Seer,+1223 3927 1 CE

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 16

A MULHER

NA ÉTICA RELIGIOSA

ALLYNE CHAVEIRO FARINHA*

Resumo: a religião cristã católica historicamente situou a mulher em um


segundo plano, vista como tentadora e fonte de pecado, as figuras fe-
mininas da Igreja Católica, geralmente são representadas como sub-
missas à vontade masculina, Santas quando foram obedientes ou Bruxas
quando transgridem as regras. Embora a mulher tenha ampliado a
sua atuação na sociedade, na religião cristã católica ainda não lhe é
permitido desempenhar as mesmas funções do homem durante o rito
religioso não podendo dirigi-lo. Nesta perspectiva tenciona-se neste tra-
balho realizar um esboço da representação feminina na religião.

Palavras-chave: mulher, religião, demonização

D eusa, Feiticeira, Santa e Benzedeira, várias são as denominações


que foram dadas à mulher no campo religioso. Entretanto ao se
observar as representações femininas nas religiões de cunho patri-
arcal percebe-se que o papel da mulher tem sido relegado a uma
posição secundária, não desempenhando as mesmas funções do
homem dentro do rito e na hierarquia religiosa.
Um exemplo disso é o Catolicismo em que mulher sempre apareceu como
coadjuvante dos ritos religiosos, porém nas manifestações popula-
res percebe-se sua presença mais forte, geralmente ligada as práti-
cas mágicas. Sabe-se que no período medieval, em que a Igreja
estruturou-se e formou-se como grande possuidora da verdade di-
vina, o envolvimento feminino com as práticas mágicas foi feroz-
mente combatido, e estas consideradas bruxas seguidoras do de-
mônio.
Embora não haja mais mulheres queimando na fogueira e estas cada
dia conquistem mais espaço na sociedade, ao que se parece a reli-
gião cristã católica pouco se alterou em seu campo de atuação, e,
apesar de alguns avanços, a posição feminina ainda parece longe
de conquistar uma posição de destaque dentro dessa Instituição.

A MULHER NAS RELIGIÕES MATRIARCAIS

Nas sociedades caçadoras-coletoras, as mulheres tinham um papel cen-


tral, em muitos casos, sendo vistas como sagradas graças a sua ca-
pacidade de conceber a vida e ajudar na fertilidade da terra e dos
animais. Isso porque o homem não conhecia sua contribuição na
procriação imaginando, não raramente, que as mulheres engravidavam
dos deuses. Muraro (1993), afirma que estes se sentiam margina-
lizados e tinham inveja do útero feminino1.
Nestas sociedades a força física não era uma necessidade. Desta forma a
mulher possuía um lugar central somente nas sociedades em que
existia a coleta e a caça de pequenos animais, e a partir do momen-
to em que esta (a caça) se tornava escassa instaurou-se a suprema-
cia masculina, visto que antes masculino e feminino governavam o
mundo harmoniosamente.
No neolítico o homem já dominava sua função biológica reprodutora,
sendo a harmonia quebrada definitivamente, a figura do herói passa
a ser mais valorizada, o homem passava a dominar também a sexu-
alidade feminina, e a mulher fica reduzida ao âmbito privado sem
poder de decisão no âmbito público.
Nesta perspectiva, houve uma passagem da cultura matricêntrica para
uma cultura patriarcal, o que pode ser observado em uma análise
na produção mitológica dessas sociedades. O mitólogo americano
Joseph Campbell escritor do livro The Masks of God: Occidental
Mytologic (apud, KRAMER, 1991) dividiu em quatro grupos os
mitos conhecidos da criação, correspondendo estes grupos às eta-
pas cronológicas da história humana. Na primeira etapa, o mundo
seria criado por uma deusa mãe sem auxilio de ninguém, na se-
gunda etapa este seria criado por um deus andrógeno ou um casal
criador; já na terceira um deus macho toma o poder de uma deusa

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 336


ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial, e na quarta,
por fim, um deus macho criaria o mundo sozinho, sem interven-
ção feminina, o que representaria a passagem para o patriarcalismo.
O mito cristão representa bem essa passagem, em que Javé um – deus
único centralizador – cria o mundo sozinho e dita regras que de-
vem ser cumpridas sob pena de punição, diferentemente das re-
presentações das divindades femininas que são em sua maioria
permissivas e não coercitivas. Há ainda no mito cristão uma desva-
lorização do ato de parir, o homem é quem da à luz a primeira
mulher que é retirada de suas costelas. A grandeza, neste caso,
passa a ser do homem, que trabalha e domina a natureza, sendo
que a mulher, retirada de suas costelas, jamais poderia ser reta.
Embora deus seja considerado um ser assexuado, este foi historicamente
e psicologicamente identificado com uma figura masculina, por-
tanto as religiões monoteístas como o cristianismo, islamismo e
judaísmo se desenvolveram dando prioridade ao masculino. Não
obstante, não é um consenso que realmente tenham existido as
sociedades matriarcais, mas sim que as mulheres foram as primei-
ras a descobrirem os ciclos da natureza, especialmente pelo fato de
que podiam compará-los com o ciclo do próprio corpo.
Entretanto, em setembro de 20082 durante as escavações numa gruta de
Hohle Fels, perto da localidade de Scheklingen, no estado alemão
de Baden-Wrttemberg, foi encontrada pelo arqueólogo Nicholas
Conard, da Universidade de Tübingen (Alemanha), a chamada Vênus
de Hohle Fels que deixa esperançosos os que acreditam na existên-
cia de cultura matriarcal, uma vez que essa escultura feita de mar-
fim de mamute é datada de aproximadamente 40.000 mil anos, e
comparada com a Vênus de Willendorf, descoberta na Áustria, em
1908, com aproximadamente 28 mil anos, possuindo proporções
dos caracteres sexuais femininos ainda mais exageradas, denotan-
do uma clara referência a fertilidade feminina e sua importância
para as sociedades que as produziram.

A DIABOLIZAÇÃO DA MULHER

A figura da mulher é aliada ao mal desde a Antiguidade, e esta ligação


tem sua origem tanto no pensamento grego3 e latino, quanto na
Bíblia. Desde a mitologia grega a mulher já é representada com

337 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


uma identidade negativa, como pode-se observar no mito de Pandora,
a primeira mulher que foi utilizada como instrumento da vingan-
ça de Zeus: “Um mal em que todos se deleitarão em rodear de amor
para a sua própria desgraça. E estourou de rir” (DELEMAU, Jean.
Apud Nogueira, 1991). Pandora havia sido dada a Epimeteu, abriu
uma caixa a ela confiada por Zeus, levada pela curiosidade, desta
saíram desgraças e calamidades para os homens que viviam tran-
qüilos e felizes até então.
A curiosidade presente no mito de Pandora também é perceptível em
um mito africano que explica como Deus se afastou de seus filhos,
conseqüência da curiosidade da mulher:

Outrora, nos tempos mais recuados, Deus habitava entre os homens


e conversava com eles. Mas tinha-lhes proibido, sob pena de atrair
desgraças, de jamais procurar vê-lo. Uma moça tinha por tarefa
depositar todas as noites água e lenha na entrada da cabana circular
onde Deus habitava. Uma noite sucumbiu ao desejo que ardia
dentro dela: resolveu espiar seu pai Divino para vê-lo. [...] Mas
Deus soube da desobediência de sua filha. Na noite seguinte para
punir os homens retirou-se para sempre. [...] E com Deus
desapareceram também a felicidade e a paz; os frutos e a caça e
todos os alimentos que antes se ofereciam espontaneamente, tudo
se fez mais raro (DELUMEAU, 2003, p. 475).

A narrativa de Gênesis também sublinha a curiosidade feminina que


segundo a Bíblia cristã, a primeira mulher4, Eva, levada pela curi-
osidade de conhecer o bem e o mal cai na armadilha da serpente
comendo o fruto proibido, e oferece a Adão que também o come,
sendo que a partir deste ato rompe-se o elo entre o Deus e o ser
humano. O ato de Eva é condenado, uma vez que com o seu erro
a humanidade é condenada, pois os seres humanos expulsos do
paraíso foram obrigados a viverem do fruto do seu trabalho.
Nogueira (1991) afirma que o cristianismo herdou uma “confluência de
tradições misóginas”, que consideravam a mulher um ser frágil e
indigno de exercitar sua cidadania. Sendo assim, a identidade da
mulher foi ligada ao pecado, e no ideário demoníaco, que percor-
reu toda a Idade Média, foram consideradas vítimas por excelên-
cia para o Satã e seus demônios.

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 338


O demônio que aterrorizava os homens era um profundo conhecedor das
fraquezas femininas, principalmente no que se refere à sexualida-
de. Neste ponto, pode-se identificar o que Bourdieu (2007) cha-
ma de efeito de consagração (criação de realidades transcendentais a
partir da realidade temporal e de realidades temporais a partir da
transcendental criada), na percepção de que as mulheres que ti-
nham um papel reduzido no âmbito público da sociedade tiveram
o mesmo destino nas religiões que se valeram de explicações mito-
lógicas para justificarem o papel secundário destinado a elas no
âmbito religioso. “Desta maneira, o cristianismo adicionou, siste-
matizou e racionalizou todo um misoginismo recebido da Anti-
guidade” (NOGUEIRA, 1991, p.16).
Para alguns teólogos, Eva não teria sido feita a imagem e semelhança de
Deus, porém a partir de Adão o que a tornaria apenas uma proje-
ção da criação divina, fato que para eles caracterizava a inferiorida-
de natural das mulheres. Thomas de Aquino (apud NOGUEIRA,
1991), em sua Suma Teológica, afirma que “a mulher foi criada
ainda mais imperfeitamente que o homem, mesmo na sua alma
(...). Na geração o papel positivo é do homem, a mulher sendo
apenas um receptáculo. Verdadeiramente não há outro sexo que
não o masculino. A mulher é um macho deficiente.” Além da
inferioridade natural em que era considerada a mulher esta foi
aliada a toda a malignidade humana chegando ao ponto de ser
considerada o próprio demônio. Instaura-se, a partir daí, o medo
ao demônio e o medo das mulheres que deviam ser vigiadas e con-
troladas para não praticaram atos maléficos. Thomas Mürner, pre-
gador do século XVI escreveu: “a mulher é um diabo doméstico. É
comumente, infiel, viciosa, fútil e namoradeira” (apud NOGUEI-
RA, 1991). A partir de então, a mulher passou a ser aliada ao
pecado. São Jerônimo, um polemista do século IV, afirma no tra-
tado Adversus Iovinianum que as mulheres são as sedutoras das
almas puras dos homens, pendendo naturalmente para o prazer e
não para a virtude.
Se, por um lado o pecado veio ao mundo pelas mãos de uma mulher, a
redenção, segundo a igreja cristã católica, também o foi: Maria, a
mãe de Jesus Cristo, a “nova Eva”. A projeção de Maria no cristia-
nismo foi lenta, entretanto já no século XI ela ganha popularidade
semelhante a de Cristo (MACEDO, 2002, p. 70). Os relatos de

339 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


milagres marianos registrados após o século XII, já apresentam
claramente um aspecto moralizante, principalmente naqueles que
apresentam mulheres, mostrando que os ideais de perfeição têm
suas raízes na virgindade e na castidade. Nesta perspectiva, Maria
sintetiza os valores cristãos de pureza, virgindade, maternidade e
obediência que devem ser observados pelas mulheres.
O incentivo ao culto mariano só irá acentuar a desqualificação feminina,
na medida em que exalta a figura de uma mulher que é considera-
da grandiosa, por ter sua sexualidade esvaziada e sua identidade
ligada a maternidade. O ideal de Maria, em sua Santidade, é a
maternidade imaculada, logo a mulher teria no ideal de Maria a
possibilidade de salvar-se da culpa de gerar filhos em pecado.

A MULHER E O CORPO

De acordo com Weber (2001), nas religiões animistas e mágicas havia


uma conexão entre a sexualidade e rituais religiosos, em muitos
rituais mágicos a orgia sexual era integrante do culto, porém na
religiosidade ética surge um abismo entre religião e a sexualidade.
A religiosidade ética passou a restringir a sexualidade, como o único
meio de se praticar sexo sem pecar.
Durante a Idade Média, segundo os padrões da Igreja Católica, tudo
que estivesse relacionado com o corpo deveria ser controlado, o
prazer era visto como um impedimento de se elevar até Deus. A
mulher, que era vista como sagrada pela sua capacidade fértil, pas-
sa a ser, pela mesma característica, causadora de todos os males a
humanidade, sendo agora definida por sua sexualidade que deve-
ria ser normatizada.
Segundo Muchembled (2001), em todos os ramos do conhecimento operou-
se uma redefinição da natureza feminina, reforçando a necessida-
de de controle do ser imperfeito. Os médicos viam na mulher uma
criatura inacabada, movida apenas pelo movimento de seu útero,
trazendo em si ao mesmo tempo o poder da vida e o poder da
morte. A visão médica se combinava com a visão religiosa produ-
zindo uma concepção de feminilidade.
O médico flamengo Levinus Lemnius, no século XVI construiu sua visão
da natureza humana no estabelecimento de contrapontos entre ho-

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 340


mens e mulheres. Adepto da “teoria dos humores” afirmava que o
homem cheira naturalmente bem enquanto a mulher exala um per-
fume natural pouco agradável, este odor era característico da frieza e
umidade da mulher, além de infectar coisas puras por causa de seus
mênstruos. Embora a mulher possa se perfumar para retirar o mau-
cheiro, este só servia para atiçar o desejo sexual, portanto um instru-
mento do maligno. O abade Drouet de Maupertuis confirmava: “O
diabo não tem via mais segura para perder os homens do que entregá-
los às mulheres” (FARGETTE, [1990], p. 61-3).
A mulher representava o lado sombrio da obra do Criador, ligada ao
pecado da luxúria, os teólogos afirmavam que este pecado pratica-
vam desavergonhadamente, considerada tentadora do homem,
ameaçadora de sua pureza. A mulher provocaria o desejo que o
destrói e o leva a danação eterna. Macedo (2002, p. 69) cita a
historiadora italiana Chiara Frugoni que afirma:

A mensagem que a Igreja passa aos fieis e que alimenta o seu


imaginário é de uma profunda diversidade no tratamento dos homens
e das mulheres: Os primeiros são pecadores devido ao uso excessivo
de suas capacidades e iniciativas, ou por serem incapazes de controlar
impulsos e sentimentos; as outras, pelo contrario, não devem
empenhar-se em nada, porque o seu corpo já as transporta
inexoravelmente para a transgressão; não são um sujeito pecador,
mas uma modo de pecar, oferecido ao homem.

A própria representação do corpo feminino como mal-cheiroso ou como


fonte de morte pode ser percebido como uma tentativa de fuga do
corpo feminino, principalmente seu corpo nu que provocava o desejo
sexual, o desejo desenfreado em que o homem se iguala ao animal.
O demonólogo Henri Boguet afirma que do corpo feminino ema-
na uma poderosa sensualidade ao despertar o poder carnal. O di-
abo que bem o sabe, “aproveita-se dessa característica para buscar
unir-se a ela” (FARGETTE, [1990], p. 61-3).
Para escapar das ciladas provocadas pelas mulheres, alguns homens recor-
reram à castração, como os homens membros da seita dos valesianos,
que se castravam para garantir a salvação. Os valesianos visavam ain-
da trabalhar pela salvação, por isso, como muitos homens se nega-
vam à castração começaram a aramar emboscadas para salvar a alma

341 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


destes homens através da castração. A seita foi condenada pela Igreja
e sobreviveu por pouco tempo por falta de adeptos.
Segundo Le Goff (apud MACEDO, 2002, p. 68) na Idade Média per-
manecia a idéia que o “invólucro carnal era prisão da alma”, o
prazer manteria o espírito prisioneiro do corpo e as mulheres eram
consideradas inferiores devido a sua fraqueza aos “perigos da car-
ne”. Tal mulher era vista como a inspiradora do desejo que destrói
o homem, levando-o a pecar e romper seu elo com Deus.
Nos padrões de conduta da Igreja Católica tudo que estivesse relaciona-
do com o corpo deveria ser tratado com desconfiança, ainda mais
quando se tratasse de suas capacidades sexuais que trariam a per-
dição. No pensamento cristão existia a idéia de que: “desde Eva
até as bruxas o corpo era lugar de eleição do diabo” (MACEDO,
2002, p. 68). E no século III, Tertuliano, afirmava: “Tu és a porta
do diabo, tu consentistes na sua árvore, fostes a primeira a desertar da
lei divina” (idem).

A MULHER E AS HERESIAS

Para Macedo (2002), as heresias coexistiram durante toda a Idade Mé-


dia, e várias mulheres foram atraídas por estas heresias. Duas são
as hipóteses para explicar essa atração: a primeira seria a possibili-
dade de se escapar de casamentos arranjados, e a segunda a possi-
bilidade que os movimentos heréticos ofereciam às mulheres
participação ativa no ministério e pregação. No catarismo, por
exemplo, as mulheres poderiam tornar-se “perfeitas” podendo prestar
os mesmos serviços espirituais que os homens. Igualmente os valdenses
– de Pedro Valdo, em Lyon, na França – em que as mulheres pos-
suíam amplo direito de pregação.
A repressão às heresias chegou ao seu ápice com relação às mulheres com
a “caça as bruxas”, e que ocorre a partir do século XVI. Esta acom-
panha uma mudança de mentalidade com relação à magia, feitiça-
ria e bruxaria, práticas antes ridicularizadas e ironizadas pela Igreja,
consideradas como superstição. Todavia, segundo Macedo (2002)
devido a crises políticas na Igreja nos séculos XIV e XV, essas pra-
ticas passam a preocupar. Paralelamente crises sociais e econômi-
cas mudaram a visão de Deus e do diabo.

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 342


O medo infiltra-se na sociedade medieval que passa a encarar o diabo
não como o inimigo vencido, mas sim um ser que se infiltrava no
cotidiano dos homens hostil e impiedoso capaz de realizar maio-
res atrocidades para o seu prazer. O diabo podia ainda usar as
pessoas para cometer o mal. Por isso, acometidos pelo medo os
homens procuram identificar quem pudesse auxiliar o demônio.
Assim, como a mulher era considerada fraca frente às tentações
demoníacas, ela se torna o foco principal de vítima passa a ser
cúmplice do demônio.
Por isso, mesmo sendo subjugadas pelos homens também geravam te-
mor, os homens temiam que se traíssem suas esposas, estas lhe
ofereceriam porções mágicas que lhe causariam impotência. Delumeau
(1989) em sua obra a História do medo no Ocidente considera que o
medo das mulheres estava relacionado com sua ligação com a na-
tureza, a mulher era considerada conhecedora de seus segredos,
por isso a ela foi creditado o poder de curar ou prejudicar o ho-
mem por meio de misteriosas receitas.
Deste conhecimento dos segredos da natureza construiu-se a imagem
das feiticeiras 5 como responsáveis das desventuras causadas aos
homens, antes vistas como vítimas do Diabo, passaram a ser con-
sideradas servas capazes das maiores atrocidades a serviço do ma-
ligno. Na antiguidade clássica a feiticeira sua atividade era
basicamente a fabricação de poções e na manipulação de substân-
cias destinados à confecção de venenos, perfumes e encantamen-
tos, entretanto para o cristianismo o principal problema das feiticeiras
era o poder de sedução, que levavam o homem ao pecado.
A figura da feiticeira é ligada ao culto satânico e a depravação sexual e
desta ligação nasce à imagem da Bruxa que segundo Nogueira (1991)
configura-se como a maior construção do discurso misógino feito
pelo cristianismo, a Bruxa seria a expressão máxima do mal, uma
vez que comete o pecado hediondo de renegar à Cristo, por isso
vão ser duramente perseguidas.
No fim do século XV e no começo do XVI, houveram milhares de execu-
ções, não somente realizadas pela Inquisição Católica, mas igual-
mente os tribunais protestantes que perseguiram bruxas, com
destaque para os anglicanos de Salém, nos Estados Unidos.
Em 1486, foi escrito por Sprenger e Krames, dois inquisidores alemães, o
Malleus Malleficarum, livro em que demonstram o poder das bru-

343 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


xas, como identificá-las e combatê-las. Os sinais de identificação
das bruxas colocavam qualquer pessoa sobre suspeita, principalmente
as mulheres ligadas com práticas de curas populares, como benze-
deiras, parteiras e curandeiras, ou seja, aquelas que detinham seu
saber próprio que era transmitido de geração a geração.

Uma das abominações é o hábito de certas bruxas que vai contra o


instinto da natureza humana, e até mesmo contra o instinto da
natureza de todas as feras, com a possível exceção dos lobos - de
devorarem, como canibais, os recém-nascidos. O inquisidor da cidade
de Como, a propósito, nos conta: foi intimado pelos habitantes
do condado de Barby a conduzir um processo inquisitório por
causa de um homem que, vendo ter desaparecido seu filho do berço,
saiu a procurá-lo. Acabou por encontrá-lo num congresso de mulheres
durante a noite, no qual, segundo declarou em juramento, as viu
matarem-no, para depois beberem-lhe o sangue e devorarem-no
(KRAMER; SPRENGER, 1991, p.155).

Nogueira (1991) cita Robert Munchembled que considera a existência


de uma relação entre a caça às Bruxas e a vontade de extirpar os
erros e superstições das comunidades rurais, pois “as mulheres re-
presentavam no meio rural o equivalente a juízes em suas próprias
comunidades, eram encarregadas da educação dos filhos, educa-
ção considerada ilícita aos olhos da ortodoxia” (NOGUEIRA, 1991,
p. 21). Além disso, essas mulheres começaram a representar uma
ameaça ao poder do médico, pois formavam comunidades ou con-
frarias em que eram trocados entre si segredos da cura do corpo, e
esta profissão começava a se formar nas universidades.
Segundo Muraro, tanto a religião católica quanto a protestante contri-
buíram de maneira decisiva para a centralização do poder, princi-
palmente através da Inquisição, punindo qualquer um transgredisse
as regras. Quando cessaram a caça as bruxas, ocorreu uma grande
transformação da condição feminina, como a normatização da se-
xualidade, e, principalmente, o saber feminino caiu na clandesti-
nidade, ou foi de alguma forma, assimilado pelo poder médico
masculino. As mulheres passaram então a transmitir os valores
patriarcais aos seus filhos voluntariamente.

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 344


A MULHER E O EXERCÍCIO RELIGIOSO

Percorrendo a história analisando a representação da mulher na religião


percebe-se que da sacralidade do culto das sociedades caçadoras-
coletoras, pouco restou, uma vez que as mulheres passaram a ser
relegadas a um segundo plano nos cultos religiosos, não podendo
desempenhar as funções sacerdotais nas religiões monoteístas.
Na Roma antiga as mulheres eram consideradas como naturalmente in-
feriores e, portanto, deveriam ser excluídas das funções publicas e
administrativas, e isso incluía também o exercício religioso. Em
Bizâncio, por exemplo, a mulher não podia exercer os ofícios reli-
giosos e nem mesmo falar em lugares de culto, pelo contrário,
deveria permanecer reclusa ao ambiente domestico. Já entre os
eslavos a mulher possuía certa liberdade, ao menos no que tange a
relação conjugal, entretanto com a chegada dos missionários cris-
tãos essa realidade se modificou e a mulher foi restringida ao âm-
bito privado.
Weber afirma que a admissão de mulheres com participação mais ativa
ou passiva depende do grau de pacificação da sociedade; onde do-
mina uma educação militar a mulher é religiosamente inferior.

Por toda parte onde domina ou dominou uma educação militar


ascética, com o seu “renascimento” do herói, a mulher é considerada
carente de uma alma superior, heróica, por isso, religiosamente
desclassificada. É o que ocorre na maioria das comunidades de
culto nobre ou especificadamente militares. (WEBER, 2001, p.334)

Weber salienta ainda que a existência de sacerdotisas, a veneração de


adivinhas ou feiticeiras não significa uma equiparação das mulhe-
res no culto, e mesmo que haja uma igualdade entre homens e
mulheres na relação com o divino, essa igualdade pode ser combi-
nada com uma monopolização dos homens na função sacerdotal,
como ocorre no cristianismo.
Nota-se ainda nas concepções Weberianas que a rotinização do carisma
também acaba por excluir a participação ativa das mulheres no
culto religioso, a partir da admissão de uma hierarquia religiosa a
mulher passa a ser considerada religiosamente inferior. Somente
os homens foram considerados qualificados para exercerem a fun-

345 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


ção de sacerdote e de intervirem nos assuntos religiosos, embora o
cristianismo primitivo tenha retirado sua força de propaganda através
da admissão e equiparação de mulheres, em sua regulamentação
perde esse caráter.

A grande suscetibilidade das mulheres para toda profecia religiosa


não exclusivamente orientada por idéias militares ou políticas destaca-
se claramente nas relações livres de preconceitos de quase todos os
profetas, tanto de Buda quanto de Cristo ou Pitágoras. Mas
dificilmente esta se conserva além daquela primeira época da
congregação, na qual os carismas baseados na inspiração sagrada
são apreciados como características de uma elevação religiosa
específica. Em seguida, com a cotidianização e regulamentação
das relações congregacionais, tomam-se sempre atitudes contra os
fenômenos inspiracionais, considerados contrários à ordem e mórbidos
nas mulheres (WEBER, 2001, p. 333).

A explicação dada pelo Cristianismo figurava na ligação da mulher com


a sexualidade a afastaria da possibilidade do exercício de lideran-
ças religiosas, sendo naturalmente fracas à tentação do demônio,
afinal foi pela fraqueza de Eva que o pecado entrou no mundo.
Santo Agostinho afirmava que o corpo da mulher era “um obstá-
culo permanente ao exercício da razão” (apud NOGUEIRA, 1991,
p. 16). Nesta perspectiva, o ser humano possuía uma alma assexuada
e um corpo sexuado, no homem o corpo refletiria a alma, o mesmo
não ocorria com a mulher, pois o homem era considerado a ima-
gem e semelhança de Deus (Imago), mas a mulher apenas a seme-
lhança (Similitudo) o que comprovaria sua inferioridade (MACEDO,
2002, p. 66).
Há uma tendência entre os menos privilegiados á admissão de mulheres
com uma participação mais ativa nos cultos, geralmente aliada a
sua capacidade de controle dos poderes mágicos. Os camponeses,
por exemplo, raramente foram portadores de uma religiosidade
não mágica. A visão do camponês grato a Deus é uma construção
moderna feita principalmente pelo cristianismo, entretanto ob-
serva-se a sobrevivência de saberes populares imersos na doutrina
da Igreja cristã católica que, mesmo após o expurgo feito pela
inquisição, não conseguiu retirar do cotidiano de seus fiéis práti-

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 346


cas mágicas, as quais ainda possuem uma participação ativa das
mulheres, como pode ser notado nas práticas de “benzeção” ou
benzedura.
Essa prática tem grande participação das mulheres e não só comum, mas
tradicionalmente aceita por ampla parte dos fiéis católicos. Não
obstante, nas determinações do catecismo da Igreja, a benção so-
mente é dada pelos representantes sagrados da Igreja – os sacerdo-
tes – e áurea mágica e supersticiosa da benzedura é considerada
um pecado. Essa realidade leva as mulheres benzedeiras a atuarem
na clandestinidade, embora participantes da Igreja Católica tradi-
cional em suas casas realizam suas orações “conjugando a força das
rezas, o segredo das ervas e os gestos de conjuração” (PIERUCCI,
2001, p. 27).
Observa-se nas Igrejas Católicas que apesar de uma maior participação
feminina e um discurso de igualdade, muito ainda permanece da
cultura patriarcal. A maioria das Igrejas tradicionais acredita que
apenas o uso de uma linguagem inclusiva proporciona uma maior
inclusão das mulheres no cristianismo, no entanto estas ainda não
são consideradas aptas a dirigirem os cultos religiosos católicos.
Por outro lado nas Igrejas protestantes, há um grande aumento de mu-
lheres nos cargos de liderança, porém não se pode afirmar que
existe uma igualdade. A revista Época do ano de 2004 trouxe uma
matéria sobre um grande aumento de mulheres que assumem pos-
tos como sacerdotisas e pregadoras em várias correntes religiosas,
mas a mesma revista, no mesmo ano, trouxe em outra edição uma
reportagem sobre uma pastora negra que teria sido expulsa de sua
Igreja sob a acusação de bruxaria (BRUM, 2009, p. 92-93). Isso
denota a realidade da participação feminina nas Igrejas que não se
dá sem restrições e preconceitos.
No que se refere, as benzedeiras nota-se que estas tentam resistir no
interior da Igreja rearrumando muitas vezes seus ritos para ade-
quarem-se aos novos padrões, especialmente como o advento da
Renovação Carismática que aporta no Brasil na década de 70, e
tem agido incisivamente no combate das manifestações da religio-
sidade popular, através da negativação ou demonização.
Portanto, pode-se perceber que a representação feminina na religião se
constitui como perpetuadora da realidade vivida cotidianamente
pelas mulheres, porém isso não se dá sem resistências uma vez que

347 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


as mulheres apresentam uma postura ativa e a cada dia conquis-
tam mais espaço seja por meio da religião tradicional ou através da
religiosidade popular, como acontece com as benzedeiras, pois
embora existam também benzedores, seu relacionamento com a
comunidade em que atua faz com que se construam identidades
diferenciadas. Conforme Pereira e Gomes (2002), a mulher ben-
zedeira acaba por abrir fissuras na sociedade patriarcal ao falar em
um campo majoritariamente masculino.

Notas

1
A inveja que os homens sentiam do útero gerou dois ritos: o couvade e a iniciação
masculina. No couvade o homem assume o lugar da parturiente, ou seja, é ele que
fica de resguardo após o parto. Nas tribos indígenas é comum encontrar ritos
como este. Entre os Tupinambás, acreditava-se que a mulher fosse apenas um
saco para deposito da criança que na verdade era retirada do “lombo do pai”, este
deveria guardar o repouso até que o cordão umbilical caísse. A iniciação mascu-
lina, também comum entre as tribos indígenas, realiza-se através da separação
dos meninos, que chegam à puberdade, das mulheres, restritos a um ambiente
exclusivamente masculino tendo o corpo pintado e passando por diversas provas
que ao final o levarão a maturidade, e tornando-se, a partir disso, um homem.
2
Cf. Bonalume Neto. Disponível em: http://www. 1folha.uol.com.br/folha/ciên-
cia. Acesso em: ago. 2009.
3
Platão considerava que a mulher seria a reencarnação de um homem que em sua
vida tivera sido inconseqüente. Como castigo, voltaria à vida como uma mulher.
Já Aristóteles afirmava que as mulheres assim como os escravos deveriam viver
pra servir.
4
Reza uma tradição hebraica que a primeira mulher teria sido Lilith, criada da
mesma forma que Adão e não de sua costela. Segundo o mito, Lilith se recusou a
ficar “debaixo” de Adão e fugiu do paraíso. Deus enviou, então, anjos para buscá-
la, entretanto ela se recusou a voltar. Eva, segunda mulher criada por Deus, teria
sido feita a partir da costela de Adão para que fosse submissa a ele, enquanto
Lilith se tornou esposa do demônio, sendo que na cultura popular é responsável
pela morte de recém-nascidos e possuidora dos homens durante a noite
(FARGETTE, [1990], v. 12, p. 61-3).
5
Na cosmogonia yorubana, toda mulher é Ajé (feiticeira) porque as Iyámi contro-
lam o sangue das regras das mulheres. No entanto, a Ajé não é como a feiticeira
medieval, ou seja, não é a personificação do mal, ela representa os poderes

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 348


místicos da mulher em seu aspecto mais perigoso e destrutivo. (Ulli Beir, Gelede
Masks, Odo, nº6, Ibadan, 1956, apud Igbadu, a cabaça da existência).

Referências

BONALUME NETO, Ricardo. Vênus peituda pode ser a primeira figura Humana. 14
de maio de 2009. Disponível em: http://www. 1folha.uol.com.br/folha/ciência.
Acesso em: ago. de 2009

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BRUM, Eliane. Inquisição Moderna. Época. v. 07, p.92-93, 2009.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das


Letras, 1989.

DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente.. São Paulo:


EDUSC, 2003.

FARGETTE, Séverine. Eva, Lilith, Pandora: O mal da sedução. História Viva. Ano:
06. Vol: 12, p. 61-63.

KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro:


Rosa dos tempos, 1991.

MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002.

MUCHEMBLED, Robert. Uma História do Diabo: séculos XII – XX. Rio de


Janeiro: Bom Texto, 2001.

MURARO, Rose Marie. Breve Introdução Histórica. In: Malleus Maleficarum. Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. As Companheiras de Satã: o processo de diabolização


da mulher. Espacio, Tiempo y Forma; 1991, série IV, t.IV, p. 9-24.

OXALÁ, Adilson. Igbadu: A cabaça da Existência. Rio de Janeiro, 2006, mimeo.

PEREIRA, Edimilson de Almeida; GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. Flor do


não esquecimento: Cultura popular e processo de transformação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002.

349 , Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009


PIERUCCI, Flávio. A Magia. São Paulo: Publifolha, 2001

WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva.


Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel
Cohn. Brasília: UnB. 2001. v. I

Abstract: the Christian Catholic religion historically placed the woman in


the background, seen as tempting and source of sin, the female figures
of the Catholic Church, are generally depicted as submissive to the will
masculine, Santas Halloween when they were obedient or when they
have transgressed the rules. Although women have expanded their presence
in society, the Christian Catholic religion still is not allowed to perform
the same functions of man during the ritual can not drive it. In this
perspective, this work intends to make a sketch of the representation of
women in religion.

Keywords: women, religion and demonization

Recebido em 2 de junho de 2010.


Aprovado em 29 de junho de 2010.

* Mestranda na Universidade Federal de Goiás. Graduada em História pela Univer-


sidade Estadual de Goiás.E-mail: [email protected]

, Goiânia, v. 7, n. 2, p. 335-350, jul./dez. 2009 350

Você também pode gostar