Caboclos e Cosmopolíticas
Caboclos e Cosmopolíticas
Caboclos e Cosmopolíticas
Resumo
A partir do culto aos caboclos em terreiros de candomblé no recôncavo baiano, reflito sobre as
dimensões cosmopolíticas de suas práticas, pensando como determinadas disposições espirituais
mobilizam ações de rexistência às capturas de projetos de transformação dos territórios e
identidades. Para pensar os tipos de engajamentos criativos que quero enfatizar, experimentei
chamá-los “feitiços rexistenciais”. Compreendendo-os enquanto uma possibilidade de tecnologia
afro-confluente que permite viver pluriontologias e viver uma não dissolução da existência em
formas de resistir específicas. Sendo o ato de existir já contendo o resisitir, inspirado nos saberes
relatados por Nego Bispo, discuto as confluências e os deslocamentos conceituais operados na
cosmopolítica. Assim, reflito sobre perspectivas de práticas e pensamentos abordando-as enquanto
avessas, como uma fractalidade de atr[avessa]mentos, reforçando a ideia de fluxos. Essa
perspectiva nos possibilita pensar a noção de territórios desvinculada apenas da questão da terra,
ligando-se a retomadas de formas de vida. Permite também, seguindo o pensamento de José Carlos
dos Anjos - na proposição de uma filosofia política da religiosidade afro-brasileira - pensar o culto
aos caboclos enquanto um modelo rizomático de encontro das diferenças que rexiste às capturas
da identidade, abordando-as desde a encruzilhada. Nesse sentido, mobilizo a capacidade de
enfatizar a Anunciação das formas de vida que rexistem e que empreendem ações necessárias para
a continuidade da vida no ato de posicionar-se através de ações cosmopolíticas. Operam assim,
através da invocação, reativando a possibilidade de outras agencias e perspectivas que expressam
um campo pulsante de práticas e que conjugam ações de humanos e não-humanos, mas que
principalmente, formulam suas propostas em relação à possibilidade e presença de um futuro
colocado em outras temporalidades. Postulam então alternativas possíveis, porque apontam para
um futuro que já aconteceu e porque se comunicam com a concepção de que o futuro é Ancestral,
como nos diz Ailton Krenak.
Palavras-chave: culto aos caboclos, rexistência, encruzilhada, cosmopolítica
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Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina.
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No caso etnográfico que orientou a maior parte das reflexões, a configuração familiar
consanguínea da zeladora do terreiro e a manutenção da rede de cuidados e afeto mobilizada
implicava o trânsito constante de aproximadamente 20 pessoas, distribuídas em 4 casas, núcleos
familiares distintos, mas correlacionados (incluindo filhos (as), cônjuges e netas), e que têm no
terreiro-casa um ponto de convivência do qual não puderam se ausentar. Soma-se o fato de que
algumas obrigações rituais foram mantidas durante o período, com a redução de público externo,
mas conjugando a presença da família consanguínea, família-de-santo do terreiro, juntamente com
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Lá na mata tem um pau chamado tapicuru, debaixo dele mora a cobra chamada
surucucu, se ela morder não me mata, se ela matar não me come.
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Caboclo índio, ajoelhado na jurema, pedindo força pra Deus lhe ajudar
O termo “caboclos”, no universo das religiões afro-brasileiras, abarca um conjunto de
entidades espirituais com características indígenas e regionais. Embora se refira semanticamente à
mistura entre indígenas e o branco colonizador, e nesse sentido torne-se uma categoria que
historicamente articula concepções teóricas do campo da “mestiçagem”, no contexto do candomblé
o termo adquire outro valor. Atentando ainda o fato de que no campo teórico da antropologia das
religiões afro-brasileiras a sua expressão foi geralmente compreendida dentro do escopo teórico do
“sincretismo”, pretendo aqui apontar um primeiro deslocamento possível, que se refere a uma
dimensão da identidade.
Assim, utilizo pressupostos de uma teoria da contramestiçagem (Goldman 2015, 2017)
para compreender os seus modos de ajuntamento, orientando-me pela concepção de que a interação
entre distintas práticas religiosas não “supõe que o destino inelutável de qualquer agenciamento
entre diferenças seja a homogeneidade, quer essa se manifeste por depuração e purificação, quer
por mistura e fusão” (Goldman 2017: 15), elaborando uma proposta de compreensão que não se
reduza a um modelo homogeneizante como resultado de uma mistura.
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Argumentei em outro trabalho (Silva no prelo) sobre uma possibilidade de se pensar sobre
o repertório (Taylor 2013) do culto aos caboclos nos terreiros, em uma chave homóloga à
transformação de “índios misturados” em “regimados” (Carvalho 2011), mobilizando um
engajamento na transformação do significado de uma categoria antes utilizada para designar o
resultado da “mestiçagem”, ou seja, de “índio misturado” para uma nova identificação através da
performance ritual, compondo um “índio performado”.
O caboclo Sete Flechas afirma: “eu sou um índio!”. A partir da sua manifestação, a entidade
mobiliza um propósito de recuperação da indianidade, acionando rupturas das unidades fundantes
da identidade no mundo ocidental. O deslocamento aqui opera não apenas no campo conceitual,
tensionando a categorização de “índio misturado”, mas também ontológico, porque deve
apresentar-se no ritual. Assim, atribuo a esta performance o potencial de criar um mundo no qual
se realiza um “processo de reconstrução da indianidade”, a afirmação de uma (id)entidade espiritual
e também cosmopolítica, no sentido em que se refere a uma nova ontologia, um cosmo, que difere
do reconhecimento da política do que seria um “índio”.
No entanto, pretendo aqui valer-me de outros pressupostos para seguirmos, compreendendo
que a entidade que estamos pensando é índio porque é caboclo, mas por ser caboclo também
poderia ser boiadeiro ou marujo, que não é índio, mas vem como caboclo, enfatizando assim uma
possibilidade de diferenciação.
Uma das compreensões para o culto aos caboclos nos candomblés propõe a possibilidade
do encontro entre africanos e indígenas ainda no período da colonização e o estabelecimento de
uma aliança. Em base a ritos centro-africanos de culto aos ancestrais territoriais, se reconstruíram
cosmologias e epistemologias na diáspora. Na impossibilidade de se cultuar os ancestrais que
estavam vinculados à terra, e que, portanto, não puderam deslocar-se (Santos 1995), se realizou
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uma confluência, reformulando as bases do culto em relação aos “donos da terra” pindorâmica, os
indígenas. Tiganá Santana (2020, comunicação oral) oferece uma importante compreensão desse
encontro:
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(...) os seres e as ideias que povoam esses saberes não são pensados como se
existissem em estados fixos, mas justamente sempre em modulação. De tal modo
que tudo pode aparecer de diferentes maneiras ou, para ser mais preciso, de que,
para esses saberes, o ser só pode existir aparecendo de diferentes maneiras.
(Goldman 2021: 18)
Essa modulações se referem não apenas a possíveis “viradas” entre entidades ou nações
(Anjos 2006; Goldman 2006), controladas por especialistas das tecnologias ancestrais de mediação
dos dispositivos espirituais, mas também a um ser-sendo (Malomalo 2018), que é o mesmo tempo
uma coisa e outra. Nesse sentido, Aragão (2016) expressa um tipo de relação existente na
manifestação das entidades, em fluxos nas biografias de seus rodantes, ao afirmar que “ser rodante
é ser com-os-outros”.
Na minha dissertação (Silva 2018), escrevi sobre um momento ritual, em que me foi solicitado
que permanecesse à porta do barracão, sustentando um pano branco, para evitar que um caboclo
capangueiro saísse do terreiro, pois seria perigoso que ele se metesse nas matas e não pudéssemos
encontrá-lo. Associei este acontecimento a outro momento parecido, em que um caboclo havia
escapado e a pessoa, que sem sucesso tentou detê-lo, perguntava de modo retórico “como se segura
o vento?”, refletindo assim sobre uma possibilidade de tornar visível o invisível, mantendo ainda
características do invisível na visibilidade.
Eugenio Barba (1995) aponta que em Bali, o termo usado para descrever a
presença do ator é Bayu, que significa “vento” e se refere à distribuição correta de
energia. Traçando um paralelo com os caboclos, podemos então dizer que, se o
vento possui a qualidade de não poder ser segurado, então a metáfora age
projetando esta característica aos caboclos, assim paradoxalmente a manifestação
do caboclo no corpo do rodante se caracteriza também pela sua imaterialidade
(Silva 2018: 147).
Composições de territorialidades
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A “aldeia” dos caboclos é uma composição em atravessamento que liga diversos domínios
fisicamente separados através de uma relação. Aragão e Rabelo (2016) tratam da questão espacial,
considerando que “o espaço é justamente o plano em que diferenças podem se encontrar ou se
conectar enquanto diferenças, sem serem neutralizadas: resolvidas a priori por uma perspectiva de
síntese futura ou reduzidas a um passado original”. Nesse sentido, os autores refletem sobre os
tipos de espaço (e de corpos) que são feitos através das relações entre as entidades, como questão
de convivência e concluem:
O espaço, além disso, se apresenta como algo composto, tanto no sentido, [...], de
que é produzido, quanto no sentido de que é formado de diferentes partes que se
agregam. Estas podem ser lugares relativamente autônomos, mas interligados, ou
nichos, aposentos, montagens temporárias (que garantem, por exemplo, a
separação entre o tempo do caboclo e o do orixá), ou estruturas permanentes
ligadas por caminhos, portas, entradas mais ou menos controladas, zonas visíveis
e áreas ocultas, apenas sugeridas ou indicadas pelas primeiras. Talvez mais
significativo, neste tipo de composição, contínuas subdivisões permitem que
diferenças entre partes exteriores umas às outras possam ser trazidas para dentro
de cada uma delas. O resultado disso é não apenas a multiplicação das diferenças,
mas uma relativização delas, pois este movimento de divisão impede a
cristalização de diferenças absolutas (2016:24).
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evitar que pudessem seguir o caminho. A situação acabou sendo resolvida, com alguns empurrões,
quando uma mãe-de-santo e um ogã tomaram a frente e firmaram o pé dizendo que iriam passar.
Além de registrar uma situação de intolerância religiosa e confiscação de territórios
existenciais, esse acontecimento nos permite refletir também a partir das suas consequências. Na
definição de Villela (2020: 279), o termo confiscatório “descreve um procedimento aquém do que
descreve a expropriação porque aquele, à diferença desse, não supõe ainda a distinção do sujeito
com o objeto, vítima da expropriação”. Assim, o autor propõe que “o que é confiscado não são
objetos nem meios, é um modo de vida inteiro”, pois, trata-se de pensar “um eu sempre composto”.
Assim, busco elaborar outra reflexão, refletindo a partir das suas consequências e dos efeitos
sobre os que rexistem às tentativas de confiscação de seus territórios. Atentando ao fato de que
mesmo o presente podendo ser entregue na ocasião e em diversas outras, nesse mesmo local, Mãe
Edinha me disse que em algum momento seria preciso procurar outro lugar, porque ali as pessoas
já estavam chegando muito perto.
Escolher um lugar para deixar um presente, uma oferenda, requer um conhecimento e a
mobilização de agenciamentos que envolvem diversos fatores: aceitação ou determinação por parte
da entidade sobre o local, possibilidade humana de acesso ao local escolhido e também uma
modulação da entidade na relação com o território. As matas são o território existencial e potencial
dos caboclos, mas, de algum modo elas são a territorialização da própria entidade e por isso devem
resguardar certas condições para continuarem existindo.
A escolha do local pode estabelecer relações territoriais afetivas, históricas e econômicas, mas
sempre em relação a um cosmos que orienta a decisão. Um elemento importante é que configure
relações de pertencimento com entidade presenteada. As matas pertencem aos caboclos e os
caboclos pertencem às matas, porque ser-sendo um com o outro.
Nesse sentido, é possível confluir com a elaboração de Lewandovsky e Goltara (2020), ao
“imaginar uma teoria-prática da possessão como uma contra-teoria da propriedade”. Deste modo,
no “feitiço rexistencial” operado pelos caboclos, num existir sendo-com-o-território, o
pertencimento é também uma modulação da existência. Conformando assim
relação com a perspectiva dos seres para os quais aquele lugar é uma aldeia ou um
território (Nunes 2019 apud Lewandovsky e Goltara 2020: 77).
Durante uma atividade pedagógica em um terreiro de Santo Amaro, o pai de santo comentou
sobre o passado de seu caboclo. Respondendo “se a entidade já havia narrado histórias de sua vida
carnal?”, ele disse que esta era “A pergunta que se cala!” e que, segundo haviam lhe contado:
antes de seu caboclo incorporar nele, ele já havia se manifestado em uma tia e trabalhado e que
após o falecimento desta o caboclo passou 30 anos sem aparecer, mas como não havia cumprido
sua missão na Terra, voltou a manifestar-se, agora através do referido pai de santo, sendo assim
um caboclo de herança: “são águas passageiras, água que está se passando”.
Esse exemplo nos permite pensar em muitas direções sobre o fluxo temporal da manifestação
dos caboclos e sobre a possibilidade de ser-de-novo com alguém. Desse modo, também
desestabiliza o pressuposto de um sujeito autônomo e indivisível, a partir uma identidade nômade,
em que aquele que foi, é e poderá ser novamente, sendo outro.
Nego Bispo (Santos 2019) ressalta o caráter circular do pensamento contracolonial, numa
manifestação que não tem fim, mas tem “começo, meio e começo de novo”. Esse modo de
existência é também exemplificado na relação geracional - avó, mãe, filha - que vai sucessivamente
se transformando e reflete uma relação com o cosmos, baseada na ancestralidade, ao mesmo tempo
em que aponta para uma sucessão de eventos de rexistência relacionados, que configuram uma
lógica de emancipação confluente.
Leda Maria Martins (2002) elabora o pensamento sobre a performance do tempo espiralar
e aponta que os ritos reterritorializam a ancestralidade, enquanto concepção africana que concebe,
“em um mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os
elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer” (2002: 81), de modo que, nas
espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. Assim, “a ideia de sucessividade temporal é obliterada
pela reativação e atualização da ação, similar e diversa, já realizada tanto no antes, quanto no depois
do instante que a restitui, em evento” (2002: 82).
Então, se abordamos desde corporalidades negras e pensamos o que acontece quando
corpos negros vivenciam experiências e temporalidades indígenas na relação de parentesco ritual?
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E como isso nos direciona ao futuro? Podemos seguir refletindo com essas perguntas e elaborar
modos de pensar outras temporalidades através dos rituais que:
Trazem ao instante, ao átimo da performance uma outra coisa, isso que eu chamo
de transtemporalidade. Hoje, alguém, num terreiro de candomblé, (...) quando
pessoas estão em relação com os tambores, com o cantar, com dançar, com
cromatismos e certos desenhos de pensamentos, com perguntas e respostas (...)
Nesse instante, evocam-se experiências temporais já frequentadas por outras
corporalidades e mesmo por uma outra experiência de historicidade (...). Ao
tempo em que há combinações que ainda não foram visitadas (...), aquilo que não
foi previsto. (...) no instante performativo (...) não são sujeitos pessoas que
engendram sozinhas, como inteligências privilegiadas, essas situações. (...) são as
relação no instante performativo que (...) podem evocar tempos que foram
visitados outrora e podem propor aquilo que ainda não foi visitado. Repetem-se
frequências, palavras e cultivos coletivos (...), mas há algo que não foi repetido.
Repete-se, portanto o irrepetido. (Santana 2020b, comunicação oral).
O feitiço do avesso
Ao fim de uma Festa do Caboclo Sete Flechas, um senhor, amigo do terreiro, saiu dizendo
que iria dormir em sua casa, porque já tinha bebido muito e queria descansar. Tentaram impedi-lo,
dizendo que era tarde e que ele dormisse ali mesmo, mas ele insistiu e saiu. Fui dormir sem dar
muita atenção ao fato. No dia seguinte, ao despertar, fiquei surpreso em ver o mesmo senhor
dormindo em uma esteira em um canto do barracão. Perguntei à Mãe Edinha o que havia acontecido
e ela respondeu que ele tinha saído bêbado e pegou o sentido errado do caminho e acabou indo
parar na Vitória, um bairro razoavelmente distante do local da festa. Afinal, quando se deu conta,
retornou e acabou dormindo ali no terreiro mesmo.
Quando o senhor acordou, o pessoal fez brincadeiras com o acontecimento, ao que ele
somente respondia “mas, rapaz!” e ria junto. Quando lhe perguntei o que havia acontecido, ele me
disse: - Foi a caipora! Eu saí daqui e escutava “por aqui, é por aqui” e fui indo na direção. Quando
eu cheguei lá na Vitória, um homem me perguntou pra onde que eu ia e eu disse que ia pra Caixa
d´água, ai ele falou, “então pode voltar tudo, porque você tá indo por lado errado”. Mas, rapaz! Foi
a caipora que me chamou. Mas é porque, quando a gente sai assim, no escuro, tem que colocar a
camisa do lado avesso, pra caipora não te enxergar, senão ela te vê e te engana.
Este é o tipo de contra-feitiço que busco evocar ao propor um avesso. Goldman (2021)
aponta que um dos sentidos para “virar” é justamente “pôr do avesso, voltar o lado interior para
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fora”, proponho então que esse sentido do virar permite passar despercebido e escapar como um
vento às capturas e armadilhas que colocam outras direções aos propósitos. Nesse sentido,
concordo com o referido autor, quando propõe uma dimensão deontológica aos debates
antropológicos, colocando os problemas em termos de “como agir nesse mundo que só existe em
sua relação conosco assim como só existimos em relação a ele? Como atuar nesse mundo sem ter
que julgá-lo? O que evidentemente implica um mundo no qual agir e um saber sobre como nele
atuar. (Goldman 2021: 14)
Para finalizar, gostaria de retomar as reflexões realizadas e utilizá-las para pensar o corpo,
a identidade e o tempo como territórios cosmológicos e possíveis relações com a pandemia da
Covid-19. No entanto, não estou delineando uma generalização da relação de adeptos,
comunidades ou mesmo teológica do candomblé com as estabilizações científicas reconhecidas
como possibilidades de contágios virais. Tão pouco poderia afirmar que o modo como as
interlocutoras desta composição etnográfica elaboram a relação com o coronavírus está em uma
chave conceitual totalmente alinhada com as reflexões que proponho aqui.
O que pretendi então foi experimentar a elaboração de uma perspectiva de
atr[avessa]mento, refletindo sobre um conjunto de respostas dadas por pessoas específicas para as
necessidades de continuidade da sua forma de existência, em termos das experiências socialmente
reconhecidas como religiosas, em um momento de emergência de relações pandêmicas. Para isso,
tentei articular deslocamentos conceituais de território e identidade, enquanto possibilidades de
agenciamentos e modulações conectadas a partir do culto aos caboclos. Ao buscar abordá-los desde
a encruzilhada, explorei algumas possibilidades de posicionar-se e mover-se, em que ser-ocupar
um lugar (corpos, territórios e/ou tempos) aparece como modulação da distinção e variação no ato
de existir.
A suscetibilidade à contaminação por covid-19 pode ser pensada em composição com
algumas imagens rituais, mobilizando a lógica da associação de diferenças, a evocação do invisível,
a relação com certos perigos e as modulações do ser em corpo-território. Não o vírus como
ontologia, mas a fenomenologia do contágio (Maldonado 2021), que “es casi tan amplia como lo
son las familias, los grupos humanos e incluso los individuos” (Maldonado 2021: 8).
Como se segura um vento? O vírus pode ser pensado na relação de perigos e proteções.
Para sua entrada é preciso que penetre por aberturas. Nesse sentido, sendo o próprio capitalismo
um sistema feiticeiro (bruxo), de fluxos reorganizadores móveis (Stengers e Pignarre 2005),
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