Resp 1799039 2022 10 07

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Superior Tribunal de Justiça

RECURSO ESPECIAL Nº 1.799.039 - SP (2018/0251472-7)

RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO


R.P/ACÓRDÃO : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. -
ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO
PARITÁRIO. EQUILÍBRIO ECONÔMICO. AUTONOMIA PRIVADA. LEGISLAÇÃO
ESPECÍFICA. CLÁUSULA ABUSIVA. NÃO DEMONSTRADA. BOA-FÉ. FUNÇÃO
SOCIAL DO CONTRATO. EXPECTATIVA DAS PARTES.
1. Cuida-se de ação de cobrança da qual foi extraído o presente recurso
especial.
2. O propósito recursal consiste em definir se a cláusula que desobriga uma
das partes a remunerar a outra por serviços prestados na hipótese de
rescisão contratual viola a boa-fé e a função social do contrato.
3. A Lei 13.874/19, também intitulada de Lei da Liberdade Econômica, em
seu art. 3°, VIII, determinou que são direitos de toda pessoa, natural ou
jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do
País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição
Federal, ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários
serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar
todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao
avençado, exceto normas de ordem pública.
4. O controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos
empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito Privado,
pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área
empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos
integrantes desse setor da economia.
5. A existência de equilíbrio e liberdade entre as partes durante a
contratação, bem como a natureza do contrato e as expectativas são itens
essenciais a serem observados quando se alega a nulidade de uma cláusula
com fundamento na violação da boa-fé objetiva e na função social do
contrato.
6. Em se tratado de contrato de prestação de serviços firmado entre dois
particulares os quais estão em pé de igualdade no momento de deliberação
sobre os termos do contrato, considerando-se a atividade econômica por
eles desempenhada, inexiste legislação específica apta a conferir tutela
diferenciada para este tipo de relação, devendo prevalecer a determinação
do art. 421, do Código Civil.
Documento: 166924461 - EMENTA / ACORDÃO - Site certificado - DJe: 07/10/2022 Página 1 de 2
Superior Tribunal de Justiça
7. Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira


Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra.
Ministra Nancy Andrighi, inaugurando a divergência, por maioria, negar provimento ao
recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Nancy Andrighi, que lavrará o
acórdão. Votou vencido o Sr. Ministro Moura Ribeiro. Votaram com a Sra. Ministra Nancy
Andrighi os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze. Não
participou do julgamento o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Brasília (DF), 04 de outubro de 2022(Data do Julgamento)

MINISTRA NANCY ANDRIGHI


Relatora

Documento: 166924461 - EMENTA / ACORDÃO - Site certificado - DJe: 07/10/2022 Página 2 de 2


RECURSO ESPECIAL Nº 1799039 - SP (2018/0251472-7)

RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO


RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS
LTDA. - ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353

VOTO VENCIDO

CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃO LTDA. – ME (CDTO)


ajuizou ação de cobrança contra INSTITUTO BIOSAÚDE (IB), pretendendo a
condenação deste ao pagamento do montante de R$ 78.217,27 (setenta e oito mil
duzentos e dezessete reais e vinte e sete centavos), consistente no débito oriundo da
prestação de serviços médicos em favor daquela, realizados no Hospital Municipal de
Araucária – PR.

O Juízo de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos iniciais (e-STJ, fls.


220/222).

Irresignado, CDTO manejou recurso de apelação, desprovido pelo Tribunal


de Justiça de São Paulo, nos termos do acórdão proferido pelo Des. MARCONDES
D'ANGELO, que foi assim ementado:

RECURSO - APELAÇÃO CÍVEL - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS -


MÉDICO HOSPITALAR - AÇÃO DE COBRANÇA.. Prestação de
serviços entre empresas da área médica. Contrato travado entre as
partes que possui relação direta com outro contrato, pactuado em
caráter emergencial entre a demandada e a Prefeitura de Araucária
(com dispensa de licitação). Existência de cláusula expressa no termo
afastando a possibilidade de cobrança ou indenização em caso de
ruptura antecipada do contrato. Ausência de abusividade da
disposição contratual, ante a peculiaridade da contratação havida.
Ação julgada improcedente. Sentença mantida. Recurso de apelação
não provido (e-STJ, fl. 266).

Os embargos de declaração interpostos por CDTO foram acolhidos, sem


efeitos modificativos, tão somente para aclarar o julgado (e-STJ, fls. 492/497).
Em seguida, CDTO manifestou o presente recurso especial, com base no
art. 105, III, a, da CF, sustentando, em síntese, violação dos arts. 122 e 422, ambos do
CC/02, porque deveria ser reconhecida a abusividade da Cláusula 10.1 do contrato de
prestação de serviços médicos celebrado entre as partes, segundo a qual a contratada
não fará jus a qualquer remuneração, ainda que por serviços prestados, nem a
qualquer tipo de indenização, qualquer que seja a sua natureza, em caso de resilição
contratual com o ente municipal, por entender que tal disposição consigna vantagem
exagerada que viola os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento
sem causa (e-STJ, fls. 499/513).

Houve contrarrazões (e-STJ, fls. 518/530).

O apelo nobre foi admitido por força de provimento do agravo (e-STJ, fls.
565/566).

É o relatório.

VOTO

A insurgência merece ser acolhida.

De plano vale pontuar que as disposições do NCPC, no que se refere aos


requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os
termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de
9/3/2016:

Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a


decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos
os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

Consta dos autos que CDTO e IB celebraram contrato de prestação de


serviços médicos, sendo que referido negócio guardava relação direta com o contrato
de gestão firmado entre este último e o município de Araucária, eis que a continuidade
da prestação de serviços médicos firmada entre as partes – CDTO e IB – dependia da
manutenção do contrato de gestão do Hospital Municipal daquela cidade.

Ainda, na hipótese de desfazimento do contrato de gestão, por qualquer


modo ou por qualquer razão, a Cláusula 10.1 do contrato de prestação de serviços
previa que CDTO, a CONTRATADA, não faria jus a nenhuma remuneração, ainda que
por serviços prestados, nem sequer a qualquer tipo de indenização, seja qual fosse a
sua natureza.

Noticiado o rompimento do contrato de gestão a partir do dia 11/11/2014,


ainda que prematuramente, por iniciativa do Município de Araucária, houve o
consequente desfazimento do contrato de prestação de serviços médicos.

CDTO então, buscou o recebimento de valores referentes a serviços


prestados no período de 1º/11/2014 a 10/11/2014, equivalente a R$ 70.000,00 (setenta
mil reais), que foi negado pela IB, com fundamento na Cláusula 10.1 do referido
contrato.

Por essa razão, CDTO ajuizou a presente ação de cobrança contra IB,
pretendendo a condenação deste ao pagamento do montante de R$ 78.217,27 (setenta
e oito mil duzentos e dezessete reais e vinte e sete centavos), consistente no débito
oriundo da prestação de serviços médicos em favor daquela, realizado no Hospital
Municipal de Araucária – PR, devidamente atualizado.

A sentença julgou improcedente o pedido inicial e o Tribunal bandeirante, em


grau de apelação, manteve a improcedência da pretensão autora.

No entanto, com a devida vênia, impõe-se a reforma do julgado.

Discute-se nos autos a validade de estipulação que conferia ao contratante –


IB – a possibilidade de nada remunerar à contratada – CDTO – na hipótese de
rompimento do contrato de gestão do Hospital Municipal de Araucária, este, por sua
vez, vinculado ao contrato de prestação de serviços médicos.

Para melhor deslinde da questão, do acórdão recorrido se extrai o inteiro


teor da cláusula 10.1 do referido termo, conforme a seguir transcrito:

Cláusula 10.1. A CONTRATADA tem pleno conhecimento de que foi


contrata para prestar serviços à CONTRATANTE relacionados ao
Contrato de Gestão do HOSPITAL MUNICIPAL DE ARAUCÁRIA, no
âmbito do Município da Araucária, no Estado do Paraná, e concorda
desde já que, caso haja atraso de qualquer pagamento à
CONTRATANTE ou intervenha, rescinda ou encerre, por qualquer
modo, qualquer que seja a razão, o referido contrato de gestão, a
CONTRATADA não fará jus a qualquer remuneração, ainda que
por serviços prestados, nem a qualquer tipo de indenização,
qualquer que seja sua natureza.
(Contrato de prestação de serviços médicos - cláusula 10.1 - folha
194) [e-STJ, fl. 496 - sem destaque no original].
Segundo afirmado por CDTO em seu apelo nobre, a condição lançada na
parte final daquela declaração, segundo a qual esta não fará jus a remuneração
alguma, ainda que por serviços prestados, nem sequer a qualquer tipo de indenização,
fosse qual fosse a sua natureza, em caso de extinção contratual com o ente municipal,
revela vantagem exagerada que viola os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao
enriquecimento sem causa, afrontando os arts. 122 e 422, ambos do CC/02, por se
tratar de condição puramente potestativa. Assim, referida condição deveria ser
considerada não escrita e, portanto, inapta para obstar o recebimento pelos serviços
efetivamente prestados ao IB, dentro do prazo de vigência do contrato entre este e o
Município de Araucária.

Para o TJSP, não há que se falar (em) cobrança suplementar, uma vez
que ausente abusividade ou vício na contratação, tendo em conta que CDTO
pactuou o termo ciente de que se tratava de relação negocial atrelada à outro
contrato, ciente de todos os seus termos, custos, benefícios, condições e
limitações (e-STJ, fls. 496/497).

Além disso, a Corte bandeirante afirmou que

[...] ao revés do asseverado pela embargante não se verifica "in


casu" enriquecimento ilícito da requerida decorrente do contrato.
Repita-se, a autora possuía inequívoca ciência dos termos
contratados, de forma que os serviços efetivamente prestados
encontraram-se todos compreendidos entre aqueles já quitados
durante a vigência do termo, que ocorreu de forma regular e
consoante termos livremente pactuados. Por consequência, não
há que se falar em cobrança suplementar, observados os termos
da cláusula 10.1 supramencionada.
Para que não se alegue nova omissão, aponta-se expressamente
que não resta configurado enriquecimento ilícito de qualquer das
partes, bem como não existe no feito afronta ao artigo 122, do
Código Civil, sendo as cláusulas constantes no contrato pactuado
entre a embargante e o embargado ( documento de folhas 187/195
) lícitas e não contrárias aos bons costumes. Tampouco os
termos contratuais travados estavam sujeitos ao arbítrio de uma
das partes, tendo a parte embargada apenas buscado a
contratação emergencial de serviços médicos hospitalares, estes
prestados pela embargante (e-STJ, fl. 497 - sem destaques no
original).

Inicialmente, na hipótese, o debate travado nos autos diz respeito


exclusivamente à qualificação jurídica e à validade da condição estabelecida pelos
contratantes, ou seja, questões estritamente jurídicas, e não fáticas.

Impertinentes, por isso, as Súmulas nºs 5 e 7, ambas do STJ.

Ultrapassado esse ponto e já ingressando no mérito da questão jurídica em


debate, vale recordar que os negócios jurídicos em geral podem ter sua eficácia
subordinada a certos acontecimentos, por determinação da vontade do agente ou das
partes, acontecimentos esses tradicionalmente classificados como "condições",
"termos" e "modo/encargos".

Condições, de forma sintética, são as disposições acessórias estabelecidas


voluntariamente pelas partes para subordinar total ou parcialmente a eficácia do
ato/negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto.

Podem ser classificadas segundo diferentes critérios. De acordo com o


momento em que se inicia a eficácia do negócio jurídico, são chamadas suspensivas
ou resolutivas. Segundo a natureza do evento indicado pelas partes, diz-se que são
positivas ou negativas. Pela sua conformação ou desconformidade com o ordenamento
jurídico devemos considerá-las lícitas ou defesas. ORLANDO GOMES ensina que em
consideração à causa do evento, as condições podem ser ainda classificadas como
causais, potestativas ou mistas (Introdução ao Direito Civil. 13ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, pág. 391).

O mesmo autor acrescenta que a condição causal é a que depende do


acaso, ou seja, que tem em vista um evento inteiramente fortuito. A condição é
considerada potestativa quando depende da vontade de uma das partes, mas não
exclusivamente do seu arbítrio. Finalmente será mista, quando depende, ao mesmo
tempo da vontade de uma das partes e do caso ou da vontade de terceiro (op. cit., pág.
392).

Mas essas classificações não são estanques. Ao contrário relacionam-se


reciprocamente, sendo possível cogitar, por exemplo, de condições suspensivas
positivas lícitas ou, então, de condições resolutivas positivas defesas.

O art. 122 do CC/02 afirma ser ilícita a condição que sujeita a eficácia do
negócio jurídico ao puro arbítrio de uma das partes, interditando como defesas, em
suma, as condições puramente potestativas.

Art. 122 do CC/02. São lícitas, em geral, todas as condições não


contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as
condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o
negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes
(sem destaque no original).

Uma primeira leitura desse dispositivo legal pode dar a entender que a
sujeição da eficácia do negócio jurídico ao arbítrio de qualquer das partes será, sempre
e em qualquer hipótese, suficiente para qualificar como ilícita a condição assim
estabelecida.

Mas o adjetivo puro, inserido de forma expressa pelo legislador de 2002,


ressalta que nem todas as condições potestativas são defesas, somente aquelas que
sujeitarem o negócio jurídico ao "puro arbítrio de uma das partes".

No caso, não há como acatar a alegação de que a cláusula em questão


encerraria “condição puramente potestativa”.

Conforme ensina SÍLVIO DE SALVO VENOSA, a condição potestativa é a


que depende da vontade de um dos contratantes. Uma das partes pode provocar ou
impedir sua ocorrência. E acrescenta que são ilícitas somente aquelas cuja eficácia do
negócio fica exclusivamente sob o arbítrio de uma das partes, sem a interferência de
qualquer fator externo (Código Civil Interpretado. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, pág.
138).

Dos termos da disposição inserida no ajuste, cuja análise é essencial à


determinação do seu efetivo conteúdo, é fácil ver que nenhuma dúvida resta sobre a
obrigação assumida de prestar os serviços médicos por parte de CDTO e a
contraprestação de remunerar tais serviços por parte de IB. Porém, só no caso de
"atraso de qualquer pagamento à CONTRATANTE", resilição ou encerramento, "por
qualquer modo, qualquer que seja a razão, o referido contrato de gestão, a
CONTRATADA não fará jus a qualquer remuneração, ainda que por serviços
prestados, nem a qualquer tipo de indenização, qualquer que seja sua natureza".

Em suma, na espécie, não há que se falar em cláusula puramente


potestativa quando há correlação com ato de terceiro, no caso o Município de
Araucária.

De tal sorte, não há razão para se dizer de nulidade, pois conforme lição de
CARVALHO SANTOS, a condição potestativa só anula o ato quando afeta a própria
obrigação e não apenas a duração desta (Código Civil Brasileiro Interpretado. Vol III.
5 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1953. pág. 35).

No caso, a condição inserida na mencionada declaração em nada afetou a


própria obrigação. Logo, perfeitamente válida.

Consideradas as circunstâncias fáticas anteriormente assinaladas


(devidamente reconhecidas pelas instâncias de origem), a pecha de potestativa não
pode ser afixada à cláusula 10.1 do contrato em debate, mormente porque aquela
condição resolutiva da eficácia do contrato não dependia de uma simples e arbitrária
declaração de vontade de uma das partes contratantes, mas, sim, da vigência do
contrato de gestão, então firmado entre a Municipalidade de Araucária e a IB.

Sob outra perspectiva, entretanto , analisando o ajuste entabulado pelas


partes à luz da função social e da boa-fé objetiva, não parece razoável, no caso
concreto, tomar como eficaz a estipulação que confere ao contratante – IB – a
possibilidade de nada pagar à contratada, CDTO, na hipótese de desfazimento do
contrato de gestão do Hospital Municipal de Araucária, este, por sua vez, vinculado ao
contrato de prestação de serviços médicos, especificamente no que concerne à recusa
ao pagamento pelos serviços efetivamente prestados.

O Tribunal bandeirante afastou a pecha de ilegalidade da cláusula 10.1 do


contrato objeto da lide consignando que:

[...] não há que se falar cobrança suplementar, vez que ausente


abusividade ou vício na contratação. A recorrente pactuou o termo
ciente de que se tratava de relação negocial atrelada à outro contrato,
ciente de todos os seus termos, custos, benefícios, condições e
limitações.
Ademais, ao revés do asseverado pela embargante não se verifica
"in casu" enriquecimento ilícito da requerida decorrente do
contrato. Repita-se, a autora possuía inequívoca ciência dos
termos contratados, de forma que os serviços efetivamente
prestados encontraram-se todos compreendidos entre aqueles já
quitados durante a vigência do termo, que ocorreu de forma
regular e consoante termos livremente pactuados. Por
consequência, não há que se falar em cobrança suplementar,
observados os termos da cláusula 10.1 supramencionada.
Para que não se alegue nova omissão, aponta-se expressamente que
não resta configurado enriquecimento ilícito de qualquer das
partes, bem como não existe no feito afronta ao artigo 122, do
Código Civil, sendo as cláusulas constantes no contrato pactuado
entre a embargante e o embargado ( documento de folhas 187/195
) lícitas e não contrárias aos bons costumes. Tampouco os termos
contratuais travados estavam sujeitos ao arbítrio de uma das partes,
tendo a parte embargada apenas buscado a contratação emergencial
de serviços médicos hospitalares, estes prestados pela embargante (e-
STJ, fls. 496/497 - sem destaques no original).

Contudo, data venia, tal raciocínio não pode prevalecer.

De início, é assente na doutrina que o contrato é expressão de liberdade


operosa e de realização efetiva dessa liberdade, para o bem particular e em respeito ao
interesse público, a que essa vontade livre deve se subordinar.

Consoante também ressaltado pelos professores NELSON NERY JÚNIOR e


ROSA MARIA DE A. NERY, a autonomia privada

[...] ainda é um dos princípios fundamentais do Direito Civil, mas


já não é um dogma intocável, em razão da necessidade de se
enfrentar o vínculo obrigacional sob seu aspecto objetivo, de
proporção de prestações. Já não basta para a dogmática jurídica
afirmar que o sujeito quis e que quis livremente algo. É
necessário que no contexto daquilo que quis livremente haja
ocasião para que ele possa ter direito de ser compelido a dar,
fazer, ou não fazer algo, nos limites daquilo que era razoável
supor como consequência natural de seu querer. O princípio, que
celebra a liberdade, não é dogma de opressão. Por isso, é
necessário confrontar o princípio da autonomia da vontade, ligado
exclusivamente ao aspecto subjetivo da volição do agente e de sua
declaração, com o princípio da autonomia privada, cujo âmbito de
influência ultrapassa o simples querer e a investigação subjetiva da
regularidade da declaração de vontade, para adentrar nas
consequências do querer, sob o aspecto da transformação efetiva do
mundo fenomênico do Direito, da criação de algo, principalmente no
que se relaciona com a função do princípio, com a constatação da
base objetiva do negócio realizado, ou seja, melhor dizendo,
principalmente, com o que é pertinente ao equilíbrio econômico das
prestações e com o substrato econômico dos negócios, que a
autonomia privada permite que o sujeito realize (Código Civil
Comentado. 11ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2014, pág. 794
- sem destaques no original).

Assim, a função social do contrato assume importante direção norteadora da


liberdade de contratar.

Nesse panorama, CARLOS E. ELIAS DE OLIVEIRA e JOÃO COSTA-NETO


são contundentes em afirmar que a função social é um limite à liberdade contratual,
sendo que os contratos não servem apenas aos interesses dos indivíduos, pois, em
verdade, exercem papel importante para o bem-estar de toda a sociedade (Direito civil
- volume único. Rio de Janeiro: Forense; Método, 2022, pág. 524).

FLÁVIO TARTUCE define o princípio da função social dos contratos como


um princípio de ordem pública - art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil -, pelo qual
o contrato deve ser, necessariamente, interpretado e visualizado de acordo com o
contexto da sociedade. Alertando ainda que, a palavra função social deve ser
visualizada como o sentido de finalidade coletiva, sendo efeito do princípio em questão
a mitigação ou relativização da força obrigatória das convenções (pacta sunt servanda)
[Manual de Direito Civil - Volume único. 9ª ed. São Paulo: Método, 2019, pág. 537].

Bem por isso, como salientam NELSON e ROSA MARIA NERY:

As partes, quando contratam, não celebram, apenas, um negócio


como expressão de atos futuros que devam ser realizados, ou
condutas que se devam suportar: celebram avença de magnitude
empresarial, ou individual, que se torna a seiva vital de suas próprias
atividades e atos, com implicações fundamentais nas consequências
disso para a saúde financeira de suas empresas e de seu patrimônio
pessoal, da circulação de suas riquezas.
[...]
Não se pode descuidar que o negócio bilateral, o contrato, tem
aspectos pontuais e estruturais: uma verdadeira mescla orgânica e
funcional de atos e de atividades, vitais, repita-se, para a saúde
financeira do empreendedorismo de empresas e da subsistência dos
sujeitos que firmam o negócio: o contrato sempre se estrutura, também
sobre uma base econômica, fundante da economia do negócio e da
estrutura de sua base objetiva. Todo e qualquer obstáculo que uma
parte oponha à atividade empresarial da outra; toda ou qualquer
atuação que desminta a expectativa criada no outro, que possa
fazer com que uma parte suporte danos e a outra colha somente
vantagens, cria um nexo de causa e efeito desastroso para a
economia do contrato e faz com que se possa identificar a quebra
do contrato pelo vínculo de lealdade que uma parte construiu com
a outra, tão importante quanto a base subjetiva que entre elas se
estabeleceu, de vontade livre dirigida conforme declarada (
Instituições de Direito Civil. Vol. 1. 2ª ed. São Paulo: RT, 2019, pág.
188 - sem destaques no original).

Segue-se daí que a função social estará em desconformidade quando a) a


prestação de uma das partes for exagerada ou desproporcional, extrapolando a álea
normal do contrato; b) quando houver vantagem exagerada para uma das partes; c)
quando quebrar-se a base objetiva ou subjetiva do contrato etc. (Código Civil
Comentado. 11ª ed. São Paulo: RT, 2014, pág. 796).

Também nesse contexto, FLÁVIO TARTUCE salientou que a eficácia interna


da função social dos contratos possui, dentre outros, o seguinte aspecto:

[...] Nulidade de cláusulas antissociais, tidas como abusivas - para


tal conclusão podem ser utilizados, em complementaridade ao art. 421
do CC, os arts. 187 e 166, II, do próprio Código. A primeira norma
enuncia a ilicitude, por abusivo de direito, havendo excesso contratual
que desrespeita a finalidade social (= função social). A segunda dispõe
que é nulo o negócio jurídico se o seu conteúdo for ilícito (Direito Civil
. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, pág. 540 - sem destaque no
original).

Desse modo, destacando que a norma do art. 421 do CC/02 é de ordem


pública e de interesse social (art. 2.035, parágrafo único, do CC/02), cabe ao
magistrado declarar sua nulidade no caso concreto.

Esta Eg. Terceira Turma já exarou a compreensão de que a relação


obrigacional não se exaure na vontade expressamente manifestada pelas partes,
porque, implicitamente, estão elas sujeitas ao cumprimento de outros deveres de
conduta, que independem de suas vontades e que decorrem da função integrativa da
boa-fé objetiva. Se à liberdade contratual, integrada pela boa-fé objetiva, acrescentam-
se ao contrato deveres anexos, que condicionam a atuação dos contratantes, a
inobservância desses deveres pode implicar o inadimplemento contratual (REsp nº
1.655.139/DF, relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, julgado aos 5/12/2017, DJe de
7/12/2017).
Por outro lado, também é certo que o cumprimento do contrato não pode ser
exigido do celebrante, ‘além do limite em que ele teria consentido em se obrigar’. As
partes, na celebração traçam um limite do sacrifício a que se obrigam (NELSON NERY
e ROSA MARIA DE Andrade NERY. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. 2ª ed. São
Paulo: RT, 2019, pág. 186).

No caso, não é difícil ver que a cláusula 10.1, ora em discussão, extrapola
esse “limite do sacrifício” que se podia ter por razoável na contratação, na medida em
que subtrai da contratante a justa remuneração por serviços efetivamente prestados.

Na espécie, a cláusula 10.1 do contrato entabulado entre a IB e a CDTO, na


parte em que legitima aquele a não pagar esta última pelos serviços efetivamente
prestados no Hospital Municipal de Araucária viola, de forma manifesta, os princípios
da função social do contrato e da boa-fé objetiva, devendo, por conseguinte, ser
reconhecida a sua ineficácia, para que o contrato volte a ser equilibrado e proporcional.

É manifesto o enriquecimento ilícito por parte do IB ao receber do Município


de Araucária aqueles valores devidos pela prestação de serviços realizados pela CDTO
e, ao mesmo tempo, se escusar, com fundamento na cláusula 10.1, a lhe remunerar
por esse mesmo trabalho.

Ainda, é patente a inexistência de motivo juridicamente relevante que


autorize o IB a não repassar a CDTO a quantia descrita na inicial, que corresponde ao
que efetivamente foi prestado por esta no Hospital Municipal de Araucária, no período
de 1º/11/2014 a 10/11/2014.

Nessa toada não pode vingar o fundamento do acórdão recorrido, no sentido


de que não resta configurado enriquecimento ilícito de qualquer das partes, bem
como não existe no feito afronta ao artigo 122, do Código Civil, sendo as
cláusulas constantes no contrato pactuado entre a embargante e o embargado
(...) lícitas e não contrárias aos bons costumes, e que, tampouco os termos
contratuais travados estavam sujeitos ao arbítrio de uma das partes, tendo a
parte embargada apenas buscado a contratação emergencial de serviços
médicos hospitalares, estes prestados pela embargante (e-STJ, fl. 497).

Isso porque, o caráter emergencial do contrato de gestão entabulado entre o


IB e o Município de Araucária, à luz da função social do contrato e considerando as
particularidades da causa, impediria tão somente o pagamento de eventual pedido de
indenização por perdas e danos, em virtude do atraso de qualquer pagamento à
CONTRATANTE ou intervenha, rescinda ou encerre, por qualquer modo, qualquer que
seja a razão, o referido contrato de gestão, não havendo que se falar, portanto, na
recusa pelo pagamento dos serviços médicos efetivamente prestados pela CDTO.

Nem vinga, por outro lado, o simples argumento de que a autora possuía
inequívoca ciência dos termos contratados, porque como bem dizem NELSON e ROSA
MARIA NERY o contrato não pode ser visto como um mero campo de batalhas, mas
como um local em que se respeitem princípios éticos fundamentais (Instituições de
Direito Civil. Vol. 1, São Paulo; RT, 2ª ed. São Paulo: RT, 2019, pág. 365).

Ou conforme salienta JUDITH MARTINS-COSTA, em estudo sobre a


operatividade da boa-fé no processo obrigacional:

(...) É preciso ficar bem claro que a parêmia dura lex, sed lex, cedeu
lugar à necessidade de decidir-se com razoabilidade as situações em
concreto, pois o compromisso maior do estado de Direito é com a
justiça... (A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: RT. 1999, pág.
459).

No caso em tela, nenhuma dúvida de que a disposição contratual que subtrai


da contratante o direito de receber pelos serviços efetivamente prestados implica
evidente abuso do direito e por conseguinte traduz ato ilícito (art. 187, CC/02), além de
flagrante locupletamento indevido (art. 884, CC/02), visto que o titular do direito é que
faz jus a toda a potencialidade econômica dos bens ou direitos integrantes de seu
patrimônio (SÉRGIO SAVI. Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa. O
Lucro da Intervenção. São Paulo: Atlas, 2012, pág. 144).

Na situação, tendo recebido e se beneficiado dos serviços, sem prestar a


necessária remuneração, resulta evidente que o contratante obterá vantagem
exagerada e injustificada à custa da outra parte.

Diante da natureza onerosa do contrato em questão, evidente o desequilíbrio


pela falta da necessária contraprestação ao bem da vida fornecido, daí tornando-se
insustentável esse enriquecimento auferido.

Como ensina MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, reputa-se que o


enriquecimento carece de causa, quando o direito o não aprova ou consente, porque
não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema
jurídico, justifique a deslocação patrimonial (Direito das Obrigações. 12ª ed. Coimbra:
2016, pág. 500).

Por fim, não custa ressaltar que, nos termos do Enunciado nº 26 do


CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil, a cláusula geral contida no art. 422 do novo
Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o
contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de
comportamento leal dos contratantes.

Ante o exposto e pelo mais que dos autos consta merece reforma o acórdão
recorrido quanto ao ponto, para o fim de reconhecer a ineficácia da cláusula 10.1 do
Contrato de Prestação de Serviços Médicos, na parte em que exonera a IB de
remunerar a CDTO "por serviços prestados", por afronta aos princípios da função
social do contrato e da boa-fé objetiva, bem como do enriquecimento sem causa, o que
implica reconhecer a procedência dos pedidos autorais.

Nessas condições, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao recurso especial


para declarar a nulidade da cláusula 10.1, conforme fundamentação supra, e julgar
procedente o pedido inicial, a fim de condenar o IB ao pagamento do montante
correspondente aos serviços prestados pelo CDTO no período de 1º/11/2014 à
10/11/2014, devidamente descriminados na Nota Fiscal de Serviços à e-STJ, fl. 21,
acrescidos de correção monetária e juros de mora, a partir do vencimento da
obrigação, por se tratar de dívida líquida e certa.

Condeno ainda o IB ao pagamento das custas e despesas processuais, bem


como em honorários advocatícios arbitrados em 15% (quinze por cento) sobre o valor
da condenação.
Superior Tribunal de Justiça

CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA

Número Registro: 2018/0251472-7 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.799.039 / SP

Números Origem: 10066232820158260361 20160000482729 20160000636810 201701400972

PAUTA: 16/08/2022 JULGADO: 16/08/2022

Relator
Exmo. Sr. Ministro MOURA RIBEIRO
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. ONOFRE DE FARIA MARTINS
Secretária
Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

AUTUAÇÃO
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. - ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Obrigações - Espécies de Contratos - Prestação de Serviços

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na
sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
Após o voto do Sr. Ministro Moura Ribeiro, dando provimento ao recurso especial, pediu
vista a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Aguardam os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva
(Presidente) e Marco Aurélio Bellizze. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino.

Documento: 161894385 - CERTIDÃO DE JULGAMENTO - Site certificado Página 1 de 1


Superior Tribunal de Justiça

CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA

Número Registro: 2018/0251472-7 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.799.039 / SP

Números Origem: 10066232820158260361 20160000482729 20160000636810 201701400972

PAUTA: 16/08/2022 JULGADO: 27/09/2022

Relator
Exmo. Sr. Ministro MOURA RIBEIRO
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. ROGÉRIO DE PAIVA NAVARRO
Secretária
Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

AUTUAÇÃO
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. - ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Obrigações - Espécies de Contratos - Prestação de Serviços

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na
sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"Adiado para a Sessão do dia 04/10/2022."

Documento: 166023241 - CERTIDÃO DE JULGAMENTO - Site certificado Página 1 de 1


Superior Tribunal de Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.799.039 - SP (2018/0251472-7)
RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. -
ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora para


acórdão):

Trata-se de recurso especial interposto por CDTO – CENTRO


DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS LTDA, com fundamento na alínea "a" do
permissivo constitucional, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
Ação: de cobrança ajuizada por CDTO – CENTRO DIGESTIVO E
TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS LTDA em face de IB – INSTITUTO BIOSAÚDE,
requerendo o pagamento por serviços médicos prestados.
Sentença: julgou improcedente o pedido.
Acórdão: negou provimento à apelação interposta pela ora
recorrente, nos termos assim ementados:
RECURSO APELAÇAO CÍVEL PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS- MÉDICO
HOSPITALAR AÇÃO DE COBRANÇA. Prestação de serviços entre empresas da área
médica. Contrato travado entre as partes que possui relação direta com outro
contrato, pactuado em caráter emergencial entre a demandada e a Prefeitura de
Araucária (com dispensa de licitação). Existência de cláusula expressa no termo
afastando a possibilidade de cobrança ou indenização em caso de ruptura
antecipada do contrato. Ausência de abusividade da disposição contratual, ante
a peculiaridade da contratação havida. Ação julgada improcedente. Sentença
mantida. Recurso de apelação não provido..

Embargos de declaração: opostos pela recorrente em virtude de


omissão, foram rejeitados.

Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 1 de 17


Superior Tribunal de Justiça
Recurso especial: interposto pela recorrente para sanar a omissão
aventada nos aclaratórios, foi provido por decisão monocrática neste STJ,
determinando a devolução do processo à Origem para manifestação acerca da
alegação de enriquecimento ilícito da recorrida.
Acórdão: acolheu os embargos de declaração, nos termos da decisão
deste STJ, para sanar a omissão sem alterar o julgado, nos seguintes termos:

RECURSO-EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


MÉDICO-HOSPITLARES AÇÃO DE COBRANÇA. 1) Acórdão proferido pelo Colendo
Superior Tribunal de Justiça, cassando o acórdão proferido em sede de
embargos de declaração, para que seja sanada omissão referente à alegação de
existência de enriquecimento ilícito da parte demandada. 2) Contrato firmado
entre os litigantes firmado em caráter emergencial, possuindo expressa
dependência direta com outro contrato, pactuado entre o embargado Instituto
Biosaúde e a Prefeitura de Araucária. Ou seja, presente cláusula expressa no
termo afastando a possibilidade de cobrança ou indenização em caso de ruptura
antecipada do contrato. 3) Ausência de enriquecimento ilícito da requerida.
Autora que possuía inequívoca ciência dos termos contratados, de forma que os
serviços efetivamente prestados se encontram todos compreendidos entre
aqueles já quitados durante a vigência do termo, não havendo que se falar em
cobrança suplementar, nos termos da cláusula10.1livrementepactuada. 4) Nova
apreciação dos embargos declaratório, nos precisos termos apontados pelo
Colendo Superior Tribunal de Justiça. Recurso de embargos de declaração
acolhido para sanar a omissão, sem alterar a sorte do julgado.

Recurso especial: suscitou violação aos arts. 122 e 422 do Código


Civil.
Voto do Relator: o Ministro Moura Ribeiro, relator do presente
recurso, votou por conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento para
declarar a nulidade da cláusula 10.1 do “Contrato de Prestação de Serviços
Médicos”, celebrado entre a recorrida e a recorrente, fundamentando-se, em
suma, na violação da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Subsequentemente, pedi vista dos autos para melhor análise da
controvérsia.

Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 2 de 17


Superior Tribunal de Justiça
É o relatório.

Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 3 de 17


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RECURSO ESPECIAL Nº 1.799.039 - SP (2018/0251472-7)
RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. -
ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO
PARITÁRIO. EQUILÍBRIO ECONÔMICO. AUTONOMIA PRIVADA. LEGISLAÇÃO
ESPECÍFICA. CLÁUSULA ABUSIVA. NÃO DEMONSTRADA. BOA-FÉ. FUNÇÃO
SOCIAL DO CONTRATO. EXPECTATIVA DAS PARTES.
1. Cuida-se de ação de cobrança da qual foi extraído o presente recurso
especial.
2. O propósito recursal consiste em definir se a cláusula que desobriga uma
das partes a remunerar a outra por serviços prestados na hipótese de
rescisão contratual viola a boa-fé e a função social do contrato.
3. A Lei 13.874/19, também intitulada de Lei da Liberdade Econômica, em
seu art. 3°, VIII, determinou que são direitos de toda pessoa, natural ou
jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do
País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição
Federal, ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários
serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar
todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao
avençado, exceto normas de ordem pública.
4. O controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos
empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito Privado,
pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área
empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos
integrantes desse setor da economia.
5. A existência de equilíbrio e liberdade entre as partes durante a
contratação, bem como a natureza do contrato e as expectativas são itens
essenciais a serem observados quando se alega a nulidade de uma cláusula
com fundamento na violação da boa-fé objetiva e na função social do
contrato.
6. Em se tratado de contrato de prestação de serviços firmado entre dois
particulares os quais estão em pé de igualdade no momento de deliberação
sobre os termos do contrato, considerando-se a atividade econômica por
eles desempenhada, inexiste legislação específica apta a conferir tutela
diferenciada para este tipo de relação, devendo prevalecer a determinação
do art. 421, do Código Civil.
7. Recurso especial não provido.

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.799.039 - SP (2018/0251472-7)
RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. -
ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora para


acórdão):

O propósito recursal consiste em definir se a cláusula que desobriga


uma das partes a remunerar a outra por serviços prestados na hipótese de rescisão
contratual viola a boa-fé e a função social do contrato.

I.DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO


1. A Lei 13.874/19, também intitulada de Lei da Liberdade Econômica,
em seu art. 3°, VIII, determinou que são direitos de toda pessoa, natural ou jurídica,
essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País,
observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, ter a
garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre
estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito
empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem
pública.
2. Neste sentido, a referida Lei, que destinou seu principal âmbito de
aplicação aos contratos paritários, ressaltou a importância da autonomia privada,
tendo, por conseguinte, incluído no art. 421, do Código Civil a seguinte redação:

Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da


Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 6 de 17
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função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas,
prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade
da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se
paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o
afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis
especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros
objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de
revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e
observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira
excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

3. Desta forma, a Lei 13.874/19 baliza a interpretação dos contratos e


objetiva a criação de um ambiente de negócios favorável à atração de
investimentos e à inovação tecnológica, por meio do fomento à liberdade
econômica e à segurança jurídica. (CUEVA, Ricardo Villas Boas. Função social do
contrato e interpretação dos negócios jurídicos após a Lei da Liberdade
Econômica. In: Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. São Paulo:
Atlas, 2021.)
4. Esta inovação legal reitera o já firme entendimento desta Corte no
sentido de que no Direito Empresarial, regido por princípios peculiares, como a
livre iniciativa, a liberdade de concorrência e a função social da empresa, a
presença do princípio da autonomia privada é mais saliente do que em outros
setores do Direito Privado.
5. Com efeito, o controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas
em contratos empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito
Privado, pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área
empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos integrantes
desse setor da economia” (STJ, REsp 1.447.082/TO, Terceira Turma, j. 10.05.2016,

Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 7 de 17


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DJe 13.052016).
6. Assim, não obstante a liberdade de contratação e a autonomia
privada sejam princípios fundamentais no Direito Civil, eles não são absolutos,
porquanto encontram limites na função social do contrato, na probidade e na
boa-fé objetiva, conforme disciplinou Miguel Reale na Exposição de motivos do
anteprojeto de Código Civil, enviado ao Congresso em 1975.
7. Imperioso, ainda, analisar o contrato à luz deste conjunto de
princípios para somente então depreender se há violação de algum deles que
justifique a intervenção judicial.
8. De forma elucidativa, a jurista Judith Martins-Costa disciplina sobre
o tema:
A afirmação sobre a centralidade do princípio da boa-fé no Direito
Obrigacional não leva a descurar ou a minimizar a relevância dos demais
princípios reitores das relações negociais de Direito Privado: autonomia privada,
confiança, autorresponsabilidade, estes dois últimos se revelando, em rigor
lógico, como a contrapartida necessária ao exercício da autonomia privada. (...).
É por esta razão que no vasto campo dos negócios jurídicos – bem como dos
atos pré ou pós negociais-, os princípios da autonomia privada, boa-fé, confiança
e autorresponsabilidade estão sempre em interdependência escalonada.
Traduz-se, nessa interdependência, um aspecto da díade autonomia/heteromia:
os particulares se dão normas (autonomia), mas (i) assumem a responsabilidade
por seus atos, nos limites predispostos pela ordem jurídica
(autorresponsabilidade); e (ii) o << dar-se as próprias normas>> é conformado
elo direcionamento de condutas (boa-fé) e pela proteção das expectativas
legitimamente suscitadas no alter, destinatário da declaração negocial, pelo auto
de autonomia (proteção à confiança legitimamente gerada pelo ato de
autonomia privada). (MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado:
critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015, págs. 230-231 -
grifou-se)

9. A fim de garantir o respeito a todos estes princípios, esta Corte


Superior tem se posicionado a declarar a nulidade de cláusulas contratuais em
hipóteses especiais.
10. Nestes termos, há jurisprudência neste STJ no sentido de que a

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cláusula que extrapola aquilo que o ordenamento jurídico estabelece como padrão
mínimo para garantia do equilíbrio entre as partes da relação contratual deve ser
declarada inválida. Para a construção deste entendimento, tem sido considerada a
natureza do contrato e suas peculiaridades.
11. À exemplo, esta Terceira Turma já declarou a nulidade de uma
cláusula de contrato de representação comercial por entender que nela havia
desequilíbrio entre as partes que acabava por gerar excessiva onerosidade de uma
em detrimento da outra.
12. Para chegar-se a tal entendimento, foi levado em consideração o
fato de que aquele tipo de relação era regida por Lei própria (Lei 4.886/65) e que
esta tutela jurídica diferenciada decorria do reconhecimento de que uma das
partes, via de regra, ostenta posição dominante em relação a outra. (REsp n.
1.831.947/PR, Terceira Turma, julgado em 10/12/2019, DJe de 13/12/2019)
13. Tem-se, portanto, que um dos imperativos a serem observados
quando da análise de uma cláusula contratual à luz da boa-fé e da função social, é a
existência de equilíbrio entre as partes no momento da estipulação. De fato, a
ausência de equilíbrio entre os sujeitos da contratação, contribui para facilitar a
adoção de comportamentos antijurídicos pela parte mais forte, ensejando, no mais
das vezes, locupletamento indevido.
14. Por esta razão, é diretriz comezinha do Direito a noção de que a
parte em posição de superioridade na relação contratual deve ter a interpretação
menos favorável nos casos de dúvida, conforme a determinação do art. 423, caput
e parágrafo único, do Código Civil.
15. Para esta aferição de hipossuficiência de uma das contratantes,
não é necessário revolver ao acervo probatório ou à interpretação de cláusulas
contratuais, porquanto essa condição é passível de ser extraída dos próprios
Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 9 de 17
Superior Tribunal de Justiça
aspectos vinculados à atividade econômica desenvolvida pelas partes.
16. Tanto é assim que esta Corte Superior já consignou que a teoria da
lesão do contrato incide quando um dos contratantes é levado à realização de
avença que lhe seja excessivamente desfavorável, o que em regra ocorre nos
contratos de adesão, em que uma das partes é destituída da liberdade de estipular
o conteúdo do contrato (REsp n. 628.458/RN, Primeira Turma, julgado em
28/9/2004, DJ de 25/10/2004).
17. Desta forma, considera-se válida, em princípio,
a cláusula contratual quando manifesta a igualdade dos sujeitos integrantes da
relação jurídica, cuja liberdade contratual revela-se amplamente assegurada. (REsp
39.082/SP, Segunda Seção, julgado em 09.11.1994, DJ 20.03.1995)
18. Por oportuno, destaca-se que, até mesmo no direito
consumerista, não se revoga a liberdade contratual, ela somente é ajustada para
que se restaure o equilíbrio das partes, numa relação naturalmente desequilibrada,
de forma que a contratação de cláusulas que limitem as prestações e
contraprestações deve guardar razoabilidade e proporcionalidade. (REsp n.
1.778.574/DF, Terceira Turma, julgado em 18/6/2019, DJe de 28/6/2019)
19. Outrossim, utilizando-me mais uma vez dos ensinamentos de
Judith Martins-Costa, para averiguação da conformidade legal da cláusula
contratual sob a ótica da boa-fé, necessário observar se “o confiante poderia,
legitimamente, ter confiado nas expectativas que lhe haviam sido acenadas pelo
agente produtor de confiança, pois à toda evidência, a confiança aqui versada não é
qualquer crença, mas aquela qualificada como legítima, resultado da conjugação de
fatores objetivos e subjetivos”. (MARTINS-COSTA, Judith: A Boa-fé no Direito
Privado, p. 253).
20. Para tanto, imperioso observar as condutas e o consentimento
Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 10 de 17
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que cada uma das partes adotou durante a relação jurídica firmada, a fim de
depreender o que elas legitimamente esperavam.
21. Por fim, cabe concluir este raciocínio com os ensinamentos Milton
Flávio de A. Lautenschläger acerca do ativismo judicial em matéria de contratos:
O ativismo judicial disfuncional é uma disfunção da atividade
jurisdicional que resulta no alargamento assimétrico dos limites da jurisdição e a
proeminência do Poder Judiciário frente aos demais atores sociais, que, com ele,
dividem a incumbência legítima de criar, interpretar e aplicar o direito. Dentre as
ocorrências capazes de suscitar o início de uma controvérsia contratual, estão a
inobservância ou o desrespeito a disposições legais ou princípios acolhidos por
nosso ordenamento jurídico; a inobservância ou o desrespeito a obrigações
provenientes de um determinado regulamento contratual ajustado entre as
partes; ou a necessidade de identificar o sentido e alcance de um determinado
contrato ou cláusula contratual (interpretação), de preencher eventuais lacunas
do regulamento do contrato (integração), ou de promover a sua eventual
modificação (correção). (...). Diferentemente, nos casos em que o desfecho da
controvérsia se dá através de simples raciocínio dedutivo de uma norma válida, é
vedado ao magistrado impor a sua vontade ou de intervir no contrato, sob pena
de configurar uma atuação arbitrária. (...). É possível concluir que a chamada
intervenção judicial no âmbito dos contratos está limitada aos casos de alta
complexidade (ou difíceis), isto é, àqueles que não permitem deduzir da lei a
solução de modo simples, seja em função de dificuldades relacionadas à norma
aplicável (contratual ou legal), seja em virtude de sua interpretação, impondo ao
juiz orientar-se através de princípios, mediante um juízo de ponderação.
(LAUTENSCHLÄGER, Milton Flávio de Almeida Camargo. Ativismo judicial
disfuncional nos contratos. São Paulo, Editora IASP, 2018 p. 267, 276-280).

22. Diante do exposto, a existência de equilíbrio e liberdade entre as


partes durante a contratação, bem como a natureza do contrato e as expectativas
são itens essenciais a serem observados quando se alega a nulidade de uma
cláusula com fundamento na violação da boa-fé objetiva e na função social do
contrato.

II.DA CLÁUSULA POTESTIVA

Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 11 de 17


Superior Tribunal de Justiça
23. Cumpre esclarecer desde logo que estou de acordo com o
Ministro Relator no que tange à inexistência de cláusula potestativa na hipótese,
pois, a condição potestativa é aquela que sujeita a eficácia do negócio jurídico ao
puro arbítrio de uma das partes.
24.A cláusula em comento, por sua vez, condicionou o pagamento por
serviços prestados à manutenção de um outro contrato que poderia ser rescindido
por ato de terceiro. Logo, inexistiu subordinação ao arbítrio de uma das partes, não
havendo que se falar em cláusula potestativa na espécie.

III.NA HIPÓTESE DOS AUTOS


25. No presente recurso especial, alega a recorrente que houve
violação aos arts. 122 e 422, do Código Civil.
26. Como bem sublinhado pelo acórdão recorrido, o “Contrato de
Prestação de Serviços Médicos”, firmado entre a recorrente e a recorrida,
guardava relação direta com um outro acordo, denominado “Contrato de Gestão”,
travado entre a Prefeitura de Araucária e a recorrida.
27. Tendo em vista que o “Contrato de Gestão” foi firmado em caráter
emergencial, sendo suscetível de ruptura antecipada, foi estipulada cláusula no
“Contrato de Prestação de Serviços Médicos” que destacava a relação de
dependência deste último com o “Contrato de Gestão” e previa as consequências
de eventual resilição do “Contrato de Gestão” para o “Contrato de Prestação de
Serviços Médicos”, dentre elas o não pagamento por serviços prestados.

Documento: 166902898 - EMENTA, RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 12 de 17


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28. Por oportuno, ainda que no presente recurso especial, a
recorrente pleiteie apenas a nulidade da cláusula 10.1 do “Contrato de Prestação
de Serviços Médicos”, imperioso colacionar a cláusula 10 em sua completude a fim
de demonstrar as reais expectativas e ciências de ambas as partes no momento da
estipulação.
“10.DO CONTRATRO DE GESTÃO FIRMADO COM PREFEITURA DE
ARAUCÁRIA
10.1 A CONTRATADA tem pleno conhecimento de que foi contratada para
prestar serviços à CONTRATANTE relacionados ao Contrato de Gestão do
HOSITAL MUNICIPAL DE ARAUCÁRIA, no âmbito do Município de ARAUCÁRIA, no
Estado do Paraná, e concorda desde já que, caso haja atraso de qualquer
pagamento à CONTRATANTE ou intervenha, rescinda ou encerro, por qualquer
modo, qualquer seja a razão, o referido contrato de gestão, a CONTRATADA não
fará jus a qualquer remuneração, ainda que por serviços prestados, nem a
qualquer tipo de indenização, qualquer que seja sua natureza.
10.2. Na hipótese do atraso aludido na cláusula 10.1 retro,
cumprirá a CONTRATANTE promover o pagamento dos serviços prestados pela
CONTRATADA, desde que os pagamentos efetuados pela Prefeitura de Araucária
se refiram aos meses de prestação de tais serviços, sem o acréscimo de
quaisquer juros, multa ou correção monetária. O pagamento referido nesta
cláusula deverá ser disponibilizado à CONTRATADA em até 10 (dez) dias úteis da
regularização das pendências da Prefeitura de Araucária junto à CONTRATANTE.
10.3. Não se aplica o disposto na cláusula 10.2 acima na hipótese
de intervenção, rescisão ou qualquer outro tipo de extinção do contrato de
gestão, respeitando-se, nestes casos, a regra da cláusula 10.1, ainda que para
serviços prestados.
10.4 Caso se verifique o advento de qualquer das hipóteses
indicadas na cláusula 10.3 retros, fica desde já estabelecido que a CONTRATADA
renuncia expressamente ao direito de pleitear quaisquer valores que entender
fazer jus, seja por serviços prestados, seja relativo a qualquer tipo de
indenização, tanto da CONTRATANTE quanto da própria Prefeitura. ” (e-STJ fl.
194)

29. Depreende-se que o título da Cláusula 10 do referido “Contrato de


Prestação de Serviços Médicos” já destaca a relação deste com o “Contrato de
Gestão”, firmado entre a recorrida e a Prefeitura.
30. Neste contexto, três dos quatro itens que compõem a Cláusula 10
destacam que, havendo rescisão contratual do “Contrato de Gestão”, seria

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indevida a indenização ou a remuneração da recorrente, ainda que por serviços
prestados.
31. Assim, ao ser notificada da rescisão prematura do “Contrato de
Gestão”, por interesse da Prefeitura, a recorrida rescindiu o “Contrato de
Prestação de Serviços Médicos” e não remunerou a recorrente pelos serviços
prestados pela recorrente, razão pela qual teve início a ação originária.
32. O Tribunal de Origem assim decidiu:
“Incontroversa a relação negocial havida entre as partes
instrumentalizada no contrato de prestação de serviços médicos colacionado às
folhas 187/195. Não há divergência quanto ao fato de que as partes livremente
pactuaram a contratação, aquiescendo no momento da subscrição do termo
com todas as condições e cláusulas da avença, inexistindo, portanto, qualquer
vício na sua celebração. O contrato firmado entre os litigantes guarda relação de
dependência direta com o “contrato de gestão” entre a Prefeitura de Araucária e
o requerido Instituto Biosaúde, firmado em caráter emergencial, com dispensa
de licitação (folhas 111/156). Assim, a continuidade do contrato formalizado
entre os litigantes dependida da manutenção do contrato de gestão do Hospital
Municipal de Araucária. Ocorre que foi notificada a rescisão prematura do
primeiro contrato (contrato de gestão folhas11/156), por iniciativa da Prefeitura
de Araucária e, por consequência lógica, resolveu-se também o segundo
(prestação de serviços médicos - folhas 187/195), objeto destes autos. Já
prevendo a situação de ruptura antecipada do termo, vez que o contrato de
gestão ocorreu em caráter emergencial, os termos do contrato firmado já
apontaram previsão quanto às consequências do termino do contrato. E não há
que se falar em abusividade ou em vício na contratação. A recorrente pactuou
com a demandada ciente de que se tratava de relação negocial atrelada a outro
contrato, este emergencial, ciente de seus termos, custos, benefícios, condições
e limitações. (e-STJ fl. 268-269)

33. Quanto ao enriquecimento ilícito, foi assim consignado:

Para que não se alegue nova omissão, aponta- se expressamente


que não resta configurado enriquecimento ilícito de qualquer das partes, bem
como não existe no feito afronta ao artigo 122, do Código Civil, sendo as
cláusulas constantes no contrato pactuado entre a embargante e o embargado
(documento de folhas 187/195) lícitas e não contrárias aos bons costumes.
Tampouco os termos contratuais travados estavam sujeitos ao arbítrio de uma
das partes, tendo a parte embargada apenas buscado a contratação emergencial
de serviços médicos hospitalares, estes prestados pela embargante. (e-STJ fl.
497)
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34. Considerando que o Tribunal de Origem analisou a controvérsia


dos autos levando em consideração os fatos e as provas relacionados à matéria,
tem-se que para chegar à conclusão diversa, seria necessário o reexame
fático-probatório, o que é vedado pela Súmulas 7 do STJ.
35. Ademais, a revisão de disposições contidas em contrato não pode
ser realizada nesta sede recursal por força do óbice do Enunciado 5 da Súmula/STJ.
36. Nada obstante, inexistem elementos nos autos que indiquem que
a recorrida tenha manifestamente excedido os limites do direito ao violar o fim
social do contrato, a boa-fé ou os bons costumes.
37. Isso, pois, como bem consignado na Origem, havia equilíbrio entre
a recorrente e a recorrida na contratação, sendo que ambas desfrutaram de ampla
liberdade para determinar os termos da relação que ali se pactuou.
38. Outrossim, não restou demonstrado que as expectativas criadas a
partir do contrato foram contrariadas, pois somente veio a ocorrer evento já
previsto no “Contrato de Prestação de Serviços Médicos”, isto é a rescisão do
“Contrato de Gestão”, o que ocasionou a rescisão do “Contrato de Prestação de
Serviços Médicos” de forma a retirar da recorrente o direito de requerer
pagamentos, ainda que por serviços prestados.
39. Sublinho que o Tribunal de Origem, superior na aferição de fatos e
provas, concluiu que inexistem elementos indicando que houve enriquecimento
ilícito ou vantagem exagerada em detrimento da recorrente, porquanto não foi
provado que a recorrida recebeu da Municipalidade valores que seriam destinados
exatamente aos serviços prestados pela recorrente. Essa alegação persiste tão
somente nas manifestações da recorrente.
40. Importa destacar que, em se tratado de contrato de prestação de

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serviços firmado entre dois particulares os quais estão em pé de igualdade no
momento de deliberação sobre os termos do contrato, tendo em vista a atividade
econômica por eles desempenhada, inexiste legislação específica apta a conferir
tutela diferenciada para este tipo de relação, devendo prevalecer a determinação
do art. 421, do Código Civil.
41. No mais, o contrato em comento não deixa margens de dúvida
quanto a sua interpretação, não se trata de contrato de adesão e tampouco
envolve relação de consumo ou outra que exija tratamento especial a qualquer das
partes.
42. Rogando todas as vênias as Ministro Relator, na hipótese, o que
parece mais dissonante do princípio da boa-fé e da função social do contrato é
admitir que a recorrente, sem nenhuma alegação de vício de consentimento ou de
manifesta ilegalidade, objetive a anulação de cláusula que livremente estipulou
simplesmente porque ocorreu evento a que ela sabia que estava suscetível.
43.Assim, não vislumbro na hipótese elementos que indiquem que os
termos da cláusula 10.1 do “Contrato de Prestação de Serviços Médicos” violem os
arts. 122 e 422 do Código Civil de forma a justificar a sua nulidade.

IV.DISPOSITIVO

Forte nessas razões, rogando vênias ao Ministro Relator, CONHEÇO do


recurso especial e NEGO-LHE PROVIMENTO.
Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, majoro os honorários
advocatícios devidos ao procurador da parte recorrida para 15% sobre o valor
atualizado da causa.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA

Número Registro: 2018/0251472-7 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.799.039 / SP

Números Origem: 10066232820158260361 20160000482729 20160000636810 201701400972

PAUTA: 16/08/2022 JULGADO: 04/10/2022

Relator
Exmo. Sr. Ministro MOURA RIBEIRO

Relatora para Acórdão


Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI

Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. MARIA IRANEIDE OLINDA SANTORO FACCHINI
Secretária
Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

AUTUAÇÃO
RECORRENTE : CDTO - CENTRO DIGESTIVO E TRANSPLANTE DE ORGAOS LTDA. - ME
ADVOGADO : RAFAEL AMARAL BORBA E OUTRO(S) - SC012336
RECORRIDO : IB INSTITUTO BIOSAUDE
ADVOGADO : RAMSÉS BENJAMIN SAMUEL COSTA GONÇALVES - SP177353

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Obrigações - Espécies de Contratos - Prestação de Serviços

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na
sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi,
inaugurando a divergência, a Terceira Turma, por maioria, negou provimento ao recurso especial,
nos termos do voto da Sra. Ministra Nancy Andrighi, que lavrará o acórdão. Votou vencido o Sr.
Ministro Moura Ribeiro. Votaram com a Sra. Ministra Nancy Andrighi os Srs. Ministros Ricardo
Villas Bôas Cueva (Presidente) e Marco Aurélio Bellizze. Não participou do julgamento o Sr.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Documento: 166792099 - CERTIDÃO DE JULGAMENTO - Site certificado Página 1 de 1

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