas e a precaução com uma
possível contaminação de outros membros da sociedade daquele
município. Apesar dos esforços e a tentativa de sensibilização sobre
a questão, não houve entendimento relativo a essas especificida-
des e encaminhamentos das demandas relatadas pela comunidade.
(AMSK, 2020)

(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 199


Da mesma forma, diversas lideranças ciganas, entidades representativas,
ativistas, pesquisadores e órgãos da imprensa têm denunciado o descaso com
o povo cigano durante a pandemia e têm relatado o temor do grupo perante
a ampliação do cenário de vulnerabilidades a que vivem expostos. Exemplo
disso é o vídeo em que o professor Dr. Jucelho Dantas, cigano calon, denun-
cia o despreparo dos serviços de saúde para tratar das questões relacionadas
ao coronavírus na comunidade cigana de Camaçari (BA) e cobra providências
das Secretarias de Saúde Estadual e Municipal no melhor atendimento ao seu
grupo étnico.
Além das questões relacionadas com os cuidados específicos à saúde, a
necessidade de readaptar a produção econômica do grupo, que normalmente
vive do comércio, da compra e venda de mercadorias, da leitura de mãos e de
outras atividades comprometidas durante a pandemia, tem sido um desafio
para o povo cigano. Embora o auxílio emergencial tenha beneficiado ciganas e
ciganos cadastrados em programas sociais, grande número é de trabalhadores
informais, a respeito dos quais não se tem dados que comprovem que estão
recebendo tal auxílio. Da mesma forma, muitos membros da comunidade ci-
gana que não possuem documentos e aqueles que não possuem qualquer nível
de escolaridade vêm sendo excluídos dos benefícios públicos e do acesso às
informações.
A ausência de dados demográficos e de cadastro específico sobre a etnia
na ficha de notificação do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(Sinan) e na ficha de investigação de casos suspeitos de doença pelo coronaví-
rus (e-SUS) impede o conhecimento do número de ciganos que até o momento
apresentaram a Covid-19 ou tiveram contato com o vírus. A respeito da mor-
talidade entre o povo cigano, embora não existam dados oficiais, o Instituto
Cigano do Brasil (ICB) vem atualizando, em sua página oficial do Facebook,
óbitos de ciganas e ciganos em território nacional.

Considerações finais
A implantação de uma política não é fator determinante para promover mu-
danças de atitudes que, antes, exigem mudanças de concepções e padrões
culturais. Da mesma forma, a Recomendação nº 035, de 11 de maio de 2020,
do Conselho Nacional de Saúde, que sugere ações relativas à saúde do povo

200 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


cigano/romani no contexto da pandemia da Covid-19, provocada pelo novo
coronavírus (SARS-CoV-2), não é o suficiente para que os gestores incluam,
em programações e planejamentos, propostas que atendam às necessidades
sociais em saúde da população cigana. Antes, importa que gestores e traba-
lhadores da saúde estejam aptos a pensar interculturalmente e, no mínimo, a
entender e respeitar os preceitos fundamentais do SUS, a fim de garantir uma
saúde que, respeitando a integralidade e a equidade, seja capaz de atender to-
dos os brasileiros sem nenhum tipo de discriminação.
Enquanto esse dia não chega, que estejam dispostos os gadjés a aprender
com o povo cigano como pensar a saúde cigana e como transformar em ações
práticas os eixos norteadores das suas próprias portarias. Talvez seja de fato
um momento em que o “saber de quem sabe” precisa orientar e conduzir as
ações de “quem não sabe”. A comunidade cigana da Bahia, em documento ela-
borado em pareceria com a AMSK/Brasil, o qual foi encaminhado à Secretaria
da Saúde do Estado da Bahia (Sesab) e ao Conselho Estadual de Saúde (CES/
BA), deu um claro exemplo de como contextos diferentes exigem pronuncia-
mentos distintos.

Como até a presente data, nenhum protocolo de saúde foi criado


para atender as especificidades sugeridas em ofícios anteriores a
essa casa e demais organismos federais e Ministérios, encaminha-
mos um modelo de protocolo inicial, na esperança de que de for-
ma simples se tenha um norte a seguir, em se tratando dos Povos
Ciganos. Redobramos o nosso apreço a todas as equipes de saú-
de que hoje se encontram na linha de frente, no Brasil, no estado
da Bahia e municípios, compreendemos que o receio e o cuidado
devam ser pontuais nessa luta, mas, não podemos nos esquecer
que hoje, a Bahia é o estado com o maior número de ciganos no
Brasil e que existe um forte vínculo histórico ligado ao preconceito
e à discriminação, acentuados pela Pandemia. Outros relatos já se
desenham nesse sentido no estado. Não se trata de privilégio, se
trata de direitos e embora o Secretário de Saúde do município de
Camaçari/BA, demonstre claramente o desconhecimento com os
procedimentos de prevenção e das especificidades étnicas, lembra-
mos que a equidade é o maior princípio de humanidade do Sistema
Único de Saúde. Desta feita, solicitamos o acompanhamento e as
devidas providências, relativas a essa questão, nos órgãos, organis-
mos e secretarias nos âmbitos municipais, estaduais e federais, que
se fizerem necessárias. (AMSK, 2020)

(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 201


Espera-se que reflexões como esta perdurem e alcancem gestores e tra-
balhadores da saúde, a fim de que possam tornar o serviço público de saúde
brasileiro mais preparado para atender às necessidades sociais em saúde da
etnia cigana durante e após a pandemia da Covid-19. Espera-se ainda que este
estudo seja capaz de fomentar a elaboração de projetos que reconheçam, res-
peitem, estimulem e valorizem a interculturalidade na produção do cuidado.
Por fim, sobretudo, espera-se estimular que ciganos e não ciganos construam
juntos caminhos que conduzam à efetivação de um sistema público de saúde
resolutivo, democrático, humanizado e verdadeiramente capaz de reduzir as
iniquidades e combater a ciganofobia. Afinal, como diz o provérbio cigano: “se
o caminho é longo, não se deve andar sozinho”.

Referências
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012/2020. Relatório Denúncia COVID 19 CAMAÇARI-BA/Brasil. Camaçari, 2020.
Ofício.

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(re)pensan do o sus pa r a at en der à s n ec e s s i da de s e pa rtic u l a r i da de s . . . 205


AUTONOMIA E
GRAMÁTICAS
PARTICIPATIVAS
Tecendo elos no limiar da pandemia:
laboratórios do comum e experiências
públicas para a gestão social de territórios

Valéria Giannella
Fernanda Hellmeister de Oliveira Martins

Introdução
Este trabalho se insere na pesquisa sobre “Perspectivas e desafios da participa-
ção em tempos de crise democrática”, ativa no Programa de Pós-Graduação em
Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)
desde 2017. Naquele momento, ainda em estado de choque pelo golpe contra
a presidenta Dilma Rousseff, começamos um processo de reflexão sobre de-
mocracia e participação à luz do novo contexto político que ia se desenhan-
do e que, infelizmente, piorou a partir das eleições de 2018, que levaram Jair
Bolsonaro à presidência da república.
O Comum1 é um conceito que tem certa história nas ciências sociais e que
encontra nos últimos anos uma atenção renovada. (BOLLIER, 2016; DARDOT;
LAVAL, 2016; HARDT; NEGRI, 2016; SAVAZONI, 2018) São diversas as nuan-
ces teóricas e compreensões, e não é nosso intuito aqui aprofundar diferenças
e potenciais, mas apenas acenar para algumas vertentes capazes de dialogar
com o campo de reflexões que estamos a propor. A declinação do conceito que
nos interessa é a em que ele, em vez de ser considerado um simples adjetivo
(bem comum), se constitui enquanto substantivo (DARDOT; LAVAL, 2016) e

1 Nestas páginas, usaremos “Comum” e “Gestão Social” com iniciais maiúsculas quando nos referir-
mos ao princípio ou aos campos de estudos. Laboratórios do comum e experiências públicas serão
tratados em minúsculo.

209
verbo (BOLLIER, 2016; OSTROM, 2002; SAVAZONI, 2018) e nos traz instiga-
ções práticas e conceituais no processo de imaginar outros futuros possíveis,
alternativos aos que o capitalismo globalizado nos propõe como inexoráveis.
Este capítulo tem como objetivo explorar os nexos que apostamos existir
entre o campo do Comum e a Gestão Social de cidades e territórios, trazendo
como sujeito de indagação os laboratórios do comum, isto é, práticas sociais
em que coletivos mais ou menos organizados e institucionalizados experimen-
tam um agir-comum ao identificar coletivamente o que faz problema em seus
contextos vividos e ao criar processos para o tratamento deles, protótipos de
soluções sociotécnicas (PARRA, 2019b) que agem criando fragmentos da socie-
dade desejada. Existem, no Brasil e no mundo, laboratórios que adotam esse
nome e esse objetivo explícito; no entanto, a hipótese que queremos trazer
aqui é que, no limiar da pandemia e ainda antes da sua eclosão, muitas ações
e mobilizações que surgiram, nas periferias e nos centros das cidades, nas al-
deias e nos territórios rurais, se aproximam dessa lógica, ressignificando temas
históricos da luta dos movimentos sociais brasileiros, tais quais a luta contra
a fome, a autonomia alimentar, o direito à saúde, à informação e à moradia, o
direito à terra e ao território, que vêm a se configurar enquanto Comuns.
A partir da observação das mobilizações sociais e políticas dos anos re-
centes, confirmadas pela eclosão de intervenções de coletivos e grupos nesse
período pandêmico, reconhecemos um deslocamento nos modos de pensar e
de fazer política, assim como da possibilidade de pensar e fazer políticas pú-
blicas.
A hipótese em que avançamos remete à possibilidade de uma convergência
entre o campo dos estudos do Comum, especialmente o relacionado à expe-
riência dos laboratórios, e o campo da Gestão Social, através do conceito de
experiência pública, como definido e elaborado em Peres (2020).2 Os dois con-
ceitos nos chamam atenção por uma série de ressonâncias e proximidades, mas
o que mais nos interessa é que ambos buscam descrever e analisar um campo
multiforme de práticas que escapa às categorias analíticas mais tradicionais
de ação política e propõe o desafio de lapidar novos descritores. Ambos nos
parecem capazes de descrever não apenas a amplidão, mas também o potencial

2 Em sua tese de doutoramento, Peres aprofunda o conceito de experiência pública a partir do caso
movimento hip hop da Ceilândia, no Distrito Federal, em interação com fluxos de políticas públicas.

210 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


desse campo de ações para contrastar a perda de significados da participação
institucionalizada e a grave crise democrática que atravessamos.
Antídotos para essa crise seriam, a partir dessas observações, a resistência
aos processos de burocratização e racionalização hétero-impostos e a busca
de autonomia na definição de formas, regras e conteúdos dos espaços de par-
ticipação não mais convidados, e sim inventados.3 (MIRAFTAB, 2016, p. 369)
A noção de autonomia (MAKARAN; LÓPEZ; WAHREN, 2019) se torna, de fato,
crucial nesse âmbito de observação, pois permite afirmar não apenas a capaci-
dade e o direito de definir as regras que regem os espaços de ação instituídos,
mas também a existência de racionalidades outras em relação à linear e mono-
cêntrica dominante, métodos outros, que discutem a absoluta predominância
do poder discursivo – potencialmente excludente – a favor da valorização da
capacidade pragmática de criar novos arranjos sociotécnicos4 que permitam
experimentar aqui e agora soluções, parciais e provisórias, prefigurações da
sociedade que desejamos e que sabemos serem possíveis. Ressaltamos, ainda,
a afirmação da posicionalidade do olhar e do conhecimento enquanto incor-
porado e radicalmente situado, como marca característica dos fenômenos que
estamos observando.
Em termos metodológicos, este trabalho conecta e reflete uma variedade
de bibliografias acessadas no âmbito da pesquisa anteriormente mencionada,
além de ter contado com a realização de uma live 5 transmitida pelo YouTube no
dia 22 de julho, na qual as autoras convidaram três importantes atores do cam-
po do Comum no Brasil para debater em torno do tema “Futuros possíveis no
limiar da pandemia: laboratórios do comum para a gestão social de territórios”.
Os convidados foram: Henrique Parra, da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), do Pimentalab; Georgia Nicolau, do Instituto Procomum; e Rodrigo
Savazoni, da Universidade Federal do ABC (UFABC), Instituto Procomum.
O debate nos permitiu entrecruzar campos de pesquisa-ação próximos, mas

3 Para Miraftab, espaços convidados de participação são aqueles cujas regras e gramáticas são san-
cionadas pelos grupos dominantes e com as quais os atores devem apenas se conformar; os espa-
ços inventados são aqueles em que os próprios atores que os instituem produzem e validam regras
e lógicas de interação.
4 Definimos arranjos sociotécnicos como o resultado da interconexão entre pessoas, cultura,
política e tecnologias. Uma boa referência para aprofundar mais o conceito é através dos Estudos
Sociais em Ciência e Tecnologia (ESCT).
5 Disponível em: https://youtu.be/Rc9Jl1aA6qQ.

t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 211
ainda não plenamente conscientes dessa proximidade, e ampliar e consolidar a
compreensão das hipóteses já acenadas. Excertos desse debate – oportunamen-
te reformulados para transitar do código da oralidade para o da escrita – serão
utilizados neste capítulo, sinalizando devidamente a sua origem.

A pandemia como “catástrofe”


Em qual contexto situamos esta discussão? Estamos no final de julho de 2020,
falamos de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, Bahia, e enfrentamos uma
pandemia sem data para terminar, que nos coloca em uma “condição compar-
tilhada da precariedade dos corpos, a vida desnudada em sua vulnerabilidade,
[que] acaba produzindo um território existencial comum”. (MORAES, 2018,
p. 72) É interessante precisar que a reflexão de Moraes não foi produzida du-
rante a pandemia e, no entanto, é totalmente pertinente para este momento.
Suas palavras nos oferecem pistas para seguir em nossa investigação por prá-
ticas políticas de experimentação do agir-comum, incluindo nesse rol as que
surgiram neste contexto pandêmico. A situação excepcional que esse evento
determinou é capaz de produzir comunidades de afetados,6 de gerar novas ur-
gências, de ressignificar a ação coletiva, de reavivar os motivos que movem
para a ação solidária, a qual pode se tornar, em certos casos, também ação po-
lítica, que gera e prefigura formas outras de conviver nas cidades, nos bairros e
territórios tradicionais.
Trazemos aqui o conceito de catástrofe na acepção da teoria das catástrofes,7
a qual qualifica como pontos de catástrofes aqueles em que um sistema passa
por algum evento que muda drasticamente o seu andamento, uma ruptura de
continuidade abrupta e repentina. Nessa abordagem, “catástrofe” não alude à
tragicidade do evento – que não está em discussão –, e sim ao impacto transfor-
mativo, à capacidade de redirecionar bruscamente uma trajetória preexistente
para uma direção totalmente inesperada. A partir dessa metáfora, enxergamos
a pandemia, evento produzido por um organismo microscópico que se reve-
la capaz de ajoelhar os sistemas sanitários e paralisar as maiores economias

6 Mesmo reconhecendo as enormes desigualdades existentes diante da pandemia, ela recorta co-
munidades diversamente afetadas.
7 René Thom é o matemático que desenvolveu, ao longo dos anos 1980, a referida teoria, a qual
antecipa em vários aspectos a visão da teoria do caos e dos sistemas complexos.

212 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


do mundo. A pandemia está definindo um antes e depois, uma aceleração do
tempo que nos coloca no interstício entre um futuro altamente incerto e um
passado não mais reprodutível.
É claro que não queremos atribuir nenhuma fatalidade à insurgência do
vírus e de sua letalidade: existe um quadro complexo que nos permite apro-
ximar as causas (múltiplas) da sua emergência, assim como de outros vírus
potencialmente pandêmicos detectados a partir do começo do novo século.
Num artigo recente, Giannella (2020) traz uma reconstrução à qual remete-
mos, apenas sumarizando aqui os principais elementos para avançarmos em
nossa análise. Sem dúvida, a globalização do capitalismo, que passa de uma
fase incipiente para uma de ulterior fortalecimento, nos traz o pano de fun-
do geral; no entanto, e de forma mais específica, diversos analistas apontam
para o modelo contemporâneo da produção de alimentos – nomeadamente a
pecuária industrializada – e seus impactos nos ecossistemas como prováveis
causas desencadeadoras do aparecimento de vírus desconhecidos, com sua ele-
vada letalidade para os humanos. (LARA, 2020)
Ora, apesar da importância de compreender as causas da pandemia de
forma não fragmentada e a natureza sistêmica do seu aparecimento, não é
nessa direção que apontamos a nossa atenção. Em vez disso, gostaríamos de
ressaltar a forma como a pandemia agiu, no mesmo nível sistêmico, enquanto
reveladora de fragilidades radicais e da insustentabilidade da lógica própria do
sistema mundo que o capitalismo globalizado gerou. Os chamados constantes
que os movimentos ecologistas e altermundialistas lançam, há décadas, sobre
a impossibilidade de seguir na busca incessável do máximo lucro e sobre a ne-
cessidade de uma mudança de rumo focando na preservação da vida8 sempre
encontraram como resposta a presumida impossibilidade de frear o desenvol-
vimento, justamente por seu caráter globalizado. Hoje, está claro que a própria
globalização é a causa e funciona como propulsora da pandemia e que ela se
apresenta como o ápice de uma crise sistêmica há muito tempo anunciada.
É fato que esse evento conseguiu o que parecia impossível: paralisar cida-
des e estados, colocar em suspensão a economia mundial e mostrar o imenso
perigo implicado ao se aplicar a lógica do lucro a bens primários, como a saúde.9

8 Tanto a nossa, como espécie, quanto a do planeta, estando inevitavelmente imbricadas.


9 Aqui, não apenas falamos da gestão da doença em hospitais e outras infraestruturas físicas, mas
também da produção de alimentos como estratégia primária para garantir uma vida saudável.

t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 213
Ainda, a pandemia escancarou como nunca antes as desigualdades radicais
geradas pelo neoliberalismo exacerbado e nos colocou diante de uma encru-
zilhada. Naturalmente, a fragilidade, uma vez revelada, impulsiona a busca de
respostas, mas seria ingênuo pensar que a reformulação da nossa forma de or-
ganização social e econômica com base em novos princípios esteja facilmente
ao nosso alcance nesse momento. Ao contrário, como nunca, o nosso futuro
está em disputa (KLEIN, 2020), e a pandemia pode ser tanto o acelerador de
uma tendência autoritária e securitária quanto uma janela de oportunidade
para enveredar num caminho de construção solidária de um modelo baseado
no conceito de bem-viver para todas e todos.
Curiosamente, ambos os cenários se baseiam no uso intensivo de tecnolo-
gias, mas, olhando mais de perto, reconhecemos que os princípios orientadores
são distintos, até mesmo antagônicos. Sintetizando e polarizando, para fins
analíticos, reconhecemos: de um lado, um princípio de competição e indi-
vidualismo, que é o que norteia o desenvolvimento mundial há séculos; do
outro, o Comum enquanto princípio ontológico e político. Ontológico, porque
ressalta a condição de interconectividade e interdependência que nos carac-
teriza enquanto humanos na relação com qualquer outro ser e com o próprio
planeta. Político, no momento em que destaca a condição relacional como
fundamental para o nosso estar no mundo e valoriza a unidade-diferença da
nossa condição de humanos enquanto potencial indispensável para enfrentar
a complexidade dos desafios contemporâneos.

O Comum e suas práticas: laboratórios e outras


experiências públicas
Fica explícito, portanto, pelo que colocamos anteriormente, que o indagar
e a tentativa de fortalecer o campo de práticas orientadas pelo princípio do
Comum nada têm de neutro e implicam, em vez disso, um posicionamento
claro a favor de um dos lados da disputa,10 de um determinado tipo de futuro
ao invés de outro. Como já afirmamos, a pandemia está tendo a função de

10 Quando nos referimos a “um dos lados da disputa”, não estamos considerando que a disputa pelo
futuro se dá apenas entre as duas racionalidades aqui expostas: a do Comum e a do sistema mundo
capitalista. Sabemos que a discussão não é dicotômica e que existem diversas nuances e hibrida-
ções entre essas lógicas; no entanto, para fins deste artigo, trabalharemos com essas polaridades.

214 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


realçar condições preexistentes – a radicalidade da desigualdade social e sua
caraterização pelos marcadores de raça, gênero etc. – e de catalisar mudanças
que já estavam a caminho e que se encontram aceleradas.
Pelo lado das mobilizações sociais e das práticas coletivas caracterizadas por
um agir-comum e um fazer-juntos, os conceitos de experiência pública e de
laboratórios do comum nos fornecem recursos fundamentais para adentrar um
vasto campo de práticas. Aprofundaremos o conceito de experiência pública
na próxima seção. Por enquanto, vamos focar em como podem ser pensados
os laboratórios. Propomos que se reconheça um laboratório toda vez que uma
comunidade/coletivo surge e se fortalece no processo de identificação de algo
que afeta a todos como sendo um problema11 e, a partir disso, se dispõe à ação,
gerando experimentos coletivos, protótipos de soluções oriundas da inteli-
gência e dos saberes compartilhados. Nesse sentido, entendemos que existem
laboratórios além das práticas que se autodefinem com esse nome. Os labora-
tórios não são invenções da discussão conceitual sobre o Comum; são prévios
a ela e podem ser encontrados em diferentes lugares.
Os exemplos dos dois tipos – que tenham esse nome ou não – são inúme-
ros e o pouco espaço destas notas não nos permite demorar neles. Apontamos
aqui para alguns exemplos que consideramos emblemáticos, só para dar a
noção da amplidão do escopo que eles desenham. Lembramos, então, o movi-
mento de ocupação da Praça da Estação, em Belo Horizonte, onde um coletivo
urbano buscou ressignificar e marcar o caráter de comum de um espaço pú-
blico semiesvaziado batizando-o de “Praia da Estação”; ou o caso da Teia dos
Povos da Bahia, que junta inúmeros povos tradicionais, construindo pontes e
união entre diferentes tradições culturais, espirituais e modos de conceber a
política em nome da luta por terra e território, conclamando: “Aquilo que nos
une é maior do que o que nos separa”. (5ª JORNADA DE AGROECOLOGIA DA
BAHIA, 2017) Rodrigo Savazoni também nos fornece alguns exemplos de onde
e quando um laboratório do comum pode ser instituído:

[...] pode acontecer dentro de uma circunstância de um agrupa-


mento agroecológico, um grupo que está disputando o manejo de
gestão de recursos hídricos, pode acontecer dentro de um grupo

11 Os problemas não são fatos naturais; não os encontramos prontos, mas os construímos, individual
ou coletivamente. Conforme Boullosa (2013, p. 76), um problema social é “uma construção coletiva,
plural, êxito de muitas interpretações e particularizações sobre e para o mesmo [...]”.

t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 215
que está tentando ocupar uma praça, um grupo que está querendo
participar de uma rede de produção de cultura popular, de gente
que quer produzir ciência aberta. São muitos os lugares onde o
Comum pode ser praticado. (SAVAZONI, 2020)

Buscando definir um laboratório do comum, Henrique Parra (2019b)


afirma: “Um laboratório é sobretudo um lugar de coinvestigação, pesquisa e
experimentação”. Aqui, diferentemente dos laboratórios tradicionais, não se
separa quem pesquisa do que é pesquisado:

O espaço que chamamos de laboratório não é um lugar limpinho,


asséptico e onde o que se investiga pode ser separado do mundo ‘lá
fora’. Nosso laboratório é parte do mundo e é atravessado por ele. É
um laboratório contaminado. (PARRA, 2019b)

Dito de outra forma, se falar em laboratório é falar sobre modos e formas de


produção de conhecimento, esses laboratórios se caracterizam enquanto luga-
res de coinvestigação, pesquisa e experimentação que buscam indagar coletiva
e praticamente sobre modos de vida baseados no cuidado e na cooperação, na
partilha e no fazer-juntos. Chama-nos a atenção, particularmente, a percep-
ção do laboratório enquanto espaço de produção de uma prática científica que
não discrimina entre cultos e ignorantes, dando materialidade ao conceito de
ecologia de saberes (SANTOS, 2002), segundo o qual todo mundo é expert no
campo da sua própria experiência, e essa diferença de saberes é acolhida como
potencial com vistas à produção de protótipos. Ainda nas palavras de Parra
(2019a), prototipar implica uma dupla experimentação: um modo de conhecer
e um modo de intervir politicamente, um modo que leva a sério o fato de que
toda produção de conhecimento afeta o mundo e tem efeitos e consequências
que precisamos assumir através de uma política do cuidado.
Buscando consolidar a hipótese de se conceberem como laboratórios ações
idealizadas em contexto de pandemia e que não necessariamente se autode-
finem dessa forma, nos debruçamos sobre três plataformas on-line lançadas
nesse período que reúnem ações coletivas de enfrentamento à crise gerada
pela Covid-19. São elas: o Laboratório de Emergência,12 o Mapa Colaborativo13

12 Ver em: https://labdeemergencia.silo.org.br/.


13 Ver em: https://mapacolaborativo.org.br/.

216 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


e o repositório de pesquisa do grupo Repensando as Relações entre Sociedade
e Estado (Resocie).14 Destacamos ações como as de contribuição para a al-
fabetização remota de crianças; distribuição de abayomis e máscaras para
crianças negras; distribuição de livros; ações para levantar recursos para a dis-
tribuição de materiais de higiene pessoal; de distribuição de cestas básicas e
marmitas; e grupos de apoio psicológico. Ainda entre as ações que pudemos
acompanhar a partir das nossas redes locais de contato, destacamos a produ-
ção de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs) para serem doados para
os profissionais de saúde que estão atuando na linha de frente da pandemia.
Algumas dessas ações configuram o atendimento de uma necessidade que po-
demos considerar básica; outras redefinem o que significa básico e prefiguram
a ampliação de direitos – por exemplo, de as crianças terem acesso a livros e
brincadeiras, independentemente de serem pretas ou brancas.
A partir dos exemplos15 citados, fica evidente o que queremos dizer quando
afirmamos que essas práticas existem antes e além da nossa discussão teórica.

O Laboratório do Comum é um espaço de experimentação demo-


crática fundado na cumplicidade entre diferenças, atuando para
conferir a devida centralidade ao trabalho de visibilização do ter-
reno sempre pressuposto, e ainda assim oculto, que sustenta toda
prática política e também científica: corpos e suas marcas, uma
ética do cuidado que cria e sustenta relações. (MORAES; PARRA,
2020, p. 113)

O que nos interessa aqui é de que forma o debate sobre o Comum lança
luz nessas práticas, possibilitando uma mudança no regime de sensibilidade
(FUTUROS..., 2020) para indagar o que está sendo produzido no presente e
imaginar outros futuros possíveis. Tanto os laboratórios do comum que oficial-
mente assumem essa terminologia quanto as tantas outras práticas espalhadas
mundo afora que não a assumem estão, de fato, apontando para a mesma
questão: a afirmação do Comum enquanto princípio que é, ao mesmo tempo,
ontológico e político.

14 Ver em: https://resocie.org/, grupo de pesquisa da Universidade de Brasília (UnB).


15 Para mais exemplos sobre ações coletivas indagadas a partir da perspectiva do Comum, ver:
Ostrom (2002), Bollier (2016), Savazoni (2018), Tonucci Filho e Cruz (2019), Instituto Procomum
(https://www.procomum.org/) e Pimentalab (https://trama.pimentalab.net/). Sobre a Teia dos
Povos da Bahia, ver: http://jornadadeagroecologiadabahia.blogspot.com.br/. Giannella (2018)
também traz descrição e reflexões sobre esse caso.

t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 217
Talvez a proposta que aprofundaremos na seção seguinte, o conceito de
experiência pública (PERES, 2020), nos ofereça um vocabulário ampliado e
mais um recurso conceitual para abarcar esse conjunto vasto e dificilmen-
te predefinível de ações/mobilizações. Entre os muitos elementos que Peres
(2020) traz na tentativa de defini-las e diferenciá-las de outros conceitos mais
consolidados – por exemplo, o de novos movimentos sociais –, gostamos de
destacar um que nos parece bastante pertinente ao momento. Falando das ex-
periências públicas, ela afirma: “Distinguem-se, ainda, por sua reflexividade:
a capacidade de, simultaneamente, fazer e sofrer, agir e refletir, abrir novos
mundos para dentro e para fora”. (PERES, 2020, p. 86)
Avançamos, então, na hipótese de que o princípio do Comum e o concei-
to de experiência pública, atuando no cenário da pandemia entendido como
“catástrofe” – no sentido já destacado –, manifestam as possibilidades de reati-
vação de uma inteligência coletiva e de uma convocação de saberes e práticas
que ensejam alternativas ao próprio cenário. Dessa forma, o Comum enquan-
to princípio e os laboratórios do comum enquanto práticas que o afirmam e
materializam nos convidam à interpretação dessas ações coletivas, apontando
além do objetivo específico que cada uma delas pretende alcançar, em direção
a um redesenho das formas da convivência, da participação e, afinal, do sentido
possível de uma democracia que sabemos sempre mais esvaziada de sentidos.

Os laboratórios do comum e a Gestão Social


de territórios
Como antecipado anteriormente, este trabalho visa explorar a aproxima-
ção possível e os efeitos, em termos de potência analítica e inspiração para a
ação, da interlocução entre o campo da Gestão Social e o dos estudos sobre o
Comum. Até este ponto, observamos um conjunto de práticas de mobiliza-
ção social através da lente oferecida pelo conceito de laboratório do comum
e lançamos a hipótese de que o conceito de experiência pública dialogue sur-
preendentemente com ele. Ao mostrarmos essa convergência, ampliamos as
possíveis descrições de um campo de práticas que escapa ao uso de conceitos
mais consolidados – como o de novos movimentos sociais –, amplificamos
seus significados e, o que mais nos interessa, encontramos pistas convergentes
de compreensão e inspiração para a renovação dos repertórios de ação partici-
pativa e, afinal, democrática.

218 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Entendemos por Gestão Social uma interpretação contemporânea das prá-
ticas de gestão que assume/acredita na possibilidade de solução democrática,
dialógica e participativa dos problemas relacionados à produção do bem pú-
blico e que faz da proteção e promoção desse bem o fim prioritário. Essa visão
prioriza a aprendizagem no processo de gestão e visa agregar/valorizar diferen-
tes tipos de conhecimentos através do diálogo. (BOULLOSA; SCHOMMER,
2008) A partir do propósito de aproximação entre os dois campos, podemos
salientar que o conceito de bem público pode ser substituído – sem entrar em
debates teóricos de cunho economicista – pelo de Comum, sem perdas ana-
líticas e, ao contrário, com ganhos de amplidão conceitual. O que o conceito
de Gestão Social nos traz é, de fato, uma profunda ressignificação da noção
naturalizada de gestão enquanto intrinsecamente tecnicista. A Gestão Social
afirma outra forma possível de se entender a gestão. (ARAÚJO, 2014)
Algumas palavras-chave para a interpretação de Gestão Social que propo-
mos também são pontos de proximidade com o campo do Comum. Vejamos:
a abordagem pós-positivista, que recusa a separação entre sujeito e objeto da
pesquisa e propõe a construção de conhecimento como ato implicado, engaja-
do, de coprodução; a dialogicidade – distante da visão abstrata e normatizante
típica das posições inspiradas em Habermas –,16 pautada no princípio da es-
cuta ativa (GIANNELLA; ARAÚJO; OLIVEIRA NETA, 2011), que não objetiva
necessariamente o consenso, mas a melhor compreensão possível das múlti-
plas perspectivas em jogo como base de novas formas possíveis de convivência
(perspectivismo);17 o reconhecimento e a valorização dos contextos e dos
sujeitos – saberes, poderes, racionalidades, estéticas – na afirmação de uma
ecologia de saberes e na defesa radical das formas de vida, das culturas e das
cosmovisões sistematicamente negadas pelos grupos dominantes.
Cientes de que a Gestão Social está longe de ser um campo teórico ho-
mogêneo e de apresentar total convergência epistemológica, explicitamos o
nosso posicionamento dentro dele a partir dos conceitos-chave destacados an-
teriormente. O conceito de experiência pública contribui para qualificar essa
posição que acreditamos ser capaz de sustentar uma fértil interlocução entre
a Gestão Social e o campo de estudos do Comum. Como no caso da definição

16 No campo da Gestão Social, existe uma forte vertente deliberacionista. Ver: Tenório (2013).
17 Esse uso do conceito de perspectivismo, oriundo dos campos da filosofia e antropologia, precisaria
de maiores aprofundamentos, aqui impossíveis, mas que serão objeto de próximos escritos.

t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 219
dos laboratórios, definir esse segundo conceito não é fácil, justamente pelo
fato de que ele busca abarcar, com a maior abertura possível, a multidimensio-
nalidade e a complexidade das práticas sociopolíticas que pretende interpretar.
Ainda em coerência com a opção epistemológica adotada, escolhe-se apontar
o que esses conceitos, assim como outros, podem ser – como podem ser com-
preendidos –, em vez de sancionar o que são, deixando em aberto o diálogo
possível para outras compreensões. Eis uma descrição, entre as muitas possí-
veis e complementares:

Para além da negação do status quo e do protesto contra o que já


está dado, as experiências públicas voltam-se sempre à construção
(muitas vezes silenciosa) de alternativas: em prol da abertura de
novos espaços de atuação; em prol da ressignificação de espaços
participativos já existentes; em prol da imaginação e da invenção de
novos modos de fazer e de dizer, de agir e de se associar, de perceber
e de superar situações problemáticas. (PERES, 2020, p. 86)

Peres (2020, p. 89) salienta ainda que, ao avançar na reflexão e definição do


que as experiências públicas podem ser, pretende contribuir: “[...] para que as
experiências diárias de reinvenção – de formas de ver, de agir, de se organizar,
de liderar, de conferir significados, de gerir problemas – possam ganhar visibi-
lidade e, assim, contribuir para a transformação dos territórios [...]”.
Seguindo em nosso exercício de busca de convergências entre os dois
campos, apontamos os elementos a seguir, livremente extraídos e inspira-
dos por Peres (2020), que trazem assonâncias e convergências de significados
com Parra (2019b) e Parra e Moraes,18 enquanto características e significados
compartilhados entre os laboratórios do comum e as experiências públicas. O
intuito é descrever e interpretar processos interativos que: apresentam postura
crítica e reflexiva com relação ao Estado e ao mercado; são radicalmente socio-
cêntricos; são compostos por um conjunto em movimento de atores, em que
o eu experimenta o outro; são voltados à exploração de alternativas às formas
de convivência dominantes, à identificação de problemas e possíveis soluções
através da criação de arranjos sociotécnicos situados e colaborativos; visam
à construção de significados comuns; são construídos no “entre”, na relação

18 Ver: https://www.sescsp.org.br/online/artigo/14645_ALANA+MORAES+HENRIQUE+Z+M+PARRA.
No site indicado, encontram-se diversos textos de Parra e Moraes, nos quais é possível verificar as
convergências sinalizadas.

220 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


e na interdependência; nascem e ocupam ativamente os interstícios identi-
ficados na colonização sistemática de corpos e mentes, em interação instável
e não binária, que une – e que separa – o micro e o macro, em um processo
constante de negociação e de mediação; produzem, seja mais ou menos in-
tencionalmente, a reconstrução do tecido social por meio da aproximação de
realidades distintas, da redução das desigualdades e da democratização dos es-
paços de participação, de ação e de tomada de decisão. Peres (2020) pretende
qualificar o que são as experiências públicas, mas observamos que tudo o que
destaca também serve perfeitamente à descrição dos laboratórios do comum.19

Amarrando os fios, apontando direções para mais


pesquisas
Já rumo ao desfecho destas notas, precisamos resgatar o nosso objetivo
para verificar se e como os argumentos que tecemos nos aproximaram dele.
Avançamos na hipótese de que há uma interlocução possível e fértil entre
os campos dos estudos do Comum e da Gestão Social, através da ressonân-
cia existente entre os conceitos de laboratórios do comum e de experiência
pública. Essas aproximações nos interessam fortemente por oferecerem uma
ampliação de vocabulário e recursos analíticos mais adequados à descrição
e interpretação de uma família de práticas sociais contemporâneas, as quais
pautam a inovação de registros e códigos da ação política e social – inclusive
participativa – em contextos de crise democrática.
Destacamos a noção de autonomia, pois nos parece capaz de representar
e condensar os anseios dos atores que protagonizam esse campo de práticas
– atores esses, decepcionados e inconformados com os formatos mais tra-
dicionais de participação política, que ensejam alternativas ousadas em seu
pragmatismo. Eles afirmam o direito e a capacidade de inventar seus próprios
espaços de ação (MIRAFTAB, 2016), geridos por suas racionalidades, regras
e protocolos; afirmam uma possibilidade de interação e diálogo não focada
na busca absoluta do consenso, nem pautada no totalitarismo da competição
entre argumentos racionais, que sempre afirmam as razões dos que dominam.
(MAKARAN; LÓPEZ; WAHREN, 2019)

19 Um trabalho mais detalhado de reconstrução arqueológica dos dois conceitos seria possível e
interessante, mas aqui é impossível devido às limitações de espaço.

t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 221
A cultura popular, por exemplo, ou os coletivos não instituciona-
lizados, falam uma outra língua, é uma outra forma de produção
de conhecimento, e às vezes não é nem língua, é corpo, é toque, é
ritmo, e aí eu fico me perguntando se agora a gente não tem que
de uma vez por todas radicalizar esse lugar também de construção
democrática. (FUTUROS..., 2020)

Esses atores ousam colocar suas inteligências e forças na criação de res-


postas concretas, arranjos sociotécnicos capazes de fazer bairros, cidades e
territórios colocando ao centro o Comum – isto é, a vida, a solidariedade e o
bem-viver para todos. Agem não com vistas a um futuro melhor, mas acredi-
tando que o mundo alternativo com que sonham já existe e, finalmente, mora
e depende de cada um(a) de nós.

O mundo que a gente acredita existe. Não é que ele vai existir [...]
E eu experimento ele várias vezes. Eu poderia até dizer que eu ex-
perimento ele todos os dias [...]. Não é uma promessa de um bem
estar eterno e nem de um bucolismo do grande dia que chegará
em que conviveremos todos em grande paz, porque isso não existe.
(FUTUROS..., 2020)

Essas práticas buscam resgatar sabedorias e tradições negadas pelo grande


projeto colonialista moderno, do progressismo e do desenvolvimento, recon-
ciliando futuros possíveis com passados desperdiçados, tomando o Comum
como exercício de imaginação cívica que busca inventar formas de parcerias e
construções coletivas. (FUTUROS..., 2020)
Finalmente, concluímos reafirmando a necessidade de seguir pesquisando
e acompanhando o campo de práticas que aqui recortamos, em seu potencial
de inovação democrática, e de aprofundar os diálogos entre os campos de es-
tudos que aqui iniciamos.

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t ecen d o e l o s no l i m i a r da pa n de m i a 225
Articulação e autonomia para os povos em
movimento: reflexões sobre a construção da
Teia dos Povos

Naira Reinaga de Lima

Introdução
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o processo de construção da
Teia dos Povos, criada em 2012 com a proposta de articular diversos movimen-
tos sociais, comunidades e povos tradicionais da região sul e extremo sul da
Bahia. Destaco alguns princípios da organização da Teia dos Povos a partir da
análise de seus documentos – cartas, manifestos e outras publicações –, traçan-
do um diálogo com o referencial teórico sobre movimentos sociais latino-ame-
ricanos dos últimos anos e enfocando as discussões sobre redes e autonomia,
assim como os estudos sobre os processos de territorialização e colonização
que se relacionam ao tema aqui proposto. A análise documental e a pesquisa
bibliográfica fornecem, desse modo, as bases metodológicas para este trabalho,
como ponto de partida para tecer as reflexões sobre a constituição das redes e
as possibilidades de autonomia na Teia dos Povos.
A Teia dos Povos surge com a proposta de dar continuidade às articulações
promovidas na I Jornada de Agroecologia da Bahia1 (2012), construindo uma
rede entre diferentes sujeitos coletivos a partir da criação de um eixo comum,
pautado na luta por terra, território e agroecologia. Mais recentemente, a Teia

1 A partir de então, a Teia dos Povos passa a organizar periodicamente as Jornadas de Agroecologia,
que se tornam um de seus eventos de maior projeção, contando com grande número de parti-
cipantes nas atividades promovidas, como apresentações, debates, rodas de conversa, plenárias
e oficinas que giram em torno do eixo da terra, território e agroecologia. Para mais detalhes, cf.
cartas das Jornadas de Agroecologia (2013, 2014, 2015, 2017 e 2019), publicadas pela Teia dos Povos,
disponíveis em: https://teiadospovos.org/.

227
busca ampliar sua rede, agregando movimentos e experiências coletivas de ou-
tras regiões, sendo que os principais grupos participantes são

movimentos e organizações sociais, pescadoras, marisqueiras,


ribeirinhos, povo de fundo e fecho de pasto, povos de terreiros,
pequenos agricultores, sem-terra, sem-teto, indígenas de muitas
nações, quilombolas, povo negro, extrativistas e os muitos elos que
apoiam e constroem a Teia a partir da solidariedade. (TEIA DOS
POVOS, 2019)

Esses grupos reúnem-se através de encontros, reuniões, jornadas, pré-


-jornadas e outras ações, como feiras e mutirões, em que terra, território e
agroecologia constituem-se como grande eixo condutor do diálogo entre os
diversos atores, sujeitos e agentes envolvidos, pois é através dele que se busca a
construção de um caminho unificador para as lutas das diferentes comunida-
des e outros segmentos que integram a Teia.
Os distintos sujeitos coletivos e atores sociais interligam-se na Teia a par-
tir de redes específicas de solidariedade que os identificam. Dessa forma, as
diversas comunidades e povos que se distribuem pelo território e que se ca-
racterizam a partir de diferentes realidades sociais, históricas e ambientais,
em meios sociais e culturais específicos, conectam-se e expressam a busca por
laços comuns que os unem. Diante da multiplicidade das demandas e espe-
cificidades trazidas por cada grupo social que compõe a Teia, reforçar terra,
território e agroecologia como eixo integrador aponta para o esforço na busca
dessa unidade na diversidade, capaz de agregar as diferenças que se apresen-
tam entre as comunidades e seus territórios, com suas identidades e formas de
luta específicas. O lema que finaliza a Carta Final da V Jornada de Agroecologia,
“aquilo que nos une é maior do que o que nos separa” (TEIA DOS POVOS,
2017), torna-se, então, emblemático desse esforço.
Enveredando por esse caminho, a Teia vai tecendo suas propostas e seus
projetos para as comunidades que a integram, em um processo que se apresen-
ta em construção permanente. Nessa dinâmica, a Teia reforça que os caminhos
que buscam unir a luta dos povos não estão traçados ou acabados, mas se
encontram em percurso, em diversas propostas que partem do princípio da
construção conjunta, do estar junto e construir junto, em um sentido coletivo
e comunitário que direciona suas práticas, ações e projetos. É sobre a constru-
ção desse caminho que vem sendo trilhado pela Teia dos Povos, como processo

228 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


em movimento e em construção, que este trabalho se dedica a traçar algumas
reflexões.2
Essa construção à qual se propõe a Teia dos Povos pode ser pensada à luz
das análises sobre as transformações que caracterizam o cenário mais atual
no qual se inserem outras experiências coletivas, com destaque para o con-
texto latino-americano e as diversas lutas empreendidas por movimentos
populares de camponeses, povos negros e indígenas e diversos movimentos de
trabalhadores urbanos e rurais, que nos últimos anos se mobilizam e buscam
responder, de diferentes modos, aos avanços do capitalismo global e das políti-
cas neoliberais que o acompanharam.3
De acordo com Zibechi (2017), as transformações pelas quais passou nosso
continente após um período marcado pela hegemonia de governos de esquer-
da em diversos países, seguido pelo retorno dos governos conservadores e
neoliberais nos últimos anos, demandam uma revisão de vários pressupostos
que marcaram as análises e as próprias práticas dos movimentos sociais lati-
no-americanos. Para o autor, o próprio conceito de movimento social também
poderia ser revisto, pois a pluralidade das experiências coletivas latino-ameri-
canas revela uma maior complexidade, de modo que o conceito de movimento
social não seria mais condizente com a diversidade de lutas empreendidas pe-
los povos indígenas, negros e mestiços, além de trabalhadores em geral, nas
suas distintas reivindicações por soberania e autodeterminação. Nesse sentido,
a expressão “sociedades em movimento” seria mais adequada para compreen-
der o significado dessas lutas, apontando para uma dimensão de autonomia
presente na diversidade de experiências empreendidas pelos diversos povos e
sociedades latino-americanas. (ZIBECHI, 2017)

2 Este trabalho é um recorte da pesquisa de doutorado desenvolvida no âmbito do Programa de


Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES), da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB),
onde abordo a questão da educação para a Teia dos Povos. A pesquisa conta com financiamento
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e integra ainda o pro-
jeto “Perspectivas e desafios da participação em tempos de crise democrática”, coordenado pela
professora Dr.ª Valéria Giannella (PPGES/UFSB).
3 São muitas as experiências que poderiam ser citadas como exemplo desse cenário: os movimentos
étnicos e camponeses da Bolívia e Equador, os movimentos de bairro da Argentina, os movimentos
de comunidades negras na Colômbia e as revoltas estudantis no Chile, apenas para mencionar
casos que tiveram ampla repercussão. Ver Gohn (2015) para maiores detalhes. Para Zibechi (2017),
as experiências fundantes desse período mais recente estariam no Caracazo (Venezuela, 1989), no
levantamento indígena Inti Raymi (Equador, 1990) e no neozapatismo (México, 1994).

a rt icul ação e autonomi a pa r a o s p o vo s e m mo v i m e n to 229


A experiência de construção da Teia dos Povos e os questionamentos que
ela suscita podem ser pensados nessa dinâmica das sociedades em movimento
ou, ainda, dos povos em movimento, como aqui denomino seu empenho em
articular e reunir os diferentes povos, comunidades e grupos que a compõem.
A diversidade de lutas sociais, movimentos populares, organizações e ações co-
letivas que se entrelaçam a partir da Teia mostra um horizonte comum, em que
a afirmação de outros modos de vida e organizações sociais possíveis coloca-se
ao lado de outras práticas que hoje se apresentam como contra-hegemônicas.
São construções que se apresentam de forma muito heterogênea, assim
como há uma pluralidade de análises, interpretações e teorizações que buscam
abordar essas experiências. Nesse sentido, este trabalho propõe um recorte no
qual seja possível pensar a Teia dos Povos em sintonia com os estudos sobre
movimentos sociais contemporâneos que contribuem para dar uma nova cara
às experiências de luta e resistência na América Latina.
Contudo, a relação entre redes e autonomia, assim como a questão das
identidades e novas formas de organização dos sujeitos coletivos, aparece desde
meados de 1980 em diversas análises sobre os movimentos sociais latino-ame-
ricanos, dialogando, particularmente, com as teorias dos novos movimentos
sociais,4 pela sua contribuição em dar centralidade a esses e outros aspectos.
A inovação representada pelos movimentos latino-americanos ancora-se, en-
tão, em como respondem às transformações do contexto mais recente, em
processos de atualizações e ressignificações de seus processos de luta, o que
implica ir além de categorias dicotômicas que os enquadrem como velhos ou
novos movimentos. (ZIBECHI, 2017)
Nesse sentido, a inovação representada pela Teia dos Povos, ainda que a
questão das identidades territorializadas seja crucial para a formação de sua
rede de articulação, refere-se a como sua construção pode ser capaz de des-
montar algumas fronteiras. Busco destacar como essa construção, ancorada
na busca da unidade na diversidade, estrutura as bases para a formação de
uma rede que aponta para a afirmação da autonomia presente na dinâmica
dos povos em movimento. A compreensão de como esses elementos vão se

4 As distintas correntes das teorias dos novos movimentos sociais trouxeram para o centro do debate
as questões da identidade, da cultura política e das formas de organização dos novos sujeitos e suas
ações coletivas, exercendo especial influência nas análises sobre os movimentos sociais na América
Latina. Nessas teorias, o que caracteriza o novo desses movimentos, no que pese sua heterogenei-
dade, refere-se genericamente a um distanciamento das formas tradicionais de organização do mo-
vimento operário ligado à luta de classes no contexto do capitalismo industrial. Para um panorama
geral dessas teorias e suas implicações, ver a síntese de Alonso (2009) e Gohn (1997).

230 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


estruturando na Teia dos Povos, vinculados aos seus princípios gerais, embasa
as reflexões apresentadas a seguir.

A busca da unidade na diversidade como princípio


de articulação
Como articuladora de diferentes movimentos sociais e experiências coletivas
de comunidades e povos tradicionais, a Teia dos Povos (2014) apresenta-se
com o objetivo de “traçar a agenda de ações anuais que auxiliam no desenvol-
vimento, empoderamento e emancipação das comunidades integradoras [...]
para uma nova sociedade a partir da emancipação, autonomia e dignidade do
ser humano, da Mãe Terra e das suas sementes”. Priorizando a leitura de do-
cumentos, cartas e manifestos publicados pela própria Teia, busco apresentar
como se dá seu processo de construção. Seus fundamentos são definidos em
três grandes pontos:

I. Terra e alimento como princípio filosófico e de vida, que se cons-


trói através da solidariedade irrestrita aos movimentos pela defesa da
territorialidade, tendo como instrumento a pedagogia do exemplo.

II. O trabalho e o estudo para liberdade que possibilite a construção


de um novo modo de vida, desconstruindo a herança dos modelos
capitalista, racista e patriarcal.

III. Reafirmar o olhar ancestral na edificação de um novo tempo,


contextualizado à nossa forma. (TEIA DOS POVOS, 2014)

A organização da Teia dos Povos se dá a partir dos seus núcleos de base5 e


seus elos apoiadores. Os núcleos de base têm nos processos de territorialização
seu fundamento. São formados por comunidades e povos tradicionais, assim
como outras organizações e movimentos sociais que historicamente têm sua
luta pautada na defesa de seus territórios como forma de sobrevivência. Os
elos correspondem aos apoiadores da Teia, que estabelecem parceria para suas
ações, tais como escolas e universidades, organizações não governamentais,
associações e outras organizações e instituições que contribuem de diversas

5 Os núcleos de base correspondem a um tipo de organização característica do Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. (LIMA, 2017) Com efeito, um dos principais núcleos da Teia,
que organiza e sedia boa parte de suas atividades, é o Assentamento Terra Vista, criado pelo MST.

a rt icul ação e autonomi a pa r a o s p o vo s e m mo v i m e n to 231


formas com a Teia, por exemplo, prestando auxílio com infraestrutura, asses-
soria em projetos ou fornecimento de transporte.6
A proposta de se colocar como um espaço para articulação, e não a de criar
um novo movimento ou organização, fica evidenciada no artigo “A Teia dos
Povos: a aliança e unidade dos povos e movimentos do campo e da cidade”,7 no
seguinte trecho: “A Teia não se coloca como movimento, e sim uma articulação,
um espaço para os diferentes povos e movimentos discutirem ações e estratégias
para a defesa dos territórios, a luta pela terra e agroecologia. Que respeita a indi-
vidualidade e característica de cada movimento [...]”. (TEIXEIRA et al., 2018, p. 5)
Os encontros promovidos pela Teia proporcionam vivências e intercâm-
bios entre seus integrantes, que, por sua vez, possibilitam a troca de diferentes
saberes e conhecimentos, de práticas e experiências entre os diferentes povos,
comunidades e demais participantes. Essa articulação é assumida como espaço
de diálogo em que são debatidas e traçadas as estratégias de lutas para os povos
e comunidades que participam da Teia.
O eixo que se forma em torno da terra, território e agroecologia representa
um ponto de convergência, abrindo caminho para o diálogo entre os povos e
comunidades, sem abrir mão das especificidades de cada um. Nesse sentido,
é por meio da formação dessa rede que a articulação é estabelecida como um
dos princípios de organização da Teia. Sua consolidação como uma rede de
solidariedade fica evidenciada na carta da II Jornada de Agroecologia, que é “re-
sultante da consolidação da Teia [...] para atuar de forma permanente enquanto
uma rede que reconstrói a solidariedade entre os povos negros, indígenas, as-
sentados, juventude e crianças e dá um sentido mais amplo à agroecologia”.
(TEIA DOS POVOS, 2013)
A construção dessa rede tem em vista uma nova forma de organizar os di-
ferentes grupos e povos, de modo a fortalecer as lutas sociais já empreendidas
por cada um, mas de forma interligada e dentro de um projeto mais amplo,
tendo na autonomia um horizonte a ser alcançado:

Estamos construindo uma forma de organização entre os povos


que busca autonomia política e financeira, através das ações de for-
talecimento das experiências agroecológicas em cada território que

6 Uma relação dos elos e parcerias da Teia pode ser conferida no documento A Teia do povo (2014).
7 Trata-se de um artigo cuja autoria conta com a participação de integrantes da Teia dos Povos.

232 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


compõe a Teia, na busca de autogestão e do autofinanciamento.
Estamos trabalhando para atuar adequadamente levando em con-
sideração as especificidades de nossas crianças, jovens, homens,
mulheres e idosos. Mas não teremos como conquistar essa saúde
e autonomia, que representa na verdade novas formas de vida, po-
lítica e militância, sem garantir nossos territórios e a vida de nosso
povo e nossas lideranças. (TEIA DOS POVOS, 2013)

Diante dessas colocações, a articulação proposta pela Teia dos Povos pode
ser compreendida como parte da construção das redes dos povos em movi-
mento, que buscam parâmetros de autonomia para sua organização. A próxima
parte do trabalho apresenta um recorte no qual é possível refletir sobre essa
relação.

As redes: buscando nexos e sentidos comuns


As redes de movimentos sociais podem ser compreendidas, segundo Scherer-
-Warren (2010), como processos em que distintos sujeitos coletivos reconhe-
cem-se e buscam sentidos comuns que direcionam suas lutas por emancipação,
tendo papel fundamental para a atualização dos processos de luta dos povos
em resistência na América Latina. A formação de redes representa um fortale-
cimento para os movimentos populares latino-americanos, permitindo relei-
turas e ressignificações das condições que historicamente marcam sua situação
de opressão e discriminação. (SCHERER-WARREN, 2010)
Para Machado (2007), a construção de redes representa um novo formato
de organização para os movimentos sociais em tempos de globalização, sendo
capaz de projetar um maior alcance das demandas dos movimentos em contra-
posição aos poderes hegemônicos no contexto do capitalismo global:

O novo passo fundamental na história dos movimentos sociais é


para seu novo tipo de organização, reticular, com ações que en-
volvem articulação e alcance cada vez mais globais. Esta seria a
forma mais eficiente para se contrapor à ação de organizações e
corporações com poderes cada vez mais globais – fora do controle
democrático dos governos locais – em um ambiente marcado por
instituições locais cada vez mais solapadas pela ação desestabiliza-
dora de tais atores. (MACHADO, 2007, p. 259)

a rt icul ação e autonomi a pa r a o s p o vo s e m mo v i m e n to 233


Essa capacidade de articulação entre os movimentos sociais tem como
premissa o reconhecimento de uma base comum, analisada como exercício de
tradução sobre o qual se assenta o potencial contra-hegemônico das redes de
movimentos. (SANTOS, 2007 apud SCHERER-WARREN, 2008) Para pensarmos
a rede da Teia dos Povos com base nesse exercício de tradução, podemos dizer
que a inteligibilidade entre as distintas experiências dos movimentos que a in-
tegram fundamenta-se no eixo terra, território e agroecologia, estabelecendo as
ligações entre os distintos povos, comunidades e outros elos da Teia, enquanto
busca de um elemento comum, capaz de representar a unidade na diversidade.
Essa busca por um sentido comum perpassa, além do mais, a questão das
formas de conhecimento e de saberes inerentes aos distintos sujeitos coletivos
que compõem a Teia dos Povos, que se traduzem nas formas específicas de or-
ganização de cada povo, cada qual com suas concepções e formas próprias de
se perceber e de perceber o mundo. Os encontros promovidos pela Teia, nesse
sentido, podem ser pensados pelo parâmetro da ecologia de saberes (SANTOS,
2007), em que o reconhecimento do comum não compromete a autonomia
das diferentes formas de conhecimento inerentes a cada povo, o que se cons-
titui como premissa para o estabelecimento de diálogos horizontais entre eles.
Suas diferenças podem ser compreendidas, nesses termos, como relações de
complementaridade. (SANTOS, 2007; SCHERER-WARREN, 2008)
Esse aspecto pode ser exemplificado nas aberturas e encerramentos dos
encontros da Teia, carregados de elementos simbólicos, ligados sobretudo ao
campo cultural e espiritual, que traduzem as formas de organização e visões de
mundo de cada grupo e que aparecem também nos diversos documentos da
Teia em referência aos caboclos, nkisis, encantados, ancestrais, entidades e ori-
xás.8 As diferentes concepções ligadas aos modos de vida dos povos indígenas
e da floresta, dos povos de terreiro, dos camponeses e outros que se conectam
a partir da Teia mostram, então, essa dimensão de inter-relação das diferenças.
As questões em torno da territorialização, que se ligam, por sua vez, ao pas-
sado colonial, formam a base para essa construção capaz de agregar diferentes
sujeitos, com suas origens e concepções distintas. Para Scherer-Warren (2010,
p. 25), é neste sentido que as redes operam em torno de reconhecimentos e
identificações políticas e simbólicas:

8 Cf. Carta da III Jornada de Agroecologia (2014) e Carta final da V Jornada de Agroecologia (2017).

234 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Apesar da diversidade de origem e, às vezes, de concepções dos
sujeitos desses movimentos, há identificações políticas possíveis e
possibilidades de construção de pautas ancoradas em significados
simbólicos e políticos similares, como a do princípio da função so-
cial da propriedade. A articulação em torno desse princípio se dá a
partir de um lugar de fala comum dos sujeitos envolvidos, de uma
crítica aos processos de colonização e da ocupação da terra rural ou
urbana no Brasil, com consequências históricas para as populações
excluídas desse processo.

A formação das redes implica “traduzir as demandas específicas e par-


ticulares em ideários politicamente mais amplos, mas suficientemente
inclusivos em relação às desigualdades e discriminações históricas diferencia-
das”. (SCHERER-WARREN, 2008, p. 507) É possível pensar, então, como na
Teia dos Povos sujeitos específicos, com suas demandas locais, buscam ampliar
sua atuação e projeção através da sua articulação. Esse aspecto fica evidente,
por exemplo, quando a Teia aponta a necessidade de vínculo com outras redes,
como a Teia dos Povos do Maranhão:

Nossa alegria pela reunião se redobra com a presença de uma co-


mitiva da Teia dos Povos do Maranhão, vinda do outro extremo do
Nordeste, das fronteiras da Amazônia. Recebemos com alegria es-
ses irmãos e irmãs que lutam pelos mesmos ideais e preparamo-nos
para também visitá-los em retribuição, consolidando a aliança dos
povos, tal como havíamos anunciado como nosso compromisso
primordial. (TEIA DOS POVOS, 2017)

Terra, território e agroecologia passam a direcionar, assim, as demandas


que historicamente fazem parte da luta dos distintos povos – agricultores,
indígenas, pescadores, quilombolas e outros –, mas buscando, precisamente,
ressaltar a unidade existente na multiplicidade, em que as lutas dos povos eram
tradicionalmente empreendidas de forma isolada. Essa unidade, entretanto, é
uma construção que precisa ser forjada e se dá de forma contínua, através do
diálogo e dos intercâmbios promovidos pela Teia.
O processo de construção da Teia traz reflexões sobre a busca de relações
mais horizontais entre grupos, que se organizam de maneiras muito diferen-
tes. Essa complexidade representa um desafio que é compreendido como parte
desse processo, no qual os distintos segmentos estão cientes do caminho a ser
construído através do diálogo e das relações intersubjetivas entre eles. Nesse

a rt icul ação e autonomi a pa r a o s p o vo s e m mo v i m e n to 235


sentido, isso não significa que as relações entre sujeitos coletivos tão distintos
não estejam carregadas de tensões e conflitos, como parte do desafio do cami-
nho a ser trilhado. (GOHN, 1997; SCHERER-WARREN, 2008)

Será, portanto, mediante ações e relações sociais não isentas de


conflitos que os atores em rede constroem suas novas plataformas
políticas e significados simbólicos para as lutas, observando-se,
por um lado, o direito à diferença, dentro de determinados limi-
tes ideológicos e éticos e, por outro, a unidade possível na ação,
não necessariamente homogênea, mas complementar e solidária.
(SCHERER-WARREN, 2008, p. 26)

Sobre o caráter inovador que o encontro dessa diversidade de povos e mo-


vimentos representa, pode-se pensar ainda como esse aspecto se traduz na
construção de relações mais democráticas, pois significam “um avanço no plano
do reconhecimento intersujeitos e interorganizacional, criando um potencial
de democratização no âmbito das relações sociais e políticas”. (SCHERER-
-WARREN, 2008, p. 509)
A rede de encontros promovida pela Teia dos Povos evidencia que a luta polí-
tica dos sujeitos coletivos envolve necessariamente aspectos culturais implicados
nos seus modos de vida, o que pode ser interpretado pelo sentido da cultura po-
lítica mobilizado pelos movimentos sociais na luta pela construção democrática,
em que o sentido de democracia não se limita ao sistema político, mas refere-
-se, de forma mais ampliada, às relações e práticas dedicadas a transformações
de distintas esferas sociais, culturais e econômicas. (ALVAREZ; DAGNINO;
ESCOBAR, 2000)
O reconhecimento entre distintos sujeitos pode ser compreendido como
fundamental na tessitura da Teia dos Povos, fornecendo a base da solidariedade
entre os povos que se reconhecem com base em suas lutas por terra, território
e agroecologia e, a partir daí, articulam o ponto comum que os une, apesar ou
a partir de suas diferenças. (SCHERER-WARREN, 2008) Esse processo de re-
conhecimento implica, assim, perceber um passado comum de expropriações
e exclusões que marca a história desses povos, como ponto de partida para
pensar uma forma de organização em que a multiplicidade de sujeitos e grupos
encontra-se ancorada nesse sentido comum. Isso pode significar, assim, o des-
monte de algumas fronteiras, tal como mencionado anteriormente.
Ao definir o eixo terra, território e agroecologia como mote comum, a
Teia vai tecendo sua rede de articulação, ao passo que cria uma identidade

236 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


que busca unir a luta dos diferentes povos e segmentos que a compõem, no
movimento que se traduz na busca da unidade na diversidade e na inserção dos
diferentes sujeitos em um projeto mais amplo de lutas populares.
Nesse sentido, terra e território, pensados de forma integrada e aliados
à agroecologia, representam uma força aglutinadora, sobre a qual é possível
pensar uma identidade coletiva que une os diferentes povos da Teia. Seja no
movimento de trabalhadores sem-terra e sua reivindicação pelo direito à terra,
seja no movimento indígena e as questões que abarcam o reconhecimento de
seus territórios, e ainda nas pautas dos demais povos – quilombolas, ribeiri-
nhos, povos das águas – que também envolvem processos de territorialização,
é sobre a questão da terra e do território que se constrói o significado comum
que tem a força de criar um nexo identitário entre esses distintos sujeitos, ao
qual vem se somar a agroecologia na formação do principal eixo articulador da
Teia dos Povos.
As considerações sobre o processo de formação da rede, capaz de articular
em torno de um eixo comum os diferentes povos, comunidades e demais seg-
mentos que tecem a Teia, levam ao debate sobre a questão da autonomia para
os povos em movimento. Esta última parte do trabalho busca, então, traçar
algumas reflexões, discutindo os sentidos de autonomia a partir das redes de
movimentos sociais. Nesse caso, os processos de territorialização que forne-
cem a base para a formação da rede terão novamente um papel central para
pensar a autonomia presente no horizonte de organização da Teia dos Povos.

Autonomia e territorialização para os povos em


movimento
A autonomia dos povos em movimento pode ser compreendida como sua bus-
ca por autodeterminação, definida como reconhecimento da diversidade e das
diferenças culturais, ligadas aos direitos coletivos, econômicos e sociais como
parte dos processos de territorialização. (POLANCO, 2008 apud SVAMPA,
2016) De acordo com Svampa (2016), o caráter inovador dos atuais movimentos
latino-americanos organizados em redes refere-se à convergência de antigas
lutas que revalorizam e ressignificam a territorialidade,

[na] potencialização das lutas ancestrais pela terra por parte dos
movimentos indígenas e camponeses, assim como no surgimento
de novas formas de mobilização e participação cidadã, centradas

a rt icul ação e autonomi a pa r a o s p o vo s e m mo v i m e n to 237


na defesa dos recursos naturais (definidos como bens comuns) da
biodiversidade e do meio ambiente. (SVAMPA, 2016, p. 143)

Para Almeida (2008), a relação entre territorialização e processos identi-


tários para povos e comunidades tradicionais se faz por meio do sentido de
comunidade que aparece nos movimentos sociais desses grupos, em que se
formam as redes de solidariedade como parte de sua mobilização coletiva.
O conhecimento do território e de seu ecossistema é parte central desse pro-
cesso, “incorporando fatores étnicos, elementos de consciência ecológica,
critérios de gênero e autodefinição coletiva”. (ALMEIDA, 2008, p. 25)
A autonomia ligada aos processos de territorialização para os povos em
movimento implica a compreensão de que a concepção de território traz uma
dimensão ontológica e política, como espaço coletivo onde se criam e recriam
vidas, que, para além de sua dimensão material, apresenta-se também na sua
dimensão sagrada. (ESCOBAR, 2015) Desse modo, pode-se pensar por que “ter-
ra” e “território” aparecem como termos integrados na Teia dos Povos: a terra
extrapola a dimensão ligada à produtividade, conectando-se à noção de ter-
ritório, que, em um sentido amplo, diz respeito a modos de vida e formas de
existência, mais do que a formas de sobrevivência. Terra e território aparecem,
assim, como garantia da própria vida para os povos e comunidades da Teia, per-
passando a questão da dignidade e sustentabilidade para suas comunidades.9
Para Zibechi (2017), a busca pela autonomia ligada aos processos de ter-
ritorialização representa uma inovação no cenário atual das sociedades em
movimento: é sobre a questão da autonomia dos territórios que se forma um
ponto de conexão entre os movimentos do campo e da cidade, nos processos
de intercâmbio e aprendizagem estabelecidos entre eles. Além disso, há uma
atualização dos questionamentos sobre a necessidade de mediação do poder
estatal, ao mesmo tempo em que a ideia de revolução como processo centra-
lizado cede lugar a novas relações pautadas no território, que levariam a cabo
uma transformação mais localizada e gradual.
Para o autor, os processos de territorialização são concebidos em um sen-
tido integral, abarcando aspectos materiais e imateriais das diferentes relações
estabelecidas entre as sociedades em movimento com seus territórios. Essa

9 A agroecologia, nesse sentido, aparece como opção que faz contraponto ao agronegócio, ligan-
do-se à terra e ao território como modo de vida. Para mais detalhes, ver: Carta da II Jornada de
Agroecologia (2013).

238 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


reflexão permite pensar também nas conexões entre antigas e novas formas de
luta, sendo mais adequado pensar na ampliação das formas de luta por parte
desses movimentos no novo contexto. (ZIBECHI, 2017)
O sentido de autonomia, nesse caso, também implica uma revisão. Para
Zibechi (2017), no decorrer dos anos 2000, as relações estabelecidas entre di-
versos movimentos sociais e os governos progressistas no nosso continente
fazem surgir reflexões que questionam o sentido de autonomia, aspecto so-
brevalorizado nas análises dos movimentos sociais latino-americanos. Nesse
sentido, Oliveira e Dowbor (2020) apontam que é um momento de inflexão,
no qual as relações entre movimentos sociais e Estado passam a ser analisadas
mobilizando termos como “interdependência” e “interação”, ao invés da cate-
goria de autonomia usada antes.10
Para Meza e Tatagiba (2016), o sentido de autonomia não significa que ne-
cessariamente implique a ausência de relações instituídas com o Estado, pois
a forma como os movimentos sociais mobilizam seus parâmetros de autono-
mia revela uma maior complexidade no encaminhamento de suas demandas,
incluindo a forma como se dirigem ao poder estatal ou à margem dele. Isso
significa reconhecer que a autonomia pode se dar em relação a distintas es-
feras e, como categoria de análise, é necessário que esteja contextualizada e
relacionada com outros fatores, para que não se caia na armadilha de pensá-la
como categoria capaz de explicar de forma totalizante os movimentos sociais.
(OLIVEIRA; DOWBOR, 2020)
Nesse caso, a autonomia para os movimentos sociais pode envolver vários
sentidos, o que, de acordo com Oliveira e Dowbor (2020), implica percebê-la
seja nas relações travadas com o Estado, seja como forma de organização, seja
ainda na dimensão das práticas cotidianas compreendidas como autônomas.
Esses dois últimos sentidos de autonomia relacionam-se de forma mais direta
com a discussão sobre a constituição das redes de movimentos sociais que aqui
tentamos traçar. Mais especificamente para pensar a construção da Teia dos
Povos, o sentido de autonomia parece condizer com a definição de que:

a luta do movimento social para a transformação do status quo se dá


a partir da criação de vivências que traduzem a visão de mundo do
movimento e nas quais não se busca e/ou se rejeita a interferência

10 A autonomia como categoria de análise volta à cena com a crise de 2008. (OLIVEIRA; DOWBOR,
2020)

a rt icul ação e autonomi a pa r a o s p o vo s e m mo v i m e n to 239


do Estado e de suas instituições. Situando-se na zona periférica
do sistema, os movimentos conseguem lançar novos temas, novas
formas de vida e interpretar valores de modo diferente sem com
isso querer substituir o poder do sistema. Aliás, bem ao contrário.
Precisam recusá-lo para preservar sua capacidade de pensar e agir
diferente. (OLIVEIRA; DOWBOR, 2020, p. 7)

É sobre esse alicerce da vida prática e cotidiana dos povos que a autonomia
afirma-se como um princípio da Teia dos Povos, no seu esforço de agregar os
diferentes movimentos e comunidades que dela participam a partir do mote
comum da luta por terra, território e agroecologia.

Considerações finais
Ao longo deste trabalho, busquei algumas análises que permitem relacionar a
discussão sobre as redes de movimentos sociais com a questão da autonomia
dentro do contexto mais recente que marca as experiências de diversos sujei-
tos coletivos latino-americanos. Como ponto de partida, apresentei a constru-
ção da Teia dos Povos, de forma a traçar um diálogo com o referencial teórico
que aborda o campo dos movimentos sociais no que diz respeito à dinâmica
dos povos em movimento.
A formação da Teia dos Povos, com sua proposta de articular movimentos
distintos em torno de um eixo comum, abarca diferentes sentidos de auto-
nomia que estão presentes nessa construção, como busquei demonstrar. Sua
proposta de articular em uma rede diferentes povos, comunidades e sujeitos
coletivos representa uma inovação do ponto de vista organizacional, propor-
cionando o encontro da unidade na diversidade como um de seus princípios.
Esse movimento refere-se ainda à preservação de saberes, culturas e tradições,
que se traduzem nas práticas cotidianas dos povos em movimento como parte
de suas lutas com base nos processos de territorialização.
A trama tecida pela Teia dos Povos pode ser compreendida, assim, como
parte do processo em que as redes contribuem para o fortalecimento dos movi-
mentos e lutas de distintos povos, apontando a autonomia como um princípio
e valor a ser reafirmado, potencializando as formas de organização autôno-
mas, nos vários sentidos que esse processo implica. Na dinâmica dos povos em

240 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


movimento, essa busca aparece como fundamental para o atual momento de
transformações o qual atravessa a América Latina, apontando para novas pos-
sibilidades de reconfiguração dos processos de luta dos povos em resistência.

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242 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Arte, afirmação cultural e etnoturismo na T.I.
Pataxó de Coroa Vermelha, Bahia

Alicia Araújo da Silva Costa


Pablo Antunha Barbosa

Introdução
Este artigo deriva da pesquisa que originou a dissertação de mestrado Tecendo
o viver sossegado: as artes de rexistência da Reserva Pataxó da Jaqueira, defendi-
da em 2020 por Alicia Araújo da Costa Silva no âmbito do Programa de Pós-
-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Atualmente, a pesquisa está sendo realizada em nível de douto-
rado,1 no mesmo programa. Tomaremos alguns dados etnográficos empresta-
dos de ambas as pesquisas para compor aqui um estudo comparativo, com o
objetivo de explorar os pontos de convergência entre etnoturismo, afirmação
cultural e arte em dois territórios da Terra Indígena (T.I.) de Coroa Vermelha
localizada na chamada Costa do Descobrimento, sul da Bahia, com contextos
etnoturísticos e políticos distintos. São eles: a Reserva Pataxó da Jaqueira, loca-
lizada em uma área de proteção permanente situada dentro dos limites territo-
riais regularizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1998, com 827
hectares de Mata Atlântica preservada; e a aldeia Nova Coroa, uma área urbana
situada em uma região retomada que ficou fora dos limites de demarcação da
T.I. Vejamos a descrição que Rego (2012, p. 59) fornece acerca do território2
pataxó em Coroa Vermelha:

1 As pesquisas de mestrado e de doutorado foram financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa


do Estado da Bahia (Fapesb).
2 Território é uma categoria nativa. Entende-se por território as áreas de ocupação ditas tradicionais
pelos pataxó e por eles atualmente ocupadas, estejam elas regularizadas/demarcadas ou não.

243
A [...] ‘gleba urbana’, está situada entre a BR-367 e a praia, e se desti-
na à habitação e ao comércio, contendo os principais equipamentos
comunitários da aldeia, como a Escola Indígena, o Posto de Saúde,
o Parque Indígena e seu Centro Cultural. A segunda gleba, referen-
te à Reserva da Jaqueira e à Agricultura, está posicionada seis quilô-
metros a oeste da anterior. [...] Para além do território regularizado,
[...] outras quatro áreas em estudo: Juerana e Aroeira, ‘retomadas’
em 2003; e Nova Coroa e Tapororoca, ‘retomadas’ em 2006. As duas
primeiras tangenciam, respectivamente, a Jaqueira e a Agricultura.
Nova Coroa e Tapororoca, por sua vez, estão separadas da ‘gleba
urbana’ apenas pela BR-367 – e entre si pelo rio Jardim.

Em ambas as pesquisas, temos nos ocupado das múltiplas formas pelas


quais a arte é um importante instrumento político, social e de afirmação cul-
tural para os pataxó da Coroa Vermelha, território que possui, por um lado, um
forte histórico de exploração pelo turismo de massa e, num sentido oposto,
está na vanguarda da prática do etnoturismo e da gestão etnoambiental de
forma autônoma. Vamos abrir um parêntese aqui, pois é importante definir,
de antemão, o que precisamente estamos informando quando usamos as ex-
pressões “afirmação cultural” e “cultura”. Sobretudo porque, no nosso caso, seu
significado parece estar ancorado em uma categoria nativa, segundo a qual a
noção de cultura tem a ver com a própria noção de identidade indígena, aqui
sendo operada por meio da manutenção/atualização de aspectos da cultura
tidos como tradicionais. Mas o que vem a ser uma cultura tradicional? Vejamos
a análise conceitual de Tijibaou (1998, p. 42 apud LEFEVRE, 2013, p. 326,
tradução nossa):

Costumamos falar de cultura tradicional, mas o que é tradicional?


Acredito que ainda contamos com uma concepção de cultura que
é muito ‘arqueológica’; como se a cultura autêntica fosse algo que
deve ser do passado. Por outro lado, toda a criação cultural con-
temporânea é percebida como se devesse ser autêntica, talvez so-
brevivendo ao teste do tempo. Mas a dimensão existencial do nosso
patrimônio surge graças aos jovens de hoje – na música e nas novas
formas culturais que expressam não os pontos de vista de cem anos
atrás, mas falam do sofrimento, das alegrias da vida hoje.3

3 “We often speak of traditional culture, but what is traditional? I believe that we still rely on a
conception of culture that is too ‘archeological’; as if authentic culture were something that must

244 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


A palavra “cultura” é recorrente no vocabulário cotidiano do povo pataxó.
Por exemplo, a expressão “crescer na cultura” significa que alguém tem, desde
a infância, vínculo de pertencimento àquele povo e sua cultura – ou seja, teve
acesso ao aprendizado do repertório cultural que moldou a sua identidade pa-
taxó –, a exemplo da língua, do aprendizado do artesanato, das pinturas dos
grafismos, das músicas ritualísticas, das histórias dos antepassados etc. Essa
ideia de cultura nos ajudará a contextualizar, mais adiante, o conceito princi-
pal que estamos abordando neste texto, a afirmação cultural.
O objetivo deste estudo é apresentar o artesanato pataxó para além de
mero produto turístico idealizado para a venda nas arenas turísticas, a partir de
dados etnográficos (COSTA, 2020) obtidos ao longo de dois anos de pesquisa
de campo e revisão de literatura. Partimos do princípio de que terra demarcada
é condição precípua para buscar uma vida tranquila – ou para “viver sosse-
gado”, outra expressão usual entre os pataxó que visa traduzir esse modo de
vida tradicional dessa população etnicamente diferenciada. As práticas arte-
fatuais e artísticas, os saberes ancestrais e contemporâneos que conformam
parte fundamental do sistema de produção das comunidades e da identidade
do povo pataxó estão diretamente associados à questão fundiária. Na Reserva
da Jaqueira, o viver sossegado é, de fato, uma realidade tangível. Trata-se de
uma comunidade “fechada”, composta por 126 pessoas que pertencem a uma
só grande família.
A reserva é considerada uma “utopia localizada”. (CESAR, 2011) Nesse caso,
arriscamos dizer que certas partes urbanas da T.I. Coroa Vermelha, que incluem
a aldeia Nova Coroa, seriam a sua antítese, ou seja, “distopias localizadas” há
muito sendo exploradas e subalternizadas dentro do seu próprio território tra-
dicional, num contexto turístico de massa considerado predatório. (SOARES,
2016) Nas aldeias urbanas localizadas em áreas de retomada, o viver sossegado é
um devir. Quem vivia sossegado eram os antigos, num tempo em que ainda era
possível viver “isolado de qualquer relação de caráter governamental, vivendo
da caça, pesca, da extração de vegetais, produção de objetos e da agricultura de
subsistência em uma extensa área verde de mata atlântica” – escreveu a artista
e intelectual pataxó Arissana Souza (2012, p. 26), nativa e moradora de Coroa

be from the past. On the other hand, all contemporary cultural creation is perceived as if it must
be authenticated, perhaps by surviving the test of time. Yet the existential dimension of our patri-
mony appears thanks to the youth of today – in music and new cultural forms which express not
the viewpoints of a hundred years ago, but speak of the suffering, the joys, of life today”.

a rt e, a f ir m ação cult ur a l e e tno tu r i s mo n a t. i . pata xó. . . 245


Vermelha. Nesse contexto de instabilidade e insegurança social, as comuni-
dades se fortalecem cada vez mais. Buscam estratégias de organização para a
prática etnoturística e consequente venda e produção artesanal coletiva como
saída para garantir a sobrevivência do grupo. A principal estratégia de sobre-
vivência é a retomada de territórios tradicionais. A partir daí, a retomada do
turismo e a retomada da cultura tornam-se realidades tangíveis.
As retomadas de terras são, portanto, fundamentais para abrir novos es-
paços físicos e sociais em contextos de disputas simbólicas, nos termos de
Bourdieu (2011). As retomadas consistem em processos legítimos levados a cabo
por povos indígenas no sentido de “recuperar áreas por eles tradicionalmente
ocupadas e que se encontravam em posse de não-índios”. (ALARCON, 2013, p. 1)
Os conflitos em decorrência da “luta pela terra”, para usar uma expressão
do povo pataxó, pela demarcação dos seus territórios tradicionais, são cons-
tantes na chamada Costa do Descobrimento, sul da Bahia, região sob intensa
especulação imobiliária impulsionada pelo turismo e pela monocultura, sobre-
tudo do eucalipto. Atualmente, ao menos cinco aldeias de retomada da Coroa
Vermelha estão sob ameaças de reintegração de posse. São elas: Itapororoca,
Txihi Kamayurá, Novos Guerreiros, Mirapé e Nova Coroa, um dos loci do nosso
estudo.
Vale registrar que a expressão “viver sossegado” é polissêmica e, por isso,
pode ter ao menos um segundo sentido, totalmente diferente do anterior.
É precisamente este que revela o objeto deste estudo: ele pode ter a ver com
o trabalho autônomo de artesão/artista, pelo fato de proporcionar o sossego
de não se ter patrão nem local fixo de trabalho; de sentir-se criativo e parte de
um movimento maior, o de valorizar a cultura do próprio povo (o movimen-
to de afirmação cultural, do qual falaremos mais adiante); de poder conciliar
o trabalho artesanal com viagens de luta política ou de visita aos parentes; e
talvez o mais importante, pelo menos entre as mulheres, de poder conciliar
o trabalho com a criação dos filhos e os cuidados da casa. Tais aspectos do
“viver sossegado” pataxó serão brevemente apresentados através de microrre-
cortes etnográficos produzidos no cotidiano de ambas as aldeias e analisados à
luz de revisão bibliográfica, buscando dialogar com conceitos como afirmação
cultural, de Costa (2020); cultura tradicional, de Lefevre (2013); etnomerca-
doria, de Comaroff e Comaroff (2011); artivismo indígena e indigenista, de
Quesada (2019); e contracolonização, de Santos (2015).

246 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


A tradição artística pataxó
Os pataxó, cujo registro histórico de contato com os europeus remonta ao
século XVI (SAMPAIO, 2010), são um exemplo notável de resistência e (re)exis-
tência política e cultural. Parra, Pinheiro e Cardoso (2017, p. 23) afirmam que
eles “são empreendedores do bem viver por meio de um embate sofisticado em
busca do restabelecimento de relações materiais e simbólicas que garantem a
permanência e a sobrevivência do grupo”. Uma via importante através da qual
essas relações materiais e simbólicas se estabelecem é a produção e comercia-
lização do artesanato.
Podemos elencar pelo menos dois motivos que justificam essa afirma-
ção. Primeiro, porque a sua produção envolve todo um conjunto de saberes
tradicionais, ou seja, transmitidos através de gerações e que fazem parte do
repertório cultural pataxó; e segundo, porque transacionar artefatos, sobretu-
do com brancos, é, do ponto de vista histórico, também uma tradição. Souza
(2012) defende a ideia de que eles faziam transações de objetos e saberes tanto
com os brancos quanto com outros povos autóctones desde tempos imemo-
riais. Segundo a autora, “os adereços usados pelos Pataxó não são fruto de um
processo de retomadas de práticas auxiliado por agentes e agências ligados à
causa indígena, não são uma criação do século XXI, mas um processo contínuo
que foi passando de geração a geração”. (SOUZA, 2012, p. 14)
A produção e a venda do artesanato tornaram-se a principal atividade
econômica a partir da década de 1970, com o surgimento da demanda do mer-
cado turístico na chamada Costa do Descobrimento. Embora essa atividade
tenha sido o principal fator que motivou uma maior produção do artesanato,
Arissana Souza (2012, p. 38) é categórica ao afirmar:

[...] o turismo não pode ser considerado como um referencial para


marcar o período em que os Pataxó começaram a produzir seus ob-
jetos, adereços, etc. Pois, como foi possível observar nos relatos dos
mais velhos, desde tempos antigos essa produção já era constan-
te na vida dos Pataxó, e a venda desses materiais também, embora
em pequena escala e na maioria dos casos através de encomenda.
É claro que não se pode deixar de considerar que o turismo tenha
influenciado, intensificando a produção e a venda, mas também
não podemos deixar de mencionar que muitos desses produtos que
passaram a ser vendidos para os turistas já eram feitos pelos Pataxó
antes desse período.

a rt e, a f ir m ação cult ur a l e e tno tu r i s mo n a t. i . pata xó. . . 247


Recentemente, o fazer artístico passou a ser ensinado também nas escolas
indígenas como estratégia de fortalecimento da cultura. As famílias constituem
núcleos produtivos, e as oficinas de artesanato são um anexo de suas casas. As
crianças participam da produção desde cedo e, na Coroa Vermelha urbana, é
comum a circulação de crianças e adolescentes nas praias atuando como ven-
dedores ambulantes. É comum também crianças menores acompanharem
suas mães nessa atividade. As famílias de diferentes aldeias se organizam em
uma grande e complexa rede de circulação de artefatos, materiais e saberes
que interligam diversas aldeias e pessoas produtoras de artesanato do sul da
Bahia e cujo epicentro é a Coroa Vermelha, que, além de ser a localidade pa-
taxó mais densamente povoada, também está localizada em pleno cenário do
“descobrimento”, onde teria sido realizada a primeira missa do Brasil. É para lá
que escoa a produção de aldeias que são exclusivamente produtoras, a exemplo
de Boca da Mata e Mata Medonha. É também o principal destino dos ônibus
de agências repletos de turistas de diversas localidades do Brasil e do mundo.
A T.I. Coroa Vermelha é hoje, muito provavelmente, também o epicentro
do movimento de afirmação cultural pataxó. Normalmente, os artesãos de
cada aldeia se tornam especialistas em um tipo específico de artefato, e o que
determina essa especialização são os materiais naturais fornecidos pelo ecos-
sistema no qual cada aldeia se insere. É por isso que Boca da Mata tem tradição
de fazer gamelas; Barra Velha tem tradição de fazer adereços com sementes;
Aratikum tem tradição de fazer cerâmica, e assim por diante. Isso não impede
que, em todas as aldeias, os artesãos saibam fazer de tudo um pouco, ainda que
se especializem em um só tipo de artesanato. O fluxo contínuo de parentes e
saberes entre as aldeias denota cada vez mais a consolidação de uma tradição
artística pataxó. Coroa Vermelha, a exemplo disso, tem tradição de uma varie-
dade de técnicas, por abrigar famílias que fizeram o êxodo dessas aldeias mais
afastadas e trouxeram suas tradições artesanais consigo, ou ainda por mante-
rem residência em mais de uma aldeia e estarem constantemente transitando
entre ambas, o que é relativamente comum.

Etnoturismo é resistência
O sistema de produção, circulação e venda de artesanato em contexto turísti-
co na T.I. Coroa Vermelha configura-se tanto como uma forma de existência,

248 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


pois é a principal fonte de renda das comunidades, quanto como um mecanis-
mo de resistência contra-hegemônica frente ao modelo de turismo predatório
(neo)colonizador predominante na região da chamada Costa do Descobrimento.
Os pataxó são reconhecidos por terem sido os primeiros indígenas a pra-
ticar o etnoturismo no Brasil, a partir da iniciativa a que fizemos referência na
Reserva da Jaqueira. Podemos definir o etnoturismo como uma vertente do tu-
rismo de base comunitária com foco na vivência em uma comunidade étnica,
na experiência cultural e na educação étnico-ambiental. Segundo nos informa
Nitynawã Pataxó (2018), uma das fundadoras da Jaqueira, a reserva é autoge-
rida pelos indígenas daquela comunidade sob os preceitos da sustentabilidade
e da afirmação e valorização da cultura pataxó. O fato de o etnoturismo ter
surgido nesse território de identidade denominado Costa do Descobrimento é
um dado emblemático, no sentido de que os indígenas não se identificam com
essa denominação. Contam uma outra história em suas palestras de cultura, a
história de um território invadido, saqueado e brutalmente colonizado. É uma
narrativa subterrânea (POLLAK, 1989), portanto contrária à versão oficial di-
fundida nacionalmente e contada nos livros didáticos de história, que narram
uma versão romantizada do mito fundador da nação: a da suposta descoberta
do território pelos europeus.
Os indígenas dependem do turismo para vender sua arte e vivem dos
ganhos econômicos que obtêm do compartilhamento dela com os turistas.
Contudo, ao mesmo tempo, a arte que produzem nem sempre é valorizada,
pois é numerosa a quantidade de atravessadores indígenas e não indígenas
no mercado. Além disso, o turismo de massa e a especulação imobiliária tor-
nam Coroa Vermelha um destino turístico altamente procurado, o que leva à
saturação do lugar e do comércio e, consequentemente, ao aumento da con-
corrência. O resultado é a queda dos preços e a subsequente desvalorização
dos artesanatos indígenas. A organização social e política para a comerciali-
zação do artesanato no contexto etnoturístico é fundamental para diminuir
concorrências, aumentar a colaboração e, enfim, reverter a lógica da explora-
ção de terceiros para a cooperação mútua entre parentes,4 num movimento
de retomada do turismo em uma perspectiva contracolonizadora, nos termos

4 Ver exemplos de como a comunidade da Reserva da Jaqueira se articula nesse sentido em Costa
(2020).

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de Santos (2015, p. 20), ou seja, entendendo-o enquanto “processo de enfrenta-
mento entre povos, raças e etnias em confronto direto no mesmo espaço físico
geográfico”.
Dessa forma, contracolonizar o turismo seria subverter a lógica (neo)coloni-
zadora vigente do turismo de massa, solapando-a com o progressivo aumento
do número de iniciativas de etnoturismo, que é o modelo sustentável e social-
mente justo criado pela Reserva da Jaqueira, de acordo com Nitynawã Pataxó
(2018). Nessa modalidade, as mulheres podem se revezar para cuidar das crian-
ças e também podem vender o artesanato dentro de suas aldeias, sem que haja
a necessidade de ir vender na praia, pois, nesse caso, é o turista que vai até
a aldeia. Em 2009, dez anos depois do início das atividades etnoturísticas na
Reserva da Jaqueira, a aldeia Nova Coroa também começou a praticar o etno-
turismo, graças à consultoria e ao suporte do Instituto Pataxó de Etnoturismo
da Reserva da Jaqueira (Aspectur), instituição responsável pela gestão da reser-
va e pela multiplicação da prática do etnoturismo na região, através de uma
série de estratégias. Entre elas, estão: fornecer consultoria para parentes de
outras aldeias e outras etnias em regiões mais afastadas; elaborar projetos de
incentivo à produção artesanal sustentável nas aldeias; e buscar recursos nas
esferas governamentais para investir nas aldeias, com vistas à difusão da práti-
ca etnoturística e à valorização do artesanato.
Ainda que o etnoturismo esteja rendendo frutos para a comunidade da
Nova Coroa, muitos artesãos ainda continuam vendendo artesanatos na praia,
sobretudo nos períodos de baixa temporada. Essa aldeia está localizada a 100
metros da praia mais movimentada da Coroa Vermelha, fator que contribui
para o trabalho ambulante, já que boa parte dos turistas que chega à praia de
Coroa não tem conhecimento ou não tem interesse em se deslocar até a aldeia.
Diferentemente, a Reserva da Jaqueira, por estar localizada em uma área de
mata fechada, atrai a atenção e muitas visitas de turistas curiosos, que acredi-
tam estar conhecendo uma “aldeia autêntica”.
Embora a aldeia Nova Coroa seja urbana, nela, assim como na Jaqueira, o
turismo é praticado pela comunidade aliado a práticas de preservação ambien-
tal, a exemplo do plantio de mudas de árvores nativas que servem para colher
sementes para a feitura do artesanato. A principal fonte de renda de ambas as
comunidades é a venda do artesanato, com a diferença de que, em Nova Coroa,

250 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


a entrada é gratuita. Na Reserva da Jaqueira, é cobrada uma entrada, cujo valor
é revertido para a infraestrutura e a manutenção da aldeia.
Os pataxó, em ambas as aldeias, recepcionam os turistas com vestimen-
tas tradicionais, compartilham sua cultura por meio da venda do artesanato
e da pintura corporal, da comida tradicional e da realização do ritual do Awê.
Também fazem palestras de cultura, nas quais contam a história do seu povo
e compartilham suas lutas e suas trajetórias de resistência para existir na terra
exatamente onde o Brasil começou a ser explorado e colonizado.
A atividade etnoturística ocupa boa parte do dia e, por isso, os membros
da comunidade se organizam de forma coletiva para dar conta de tarefas co-
tidianas de cuidado, burocráticas, de lazer, de venda de artesanato, além das
reuniões de organização de movimentos de luta e para desenvolver projetos
de preservação ambiental. Os momentos de descanso são usufruídos, em ge-
ral, fazendo artesanato. Sobretudo as mulheres encaram a produção artesanal
não como um trabalho, mas sim como uma forma de terapia. (COSTA, 2020)
O que entendem como trabalho é a jornada dupla que consiste nas atividades
etnoturísticas e nos cuidados da casa e dos filhos.
É comum conciliarem ao menos duas atividades, ou seja, a venda ou a pro-
dução de artesanato com o cuidado dos filhos. Uma estratégia coletiva muito
comum é o revezamento para a venda de artesanato nas bancas e para o cui-
dado das crianças. Organizam rodízios, de modo que apenas uma mulher fica
responsável por duas ou até três bancas, enquanto outra cuida das crianças
para que as parentes tenham tempo para executar as tarefas domésticas e/ou
fazer artesanato.
Ambas as aldeias possuem a mesma dinâmica de comercialização de suas
“etnomercadorias”, para usar um termo de Comaroff e Comaroff (2011), com
seus kijeme de artesanatos – com a diferença de que a Reserva da Jaqueira, por
cobrar entradas, possui uma infraestrutura mais robusta e dispõe de mais equi-
pamentos, como o museu comunitário, por exemplo. Em ambas, o principal
aspecto da experiência turística – algo que os pataxó chamam de vivência5 –
está na oportunidade do intercâmbio cultural.

5 A experiência etnoturística, ou seja, a visita do turista a uma comunidade indígena, vem sendo cha-
mada pelos pataxó de “vivência”. A ideia de vivência traduz como essa experiência deveria se dar,
idealmente, na perspectiva desses anfitriões: uma imersão prolongada na vida cotidiana da aldeia.

a rt e, a f ir m ação cult ur a l e e tno tu r i s mo n a t. i . pata xó. . . 251


Witiry,6 guia indígena e artesão, conta que o objetivo desse trabalho é con-
tar a história de cada artesanato e de cada pintura facial “com calma”, porque,
segundo ele, cada artesanato “guarda segredos”. “Sempre que eu tenho tempo
para conversar com o turista, acabo vendendo alguma coisa”, conta, orgulhoso.
E acrescenta que, quando compra o artesanato, o turista “está levando um
pouco da história do povo pataxó”. Para ele, “não estamos aqui só pra vender o
artesanato; é um trabalho de valorizar a cultura do nosso povo”.
A noção de que o artesanato é um meio de compartilhamento da cultura
com o outro e, assim, de valorizá-la transforma os artesanatos em objetos em-
baixadores. Isso significa dizer que, ao levarem um artesanato, os turistas não
estão levando apenas um objeto; estão também levando consigo uma história,
uma vivência, enfim, um aprendizado desconstruído sobre o que é ser índio,
no Brasil e no Nordeste, nos dias de hoje.
Durante as palestras de cultura para turistas, Nitynawã Pataxó, que tam-
bém é artesã, faz questão de pontuar: “aqui, vocês vão encontrar pataxó do cabelo
loiro, pataxó do cabelo enrolado; pataxó branco, pataxó de todo jeito”. Segundo
ela, “isso é resultado da miscigenação forçada, fruto do processo colonizador vio-
lento que o nosso povo sofreu. E continua sofrendo até hoje”.7 Essa reflexão nos
mostra que o etnoturismo é turismo de resistência, é luta diária e é trabalho de
educação étnico-racial de base, seja mediante as palestras de cultura, seja nas
microinterações sociais durante a venda de artesanato ou nas trilhas ecológi-
cas, quando têm a oportunidade de demonstrar e compartilhar alguns dos seus
saberes bioculturais ancestrais.
Oiti Pataxó, um dos artistas expoentes do movimento de afirmação cul-
tural, membro da comunidade da Reserva da Jaqueira, afirma o seguinte em
relação ao uso do tauá,8 um elemento sagrado para a cultura pataxó: “o Pataxó
nunca deixou de usar o barro, é um material que se você olhar ao seu redor,
você vai ver casas, pinturas, fornos, em tudo usamos o barro... então não é
resgate de nada, sempre esteve presente. Por isso que eu falo em afirmação
cultural, no sentido da valorização da cultura”. (COSTA, 2020, p. 123)

6 Transcrição de trecho de entrevista concedida em 5 de fevereiro de 2019, durante trabalho de


campo.
7 Transcrição de trecho de entrevista concedida em 25 de junho de 2019, durante trabalho de campo.
8 Barro amarelo em patxohã.

252 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Afirmação cultural: resistência e arte na produção da
comunidade
Nesta seção, abordaremos o papel fundamental do artesanato no processo
histórico de afirmação cultural pataxó e no fortalecimento da sua etnicidade,
compreendendo que tal conceito de etnicidade

[...] supõe, necessariamente, uma trajetória (que é histórica e de-


terminada por múltiplos fatores) e uma origem (que é uma expe-
riência primária, individual, mas que também está traduzida em
saberes e narrativas aos quais vem se acoplar). O que seria próprio
das identidades étnicas é que, nelas, a atualização histórica não
anula o sentimento de referência à origem; até mesmo o reforça. É
da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a
força política e emocional da etnicidade. (OLIVEIRA, 2016, p. 215)

Tal processo sucede uma longa era de adormecimento da cultura pataxó.


(COSTA, 2020) Tal período teve início com o episódio da invasão do território
posteriormente chamado Brasil, que obrigou os povos indígenas a escon-
derem a sua identidade e a sua cultura dos brancos para não serem mortos,
escravizados ou, posteriormente, marginalizados e excluídos da sociedade.
O adormecimento da cultura pataxó perdurou até final dos anos 1970, quando
o turismo começou a ser visto como um vetor para o progressivo fortalecimen-
to da autoestima da identidade indígena. Inicialmente, os indígenas passaram
a se adornar cada vez mais para representar a si mesmos como os legítimos
primeiros habitantes do Brasil no contexto turístico, em que ocupavam o papel
de produtores e vendedores de artesanato. Com o tempo, passaram a lograr
outros espaços e funções nesse mercado: guias de turismo, donos de agências
de turismo, barracas, pousadas etc. Contudo, como já dissemos, a produção e
a venda do artesanato continuam sendo a principal fonte de renda da maioria
das famílias pataxó da Coroa Vermelha.
O marco de superação do referido momento histórico foi, provavelmen-
te, a comemoração do primeiro Aragwaksã,9 em 1999, na Reserva da Jaqueira.
É, desde então, uma festa de celebração à arte, aos ritos, à resistência e às reto-
madas protagonizadas pelo grupo. Desde então, o povo pataxó – entre outros

9 Festa ritual que ocorre todo ano em celebração à resistência pataxó e à recuperação do território
da Reserva da Jaqueira.

a rt e, a f ir m ação cult ur a l e e tno tu r i s mo n a t. i . pata xó. . . 253


povos indígenas em processo de “emergência étnica e cultural” no Brasil
– vem atravessando um momento histórico, artístico e intelectual altamen-
te prolífico, que culmina no fortalecimento da etnicidade enquanto busca o
estabelecimento das bases para uma cultura pataxó tradicional e, ao mesmo
tempo, contemporânea. Tal movimento, de mão dupla, traduz o que os pataxó
chamam de afirmação cultural.
A produção artística indígena contemporânea é indissociável da luta política.
Tanto assim que, recentemente, vários artistas influencers digitais de grupos
minoritários – não apenas indígenas, mas majoritariamente estes – passaram
a se autodenominar “artivistas”. A denominação foi objeto de investigação da
tese de doutorado de Quesada (2019, p. 6), cujo argumento central defende:

[...] em razão dos discursos pós-modernos, surge um tipo de arte


que pode ser denominado Artivismo (Arte + Ativismo). Ou seja,
trata-se de obras de arte que representam um questionamento
político-histórico cultural sobre o racismo, o classismo ou o sexis-
mo. Nessas obras, os artistas utilizam-se da liberdade artística para
questionar o poder e gerar novos modelos de diálogo.

Para esses artivistas indígenas, expressões artísticas são também ins-


trumentos de mobilização política; cultura é, também, conexão política e
espiritual – com a natureza, com os encantados, com o outro (inclusive o tu-
rista), e assim por diante.
Daí que etnoturismo e afirmação cultural são movimentos políticos que an-
dam juntos, pelo menos no contexto pataxó. É digno de nota que os pataxó não
falam meramente em promover a cultura local – o que é comum nas modalida-
des de turismo cultural, de modo geral. Para além disso, estão interessados em
afirmar a cultura. Considerando o adverso cenário político e social brasileiro
e, especificamente, o da chamada Costa do Descobrimento, tão impregnado
de ranço colonial, racismo, e preso a um modelo de turismo predatório que
fetichiza sua imagem e folcloriza sua existência, enfatizar o quanto sua cultura
é valorosa e rica passa a ser um pacto coletivo entre os pataxó no âmbito das
atividades (etno)turísticas e de produção e venda de artesanato.
Ariel Pataxó, jovem liderança, estudante, artista e vendedor de artesanato,
morador da aldeia Nova Coroa, ao se referir à produção de artesanato, conta
que “o povo Pataxó sempre sabe fazer alguma coisa”. Isso remete à crença po-
pular de que “todo Pataxó já nasce artista”. (COSTA, 2020) Ser artesão é um

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aspecto central da identidade étnica, ou seja, é da cultura. Isso denota uma res-
ponsabilidade junto à comunidade, que é a de atuar no processo de afirmação
cultural da etnia, seja produzindo arte, usando adereços, sobretudo em apari-
ções públicas, ou compartilhando com as gerações mais novas os saberes, para
que se fortaleçam e se perpetuem. Existem raras exceções, ou seja, pessoas que
não sabem fazer artesanato. São geralmente aqueles que, por motivos variados,
não tiveram a oportunidade de “crescer na cultura”:10

Tem muitos povos que às vezes guarda o seu conhecimento para você. E quando
você guarda o conhecimento com você, quando você morre, você leva com você.
E o povo pataxó tem isso muito, de passar para as próximas gerações. ‘Eu vou
fazer isso, vou passar pros meus filhos’, porque assim... Tem gente mesmo que não
sabe fazer; por quê? Porque o pai sabia fazer, mas não passou pra ele. Então, isso
é questão de você guardar o seu conhecimento. Acho que é por isso que se fala
muito que o povo pataxó, o pataxó, ele sempre sabe fazer alguma coisa, brinco,
tapeçaria, filtro dos sonhos... [...] eu mesmo gosto de ensinar... Ensinando a gente
aprende! A gente aprende formas diferentes de fazer as coisas. Porque, às vezes,
você tem esse padrão de fazer. Mas você pode fazer outro desenho que eu não sei
fazer. Você pode criar.11 (Ariel Pataxó)

É importante destacar ainda que a massiva atuação dos jovens no campo


da cibercultura, no sentido de usar as redes para dar visibilidade às lutas, ar-
ticular movimentos políticos e solidários, divulgar e vender artesanatos para
arrecadar renda para manter suas comunidades no atual contexto da pan-
demia da Covid-19, é uma expressão da afirmação da cultura. É o caso, por
exemplo, da jovem Ísis Pataxó, militante indígena feminista, artesã, doula e
estudante da UFSB. O seguinte relato pessoal, publicado em seu Instagram em
28 de julho de 2020, é um exemplo emblemático de como a formação política,
social e cultural acontece dentro dos núcleos familiares pataxó, precisamente
no contexto da produção dos artesanatos:

Quando eu penso nos colares Pataxó, me vem à mente uma me-


mória boa da infância: minhas tias, minha mãe, minha avó e tias-
-avós contando histórias e dando muita risada quando se reuniam

10 A expressão “crescer na cultura” é usada pelos pataxó para designar alguém que estudou em co-
légio indígena pataxó desde a infância, que aprendeu o idioma patxohã, que aprendeu a fazer
artesanatos, que sabe cantar e dançar no Awê etc.
11 Transcrição do trecho de conversa gravada em 30 de agosto de 2019.

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pra fazer esse artesanato. Eu lembro do mutirão de mulheres que
se formava pra ir catar as sementes, depois pra descaroçar, e dividir
em partes iguais o montante, pra tingir, e só então, poder fazer os
colares. Aí elas se reuniam de novo, em círculo ou em uma mesa pra
se ensinarem os modelos, os laços de linha. Essa era melhor forma
que elas tinham desenvolvido pra ensinar pra gente (as crianças na
época) a importância do trabalho coletivo e preservação da nossa
cultura, hoje me dou conta disso. Depois de feito, o colar precisava
secar, ser repuxado e queimado as sobras de linha, pra só então,
poder ser vendido. Tenho ótimas lembranças minhas vendendo co-
lar com meus primos aqui na praia de Coroa Vermelha, com uns 8
ou 9 anos, eu consegui comprar a minha primeira bicicleta com o
dinheiro da venda de colares. Este ano, eu, minha mãe e minha avó
nos reunimos pra por em prática de novo esse costume, e lembra-
mos dos velhos tempos, das histórias, e das mulheres que já se fo-
ram. Pra mim, a prática de fazer o colar Pataxó é a forma de manter
viva a união, a força e os ensinamentos dessas mulheres! Sou tão
grata à elas!! Awêry Jokanas #artesanatopataxo #ancestralidade Ps:
Quem quiser comprar o colar, só mandar direct. (Isis Brandão, 28
jul. 2020)12

Recentemente, como alternativa de obtenção de renda em meio à


pandemia da Covid-19 e diante da impossibilidade de vender artesanato pre-
sencialmente, a Reserva da Jaqueira lançou uma loja virtual de arte pataxó no
Instagram, a @artekartenigpataxo. Quem o administra é a filha adolescente
de Nitynawã, Nawy Pataxó, que até então pouco demonstrava interesse nos
negócios da mãe. Desde o início da pandemia, contudo, ela assumiu toda a
gestão do negócio, desde as postagens nas redes sociais até a negociação com
clientes pelo WhatsApp e o envio dos artesanatos pelos Correios. Graças a isso,
conforme conta, sua mãe conseguiu aumentar a sua capacidade de produção e
a família tem se mantido com a ajuda dessa renda.

Considerações finais
Como tentamos argumentar até aqui, os pataxó se apropriam do turismo na
região da chamada Costa do Descobrimento para reafirmar a sua indianidade,

12 Via: @furiosaisis.

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reavivar ritos ancestrais e difundir práticas culturais como parte de um processo
de “reorganização social”, como diria Oliveira (2016), ou como parte de um
processo de afirmação ou retomada cultural, do ponto de vista do povo pataxó.
Mas não somente em contextos turísticos a indianidade pataxó é afirmada.
Afirmação cultural tem a ver, sobretudo, com autoestima e fortalecimento da
noção de pertencimento à comunidade étnica, ou seja, com aspectos internos
relacionados aos modos de viver em comunidade – o viver sossegado, no caso
dos pataxó. Dentre esses aspectos, destacamos aquele relacionado à socializa-
ção promovida pela produção e venda do artesanato no mercado etnoturístico.
Os usos políticos da arte conformam um vasto campo a ser explorado no
âmbito desse movimento de afirmação cultural. Em Costa (2020), chamamos
esses usos políticos de “territórios da arte” para argumentar que os estudos
sobre arte indígena são vias para a compreensão das diversas esferas da vida
política e social, uma vez que ela representa parte vital na produção da vida
cotidiana e das subjetividades dos sujeitos. A arte é uma linguagem e, através
dela, podemos circular por vários territórios da vida política e social pataxó.
Buscamos abordar aqui, de maneira resumida, aspectos da retomada eco-
nômica – no nosso caso específico, mediante o etnoturismo –, cultural, da
memória e territorial – múltiplas retomadas que, em última instância, tradu-
zem movimentos de resistência em saberes e práticas de afirmação cultural
que perpassam inevitavelmente pelos domínios da arte e do artesanato. Tais
saberes e práticas coletivas, objetos da nossa atenção ao longo do texto, como
vimos, são transmitidos hereditariamente e compartilhados entre as diversas
aldeias pataxó num trânsito contínuo de parentes, saberes, afetos, memórias,
artefatos e artesanatos.
Este estudo sugere, por fim, que a identidade étnica pataxó se traduz
fortemente nas suas expressões artísticas, sejam elas cotidianas ou rituais, indi-
viduais ou coletivas. Artefatos e artesanatos são importantes sinais diacríticos
e instrumentos políticos: versáteis, esses objetos embaixadores podem assumir
ora a função de souvenir no mercado do turismo, ora a de adorno corporal
indispensável nas ocasiões de interação social em que é importante marcar
a etnicidade – seja demarcando uma situação de diferença cultural perante
o outro, seja, ao contrário, reforçando semelhanças culturais e estreitando
laços sociais entre parentes durante cerimônias, festas ou rituais nas aldeias.
(COSTA, 2020)

a rt e, a f ir m ação cult ur a l e e tno tu r i s mo n a t. i . pata xó. . . 257


Além de apoiar uma agenda consolidada de luta pelos direitos dos povos
originários, o trabalho de afirmação cultural atualmente promovido por essas
comunidades resulta na construção de um discurso de autonomia em comum,
que fortalece a autoestima e o sentimento de pertença à comunidade étni-
ca, tão importantes nos enfrentamentos cotidianos dos cidadãos indígenas.
A construção da identidade étnica pela via da afirmação da cultura é importan-
te estratégia de reivindicação de direitos. É diante dessa perspectiva que o uso,
a produção e a venda do artesanato se constituem como estratégia contunden-
te de fortalecimento da identidade pataxó.

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a rt e, a f ir m ação cult ur a l e e tno tu r i s mo n a t. i . pata xó. . . 259


Conselho da Juventude Pataxó da Bahia:
um espaço de participação alternativo,
inventado, não formal, livre e vivido

Altemar Felberg
Valéria Giannella

Notas introdutórias: a trama que envolve o caso


e nos lança à reflexão-ação
Na recente conjuntura do Estado brasileiro, em um cenário de acentuada
crise democrática, de polarização partidária e de uma instabilidade política,
econômica e social de proporção jamais vista desde o período de redemocra-
tização do país, observamos e refletimos diante dos ataques diários lançados
ao sistema institucionalizado de participação e ao próprio regime democrá-
tico. Em tempos de protofascismo – caracterizado, dentre outros aspectos,
pelo silenciamento das vozes minoritárias e da opinião pública, perseguição
a opositores, imprensa e instituições e ampla presença e participação das for-
ças militares nas questões de governo –, observamos e defendemos as muitas
conquistas devidas ao modelo institucionalizado de participação, uma das es-
trelas da redemocratização brasileira, que objetivava ampliar a inclusão social.
(AVRITZER, 2008) Do mesmo modo, analisamos os seus limites e sua incapa-
cidade de provocar as transformações sociais às quais se propôs,1 enunciadas

1 Limites e fragilidades da participação institucionalizada podem ser encontrados em: Nogueira


(2003), Dagnino (2004), Tatagiba (2004), Lavalle (2011), Escorel (2015), Avritzer (2016), Giannella
(2018), entre outros.

261
nos meados da década de 1980, o que, dado o limite de páginas deste texto, não
será possível aqui resgatar.
No exercício de interpretação desse estado de coisas, marcado pelo fecha-
mento do ciclo de democratização brasileira – por consequência do golpe de
2016, que destituiu o governo de Dilma Rousseff e, logo depois, com a ascensão
do governo de Jair Bolsonaro –, observamos a retomada do protagonismo da
sociedade civil e de seus personagens e movimentos de base. Se, até os primei-
ros protestos de 2013,2 a institucionalização tornara-se a principal aposta para
o “fazer político”, depois disso, é consenso que o padrão de participação no
Brasil voltou a privilegiar as ruas, enquanto espaços de livre expressão, con-
forme o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Analisando esses
movimentos, Zibechi (2017, p. 4) defende que “Trata-se de construir, mais que
de ocupar as instituições existentes”, o que, segundo o autor, já está em curso
no interior dos “novos movimentos sociais”, de onde vêm germinando prá-
ticas insurgentes e autônomas, protagonizadas especialmente por mulheres,
negros, indígenas e jovens.3
Nesse novo padrão, um dos segmentos sociais que ocupou a cena política
nos últimos anos foi a juventude. Para Novaes e demais autores (2006), isso não
é por acaso, mas depende do fato de o jovem figurar como, talvez, o segmento
mais vulnerável diante das mudanças sociais que acometem o mundo globali-
zado. Nessa trama sociopolítica, destaca-se, ainda, o protagonismo dos povos
indígenas, que reforçam sua “atorialidade”, deslegitimando qualquer percep-
ção estática ou a-histórica a seu respeito, atuando hoje como velhos atores em
novas cenas. Considerando essa interseccionalidade – geracional e étnica –,
observamos esses estratos no sentido de destacar sujeitos que não desejam re-
gressar à “normalidade” das democracias liberais, cujas regras são ditadas pela
globalização e hegemonia do capital financeiro, mas despertar para a possibili-
dade de novas experiências democráticas e participativas.

2 Ver: Tatagiba (2014).


3 Cabe salientar aqui que, a partir de 2013, o recurso às ruas deixou de ser uma opção exclusiva das
esquerdas e começou a ser amplamente praticado pelos movimentos de direita.

262 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Categorias teórico-analíticas, objetivos e trilha
metodológica
Para fins específicos deste artigo, no intuito de apresentação de uma pesquisa
em curso, mobilizaremos as categorias teórico-analíticas antecipadas no sub-
título como possíveis marcadores do Conselho da Juventude Pataxó da Bahia
(Conjupab), aqui descrito como um espaço alternativo, inventado, não formal,
livre e vivido. Dada a complexidade da experiência, cruzaremos conceitos de
múltiplas áreas das ciências sociais, a fim de nos aproximarmos do que se ob-
serva na prática. Todavia, considerando a impossibilidade de aprofundar esses
conceitos como gostaríamos, vamos resgatá-los brevemente para oportunizar
sua apreensão e, por eles, descrever e ressaltar características importantes do
caso estudado.
a) Espaço alternativo: acompanhando os textos de Santos (2002), a
ciência positivista é responsável por esconder, inviabilizar ou desacre-
ditar as alternativas representadas por experiências subalternizadas e
marginalizadas – de conhecimentos e experimentações democráticas –
protagonizadas por segmentos sociais despossuídos que têm se mostrado
centros emergentes de inovação e mundos possíveis. Essas alternativas
visam “substituir a monocultura do saber científico por uma ecologia de
saberes, de temporalidades, de reconhecimentos e de produções e distri-
buições sociais”. (SANTOS, 2002, p. 250)

b) Espaço inventado: práticas sociopolíticas e formas de ativismo inovado-


ras, como a que neste texto descrevemos, são classificadas por Miraftab
(2016, p. 369) como “espaços inventados”, tidos como os mais “apropriados
para as vozes e participação dos cidadãos”. Esses são espaços de busca
de insurreição e autodeterminação, em alternativa e complementaridade
aos qualificados pela mesma autora como “espaços convidados” – conse-
lhos e conferências de políticas públicas, por exemplo –, que, por outro
lado, são formas de ação dos cidadãos e suas organizações, cujas regras e
gramáticas são sancionadas pelos grupos dominantes.

c) Espaço não formal: para Gohn (2006), existem espaços formais (organiza-
ção sistemática e disciplinar, a exemplo da escola), não formais (espaços
livres, de interação e construção de saberes coletivos) e informais (espaços

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 263


espontâneos, como o bairro, a rua etc.) de ensino-aprendizagem. Para a
autora, os dois últimos tipos são espaços que anseiam pela construção co-
letiva da cidadania e de cultivo e valorização dos saberes da experiência.

d) Espaço livre: para Queiroga (2014), os espaços livres são espaços para os
fluxos da vida cotidiana, de convivência comunitária, de constituição da
esfera de vida pública, para o “viver em público”. Já para Santos (1996), o
espaço é entendido como um híbrido entre materialidade e sociedade,
forma e conteúdo, fixos e fluxos, sistema de objetos e sistema de ações,
caracterizando-se, portanto, como uma instância social. As ruas são um
bom exemplo desses espaços, como evidenciado durante as manifesta-
ções de junho de 2013.

e) Espaço vivido: mobilizando conceitos da geografia humana que possam


dar conta das complexas estruturas de representação social e dos pro-
cessos socioespaciais em curso na contemporaneidade, resgata-se aqui
a noção de “espaço vivido” a partir da obra pioneira de Frémont (1980,
p. 242), para quem o espaço vivido, como socioespacial, pode se opor ao
“espaço alienado”, partindo-se do pressuposto de que “a alienação esvazia
progressivamente o espaço dos seus valores, para o reduzir a uma soma de
lugares regulados pelos mecanismos da apropriação, do condicionamen-
to e da reprodução social”. Trata-se do vivido no sentido de autônomo e
aberto à expressão das múltiplas subjetividades e cosmovisões.

Esse apanhado de conceitos nos proporciona lentes de interpretação ade-


quadas para enxergar o que vem adiante. Assim, tendo a crise da participação e
a emergência de novos repertórios de ação como pano de fundo e tomando os
conceitos anteriores como chaves interpretativas, nossos objetivos neste artigo
são citados a seguir.
Primeiro, buscamos tratar da “inserção” do movimento indígena da Bahia
na estação participativa que parece findar hoje, a partir da interlocução com
duas das lideranças do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas
da Bahia (Mupoiba) e da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá
do Extremo Sul da Bahia (Finpat). Para cumprir com esse objetivo, além da aná-
lise de documentos, a exemplo das leis e dos decretos de criação e composição
dos conselhos de políticas públicas, realizamos entrevistas parcialmente estru-
turadas. Estas, segundo Laville e Dionne (1999), são entrevistas cujos temas

264 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


são particularizados e as questões abertas são preparadas antecipadamente,
mas com plena liberdade para retirada e acréscimo de questões no momento
da entrevista, dando margem à improvisação. Com base nesse referencial, as
questões feitas por telefone às duas lideranças foram: “Na sua avaliação, qual
a real inserção e participação dos povos indígenas nos conselhos e instâncias
de políticas públicas em nível estadual?” e “A participação nesses espaços tem
garantido conquistas para os povos indígenas?”.
Segundo, temos o objetivo de caracterizar o Conjupab por meio de um
quadro comparativo – estrutura, composição, paridade, eleições etc. –, delimi-
tando suas diferenças em relação às práticas institucionalizadas de participação
encontradas em Brasil (2012) e Tatagiba (2002, 2004) e, especialmente, apre-
sentando sob que aspectos o conselho se configura como um produto de
inovação democrático-participativa. As informações trazidas nesse quadro são
fruto da vivência cotidiana com os atores do Conjupab, da pesquisa-ação de
abordagem etnográfica que estamos desenvolvendo a partir de uma aborda-
gem pós-positivista, pragmaticamente orientada e que enseja a possibilidade
de certa bricolagem metodológica. Assim, além de revisão bibliográfica, análise
de documentos e observação participante (pesquisador-ativista-sujeito), nos
utilizamos de rodas de conversa, as quais favorecem o diálogo, a interação e
a reflexão-crítica coletiva, seguindo o ritmo dos acontecimentos cotidianos.
Para encerrar esta seção, destacamos que o presente texto é resultado da
tese de doutorado em curso de elaboração no Programa de Pós-Graduação em
Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB),
que objetiva refletir sobre as formas e os desafios da participação da juven-
tude indígena pataxó diante dos limites das práticas institucionalizadas de
participação, visando detectar formas insurgentes, bem como novos caminhos
voltados à redefinição dos significados da cidadania participativa.

A “inserção” do movimento indígena da Bahia na


participação institucionalizada
Foi a partir da redemocratização do país e com o reconhecimento de direi-
tos sociais, culturais e políticos dos povos indígenas, em âmbito nacional,
através do artigo 231 da CF/88, e internacional, com a Convenção nº 169/89
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que o Estado brasileiro

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 265


começou a mostrar sinais de abertura à participação indígena e suas pautas.
Foi nesse momento da história que surgiram inúmeras organizações de base
comunitária, buscando representar as demandas dos povos indígenas nas ins-
tâncias de consulta e participação popular criadas pós-redemocratização.4
Mesmo reconhecendo os avanços mais recentes, destacamos o quão nova é
a tentativa de inclusão desse segmento, considerando que a criação do Conselho
Nacional de Política Indigenista (CNPI) data apenas de 2015, mesmo ano em
que acontece, tardiamente, a realização da 1ª Conferência Nacional de Política
Indigenista. No mais, é nosso interesse olhar para essa questão no espaço local/
territorial, tomando por referência a participação dos povos indígenas em es-
paços institucionalizados nos municípios de Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália
e Prado – cidades baianas onde existem aldeamentos pataxó –, bem como em
âmbito estadual. Desde já, antecipamos que essa inclusão é muito incipiente,
com muitas dificuldades no processo, mas também com a percepção de impor-
tantes conquistas, o que demonstraremos a seguir.
O Conselho Municipal de Juventude de Porto Seguro – Lei nº 1.130, de 28 de
fevereiro de 2014 – não possui vaga para indígenas, e Santa Cruz Cabrália e Prado
sequer possuem a instância, o que compromete a participação da juventude
pataxó na construção de políticas públicas locais contextualizadas à realida-
de do seu povo. No Conselho Estadual da Juventude (Cejuve), criado pela Lei
nº 13.452/15, das 73 entidades/associações, movimentos/organizações, fóruns/
redes habilitados a participarem da assembleia de eleição, biênio 2017-2018, ape-
nas uma entidade representava o segmento indígena pataxó hã-hã-hãe, ainda
assim eleita como suplente na grande categoria “Povos e comunidades tradi-
cionais”. No Conselho Estadual dos Direitos dos Povos Indígenas do Estado
da Bahia (Copiba), criado em 16 de março de 2010 por força da Lei nº 11.897,
os povos indígenas são minoria numérica – 14 representantes em relação a 15
do poder público. Segundo Kãhu Pataxó, jovem pataxó e coordenador-geral
do Mupoiba, em entrevista concedida em 15 de junho de 2020, o contexto de
criação do Copiba foi de grande disputa; o governo queria incluir todas as se-
cretarias que dialogavam com a questão indígena, cujo número era maior que

4 “Enquanto em 1970 não havia nenhuma organização indígena reconhecida, em 2001, já eram 347
organizações indígenas na Amazônia legal”. (BANIWA, 2012, p. 211) Hoje, a mais representativa é a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), criada durante o Acampamento Terra Livre (ATL)
de 2005, uma mobilização nacional anual, para tornar visível a situação dos direitos indígenas e
reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas e reivindicações dos povos indígenas.

266 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


o número de povos representados pelo movimento à época (14). Hoje, segundo
o cacique Aruã Pataxó, presidente da Finpat, também entrevistado, depois da
incorporação da Secretaria de Desenvolvimento Social à Secretaria da Justiça,
o conselho apresenta paridade legal. Para ele, mesmo antes, com um número
menor de representantes indígenas,5 conseguiram avançar através do diálogo.
Segundo informações oficiais do governo baiano, organizações indígenas
estão representadas – além do Copiba – em oito instâncias e mecanismos de
participação:6
1. Conselho Estadual de Juventude;

2. Conselho Estadual do Meio Ambiente (Cepram);

3. Comissão Estadual para a Sustentabilidade dos Povos e Comunidades


Tradicionais;

4. Conselho Estadual de Saúde;

5. Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional;

6. Conselho Estadual de Educação;

7. Conselho Estadual de Cultura; e

8. Conselho Estadual de Recursos Hídricos.

Apesar de alguns dos conselhos terem sido criados há décadas, Kãhu


Pataxó relembra que “a ocupação real, conceitual, a gente conseguiu a partir do
governo de Jaques Wagner, do PT [Partido dos Trabalhadores]. A partir de 2008 é
que a gente vai ocupando algumas cadeiras... Inspirado na gestão do presidente
Lula”. Todavia, acrescenta: “a gente vai ter a ausência de participação indíge-
na em vários outros conselhos, porque não dá para definir políticas públicas sem
compreender como é que os contextos específicos desses povos podem ser contem-
plados”. Sobre a presença dos povos indígenas nas instâncias e mecanismos de
participação institucionalizada, ele avalia:

5 Os povos indígenas “mais antigos” têm cadeira fixa; outros, recém-reconhecidos, fazem rodízio.
6 Foram identificados 12 órgãos colegiados somente na Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e
Desenvolvimento Social da Bahia (SJDHDS/BA). Não se sabe o número total de conselhos em
toda a estrutura administrativa do Governo do Estado da Bahia, o que está sendo levantado.

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 267


A gente vê com bons olhos... A gente entende que é interessante, até porque a
gente não pode ficar apartado do Estado como um todo, a gente tem que ter,
de fato, participação... Agora, é claro, quando eu faço avaliação da participação
dos indígenas nesses espaços, aí a gente vai compreender algumas coisas: que os
povos indígenas estão bem aquém da sua representação, até porque a gente tem
pouca representação nos vários conselhos... A participação nossa seria necessária
em vários conselhos, porque as políticas públicas, quando são pensadas nesses
espaços, elas são pensadas para compreender todo o contexto, só que tem
algumas decisões que são tomadas em alguns conselhos, que, às vezes, por não
ter a representação indígena, fica uma política esvaziada para a questão indígena.

Os aspectos positivos da avaliação são atribuídos a algumas conquistas


relatadas pelo coordenador do Mupoiba, o qual destaca dois exemplos bem
significativos:

Na área da saúde, a gente não tinha representação, e daí a questão indígena era
pensada somente no âmbito federal. Isso muda com a entrada de um conselheiro
indígena na saúde, e muda muito, porque aí não é mais aceita a ideia de que a
saúde é só do Governo Federal, mas que cada ente tem sua responsabilidade:
o município, o governo do estado tem sua responsabilidade, então isso acaba
mudando, inclusive com a criação de coordenação específica que trata da saúde
indígena dentro da própria Sesab [Secretaria da Saúde do Estado da Bahia],
exatamente pela participação indígena no conselho.

A participação nos conselhos, ela é fundamental para os povos indígenas, porque


só assim a gente consegue fiscalizar as políticas públicas, mas também propor
políticas públicas... Então, para a gente, é fundamental a nossa participação,
é desse jeito que a gente vai sair com edital específico para povos indígenas na
Secretaria de Desenvolvimento Rural, com o edital 012/18 – Seleção de Subprojetos
Socioambientais para Povos Indígenas.

Para o líder indígena, além da influência direta nos processos decisórios de


políticas públicas, que resulta em ações específicas para os povos indígenas, é
através da inserção nos conselhos que outras instâncias se veem pressionadas a
incluir os povos e as comunidades tradicionais em seus colegiados de decisão.
“Vão tendo a visão de que é preciso a representação, vai tendo uma mudança na
estrutura da política pública no estado para os povos indígenas”.

268 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Mesmo reconhecendo o valor desses espaços, ainda que tardiamente ocu-
pados, o movimento indígena já é capaz de perceber fragilidades desse modelo,
as quais, para eles, precisam ser superadas. Um primeiro elemento diz respeito
a uma assimetria de poder existente nesses espaços, dada a predominância de
uma linguagem tecnicista, que exclui os indígenas ao desconsiderar outras lin-
guagens e saberes. Isso fica claro quando Kãhu diz:

A gente ainda tem muito a se qualificar para a gente ter condições de fazer uma
disputa por igualdade. A Cepram é o conselho mais formalista, tudo na formalidade,
a gente recebe todos os processos com antecedência para analisar e dar o nosso
voto baseado nisso. Imagine os indígenas que não têm o conhecimento desses
documentos, imagina ler isso tudo para participar desse conselho? [...] precisa de
formação para ocupar esses espaços deliberativos.7

Uma segunda crítica está relacionada com a própria representação. Para


Kãhu, há dois aspectos a considerar nessa questão: primeiro, há uma disso-
nância de significado na palavra “conselheiro” entre povos indígenas e Estado;
segundo, devido à diversidade de povos e culturas no estado da Bahia8 e à
variação das capacidades e interesses de articulação política, incorre-se em
sub-representação de povos e demandas.

O que nossas lideranças entendem por conselheiro dentro da comunidade indígena,


ela não é da mesma forma fora da comunidade indígena, porque, quando você está
dentro da comunidade indígena, você está brigando pela comunidade ali, e você
tem um conhecimento da comunidade ali... Já quando você trata num conselho
estadual, você tem que tratar os povos indígenas como um todo, e daí você tem
que tratar de muitas especificidades, o que é complicado. O conselheiro no estado,
ele tem que ter um conhecimento de que ele é um ente que está responsável
por fiscalizar a política pública, mas também de propor a política pública... O
conselheiro da comunidade, ele tem mais a atribuição de fiscalizador, ele quase
não tem a função de indicar política pública ou avaliar política pública... São esses
probleminhas que a gente vai encontrando no meio do caminho.

7 Vale lembrar que a formação, mesmo que fundamental, ainda não resolve a questão da dominância
do código tecnicista, racionalista, da competição entre os melhores argumentos. Nos anos dos
governos do PT, foram investidas verbas copiosas em formação de conselheiros, sobre cujos resul-
tados ainda nos interrogamos.
8 O Mupoiba representa 23 povos reconhecidos, além de três em processo de reafirmação.

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 269


Os tupinambás é que começaram essa movimentação no Estado, nos conselhos de
povos e comunidades tradicionais, meio ambiente, saúde e cultura... As mesmas
pessoas ocupam por muito tempo esses espaços, esse alguém nunca varia... Assim,
eles levam muito o conceito do povo deles, da comunidade deles, da região deles, a
gente precisa fazer o rodízio dessa representação. O bom que a gente tem alguém
lá, mas essa falta de rodízio pode prejudicar outros povos.

Observamos aqui discrepâncias entre compreensões do papel de conse-


lheiros – indígena e branca –, que mais uma vez evidenciam um éthos indígena
que conflita com o código lógico-verbal hegemônico prevalente nas instân-
cias participativas institucionalizadas, de influência eurocêntrica; a questão da
preparação para funções de representação, que inclui também uma dimensão
ética, ou seja, que impõe condições cognitivas que violentam sujeitos e cultu-
ras; e ainda a dimensão propositiva e avaliativa de políticas públicas, ou apenas
de controle social.
Quanto à suposta sub-representação, confirmamos que, ao analisar a
composição dos oito conselhos de políticas públicas do governo da Bahia em
que há participação indígena, esta se dá ou em categorias homogeneizadoras,
como a de povos e comunidades tradicionais, ou restrita à presença dos povos
tupinambá, pataxó, pataxó hã-hã-hãe e kaimbé.
Aruã Pataxó, presidente da Finpat e primeiro representante do povo pata-
xó no Copiba, também ouvido sobre a efetividade da participação indígena nos
conselhos de políticas públicas, percebe muitos avanços através da inserção
indígena nesses espaços institucionalizados, destacando a criação do Copiba,
para “apresentar as demandas, formular políticas, tanto na área consultiva, quan-
to também deliberativa”, e a conquista de cadeiras em diversos conselhos – de
meio ambiente, educação, juventude etc. –, o que ele chama de “participação
direta na discussão e na construção da própria política”.

Antes não tínhamos uma participação no Governo do Estado da Bahia, em


instituições de defesa de direitos... A voz dos povos indígenas não era ecoada nas
instâncias de governo. Agora, temos uma participação direta e efetiva na estrutura
administrativa do governo do estado, como a Coordenação de Políticas para os
Povos Indígenas, na Secretaria de Justiça, e a Coordenação de Educação Escolar
Indígena, na Secretaria Estadual de Educação. (Aruã Pataxó)

270 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Segundo Aruã Pataxó, foi graças a essa participação por dentro da estrutura
de governo que foi possível construir o Plano de Trabalho Operativo (PTO) em
2009, com destinação de mais de 10 milhões em editais das secretarias às co-
munidades indígenas, um “instrumento construído como subsídio ao processo
de formulação de uma Política Pública voltada aos Povos Indígenas no Estado
da Bahia”. (BAHIA, 2009, p. 1)
Em nível municipal, também encontramos evidências do resultado da
pressão dos pataxó pela criação de espaços próprios dentro das estruturas de
governo, a fim de articular suas demandas: as Secretarias de Assuntos Indígenas
de Santa Cruz Cabrália e de Porto Seguro.
Quanto às dificuldades, assim como Kãhu, Aruã enfatiza a necessidade de
formação dos conselheiros indígenas, “porque muitos não têm nem noção de
como se abordar alguns assuntos e quais os assuntos são pertinentes para a questão
indígena”, além de maior distribuição da representação, a fim de contemplar os
interesses de todos os 23 povos indígenas da Bahia.
Diante do exposto, não é por acaso que uma das atuais demandas da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ainda é a luta pela “partici-
pação paritária nas distintas instâncias governamentais (comissões, conselhos
e grupos de trabalho) que discutem e norteiam a implementação de políticas
públicas voltadas aos povos indígenas”. (APIB, 2020, tradução nossa)
Assim, a partir da observação do ingresso tardio dos indígenas nos espaços
formais de participação e diante dos limites e insuficiências dessas instâncias e
dessa inclusão, ao longo das últimas décadas, foram emergindo entre os povos
e comunidades tradicionais, brasileiros e latino-americanos, opções inova-
doras e alternativas de governança ao modelo democrático hegemônico – de
cunho representativo e neoliberal –, a exemplo do Conjupab.

O Conselho da Juventude Pataxó da Bahia (Conjupab)


O Conjupab é uma instância independente criada pela juventude pataxó do
sul da Bahia que começa a se desenhar a partir de 2012 e se materializa na 1ª
Conferência Nacional de Política Indigenista, da Fundação Nacional do Índio
(Funai), em sua etapa territorial realizada no Território Pataxó Barra Velha,
Porto Seguro, Bahia, em junho de 2015.9 Foi constituída de forma autôno-

9 Ver linha do tempo em: Felberg e Giannella (2019).

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 271


ma pelos jovens indígenas de mais de 40 comunidades pataxó da Costa do
Descobrimento, de seis terras indígenas pataxó que se localizam em três muni-
cípios: Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro e Prado. A instância se formou com
duplo objetivo:
1. promover a participação do jovem pataxó na elaboração de políticas pú-
blicas contextualizadas às suas realidades, reivindicando, para tanto,
um lugar de fala e voto dentro dos dispositivos da participação institu-
cionalizada, sobretudo nos conselhos de políticas públicas, partindo do
pressuposto da imprescindibilidade da presença física dos grupos excluí-
dos nos espaços de decisão; e

2. lutar pelo reconhecimento e autodeterminação,10 a fim de viabilizar a


interlocução direta com organizações públicas e privadas, nos âmbitos
local, territorial, estadual e federal.

Mobilizando o conceito de demodiversidade11 de Santos (2002), observa-


mos essa experiência pataxó como exemplo a ser indagado, potencialmente
exemplificador de um novo repertório de ação política, em busca não só do en-
caminhamento de demandas das comunidades indígenas, mas de um espaço
de fortalecimento de sua identidade, visão e capacidade de luta; constituída ao
mesmo tempo como alternativa e em complementaridade aos espaços institu-
cionalizados de participação, coexistindo com eles.
Nesse sentido, a fim de atender ao objetivo específico deste artigo, apre-
sentamos algumas diferenças e semelhanças apuradas na confrontação entre
os conselhos de políticas públicas e a experiência do Conjupab. A partir daí,
evidenciaremos os aspectos que o alçam ao posto de produto de inovação
democrático-participativa, como um espaço de participação alternativo, in-
ventado, não formal, livre e vivido.

10 Segundo Wehmeyer (1992 apud APPEL-SILVA; WENDT; ARGIMON, 2010), a autodeterminação


representa um conjunto de comportamentos e habilidades que dota a pessoa (ou grupo) da ca-
pacidade de ser o agente causal em relação ao seu futuro, ou seja, de ter comportamentos com
intencionalidade e objetivos predefinidos.
11 Segundo Santos (2002), a demodiversidade pode ser concebida como “a coexistência pacífica ou
conflitual de diferentes modelos e práticas democráticas”, a exemplo do diálogo possível entre
democracia comunitária e as mais convencionais – democracia representativa e participativa.

272 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Quadro 1 – Diferenças e semelhanças entre os conselhos de políticas públicas (e seus desafios) e o Conjupab12

Conselhos de políticas públicas Conjupab

São espaços participativos, que podem ser tanto O Conjupab também se configura como um espaço
consultivos como deliberativos. (BRASIL, 2012, de consulta e deliberação, mas é, sobretudo, um
p. 19) Todavia, não há consenso sobre se todos os espaço de resistência, afirmação e autodetermina-
conselhos considerados deliberativos (por força de ção. A deliberação coletiva é respeitada pelo grupo,
lei, decreto ou portaria) efetivamente exercem essa não havendo margem para deliberação unilateral
atribuição. por parte do presidente, por exemplo.

São paritários (ou deveriam ser), ou seja, compos-


tos por representantes tanto do poder público
Composto essencialmente por jovens representan-
quanto da sociedade civil. (BRASIL, 2012, p. 19)
tes do movimento da juventude indígena pataxó
Notam-se, entretanto, assimetrias de poder, em
da Bahia. Registra-se a participação de represen-
que os representantes do poder público agem
tantes das duas Secretarias Municipais de Assuntos
em detrimento da autonomia da sociedade civil.
Indígenas (Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália),
(BRASIL, 2012, p. 28) “No caso de as correlações de
mas apenas como forma de diálogo com o poder
força dentro dos Conselhos serem muito desfavo-
público, sem divisão de poder ou intenção de
ráveis, ele pode ser levado ao isolamento, passando
equilíbrio no processo decisório.
a uma existência meramente formal, porque
obrigatória”. (TATAGIBA, 2004, p. 366)

Em tese, foram criados com o objetivo de ope- Sua criação foi idealizada e reivindicada durante
racionalizar os ideais participativos previstos na a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista,
CF/88, com vistas a garantir à população brasileira realizada pela Funai em 2015, a qual não previa a
o direito de acesso aos espaços de formulação, discussão de políticas para a juventude indígena.
implementação e controle social das políticas Nesse sentido, também é resultado de luta pelo
públicas. (BRASIL, 2012, p. 23) direito à participação e voz dos excluídos.

A pluralidade do Conjupab é traduzida pela


São espaços públicos plurais (nem público, nem
representação de todas as aldeias e territórios do
privado), nos quais os representantes da sociedade
povo pataxó, que compartilham a responsabilidade
civil e do Estado disputam, negociam e, ao mesmo
pelos rumos do movimento da juventude indígena
tempo, compartilham a responsabilidade pela pro-
e que, unidos pela causa, disputam e negociam
dução das políticas públicas em áreas específicas.
com outras instâncias, governamentais e não
(TATAGIBA, 2004, p. 348)
governamentais.

A eleição da representação da sociedade civil


se dá, na maioria das vezes, mediante indicação
governamental. (BRASIL, 2012, p. 28) Registram-se, A eleição de representantes se dá por aclamação,
porém, processos de sub-representação e sobrerre- ou seja, os próprios jovens é que fazem indicação
presentação. As perversas estruturas de desigual- daquele que possui as características de um bom
dade existentes na sociedade brasileira, como o líder, que reverbera a voz da comunidade, agindo e
patrimonialismo, desigualdade de renda, racismo falando por e a favor dela. O vínculo e o compro-
e sexismo, também perpassam as estruturas dos misso com a base são fortes, legítimos e validados,
conselhos. (BRASIL, 2012, p. 28) Ainda, há fragilida- tanto pelos demais jovens da comunidade como
de do vínculo entre conselheiros – governamentais por seus mais velhos, caciques e cacicas, pajés etc.
e não governamentais – e suas bases. (TATAGIBA,
2002)

12 Inspirado na construção do quadro de Giannella (2018). Perspectivas e desafios da participação em


tempos de crise democrática.

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 273


Conselhos de políticas públicas Conjupab

Uma marca do povo pataxó e de suas instituições


é a transparência de seus processos. As discus-
Falta de mecanismos de comunicação, accounta- sões e deliberações do Conjupab são levadas às
bility e prestação de contas. Há uma deficiência assembleias comunitárias e encontro de lideranças,
de comunicação e prestação de contas entre os a fim de serem validadas. Os jovens, por natureza,
conselhos e conferências com a sociedade em sentem a necessidade de ouvir os mais velhos e se
geral. (BRASIL, 2012, p. 30) aconselhar com esses. “não para trabalhar à frente
dos anciões, mas para andar do lado, para poder
apoiá-los”. (Relato jovem)

O Conjupab é um espaço não formal e não institu-


cionalizado, de caráter libertário. Não há leis, de-
cretos, regimentos ou qualquer outro documento
Os conselhos são espaços formais e institucio-
que o legitime enquanto conselho, bem como suas
nalizados, atravessados pela burocracia estatal,
regras de funcionamento e decisões.
refletindo as normas, regras e princípios da
É respeitada e valorizada uma tradição oral, em
administração pública (ex.: regimentos, resoluções,
que a palavra lançada é força de lei se aceita pelo
atas etc.). “As organizações são submetidas a uma
grupo, resgatada pela memória sempre que neces-
intensa e complexa burocracia que dificulta, inclu-
sário. “A escrita não é muito para nós, não é da nossa
sive, que diversos grupos sociais encontrem formas
cultura registrar de forma escrita. Até porque nossos
de representação e expressão em espaços públicos
parentes mais velhos não sabiam ler nem escrever”
institucionais de participação”. (BRASIL, 2012, p. 34)
(Nytinawã). A exemplo do proposto nas confe-
rências livres, preza pela liberdade, informalidade,
diversidade, criatividade e inovação.

Fontes: elaborado pelos autores com base em Brasil (2012) e Tatagiba (2002, 2004).

Com base nas características apresentadas no Quadro 1, podemos observar


algumas poucas convergências, a exemplo da natureza consultiva e delibera-
tiva de ambos os tipos de conselhos e o ideário, compartilhado pelos dois, de
radicalização da democracia, ou seja, de garantia e acesso real à voz dos excluí-
dos no fazer das políticas públicas. Por outro lado, muitas são as diferenças
apresentadas, a exemplo da inversão de papéis entre quem determina as regras
do espaço e quem as segue, quando tratamos da composição de ambos os espa-
ços, que, vale lembrar, não estão dispostos numa relação binária, mas dialética
e de interação (MIRAFTAB, 2016); e ainda a diferença radical entre contextos e
visão cultural, quando abordamos o processo eleitoral. Essas poucas diferenças
nos desafiam a pensar um organismo que se assume como conselho, mas que
não atende aos critérios que definiram esse tipo de organismo na prática de
participação institucionalizada, se referenciando em uma lógica outra.
A fim de explorar ainda mais essas diferenças, recorremos à proposta inicial
de caracterizar o Conjupab enquanto um espaço de participação alternativo,
inventado, não formal, livre e vivido, conforme a seguir:

274 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


1. Seu caráter alternativo tem a ver com os sujeitos que protagonizam a
experiência: povos originários que, física e simbolicamente, foram pra-
ticamente dizimados pelo colonialismo europeu, uma dominação não
apenas de corpos, mas de mentes, relegando à periferia povos e saberes
únicos. Esses povos subjugados hoje se rebelam, reivindicando não ape-
nas reconhecimento e direitos, mas autodeterminação.

2. O adjetivo “inventado” tem a ver com a criação autônoma de canais pró-


prios, livres de heteronomias e condicionamentos típicos dos espaços
convidados. Inventados por não “aceitarem uma racionalidade alheia,
códigos de ação alheios, tempos alheios, assim como os impostos pela
participação institucional, que, mais uma vez, violentam suas culturas e
formas de viver”. (FELBERG; GIANNELLA, 2019, p. 314)

3. Se aplicarmos as categorias propostas por Gohn (2006) para o caso em


tela – espaços formais, não formais e informais –, podemos classificar o
Conjupab como um espaço de participação entre o não formal e o infor-
mal, visto que ultrapassa a lógica da forma e do espaço físico delimitado,
permite o compartilhamento de experiências e práticas sociais, constrói
aprendizagens e saberes coletivos, desenvolve laços de pertencimento e
forma para a cidadania participativa.

4. O Conjupab também se caracteriza como um espaço de participação li-


vre e vivido na medida em que transcende a materialidade, desconstrói
modelos e códigos e privilegia uma participação e interação não regula-
mentadas.

Nesse sentido, os espaços institucionalizados – com seus desafios e limites


– tendem a ser espaços controlados, racionalizados, marcados por processos de
heteronomia e condicionados pela lógica da burocracia estatal e seus princí-
pios e valores. Por outro lado, espaços livres e vividos como o Conjupab podem
ser espaços de partilha de crenças e valores coletivos, de empoderamento so-
cial e conquista da autonomia, de construção do bien viver e de descolonização.

Conclusões parciais e provisórias


Partindo da análise de tantos autores que se dedicam a compreender e lan-
çar luz acerca do colapso democrático e crise da participação que o Brasil

con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 275


atravessa, percebemos a gravidade do atual movimento de “desinstituciona-
lização” das instâncias participativas brasileiras, apesar de sua notória contri-
buição à maior inclusividade das políticas públicas. Essa descrença relativa à
efetividade das instâncias participativas se dá na medida em que se observam,
nas últimas duas décadas, seus limites estruturais na capacidade de incidir nas
decisões de governo.
Nesse cenário de instabilidade e esgotamento, movimentos sociais e seus
atores se interrogam quanto aos rumos das instâncias participativas que ainda
resistem ao desmonte em ato na fase atual, todos agarrados às muitas conquis-
tas a elas atribuídas e suas promessas, ou, no caso dos povos indígenas, ainda
recentemente experimentando e apostando na sua potencialidade de promo-
ção de políticas públicas contextualizadas. Por outro lado, também muitos
são os movimentos que, à margem do processo de institucionalização ou com
inserção de baixa intensidade, insurgem com vistas a forjar vias outras de par-
ticipação, a exemplo do Conjupab e de tantas outras experiências e práticas
participativas de nova ordem.
Seja qual for a crítica e sob que perspectiva for construída, é consenso que
a participação, seja ela no molde institucional, viabilizada por outros cami-
nhos ou, ainda, hibridando esses dois modelos com vistas à maior inclusão, é
estratégica para a radicalização da democracia e resta, assim, um dos grandes
desafios do tempo presente.

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con s el ho da j u v e n tu de pata xó da b a hi a 279


PARTE III

Disputas
narrativas
EDUCAÇÃO, ENSINO
E SOCIEDADE
História ameaçada: bolsonarismo,
negacionismo e ensino de História

Fernando Santana de Oliveira Santos

Introdução
Com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência da república em 2019, formou-
-se um cenário bastante complexo e contraditório no Brasil, em que vozes au-
toritárias ecoam como se fossem gritos de liberdade e o retrocesso social se
apresenta como progresso. Pesquisadores e pesquisadoras da política têm se
dedicado a entender o bolsonarismo a partir de diferentes instrumentais teó-
ricos: para alguns, trata-se de neofascismo e, para outros, de um populismo
autoritário. (CAVALCANTE, 2020; CUNHA, 2019) O fato é que esse ainda é
um fenômeno a ser aprofundado conceitualmente. Sem a pretensão de ingres-
sar nesse debate teórico, esboçam-se aqui apenas algumas características que
permitem reconhecê-lo como uma ameaça ao ensino escolar de História.
Denomina-se bolsonarismo o movimento político impulsionado pelo
fortalecimento de grupos de direita no Brasil, que culminou na eleição de
Bolsonaro para a presidência da república em 2018, cujo governo, embora
marcado por perdas de direitos sociais, ataques à democracia e instabilida-
de política, ainda dispõe de considerável legitimidade junto a seu eleitorado.
O bolsonarismo não é um acontecimento inusitado ou estranho à realida-
de brasileira; é, principalmente, produto do capitalismo, que precisa exercer
controle sobre o Estado para se reproduzir. Também guarda relações com o
fortalecimento de outros movimentos de direita no mundo e preenche espa-
ços em uma democracia golpeada com o impeachment da presidenta Dilma
Rousseff em 2016.

285
O movimento conjura diferentes forças políticas e quadros de apoiado-
res bastante diversos. Segundo pesquisa etnográfica realizada pela Fundação
Escola de Sociologia e Política, sob a coordenação de Isabela Kalil (2018), que
acompanhou grupos em mobilizações e redes sociais entre 2016 e 2018, os
eleitores e apoiadores de Bolsonaro compõem uma multiplicidade de perfis.
Os resultados da pesquisa permitiram agrupá-los em ao menos 16 tipos, que
variam entre grupos anticorrupção, anticomunistas, haters, militares, monar-
quistas, religiosos, liberais e conservadores de diferentes matrizes. Certamente,
o bolsonarismo não pode ser definido apenas pelo que representam os grupos
que o seguem. No entanto, a análise desses perfis permite identificar frentes
preferenciais de ação que focam nas insatisfações mais frequentes dessa base
tão diversificada.

Algumas trincheiras do bolsonarismo


Destacam-se aqui quatro dessas frentes ou apostas do bolsonarismo. A pri-
meira é o conservadorismo. Nesse ponto, podem ser inseridas diversas outras
frentes, mas, apenas para exemplificar, indicam-se: o apego à ética cristã em
sua versão mais intolerante, contra formas que escapem aos padrões tradicio-
nais de família, de gênero e de fé; e a defesa da ordem inspirada no militarismo
da ditadura, supostamente avessa à corrupção e que defende a centralização
do poder estatal e a violência institucional como principais meios de enfrenta-
mento à criminalidade. É um conservadorismo que, por um lado, aproxima-se
do autoritarismo, mas, por outro, se diz libertário, na medida em que reivindica
do Estado determinadas liberdades, como a não interferência na economia –
até certo ponto –, o direito de civis portarem armas e até mesmo uma liberdade
de expressão capaz de salvaguardar atitudes contrárias à ordem constitucional.
Uma segunda aposta do bolsonarismo é o nacionalismo. O verde e o ama-
relo trajados pelos manifestantes e apoiadores, o uso recorrente de símbolos
nacionais e a representação das Forças Armadas como expressão de devoção
e entrega à pátria são alguns elementos que concorrem para a coletivização
de um sentimento de pertença, que une pessoas em torno da crença em um
“Brasil melhor”. Nesse contexto, Bolsonaro é saudado como principal deposi-
tário da confiança nacional e sobre seus ombros recai o dever de alavancar o
“Brasil acima de tudo”. Mas é um nacionalismo também sui generis, pois toma

286 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


os modelos de política e sociedade estadunidenses como parâmetros e permite
incluir, ao lado do Brasil, os “Estados Unidos acima de tudo”.
A terceira frente de atuação do bolsonarismo é contra o comunismo. Em
sentido estrito, não se trata de um anticomunismo, pois o que se combate,
frequentemente, não são pautas próprias, ou ao menos não exclusivas de co-
munistas e socialistas. São, na verdade, investidas contra a ampliação do gasto
social com políticas de distribuição de renda, com ações afirmativas e contra os
partidos políticos alinhados – ou apenas simpáticos – ao pensamento político de
esquerda. Sob a alcunha de comunista, encontram-se “os outros”, todos aqueles
que não se aliam ao bolsonarismo. Trata-se do mesmo perigo comunista inven-
tado em outras épocas da história do Brasil para legitimar golpes, como o do
Estado Novo, de 1937, e o de 1964, que resultou em 21 anos de ditadura militar.
Por último, ressalta-se o obscurantismo como quarta trincheira do bol-
sonarismo. Consiste em um conjunto de ações deliberadas a esconder a
realidade, distorcer fatos e confundir a ciência. Esse obscurantismo se forja
de diferentes maneiras e tende a ser usado para legitimar ações desastrosas do
governo e como forma de combater os adversários. É o caso, por exemplo, de
culpar o “excesso” de direitos trabalhistas pelo desemprego (BOLSONARO...,
2019a), negar o avanço do desmatamento na Amazônia e relativizar o perigo
da pandemia de coronavírus no Brasil (MENDONÇA, 2020), sempre para ca-
muflar um viés neoliberal que alimenta o capitalismo com retrocesso social,
exploração desenfreada dos recursos naturais e desrespeito aos direitos huma-
nos. No mesmo sentido, incluem-se as acusações a opositores, a exemplo da
suposta tentativa da “esquerda” de descriminalizar a pedofilia, propagada por
Bolsonaro por meio de rede social (BOLSONARO..., 2020b), uma afirmação
infundada, que se presta apenas a confundir a população e desqualificar seus
adversários políticos. Ainda nessa frente, insere-se o negacionismo histórico,
especialmente o que nega o caráter ditatorial do regime político do Brasil entre
1964 e 1985 e desqualifica as trajetórias das populações negras e indígenas.

Negar a ciência para afirmar a política


O negacionismo histórico não é prática inventada pelo bolsonarismo e sequer
foi inaugurada recentemente como tática política no Brasil. Desde a década de
1930, o integralismo já mobilizava sua rede intelectual para “reescrever” a sua

hi s tór i a a m e aç a da 287
própria história e a de seus adversários, com mais força a partir de 1945, para
se livrar da pecha de fascista e se recolocar no jogo político. (VICTOR, 2013)
Segundo Vidal-Naquet (1988), o negacionismo histórico é prática antiga, mas,
no Ocidente, ganhou projeção após o holocausto judeu, com leituras históricas
que se prestavam a relativizar ou mesmo negar o genocídio hitlerista. Assim,
o negacionismo funciona como prática consciente que se destina a “privar
ideologicamente uma comunidade do que representa sua memória histórica”.
(VIDAL-NAQUET, 1988, p. 40) Mas, geralmente, não se trata apenas de priva-
ção; também se empenha em fornecer uma versão do passado que possa reper-
cutir positivamente em um presente em que não há muito o que comemorar.
(HOBSBAWM, 2013)
Há autores que utilizam a expressão “revisionismo histórico” para se referir
ao que se tem chamado aqui de negacionismo, como é o caso de Vidal-Naquet
(1988). Pode-se dizer que o negacionismo, em sentido estrito, seria uma forma
mais radical do revisionismo, que se dedica a negar fatos, e não apenas a distor-
cê-los ou relativizá-los. A opção pelo termo “negacionismo” visa evitar confusão
com a revisão de interpretações históricas realizada quando a disponibilidade
de novas fontes ou a aplicação do método historiográfico assim exigirem, que é
tarefa própria do ofício de historiador. No revisionismo que chamamos de ne-
gacionista, não há qualquer ética ou técnica, mas apenas o desejo de substituir
uma verdade dolorosa por uma mentira tranquilizadora, como bem assinalou
Vidal-Naquet (1988). Defende-se, ainda, que o termo “negacionismo” é mais
adequado porque, antes de qualquer tentativa de reescrever o passado, a pro-
posta revisionista supõe negação de princípios da ciência.
É equívoco pensar a ciência hoje, em qualquer que seja a sua subdivisão,
como saber incontestável, perene e neutro. No entanto, não parece que a ciên-
cia abandonou a verdade, aqui entendida como construção pautada em regras
próprias, que é flexível, mas sempre no limite da ética e de consensos minima-
mente construídos no interior do campo científico. Segundo Le Goff (1990),
embora não seja mais admissível o entendimento de que a história é produzi-
da objetivamente, sem intervenção do sujeito que escolhe um tema, seleciona
fontes e constrói o fato histórico, a ciência histórica não cedeu a um ceticismo
deliberado, a ponto de abdicar da noção de verdade.
O principal empreendimento do negacionismo é substituir a história pro-
duzida dentro das regras da ciência por uma mentira ou por uma recuperação

288 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


achamboada do passado, sem o amparo de métodos e evidências confiáveis.
Atualmente, o campo da história pública, aquele que está para além dos fo-
ros acadêmicos (ZAHAVI, 2011), tem sido disputado fortemente por pessoas
obstinadas a “revisar” a historiografia disponível. Esse negacionismo, em suas
diferentes versões, vai de apenas equívocos metodológicos até a relativização e
a negação de acontecimentos dolorosos, como o holocausto judeu, o genocídio
indígena, a escravização de africanos e a tortura na ditadura militar brasi-
leira. Cumprem essa tarefa, entre outros veículos: o portal Metapedia, uma
enciclopédia eletrônica organizada por grupos de ultradireita que “reelabora”
conceitos e biografias, com maior enfoque para a Segunda Guerra (SANTANA;
MAYNARD, 2017); os Guias politicamente incorretos, best-sellers de autoria do
jornalista Leandro Narloch, com evidentes anacronismos e erros factuais
(RAMOS, 2018); e diversos canais da plataforma YouTube, como o Brasil
Paralelo, que também transmite ideias da extrema direita. (FONTOURA, 2020)
Como dito, o bolsonarismo tem se servido do negacionismo histórico como
tática política e, inclusive, conta com considerável audiência de apoiadores li-
gados a mídias digitais, como é caso do canal Brasil Paralelo, cujo número de
inscritos passa de um milhão. É o negacionismo veiculado por representantes
do Estado brasileiro que se vai enfatizar adiante. Talvez seja essa a sua forma
mais aterradora, pois, pela via institucional, são inúmeras as possibilidades de
impulsioná-lo. No interior do aparato estatal, a cultura escolar, evidentemen-
te, fornece um terreno ainda mais poroso e fértil.
O negacionismo patrocinado pelo governo e o disponível em best-sellers e
mídias digitais guardam diversos pontos de intersecção, mas um parece mais
evidente: a acusação de que a história acadêmica produzida até então é obra de
militantes de esquerda. Essa argumentação, repisada por escritores, youtubers e
representantes do Estado, reforça a suspeita de que a urgência dos negacionis-
tas em “revisar” a história está imbricada às tensões políticas do Brasil recente.
Ao tratar especificamente das implicações do negacionismo para o ensino
de História, recorrer-se-á a normas pertinentes ao campo educacional brasilei-
ro, ao invés de apenas se debruçar sobre os argumentos da história acadêmica.
Com isso, não se quer reforçar o fetiche da lei, isto é, a equivocada compreen-
são de que, no debate sobre o ensino de História, o Estado ou a lei tudo salva
e, por isso, podem-se ignorar vontades intelectuais e políticas dos envolvidos
no processo. (SILVA; FONSECA, 2010) Pretende-se, na verdade, demonstrar

hi s tór i a a m e aç a da 289
que o negacionismo histórico não é apenas um inconveniente para pessoas
que trabalham com o ensino e a pesquisa histórica, acusadas pelo bolsona-
rismo de promoverem “doutrinação marxista”; mas, fundamentalmente, uma
inadequação às políticas educacionais desenvolvidas em diferentes épocas da
educação brasileira.
A história ensinada na escola, segundo Cerri (2011), é apenas um dos tipos
de conhecimento histórico e não se confunde com o conhecimento histórico
produzido academicamente. É certo que este último tem servido de importan-
te referência para a história escolar; todavia, a interlocução entre um e outro é
mediada por outros saberes. A noção de consciência histórica, entendida como
prática social construída a partir de pontos de vistas e experiências que con-
dicionam o sujeito, a sua percepção de tempo e os sentidos que ele atribui ao
mundo, para Cerri (2011), demonstra que, bem antes de ingressar no ambiente
escolar, os indivíduos já dispõem de conhecimento histórico. A compreensão
de que estão inseridos no tempo e em sociedade, e mesmo diferenciações sim-
ples, como infância e vida adulta, já lhes fornecem tais saberes.
Segundo Cerri (2011, p. 61), o papel principal do ensino de História deve ser
gerenciar o fenômeno pelo qual diferentes saberes históricos são relacionados,
produzidos e modificados, assim como o de fomentar o pensar historicamente,
ou seja, “a capacidade de beneficiar-se de características do raciocínio da ciên-
cia histórica para pensar a vida prática”. O negacionismo atua justamente na
contramão, na desqualificação do ensino ministrado pelas escolas, na produ-
ção de verdades pretensamente incontornáveis, no falseamento da realidade
e no uso deliberado de anacronismos e generalizações indevidas. Em resumo,
cuida de substituir o pensamento crítico por mentiras resignantes.

O negacionismo da ditadura e o ensino escolar


de História
Das construções negacionistas alimentadas pelo bolsonarismo, a mais repli-
cada é, sem dúvida, a negação de que o Brasil experienciou uma ditadura mi-
litar que torturou e matou milhares de pessoas. A “tese” acompanha há anos
a trajetória política de Bolsonaro e de alguns de seus aliados, inclusive a pon-
to de prestarem deferências a militares que encabeçaram o regime ditatorial.
(CAMPOS, 2019) Para citar apenas um exemplo mais recente da empreitada

290 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


negacionista, em transmissão on-line realizada em novembro de 2019, o pre-
sidente elogiou a aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pelo
fato de não tratar de “questões polêmicas”, como a ditadura militar, oportuni-
dade em que ratificou sua visão negacionista sobre o regime iniciado em 1964,
sob o argumento de que, no período, teriam sido preservadas a liberdade de ex-
pressão e a realização de eleições. (BOLSONARO..., 2019b) Em direção seme-
lhante, o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, justificou a ausência
do tema no Enem para “não polemizar”, já que essa não seria uma questão pa-
cificada. (TRUFFI, 2020) Assim, embora não tenha externado a mesma convic-
ção negacionista do presidente, o ministro apostou na supressão da “polêmica”
como forma de corroborar o projeto revisionista do governo.
Bolsonaro e alguns de seus aliados não apenas negam e relativizam o golpe
que instaurou a ditadura militar em 1964 como também o consideram uma data
a ser comemorada. Em março de 2019, o presidente determinou que o Ministério
da Defesa passasse a celebrar, nas unidades militares, o 31 de março de 1964.
(DEUTSCHE WELLE, 2019) Desde então, o ministério passou a incluir, anual-
mente, na ordem do dia, mensagem alusiva à data, como se a tomada de poder
pelos militares tivesse sido uma ação em defesa da democracia. Desse modo,
o acontecimento que inicia um dos períodos mais autoritários, violentos e an-
tidemocráticos passa, institucionalmente, a ser reconhecido como marco da
luta pela democracia no país.
A homenagem a militares que tiveram papel destacado na ditadura é outra
estratégia do negacionismo histórico empunhado pelo bolsonarismo. Repetidas
vezes, Bolsonaro citou, como uma referência pessoal, o coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, torturador que chefiou o Destacamento de Operações de
Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), principal
órgão de repressão política da ditadura. Em conversa com um grupo de es-
tudantes que o aguardava na porta do Palácio da Alvorada, em setembro de
2019, Bolsonaro pediu a um deles que recomendasse à professora de História,
identificada como “de esquerda”, a leitura do livro Verdade sufocada, do coronel
Ustra: “Lá [no livro] são fatos, não é blá-blá-blá de esquerdista não”, afirmou o
presidente. (CRUZ, 2019) A obra indicada é um “clássico” do negacionismo his-
tórico, que demoniza a luta contra a ditadura. Logo nas primeiras páginas, na
dedicatória, Brilhante Ustra desqualifica a história produzida sobre os gover-
nos militares e “oferece” o livro aos jovens “para que possam buscar a verdade”.

hi s tór i a a m e aç a da 291
(USTRA, 2007) Tanto o discurso de Bolsonaro quanto a obra recomendada são
representativas do ardil negacionista: desqualificam especialistas em escrever
e ensinar a história não pelas suas qualidades profissionais, mas por um supos-
to vínculo ideológico.
A ameaça negacionista não opera apenas de forma reflexa sobre o ensino de
História. Há também ataques diretos às práticas escolares, como o estímulo à
filmagem de aulas (BASÍLIO, 2019) e propostas de revisão do conteúdo dos
livros didáticos. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em abril de 2019,
Ricardo Vélez Rodriguéz, primeiro escolhido para a pasta da Educação no go-
verno Bolsonaro, falou da necessidade de realizar mudanças progressivas nos
livros didáticos para “resgatar uma versão da história mais ampla”, visto que,
para ele, o 31 de março de 1964 não foi um golpe, mas uma “decisão sobera-
na da sociedade brasileira”. (MINISTRO..., 2019) No início do ano de 2020,
ao falar com jornalistas na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro criticou
a qualidade do ensino nacional, a influência de Paulo Freire na educação e os
livros utilizados nas escolas, que seriam “amontoados” de coisas e precisariam
ser “suavizados”. (BOLSONARO..., 2020a) Dias depois, o segundo ministro da
Educação escolhido por Bolsonaro, Abraham Weintraub, por meio da rede so-
cial Twitter, endossou as palavras do presidente ao falar do comprometimento
do governo com o fornecimento de livros novos, mais baratos e sem “ideo-
logia”. (GOVERNO..., 2020) Nessas ocasiões, Bolsonaro e Weintraub foram
menos específicos do que Vélez Rodriguéz, mas, no conjunto do bolsonarismo,
é possível dizer que reescrever a história do período militar contida nos livros
didáticos é uma prioridade para o governo.
Não é a primeira vez, na história brasileira, que um governo demonstrou
tanta urgência em “atualizar” livros didáticos. Na década de 1970, a indústria
editorial recebeu diversos incentivos dos governos militares com o objetivo de
fomentar o modelo econômico desenvolvimentista e de difundir os ideais da
doutrina de segurança nacional, por meio de livros didáticos e paradidáticos.
(FONSECA, 2003) Conforme assinala Bittencourt (2008), o livro didático é um
material complexo, que pode ser considerado uma mercadoria, um suporte de
conhecimentos escolares, um suporte de métodos pedagógicos e, ainda, um
veículo de um sistema de valores. Portanto, é preciso duvidar do afã de revisar
os livros no atual governo, especialmente os de História, pois, aliado ao nega-
cionismo, para além de erros historiográficos, pode resultar na precarização de

292 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


um conhecimento que precisa ser crítico e no estímulo à produção de ideolo-
gias nacionalistas autoritárias e de identidades pretensamente essencialistas,
aos moldes do modelo educacional vigente nas décadas de 1960 e 1970.
O negacionismo da ditadura militar é bem recebido por parte considerável
dos apoiadores de Bolsonaro. Na pesquisa coordenada por Kalil (2018), um dos
perfis recorrentes é o das intituladas “pessoas de bem”, que apostam no forta-
lecimento das instituições para combater a impunidade e, entre estes, existem
aqueles que clamam pelo retorno da ditadura ou por uma intervenção militar.
Também são significativas dessa aceitação as diversas manifestações antide-
mocráticas realizadas por apoiadores em favor do fechamento do Supremo
Tribunal Federal (STF), invocando intervenção militar e Ato Institucional
nº 5 (AI-5) – que recrudesceu a repressão na ditadura –, inclusive com acenos e
discursos do então presidente da república. Dessa forma, a negação do regime
militar como ditadura opressora e violenta abre a possibilidade de reclamá-
-lo no presente como solução para supostas falhas do sistema político atual.
A antidemocracia torna-se, então, remédio para curar a democracia.
São inúmeras as implicações do negacionismo no âmbito da educação for-
mal. A mais explícita é o desprestígio do conhecimento histórico e de quem
desenvolve a interlocução deste com os outros saberes. De acordo com Cerri
(2011), o ensino de História não se presta a fornecer uma consciência histó-
rica por meio da escolarização, mas a “possibilitar o debate, a negociação e a
abertura para ampliação e complexificação das formas de atribuir sentido ao
tempo que os alunos trazem com eles”. (CERRI, 2011, p. 116) Porém, diante
do negacionismo bolsonarista, se o debate escolar honesto não se inviabili-
za completamente, ao menos se mostra prejudicado, pois a deslegitimação da
História ensinada opera a partir de representantes do Estado, que dispõem de
significativa audiência e representatividade.
Esse negacionismo também evidencia um descompasso em relação à legisla-
ção educacional vigente, cujo principal dispositivo infraconstitucional é a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB). A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
apresenta uma proposta de educação mais alinhada aos valores da Constituição
Federal de 1988. Entre outros, o texto legal estabelece a liberdade de ensinar e
aprender, o respeito à liberdade e à tolerância e a valorização do profissional da
educação escolar como princípios que embasam o ensino, conforme os incisos
II, IV e VII do seu artigo 3º. Além disso, no inciso I do artigo 27, determina que os

hi s tór i a a m e aç a da 293
conteúdos curriculares da educação básica devem observar a difusão de valores
fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito
ao bem comum e à ordem democrática. (BRASIL, 1996) Em síntese, a lei, apesar
de elaborada e publicada em governos fortemente marcados por políticas neo-
liberais, prescreve uma série de diretrizes e valores que devem conduzir uma
educação para a democracia e para o exercício da cidadania.
Pode-se argumentar, por diversas razões, a existência de um abismo histó-
rico entre o legislado e o praticado, especialmente no que se refere à valorização
do trabalho na educação. É possível, ainda, questionar qual a cidadania a que
a LDB se refere. Nos anos de 1960 e 1970, o ensino de História foi largamente
utilizado na difusão de uma cidadania excludente, que se voltava à formação
cívica, ao ajustamento da juventude aos interesses do Estado e à supressão de
sujeitos e lutas históricas. (FONSECA, 2003) No conjunto do texto legal, não
parece ser essa mesma cidadania referida nas diretrizes atuais, mas outra, que
se une à pluralidade de ideias e ao pensamento crítico. Apesar das ressalvas,
não se pode olvidar que, desde 1988, as políticas educacionais passaram a in-
cluir a democracia como princípio inafastável da educação escolar.
Ao revés do estatuído na LDB, o bolsonarismo tem se esforçado para reci-
clar o autoritarismo, suprimir o diálogo e disseminar a intolerância. Por meio de
uma espécie de auditoria fantasiosa à história acadêmica, despida de qualquer
princípio ético ou metodológico cientificamente reconhecido, um passado
medonho é reacendido como clareira para um futuro utópico. No entanto,
esse passado, na forma como é idealizado pelos negacionistas, não fornece aos
sujeitos instrumentos que possam lhes servir à vida pessoal e coletiva dentro
de um contexto democrático, pois é um passado obscurecido e recauchutado
apenas para servir a um projeto de poder personalista e autoritário.
Em específico, quanto aos saberes históricos prescritos, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) para o ensino de História, publicados em 1998,
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, incluem, dentro do eixo
“História das representações e das relações de poder”, temáticas como as dita-
duras do Estado Novo e a iniciada em 1964, reconhecendo-as como períodos
de “supressão de direitos políticos e civis”. (BRASIL, 1998, p. 72-73) Apesar da
publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os PCNs continuam
vigentes, orientando a elaboração de currículos de História e o trabalho docente.
Portanto, toda proposta de ensino que ratifique o regime iniciado em 1964

294 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


como antidemocrático e ilegítimo encontra fundamento tanto na historiogra-
fia quanto nas diretrizes curriculares do ensino de História.
A BNCC, homologada em 2017-2018 – para a educação infantil e funda-
mental e para o ensino médio, respectivamente –, é um documento orientador
que visa garantir um currículo escolar com uma base comum em todo o ter-
ritório nacional e uma parte diversificada, que considere as diversidades
regionais e locais, conforme prevê o artigo 26 da LDB. Assim como os PCNs,
a Base incluiu, entre os conteúdos do componente curricular de História para
o 9º ano, o estudo da “ditadura civil-militar” e estabeleceu como uma de suas
competências “Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura
civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à me-
mória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos”. (BRASIL,
2018, p. 431) Dessa forma, além de reconhecer o período de 1964 a 1985 como
uma ditadura no Brasil, propõe discutir, ou melhor, não deixar esquecer as
violações de direitos humanos da época.
Franco, Silva Junior e Guimarães (2018) sustentam que a BNCC não resolve
problemas antigos do currículo de História, a exemplo de uma visão linear do
tempo histórico que reafirma o eurocentrismo. Ainda, pode-se objetar que,
sobre o período de 1964 a 1985, seria mais adequado falar em uma ditadura
empresarial-militar, ao invés de civil-militar, a fim de garantir precisão concei-
tual sobre qual setor da sociedade civil ofertou maior apoio ao golpe de 1964
e sustentou a ditadura ao lado dos militares. (MELO, 2012) A despeito das crí-
ticas, a Base mantém-se alinhada à maior parte da historiografia acadêmica
produzida. E, mesmo tendo sido debatida e homologada em um momento de
elevada tensão na política brasileira, entre o golpe parlamentar que resultou no
impedimento da presidente Dilma Rousseff e o governo de Michel Temer, não
se eximiu de reafirmar o regime militar como uma ditadura e de reconhecer a
existência de violações de direitos humanos no período.
A proposta de revisar os livros didáticos de História, na forma aventada
pelo governo, também destoa de objetivos estabelecidos na legislação educa-
cional vigente, especialmente em relação ao Decreto nº 9.099, de 18 de julho
de 2017, que dispõe sobre o Plano Nacional do Livro e do Material Didático
(PNLD), editado no governo de Michel Temer. O programa se propõe a avaliar
e disponibilizar livros didáticos e outros materiais às escolas públicas da educa-
ção básica. No artigo 2º, entre outros objetivos, o texto legal propõe fomentar

hi s tór i a a m e aç a da 295
a leitura e o estímulo à atitude investigativa dos estudantes e apoiar a atuali-
zação, a autonomia e o desenvolvimento profissional do professor. Além disso,
no artigo seguinte, estabelece, entre outros princípios: o respeito ao pluralis-
mo de ideias e concepções pedagógicas e o respeito à autonomia pedagógica
das instituições de ensino. Na mesma linha, adota como um dos critérios de
seleção de materiais didáticos a observância aos princípios éticos necessários
à construção da cidadania e ao convívio social republicano, conforme inciso II
do artigo 10. (BRASIL, 2017)
Na contramão do que está delineado no PNLD, o negacionismo não se
permite conviver com a pluralidade de ideias, com o estímulo à atividade in-
vestigativa nem com os princípios republicanos. Não se apresenta como uma
possibilidade interpretativa, mas como a única verdade possível, capaz de subs-
tituir as múltiplas análises então existentes. Não consegue sobreviver de outra
forma, pois, se não se firma como dogma, o argumento negacionista sucumbe
à crítica historiográfica. Do mesmo modo, ao invés de fomentar a autonomia
dos profissionais da educação, a tática negacionista se propõe a silenciá-los, a
fim de preservar o fundamentalismo que o alimenta.
É certo que o negacionismo dificulta, mas não impossibilita que o ensino
escolar de História forneça ferramentas ao pensar historicamente. Aliás, refletir
sobre o bolsonarismo é uma boa oportunidade para desenvolver esse raciocínio,
no sentido de demonstrar como, no tempo presente, a produção de uma versão
do passado pode ser utilizada para forjar uma ideia de futuro. A mediação do-
cente sempre será um divisor de águas nessa tarefa. Em razão do negacionismo
que se institucionaliza, o ensino escolar de História se vê diante de um difícil
impasse: disputar narrativas com representantes do Estado. Trata-se de uma
tarefa custosa, pois, no outro extremo, figuram aqueles que detêm poder para
elaborar e impor políticas educacionais, além de visibilidade suficiente para
confundir discentes e constranger profissionais da educação.

Considerações finais
O enxovalhamento do ensino de História é apenas mais dos ataques do bol-
sonarismo à educação, que se soma a outros projetos, como o estímulo à
filmagem de aulas e o Escola Sem Partido, que, sob a pretensão de eliminar
“influências ideológicas”, atingem diretamente a autonomia da escola e de seus

296 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


profissionais. Entretanto, ataques como esses não devem ser vistos como uma
preocupação exclusiva de educadores e educadoras ou dos que se posicionam
à esquerda no debate político, mas como ameaça real às políticas educacionais
vigentes. Tais políticas, como demonstrado, não obstante as críticas, devem ser
reivindicadas como conquistas democráticas que atenuam os impactos de um
modelo neoliberal tendente a acirrar a precarização do ensino escolar, mor-
mente do ensino público.
É fato que a legislação educacional não permite dimensionar todo o impacto
do negacionismo para o ensino e, sozinha, não é capaz de trazer soluções ao
problema colocado. Consiste, no máximo, em uma das camadas que envolvem
o complexo processo de ensino e aprendizagem. Mas, como toda legislação,
não é somente um conjunto de diretrizes editado pelo Estado; é, antes disso,
um produto da história e, logicamente, reporta-se a determinadas realidades.
Assim, se as políticas educacionais que ela veicula, por um lado, podem eviden-
ciar arbitrariedades praticadas por governos, por outro, podem externalizar
o pensamento de educadores e reivindicações da sociedade civil organizada.
A legislação educacional vigente é uma expressão de consensos e dissensos e,
em alguma medida, representa conquistas sociais decorrentes de lutas que, há
décadas, vêm sendo travadas pela educação.
Não se pode perder de vista, ainda, que negar o passado está longe de ser
uma forma de isentar a escrita da história de partidarismos. A negação vem
acompanhada de um fazer lembrar outra história, não embasada em evidên-
cias, que intenta construir mitos, legitimar projetos políticos e normalizar
o absurdo. Comemorar golpes contra a democracia, exaltar torturadores e
fabricar mentiras tranquilizadoras são alguns exemplos aqui explorados do po-
tencial destrutivo da manipulação de narrativas sobre o passado. Assim, mais
do que antes, o olhar vigilante e a prontidão para se opor ao negacionismo são
armas necessárias aos combates pela História no Brasil recente, dentro e fora
da escola. Encerra-se com uma das reflexões de Benjamin na sexta tese sobre o
conceito de história, cuja lição pode traduzir a profissão de fé de pesquisado-
res, pesquisadoras, professoras e professores de História: “[...] O dom de atear
ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que
está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão segu-
ros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de
vencer”. (BENJAMIN, 1940 apud LÖWY, 2005, p. 65)

hi s tór i a a m e aç a da 297
Referências
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hi s tór i a a m e aç a da 301
O corpo e a imagem corporal: percepções
dos estudantes da Educação de Jovens e
Adultos de uma escola pública municipal em
Teixeira de Freitas1

Betânia do Amaral e Souza

Introdução
É possível constatar que há uma produção teórica e pesquisas empíricas signi-
ficativas sobre o corpo e a imagem corporal, o que demonstra que esse assunto
vem ganhando dimensão pela centralidade que o corpo adquiriu na contem-
poraneidade. As discussões sobre as dinâmicas do corpo, atualmente, têm sido
reduzidas a uma aparência “saudável” e à estética, o que é perceptível principal-
mente em rodas de conversa entre os adolescentes nas escolas. Nota-se que o
“padrão de beleza” a ser alcançado é influenciado pelos símbolos eurocêntricos
que são difundidos por diversos canais e interiorizados pelos estudantes. Nessa
perspectiva, tem crescido o volume de pesquisas destacando a necessidade de
reflexão sobre as implicações das demandas sobre o corpo e sua imagem no
contexto das sociedades contemporâneas e a necessidade de se aproximar dos
jovens – e adultos, por que não? – a partir de uma postura de escuta e de res-
peito pela alteridade.
Neste estudo, especificamente, o interesse pela investigação surgiu após
pesquisa empírica realizada no dia 20 de novembro de 2017 pelo professor
de Matemática da Escola Municipal Gessé Inácio do Nascimento. Esta foi

1 Artigo original publicado na Revista Mosaicum (v. 16, n. 31, p. 69-80), disponível em: https://revista-
mosaicum.org/index.php/mosaicum/article/view/8.

303
desenvolvida durante o evento de comemoração do Dia da Consciência Negra
e contou com a estatística como procedimento metodológico para a análise
dos dados. No decorrer da investigação, observou-se que, nessa escola – loca-
lizada no município de Teixeira de Freitas, na Bahia, inserida em um cenário
marcado pela diversidade resultante de um processo de desenvolvimento eco-
nômico, político, social e cultural –, cujo público é predominantemente de cor
preta, os alunos não se identificavam/autodeclaravam como tal. Esse fato cha-
mou a atenção do corpo docente e, inicialmente como projeto de intervenção,
este estudo foi concretizado.
Sabendo-se que sentidos e valores que exprimem identificações e diferen-
ciações são agregados ao corpo e que esses sentidos são capazes de influenciar
a percepção que o adolescente e o adulto têm de si próprios e a construção da
identidade pessoal e social desses indivíduos – aqui entendidas como “atribu-
tos específicos do indivíduo” e “atributos que assinalam a pertença a grupos ou
categorias”, respectivamente (JACQUES, 1998, p. 161) –, surgiu a necessidade
de investigar a satisfação dos alunos com o seu corpo e sua imagem corporal,
bem como de verificar se os padrões de gostos dominantes causam efeitos so-
bre os corpos e sobre a vida dos estudantes, principalmente porque eles têm
acesso à mídia, que constrói visões, categorias e classificações às quais todos
somos “obrigados” a nos referir. Nesse sentido, para tratar das influências
eurocêntricas relativas à imagem e propiciar o debate acerca do assunto na
escola, a pesquisa descrita foi desenvolvida no mês de abril do ano seguinte,
2018, convertendo-se neste artigo.
Para tanto, definiu-se como objetivo geral investigar a satisfação dos ado-
lescentes e adultos com seu corpo, com sua imagem corporal e sua origem,
buscando, além disso: 1. identificar se a mídia é capaz de influenciar a observa-
ção do seu corpo e da sua imagem corporal; 2. observar se existe influência da
família e da escola no tocante à observação do corpo e da imagem corporal; e
3. compreeender os motivos da não identificação com a cultura negra consta-
tada na pesquisa empírica realizada.
Procurou-se, neste texto, apresentar contribuições importantes para se
pensar no corpo, no gosto, na influência cultural eurocêntrica na construção
da imagem corporal e na identidade segundo os trabalhos de Schilder (1994),
Bhabha (1998), Bourdieu (2007), Silva (2014), Hall (2014), Fanon (2008), Mbembe
(2014), Santos (2012), entre outros, bem como possibilitar a discussão e reflexão

304 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


sobre os resultados dos debates desenvolvidos nos grupos focais dentro da es-
cola, destacando os aspectos e as dimensões relevantes para este estudo.

Do corpo e da imagem corporal para a vida


O corpo é entendido como “o canal por onde nos diferenciamos dos outros, é
por onde somos vistos, observados e julgados, é o caminho pelo qual as sensa-
ções e percepções que temos de nós mesmos, de todas as pessoas e das coisas
que nos cercam se internalizam [...]”. (SILVA, 2014, p. 264) Dessa forma, o cor-
po é parte do conceito que constituímos sobre a diferença, e as características
físicas, visíveis ao mundo – cores, formatos e texturas –, são utilizadas como
elemento diferenciador. A cultura influencia a percepção dessas diferenças, e
é por meio dela que seus “conceitos são internalizados pelos corpos dos indi-
víduos, naturalizando as diferenças, havendo mesmo assim uma conceituação
sobre cada uma delas, por onde se baseia a discriminação: Eu/outro”. (SILVA,
2014, p. 265)
O corpo é associado intimamente à imagem corporal, que tem seu
conceito construído de forma multidimensional (THOMPSON, 1990), repre-
sentando o que os sujeitos pensam, sentem e como se comportam acerca das
suas características físicas. Processos cognitivos como valores, atitudes e cren-
ças individuais são relacionados ao corpo, caracterizando também a imagem
corporal (PETROSKI; PELEGRINI; GLANER, 2012); logo, ela não está ligada
apenas a configurações perceptivas estimuladas pelas configurações senso-
riais. Há de se destacar a grande importância que o aspecto emocional assume.
Nesse sentido, as experiências e os sentimentos adquiridos a partir das ações
e reações de outras pessoas nas relações sociais fazem parte do processo de
estabelecimento da imagem corporal.
Para Schilder (1994, p. 188), ao construir-se, o ser no mundo constrói tam-
bém os que o circundam, pois “as experiências visuais que levam à construção
da imagem corporal pessoal levam, ao mesmo tempo, à construção da ima-
gem corporal dos outros”. Segundo o autor, a imagem corporal está sempre em
transformação, reconstrução e reorganização. Não se limita ao próprio corpo;
ao contrário, o transcende: “é um fenômeno social”. (SCHILDER, 1994, p. 189)
Desse modo, as diferentes experiências do indivíduo interferirão em sua auto-
percepção, o que o levará à personalização ou à despersonalização. Na primeira,

o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 305
tem-se a identificação, influência ou modelação sobre esse indivíduo. Na se-
gunda, o indivíduo “foge” e abre mão de sua imagem corporal através da não
aceitação, fuga ou negação da identidade. (SCHILDER, 1994) Com base nessas
informações, pode-se constatar que questões relacionadas à imagem afetarão
a percepção do corpo do indivíduo e a estrutura de sua identidade – que pode
ser considerada como uma “força” unificadora, que transmite a segurança do
pertencimento –, influenciando a maneira de enxergarmos a nós mesmos e aos
“outros”. (HALL, 2014)
Como o corpo e a imagem corporal são potencialmente suscetíveis às in-
terferências externas e internas, observa-se que as sociedades contemporâneas
vêm apresentando uma excessiva preocupação com a “beleza”, buscando a
ostentação de um “corpo belo”. (ALVES et al., 2009) Esses padrões de beleza
surgem através das influências socioculturais reconhecidas como fatores de
risco para o aumento da insatisfação corporal, tais como: exposição a figuras
idealizadas pela mídia, dieta de familiares, valorização da magreza e ofensas
pessoais perpetradas pelos pares em razão do sobrepeso. (SILVA; TAQUETTE;
COUTINHO, 2014) Em consequência disso, a busca incessante pelo “corpo
belo” tem influenciado negativamente alguns aspectos da vida dos indivíduos,
principalmente no que tange ao comportamento alimentar, psicossocial, físico,
cognitivo e à autoestima. (SMOLAK, 2004)
Essa busca pelo padrão estético difundido pela sociedade nos remete ao pen-
samento de Bourdieu (2007), que afirma que o gosto serve como um marcador
nas estruturas sociais, servindo para distinguir diferentes grupos na sociedade.
Sobre esse aspecto, o autor concebe a vida cotidiana como uma constante luta a
respeito da palavra final para determinar o que é o “bom” gosto, que afirma ser
“universal”. Essa luta, como entende, é um jogo cultural do qual ninguém pode
escapar, traduzida numa relação em que alguém classifica a si mesmo e é clas-
sificado pelos outros. Assim, o autor afirma que “[...] o gosto é o princípio de
tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se é para os outros, daquilo
que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se é classificado”.
(BOURDIEU, 2007, p. 56) Ele complementa:

O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos


sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o
belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se
ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas.
(BOURDIEU, 2007, p. 13)

306 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


O corpo negro como espaço de significação
Quando a criança descobre o seu corpo, ela constrói o seu esquema corporal
com a ajuda dos pais e do meio ambiente, estruturando, dessa maneira, sua ima-
gem corporal. Porém, essa estruturação permanece e se completa mais tarde de
acordo com o contato mais frequente dessa criança com a sociedade e com a
cultura que se instaura no seu cotidiano. Entende-se, então, que a cultura é o
dinamizador da constituição da diferenciação nas crianças, que internalizam
essa cultura e seus conceitos pelos seus corpos. (SILVA, 2014)
A adolescência é caracterizada pelas transformações biológicas, físicas,
psicológicas e sociais. (CAMPAGNA; SOUZA, 2006) Atreladas a esse contexto,
pesquisas têm revelado elevada prevalência de insatisfação com a imagem cor-
poral em adolescentes, acometendo ainda mais os corpos negros, que têm sua
identidade influenciada pela opressão e luta contra estereótipos, considerando
que a sociedade brasileira investe na marginalização por meio da difusão do
racismo. (SILVA, 2014)
Mbembe (2014) explica que a visão do negro no mundo de hoje foi cons-
truída pelo sistema escravista nos primórdios do colonialismo. Nas palavras do
autor, negro é aquele que vemos quando nada se vê, quando nada compreen-
demos e quando nada queremos compreender. Essa invisibilidade decorre do
racismo, que, além de negar a humanidade do outro, se desenvolve como mo-
delo legitimador da opressão e da exploração. Assim, o autor critica a redução
do corpo e do ser vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor, pois esse
movimento transforma a pessoa humana em coisa, objeto ou mercadoria.
De igual modo, Fanon (2008) apresenta uma análise da alienação do negro
como um fenômeno socialmente construído, que funciona como engrenagem
de um sistema político capitalista, sendo o racismo um mecanismo de distribui-
ção de privilégios em sociedades marcadas pela desigualdade. O autor afirma
que o complexo de inferioridade do colonizado – nesse caso, o negro – deve-se
ao sepultamento de sua originalidade cultural, já que faz parte do processo de
dominação colonial desconsiderar que ele possui cultura ou civilização.
Assim sendo, em nossa sociedade as pessoas são oprimidas e discrimina-
das não apenas em razão da sua cor de pele, mas também em razão das suas
vestimentas, características físicas e condição social, pois “o corpo está sem-
pre simultaneamente inscrito tanto na economia do discurso, da dominação
e do poder”. (BHABHA, 1998, p. 107) O corpo, nesse caso, é o instrumento de

o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 307
representação do poder, pois, como visto, essa prática de opressão e discrimi-
nação tem sua origem em nosso passado colonial, que manteve e perpetuou
um discurso de dominação e supremacia da raça branca europeia sobre todas
as outras.
Segundo Santos (2012),

Para nós conhecermos e, sobretudo, conhecermos de uma manei-


ra que seja capacitante, que dê credibilidade e importância a es-
tas experiências não eurocêntricas e que vêm de outras regiões do
mundo – informadas por outras cosmovisões, por outros universos
simbólicos, por outras maneiras de ver a vida, por outras maneiras
de ver a natureza e de conceber a natureza – para isto nós precisa-
mos realmente de outras formas de conhecimento. Porque o co-
nhecimento eurocêntrico nas ciências sociais e aliás [n]as outras
ciências – que também têm muito mais de contextualização cultu-
ral do que a gente pode imaginar – este conhecimento foi construí-
do para não valorizar estas outras experiências.

À vista disso, partindo do entendimento acerca da importância de dar lu-


gar a outros imaginários que não somente aqueles construídos no Ocidente, a
presente pesquisa foi realizada com os alunos do 9º ano da Educação de Jovens
e Adultos (EJA) da Escola Municipal Gessé Inácio do Nascimento, em Teixeira
de Freitas. A partir dos resultados, trabalhos de conscientização que abordam
temas como estética e imagem corporal, preconceito, discriminação, respeito
pela alteridade, entre outros, passaram a ser priorizados com vistas a uma edu-
cação formadora de cidadãos conscientes, voltada também para a formação
integral do ser humano.
Nesta pesquisa, buscou-se repensar e ampliar o conceito do belo como não
só aquilo que agrada aos olhos individuais, como é perpetuado pelos pensa-
mentos euro-ocidentais, mas como algo que deve ser construído coletivamente
e trazer sentido de pertencimento. Nesse momento, trata-se do pertencimento
a uma identidade que, devido às influências socioculturais, não estava sendo
reconhecida.

308 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Metodologia
Participaram deste estudo 51 estudantes (70,5% meninos), com idades entre
14 e 26 anos (M = 17,5), regularmente matriculados no 9º ano da EJA da Escola
Municipal Gessé Inácio do Nascimento, em abril de 2018.
Utilizaram-se na pesquisa de abordagem qualitativa aqui proposta, para
responder aos objetivos definidos, os seguintes procedimentos metodológicos:
aplicação de roteiro semiestruturado para direcionamento das discussões nos
grupos focais e observação participante.
Para Kitzinger (2000), o grupo focal é uma forma de entrevista com grupos
que propicia um debate aberto e acessível em torno de um tema de interesse
comum aos participantes. Em complementação, através da observação par-
ticipante, foi garantida a presença da pesquisadora na situação social, com a
finalidade de fazer a investigação. Assim, ao tempo em que participava das dis-
cussões, pôde coletar os dados. (MINAYO, 2001)
O roteiro semiestruturado utilizado na pesquisa seguiu um esquema bási-
co composto de cinco partes:
1. perguntas sobre corpo/imagem corporal;

2. atitudes socioculturais em relação ao corpo/imagem corporal e à mídia;

3. perguntas sobre a mídia;

4. família; e

5. a observação dos sujeitos e a dos colegas da escola em relação ao corpo/


imagem corporal.

Esse roteiro conduziu as conversas nos grupos focais e permitiu verificar as


expressões particulares de cada aluno, as atitudes, as percepções, os valores, as
ideias e significações singulares do seu corpo, imagem corporal e identidade.
As questões permitiram a abertura de discussão sobre os sentimentos dos ado-
lescentes e adultos em relação a: corpo/imagem corporal, padrão de beleza
idealizado, mídia/influência sociocultural sobre a autoimagem, discriminação,
família e escola.
Foram constituídos dez grupos focais – envolvendo todos os estudantes
– durante o horário de aula cedido pela professora de Ciências, sendo três
de estudantes do sexo feminino e sete do masculino, com aproximadamente

o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 309
cinco alunos em cada, pois a redução do número de participantes nos gru-
pos é importante para que ocorra maior liberdade de expressão de ideias entre
eles. (MINAYO, 2004) Decidiu-se realizar os grupos de discussão separados
por sexo, já que pesquisas anteriores sugerem que normas e regras sobre ima-
gem corporal são diferentes para mulheres e homens. (SILVA; TAQUETTE;
COUTINHO, 2014) Não foi possível organizar a mesma quantidade de grupos
focais para cada sexo, uma vez que a divisão praticada contemplou todos os
estudantes que se dispuseram a participar da dinâmica proposta.
Definidos os grupos, foram-lhes explicitados o objetivo da pesquisa e a
importância de suas participações no desenvolvimento do tema estudado. As
discussões ocorreram por 80 minutos, seguindo o roteiro preestabelecido com
tópicos que forneceram a base para o debate, no qual os adolescentes e adultos
puderam expressar os seus pensamentos. As conversas foram centralizadas em
torno da imagem corporal e da importância que lhe é atribuída no dia a dia; nos
fatores que podem influenciar os sentimentos dos estudantes em relação aos
seus corpos, como pais, pares, mídia etc.; no ideal de beleza apresentado pela
mídia e pela sociedade; na possibilidade de repensar o belo de forma ampla e
diferente do que habitualmente se pensa; no pertencimento e na identificação
com a cultura afro-brasileira; na prática de exercícios físicos; e no padrão de
beleza idealizado por eles.
Para a análise dos dados, buscou-se compreender e interpretar os sentidos
das narrativas e suas contradições, apreendendo o contexto, as razões dos su-
jeitos e a lógica interna do grupo.

Resultados e discussão
Constatou-se que os jovens entrevistados vivem um momento de grande insa-
tisfação com o corpo, visto que constantemente tentam modificar a sua apa-
rência. Ficou evidente, através dos relatos impregnados do modelo vigente de
beleza divulgado pelos meios de comunicação, que, independentemente da
idade ou da fase da vida, a insatisfação com a imagem corporal pode ser mani-
festada. Nesse contexto, esses fatores midiáticos foram identificados como di-
fusores de um ideal de corpo belo e perfeito, determinando o padrão de forma/
aparência física e de consumo para os estudantes de ambos os sexos – e todas
as idades –, que consomem não “apenas bens materiais, mas também ideias e

310 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


concepções de mundo, representações midiáticas, estilos de vida”. (SANTOS,
2015, p. 14)
A forma corporal da cultura ocidental, socialmente inserida desde a co-
lonização, possui um valor determinante como um marcador da posição de
status dos indivíduos. Observou-se que, para os estudantes, possuir um corpo
esteticamente bonito para os padrões desta sociedade favorece a convivência
entre os pares e é fator importante na obtenção de sucesso nos relacionamen-
tos interpessoais. (LEVANDOSKI; CARDOSO, 2013) Da mesma forma, aqueles
estudantes que não se enquadram ou não tentam se aproximar dos ideais de
beleza são discriminados e marginalizados por colegas.
Nas discussões, foi possível identificar que os estudantes reconhecem a
importância da família e da escola nos diálogos sobre o corpo e a influência
deles sobre a satisfação corporal, afirmando que as ações desses dois “pilares
sociais” têm como pressuposto fazer com que o indivíduo se sinta bem com seu
corpo. Isso nos leva a refletir sobre a importância de caminhar no sentido da
mudança da imagem que cada um tem de si mesmo, para além da mudança do
corpo propriamente dito, “uma vez que a aparência de um indivíduo demons-
tra apenas uma de suas facetas enquanto presente no mundo em que vive”.
(COSTA, 2013, p. 95)
Os alunos que informaram terem sido vítimas de bullying apresentaram
um descontentamento com a sua aparência corporal, que foi involuntaria-
mente comparada aos modelos homogeneizados difundidos na sociedade. Tal
resultado também foi encontrado na pesquisa realizada por Campagna e Souza
(2006), na qual as autoras identificaram, por meio da autoimagem dos ado-
lescentes desenhada numa folha de papel em branco, que o meio social vem
impondo padrões muito idealizados e rígidos de beleza, promovendo enorme
distância entre o corpo idealizado e o corpo vivido, empobrecendo os sujei-
tos psiquicamente. Esses resultados podem ser explicados por Mbembe (2014,
p. 10), quando afirma:

[...] o pensamento europeu sempre teve tendência para abordar a


identidade não em termos de pertença mútua (co-pertença) a um
mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo ao mesmo, de sur-
gimento do ser e da sua manifestação no seu ser primeiro ou, ainda,
no seu próprio espelho.

o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 311
Damasceno e demais autores (2006) complementam a explicação afirman-
do que a insatisfação com a imagem corporal aumenta à medida que a mídia
expõe belos corpos, fato que, nas últimas décadas, tem provocado uma com-
pulsão a buscar a anatomia ideal.
Observou-se também, nas conversas, resistência quanto à identificação com
a cultura negra, que já havia sido constatada na pesquisa realizada pelo profes-
sor de Matemática na ocasião da comemoração do Dia da Consciência Negra,
em novembro de 2017. Tal resistência foi compreendida como fuga das visões
estereotipadas sobre a população negra, do preconceito e da opressão, visto que
muitos alunos afirmaram ser “julgados” pela sociedade pela cor da sua pele.
Esse julgamento foi abordado por Mbembe (2014) em sua obra Crítica da
razão negra. O autor acredita que o conceito eurocêntrico de civilização de-
terminou a construção da inferioridade negra, fazendo com que o elemento
negro passasse a ser visto como objeto de perigo que não poderia coexistir.
Para o autor, a relação senhor/escravo impôs ao negro um modo de se ver e de
ser visto. Assim sendo, negro é aquele que ninguém desejaria ser, um sinônimo
de subalternidade, uma maldição. Fanon (2008) complementa esse raciocínio
ao afirmar que a cor também é um marcador da distribuição de privilégios, co-
locando os brancos no topo da pirâmide. Desse modo, o racismo é uma forma
de garantir os privilégios das elites brancas com consequente manutenção das
estruturas sociais.

Conclusão
As relações sociais exercem um papel fundamental na transformação da ima-
gem corporal dos indivíduos da sociedade atual. O símbolo representado pelo
corpo tornou-se fator fundamental de inserção social, especialmente entre os
jovens. Ou seja, a “beleza” tornou-se uma cifra necessária para que o corpo
consiga circular na sociedade; porém, constata-se que a noção do que é belo
foi importada.
O pensamento moderno-ocidental tem influenciado o juízo de estética
corporal dos alunos – adolescentes e adultos – observados, universalizando o
seu jeito de pensar, principalmente por meio da mídia, pois “[...] a propaganda
visa um todo tão indistintamente [...]”. (ROSEIRO; RODRIGUES; ALVIM, 2018,
p. 280) Dessa forma, as particularidades estão sendo posicionadas à margem
da sociedade, ficando desvalorizadas. Pode-se concluir, então, que a sociedade

312 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


que incorporou esse pensamento é uma das responsáveis pela disseminação de
“categorias-fetiche” que são capazes de engendrar invisibilidades.
Já que as mães foram apontadas como as principais interlocutoras das alu-
nas quando se trata do tema “aparência física”, verifica-se a necessidade de
informá-las da importância que representam para elas, bem como instruí-las
sobre o tema aqui abordado no intuito de alargar o pensamento acerca do belo
que é difundido pelas mídias e pela sociedade em geral, colaborando para um
agir favorável ao desenvolvimento do processo de conhecimento do corpo e da
imagem corporal nas jovens, que devem valorizar novas formas de expressão,
combatendo estigmas e fetiches. Devido ao fato de os alunos não apontarem,
em sua maioria, interlocutor específico para discussão desse tema, vê-se a neces-
sidade de abordar o assunto no âmbito escolar, possibilitando a inclusão deles
na sociedade, como também a manifestação do sentimento de pertencimento.
Reafirma-se a importância de incluir, nos espaços escolares, entre outros,
debates e práticas culturais que possibilitem a reflexão sobre identidade e per-
tencimento, buscando o enfrentamento da discriminação racial, bem como de
dar visibilidade às lutas das populações negras e legitimar sua cultura através
da sua afirmação como uma cultura dotada de originalidade e valores positivos,
com vistas à anulação dos estereótipos e mudança das visões e percepções dos
nossos alunos acerca deles mesmos, incentivando o combate à sua invisibilidade.
É desafiadora a construção de uma nova identidade negra e de um novo
modo de enxergar-se. Entretanto, assim como Mbembe (2014), acreditamos
que um futuro livre do peso da “raça” será conquistado a partir de pequenas
ações que combatam os mecanismos políticos e ideológicos que hierarquizam
os seres humanos e as diferentes culturas. Por fim, julgamos serem válidas as
lutas contra todas as formas de opressão que têm em comum a humanidade
como objeto (FANON, 2008) – nesse caso específico, as que objetivam a me-
lhoria da qualidade de vida dos jovens e adultos.

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o c or p o e a i m ag e m c or p or a l 315
Notas para uma análise da formação em
Psicologia: reflexos da mercantilização na
educação superior brasileira

Caio Rudá
Gabriela Andrade da Silva
Rafael Andrés Patiño

Introdução
No Brasil, a formação em Psicologia sempre foi uma temática amplamente
estudada e debatida entre atores da própria categoria profissional e em am-
bientes acadêmicos. (COSTA et al., 2012) Nos últimos anos, resultado de trans-
formações do país em seu processo de consolidação democrática, a atuação em
diversas políticas públicas em curso tornou-se um dos assuntos mais recorren-
tes no âmbito dessa temática.
Atuantes em serviços de saúde pública e assistência social, espaços escolares,
entre outros diversos locais, hoje as psicólogas conformam uma categoria de sig-
nificativa relevância na execução de políticas públicas, frequentemente atuando
com marcado compromisso ético-político que as coloca como elementos cen-
trais no processo de combate aos problemas sociais. Em face desse cenário, o
presente trabalho busca examinar os atuais desafios da formação da psicóloga
para atuação em políticas públicas no âmbito da garantia de direitos sociais a
grupos populacionais historicamente submetidos a práticas de exclusão.
Inicialmente, apresentaremos uma síntese da constituição da psicologia
como profissão no país e, em seguida, analisaremos o cenário de atuação da
psicóloga nas políticas públicas, identificando as principais problemáticas
com ênfase no cenário de formação. Por fim, analisaremos algumas políticas

317
educacionais e indicadores de qualidade do ensino sob uma perspectiva analí-
tica que põe destaque em aspectos macrossociais na determinação do processo
formativo da psicóloga, com especial atenção às relações entre as finalidades
desse processo e ao movimento de mercantilização da educação superior.
Para tanto, o estudo se valeu de uma estratégia metodológica bibliográfica
e documental, tendo sido examinadas:
1. publicações relacionadas ao desenvolvimento histórico da psicologia no
Brasil;

2. as sinopses estatísticas produzidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas


e Estudos Educacionais Anísio Teixeira (Inep), especialmente a partir do
Censo da Educação Superior (CES);

3 os resultados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)


e Conceito Preliminar de Curso (CPC);

4. o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e o Cadastro


Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES); e

5. Portal Infográfico do Conselho Federal de Psicologia (CFP) com o quanti-


tativo de psicólogas no Brasil.

Do currículo mínimo às diretrizes curriculares:


passagem do modelo liberal de atuação para o
desenvolvimento da lógica do compromisso social
No início do século XX, difundiu-se no Brasil o uso de instrumentos psicoló-
gicos em instituições médicas e educativas, processo que incentivou a insti-
tucionalização da psicologia como ciência e profissão. Nos anos 1940, sendo
especialmente aplicadas à racionalização do trabalho, tais práticas se tornaram
amplamente difundidas, executadas por profissionais sem formação específica
na área. (RUDÁ; PATIÑO, 2017)
Após intenso processo de debate acerca da profissionalização da psicóloga,
na década de 1950, a profissão foi enfim regulamentada, com a Lei nº 4.119/62,
e apresentou, em sequência, um crescimento considerável, embora ocorrido
paralelamente à expansão das matrículas no ensino superior como um todo.
Em função disso, a formação da psicóloga se tornou um tema caro, havendo

318 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


uma constante inquietação quanto à abertura indiscriminada de cursos e à
qualidade do ensino. (ANGELINI, 1975; VAN KOLCK, 1975)
Na sequência, a reconhecida ênfase direcionada à atuação clínica nos
cursos de graduação passou a ser alvo de críticas contundentes. Embora a apli-
cação da psicologia ao trabalho tenha sido a principal força de mobilização da
categoria em torno da profissionalização no país, foi a psicologia clínica, como
destaca Ferreira Neto (2004, p. 82), a área que mais atraiu estudantes e pro-
fissionais após a regulamentação, marcando “de modo intenso não somente
os currículos, como também o imaginário social da figura do psicólogo”. Tal
imaginário, por sua vez, estava erigido sob a lógica do consultório privado e
do atendimento individual, o que acabou limitando o acesso aos serviços psi-
cológicos, em virtude dos altos valores praticados dentro do modelo liberal de
profissão. Nesse processo, ressaltamos a consolidação de uma perspectiva epis-
temológica dominante da psicologia como ciência do indivíduo. (ROSE, 1998)
Nesse sentido, trabalhos como os de Mello (1975) e Botomé (1979) inau-
guraram uma perspectiva crítica de análise da formação, ao apontarem para a
necessidade de que o ensino estivesse alinhado com as demandas sociais. No
desenrolar da crítica, é possível identificar algumas intervenções comunitá-
rias desenvolvidas perifericamente nas décadas de 1970 e 1980 que buscavam
questionar as intervenções psicológicas hegemônicas, aproximando a psicolo-
gia das classes populares (GÓIS, 1984; GONÇALVES; PORTUGAL, 2012), e que
talvez sejam o primeiro ponto de inflexão na prática profissional hegemônica
da psicóloga.
Ao longo da década de 1980, uma série de condições materiais veio reforçar
a crítica que se construía nos ambientes acadêmicos e consolidar as práticas
contra-hegemônicas, contribuindo para o esgarçamento do modelo clássico da
clínica privada. Capitaneada pelo surgimento de perspectivas teórico-metodo-
lógicas voltadas para a consolidação de uma psicologia social latino-americana
(LANE; CODO, 1984) e constrangida por razões econômicas, não restou al-
ternativa à classe das psicólogas senão buscar a inserção em novos espaços de
atuação. Como afirma Ferreira Neto (2004, p. 126), “a prática liberal da psico-
terapia começou a viver sua recessão de demanda”, levando à criação de novos
espaços de trabalho para as psicólogas, especialmente junto a equipes de saúde
no serviço público.
Na década seguinte, os desdobramentos dessa transição identitária in-
tensificaram as críticas endereçadas ao processo formativo da psicóloga, e

nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 319
o Currículo Mínimo (CM), marco normativo da formação à época, se trans-
formou no epítome de um modelo de formação reprovado, considerado
insuficiente para os desafios de um país diverso e marcado por desigualdades
sociais. (RUDÁ; COUTINHO; ALMEIDA FILHO, 2015) Após um longo pro-
cesso de negociação entre os atores envolvidos com a formação e atuação da
psicóloga, impulsionadas pela aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), em 1996, e por uma série de alterações na legislação
educacional que se seguiram, foram implementadas, em 2004, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para os cursos de Psicologia (DCN/Psi), marco norma-
tivo mais flexível que estabelece orientações gerais para uma formação ética,
política e tecnicamente competente.
As DCN/Psi modificaram o marco normativo da formação após mais de 30
anos de CM, na perspectiva de contemplar novas dinâmicas da atuação pro-
fissional.1 Mais do que uma mudança normativa, buscavam representar uma
proposta prática de solução à principal crítica direcionada à formação, que vi-
nha sendo propalada desde os anos 1970: a desconexão com a realidade social
do país e falta de referenciais teóricos adequados para dar conta dos problemas
sociais. (RUDÁ; COUTINHO; ALMEIDA FILHO, 2015) Devem ser entendi-
das, portanto, não como um documento casual, criado meramente a partir de
uma determinação legal ocasionada com a nova LDB, mas, ao contrário, como
síntese de um processo de oposição e crítica sistemática a uma perspectiva for-
mativa defasada, configurando um instrumento de transformação em direção
ao fortalecimento do compromisso social.

Atuação da psicóloga nas políticas públicas: avanços e


limitações
A consolidação democrática que ganhou corpo a partir dos anos 1990, no
Brasil e em grande parte da América Latina, foi um fator decisivo para essa
transição identitária da psicologia iniciada na década anterior. Especialmente
a partir dos anos 2000, com a entrada em cena de governos mais progressistas

1 Atualizadas em 2011, com a Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE)/Câmara de


Educação Superior (CES) nº 7/2011, para a inclusão das diretrizes para a formação complementar
de formação de professor de Psicologia, configuram atualmente o documento de base para a ela-
boração dos projetos pedagógicos de curso.

320 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


em âmbito nacional, as psicólogas passaram a desempenhar um papel cada vez
mais ativo nesse processo, tanto pelo seu crescente compromisso com as co-
munidades e movimentos sociais, como pela inserção nas áreas de saúde, edu-
cação, assistência social, justiça e segurança pública. (SPINK, 2009) Sendo um
conjunto de ações do Estado desenvolvidas para a garantia de direitos sociais,
as políticas públicas começaram a se consolidar como uma área relevante para
atuação das psicólogas, que passaram a desenhar e executar novas estratégias
metodológicas, como a prática em clínica ampliada, voltadas a grupos popula-
cionais vulnerabilizados e historicamente excluídos. Um levantamento do CFP
(2012) apontou que, à época, o Brasil contava com aproximadamente 216 mil
psicólogas. Desse total, o Sistema Único de Saúde (SUS) absorvia 29.212 profis-
sionais. Já no Suas, eram 20.463 profissionais atuantes. Incluídas as psicólogas
no sistema judiciário, na segurança pública e demais áreas, o país detinha cerca
de 25% das psicólogas atuando em políticas públicas.
A ruptura com o modelo de formação e atuação tradicional, no entanto, não
foi um processo simples. Em 2006, para dar conta dessa transição, foi criado o
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop), nú-
cleo de pesquisa formado para conduzir o diagnóstico das condições de atuação
profissional e promover a qualificação das psicólogas inseridas em políticas pú-
blicas. Os primeiros diagnósticos realizados pelo núcleo apontavam inúmeros
desafios referentes a aspectos políticos, administrativos e de pessoal: infraes-
trutura insuficiente, subfinanciamento, precarização do trabalho, indefinição
de competências profissionais, inoperância da intersetorialidade, entre outros.
Além disso, a análise da atuação dos profissionais apontava para uma formação
graduada e continuada insuficiente para respaldar um trabalho conforme as
especificidades das políticas em que estavam inseridos, tanto por ausência de
referenciais teórico-técnicos para intervenção, quanto pela incompreensão dos
marcos legais de uma determinada política, bem como do compromisso ético-
-político necessário. (CFP, 2008, 2010, 2012a, 2012b, 2013, 2019)
Desde a criação do Crepop, os indicadores relacionados à formação de psi-
cólogas cresceram consideravelmente. Entre 2006 e 2017, o número de cursos,
matrículas e concluintes aumentou em 99%, 139% e 79%, respectivamente.
(SILVA; RUDÁ, 2019) Entretanto, o número de profissionais atuantes no SUS e
no Suas viu uma relativa redução em relação a 2012: hoje, 48.949 das 375.963 psi-
cólogas registradas no CFP, isto é, 13% do total, atuam nos serviços públicos de

nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 321
saúde; no caso do Suas, essa proporção caiu para 7%, sendo 27.832 as psicólogas
atuantes em serviços de assistência social – contra 14% e 9%, respectivamente,
no levantamento realizado em 2012. Essa retração sugere que, nos últimos anos,
tem havido uma desaceleração dos investimentos em políticas públicas, e não
uma saturação de psicólogas atuantes nessas políticas. Consequentemente, en-
tende-se que o desafio de consolidação do compromisso social da psicologia se
mantém, sendo necessária a continuação nos esforços de transição identitária
em direção ao desenvolvimento de práticas, como a clínica ampliada, dentre
outras, pertinentes a novos e distintos cenários de atuação.2
Em que pesem os esforços da categoria para que as práticas formativas
atuais possam dar conta do desenvolvimento do compromisso com a redução
das desigualdades e processos de exclusão, ainda persiste uma série de limita-
ções e desafios quanto à formação da psicóloga, especialmente no que tange
às flagrantes incongruências entre atuação e o que é preconizado pelas polí-
ticas, a exemplo da execução de um trabalho clínico individual, estritamente
referenciado na psicologia, no âmbito de serviços que prezam pelo trabalho
multirreferenciado em equipe. (BEATO; FERREIRA NETO, 2016; GUZZO,
2018; RODRIGUES; ZANIANI, 2017)
Diante desse cenário de avanços limitados, é possível pôr em escrutínio
a efetividade das DCN/Psi para a concretização desse processo de transição.
Teriam sido elas, de modo geral, um documento capaz de fomentar as mudan-
ças almejadas para a formação da psicóloga? Teriam superado todas as críticas
direcionadas ao CM? Enfim, teria a psicologia se preparado para a atuação em
políticas públicas? Tais perguntas, por merecerem um exame minucioso, não
serão respondidas nos limites deste texto. Buscaremos, no entanto, discuti-las
à luz da análise de resultados e políticas educacionais, sob uma perspectiva
crítica acerca da formação superior em saúde, apresentada em sequência.

2 Estes e demais dados estatísticos apontados neste capítulo foram extraídos de bases de dados pú-
blicas governamentais. Em função das características próprias da pesquisa documental, entenden-
do que tais dados são o próprio objeto de estudo, optamos por não apresentar a fonte para cada
ocorrência no texto, tendo sido feita sua apresentação geral na seção metodológica do capítulo,
disposta na introdução.

322 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


A formação da psicóloga sob uma ótica estruturalista:
a importante determinação de fatores econômicos e
macrossociais
Embora a produção nacional em torno da formação da psicóloga seja bastante
profícua, predominam publicações de caráter teórico e/ou opinativo que apre-
sentam uma ótica internalista alheia à determinação de fatores macropolíticos.
(COSTA et al., 2012) Em face da ausência de referenciais teóricos consolidados
para o estudo da formação da psicóloga, lançamos mão do modelo analítico
para a educação médica proposto por García (1972). Pressupondo a centrali-
dade das condições materiais de vida na determinação dos fenômenos sociais,
tal abordagem parte de uma perspectiva materialista histórica, inserindo-se
dentro do paradigma do marxismo estruturalista.
Consequentemente, a formação não deve ser entendida como um processo
estanque, se encontrando, ao contrário, determinada pela estrutura econômica
predominante na sociedade na qual tem lugar, sendo, ao mesmo tempo, con-
dição fundamental para a manutenção de tal estrutura. (GARCÍA, 1972) Tal
abordagem se contrapõe à concepção amplamente difundida da educação como
prática emancipatória e libertária, consequentemente aproximando-se de teó-
ricos da reprodução como Bourdieu e Passeron (2014) e Althusser (1980), para
quem o sistema educativo atua como mecanismo de manutenção do status quo.
De acordo com Althusser (1980), toda formação social obedece ao impera-
tivo de reprodução das condições da sua produção, isto é, as forças produtivas
e as relações de produção existentes. No âmbito dessa operação, o sistema edu-
cativo exerce um papel fundamental, garantindo tanto a reprodução da força de
trabalho por via da qualificação para atuação conforme a divisão social-técnica
do trabalho como a reprodução das relações de produção, ao construir a natu-
ralização da divisão do trabalho e transmitir o respeito à dominação de classe
através do controle ideológico. Assim, em nosso cotidiano, o sistema educacio-
nal atua como garantia de reprodução do modo de produção capitalista.
No que diz respeito ao trabalho da psicóloga, em particular, é preciso con-
siderar duas características que o tornam estratégico num complexo processo
de reprodução da formação social. Em primeiro lugar, destacamos que o modo
de produção capitalista impõe que o trabalhador venda sua força de traba-
lho para sobreviver, devendo ele, portanto, dispor não apenas de qualificação

nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 323
profissional, garantida pelo sistema educacional, como também de condições
de saúde necessárias para o seu exercício ocupacional. Nesse sentido, a psi-
cóloga assume relevância significativa, posto que sua atuação é marcada pelo
objetivo precípuo de conservação da força de trabalho, mantendo-a saudável
física e mentalmente. (HORST; SOBOLL; CICMANEC, 2013) Para mais, apon-
tamos, apoiados em Rose (1998), que a atuação da psicóloga pode configurar
um mecanismo de controle ideológico e produtor de modos de subjetivação
hegemônicos, atrelados à manutenção da ordem social. Consequentemente,
sob essa perspectiva, a formação e a atuação da psicóloga, que, são afinal, um
contínuo do mesmo processo, não devem ser tomadas como fenômenos neu-
tros ou desinteressados, mas como elementos da formação social que garantem
a reprodução do modo de produção capitalista.
A adoção dessa perspectiva analítica foge ao senso comum de que o estudo
do processo formativo se reduziria à consideração de aspectos tais como titu-
lação do corpo docente, matriz curricular ou conteúdos do curso, por exemplo.
Diversamente, a análise do fenômeno deve considerar a complexa interação
entre:
1. as políticas e regulamentações do Estado;

2. o processo de ensino-aprendizagem, subdividido em seus aspectos


formais e práticos; e

3. as relações de ensino-aprendizagem.

Nesse modelo, o processo de ensino-aprendizagem diz respeito ao conjunto


de etapas sucessivas mediante as quais a estudante se transforma em psicóloga,
a partir do desenvolvimento de atividades, da utilização de meios e da existên-
cia de um objeto de ensino-aprendizagem, sendo ele a própria estudante. Já as
relações de ensino-aprendizagem representam os vínculos estabelecidos entre
os agentes que fazem parte do processo formativo, especialmente docentes e
discentes. (GARCÍA, 1972) E conformando, por assim dizer, a superestrutura da
formação, estão as políticas de Estado, que orientam o planejamento e a exe-
cução de legislação, programas e ações educacionais. Todos esses elementos,
ao fim e ao cabo, estão condicionados pelas finalidades da formação, que, por
sua vez, representam o componente ideológico que norteia a prática educativa,
configurando um aspecto central desse modelo.

324 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


As políticas de educação superior e o fortalecimento
da mercantilização educacional: obstáculos para a
formação crítica da psicóloga?
No caso brasileiro, tendo sido as práticas psicológicas fundamentais ao movi-
mento desenvolvimentista de um Estado burguês iniciado na década de 1930
(MIRA Y LOPEZ, 1955) e também direcionadas à produção de subjetividades
hegemônicas que sustentaram a repressão política durante a ditadura militar e
a uma psicologização do cotidiano que promoveu o esvaziamento da dimensão
coletiva dos eventos sociais (COIMBRA, 1995), identificamos uma forte vin-
culação entre as finalidades da formação e a reprodução da estrutura social.
Embora a constituição das DCN/Psi tenha buscado incidir justamente em tais
finalidades, intentando deslocá-las de uma lógica reprodutória e alienante
para uma perspectiva crítica do status quo e emancipatória, reconhecendo a
pluralidade de modos de subjetivação, entendemos que não houve efetividade
nesse processo, na medida em que ele não foi acompanhado de mudanças sig-
nificativas nas políticas de educação superior como um todo.
Assim, destacamos que algumas políticas educacionais dos últimos 20
anos podem, na realidade, ter contribuído para o fortalecimento dessa lógica
deletéria, ao capitalizar o movimento de mercantilização educacional, espe-
cialmente no que diz respeito: 1. ao massivo financiamento do setor privado a
partir de recursos públicos; e 2. à complacência regulatória que põe em xeque
a integridade do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
Conforme Martins (2013), a partir de 1964, a maioria das instituições de
ensino superior implantadas adotou um viés comercial, gerando, então, um
novo padrão para o sistema, que subverteu a concepção de educação ancorada
na articulação entre ensino e pesquisa e no compromisso com o interesse pú-
blico, convertendo estudantes em consumidores. Nos anos 2000, à escalada do
setor privado opôs-se um massivo financiamento do setor público federal, que
permitiu sua expansão, tendo como resultado o crescimento do número das
universidades e institutos federais, campi, cursos e matrículas, com o intuito
de garantir democratização ao processo de expansão.
Entretanto, esse movimento não ofereceu frente ao avanço do setor privado,
que, por outro lado, observou um crescimento mais acelerado, sob os auspí-
cios do Governo Federal. (CHAVES; SANTOS; KATO, 2020) Nesse processo, se

nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 325
consolidou uma característica que hoje marca o sistema de ensino superior bra-
sileiro: a formação de grandes oligopólios educacionais, decorrentes da compra
e venda de instituições por grupos financeiros que operam no mercado de
ações e cuja valorização está assegurada por investimentos públicos. Entre 2003
e 2017, os recursos destinados à expansão da educação superior privada, por
meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e do Programa Universidade
para Todos (Prouni),3 cresceram 1.316,2%, enquanto o aumento de investimento
em todas as universidades federais ficou em 155,6%, o que evidencia uma clara
opção do Estado por expandir o sistema a partir da rede privada com o massivo
financiamento público. (CHAVES; SANTOS; KATO, 2020)
O outro conjunto de medidas controversas apontado diz respeito à exe-
cução da política regulatória na educação superior. A LDB, embora ressalte a
preservação do interesse social das práticas educativas, abre a possibilidade de
que o ensino esteja a cargo de instituições com fins lucrativos. Desse modo, o
Estado assume para si a função de regulação, estabelecendo regras e normas
que assegurem qualidade na oferta educacional, em vinculação às avaliações
preconizadas pelo Sinaes. Como expõem Barreyro e Rothen (2006), sendo
híbrida sua finalidade, o sistema incorpora modelos avaliativos de caráter
emancipatório/formativo e de controle/regulação, com o duplo objetivo de
contribuir para a tomada de decisão quanto à abertura de cursos e Instituições
de Ensino Superior (IES) e de garantir a qualidade do ensino, mensurada tanto
por indicadores e exames em larga escala de caráter quantitativo quanto pelo
aprofundamento dos compromissos e das responsabilidades sociais das IES.
Portanto, sem entrar no detalhamento da complexa política avaliativa em
curso no país, cumpre destacar que ao Estado cabe a prerrogativa de autorizar
ou não a implantação ou o aumento de vagas, devendo observar a demanda
educacional, o potencial formativo das IES e o impacto social no território de
implantação e para a sociedade como um todo. Entretanto, alguns números
relativos à formação da psicóloga parecem evidenciar uma execução diversa da
política de regulação. Em 2018, havia 349.317 estudantes de Psicologia matri-
culados, número quase equivalente ao de psicólogas registradas no sistema de
Conselhos de Psicologia: 375.963. Entre 2001 e 2017, o crescimento do número
de IES que ofertam cursos de Psicologia foi maior que o aumento do núme-
ro de matrículas: 314% contra 221%. Ademais, a ampliação das matrículas em

3 Principal programa de financiamento e bolsas estudantis no Brasil.

326 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Psicologia foi superior ao crescimento total das matrículas em cursos superio-
res: 221% contra 173%. (SILVA; RUDÁ, 2019)
Essa flexibilização da política regulatória entra em descompasso com o
crescimento de postos de trabalho no âmbito das políticas públicas, em vista da
retração da contratação de psicólogas para efetivá-las, conforme anteriormen-
te apontado. Assim, na medida em que o Estado tem autorizado a expressiva
expansão dos cursos e vagas em cursos de Psicologia diante desse cenário de
retração das políticas públicas, existe uma tendência de que os futuros egressos
sejam absorvidos pelo setor privado ou passem a trabalhar como profissionais
liberais, ou mesmo atuem fora da sua área de formação.
Além disso, é possível pensar que o Estado não apenas tem autorizado cur-
sos em descompasso com seu próprio ritmo de investimento e contratação de
pessoal como também pode estar atuando em prol dos interesses de lucro do
mercado educacional, agindo em detrimento da real demanda por formação, na
medida em que a Psicologia configura um curso relativamente com baixo ônus
de implantação e alta atratividade de estudantes, o que garante uma margem de
lucro considerável para as IES. (MACEDO et al., 2018) Assim, na prática, parece
haver um distanciamento entre a função da política regulatória, que é garantir
a qualidade do sistema, e a sua execução, visto que essa abertura indiscriminada
de cursos indica processos regulatórios reduzidos à checagem de pré-requisitos
previamente definidos por um instrumento avaliativo, sem a devida conside-
ração do impacto social da implantação, especialmente quando marcada pela
lógica mercantilista de educação que predomina entre as IES privadas.
Cumpre destacar que é evidente o predomínio do setor educacional priva-
do na formação da psicóloga, que, em 2018, concentrava 91,2% das matrículas.
Esses cursos, para além de terem sido autorizados no âmbito dessa compla-
cência regulatória indicada, sustentam-se com receitas também oriundas
de recursos públicos: do universo de estudantes matriculados em 2018, 18%
tinham Fies; 5,4% tinham Prouni integral; e 2,1% possuíam Prouni parcial.
Diversos estudos têm sinalizado preocupação quanto aos impactos negati-
vos desse predomínio, especialmente com relação ao recente movimento de
financeirização e oligopolização do ensino superior, entendido como dire-
tamente oposto à ideia de educação como direito e processo emancipatório.
Além disso, apontam para a precarização das relações de trabalho e, conse-
quentemente, das relações pedagógicas, que parecem impactar nos resultados

nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 327
de ensino-aprendizagem. (CHAVES; SANTOS; KATO, 2020; MACEDO et al.,
2018; RUDÁ; SILVA, 2020)
O regime de trabalho docente, por exemplo, é um dos fatores que mos-
tram a precarização do trabalho nas IES privadas. Para permitir a dedicação
às atividades de ensino, pesquisa e extensão, além de participação em órgãos
colegiados e outras atividades administrativas, é preciso que exista uma efetiva
vinculação do docente por meio de regime de tempo integral. De acordo com
dados usados para o cálculo do CPC do ano de 2018, em média, a proporção
de docentes com regime de tempo parcial ou integral nos cursos de Psicologia
foi de 100% para as IES públicas federais; 96,6% para as públicas estaduais,
86% para as privadas com fins lucrativos; e 80,3% para as privadas sem fins
lucrativos. A proporção de docentes com titulação de doutorado também foi
mais alta nos cursos de IES públicas federais (80%), seguidas pelas IES públicas
estaduais (69%), privadas sem fins lucrativos (43,1%) e privadas com fins lucra-
tivos (41,2%).
Ao observarmos os resultados do Enade, constatamos que, em 2006, es-
cores mais elevados, superiores a cinco – em escala de zero a dez –, foram
alcançados por mais de dois terços dos(as) estudantes de IES públicas, mas por
apenas 27% dos(as) estudantes de IES privadas. (BASTOS et al., 2011) A dife-
rença entre desempenhos de cursos por categoria administrativa se manteve
no Enade 2015: dentre os 23 cursos que tiveram o conceito máximo (cinco), 21
eram públicos. Já em 2018, dos 36 cursos avaliados com conceito cinco, 35 eram
oferecidos em IES públicas e apenas um em IES privada.
Tais números acendem o sinal amarelo quanto ao cenário da formação, vis-
to que o setor privado tem sido responsável pela maior parte das psicólogas
graduadas no país. Sob nosso modelo analítico, não apenas causam apreensão
os indicadores educacionais medianos a ruins, mas, sobretudo, o fato de que,
em função de sua prerrogativa de lucratividade, as práticas educacionais no
contexto privado parecem se encontrar mais vulneráveis às determinações da
necessidade de reprodução da estrutura social. Desse modo, torna-se mais pro-
vável que esses egressos venham a atuar no contexto das políticas públicas sem
o preparo necessário para lidar com situações desafiadoras, como a garantia de
direitos a sujeitos historicamente submetidos a práticas de exclusão e cercea-
mento de direitos, ao encararem com menos estranhamento o status quo.

328 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Considerações finais
Após quase seis décadas de regulamentação da profissão, as psicólogas têm
atuado em diversos contextos profissionais, com base numa ampla gama de
referenciais teórico-metodológicos, que distam bastante da perspectiva de “so-
lução de problemas de ajustamento”, expressa na Lei nº 4.119/62 e que orien-
tou a maioria das práticas desenvolvidas entre os anos 1960 e 1970. Hoje, é
possível afirmar que a psicologia busca se consolidar como campo de práticas
que visam à garantia dos direitos humanos e sociais e à promoção da saúde
e do bem-estar social. Resultado de um longo processo de amadurecimento,
é possível identificar diversas abordagens críticas que buscam questionar o
status quo, facilitar processos de transformação social e questionar as práticas
de exclusão de minorias e cerceamento de direitos.
A despeito do importante êxito na busca de alinhamento com uma visão
crítica de atuação em políticas públicas, parece haver ainda um longo caminho
a ser trilhado para promover o compromisso social necessário face aos proble-
mas que persistem no cenário social brasileiro. Com base no modelo de García
(1972) e na análise das políticas educacionais brasileiras, apoiadas por dados
quantitativos levantados, é possível inferir que revisões curriculares realizadas
apenas por mudanças no marco normativo não foram suficientes para pro-
porcionar o desenvolvimento de uma perspectiva crítica de atuação consoante
às especificidades dos serviços vinculados a políticas públicas, uma vez que
as finalidades da formação da psicóloga permanecem orientadas à reprodu-
ção do modo de produção capitalista, por sua vez, estruturado pela divisão de
classes, na divisão social-técnica do trabalho e na exploração do trabalhador.
(ALTHUSSER, 1980) A esse respeito, destacamos o fato de que a atuação da
psicóloga, num sentido conjuntural, funciona como mecanismo de reprodu-
ção do status quo, a partir da potencialidade de incidir ideologicamente sobre
os modos de subjetivação, garantindo o respeito à dominação de classe exis-
tente, e da possibilidade de servir como instrumento de conservação da força
de trabalho.
É importante sinalizar o entendimento de que tais finalidades não são
resultado da construção deliberada de atores envolvidos no processo de for-
mação, no ato de trabalho da psicóloga ou na produção de políticas públicas,
mas, antes, o resultado do complexo modo de produção capitalista, que precisa

nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 329
garantir as suas condições de produção e reprodução. Isso equivale a dizer que,
mesmo com toda a ação coletiva em busca de um viés crítico para a profissão,
continuam existindo estruturas sociais dominantes que buscam neutralizar
quaisquer esforços que visem à sua desconstrução.
O presente trabalho buscou desvelar essa complexa engrenagem de repro-
dução não num sentido de conformidade, mas para que seja possível estabelecer
linhas de ação pragmáticas de contraponto a essa estrutura social. Logo, acre-
ditamos ser necessário, antes de mais nada, levar essa abordagem analítica a
uma análise empírica, de modo que seja possível aprofundar a compreensão
dos nexos entre os elementos que compõem o modelo de formação apresen-
tado. Surgem, portanto, como possibilidades de investigação: o impacto do
regime e das condições de trabalho docente na qualidade da formação; a efi-
cácia e/ou limites de revisões curriculares orientadas para o fortalecimento da
discussão sobre políticas públicas; a correlação entre categoria administrativa
e organização acadêmica e desempenho estudantil; entre vários outros temas
que podem ajudar a consolidar ou refutar esse modelo analítico de formação.
Por fim, acreditamos ser de relevância que a análise empírica proposta seja
acompanhada do exame de duas questões em particular com que encerramos
este trabalho. Estaria a psicologia necessariamente condicionada ao capital?
Em caso afirmativo, como promover a emancipação do sujeito em relação à
violenta ideologia capitalista, estruturante de modos de subjetivação homo-
geneizados? Talvez essas indagações sejam não o nosso desfecho, mas nosso
ponto de partida para continuar pensando a formação da psicóloga.

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nota s pa r a um a a n á l i s e da f or m aç ão e m p s ic ol o g i a 333
DISPUTAS NARRATIVAS
Os “habitantes originais” de Porto Seguro
na Viagem ao Brasil de Maximiliano de Wied
Neuwied: uma reflexão sobre decolonização
da história das ciências e protagonismo
indígena

Francisco Cancela

Infelizmente, meu pobre Quäck (o botocudo), faleceu


na minha ausência. Felizmente, meu irmão Karl, pintou,
pouco antes, um excelente quadro a óleo, incrivelmente
fiel. Agora a lembrança dele ficará bem viva entre nós.
(Carta de Maximiliano de Wied Neuwied a Carl F. Martius,
6 jan. 1835)

Introdução
O quadro de óleo sobre tela a seguir, pintado pelo príncipe Karl de Wied
Neuwied, é um retrato de Quäck, produzido por volta de 1830. Ao ganhar es-
paço destacado na galeria do castelo de Neuwied, em meio a outros retratos da
nobre família de condes e condessas da região do Rio Reno, na atual Alemanha,
esse importante personagem de uma das primeiras viagens científicas realiza-
das no Brasil no início do século XIX conquistava a eterna “lembrança” de um
seleto grupo de naturalistas da época. Não que tivesse entrado para a história
das ciências, com reconhecimento público de suas contribuições para a botâni-
ca, a zoologia, a antropologia ou a linguística. Tratava-se de um rito de registro
na esfera privada. Ingenuamente, podia ser visto como ato afetivo e de gratidão
por quem se dedicou, desde quando chegou à Europa, a animar uma “multidão

337
embasbacada”, que, vendo-o como objeto, inspecionava, investigava e matava
a curiosidade diante de um “selvagem civilizado”.
Na história das ciências propriamente dita, nenhum espaço foi reserva-
do para Quäck. Aliás, pouco se sabe sobre sua própria história individual.
A sua trajetória, como a de vários indígenas do Brasil ao longo do período co-
lonial, foi profundamente marcada pelos inúmeros contatos com as frentes
de expansão – econômica, territorial e cultural – movidas pelo processo de
ocidentalização. Quando tinha pouco mais de dez anos, foi capturado numa
das expedições de guerra justa que assolavam a região do atual extremo sul da
Bahia. Depois de ser arrancado de sua família e de seu território, certamente
numa experiência violenta e assassina, foi entregue ao ouvidor José Marcelino
da Cunha, que o deixou aos “cuidados” do professor de gramática da vila de
Porto Seguro, senhor Antônio Joaquim Moreira de Pinho. Para demarcar sua
entrada na sociedade luso-brasileira, foi batizado no rito católico e recebeu o
nome de Joaquim.

Figura 1 – Retrato do botocudo Quäck


Fonte: Löschner e Kirschstein-Gamber (2001, p. 207).

338 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Em meados do ano de 1816, o destino do pequeno botocudo mudaria mais
uma vez. Um ilustre visitante chegaria à vila de Porto Seguro e, juntamente
com sua comitiva, se hospedaria no antigo convento dos jesuítas, onde residia
o professor Antônio e o nativo Joaquim. Tratava-se do príncipe Maximiliano de
Wied Neuwied, que, desde 4 de agosto de 1815, empreendia uma viagem natu-
ralista pela costa oriental brasileira em busca das “várias tribos dos primitivos
habitantes” e também da “larga cintura de florestas virgens”, que abrigavam
inúmeras e desconhecidas espécies de animais e vegetais. (WIED NEUWIED,
1989, p. 7) Encantado com o jovem indígena, Maximiliano fez um acordo para
adquiri-lo: comprou um cavalo e uma espingarda do professor e ainda lhe
presenteou com um belo e raro binóculo. A partir daquele momento, Quäck
passava a integrar a Viagem ao Brasil do príncipe Maximiliano, tornando-se um
dos mais importantes membros desta expedição científica.
O nome de Quäck foi citado 19 vezes no relato de viagem, publicado pela
primeira vez em Frankfurt, em dois volumes, entre os anos de 1820 e 1821. Em
todas as passagens, o indígena é expressamente identificado como uma impor-
tante fonte de informação, especialmente para confrontar dados equivocados
que circulavam na Europa sobre a história e a cultura dos povos indígenas no
Brasil. Na narrativa naturalista produzida pelo príncipe viajante, o botocudo
“conta”, “afirma”, “discorda” e até mesmo “desmente” obras e autores renoma-
dos da história natural europeia. (WIED NEUWIED, 1989) Mas a participação
de Quäck não se limitou, obviamente, a transmitir informações etnológicas,
linguísticas e históricas dos povos originários. Ele também contribuiu com
a própria produção do conhecimento naturalista, atuando ativamente, por
exemplo, na coleta de espécimes e na classificação de plantas e animais.
Quäck, contudo, não estava sozinho. Muitos outros indígenas auxiliaram
Maximiliano de Wied Neuwied na realização de sua expedição científica pela
costa do Brasil. Eles foram muitos e ocuparam diferentes posições na viagem.
Alguns eram índios livres, considerados “já civilizados” (WIED NEUWIED, 1989,
p. 248), moradores das vilas criadas no período pombalino ou soldados dos
destacamentos militares. Outros eram escravizados e tinham sido capturados
na declaração de guerra justa autorizada pelo príncipe regente Dom João VI,
no ano de 1808, que estava em plena execução nas antigas capitanias de Porto
Seguro, Ilhéus, Espírito Santo e Minas Gerais. Alguns tiveram seus nomes regis-
trados, como o jovem indígena Aó, descrito pelo príncipe como “meu botocudo”

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 339


(WIED NEUWIED, 1989, p. 266), ou outro “jovem botocudo chamado Bureta”.
(WIED NEUWIED, 1989, p. 246) Outros, porém, ficaram no anonimato, sendo
apenas identificados genericamente como “nossos índios” (WIED NEUWIED,
1989, p. 188) ou “nosso jovem Purí”. (WIED NEUWIED, 1989, p. 124) Todos, sem
sombra de dúvida, colaboraram diretamente para a realização da expedição, de-
sempenhando as funções de soldados, guias, remadores, coletores, informantes e
mediadores culturais. No entanto, apesar de terem contribuído com a produção
do conhecimento da expedição naturalista, os nativos foram sistematicamente
silenciados, interiorizados, objetificados e explorados.
Este trabalho busca revisitar parte do relato da Viagem ao Brasil (1815-1817),
de Maximiliano de Wied Neuwied, na perspectiva de fazer uma leitura deco-
lonial da sua história natural. O objetivo central é demonstrar a participação
das populações indígenas na produção do conhecimento durante a expedição
naturalista, especialmente na antiga capitania de Porto Seguro. Ao identificar
a centralidade que os saberes e fazeres indígenas ocuparam na viabilização da
própria experiência científica do príncipe alemão, a reflexão aqui proposta ten-
ta destacar os mecanismos de silenciamento e os processos de epistemicídios
produzidos pela sociedade europeia. Por fim, uma vez apontada a possibilidade
de decolonização do acervo científico estudado, indicam-se as potencialidades
de retomada do patrimônio epistemológico e cultural dos dados registrados
pelos viajantes europeus.

Por uma leitura decolonial da presença do príncipe


Max em Porto Seguro
Ao empreender sua viagem científica, Maximiliano procurou investigar “coisas
estranhas e novas” relacionadas aos “habitantes originais” que estavam “viven-
do ainda em estado natural”. (WIED NEUWIED, 1989, p. 8) A sua preocupação
com o estudo dos povos indígenas estava assentada na busca pelo “elo perdido”
da evolução humana – uma preocupação que alimentava inúmeros debates
entre os intelectuais europeus sobre as diferenças culturais e raciais das so-
ciedades humanas naquela época. (DUCHET, 1988) Desse modo, o príncipe
de Wied se alinhou às preferências científicas de seu tempo, que buscavam
identificar os vários estágios da evolução humana com uma perspectiva eu-
rocêntrica, evolucionista e excludente. Como já destacou Cunha (1992, p. 8):

340 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


“Nesse século de grandes explorações, o Botocudo não é o único índio que
interessa à ciência, mas, é sem dúvida, o seu paradigma. O que os tupi-guarani
são à nacionalidade, os Botocudo são à ciência”.
No dia 30 de dezembro de 1815, a comitiva do príncipe de Wied Neuwied
entrou no território da antiga capitania de Porto Seguro. Ao deixar o Rio Doce,
marco da fronteira com a capitania do Espírito Santo, o viajante observou os
limites fluidos e incertos que demarcavam a jurisdição político-administrati-
va das regiões ainda não incorporadas às atividades sistemáticas da ocupação
portuguesa. Dali até o Rio Grande de Belmonte – atual Rio Jequitinhonha –,
percorreu a estrada da costa do mar, passando por povoações, fazendas e cór-
regos d’água, por onde observou a economia regional, as relações de poder, a
natureza exuberante e os hábitos e costumes das populações locais, além de
ter adentrado as matas, ensaiando os primeiros desvios de rota com algumas
entradas nas ricas e virgens florestas dos Rios Mucuri e Jequitinhonha. Nessa
região, que atualmente consiste no extremo sul da Bahia, Maximiliano pas-
sou pouco mais de um ano e, embora já tivesse encontrado com os puri e os
coroados, conheceu ali uma grande diversidade dos povos indígenas, fazendo
contato com os maxakali, os pataxó, os tupiniquim, os kamakã e, principal-
mente, os botocudo, com os quais conviveu mais de quatro meses nas florestas
de Belmonte. As experiências investigativas do príncipe naturalista nas terras
porto-segurenses foram tão importantes que 6 dos 11 capítulos do primeiro
tomo de sua obra tratam exclusivamente dessa região.
Maximiliano transformou sua Viagem ao Brasil numa interessante inves-
tigação etnográfica. Identificou, observou, descreveu, comparou e registrou
inúmeros aspectos da vida dos povos indígenas que encontrou ao longo de sua
caminhada pela costa brasileira. Segundo Vanzolini (1996, p. 210), a convivência
de Maximiliano com os índios “acendeu uma insopitável paixão antropológica”
que “matou nele o zoólogo”. No entanto, o “olhar antropológico” do príncipe
de Wied Neuwied foi alimentado pelos fundamentos científicos de sua época.
Ao estudar os povos indígenas, não deixou de enquadrá-los no campo mais
geral da história natural, sendo comum ao longo de seu relato compará-los
ou equipará-los aos animais. Se, por um lado, mostrou-se sensível e crítico à
violência da colonização, a ponto de classificar como “muito injusta a atuação
dos europeus”; por outro lado, reproduziu também a postura etnocêntrica que
silenciava, inferiorizava e estereotipava a cultura, os saberes e a organização

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 341


social indígena. Ao tratar dos botocudo, por exemplo, Wied Neuwied (1989,
p. 292) opinou:

Nos caracteres morais, os povos indígenas do Brasil assemelham-se


tanto quanto na sua constituição física. Domina as suas faculdades
intelectuais a sensualidade mais grosseira, o que não impede que
sejam às vezes capazes de julgamento sensato e até de uma agudeza
de espírito. Os que são levados entre os brancos observam atenta-
mente tudo quanto vêm, procurando imitar o que lhes parece visí-
vel, por meio de gestos tão cômicos, que a ninguém pode escapar
o significado de suas pantomimas. Aprendem mesmo, facilmente,
certas habilidades artísticas, como a dança e a música. Mas, como
não são guiados por nenhum princípio moral, nem tampouco su-
jeitos a quaisquer freios sociais, deixam-se levar inteiramente pelos
seus sentidos e pelos seus instintos, tais como a onça nas matas.

Para uma releitura do relato do príncipe naturalista que destaque o lu-


gar e o papel dos povos indígenas na viagem científica, não basta inventariar
os dados etnográficos produzidos. O exercício básico necessário é repensar
a própria produção do conhecimento durante a experiência científica. Esse
exercício exige um duplo desafio: de um lado, a crítica ao modelo interpreta-
tivo tradicional da história das ciências, que, inspirado no trabalho de George
Basalla, entre outros, explica o surgimento e a difusão da ciência moderna
a partir da Europa Ocidental – especialmente de países como França, Itália,
Alemanha e Inglaterra –, iniciando no século XVI e se intensificando no sé-
culo XIX, quando os viajantes naturalistas, símbolos icônicos da aventura do
conhecimento, financiada por companhias industriais e Estados nacionais,
produziram, “em nome do progresso e do bem da humanidade” (KURY, 2001,
p. 66), uma “consciência planetária” e “eurocêntrica” (PRATT, 1999, p. 78); do
outro, uma outra postura epistemológica que permita identificar o papel que
esses empreendimentos científicos tiveram e ainda têm na reprodução da co-
lonialidade do saber e do poder (QUIJANO, 2005), pautada na inferiorização
do outro não europeu, que resulta na produção de leituras, sentidos e senti-
mentos sobre o mundo com o objetivo de legitimar a suposta superioridade
europeia, além de invalidar as formas de pensar, agir e produzir conhecimento
das sociedades nativas.1

1 De acordo com Quijano (2005, p. 231), “os colonizadores exerceram operações que dão conta
das condições que levaram à configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de

342 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


No campo historiográfico, vale levar em consideração as novas abordagens
produzidas pela nova história social e cultural das ciências, da década de 1980
até o limiar do século XXI. Como uma interpretação crítica sobre os processos
de produção do saber nas expedições científicas europeias, os novos estudos
têm demonstrado que o trabalho científico era mais coletivo que individual,
pois, para levar a cabo uma viagem exploratória, era preciso montar uma am-
pla, diversificada e eficaz equipe para servir de apoio ao trabalho de campo:
da coleta à preparação dos espécimes, os naturalistas contavam com o auxílio
de profissionais especializados, como desenhistas, caçadores e jardineiros, ge-
ralmente trazidos da Europa, que contribuíam diretamente com a produção
científica.
Além do apoio de outros especialistas, o engajamento da população local
era fundamental para a viabilização do empreendimento naturalista. De acordo
com Browne (2001, p. 962), embora os habitantes locais tenham sido “deixados
de fora da história”, tem “se tornado cada vez mais óbvio para os historiado-
res e sul-americanistas que os naturalistas europeus e norte-americanos não
teriam conseguido atingir seus resultados sem o auxílio de residentes, guias e
mateiros”. Para Abdalla (2012, p. 14), por sua vez, a “população nativa dos terri-
tórios investigados era solicitada a colaborar de maneira efetiva no desenrolar
prático da viagem e no (re)conhecimento da geografia local e dos espécimes
da natureza”. Com isso, uma parcela significativa do saber produzido pelas
viagens científicas era resultado das formas de pensar, agir e produzir conhe-
cimento das populações locais, que atuavam não somente no fornecimento da
localização dos recursos naturais, mas também de seus potenciais usos.

dominação entre a Europa e o europeu e as demais regiões e populações do mundo, às quais


estavam sendo atribuídas, no mesmo processo, novas identidades geoculturais. Em primeiro lu-
gar, expropiaram as populações colonizadas – entre seus descobrimentos culturais – aqueles que
resultavam mais aptos para o desenvolvimento do capitalismo e em benefício do centro europeu.
Em segundo lugar, reprimiram tanto como puderam, ou seja, em variáveis medidas de acordo com
os casos, as formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de produção de
sentidos, seu universo simbólico, seus padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. A
repressão neste campo foi reconhecidamente mais violenta, profunda e duradoura entre os índios
da América ibérica, a que condenaram a ser uma subcultura camponesa, iletrada, despojando-os
de sua herança intelectual objetivada. Algo equivalente ocorreu na África. Sem dúvida muito me-
nor foi a repressão no caso da Ásia, onde portanto uma parte importante da história e da herança
intelectual, escrita, pôde ser preservada. E foi isso, precisamente, o que deu origem à categoria
Oriente. Em terceiro lugar, forçaram – também em medidas variáveis em cada caso – os coloniza-
dos a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução
da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmen-
te religiosa [...]”.

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 343


Com essa nova perspectiva, torna-se mais fácil propor uma interpretação
da história das viagens científicas a partir também do panorama da nova his-
tória dos povos indígenas. Resultado de mudanças teóricas e metodológicas
ocorridas no campo da história e da antropologia, bem como do contexto de
intensa mobilização e luta dos povos indígenas em defesa de direitos funda-
mentais, como a terra e a educação diferenciada, a escrita de uma nova história
dos índios no Brasil começa a se consolidar entre as décadas de 1970 e 1990. De
acordo com Monteiro (1995, p. 227), esse campo de pesquisa tem por objetivo
“recuperar o papel histórico de atores nativos na formação das sociedades e
culturas do continente” e “repensar o significado da história a partir da expe-
riência e da memória de populações que não registram – ou a registram pouco
– seu passado através da escrita”. Sendo assim, preocupado com o protagonis-
mo dos índios na história, o olhar do historiador comprometido com esse novo
paradigma historiográfico se desloca da atuação isolada do viajante europeu
para a presença e participação dos povos indígenas nas expedições científicas,
buscando identificar e problematizar a contribuição indígena na formação do
que se convencionou chamar de ciência moderna.
No campo do giro decolonial, a proposição é ainda mais radical. Começa
por reconhecer que, ao assumir papel central na construção do moderno sis-
tema-mundo cristão, patriarcal, capitalista e eurocêntrico, os viajantes se
aproveitaram da visão fundamentalista de “universal verdadeiro” da filosofia
ocidental para ganhar legitimidade, expropriando dos povos nativos o “lugar
de enunciação” (GROSFOGUEL, 2007) do conhecimento, cuja implicação mais
perversa foi a ocultação do sujeito que fala através de uma estratégia de “ponto-
-zero”. (CASTRO-GOMEZ, 2003) Essa ação direta contra o sujeito não ocidental
produziu verdadeiros epistemicídios, que sustentaram e ainda se sustentam o
que Maldonado-Torres (2004, p. 34) chamou de racismo epistêmico – uma for-
ma de racismo que “desconsidera a capacidade epistêmica de certos grupos de
pessoas”, podendo “estar baseado na metafísica ou na ontologia, mas seus resul-
tados são, no entanto, o mesmo: a evasão do reconhecimento dos outros como
seres humanos totalmente completos”. Por isso, a proposta de uma leitura deco-
lonial da Viagem ao Brasil do príncipe Maximiliano deve assumir o compromisso
de “desmantelamento das relações de poder e concepções de conhecimento que
fomentem a reprodução das hierarquias de raça, gênero e geopolíticas que se
originaram ou encontraram novas e mais poderosas formas de expressão no
mundo moderno/colonial”. (MALDONADO-TORRES, 2006, p. 117)

344 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


A presença dos índios na Viagem ao Brasil: condições
históricas e políticas
Notar a contribuição geral dos índios nas expedições científicas oitocentistas
não é de todo um exercício inédito. Muitos estudos recentes têm notado a
participação das populações indígenas nas redes invisíveis dos viajantes natu-
ralistas. No caso específico da Viagem ao Brasil de Maximiliano, o trabalho de
Silva (2011, p. 65) já destacou como o “uso da mão de obra e do conhecimento
prático dos indígenas foi importante para o desempenho da empresa natura-
lista”. Ainda de acordo com o referido autor, no “dia a dia da viagem outros
indígenas foram sendo convidados a ajudar, tendo colaborado nas travessias
de estradas, matas, rios e na coleta de novos exemplares de história natural”.
(SILVA, 2011, p. 65)
No entanto, para uma leitura adequada da colaboração dos povos indíge-
nas nesse capítulo da história da ciência moderna, não se devem desprezar as
circunstâncias históricas e políticas existentes. Os nativos não participavam
voluntariamente do empreendimento científico. O direito de escolha não era
uma possibilidade acessível a todos os indígenas. A realização das expedições
não se dava num vazio social e político. As políticas indigenistas delimitavam e
condicionavam as formas de participação dos índios naquela sociedade.
O príncipe Maximiliano parece ter percebido esse aspecto rapidamente. Na
introdução de seu relato da viagem, registrou a dualidade que marcou a política
indigenista portuguesa ao longo de todo período colonial, que dividia os povos
indígenas entre os grupos “civilizados pelos portugueses, principalmente pelos
jesuítas, [que] eram chamados índios mansos”, e os grupos “das florestas e soli-
dões do interior que, ainda bárbaros e em parte desconhecidos, eram chamados
tapuias”. (WIED NEUWIED, 1989, p. 8) Como demonstrou Perrone-Moisés
(1992), aos “índios mansos”, a Coroa portuguesa garantiu a liberdade, ainda
que condicionados à tutela dos religiosos e da Coroa, sendo também obrigados
a viver nos aldeamentos e forçados ao trabalho compulsório para os padres,
os colonos e o Estado. Os índios dos sertões, por sua vez, eram considerados
inimigos da colonização, tendo como destino a escravidão, que podia ser exe-
cutada por meio das chamadas guerras justas – instrumento a um só tempo do
extermínio, da expropriação territorial e da conquista de mão de obra.
Quando percorreu a antiga capitania de Porto Seguro, o príncipe natura-
lista se deparou com uma sociedade colonial formada majoritariamente por

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 345


“índios já civilizados”. Das dez vilas da comarca, sete eram consideradas “vilas
de índios”: Belmonte, Porto Alegre, Viçosa, Alcobaça, Prado, Trancoso e Verde
– sendo apenas as duas últimas oriundas de antigos aldeamentos jesuíticos.
As exceções – Caravelas, Porto Seguro e São Mateus –, embora não fossem
consideradas “de índios”, possuíam presença significativa de indígenas em
seus termos. Essa configuração sociocultural era resultado da implantação da
política indigenista pombalina na região, que, desde 1759, buscava aproveitar
a população indígena na empresa colonial regional, com a criação de novas
vilas, a incorporação das lideranças nativas nas instituições de poder – câma-
ra e ordenanças – e a assimilação de valores, práticas e representações típicas
da sociedade portuguesa, tudo orientado pelo chamado Diretório dos Índios.
(CANCELA, 2018)
Embora discursivamente assentada na ideia de liberdade, a política indige-
nista do Diretório Pombalino condicionava as formas de exercício da liberdade
indígena. Além das obrigações relacionadas à chamada “reforma dos costu-
mes”, que envolvia a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa, o envio
das crianças para escola e o uso de vestimentas típicas dos colonos, os índios
das vilas pombalinas também estavam obrigados ao trabalho compulsório.
Observa-se, então, uma diversidade de práticas civilizatórias que podem ser
entendidas como eficazes e duras violências aos povos nativos, aos seus sabe-
res, fazeres e costumes. De acordo com as Instruções para o governo dos índios
da capitania de Porto Seguro, um rígido sistema de organização do trabalho
foi montado para disponibilizar mão de obra aos colonos para as atividades
agrícolas e marítimas, bem como para o chamado “serviço público” – quando
a câmara, o ouvidor ou o governador determinava o emprego de índios no que
julgava ser um trabalho para o “bem comum”. Foi fazendo uso desse recurso
que Maximiliano conseguiu, em vários momentos, a “colaboração” dos índios
das vilas de Porto Seguro para o trabalho necessário à realização de seu em-
preendimento científico.2
Desde 1808, por outro lado, a guerra justa havia sido decretada contra os
“gentios bárbaros” das capitanias de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia – es-
pecificadamente das comarcas de Porto Seguro e Ilhéus. Os índios dos sertões

2 Quando descreveu a abertura de uma estrada entre a vila de Porto Alegre e Minas Gerais, Wied
Neuwied (1989, p. 175) revelou: “Para a derrubada [da floresta para criação da estrada] aos poucos,
foram chegando, de S. Mateus, Viçosa, Porto Seguro, Trancoso, e outros pontos da costa oriental,
muitos homens, na maior parte índios, enviados com esse objetivo”.

346 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


de Porto Seguro, portanto, estavam sob a mira de um novo movimento de di-
latação das fronteiras internas assentado na incorporação de novos territórios
com a expansão das bandeiras ofensivas, na ampliação da disponibilidade de
mão de obra com a retomada da escravidão indígena e no aumento da pro-
dução agrícola com o incentivo ao cultivo de víveres nas terras conquistadas.
(PARAÍSO, 2014) As vilas de índios criadas na região durante a vigência do
Diretório Pombalino já não eram suficientes para incorporar a população indí-
gena na sociedade colonial, sendo necessária a militarização do território por
meio da criação de destacamentos militares, que serviam tanto como ponto de
partida das expedições ofensivas da guerra justa quanto como ponto de atração
e aldeamento dos índios dos sertões. (CANCELA, 2017) Os soldados indígenas
dos destacamentos de Porto Seguro foram sistematicamente escalados para
trabalhar compulsoriamente no apoio à expedição científica de Maximiliano.
Atuaram principalmente na proteção dos expedicionários, no carregamento
dos equipamentos e na orientação no meio da floresta. Aliás, essa obrigação
não era exclusiva para a demanda da viagem naturalista, mas de todos os em-
preendimentos coloniais. O próprio príncipe alemão, quando se hospedou por
meses no Destacamento dos Arcos, no Rio Jequitinhonha, registrou:

O destacamento dos Arcos foi constituído por um ‘alferes’ e vinte


homens; tantos, porém, desertaram, que só dez restavam, sobre-
tudo gente de cor índios ou mulatos. Os soldados passam muito
mal; o soldo é pequeno, sendo obrigados a obter, à custa do pró-
prio trabalho, toda a alimentação, que consiste em farinha de man-
dioca, feijão e carne seca. Todas as reservas de pólvora e balas mal
vão além de duas libras e muito poucos mosquetes são utilizáveis;
de modo que, em caso de ataque, estariam em sérias dificuldades.
Além disso é da obrigação desses soldados transportar, rio acima e
rio abaixo, os viajantes e suas coisas e bagagem; razão por que são,
pela maior parte, muito destros nesse mister e podem ser qualifica-
dos de excelentes ‘canoeiros’. (WIED NEUWIED, 1989, p. 245)

É nesse contexto de guerra, escravidão e violência nos sertões porto-se-


gurenses que o aprisionamento, a venda e a doação de crianças indígenas se
alastraram ainda mais. Maria Hilda Paraíso (2011, p. 89) indica que a prática se
generalizou e a oferta de crianças crescia à medida que os combates se amplia-
vam, sendo comum ainda a entrega de crianças pela própria família indígena

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 347


como resultado “do estado de pobreza, da falta de perspectivas quanto ao fu-
turo, do desejo de obter artigos que não produziam e da ação dos colonos”.
Na expedição de Maximiliano, além do já conhecido Quäck, adquirido pelo
viajante na vila de Porto Seguro, existiu a participação de inúmeras outras
crianças e jovens indígenas, todos incorporados na empresa científica através
desse violento mecanismo de obtenção de mão de obra, que se tornou um im-
portante mercado colonial de tráfico de escravos indígenas.
Apesar de tudo isso, não se deve descartar a possibilidade de alguns índios
terem visto nas expedições científicas uma oportunidade para melhorar sua
inserção na sociedade colonial, extremamente violenta e genocida. Tal fato
deve ser entendido mais como uma forma de resistência e, sobretudo, de so-
brevivência do que como pura e simples entrega à pacificação, à domesticação
étnica. Reconhecendo a dependência que os viajantes tinham de seus saberes
e fazeres e também reconhecendo o sistema de serviço e mercê da Coroa, pode
ter havido casos de indígenas que se esforçaram em colaborar com a empresa
científica para obter algum tipo de vantagem que melhorasse sua condição so-
cial, política e econômica naquela sociedade marcada pela desigualdade. Ainda
que não tenha sido possível identificar situação semelhante nos dados até aqui
levantados, a simples percepção do protagonismo indígena abre esse leque de
possibilidades.

Os povos indígenas na produção do conhecimento da


Viagem ao Brasil
Na Viagem ao Brasil, os povos indígenas tiveram papel central na produção
do conhecimento da expedição. Pela limitação do espaço, apenas algumas das
mais importantes contribuições dos índios foram listadas a seguir. Não se pre-
tende esgotar neste levantamento todos os modos de pensar, agir e produzir
saberes dos índios. Na verdade, busca-se, sobretudo, balizar pontos de referên-
cia para a reflexão decolonial aqui proposta.
Por ora, não se fará questão de discutir as experiências mais gerais de au-
xílio que os índios prestaram ao príncipe de Wied Neuwied. Condicionados
às relações já reveladas, inúmeros indivíduos livres foram escalados pelas câ-
maras municipais, pelos diretores de índios, pelos chefes de destacamentos e
pelo ouvidor da comarca para trabalhar compulsoriamente para a expedição

348 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


naturalista. Eles transportaram as caixas com equipamentos e espécimes,
proveram o alimento diário aos expedicionários, protegeram a comitiva dos
ataques de onças e de índios não aliados, orientaram os caminhos e rotas nos
rios e matas, entre outras tantas tarefas. As aquarelas pintadas pelo próprio
Maximiliano revelam as diversas situações em que esses indígenas foram fun-
damentais, inclusive socorrendo o grupo diante da falta completa de alimentos
– como aconteceu quando um soldado índio e outro negro aproveitaram a
desova de uma tartaruga na praia para coletar ovos que, mais tarde, se cons-
tituíram na única fonte alimentar para todos nas solidões da praia de São
Mateus.

Figura 2 – Coleta de ovos de tartaruga pelos soldados


Fonte: Kirschstein-Gamber (2001, p. 91).

Interessa mais pensar no processo de produção do conhecimento da histó-


ria natural empreendido pela expedição. Nele, sem dúvida alguma, os indígenas
foram os principais colaboradores na produção do acervo, mas não apenas.
Se, por um lado, eles foram os informantes mais importantes para o príncipe
Maximiliano, uma vez que conheciam os caminhos das matas, os recursos

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 349


naturais existentes e os diversos usos de cada elemento natural, por outro lado,
sua colaboração não se limitava a identificar a incidência geoecológica de uma
espécie da fauna ou da flora. Participavam ativamente da coleta dos bens jul-
gados especiais. E, nesse processo, apesar da explícita opressão colonizadora,
inclusive e sobretudo das formas de conhecimento, os nativos revelavam como
possuíam um patrimônio tecnológico apropriado para a captura de diversas
espécies, demonstrando o domínio do ciclo natural, das características de cada
espécie e dos usos de recursos disponíveis para a interação com o meio natural.
Dessa forma, combatiam na prática a ideia de naturalização, de primitivismo e
de ausência de tecnologia que o eurocentrismo costumava espalhar. Foi assim
que, utilizando de uma armadilha chamada mundéu, os índios possibilitaram
ao príncipe uma extraordinária quantidade de espécimes de animais:

Nossas coleções receberam grandes acréscimos em Morro d’Arara,


sobretudo de quadrúpedes, por meio dos ‘mundéus’. Os índios são
extremamente hábeis no arranjo dessas armadilhas. Escolhem, para
isso, de preferência, um local na floresta, próximo da margem de
rio. Aí levantam um comprido cercado de galhos verdes, formando
ângulo reto com a margem e podendo ter de dois e meio a três pés
de altura. Em cada quinze ou vinte passos, deixam uma pequena
abertura, sobre a qual três toras de madeira, compridas e pesadas,
são colocadas obliquamente, escoradas com pequenos pedaços de
pau. Os animais pequenos, no seu vaivém costumeiro à beira do
rio, procuram uma passagem e, encontrando a abertura na tapada,
pisam a base constituída de ramos entrelaçados as pesadas toras
de madeira se despencam e matam o animal. (WIED NEUWIED,
1989, p. 192)

Na busca de tornar inteligível o objeto natural que buscava classificar, o


viajante precisou observar a relação social dos índios com a natureza e, assim,
imaginou estar transformando o saber nativo em instrumento intermediário
da produção do conhecimento. Na verdade, sabemos, além da expropriação
do conhecimento, processo que factualmente tornou possível a sobrevivência
de europeus em terras desconhecidas e selvagens, havia uma produção de co-
nhecimento sendo possibilitada exclusivamente pelo saber dos nativos, mas
registrada e exportada pelo colonizador. Desse modo, além de ser um des-
dobramento do conhecimento tradicional, a ciência produzida pelo viajante
naturalista era também pautada, definida, orquestrada e, portanto, produzida

350 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


pelos nativos. Apesar disso, sabemos que tal postura ativa dos nativos na pro-
dução do conhecimento foi violentamente silenciada e apagada pelas forças
opressoras da colonização.
Em muitas situações, a identificação dos usos dos recursos naturais reali-
zada pelos viajantes objetivava um processo geral de mercantilização, ou seja,
o emprego daquele recurso nas relações de mercado. E, para aquela sociedade
que conectava os continentes por meio da navegação, as cordas tinham uma
função primordial. Num certo momento de seu relato, ao descrever o modo
como as mulheres botocudo faziam linhas e cordas, Maximiliano revelou
uma estratégia de extração das fibras que demonstrava o domínio, por parte
do grupo étnico, da morfologia vegetal, resultado de um longo processo de
observação, experimentação, aprendizado e transmissão que os indígenas de-
senvolveram na sua interação com a floresta tropical:

Para obter fibras põem as folhas [de tucum] na água para amolecer a
parte carnuda e retiram depois a película externa. Essas cordas du-
ram tanto quanto as de cânhamo. Não falta com que fabricar cor-
doalha nas matas virgens da América, pois para tal fim existem, além
de outros, o pau de estopa (Lecythis) [sic], o pau de embira, a embira
branca, a barriguda (Bombax) [sic]. (WIED NEUWIED, 1989, p. 295)

Por fim, cabe ainda refletir sobre os processos classificatórios utiliza-


dos pelo príncipe na expedição. Do ponto de vista epistemológico, a história
natural aprimorou seu método de investigação pautado na observação, na des-
crição, na classificação e na comparação da realidade vegetal, animal, mineral
e humana. O padrão de Lineu foi o mais utilizado e consistia num sistema des-
critivo e classificatório, engendrado por um padrão de nomenclatura em latim
que indicava primeiro o gênero e depois a espécie. (PRATT, 1999) Ao percorrer
a região costeira do atual extremo sul baiano, listou 12 espécies de palmei-
ras. Apenas o coco-da-baía – uma espécie exótica, por sinal – Maximiliano se
importou em identificar e classificar segundo o padrão científico, colocando
entre parênteses a denominação atribuída por Lineu: Cocos nucifera. Nas de-
mais espécies, todas nativas, usou simplesmente o nome popular, basicamente
de origem tupi – imburi, pindoba, pati, indaiá-açu, jiçara, guriri, piaçaba, ari-
curi, airi-açu, ariri-minim e tucum –, evidenciando, dessa forma, a existência
de uma classificação nativa da natureza e sua apropriação pelo viajante renano
como ponto de referência para o ordenamento da natureza.

os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 351


Considerações finais
Com o exposto, não é difícil notar que os índios se fizeram presentes e foram
fundamentais na produção da história natural do príncipe de Wied Neuwied. A
participação dos indígenas na coleta dos espécimes, na logística da expedição e
na identificação das propriedades das espécies da fauna e da flora foi elemento
constante no relato da expedição. A leitura crítica dos registros da Viagem ao
Brasil permite afirmar com segurança que os nativos foram os principais co-
laboradores da rede de auxílio local da expedição naturalista de Maximiliano.
Além disso, foram eles próprios construtores de conhecimento a partir de uma
cosmovisão, de uma epistemologia não ocidental nativa que, lida pelos colo-
nos, foi traduzida e teve a participação não branca apagada, silenciada. Esse
epistemicídio, sabemos, é uma das faces estruturais da opressão colonizadora
ainda presente em diversas sociedades, bem como na brasileira. No entanto, é
preciso lembrar que os nativos participaram numa condição de subordinação,
de opressão e de desigualdade condicionada não apenas pelas políticas indige-
nistas da época, pautadas no trabalho compulsório e na retomada da escravi-
dão, mas pela força da colonialidade do poder e do saber.
Ainda assim, se considerarmos a possibilidade de produzir conhecimento
mesmo em situação de extrema opressão – obviamente um conhecimento “pa-
latável ao homem branco” e devidamente selecionado pelos nativos – como
outra faceta que a ação da colonização tratou de apagar, há ainda tantos outros
aspectos de potente forma de resistência e sobrevivência, modos de vida, cos-
tumes e cosmovisões nativas em jogo nas histórias a serem recontadas. Com
uma proposta de reflexão decolonial, espera-se ter sido possível demonstrar
não somente a presença e participação dos índios na composição dos inventá-
rios da história natural oitocentista, mas também a necessidade de retomada
do patrimônio epistemológico dos povos indígenas, inserindo-os definitiva-
mente no conjunto geral dos atores que produziram o que se convencionou
chamar de ciência moderna.

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os “ h a b ita n t es or ig in a is” de porto s e g u ro n a v i ag e m ao b r a s i l . . . 355


Uma breve análise da circulação das fake
news na pandemia da Covid-19

Ykaro da Cruz Pereira

Introdução
Nos últimos anos, temáticas como a circulação de fake news, desinformação
e pós-verdade têm sido cada vez mais recorrentes na mídia jornalística, aca-
dêmica e em discursos políticos. Essa discussão tem ganhado vertiginosa im-
portância na medida em que a difusão das informações entre as pessoas tem
aumentado e não se limita mais àquilo produzido pelas mídias tradicionais,
jornalistas profissionais e especialistas nos assuntos abordados. Além disso,
destacam-se a velocidade desse espalhamento e o alcance que essas informa-
ções podem obter em um contexto de popularização crescente da internet e
das redes sociais, fazendo com que um grande número de pessoas possa tomar
atitudes informadas em bases falsas.
A internet, particularmente, possui uma característica que a difere fun-
damentalmente de outros meios de comunicação de massa – como o rádio
e a televisão –, que é proporcionar um alto grau de interatividade entre o
emissor e o receptor da mensagem, potencializando uma ruptura com a di-
nâmica comunicacional tradicional. (BRAGA, 2018, p. 203-204) Unindo isso à
possibilidade da manutenção do anonimato do emissor, a internet torna-se
um campo fértil para que as notícias falsas se reproduzam e, por vezes, criem
situações que substanciam crises no mundo real, afetando a vida de pessoas e
instituições, causando perturbações sociais e buscando desconstruir de forma
deliberada e ilegítima os conhecimentos científicos, baseados no rigor teórico-
-metodológico.

357
A exemplo disso, pode-se destacar o bombardeio diário de notícias falsas
referentes ao novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador da doença
Covid-19, que foi decretado como pandemia no dia 13 de março de 2020 pela
Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesse contexto, existe a possibilidade
de as populações serem atingidas por uma nova pandemia: a desinformação.
Esse fenômeno foi alertado pela OMS, que descreveu como “infodêmica”
a superexposição de informações, verdadeiras e falsas, sobre uma doença.
(GIMÉNEZ et al., 2020)
A disseminação de fake news1 na “era da informação”, em que “pseudofa-
tos se fazem passar por fatos” (LEVITIN, 2019), pode ser compreendida pela
análise de um fenômeno contemporâneo denominado por pesquisadores do
comportamento social de “pós-verdade”. A pós-verdade tem a ver com a ma-
neira como as pessoas discernem o que é real e o que é falso. É, portanto, uma
verdade contextual que não se preocupa, no campo das informações, com refe-
rências a fatos e verificações objetivas e não tem interesse em confirmações de
fontes, pondo em xeque a validade do que, normalmente, pode ser considerado
confiável – seja a ciência, a academia ou a imprensa livre – ao colocar de lado
a evidência, o pensamento e a análise crítica em favor da emoção, valorizando,
assim, a intuição pessoal como base para suas ações e julgamentos. (DUNKER,
2017; HEZROM; MOREIRA, 2018) Dessa forma, a percepção de cada um sobre
os fenômenos passa a ser a verdade, independentemente de essa percepção ter
referência factual ou não.
No entanto, a pós-verdade traduz o discurso do que seria uma “verdade útil”,
que possui uma finalidade prática, de ser consumível e consumida, de ter fácil
circulação, de ser publicitária e alimentar as mídias (TIBURI, 2017), podendo,
dessa forma, implicar cenários políticos, morais, institucionais e da vida civil.
O presente estudo tem como finalidade trazer à discussão os malefícios
provocados pela difusão de notícias falsas e seus possíveis danos sociais no
contexto atual, em que o espalhamento delas se potencializa por razão da
popularização da internet e das mídias sociais. Destaca-se aqui, sobretudo, a

1 Aqui, a compreensão do que é fake news vai além da sua tradução direta – notícias falsas. Trata-se
de um fenômeno de tendência internacional, partilhando da descrição de Braga (2018, p. 205), em
que há disseminação, por qualquer meio de comunicação, de notícias sabidamente falsas com o
intuito de atrair a atenção para desinformar ou obter vantagem sobre outrem – política ou econô-
mica, por exemplo.

358 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


difusão da desinformação2 no contexto da pandemia da Covid-19, até então
sem precedentes em muitos setores da vida social.

Infodemia
O termo “infodemia” remete ao grande aumento no volume de informações
associadas a um assunto específico que podem se multiplicar exponencialmen-
te em pouco tempo devido a um evento específico, como o caso da pandemia
do novo coronavírus. O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus,
declarou na Conferência de Segurança de Munique, em 15 de fevereiro de 2020,
que: “Não estamos apenas combatendo uma epidemia; estamos lutando contra
uma infodemia”. (MESQUITA et al., 2020; PAHO, 2020; ZAROCOSTAS, 2020)
De acordo com a Pan American Health Organization (Paho), escritório re-
gional para as Américas da OMS, a busca por atualizações sobre a Covid-19 na
internet cresceu de 50% a 70% em todas as gerações, e, levando-se em consi-
deração essa busca tão grande por informações virtuais, a OMS tem reforçado
a importância da conscientização das pessoas para procurar fontes confiáveis,
pois, além da saúde física, a saúde mental pode ser afetada pela propagação da
desinformação. (PAHO, 2020, p. 2)
É importante salientar que, além do que é espalhado pelas mídias sociais,
muitas das informações incorretas também são divulgadas pela mídia de massa
tradicional, como a divulgação de imagens chocantes, às vezes descontextua-
lizadas, com o objetivo de chamar atenção do seu público, por vezes, sendo
publicadas em todos os lugares, enviando uma mensagem errada aos seus re-
ceptores e ficando à frente das evidências. (ZAROCOSTAS, 2020)
Nesse sentido, vale destacar que, em uma sociedade que não prima pela
educação de qualidade, a maioria das pessoas não sabe distinguir o que é uma
fonte confiável. Não sabe sequer que é preciso conferir a fonte ou caminhos
para isso, senão aquele baseado no poder da autoridade de quem diz: autorida-
des religiosas ou políticas, por exemplo, como se elas tivessem conhecimento

2 A desinformação, corroborando-se o descrito por Lima e demais autores (2020, p. 3), inclui in-
formação errada, memes e sátiras, mas, perigosamente, um acúmulo cada vez maior de notícias
e mensagens produzidas deliberadamente para enganar, manipular e causar danos por motivos
políticos, financeiros e sociopsicológicos e que encontram caldo de cultivo na “era da pós-verdade”,
do negacionismo científico e da espetacularização da vida.

um a b rev e a n á l ise da c i rc u l aç ão da s fa k e n e ws. . . 359


profundo sobre o vírus gerador da Covid-19, sua forma de disseminação, leta-
lidade e imunidade.
A pesquisa de Mesquita e demais autores (2020, p. 1) relembra que outras
ocorrências de propagação de desinformações em situações relacionadas à
saúde pública trouxeram sérias consequências, como o da publicação de um
artigo fraudulento afirmando, equivocadamente, que a vacina contra sarampo,
caxumba e rubéola causa autismo. Essa desinformação foi amplamente disse-
minada nas mídias sociais e, combinada com teorias da conspiração e outras
crenças, fortaleceu um movimento antivacinação. Por conta disso, em 2020,
muitos países, incluindo Reino Unido, Grécia, Venezuela e Brasil, perderam o
status de países que eliminaram o sarampo em suas populações.
Podemos usar como exemplo de espalhamento de outras fake news his-
tóricas uma série de desinformações que circularam no Brasil da Primeira
República, há um século – muito antes da era da informação –, na epidemia
da gripe espanhola. Há registros de notícias falsas que foram difundidas pelos
órgãos da imprensa carioca e até mesmo por autoridades que auxiliavam na
propagação das chamadas “receitas peculiares”, que prometiam curar a gripe.
(ALBUQUERQUE, 2020) Algumas dessas tais receitas eram comercializadas e
outras podiam ser produzidas de forma caseira. Os jornais publicavam cartas
enviadas por leitores que recomendavam pitadas de tabaco e queima de alfa-
zema ou incenso para evitar o contágio e desinfetar o ar. Posteriormente, “com
o avanço da pandemia, sal de quinino, remédio usado no tratamento da ma-
lária e muito popular na época, passou a ser distribuído à população, mesmo
sem qualquer comprovação científica de sua eficiência contra o vírus da gripe”.
(ROCHA, 2006)
Destarte, é sabido que a disseminação de fake news está longe de ser um
fenômeno recente. A própria história do desenvolvimento da espécie humana
está ligada à invenção de realidades e disseminação de boatos. O que mudou,
portanto, na atualidade, foi a forma, a velocidade, a intensidade e o alcance
das notícias falsas, popularizando-as de uma forma nunca antes vista, sendo,
inclusive, globalizadas, ultrapassando as barreiras dos idiomas, nacionalidades
e até mesmo ideologias.
De acordo com Nogués (2018 apud GIMÉNEZ, 2020, p. 1), existem duas
maneiras de a desinformação circular: 1. intencional, em que há fabricação por
grupos de interesse com objetivos obscurantistas e suscitação de dúvidas; e

360 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


2. não intencional, que pode emergir em como qualquer cidadão pode agir ou
deixar de agir ao receber a informação falsa. Essa segunda maneira de dissemi-
nar a desinformação, que podemos chamar de involuntária, é mais difícil de
controlar, uma vez que está fortemente enraizada na subjetividade. Isto é: tem
a ver com as crenças mais íntimas, ao pertencer a um determinado grupo e com
seus valores. Além disso, tem a ver com as estruturas conceituais a partir das
quais os sujeitos enxergam o mundo, o que envolve diretamente a qualidade do
ensino na atualidade.
Para Flumignan e Lisboa (2020, p. 4), olhando por uma perspectiva jurídica,
“o dano social decorrente da difusão de fake news é constatado pela simples
existência do fato de se proceder à divulgação da mensagem inverídica”. Essa
condição de dano social3 se agrava em uma situação de espalhamento de de-
sinformações referentes à saúde pública numa realidade em que as fake news
se propagam muito mais rápido e possuem um alcance muito maior que as
notícias baseadas em evidências que objetivam desmenti-las.

Da “sopa de morcego” às “pedras no caixão”


Ao surgir um novo vírus, faz-se necessário que haja uma ampla e rigorosa in-
vestigação sobre sua origem natural e primeiro local de manifestação, ação
imprescindível para a prevenção da sua disseminação nas populações, para o
desenvolvimento de vacinas e tratamentos e para o norteamento das orienta-
ções e medidas de saúde pública a serem tomadas. (LIMA et al., 2020)
Fake news ligadas à origem do novo coronavírus já eram espalhadas me-
ses antes da condição de pandemia ter sido declarada pela OMS, provocando
diversos problemas e dificultando, por vezes, a conscientização popular. Uma
das desinformações que repercutiu bastante na internet desde o início do es-
palhamento do vírus, em escala global, foi a conspiração que atrela a origem do
coronavírus a um suposto hábito chinês de comer morcegos. Um dos muitos
vídeos compartilhados sobre isso apresenta uma mulher chinesa sorridente
mostrando um morcego cozido para a câmera e dizendo que ele “tem gosto
de frango”. O vídeo causou revolta e alguns internautas começaram a culpar

3 Entende-se aqui como dano social aquele que causa um rebaixamento no nível de vida da coleti-
vidade, decorrente de condutas socialmente reprováveis. Seus efeitos podem se dar no aspecto
tanto moral e intelectual quanto patrimonial dos indivíduos afetados. (PIRES, 2016)

um a b rev e a n á l ise da c i rc u l aç ão da s fa k e n e ws. . . 361


os hábitos alimentares dos chineses pela expansão da doença. Porém, como
foi afirmado numa reportagem da BBC News (2020), intitulada “Coronavírus
e ‘sopa de morcego’?”, tal vídeo “não foi filmado em Wuhan, nem na China.
Originalmente filmado em 2016, ele mostra a blogueira e apresentadora
Mengyum Wang durante uma viagem a Palau, um arquipélago no oceano
Pacífico”. É sabido também que a sopa de morcego não é particularmente co-
mum na China.
Até então, pelo que se sabe em relação à origem do vírus, pesquisadores
chineses identificaram que o novo vírus é originário de morcegos, assim como
a maioria dos outros coronavírus. Sabe-se que houve o fenômeno de “trans-
bordamento zoonótico”, comum à maioria dos vírus, que fez com que um
coronavírus que acomete morcegos sofresse uma mutação e, assim, passasse
a infectar humanos. (FIOCRUZ, 2020) As pesquisas, portanto, nos permitem
concluir que essa mutação foi um processo natural, e não induzido pelo ho-
mem, mesmo que resultado da relação entre espécies diferentes.
Contudo, em sentido inverso ao que tem sido indicado pelas evidências
científicas, algumas teorias conspiratórias amplamente difundidas em redes so-
ciais afirmam que a pandemia do coronavírus foi “planejada”, especulando-se,
por exemplo, que se trata de uma “arma biológica” criada em laboratórios
ou uma “estratégia de controle populacional”, ou até mesmo sugerindo que
especialistas já sabiam da existência do vírus – ou de alguma vacina para ele
– há anos e optaram por esconder essas “verdades”. (BARATO et al., 2020;
CORONAVÍRUS..., 2020)
À medida que os cientistas começaram as investigações para buscar deter-
minar a origem do novo coronavírus, como afirmam Lima e demais autores
(2020, p. 7), “começaram a circular também diversos rumores e teorias da cons-
piração, incentivados por disputas e interesses geopolíticos, nacionalismo,
racismo e xenofobia”. Nesse sentido, o espalhamento de notícias falsas acerca
de uma condição tão delicada como de uma pandemia pode criar perturbações
sociais que embasam atitudes e sentimentos preconceituosos. E esses senti-
mentos poderão dar origem a medidas que não atingem o problema real de
maneira precisa e adequada, comprometendo a eficácia de quaisquer interven-
ções que visem controlar o revés. (CHUNG; LI, 2020; SHIMIZU, 2020)
A exemplo disso, no Brasil, o discurso que atribui culpabilidade aos chi-
neses pela origem e difusão do vírus, associando-os diretamente à doença,

362 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


antes restrito a comunidades de redes sociais, acabou extrapolando a linha da
informalidade e chegou, inclusive, a ser adotado por autoridades políticas go-
vernistas. (FELLET, 2020) Além disso, o surto do novo coronavírus trouxe à
tona o preconceito contra pessoas de descendência oriental, como no caso em
que uma mulher descendente de japoneses denunciou ter sido vítima de xeno-
fobia enquanto caminhava com o filho, de apenas um ano, em seu colo, numa
rua da cidade de Santos, em São Paulo, sendo agredida com ofensas verbais
por populares (LOVISI, 2020; BRASILEIRA..., 2020), culpando-a pela Covid-19.
Na prática, as mensagens falsas que têm sido espalhadas tendem a possuir
algumas características em comum. Como é exposto por O’Connor e Murphy
(2020), essas mensagens geralmente alegam ter informações importantes e
privilegiadas de, por exemplo, “um jovem pesquisador de Wuhan”, “um espe-
cialista de Taiwan” ou algum determinado médico, mas nenhuma referência
é fornecida para apoiar a suposta fonte. O tom geralmente é alarmista, o que
implica que, se a ação sugerida for ignorada, ocorrerão sérias consequências:
“Faça isso antes que seja tarde demais”. A mensagem pretende provocar pânico
e medo no leitor, o que aumenta a probabilidade de a mensagem ser comparti-
lhada entre familiares e amigos.
No Irã, por exemplo, até o final de março de 2020, quase 900 pacientes en-
venenados por álcool foram admitidos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e
296 morreram. O Irã, como país islâmico, tem severas restrições ao álcool, mas,
nesse caso, os pacientes disseram que as mensagens nas mídias sociais suge-
riam que ações como essa poderiam impedir a infecção pelo novo coronavírus.
(MESQUITA, 2020) Também por causa de rumores que provocaram pânico na
população, iranianos atearam fogo em um hospital que estava atendendo a pa-
cientes com coronavírus. (DAMATO, 2020) Algo parecido aconteceu na Bahia,
na cidade de Campo Alegre de Lourdes, quando populares atearam fogo em
galpão montado por uma construtora para abrigar funcionários contaminados
pela Covid-19. (GALHARDO, 2020)
Em suas observações clínicas, O’Connor e Murphy (2020) atestaram que
a popularização de informações falsas prejudicou as precauções baseadas em
evidências promovidas pelos serviços de saúde, como o distanciamento social
e a higiene das mãos. Além disso,

Pesquisadores têm demonstrado que as teorias da conspiração re-


lacionadas com emergências médicas têm o poder de incrementar

um a b rev e a n á l ise da c i rc u l aç ão da s fa k e n e ws. . . 363


a desconfiança nas autoridades sanitárias. O mesmo pode ser dito
dos ataques pessoais às autoridades de saúde e ao pessoal sanitá-
rio. A desconfiança tem consequências graves na aderência da po-
pulação às medidas de proteção e na adoção de atitudes racionais.
(LIMA et al., 2020, p. 10)

Isto posto, no Brasil e em outros lugares do mundo, verificou-se ser recor-


rente o aumento da violência direcionada a profissionais de saúde por meio
de ataques e insultos em transportes e outras localidades públicas. Ao mes-
mo passo que esses profissionais são chamados de “heróis” pelo trabalho que
realizam na linha de frente da pandemia, enfrentam discriminação ou mes-
mo agressão de uma minoria que os vê como uma possível fonte de contágio,
graças ao preconceito gerado, muitas vezes, pelas informações inverídicas
consumidas pela população ou pela falta de informações úteis. (GONZÁLEZ
DÍAZ, 2020; GUIMARÃES, 2020; SILVA, 2020) Uma portaria do Ministério do
Trabalho brasileiro (BRASIL, 2005) determina que os profissionais de saúde
não deixem o local de trabalho com seus equipamentos de proteção, nem com
as vestimentas usadas em suas atividades laborais, dificultando, assim, a disse-
minação do vírus.
Muitas das desinformações compartilhadas são visivelmente absurdas,
porém acabam impregnando a crença popular e podem causar situações
desprezíveis. A título de exemplo, pode-se citar uma farsa amplamente com-
partilhada no Brasil: uma série de publicações com boatos sobre enterros com
caixões vazios ou com pedras dentro deles circulou nas redes sociais entre os
meses de abril e maio, como maneira de potenciar a pandemia. Assim, infor-
mações falsas, imagens e notícias de anos anteriores, em contextos diferentes,
compartilhadas massivamente, buscavam minimizar ou contestar o cenário de
mortes em decorrência da Covid-19. (LEMOS, 2020, MONNERAT, 2020)
No momento da divulgação dessa mensagem dos caixões e de muitas outras
semelhantes, o Amazonas era o estado com mais casos de Covid-19 no Brasil,
mesmo que as fake news apontassem o contrário, no sentido de minimização
da pandemia. Trata-se de mais uma das muitas publicações em redes sociais
que subestimam a gravidade da situação de crise provocada pela pandemia.
A desinformação foi acentuada e “validada” com o endossamento de publica-
ções de pessoas públicas, sobretudo com forte influência nos meios digitais,
como uma deputada federal que afirmou em uma entrevista televisiva que

364 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


haveria de fato “casos de caixões enterrados vazios em meio à pandemia”,
porém sem apresentar nenhuma evidência que sustentasse sua afirmação.
(LEMOS, 2020)
Esse exemplo traz um panorama didático dos artifícios utilizados na era
da pós-verdade. Trata-se de uma mensagem falsa ilustrada por uma fotografia
sem indicação clara de localização (diz-se na mensagem: “população do ama-
zonas [sic]”, mas onde no estado do Amazonas?), sem conhecimento de fontes
ou veracidade (afirma-se que essa informação foi denunciada pelo “jornal da
band [sic]”, mas em qual dia isso teria sido divulgado? Por que um caso como
esse não teve uma proporção maior de divulgação na mídia nacional?), seg-
mentada de uma “notícia” chocante que busca chamar atenção ou comover
o leitor, causando, dessa forma, indignação e repulsa por um ato que estaria
sendo coordenado por autoridades políticas. Além disso, destacam-se os erros
básicos de escrita, também típicos de publicações feitas por amadores.
Infelizmente, nem sempre desmascarar fake news pode ser uma tarefa fácil,
pois, como é afirmado por Levitin (2019, p. 16): “na internet, a desinformação
se mistura perigosamente com informação real, fazendo com que seja difí-
cil diferenciar as duas. E desinformação é algo promíscuo – pode acontecer
com pessoas de todas as classes sociais e níveis de educação e aparecer em
lugares inesperados”. A internet mudou completamente a dinâmica da leitura
e da aceitação da autenticidade das notícias. Em tempos pretéritos, “livros e
artigos de jornais e revistas passavam a impressão de autenticidade, compara-
dos com um texto impresso por um louco num porão, em sua gráfica caseira”.
(LEVITIN, 2019, p. 15-16) A popularização das mídias trazida pela internet pos-
sibilitou a democratização não só do acesso a conteúdos informacionais, mas
também da sua produção. Dessa forma, o mundo digital diminuiu a busca ri-
gorosa pela veracidade dos fatos, a qual parece não ter mais tanta importância
para a construção e o lastreamento dos discursos, escondendo suas intenções
pragmáticas de domínio, poder, indução e manipulação e enaltecendo a “infor-
mação espetacularizada”. (LIMA et al., 2020)
É importante ponderar que notícias e informações falsas não são os únicos
fatores que podem afetar o combate a crises sociais como um problema de saú-
de pública. Diferentes situações socioeconômicas, precariedade dos sistemas
de saúde e pontos de vista de pessoas próximas – familiares e amigos –, den-
tro das comunidades em que vivem, moldarão tanto o conhecimento quanto

um a b rev e a n á l ise da c i rc u l aç ão da s fa k e n e ws. . . 365


o comportamento dos indivíduos, influenciando em suas ações. Mas, em uma
crise de saúde pública, o acesso a informações precisas, relevantes, confiáveis
e verdadeiras é literalmente uma questão de vida ou morte. (NIELSEN et al.,
2020)

O combate à desinformação e implicações legais


Imediatamente depois que a Covid-19 foi declarada emergência de saúde pú-
blica de interesse internacional, a equipe de comunicação de risco da OMS
lançou uma nova plataforma de informação intitulada WHO Information
Network for Epidemics4 (EPI-WIN), com o objetivo de usar uma série de am-
plificadores para compartilhar informações personalizadas com grupos-alvo
específicos. (ZAROCOSTAS, 2020)
De acordo com a Paho (2020, p. 4-5), entre as medidas adotadas pela OMS,
estão:
1. Organização de parcerias e colaborações para apoiar a resposta à infode-
mia por meio da criação de recursos globais para verificar fatos e controlar
a desinformação, medir e analisar a infodemia, sintetizar evidências,
traduzir conhecimentos, comunicar riscos, envolver a comunidade e am-
plificar as mensagens;

2. Comunicação com mecanismos de busca, redes sociais e empresas digi-


tais – Facebook, Google, Baidu, Twitter, TikTok, Pinterest, entre outras
– para excluir mensagens falsas e promover informações precisas de fon-
tes confiáveis, como os centros para controle e prevenção de doenças dos
Estados Unidos, a própria OMS, entre outros;

3. Publicação e organização de portais, nos quais podem ser encontradas


fontes confiáveis, como o portal exclusivo da Organização Pan-Americana
da Saúde (Opas)/OMS sobre a Covid-19, o portal exclusivo da OMS sobre
a Covid-19, orientações e últimas pesquisas nas Américas (Opas/OMS) e
as Vitrines do Conhecimento do Centro Latino-Americano e do Caribe de
Informação em Ciências da Saúde (Bireme)/Opas/OMS sobre a doença.

4 Rede de Informações da OMS sobre Epidemias.

366 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


No Brasil, o Ministério da Saúde criou uma página, em seu site oficial,5
destinada a desmentir fake news espalhadas nas redes. Ademais, foi criado um
canal com número de WhatsApp para o envio de mensagens da população.
Também foram criados aplicativos pelo Ministério da Saúde, a fim de “facilitar
o acesso a informações sobre o Coronavírus Covid-19 e combater a propagação
de notícias falsas”. (BRASIL, 2020) Dessa forma, nesses aplicativos, há dicas de
prevenção, descrição de sintomas, formas de transmissão, mapa de unidades
de saúde e até uma lista de notícias falsas que foram disseminadas sobre o
assunto.
Existem também outras fontes de fact-cheking (checagem de fatos)
encabeçadas pelas empresas profissionais de jornalismo que auxiliam no con-
frontamento de informações e apuração de fatos e são recomendáveis, como
Agência Lupa, Fato ou Fake – do Grupo Globo –, E-Farsas, Boatos.org, Fake
Check, entre outras. Nessa direção, o Facebook passou a alertar diretamente
seus usuários quando consultarem informações falsas relacionadas ao novo
coronavírus, fazendo com que, quando houver clicks em informações com-
provadamente falsas, as pessoas recebam uma mensagem solicitando que
consultem fontes seguras, como o site da OMS. (FACEBOOK..., 2020)
Existem também outros sítios nos quais podem ser consultadas informa-
ções respaldadas e precisas sobre o coronavírus no Brasil, como o da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outros sites de comunicação oficial das redes
acadêmicas, do Governo Federal e dos estados.
Além disso, medidas mais enérgicas contra o espalhamento da desinfor-
mação estão sendo tomadas ou estudadas, como no caso do estado da Bahia,
que sancionou uma “lei de combate à disseminação de fake news”, preven-
do punição com multas para criação e disseminação de notícias falsas sobre
epidemias, endemias e pandemias. Como aponta Caesar (2020), outros esta-
dos e o Distrito Federal estão indo na mesma direção, estabelecendo regras e
debatendo nas Assembleias Legislativas medidas para penalizar a publicação
de informações falsas. Salienta-se que as pessoas que compartilham notícias
falsas de forma deliberada podem ser responsabilizadas criminalmente, e “isso
sem falar em eventuais infrações penais por divulgar ou compartilhar ‘fake
news’ que admitam a culpa – em que pese na prática ser de difícil visualização”.
(LEITÃO JÚNIOR, 2020, p. 6)

5 Ver em: https://www.saude.gov.br/fakenews.

um a b rev e a n á l ise da c i rc u l aç ão da s fa k e n e ws. . . 367


Em relação ao caso da disseminação de fake news das “pedras em caixões”,
um caso que tomou repercussão nacional foi o de uma mulher que propagou
um desses vídeos em Belo Horizonte afirmando que caixões estavam sendo en-
terrados com paus e pedras quando deveriam ter supostas vítimas da Covid-19.
Foi instaurado inquérito pela Polícia Civil para apuração de “eventual crime de
denunciação caluniosa, além de difamação contra autoridade pública e contra-
venção penal de provocação de tumulto ou pânico. A pena para esses casos [...]
pode chegar a até nove anos de prisão, além de multa”. (MELO, 2020)
Em um debate mais amplo, tramita no Legislativo o Projeto de Lei
nº 2.630/2020, que visa instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade
e Transparência na Internet, popularmente conhecida como Lei das Fake
News. Embora siga controversa, principalmente no que tange ao debate dos
limites da liberdade de expressão, a elaboração de uma lei que auxilie no com-
bate à disseminação de informações falsas na internet poderá ser um marco
importante para a compreensão da importância da divulgação e da busca de
informações baseadas em veracidade, abrindo o leque de uma discussão sa-
lutar sobre a necessidade de uma educação midiática e jornalística no Brasil.

Considerações finais
A pandemia do coronavírus abriu um panorama de aditamento de vicissitu-
des e do surgimento de novas crises nos vários setores da vida social, seja na
economia, na educação, no assistencialismo, nos sistemas de saúde etc. Essa
pandemia também evidenciou uma nova forma de contágio com efeitos virais:
a desinformação. Embora se saiba que a difusão de notícias falsas está longe de
ser um fenômeno novo, a forma, o alcance, a intensidade e os desdobramentos
do espalhamento dessas mensagens possuem proporções nunca vistas como
agora, na “era da informação”. Essa verdadeira infodemia e seus efeitos de dano
social têm feito parte dos noticiários diariamente, assim como têm convocado
a atenção de pesquisadores acadêmicos e de lideranças políticas. Isso indica,
portanto, um novo modus vivendi globalizado e irreversível das sociedades mo-
dernas interconectadas e cada vez mais digitais.
Assim, o pensamento pós-verdadeiro, que se embasa numa espécie de
“messianismo” de discursos contra-hegemônicos, antipolíticos e de “novas ver-
dades”, põe em xeque a validade, a necessidade e a importância da checagem

368 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


das informações consumidas e do crédito científico. Assim sendo, acende-se
um alerta para a urgente necessidade de uma escolarização crítica e de uma
educação midiática que levem os sujeitos à rejeição de mensagens que apre-
sentem características claras e engendradas para o engano e que os direcionem
ao questionamento metódico daquilo que lhes é dito deliberadamente.
Doravante, esse debate se estende para as ações práticas que poderão ser
tomadas pelos governos, seja com medidas restritivas de circulação de falá-
cias pré-fabricadas que possam comprometer a vida democrática e até mesmo
saudável de suas populações, seja com outros mecanismos funcionais de cons-
cientização coletiva que não ultrapassem o limite da liberdade de expressão
inerente à construção de sociedades não censórias e justas.

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um a b rev e a n á l ise da c i rc u l aç ão da s fa k e n e ws. . . 373


Lei Non Refoulement: um discurso
geoestratégico sobre a guerra na Síria
e os refugiados1

Fábio Júnior da Luz Barros


Nadson Vinicius dos Santos

Introdução
Nas primeiras duas décadas do século XXI, fluxos migratórios de pessoas
vêm crescendo visivelmente em todo o globo, sobretudo no norte da África e
Oriente Médio em direção ao continente europeu. Esses níveis de mobilidade
territorial da população aumentaram significativamente, oriundos principal-
mente da Síria, país localizado no Oriente Médio, região da Ásia Ocidental. Ao
longo do presente escrito, demostraremos em números a migração de pessoas
indo da Síria em direção ao continente europeu. Vale ressaltar que, neste arti-
go, trataremos das causas e consequências das migrações provindas de confli-
tos militares na região do Oriente Médio, exatamente na Síria; e observaremos
tal questão eximindo as migrações causadas por fome e/ou fatores naturais,
como também por oscilações no mercado financeiro.
A migração é um fenômeno que esteve presente na história humana até
os dias atuais e muito provavelmente continuará ocorrendo em todo globo.
Segundo Oliveira, Peixoto e Góis (2017), em 2015, as Nações Unidas estima-
ram cerca de 244 milhões de migrantes internacionais no mundo, integrando
esse grupo todos os indivíduos que residiam num país diferente daquele onde

1 Pesquisa financiada, via bolsa, pela Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (Fapesb).

375
nasceram; e segundo o mesmo estudo, dentro desse total explicitado, 19,6
milhões de pessoas eram de refugiados, isto é, 8% de todos os migrantes inter-
nacionais.
Tratando do fluxo migratório atualmente para a Europa, Oliveira e demais
autores (2017, p. 74) explicam que este aconteceu “[...] com maior ou menor
intensidade, permanecem como uma dimensão estrutural das migrações
nas últimas sete décadas”. Estudos vêm mostrando que os movimentos mi-
gratórios do início do século XXI são quase similares ao pós-Guerra Mundial
(1939-1945), quando, de acordo com Oliveira, Peixoto e Góis (2017, p. 76), esti-
ma-se que “tenha havido cerca de 60 milhões de deslocados”. Já em 2014, esse
número chegou a incríveis 59,5 milhões de pessoas, cerca de 22 milhões a mais
em comparação com os anos 2000.
Tanto a migração quanto o direito ao refúgio em outras nações começaram
a ter um debate efetivo juridicamente após a Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), devido à grande onda de pessoas fugindo, principalmente do continente
europeu, em razão da fome, da miséria e outros fatores causados pela citada
guerra. Diante disso, foi debatido, votado e aprovado na convenção das Nações
Unidas o Estatuto dos Refugiados, adotado em 28 de julho de 1951, entrando
em vigor em abril de 1954, como parte da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948. Sendo assim, tal estatuto assegura que seja “direito de qual-
quer pessoa perseguida em seu Estado solicitar proteção a outro Estado, mas
não estabelece o dever de um Estado conceder asilo”. (JUBILUT, 2007, p. 36)
Hoje, a maioria dos emigrantes não foge dos seus países por conta de temores
endógenos, como a fuga por perseguições políticas, religiosas ou por catástrofes
climáticas. Na verdade, conforme Harvey (2014), são temores provocados por
governos exógenos que implantam o caos e a turbulência à procura de fontes
energéticas, em especial o petróleo e, consequentemente, o poder e a riqueza.

Síria: uma breve contextualização sócio-histórica


A Síria é um país localizado no Oriente Médio, como já citado. Parte do seu ter-
ritório é banhada pelo Mar Mediterrâneo. O país também faz fronteiras com a
Turquia, ao norte; Iraque, a leste; Jordânia, ao sul; Israel, a sudoeste; e Líbano,
a oeste (Figura 1). Já na maior parte do seu subsolo encontram-se petróleo e
gás natural. Há dois pontos fundamentais que colocam a Síria como local de

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disputas geopolíticas, que são: o acesso por meio do Mar Mediterrâneo e as
reservas imensas de petróleo e gás natural.

Figura 1 – Território sírio e suas respectivas fronteiras


Fonte: Mapa... (2015).

Todo esse território já esteve sob o domínio de grandes impérios, entre


eles, os persas, os gregos e os romanos. Entre os séculos IV e VII, o território
hoje conhecido como sírio foi governado primeiro pelos árabes, grupo ét-
nico, e, em seguida, pelos sunitas e os xiitas, grupos religiosos. Logo depois,
surgiram as Cruzadas sob o comando da instituição da Igreja Católica sob os
auspícios de reconquistar as terras santas e beatificá-las. Por fim, chegaram
os turcos e conquistaram a região, fundando o Império Otomano, que durou
até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Após esse período, muitos países
se formaram naquela região, inclusive a Síria atual, que ficou sob o comando
da França e da Inglaterra. Por não apresentar, segundo as pesquisas da época,
reservas de petróleo satisfatórias – ou o país não tinha as condições tecnoló-
gicas para a exploração do petróleo –, o minério foi vendido para companhias
petrolíferas estrangeiras, e a Síria foi mantida sob dominação da Inglaterra e da
França até a Segunda Guerra Mundial, sendo que, segundo o site Oriente Mídias
(2019), a França ficou com o norte e os britânicos, com o sul. Então, vemos que:

a Síria é um país cujas fronteiras foram artificialmente traçadas de


acordo com os interesses ocidentais (especialmente, franceses e

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britânicos) após a Primeira Guerra Mundial, e enfrenta há mais de
seis anos um conflito travado entre diversas forças internas e exter-
nas que, em última instância, pretendem levar à fragmentação do
território sírio. (SILVA; SILVA, 2018, p. 80)

A guerra na Síria, hoje, envolve grandes nações que arrogam estar com-
batendo o terrorismo, porém, segundo Junskowski (2017, p. 37), “terrorismo”
é um termo muito complexo, pois “[...] nomear um grupo ou ação utilizan-
do o termo terrorismo, pressupõe julgamento moral e pode ser usado a partir
de interesses ideológicos e políticos para depreciar um indivíduo ou coletivo”.
O conflito a que estamos assistindo na Síria, desde 2011, foi travado por interes-
ses russos e norte-americanos, juntamente com os seus aliados, sob o pretexto
de combater o terror. Contudo, sabe-se que são interesses geopolíticos e geoes-
tratégicos para dominar o território sírio e seus bens, como historicamente é
verificado.
Silva e Silva (2018) demonstram a teoria Rimland2 ou teoria das Frímbrias,
do geógrafo holandês Nicholas John Spykman, inspirada nas ideias da
heartland de H. Mackinder. A teoria do geógrafo holandês trata da importância
do controle da Eurásia. Silva e Silva elucidam que, segundo essa teoria, quem
controlar essa faixa do globo comandará várias passagens geoestratégicas im-
portantes para traçar rotas comerciais, além de estar geograficamente em um
ponto estratégico para usar certas táticas militares. Tal região é considerada o
coração do mundo. Além disso, esse pensamento se alinha com as teorias do
geógrafo britânico David Harvey, as quais explicaremos a seguir.

Imigração: entre a lei e a guerra


Ao analisar a emigração dos sírios com um olhar crítico, é possível perceber
que todas as crises recentes estão intrinsecamente relacionadas às grandes po-
tências econômicas e que geram mortes, segregações de famílias e, consequen-
temente, espoliações de pessoas – é o que, de fato, está acontecendo nos dias
atuais na Síria.

2 Geograficamente, compreende as áreas marginais da Europa, do Oriente Médio, do subcontinente


indiano e do Extremo Oriente, a área de contato entre o litoral da Eurásia e o cordão de mares
marginais que a cercam.

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Harvey (2014), no seu livro intitulado O novo imperialismo, muito embora
trate principalmente das questões relacionadas ao império norte-americano,
também chama a atenção para as causas de ocorrências das guerras na região
do Oriente Médio, provocadas, sobretudo, pelo desejo das grandes nações eco-
nômicas de controlar as regiões detentoras de petróleo. Contudo, destaco a
relação que há entre a guerra e a migração, haja vista que a migração e os pedi-
dos de refúgio seriam, proporcionalmente ao que ocorre hoje, quase nulos se
as guerras no mundo fossem reduzidas, porque o fenômeno da migração, na
maioria das vezes, teve e tem fortes ligações com as guerras que ocorreram e
que ocorrem no globo terrestre.
É sabido que, logo após a Segunda Guerra Mundial, os fluxos migratórios
aumentaram muito, principalmente procedentes de toda Europa com sentido
às Américas; e então, os pedidos de refúgios provenientes do continente eu-
ropeu continuaram em níveis de oscilações até os anos de 1990. Os dados se
acentuam na época da queda do Muro de Berlim (1989), instituindo o fim da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), porque alguns países, como
a Eslovênia, a Croácia, a Bósnia e a Herzegovina, ainda tentavam organizar os
seus devidos territórios e as suas independências, procurando, desse modo, se
desligar da Iugoslávia depois de décadas. Mas foi devido às consequências da
Primeira e da Segunda Guerra Mundial que os europeus resolveram criar leis
para facilitar a migração. Então, em 1951, na Convenção das Nações Unidas
sobre o Estatuto dos Refugiados, decretou-se no artigo 1º, parágrafo 2º:

[...] em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de


janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, reli-
gião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra
fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude
desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se
não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua
residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não
pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

Diante disso, as leis dos refugiados privilegiaram, especialmente, a popu-


lação dos países mais atingidos pela Segunda Guerra Mundial, ou seja, foram
criadas no contexto da emigração dos europeus, e não da imigração dos africa-
nos ou de algumas partes da Ásia. Atualmente, esse estatuto está em discussão
em diversos países, especialmente nos mais ricos, uma vez que muitos deles já

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acenam que irão sair do acordo relacionado às questões dos pedidos de refúgio
presentes no estatuto. Exemplos desses países são a Polônia, a Hungria, entre
outros.3
Todavia, outras leis foram criadas na Europa com o intuito de reforçar a
importância do refúgio, por exemplo: o Tratado de Lisboa, assinado em 2009,
e a Convenção de Dublin ou Sistema de Dublin, assinada em 1990. O Sistema
de Dublin intenta agilizar o processo de candidatura para os refugiados que
procuram asilo político ao abrigo da Convenção de Genebra, que estabelece
critérios para determinar o Estado-membro responsável pela análise de um
pedido de proteção internacional, em princípio, o primeiro país de entrada. Já
o Tratado de Lisboa visa, segundo Sokolska (2020, p. 3), estabelecer “o princípio
da solidariedade e da partilha equitativa de responsabilidades entre os Estados-
-Membros, incluindo as respectivas implicações financeiras”. Sendo assim, na
atualidade, as ajudas são destinadas a pontos críticos para a implementação; no
entanto, segundo a mesma autora: “As taxas de recolocação têm sido inferio-
res ao previsto e as recolocações têm sido aplicadas lentamente”. (SOKOLSKA,
2020, p. 4) Ou seja, há uma tentativa de implementação de políticas em prol dos
imigrantes com destino à Europa que, porém, caminha a passos lentos na bu-
rocracia interna, e alguns países se utilizam dessas burocracias para postergar
ou não ceder refúgio. Por isso, sempre é notificada nos meios de comunicação
a presença de embarcações paradas no Mar Mediterrâneo proibidas de ancorar
em portos europeus. Tais empecilhos ou medo de algumas nações europeias
estão relacionados com a Lei Non Refoulement, que, segundo Oliveira (2017,
p. 32), assegura:

[...] a proteção internacional dos refugiados e proíbe o Estado de


acolhida de aplicar qualquer medida de saída compulsória que
encaminhe o refugiado ao território onde sofra, ou possa sofrer,
ameaça ou violação aos seus direitos fundamentais em virtude de
perseguição, tortura ou tratamentos ou penas cruéis, desumanos
ou degradantes, incluindo a proibição de repulsa contra o soli-
citante de refúgio que intenta permanecer sob a sua jurisdição.
O princípio tem alcance, portanto, sobre o território do Estado,
suas fronteiras e áreas internacionais que lhes dão acesso.

3 Ver: https://www.publico.pt/2020/04/02/mundo/noticia/refugiados-polonia-hungria-republica-
-checa-violaram-lei-tribunal-europeu-1910722.

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A Lei Non Refoulement garante aos refugiados de qualquer parte do globo o
direito a pedir refúgio em qualquer outra nação. Entretanto, para isso aconte-
cer, eles têm que estar sofrendo algum tipo de perseguição, bem como as suas
vidas, liberdade ou direitos fundamentais sob ameaça de violação por questões
de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a determinado grupo social ou
opinião política. Fazem parte dessa lei alguns princípios excepcionais, como,
por exemplo, os refugiados não podem ser extraditados para territórios ter-
ceiros. Além disso, tal lei também condena todas as espécies de instituições
jurídicas que visam à saída compulsória do estrangeiro do território nacional
– deportação, expulsão, extradição, entre outros. Também inclui a proibição
de repulsa do estrangeiro que intenta permanecer sob a jurisdição do Estado
destinado, como a rejeição de refugiados ou solicitantes de refúgio nas fron-
teiras e áreas internacionais que lhes dão acesso. Essas nações que acolhem
pessoas refugiadas devem assegurar o bem-estar dos refugiados, assim como a
integridade física e psíquica dentro das leis cabíveis do seu território. Ou seja,
as leis vigentes dentro de qualquer nação têm que valer para todos igualmente,
sejam refugiados ou não.
Em razão dos diversos contextos, o princípio de Non Refoulement é iden-
tificado como pertencente às três vertentes da proteção internacional da
pessoa humana: o direito dos refugiados, os direitos humanos e o humanitário.
Contudo, as potências mundiais, principalmente as que fazem mais guerras
no mundo, aplicam restrições para entrada de imigrantes vindos de regiões
afetadas por tais conflitos. Essas contenções de entrada, principalmente nas
grandes nações, são classificadas em:

[...] três categorias: de caráter político-institucional, expressas em


políticas migratórias restritivas ao ingresso de migrantes segundo
suas qualificações, ou com limitações temporais à sua permanência;
de caráter físico, concretizadas em muros, cercas, faixas militariza-
das nas fronteiras, zonas minadas do tipo no man’s land, ou as deno-
minadas ‘territorializações’ forçadas, como, por exemplo, campos de
confinamento para migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio;
e de caráter cultural e ideológico, tomando o migrante por alguém
inferior, indesejável ou ameaçador à segurança e ao bem-estar da
sociedade nacional. (OLIVEIRA, 2017, p. 37)

Essas categorias promovem o preconceito e a aversão aos estrangeiros


– imigrantes –, os quais estão imbricados em várias alegações falsas, como

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prejuízos econômicos dos países receptivos; aumento da violência e da prosti-
tuição nesses países; e, nos dias atuais, o medo do terrorismo, concepção social
fundamentada em estereótipos produzidos socialmente, reforçados pela mídia
e aplicados, sobretudo, sobre os povos oriundos do Oriente Médio – ou seja,
essas são as contradições da migração atual.
Durante séculos, todo o Oriente Médio sofreu dois tipos principais de
ataques: primeiramente, como citado, advindos dos grandes impérios e da ins-
tituição católica na tentativa de ampliar o seu território e poder na região e,
na atualidade, por parte dos estados europeus, da Rússia – que tem parte na
Europa e na Ásia – e dos Estados Unidos da América e seus aliados, todos à
procura de fonte energética – o petróleo. Nota-se que, ao mesmo tempo em
que essas grandes nações disputam os territórios no Oriente Médio e avançam
com grandes guerras para combater supostos terroristas dentro dessa região,
as mesmas grandes nações tecem ideologias que desclassificam os fatores étni-
co-culturais dos países alvos de dominação.
Tais teorias arquitetadas no Ocidente, na maioria das vezes, são implanta-
das por meio de filmes hollywoodianos, os quais intentam rotular, através do
fenótipo, a população nativa do Oriente Médio como terrorista mediante algu-
mas das suas produções. Presenciamos essas ideias em filmes como 13 horas: os
soldados secretos de Benghazi (2016), do diretor Michael Bay,4 e, principalmente,
o filme Guerra ao terror, o qual ganhou o Oscar de Melhor Filme em 2010, sob
a direção de Kathryn Bigelow.5 Esses filmes demonstram de forma equivocada
quem pode ser um suposto terrorista. Num resumo didático, os filmes tra-
tam de guerras travadas contra o terrorismo em países do Oriente Médio. Os
protagonistas são soldados ocidentais designados para a região com o intuito
de libertar essas nações das mãos dos terroristas, ressaltando que todos os ter-
roristas desses filmes são interpretados por pessoas com fenótipos autênticos
dos nativos da região. Esse tipo de mensagem reflete diretamente na forma
como os ocidentais irão tratar os refugiados oriundos dessa região.
Nesse contexto, Kristeva (1994, p. 15) explica que “a indiferença é a carapaça
do estrangeiro insensível, no fundo ele parece fora de alcance das agressões
que, contudo, sente com a vulnerabilidade de medusa”. Kristeva compara as
sociedades que recebem os refugiados com um ser mitológico, a Medusa, que

4 Filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gzE_QKIVynU.


5 Filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QIiI0W9nUBE.

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tem como única fraqueza se ver no espelho. Partindo desse pressuposto, os oci-
dentais não querem se misturar, não querem se tornar e nem querem que seus
similares se tornem aquelas pessoas “terríveis” dos filmes. A autora evidencia
que o medo transmitido subjetivamente pelos meios de comunicação para os
ocidentais com relação aos nativos da região do Oriente Médio pode se mani-
festar, muitas vezes, com violência física ou psicológica para com o imigrante.
Por esse motivo, os asilados devem estar amparados sob as leis internacionais e
as leis nacionais dos países que os recebem, haja vista que não é só questão de
asilá-los, mas também de inseri-los na sociedade em que viverão. Sabemos que
a xenofobia está presente em toda sociedade, mas o Ocidente criou um estig-
ma, difundido principalmente por meio da mídia contra árabes6 com base nos
filmes hollywoodianos, como foi exposto, sob os auspícios dos grandes meios
de comunicação global. Desse modo, a xenofobia torna-se um problema muito
sério, uma vez que vivemos em um mundo globalizado, ou seja, a circulação de
informação via internet, rádio e televisão acontece em quase todas as partes do
globo e, através dessas ferramentas, a xenofobia está sendo difundida.
Segundo Oliveira, Peixoto e Góis (2017, p. 83), “[...] entre os 1.046.599 in-
divíduos entrados na Europa em 2015, metade (50,2%) provinha da Síria”. E os
autores seguem afirmando que: “entre as causas destes movimentos recentes
para a Europa, estão os conflitos nos países vizinhos, mas não se esgotam neles”.
Em razão desses fatores, a migração causada por conflitos voltou a crescer no iní-
cio do século XXI, após quase sete décadas. Parte do problema migratório é fruto
de políticas perversas presentes há séculos, ou seja, são ações praticadas princi-
palmente por forças de outras nações atuando dentro de territórios nacionais
alheios com o intuito de desestabilizar essas nações e, assim, garantir as maté-
rias-primas existentes em seu interior, principalmente o petróleo, que se tornou
o maior símbolo das guerras na Ásia Ocidental, como já alertou Harvey (2014).
Os acontecimentos históricos evidenciam que os europeus, desde 1500,
através da exploração global via colonização, buscaram modernizar seus terri-
tórios por meio da expropriação das riquezas dos territórios colonizados. Para
Fanon (1968, p. 77), “[...] em razão desta busca, umas das causas mais exitosa do
continente foi a produção de milhares de cadáveres”. Atualmente, juntaram-se
a essa procura os Estados Unidos da América, a Rússia e seus aliados poderosos.

6 Poderia citar mais estereótipos pejorativos criados sobre vários outros povos, religião etc., mas por
delimitação do tema trato somente da questão árabe.

l e i non r e f oul e m e n t 383


Nesse encalço, Santos (2017, p. 74) lança um olhar crítico quanto às políticas
globais das grandes potências na contemporaneidade, observando que “os paí-
ses mais modernos são os que investem com força no domínio da técnica e,
somente pela violência desta, podem impor sua vontade”. Essas grandes na-
ções mantêm guerras em quase todo o mundo e as consequências de todos
esses conflitos ocasionam as grandes diásporas populacionais pelo globo. Por
exemplo, a guerra na Síria impulsionou, especialmente, o crescimento dos índi-
ces migratórios nas décadas de 2000, como vários autores referenciados nesse
escrito ressaltam. Partindo desse pressuposto, Santos (2017, p. 74) explica que:
“o burguês não altera o mundo, mas utiliza-se do mundo decaído para montar
sua superestrutura”. Nesse sentido, as elites das grandes nações econômicas se
utilizam do legado da ciência para provocar guerras e assentar nesse mundo
caótico sua superestrutura; quando, na verdade, podem alterar esse estado de
coisas a fim de diminuir a violência e o sofrimento do ser humano.
Essas mesmas nações, apoiadas pelas elites locais, se utilizam dessas supe-
restruturas internamente para marginalizar, estigmatizar e fomentar guerras
contra outras nações ou grupos sociais, tornando o mundo um caos gene-
ralizado em que todos são vítimas e, ao mesmo tempo, algozes. Tais fatores
provocam diversos fenômenos negativos, como o aumento da migração e,
consequentemente, a elevação da fome, da miséria e das doenças pelo mundo.
As grandes nações financiam os problemas e, por conseguinte, condenam os
indivíduos oriundos das pequenas nações pelas consequências de tais atos. Ou
seja, as causadoras dos conflitos se beneficiam com toda essa desgraça, prin-
cipalmente na venda de armas, remédios, alimentos, insumos agrícolas e, em
especial, a reconstrução da infraestrutura das nações destruídas pelas guerras.
Essas comercializações são feitas por poderosas corporações privadas ou esta-
tais pertencentes às nações invasoras e poderosas que proporcionam a guerra.
Vale dizer que a maior parte desse processo é legalizada em parlamentos.
O embaixador Rubens Barbosa, consultor de negócios e presidente da
Rubens Barbosa & Associados, referindo-se ao Oriente, disse: “Daqui, só temos
notícia da guerra. Mas os EUA estão investindo na reconstrução da infraes-
trutura de países do Oriente, abrindo estradas, aumentando a produção de
energia e etc.”. (AFEGANISTÃO..., 2009) Em outro ponto, o diplomata Bruno
Rizzi Razente, o qual trabalhou na representação brasileira na Síria desde 2014,
escreveu um artigo para o Oriente Mídias (2017) no qual afirma que “espera-se

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um papel predominante de investimentos iranianos, russos e chineses, espe-
cialmente nos setores de energia e infraestrutura”.
Além disso, segundo o mesmo artigo, há investimentos do Banco Mundial
(BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma das consequências des-
ses problemas, segundo afirmam Spode e Rocha (2018, p. 6), “é a ampliação
de governos que embora com diferenças nos planos táticos ou estratégicos,
se ligam aos mesmos objetivos imperialistas”. Na atualidade, esse infortúnio
é causado por agendas de novas políticas chamadas por David Harvey (2014)
de “neoconservadora”, se sobrepondo ao neoliberalismo. Essas políticas neo-
conservadoras, como expõe o autor, acentuam os fluxos migratórios, que vêm
aumentando nas últimas décadas, sendo que a principal tática é implementar
guerras, principalmente no Oriente Médio, para dominar áreas petrolíferas e
manter-se no poder, além de lucrar com a reconstrução da região.
David Harvey (2014) e Yergin (2012) vêm alertando que os grandes impé-
rios estão sempre fazendo guerras e o seu único propósito corresponde a obter
dinheiro e à continuação do poder. São essas as assertivas que estão por trás
dessas invasões territoriais disfarçadas de guerra ao terror, as quais causam a
espoliação de milhares de pessoas. Devo evidenciar que há outras fronteiras
sangrentas na região do Oriente Médio e, também, com outros tipos de pro-
blemas, por exemplo, religiosos, étnicos etc., mas essas questões não vêm ao
caso neste artigo.
A situação da guerra síria se caracteriza da seguinte forma: por um lado,
o governo local tenta defender e proteger os recursos energéticos, como o
petróleo e o gás, e, por outro lado, as grandes nações buscam a todo custo an-
gariar tais recursos. Todavia, segundo Haesbaert e Limonad (2007, p. 49), “[...]
a construção do território resulta da articulação de duas dimensões principais,
uma mais material e ligada à esfera político-econômica, outra mais imaterial
ou simbólica, ligada, sobretudo, à esfera da cultura e do conjunto de símbolos
[...]”. Os autores nos alertam que as causas dessas guerras não são relativas
somente aos fatores econômicos, mas também culturais, ou seja, há uma ten-
tativa de usurpar os bens materiais, como, por exemplo, o petróleo e o gás
natural, porém há também uma tentativa de implementação de um modo de
vida ocidental na Síria.
É sabido que as grandes potências mundiais estão cada vez mais sedentas
por poder e bem-estar para a população nativa dos seus territórios. Para
conseguir esse bem-estar e manter tal status quo, são capazes de tudo, inclusive

l e i non r e f oul e m e n t 385


mudar toda simbologia cultural síria e, assim, desestruturar as lideranças locais.
Essas nações ricas estão, portanto, a serviço do dinheiro e, consequentemente,
do poder. Nesse sentido, Santos (2003, p. 47-49), afirma: “O dinheiro é, cada
vez mais, um dado essencial para o uso do território [...] a ação territorial do
dinheiro global em estado puro acaba por ser uma ação cega, gerando ingover-
nabilidades, em virtude dos seus efeitos sobre a vida econômica e territorial”.
A partir das ideias de Milton Santos, é possível compreender que o dinhei-
ro pode controlar alguns segmentos, como armas, alimentos ou a exploração
das matérias-primas dentro de territórios estrangeiros, ou seja, o dinheiro está
atrelado a um grande jogo empresarial financeiro-capitalista. Desse modo, as
grandes nações costumam gerir os seus territórios nacionais e invadir outros
por meio do dinheiro e pelo poder acima de tudo. Portanto, essa é a geoestra-
tégia primordial para invadir, tomar e gerir um território.

Considerações finais
As grandes nações, através de suas corporações, dominam outros territórios
sempre com pretextos relacionados à intervenção para manter a paz, contra
ditaduras etc. Entretanto, há interesses coletivos via o Estado e vice-versa.
Essas políticas geram a destruição material e imaterial das pequenas nações
e, consequentemente, a expropriação de pessoas pelo mundo, essencialmente
aquelas que possuem como destino as nações mais desenvolvidas financeira-
mente à procura de uma vida melhor e mais digna.
As intervenções militares proporcionadas pelas grandes nações causa-
ram uma grande destruição econômica, social e cultural em todo Oriente
Médio. No momento em que alguns refugiados oriundos dessa região chegam
à Europa, primeiramente, há uma grande burocracia para deixá-los se fixar.
Segundo alguns nativos, os estigmatizam baseados nas ideias difundidas em
alguns filmes, como os citados, que servem para confundir a população an-
fitriã sobre o que de fato causa a intensificação da migração e dos pedidos de
refúgio, especialmente os provenientes do Oriente Médio para a Europa.
Desse modo, a população em geral fica impossibilitada de saber as causas e
as consequências das guerras que certas grandes nações financiam no mundo.
Tais informações tendem sempre a ficar fora de circulação social para que a

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população não desperte um raciocínio crítico sobre o assunto e, assim, não veja
quem são os verdadeiros autores por trás da intensificação desse fenômeno, o
qual está tornando o mundo moderno um problema social.

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SILVA, A. K. M. de.; SILVA, R. S. A. A Guerra na Síria e a luta pela unidade


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em: http://www.revistageopolitica.com.br/index.php/revistageopolitica/article/
download/202/194. Acesso em: 22 mar. 2020.

SOKOLSKA. I. Política de asilo. Parlamento europeu. Estrasburgo, jan. 2020.


Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/151/
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SPODE, P. L. C.; ROCHA, L. H. M. Resenha do livro “O Novo Imperialismo” de


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YERGIN, D. Petróleo: uma história mundial de conquistas, poder e dinheiro.


Tradução Leila M. U. Di Natale e Maria C. Guimarães. 4. ed. São Paulo: Paz &
Terra, 2012.

388 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Sobre os autores

Álamo Pimentel
Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Doutor
em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-
-doutor em Sociologia do Conhecimento pelo Centro de Estudos Sociais
da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi professor da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) entre os anos de 2003 e 2013, atuou no
Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) entre os anos
de 2013 e 2015 e, atualmente, é professor associado III da Universidade Federal
do Sul da Bahia (UFSB). Lidera o grupo de pesquisa Sociedade, Educação e
Universidade (SEU). Tem experiência na área de educação, com ênfase em
ciências sociais aplicadas à educação.
E-mail: [email protected]

Alicia Araújo da Silva Costa


Artista têxtil. Bacharela em Administração pela Universidade Salvador
(UNIFACS) e bacharelanda em Humanidades pela Universidade Federal do Sul
da Bahia (UFSB). Mestra e doutoranda em Estado e Sociedade pela mesma ins-
tituição. Atualmente, pesquisa as expressões artísticas indígenas de resistência
contemporâneas e as retomadas de saberes e técnicas artefatuais no âmbito do
movimento de afirmação cultural do povo pataxó.
E-mail: [email protected]

Altemar Felberg
Doutorando em Estado e Sociedade pelo Centro de Formação em Ciências
Humanas e Sociais (CFCHS) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Humanidades
e Tecnologias (ULHT), Lisboa. Especialista em Estudos Transdisciplinares em
Cultura e em Gestão Pública pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Especialista em Educação, Desenvolvimento e Políticas Educativas pelo Centro
Integrado de Tecnologia e Pesquisa (Cintep) da Faculdade Nossa Senhora de
Lourdes (FNSL). Graduado em Administração com Habilitação em Marketing
pela Faculdade do Descobrimento (FACDESCO). Membro do grupo Laboratório

389
de Pesquisa Transdisciplinar sobre Metodologias Integrativas para a Educação e
Gestão Social (Paidéia). Integrante do projeto de pesquisa “Perspectivas e desa-
fios da participação em tempos de crise democrática” (CFCHS/UFSB).
E-mail: [email protected]

Ana Carneiro
Graduada em Comunicação Social-Jornalismo pela Escola da Comunicação
(ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra, doutora e
pós-doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-MN) da (UFRJ). Atualmente, é
professora adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Tem expe-
riência em redação e roteiro para ONGs e empresas privadas. Entre outras publi-
cações, é autora dos livros O povo parente dos buracos: sistema de prosa e mexida
de cozinha (E-Papers, 2015), Que é feito de você, Mangueira (Vermelho Marinho,
2016) e Retrato da repressão no campo (MDA, 2010, com Marta Cioccari). Integra
os grupos de pesquisa Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi), Núcleo de
Antropologia da Política (Nuap), ambos no PPGAS-MN/UFRJ, e Dinâmicas
Territoriais, Etnicidades e Ruralidades Contemporâneas (Diterc), no Programa
de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES/UFSB).
E-mail: [email protected]

Betânia do Amaral e Souza


Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). Especialista em Gestão Ambiental pelas Faculdades Integradas de
Jacarepaguá (FIJ) e em Vigilância em Saúde pelo Instituto Sírio-Libanês de
Ensino e Pesquisa (IEP). Mestra em Estado e Sociedade pela Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB). Dedica-se a pesquisas em torno dos temas:
democracia, participação social e políticas públicas. Atualmente, é professora
da Rede Pública de Teixeira de Freitas e bombeira militar, onde, respectiva-
mente, leciona Ciências Biológicas e atua no Setor de Atividades Técnicas do
18º Grupamento de Bombeiros Militar.
E-mail: [email protected]

Caio Rudá
Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Graduado em
Psicologia e mestre em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade pela

390 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da UFSB. Coordenador do Curso
de Aperfeiçoamento em Plantão Psicológico Online (Capp) e do grupo de pes-
quisa Observatório da Formação em Psicologia (ObPsi), vinculados à UFSB.
E-mail: [email protected]

Carolina Bessa Ferreira de Oliveira


Docente na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutora em
Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Educação pela
Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direitos Humanos
pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. Advogada e pedagoga.
Autora do livro Legislação educacional e políticas públicas (Ed. Senac São Paulo,
2018). Coorientadora na pesquisa de doutorado de Likem Edson Silva de Jesus,
no Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES/UFSB).
E-mail: [email protected]

Dayse Batista Santos


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES)
da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Mestra em Ensino e Relações
Étnico-Raciais pela UFSB. Especialista em Gestão Cultural pela Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC) e em Saúde Coletiva com concentração em
Gestão da Atenção Básica pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Educadora popular em Saúde na Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz). Bacharela em Enfermagem pela UESC e discente no curso de
Aperfeiçoamento em Gestão de Programas de Residência pelo Hospital Sírio
Libanês. Compõe grupo de autores da Editora Sanar, com os capítulos “Saúde
Coletiva” e “Saúde da Criança e do Adolescente”, publicados nos anos 2019
e 2020, respectivamente, no livro 1.000 Questões de Enfermagem Comentadas
para Concurso. Contemplada com Prêmio Irmã Dulce 2019 na mostra Bahia,
Aqui tem SUS.
E-mail: [email protected]

Eduarda Motta Santos


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES)
da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Graduada em Terapia
Ocupacional pela Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública e em Serviço

s ob r e o s au tor e s 391
Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSal). Especialista em Saúde
Coletiva pela UFSB, em Gestão da Saúde pelo Hospital Sírio Libanês e em
Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto. Servidora
pública estadual, atuando no Núcleo Regional de Saúde Extremo Sul, Base
Eunápolis. Teve seu artigo “O Projeto Terapêutico Singular em uma Unidade
de Saúde da Família em Porto Seguro: uma atividade de trabalho em debate”,
publicado em 2019 na Revista Ergologia.
E-mail: [email protected]

Elisângela Melo de Menezes


Graduada em Direito e pós-graduada em Direito Constitucional e em Direito
Ambiental, ambos pelas Faculdades Integradas do Extremo Sul da Bahia
(Unesulbahia).
E-mail: [email protected]

Fábio Júnior da Luz Barros


Mestrando em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB), campus Porto Seguro. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado da Bahia (Fapesb). Bacharel em Geografia pela Universidade Estadual
de Santa Cruz (UESC).
E-mail: [email protected]

Fernanda Hellmeister de Oliveira Martins


Jornalista pela Universidade Metodista de São Paulo. Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal
do Sul da Bahia (UFSB), onde pesquisa o Comum em suas variadas dimensões.
Organizou coletivamente o livro Memórias da Mãe Terra (ONG Thydêwá, 2014)
e escreveu em colaboração o livro digital Cultura digital e educação: novos cami-
nhos, novas aprendizagens (Fundação Telefônica Vivo, 2013), ambos disponíveis
on-line.
E-mail: [email protected]

Fernando Santana de Oliveira Santos


Doutorando em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB). Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana

392 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


(UEFS). Bacharel em Direito e licenciado em História pela Universidade do
Estado da Bahia (UNEB). Além disso, é técnico em Assuntos Educacionais pelo
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), campus
Jacobina.
E-mail: [email protected]

Francisco Cancela
Doutor em História. Professor titular do Departamento de Ciências Humanas
e Tecnologias, campus XVIII, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Coordenador técnico do Museu de Arte Sacra da Misericórdia e docente do
Programa de Pós-Graduação em Povos Indígenas, Estudos Africanos e Cultura
Negra (UNEB) e do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade
(PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
E-mail: [email protected]

Gabriela Andrade da Silva


Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Graduada
em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(USP). Mestra e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Experimental da USP. Pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação em
Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade da Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Saúde do Instituto Multidisciplinar em Saúde (IMS/UFBA) e do Curso
de Aperfeiçoamento em Plantão Psicológico Online (Capp/UFSB). Vice-
-coordenadora do grupo de pesquisa Observatório da Formação em Psicologia
(ObPsi), vinculado à UFSB.
E-mail: [email protected]

Herbert Toledo Martins


Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Mestre em Sociologia pela mesma universidade. Doutor em
Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Coordenador do Grupo de
Pesquisa em Conflitos e Segurança Social (GPECS). Membro permanente
do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES/UFSB). Tem

s ob r e o s au tor e s 393
experiência na área de sociologia, atuando principalmente nos seguintes te-
mas: administração de conflitos, drogas, criminalidade, violências, populações
de beira de estrada, recursos de uso comum e comuns.
E-mail: [email protected]

Ilan Fonseca de Souza


Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Doutorando em
Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Coautor
do artigo “Os impactos jurídicos, econômicos e sociais das reformas trabalhis-
tas”, publicado no Caderno CRH, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
E-mail: [email protected]

Ivaneide Almeida da Silva


Doutoranda em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Mestra em História Social pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Graduada em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC). Atualmente, é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia da Bahia (IFBA), campus Porto Seguro, e atua na Licenciatura
Intercultural Indígena nessa mesma instituição. Integra o Grupo de Pesquisa
Desenvolvimento Regional (GPDR/IFBA). Estuda e pesquisa questões sobre
história das mulheres, história e gênero e história do trabalho das mulheres,
em âmbito local e regional, com foco no Brasil republicano.
E-mail: [email protected]

Likem Edson Silva de Jesus


Mestre e doutorando em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul
da Bahia (UFSB), onde realiza pesquisa sobre a relação Estado x periferia, direi-
to à cidade e análise de políticas habitacionais. Especialista em Direito Público
pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Advogado. Integrante dos se-
guintes grupos: Grupo de Estudos e Pesquisas em Desigualdades e Efetividades
(Gepedese); Pluralismos Jurídicos e Usos Emancipatórios do Direito; e
Sociedade, Educação e Universidade.
E-mail: [email protected]

394 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


Márcio José Silveira Lima
Graduado, licenciado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de
São Paulo (USP). Atualmente, é professor da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Publicou os livros As máscaras de Dioniso: filosofia e tragédia em
Nietzsche (Discurso/Ed. Unijui, 2006) e As artes de Proteu: perspectivismo e ver-
dade em Nietzsche (CRV/Humanitas, 2018). Coorganizou Verdade e linguagem
em Nietzsche (Edufba, 2014). Tem artigos publicados no Brasil e no exterior,
principalmente sobre Nietzsche. É editor responsável do periódico Cadernos
Nietzsche, classificado como A1 pela Qualis Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes).
E-mail: [email protected]

Marcos Otavio Bezerra


Antropólogo e professor titular na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Graduado em Ciências Sociais pela UFF. Mestre e doutor em Antropologia Social
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
(PPGAS-MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Realizou está-
gios de pós-doutorado na École Normale Superieur e École des Hautes Études
en Sciences Sociales, em Paris. É professor do Departamento de Sociologia
e Metodologia das Ciências Sociais e do Programa de Pós--Graduação em
Sociologia. É pesquisador de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), categoria 1 D, do Núcleo
de Antropologia da Política (Nuap) e do grupo de pesquisa Fronteiras. É autor
dos seguintes livros: Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais
no Brasil (1995, 2018), Em nome das bases: política, favor e dependência pessoal
(1999) e coautora de Política, governo e participação popular (2012).
E-mail: [email protected]

Matheus Lopes da Silva


Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade. Graduado
no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades com ênfase na área de
concentração em Estado, Sociedade e Participação Cidadã pela Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB), atuando como bolsista em projetos de ini-
ciação científica durante dois anos. Graduando em Direito também pela
UFSB, onde é membro do grupo de estudos em Pluralismos Jurídicos e Usos

s ob r e o s au tor e s 395
Emancipatórios do Direito, vinculado ao Centro de Formação em Ciências
Humanas e Sociais (CFCHS).
E-mail: [email protected]

May Waddington Telles Ribeiro


Antropóloga e documentarista. Doutora em Desenvolvimento, Agricultura
e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde fez estágio doutoral entre 2013 e 2014.
Organizou o Parlamento da Terra, Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (Unced) em 1992 e trabalhou com estratégias de sustenta-
bilidade de comunidades indígenas no Acre. Estudando desenvolvimento e
conflitos ambientais, dirigiu um Programa de Cooperação Acadêmica (Procad)
entre o CPDA e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGANT)
da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Elaborou o dossiê de registro da
cajuína como patrimônio imaterial no Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan) e participa do Grupo de Trabalho (GT) Patrimônio
da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Como professora associada na
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), ajudou a montar o Programa de
Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES), sendo sua vice-coordenadora
e coordenadora de 2017 a 2019.
E-mail: [email protected]

Nadson Vinicius dos Santos


Graduado em Letras/Espanhol pela Universidade Estadual de Santa cruz
(UESC). Mestre pela mesma instituição no Programa de Pós-Graduação em
Letras (PPGL): Linguagens e Representações. Doutor pela Universidade
Federal do Rio Grande (FURG). Atualmente, professor de português/espanhol
no Instituto Federal Goiano (IF Goiano).
E-mail: [email protected]

Naira Reinaga de Lima


Graduada e mestra em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Atualmente, atua como professora de Sociologia na rede estadual de ensino.
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES)

396 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), com a pesquisa “No movi-
mento da Teia: reflexões sobre educação, transformação e movimentos so-
ciais”, sob orientação da professora Dr.ª Valéria Giannella (PPGES/UFSB).
E-mail: [email protected]

Oneide Andrade da Costa


Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) e em
Secretariado Executivo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em
Estado e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade
da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Atualmente, é servidora pú-
blica federal, no cargo de secretária executiva da UFSB, campus Paulo Freire,
em Teixeira de Freitas.
E-mail: [email protected]

Pablo Antunha Barbosa


Graduado em Ciências Sociais e mestre em Etnologia e Sociologia Comparada
pela Universidade de Paris X Nanterre, ambos os diplomas revalidados pela
Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Antropologia Social e Histórica
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Ehess), Paris, com período
de cotutela no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional (PPGAS-MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-
-doutor pela mesma instituição através do programa Bolsa Nota 10, da
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (Faperj). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do
Sul da Bahia (UFSB). É pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Etnicidade,
Cultura e Desenvolvimento (Laced/UFRJ) e do Centro de Investigaciones
Históricas y Antropológicas (Ciha), Bolívia. Principais áreas de pesquisa: etno-
logia indígena, antropologia histórica, história da antropologia, história indí-
gena e do indigenismo.
E-mail: [email protected]

Patricia Ferreira Coimbra Pimentel


Doutoranda em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Membro dos grupos de pesquisa Laboratório de Pesquisa
Transdisciplinar sobre Metodologias Integrativas para a Educação e Gestão
Social (Paidéia) e Dinâmicas Sociais, Etnicidades e Ruralidades Contemporâneas

s ob r e o s au tor e s 397
(Diterc). Mestra em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Professora do Instituto Federal Baiano (IF Baiano), campus Teixeira de Freitas.
E-mail: [email protected]

Rafael Andrés Patiño


Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Graduado em
Psicologia pela Universidad de Antioquia, Colômbia. Doutor em Psicologia
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-doutor pelo Programa de Pós-
-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (Unirio). Professor convidado do Sciences Po Lyon, na França, dentro
do Diplôme d’Établissement sur l’Amérique Latine et les Caraïbes. Membro do
Comitê Científico da Revista Colombiana de Ciencias Sociales. Lidera o grupo
de pesquisa Estudos Interdisciplinares sobre Subjetividade, Relações de Poder
e Violência e é docente do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade
(PPGES) da UFSB.
E-mail: [email protected]

Sandra Adriana Neves Nunes


Doutora e bacharela em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Mestra em Saúde pela Universidade de Greenwich, Inglaterra.
Atualmente, é professora adjunta da Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB), onde atua no Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, ministrando
componentes curriculares relacionados à saúde pública. Integra o grupo de
pesquisa Programa Integrado de Estudos em Saúde Coletiva (Piesc). Faz parte
do quadro docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Estado
e Sociedade (PPGES), orientando estudantes nas linhas de pesquisa “Estado,
Instituições e Governança” e “Sociedade, Cultura e Ambiente”.
E-mail: [email protected]

Valéria Giannella
Professora associada da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Pós-
-doutora pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA) com o projeto:
Metodologias não convencionais para a educação e a gestão social. Doutora em
Políticas Públicas do Território pela Università Iuav di Venezia. Graduada
em Planejamento Urbano e Regional pela Escola de Arquitetura pela

398 estado e socieda de sob ol h a res in t erdi s c i p l i n a r e s


mesma instituição. Líder do grupo de pesquisa Laboratório de Pesquisa
Transdisciplinar sobre Metodologias Integrativas para a Educação e Gestão
Social (Paidéia). Coordenadora do projeto de pesquisa “Perspectivas e desafios
da participação em tempos de crise democrática”, pelo Centro de Formação
em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS/UFSB). Professora permanente do
Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES/UFSB).
E-mail: [email protected]

Ykaro da Cruz Pereira


Mestrando em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB), onde desenvolve pesquisa sobre o espalhamento de fake news e a im-
portância da educação midiática. Especialista em Metodologia do Ensino de
Geografia e Geografia e Meio Ambiente pelo Instituto Pedagógico de Minas
Gerais (IPEMIG). Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC). Atualmente, é professor efetivo de Geografia da Secretaria
de Educação e Cultura da Bahia, no Colégio Estadual Professor Jairo Alves
Pereira, Eunápolis.
E-mail: [email protected]

s ob r e o s au tor e s 399
Este livro foi publicado no formato 17 x 24 cm
Fontes Calluna e Calluna Sans
Impresso na Gráfica PSI7
Papel Off-Set 90 g/m2 para o miolo e
Cartão Supremo 300 g/m2 para a capa
Tiragem de 400 exemplares
ana carneiro
Professora da Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB). Graduada em Comunicação Social-
Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Mestra, doutora e pós-doutora
pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional (PPGAS-MN/UFRJ).

rafael andrés patiño


Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB). Graduado em Psicologia pela Universidad
de Antioquia, Colômbia, e doutor em Psicologia
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO).

valéria giannella
Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSB). Pós-doutora pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Graduada em Planejamento
Urbano e Regional pela Escola de Arquitetura da
Universidade de Veneza.

likem edson silva de jesus


Mestre e doutorando em Estado e Sociedade pela
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Advogado e especialista em Direito Público pela
Universidade Cândido Mendes (UCAM).

ykaro da cruz pereira


Mestrando em Estado e Sociedade pela
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Especialista em Metodologia do Ensino de
Geografia e Geografia e Meio Ambiente pelo
Instituto Pedagógico de Minas Gerais (IPEMIG).
Licenciado em Geografia pela Universidade
Estadual de Santa Cruz (UESC). Professor da rede
estadual da Bahia.
“[O] afastamento analítico da visão do Estado como uma
entidade abstrata dá lugar, no conjunto dos artigos, a uma
abordagem que valoriza sua compreensão a partir de olhares
sobre seu funcionamento ordinário. Observa-se, nesse sentido,
o modo como instituições estatais, políticas públicas, agentes
públicos e ideias políticas, entre outros aspectos, se inscrevem
no dia a dia e, desse modo, contribuem para a definição das
condições de existência de pessoas e coletividades como
usuários do serviço público de saúde, povos tradicionais,
Movimento dos Sem Terra, artesãos e jovens indígenas,
estudantes de escolas públicas, jovens rurais, mulheres grávidas,
populações ciganas e moradores das beiras de rodovias, entre
outros. A atenção ao modo como as instituições, os agentes e
as ações estatais existem em termos práticos para as pessoas
permite ir além da visão do Estado descrita nos documentos,
regulamentos e discursos oficiais. Nesse sentido, nos casos aqui
abordados, vemos emergir expectativas, conflitos, sentimentos
e efeitos associados ao poder do Estado dificilmente captáveis
se não se leva em conta o significado efetivo que este, em sua
condição multifacetada, adquire para as pessoas e grupos
sociais”. (Trecho do prefácio)

Marcos Otavio Bezerra


Antropólogo, professor titular da Universidade Federal Fluminense (UFF)
e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e do Núcleo de Antropologia da Política (Nuap).

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