Livro Ensaios Sobre Filosofia Politica

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Ensaios sobre Filosofia Política

Antonio Santana Sobrinho

Ensaios Sobre Filosofia Política

1ª Edição

Quipá Editora
2021
© 2021 por Antonio Santana Sobrinho. Todos os direitos reservados.

O conteúdo deste livro, bem como seus dados, forma, correção e confiabilidade são de exclusiva
responsabilidade do autor, que permite o download, assim como o compartilhamento, mas sem a
possibilidade de promover alterações, de nenhuma forma, ou, ainda, a utilização do conteúdo para
fins comerciais. Devem ser atribuídos os devidos créditos autorais.

Conselho Editorial:
Me. Adriano Monteiro de Oliveira, Editor-chefe, Quipá Editora
Dra. Anna Ariane Araújo de Lavor, Instituto Federal do Ceará (IFCE) / Dra. Anny Kariny Feitosa,
Instituto Federal do Ceará (IFCE) / Dra. Érica P.C.L. Machado, Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) / / Dr. Marcos Pereira dos Santos, Faculdade Rachel de Queiroz (FAQ)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


________________________________________________________________________
Santana Sobrinho, Antonio
S232e Ensaios sobre filosofia política / Antonio Santana Sobrinho. ― Iguatu, CE : Quipá
Editora, 2021.

69 p.

ISBN 978-65-89091-91-2
DOI 10.36599/qped-ed1.068

1. Filosofia política. I. Título.

CDD 100
________________________________________________________________________________

Elaborada por Rosana de Vasconcelos Sousa ― CRB-3/1409

Essa obra foi publicada pela Quipá Editora em julho de 2021.

Quipá Editora
www.quipaeditora.com.br
@quipaeditora
“Consiste no intento de adquirir conhecimentos
certos sobre a essência do político e sobre a boa
ordem política ou ordem política justa” (Leo
Strauss).
APRESENTAÇÃO

A filosofia política insere-se nas mais diversas reflexões filosóficas pautada sobre a origem
ou a organização da vida em sociedade e as várias implicações que esse convívio impõe aos
indivíduos. O que hoje compreendemos por política é resultado de um processo histórico, que define
nossas concepções contemporâneas, nossos significados, dando consistência às atividades políticas,
como algo fundamental na vida social dos seres humanos. Sabemos que alguns filósofos tenham
refletido sobre os mesmos conhecimentos iniciais e temáticas, a exemplo de a justiça e a natureza das
leis, a relevância de suas propostas está mais na novidade ou especificidade com a qual abordaram
essas questões do que em sua viabilidade prática.
O sentido da filosofia política e seu caráter significativo são tão evidentes hoje como foram
desde a época em que a filosofia política surgiu na Grécia. Esse trabalho enfatiza alguns pensadores
ligados a Filosofia Política os quais estudei na Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Federal
da Paraíba, reuni aqui artigos e capítulo da minha Dissertação defendida em 2011 e apenas agora
resolvi publicar. Portanto, segundo Nelson de Souza Sampaio Filosofia Política “É a reflexão crítica
e sistemática sobre o conhecimento político, sobre as essências, os fins e os valores da política.”
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO 1…………………………………………………………………………………… 07
QUESTIONAMENTO DOS UNIVERSAIS ANTROPOLÓGICOS: O PODER SEGUNDO
FOUCAULT

CAPÍTULO 2…………………………………………………………………………………… 17
THOMAS HOBBES “MALDITO” E “FAMOSO”

CAPÍTULO 3…………………………………………………………………………………… 37
PERCEPÇÃO E REFLEXÃO HISTÓRICA SOBRE O ESTADO SOCIAL DE DIREITO

CAPÍTULO 4…………………………………………………………………………………… 60
O PODER COMO UM DESAFIO TEÓRICO E PRÁTICO: A CRÍTICA DE FOUCAULT AO
MODELO HOBBESIANO DE PODER

SOBRE O AUTOR……………………………………………………………………………… 67

ÍNDICE REMISSIVO………………………………………………………………………….. 68
Ensaios sobre filosofia política

CAPÍTULO 1

QUESTIONAMENTO DOS UNIVERSAIS ANTROPOLÓGICOS:


O PODER SEGUNDO FOUCAULT

Um direito da soberania e uma mecânica da disciplina: entre esses dois limites, creio
eu, é que se pratica o exercício do poder. Mas esses dois limites são de tal forma e
são tão heterogêneos, que nunca se pode fazer que um coincida com o outro. O
poder se exerce, nas sociedades modernas, através, a partir do e no próprio jogo
dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma mecânica da
disciplina.

A ontologia descritiva: poder disciplinar, biopoder, governamentalidade

O projeto foucaultiano avança e desdobra-se de modo descritivo a partir do que ele denomina
de “ontologia do presente”. Para ele, “a tarefa da filosofia como uma análise crítica do nosso mundo
tornou-se algo cada vez mais importante. Talvez, o mais evidente dos problemas filosóficos seja a
questão do tempo presente e daquilo que somos neste exato momento”. Essa compreensão da
filosofia como “ontologia do presente” Foucault elabora a partir do estudo realizado sobre o texto
kantiano O que é o Iluminismo? Foucault afirma ser este um texto fundador, pois pela primeira vez
um filósofo toma o seu presente como conteúdo de reflexão, perguntando-se pelo momento em que
está situado: “O que é este agora no interior do qual estamos?” É essa questão que, segundo Foucault,
conduz o pensamento de Kant neste texto e abre um caminho novo para a filosofia: um discurso que
toma como conteúdo de reflexão o tempo presente.
Seguindo a trilha inaugurada por Immanuel Kant, Foucault traça um programa para sua
filosofia, cuja racionalidade deve brotar da análise histórica. Assim, não teremos mais uma
consideração abstrata dos problemas filosóficos, mas uma apresentação de racionalidades
diferenciadas, referentes a processos históricos distintos. Suas análises procuram, antes de mais nada,
apresentar os diversos mecanismos de poder postos em funcionamento nas sociedades modernas.
Desenvolvendo pesquisas históricas, minuciosas e originais, como as presentes em Vigiar e punir,
História da sexualidade, O nascimento da clínica, História da loucura, Foucault rastreia a origem e
apresenta a reflexão, a discussão, a operacionalização e os efeitos dos diversos mecanismos do
poder, das táticas e das estratégias de dominação utilizadas nas sociedades modernas. O uso dessas
tecnologias de poder, detectadas nos mais recônditos espaços do tecido social, constitui a base de
estabilidade da ordem política dessas sociedades e faz delas uma espécie de arquipélago carcerário.
Foucault nomeia essa sociedade de “sociedade de normalização”.
Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas,

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Ensaios sobre filosofia política

que essas técnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os
procedimentos da normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu,
que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma “sociedade de
normalização.
Suas pesquisas históricas a respeito desse exercício efetivo do poder se voltam para uma área
em geral pouco explorada: a atuação do poder sobre os corpos. No início de Vigiar e punir, Foucault
afirma que “[...] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de
poder têm alcance imediato sobre eles: elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-
no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais”. Porém, esta atuação do poder incidindo
sobre os corpos, que Foucault apresenta como bio-poder, deve ser percebida em suas especificidades.
Sob esse conceito, Foucault colocará em cena dois níveis do exercício do poder: de um lado, ele fará
referência àquelas técnicas que têm como objetivo um adestramento dos corpos, a disciplina; de
outro lado, a governabilidade, voltada para o controle dos corpos enquanto esses pertencem a uma
espécie, enquanto são membros de uma população.
Em Vigiar e punir, Foucault desenvolverá o tema referente ao primeiro nível da análise; já em
A vontade de saber ele examinará a segunda dimensão. Com a análise dessas duas tecnologias do
poder, uma direcionada para o adestramento do corpo, a outra visando à distribuição dos indivíduos
num espaço urbano a ser racionalmente ocupado, Foucault mostra como entre o século XVII e o
XVIII a combinação de preocupações com a liberdade individual, referente ao indivíduo enquanto
sujeito de direitos e este mesmo indivíduo como membro de uma população, com seus problemas
específicos – que precisam ser equacionados sem nem sempre poder levar em consideração esses
direitos individuais – faz nascer uma nova modalidade de exercício do poder: a biopolítica. Foucault
conceitua esse termo da seguinte maneira:

A “biopolítica”: entendia por “biopolítica” a maneira pela qual se tentou, desde o


século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos
fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde,
higiene, natalidade, raças [...] Sabe-se o lugar crescente que esses problemas
ocuparam, desde o século XIX, e as questões políticas e econômicas em que eles se
constituíram até os dias de hoje.

As disciplinas

A biopolítica – entendida como uma tentativa de racionalizar a distribuição da população em


espaços urbanos a serem geridos em função do bem-estar dessa mesma população – se desdobrará
em duas tecnologias de controle dos indivíduos. Na citação abaixo veremos como Foucault apresenta
a primeira tecnologia:

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Ensaios sobre filosofia política

Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se, a partir do século XVII, em


duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos
de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um
dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como
máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas
forças, no crescimento parelho de sua utilidade e docilidade, na sua integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por
procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-políticas do corpo
humano.

No capítulo primeiro da terceira parte de Vigiar e punir, Foucault apresenta o longo processo
pelo qual o corpo foi se constituindo em objeto de interesse para o poder; apresenta também uma
metodologia que identifica e descreve este encontro poder/corpo. Seu interesse primordial será
apresentar os mecanismos, táticas e dispositivos progressivamente utilizados pelo poder na época
clássica e, sobretudo, mostrar como muitos desses dispositivos, aperfeiçoados e transformados,
permanecem como instrumentos importantes de dominação nas sociedades contemporâneas. As
disciplinas estão no centro das tecnologias de poder. Essa dinâmica é assim apresentada por
Foucault:
Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que
há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de
investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso
no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou
obrigações. Muitas coisas, entretanto, são novas nessas técnicas. A escala, em
primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo,
como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica
– movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo.

Foucault mostra como, do fim do século XVII até o início do século XIX, desenvolveu-se
toda uma nova tecnologia de aproveitamento da força dos corpos, toda ela organizada basicamente
em torno da disciplina. Esta se encontra presente em instituições bem específicas, como, por
exemplo, os conventos, as oficinas, os exércitos, expandindo-se posteriormente para toda a sociedade
sob a forma de controle. Todas as instituições fundamentais ao funcionamento da sociedade
capitalista vão se organizar segundo a lógica daquelas antigas instituições disciplinares, só que
redimensionadas em função de novos objetivos. Em uma conjuntura nova, estabelece-se também um
novo regime de governo dos corpos. Foucault explica:
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo
humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tão pouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação
calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo
humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o
recompõe. Uma “anatomia-política”, que é também igualmente mecânica do poder
[...].

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Ensaios sobre filosofia política

Foucault irá privilegiar o exame das técnicas de poder voltadas para o adestramento do corpo,
que o tratam como uma máquina regulável, manipulando suas potencialidades para extrair dele o
máximo de rendimento com o mínimo de desgaste. É necessário preparar os corpos para integrá-los
ao novo regime de produção instaurado a partir do século XVIII. Portanto, a construção de um
micropoder começando pelo corpo, tido como um objeto a ser manipulado, é a chave do poder
disciplinar. É analisando esses mecanismos que Foucault descreve o exercício do poder moderno:

De fato, o nível em que eu gostaria de seguir a transformação não é o nível da teoria


política, mas antes, o nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder.
Então, aí, topamos com coisas familiares: é que, nos séculos XVII e XVIII, viram-se
aparecer técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo
individual. Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a
distribuição espacial dos corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua
colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno destes corpos
individuais, de todo um campo de visibilidade.

Neste texto, Foucault apresenta uma característica nova do poder disciplinar: trata-se do
“campo de visibilidade”. Explorando essa característica, Foucault apresentará um modelo capaz de
permitir elucidar tal particularidade do poder disciplinar.

Crítica ao Panoptismo de Bentham

O modelo de controle existente nas prisões será tomado como parâmetro para se esclarecer a
mudança de atitude em relação ao controle dos indivíduos no Ocidente. O projeto do Panopticon, de
Jeremy Bentham (1791), é apresentado por Foucault como paradigma da tecnologia disciplinar:

O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é


conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada
de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é
dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm
duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá
para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um
condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, podem-se perceber
silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em
que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível.

Com essa imagem-modelo que remete a um controle absoluto, pois o prisioneiro é vigiado o
tempo todo e em todos os aspectos, Foucault não pretende sugerir que as sociedades modernas sejam
totalmente administradas como um grande Panóptico. A imagem utópica de uma sociedade racional,
totalmente administrada, faz parte do projeto de Bentham, mas o propósito de Foucault, ao analisar
sua ocorrência em tais projetos, é desfazer essa ilusão de totalidade administrada e apontar como as

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Ensaios sobre filosofia política

“sociedades de normalização” exercem um controle difuso e disperso, porém um controle ativado e


reconduzido pelos próprios indivíduos. Assim, o Panóptico é tomado como esquema geral de
funcionamento do poder no mundo moderno. Nele, Foucault identifica os elementos constitutivos
fundamentais do poder nas sociedades modernas: a centralização, a eficácia, a individualização e a
moralização, como substitutos da violência física. Conforme a concepção arquitetônica imaginada
por Bentham, um único observador controla a totalidade dos indivíduos, mas, como esses não têm
como furtar-se à vigilância a que estão submetidos, interiorizam o sentimento de observação, de
controle e vigilância contínua, transformando-se nos mais eficazes agentes de sua própria vigilância.
Esse poder terá um caráter anônimo e disseminado, traduzindo-se num controle meticuloso do corpo
e da mente dos indivíduos. Foucault afirma que “o panoptismo é o princípio geral de uma nova
‘anatomia política’ cujo objetivo e fim não são a relação de soberania, mas a relações de disciplina”.
O Panóptico é apresentado como modelo perfeito das tecnologias que serão utilizadas nas prisões,
mas também nas fábricas, escolas, hospitais, asilos, etc. Modelo das tecnologias de poder que se
impõem ao longo do século XIX, caracterizadas por se efetivarem com eficácia à medida que
procuram “atuar com precisão sobre os indivíduos”. Sendo assim, diz Foucault: “a minha hipótese é
que a prisão esteve, desde sua origem, ligada a um projeto de transformação dos indivíduos”.
Ora, quando analisamos o poder “nas sociedades de normalização”, segundo o modelo do
Panóptico, somos levados a investigar qual o principal efeito que essa prisão-modelo consegue
produzir, isto é, convém conhecer o que acontece aos indivíduos submetidos a seu controle. Foucault
caracteriza este efeito:

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente


e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder,
fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua
em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu
exercício; que este aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma
relação de poder independente daquele que o exercer; enfim, que os detentos se
encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores.

O Panóptico é o modelo perfeito para descrever a atuação do poder disciplinar que,


diferentemente de qualquer outra forma de exercício do poder, agirá sobre os corpos e procurará
fabricar e prever seus atos, exercendo-se continuamente através da vigilância e do controle
consentido, de um sistema minucioso de coerções materiais que incitam e estimulam ao invés de
reprimir e dizer não. Como instrumento de poder, as disciplinas não se identificam com nenhuma
instituição específica: operam em todas elas, invadem todos os espaços do corpo social, regulam e
adestram todos os indivíduos em tempo integral, porque, como afirma Foucault, “não cessaram,
desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo

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Ensaios sobre filosofia política

social inteiro”.
Recorrendo ao modelo do panoptismo, Foucault faz aparecer as vantagens que as tecnologias
políticas voltadas para o controle consentido do corpo têm sobre aquelas que o reprimem. Trata-se,
para ele, de descrer o estabelecimento e a multiplicação vitoriosa dessas tecnologias anônimas,
opacas, sem proprietário, sem qualquer lugar privilegiado, sem superior ou inferior, sem repressão,
eficazes de modo quase autônomo, por sua potencialidade de serem reproduzidas e reconduzidas
pelos próprios indivíduos. Essas técnicas vão se afinando e estendendo pelo tecido social sem
precisarem recorrer a um ponto central, a uma ideologia que lhes dê sustentação. Aperfeiçoando a
visibilidade e a capacidade de disciplinar os indivíduos, o poder instala em toda parte o
penitenciário: no lugar da justiça penal que tira indivíduos de circulação, a vigilância constante de
indivíduos e grupos, não importando onde estejam.

O Biopoder

Foucault completará essa ideia de poder disciplinar com outra noção de tecnologia de
controle: o biopoder. Essa noção é desenvolvida em sua obra A vontade de saber, publicada em
1976. Eis como ele apresenta a noção de biopolítica no seu segundo polo:

O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século
XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser
vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a
mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as
condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda
uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população.

No primeiro polo, vimos que ele está voltado para “a disciplina dos corpos”, enquanto neste
segundo, ele se destina “às regulações da população”. O poder sobre a vida fabrica os mecanismos
necessários a uma gestão eficaz dos corpos, atingindo-os em sua totalidade “anatômica e biológica”,
enquanto corpo físico-individual; ele se manifesta ainda de forma “individualizante e especificante”,
enquanto corpo molar, elemento de uma população.
As análises de Foucault não incidem no erro primário, do ponto de vista da história, de
afirmar que as preocupações do Estado com a população que ele tem que administrar seja um
fenômeno originado no século XVIII. O capítulo V de A vontade de saber, onde está desenvolvida a
noção de biopoder, apresenta a preocupação mais remota com o ordenamento da população, mas
esclarece e aponta o elemento novo nessa preocupação só surgido no século XVIII: estudar, analisar
e controlar uma população como um dado fundamental das estratégias de poder. Dreyfus esclarece
bem a perspectiva foucaultiana:

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Ensaios sobre filosofia política

Estes componentes remontam à polis grega, ao exército romano, à república romana,


ao império romano e às bases orientais do cristianismo. Entretanto, foi apenas no
século XVII que o biopoder emergiu como uma tecnologia política coerente; mesmo
assim, não havia realmente a tecnologia dominante durante a Época Clássica.
Porém, este foi um período em que o cuidado com a vida e o crescimento das
populações tornou-se a preocupação central do Estado onde um novo tipo de
racionalidade política e prática assumiu uma forma coerente.

A análise de Foucault enfatiza o seguinte: a partir do final do século XVII, a população foi
tomada como “preocupação central do Estado”, passando a ser apreendida por meio de uma
tecnologia política global e coerente que analisa, classifica e ordena, adotando como suporte as
ciências do homem – Demografia, Medicina Social – as quais, ao se constituírem no século XVIII,
possibilitarão uma gerência eficaz e global, um esquadrinhamento exaustivo e eficaz de todos os
espaços a serem preenchidos e controlados. Foucault esclarece tal fenômeno do seguinte modo:

Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o poder da
soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa
tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a “população” enquanto
tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder
de “fazer-viver”. A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece
um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer
viver e em deixar morrer.

A Governamentalidade

A noção de biopoder faz aflorar a presença do “governo” como um componente fundamental


no exercício do poder nas sociedades administradas. Adestrar corpos e gerir uma população é tarefa
que compete primordialmente ao governo, e esse será tomado como objeto das preocupações de
Foucault. Assim, ele anuncia no início do curso no Collège de France, em 77/78:

O curso tratou da gênese de um saber político que colocaria no centro de suas


preocupações a noção de população e os mecanismos suscetíveis de assegurar a sua
regulação. Passagem de um “Estado territorial” a um “Estado de População?” Sem
dúvida não, pois não se trata de uma substituição, mas de uma nova ênfase, e da
aparição de novos objetivos, portanto de novos problemas e de novas técnicas.
Para seguir essa gênese, tomamos por fio condutor a noção de governo.

Foucault retoma o tema considerando “a noção de governo entendida no sentido amplo de


técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens. Governo das crianças, governo
das almas ou das consciências, governo de uma casa, de um Estado ou de si mesmo”. Portanto, ele
não identifica o governar com o aparelho estatal, com o gerenciamento da coisa pública, mas com
“modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as
possibilidades de ação de outros indivíduos”. A “governamentalidade” é compreendida a partir da

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Ensaios sobre filosofia política

perspectiva de “governo de si” e “governo dos outros”. Essa preocupação aflora com intensidade no
século XVI, com o surgimento dos Estados territoriais, caracterizados pela centralização estatal e
paralelamente com o movimento da Reforma Protestante, que efetiva a dissolução da Igreja Católica
em várias igrejas reformadas. A instituição que representa a centralização do poder no mundo
medieval, a Igreja Católica, deixa de ser um bloco monolítico. Nessa conjuntura, “o questionamento
geral sobre a maneira de governar e de se governar, de conduzir e de se conduzir, acompanha no fim
da feudalidade, o nascimento de novas formas de relações econômicas e sociais e as novas estruturas
políticas”. Porém, já no fim do século XVI e na primeira metade do século XVII, Foucault detecta “a
formação de uma governamentalidade pública: ou seja, a maneira como a conduta de um conjunto de
indivíduos esteve implicada, de modo cada vez mais marcado, no exercício do poder soberano”.
Segundo essa visão, a governamentalidade abrange todos os tipos de governo dos homens, mas de
qualquer forma ela será tematizada tendo em vista a emergência da razão de Estado. Foucault insiste
que essa noção deve ser bem compreendida. O primeiro equívoco que se deve evitar é tomá-la como
uma espécie de curinga que justificaria a infração das regras do jogo; uma super-razão pairando
acima das outras razões do jogo político. Em sua opinião, “a razão de Estado não é o imperativo em
nome do qual se pode ou deve-se infringir todas as outras regras, é a nova matriz de racionalidade
segundo a qual o Príncipe deve exercer sua soberania governando os homens”.
Longe do arbítrio e da violência que caracterizam a “razão de Estado” pensada a partir da
matriz maquiavélica, Foucault propõe um novo sentido que liga a noção de Soberania ao governo
dos homens. Ele compreende a “razão de Estado” da seguinte forma:

Razão de Estado entendida não no sentido pejorativo e negativo que hoje lhe é dado
(ligado à infração dos princípios do direito, da equidade ou da humanidade por
interesse exclusivo do Estado), mas no sentido positivo e plano: o Estado se governa
segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis
naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou da prudência; o Estado, como
a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda de outro tipo. Por sua vez, a arte do
governo, em vez de fundar-se em regras transcendentes, em um modelo
cosmológico ou um ideal filosófico-moral, deverá encontrar os princípios de sua
racionalidade naquilo que constitui a realidade do Estado.

Apresentando a partir de análises históricas a constituição das tecnologias – disciplina,


biopoder, governamentalidade -, Foucault identifica todos os mecanismos envolvidos no exercício
efetivo do poder, daquele poder que se torna eficaz à medida que dispõe e controla os indivíduos.
Tais mecanismos desenvolvem racionalidade que os sustenta e, ao mesmo tempo, os torna mais
operantes. Todos os meios racionais são ativados para possibilitar a constituição, o controle e a
submissão da subjetividade dos indivíduos. Foucault sintetiza assim a sua descrição da gênese desses
mecanismos:

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Ensaios sobre filosofia política

Temos, pois, duas séries: a série corpo – organismo – disciplina – instituições; e a


série população – processos biológicos – mecanismos regulamentadores – Estado.
Um conjunto orgânico institucional: a organo-disciplina da instituição, se vocês
quiserem, e de outro lado, um conjunto biológico e estatal: a biorregulamentação
pelo Estado.

A noção de governamentalidade implica tematizar a função do Estado no exercício do poder


moderno. É preciso identificar a natureza do Estado que nos governa. Foucault apresenta assim o
desafio:
Esta supervalorização do problema do Estado tem uma forma imediata, efetiva e
trágica: o lirismo do monstro frio frente aos indivíduos; a outra forma é a análise
que consiste em reduzir o Estado a um determinado número de funções, como por
exemplo ao desenvolvimento das forças produtivas, à reprodução das relações de
produção, concepção do Estado que o torna absolutamente essencial como alvo de
ataque e como posição privilegiada a ser ocupada. Mas o Estado – hoje
provavelmente não mais do que no decurso de sua história – não teve esta unidade,
esta individualidade, esta funcionalidade rigorosa e direi até esta importância. Afinal
de contas, o Estado não é mais do que uma realidade compósita e uma abstração
mistificada, cuja importância é muito menor do que se acredita. O que é importante
para nossa modernidade, para nossa atualidade, não é tanto a estatização da
sociedade mas o que chamaria de governamentalização do Estado”.

Colocando o Estado como objeto de suas pesquisas, Foucault não está retrocedendo a uma
posição da qual se afastou ao pensar o poder. Ele não considera o Estado como o referencial mais
importante do exercício do poder. Pelo contrário, ele está confirmando e ampliando o seu propósito
de pensar o poder a partir da biopolítica, pois “se o Estado é hoje o que é, é graças a esta
governamentalidade”. Portanto, o que precisa ser demonstrado é a natureza do Estado moderno, a fim
de que se encontrem as razões que expliquem como ele forja a sua transformação numa instituição
voltada para a constituição da subjetividade. Foucault esclarece o seu propósito: “[...] pretendo
mostrar como a governamentalidade nasce a partir de um modelo arcaico, o da pastoral cristã”. Esse
poder estruturado no interior da Igreja Católica será o objeto das análises de Foucault. Ele vai
demonstrar como o poder pastoral, articulando-se a partir da promessa de salvação no outro mundo,
será comutado no poder que promete a salvação nesta vida e neste mundo. A Igreja declina, entra em
cena o Estado; no entanto, a finalidade do poder permanece a mesma: modelar a subjetividade dos
indivíduos.

REFERÊNCIAS

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HUMANOS NO SÉCULO XXI. 10 a 11 de setembro de 1998, Rio de Janeiro. Anais... Rio de
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Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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Ensaios sobre filosofia política

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FOUCAULT, M. Microfísica do poder, Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1979.

FOUCAULT, M.. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Tradução Laura Fraga de
Almeida Sampaio, São Paulo 1996
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FOUCAULT, M. Vigiar e punir. nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 2003.

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Ensaios sobre filosofia política

CAPÍTULO 2

THOMAS HOBBES “MALDITO” E “FAMOSO”

Considerações Iniciais

Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que
nada pode ser injusto.

Para compreender adequadamente a visão antropológica de Hobbes, principalmente no


Leviatã, se faz necessário delimitar algumas influências importantes no seu pensamento. Para
Skinner (1997), a influência da filosofia clássica grega é significativa. No estudo: Razão e Retórica
na Filosofia de Hobbes, o autor traça o percurso intelectual de Hobbes, que passa inicialmente pela
leitura dos autores gregos, principalmente Aristóteles, do qual Hobbes traduziu a Retórica das
Paixões.
A partir dos Elementos da Lei Natural e Política (1640), Hobbes se volta contra a arte
retórica dos estudos humanísticos clássicos e se dedica à ciência, tendo como base a geometria
euclideana e a física de Galileu. A partir deste momento, Hobbes começa a construir as bases de uma
ciência rigorosa que define o homem para chegar ao construto principal que é o Estado, ou o grande
homem artificial. A convivência com Mersenne em Paris, no ano de 1634, abre para Hobbes novas
perspectivas em seu pensamento. Segundo Skinner: “durante a década de 1630, Hobbes não apenas
se afastou dos estudos humanísticos, como também se voltou contra as disciplinas humanistas e,
acima de tudo, contra a ideia de uma arte da eloquência” (SKINNER, 1999, p. 285).
Esta aproximação com a nova ciência inicia-se com Francis Bacon, de quem Hobbes foi
secretário. O encontro com Mersenne, os diálogos com Descartes, os breves e profundos encontros
com Galileu e a convivência com alguns membros da Royal Society, colocam cada vez mais Hobbes
em contato com o pensamento científico que tenta romper com a escolástica. Neste aspecto, Hobbes
pode ser considerado um dos primeiros construtores de uma ciência do homem. Ainda de acordo
com Skinner,
[...] embora a visão hobbesiana do método científico não seja desconhecida, sua explicação é
notável, ainda assim, em vista da segurança e da força polêmica com que ele insiste em que a
ciência civil pode e deve ser classificada entre as ciências demonstrativas (SKINNER, 1999, p.
201).

Historicamente, Hobbes situa-se em um momento de grandes mudanças: o século XVII; os


ecos do renascimento; a nova ciência; as revoluções políticas e religiosas. Período em que tudo
contribui para produção de uma nova visão do homem. Com a publicação do Leviatã, em 1651, sua
obra mais conhecida, Hobbes tenta aprofundar o que já havia escrito nos Elementos da Lei Natural e

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Ensaios sobre filosofia política

Política e na Trilogia: De Cive (1642), De Corpore (1654) e De Homine (1658), apesar destas duas
últimas terem sido posteriores ao Leviatã.
Para Skinner (1999), no Leviatã, Hobbes, apesar de aprimorar sua pretensão de construir uma
ciência antropológica e política do homem, retoma estilisticamente alguns recursos da retórica
humanística, sendo a obra mais híbrida de que, por exemplo, os Elementos da Lei Natural e Política.
Pode-se considerar, portanto, que o Leviatã é uma grande obra que delimita um novo campo
para o estudo do homem, já que o rigor das deduções e a utilização dos princípios da geometria, têm
como objetivo produzir um outro tipo do conhecimento sobre o homem. Existe também, no Leviatã,
uma abordagem teológica judaico-cristã que faz eco ao movimento da reforma. O Leviatã, alegoria
bíblica, retirada do livro de Jó, nos remete à figura que tenta deter a soberba e o orgulho humano.
No Leviatã, Hobbes sintetiza seu pensamento e aprimora-o, tendo como fio condutor à
pretensão de, partindo do modelo geométrico, criar uma ciência política. As bases da teoria do
Estado moderno encontra-se em Maquiavel (1469-1527) e Bodin (1530-1596). Hobbes continua a
pensar o Estado moderno tentando dar a este um estatuto científico. Num primeiro momento, Hobbes
nos fala sobre o homem, indo do Capítulo I ao XV. Partindo da sensação até a passagem do estado da
natureza ao Estado social, Hobbes nos conduz a um modelo interpretativo fechado, que, segundo
Ribeiro (2004) dá pouca margem ao diálogo. Para Macpherson: Logo Hobbes fez à conexão em sua
própria mente, a certeza do método da geometria e a incerteza da moral atual e uma teoria política
viva não pode ser julgada.
O Leviatã foi publicado na Inglaterra em 1651 e valeu a Hobbes a perseguição do clero
francês, o que obrigou o filósofo a retornar à Inglaterra. Perseguido por liberais e religiosos, acusado
de monarquista e ateu, Hobbes não teve trégua dos adversários.
Mesmo com o Carlos II, no poder em 1660, Hobbes continua sendo combatido. Extrair do
Leviatã uma antropologia, ou melhor dizendo, uma bio-antropos-sociologia, é uma tarefa relevante
para se tentar compreender os demais aspectos do pensamento hobbesiano. A famosa, e vulgarizada,
frase “homo homini lupus ” que aparece no De Cive, pouco diz sobre o antropos hobbesiano. O
pensamento hobbesiano é uma totalidade construída através da lógica dedutiva, com alguns aspectos
empiristas relevantes, principalmente a ênfase da sensação como matriz do pensamento e a
linguagem como construção e invenção do social. O corte entre estado de natureza e Estado social é
fundamental para entendermos a passagem da bio ao antropos-social. Através desta abstração,
Hobbes nos remete à linguagem e à razão, que demarca o que é propriamente humano do que
participa de um corpus biológico e natural.
A visão materialista passa por Demócrito e os atomistas, bem como pelos epicuristas,
incluindo Lucrécio. A junção entre razão, dedução e empirismo é uma tentativa de conciliar as várias

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Ensaios sobre filosofia política

tendências da época que culmina com o Iluminismo. Hobbes procede como um geômetra nos seus
trabalhos, utilizando-se do método lógico-dedutivo para definir seus conceitos.
Tendo descoberto aos quarenta anos de idade, a geometria na leitura de Euclides, concebera
um sistema de rigor total, inteiramente fechado, que tudo explicava a partir do movimento: o mundo
psicológico, o mundo moral e o mundo político como o mundo físico. O eixo, simultaneamente
racionalista e materialista, do pensamento de Hobbes não passava por Platão e Aristóteles. Mas por
Demócrito, Epicuro e os sofistas gregos, inimigos de Sócrates. Haviam-se impressionado,
profundamente as relações trazidas ao mundo da natureza por Galileu e Harvey, seus
contemporâneos. Dois séculos antes de Comte, o nosso autor é um positivista, um profundo “teórico
do conhecimento científico” que (no Capitulo IX do Leviatã) propõe uma original classificação das
ciências (CHEVALLIER, 1980, p. 67). Em sua visão antropológica, Hobbes desconfia da capacidade
do homem de se organizar em grupos e por leis da natureza, e vai tecendo os fios da possibilidade
radical, que é a entrega da liberdade em estado de natureza nas mãos de um governo forte: solução
possível para sobrevivência em sociedade.
Segundo Hobbes, “para a natureza humana, sabe-se perfeitamente que, através do medo da
morte e dos preceitos da razão, não será observado tal acordo de paz” (HOBBES, 2000, p. 122).
Para Hobbes, o ser humano é um autômato cuja passionalidade, acionada pelo instinto de
preservação, modela sua vida no estado natural. Nesse estado, somos todos regidos pela
autopreservação. Seguindo seu próprio curso, a competição, a guerra e a luta contínua faz do ser
humano um projeto passional e querelante. No estado natural, todos são iguais, porém, incapazes de
uma vida pacífica.
A luta pela autopreservação faz com que todos os homens se apropriem dos meios para
garantir a sobrevivência. Nesta busca existe a necessidade de acumular bens (recursos naturais e
territoriais), gerando excedentes nos que se apropriam de maior quantidade de recursos, culminado
com a competição; consequentemente, estabelece-se, portanto, uma fonte de guerra contínua. No
estado natural, para Hobbes, todos são iguais, inclusive os mais fracos que “podem usar da
inteligência e habilidade para superar os mais fortes” (HOBBES, 2000, p. 3).
O que vai distinguir o homem dos outros animais é a linguagem, que se expressa pela razão.
Em Hobbes esta é pragmática e calculativa. Através da passagem do estado natural para o social, a
razão vai conduzindo o ser humano à criação de pactos artificiais, mas logo em seguida desconfia da
capacidade do homem de se organizar em grupos regidos por leis estáveis: para superar esta
dificuldade, o homem deve, segundo Hobbes, entregar sua liberdade e sua autonomia nas mãos de
um governo absolutista.
A partir destas concepções, o presente trabalho tem como objetivo analisar e aprofundar a

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Ensaios sobre filosofia política

visão de homem no Leviatã. Tentando ser fiel ao texto, extraindo dele aspectos essenciais para
compreensão da antropologia hobbesiana, definindo como nosso pensador postula sobre as
liberdades entre súdito e soberano. Estudar uma obra é fazê-la falar e, a partir dela, tentar introduzir
novos elementos e extrair lacunas deixadas ou não resolvidas pelo autor. Para Rabuske,
[...] há um círculo hermenêutico, na forma concreta de círculo antropológico. Isto significa
que não há um ponto de partida totalmente sem pressuposto. É sempre o homem concreto,
condicionado, que pergunta pela essência do homem. Já trazemos conosco a nós mesmos, a
nossa situação, a nossa experiência, o nosso horizonte de compreensão. Este horizonte não
deve ser escondido, pois ele é a condição da pergunta. Mas deve ser mantido aberto para
uma compreensão mais profunda. E deve ser refletido, justificando com respeito à base de
sua possibilidade (RABUSKE, 2003, p. 17).

Toda filosofia, na realidade, parte da pergunta o que é o homem  E para onde vai o homem
Toda construção filosófica inicia e termina no homem. Como afirma Penna:

[...] por antropologia filosófica entende-se o estudo das estruturas fundamentais do homem.
A pergunta “o que é o homem?” envolve todas as outras perguntas tipo: o que posso
conhecer? o que devo fazer? a que posso aspirar? (apud RABUSKE, 2003, p. 23).

Posto esta delimitação, pretende-se dar uma contribuição no que se refere à visão do homem
no Leviatã, extraindo do texto a pergunta, o que é o homem para Hobbes não cria o
homem passional e o poder que se autoalimenta do desejo. O Leviatã, nos remete ao início da
formação do Estado moderno. Hobbes, em sua tentativa de ser realista, define assim a utilidade do
Leviatã:
[...] mas quando atento novamente no fato de que a ciência da justiça natural é a única
ciência necessária para os soberanos e para seus principais ministros, e que eles não precisam
ser sobrecarregados com as ciências matemáticas (como precisam nos textos de Platão), além
de por boas leis serem os homens encarregados do seu estudo, e que nem Platão e nem
qualquer outro filósofo até agora ordenou e provou com suficiência ou possibilidade todos os
teoremas da doutrina moral, que os homens podem aprender a partir daí não só a governar
como a obedecer, fico novamente com alguma esperança de que esta minha obra venha um
dia a cair nas mãos de um soberano, que a examinará por si próprio (pois é curto e penso que
claro), sem a ajuda de algum interprete interessado ou invejoso, e que pelo exercício da plena
soberania, protegeu o ensino público desta obra, transformará esta verdade especulativa na
utilidade da prática (HOBBES, 2000, p. 272).

Hobbes tentou resolver problemas. Algumas questões colocadas são até hoje atuais. O
objetivo deste trabalho é examinar a questão: o que é o homem no Leviatã? Para esta tarefa dividiu-
se a presente estudo em três tópicos. No primeiro, acompanha-se Hobbes na primeira parte do
Leviatã, que trata do homem. Neste primeiro momento, visa-se extrair do autor o que ele define
sobre o homem como matéria e forma do estado. Compreender o homem por meio de suas
faculdades corporais, desejo, paixão, poder e razão é fundamental para iniciar e delinear a definição
antropológica que se busca neste estudo.

Dando continuidade à tarefa, a qual me proponho realizar, no tópico dois, discorro sobre o

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Ensaios sobre filosofia política

homem em estado de natureza, iniciando sobre o corpo, tema tão importante em Hobbes, sendo
inclusive alvo de polêmica com Descartes. Para falar deste homem passional em estado de natureza,
utilizo alguns comentadores, principalmente Bobbio e Ribeiro, que nos fala sobre o medo, a
esperança e as marcas que levam o homem a tentar sair do estado de natureza. Outros comentadores
são citados, como Mcpherson (1968) e Strauss (1963).
A transição do homem natural para o artificial sobre a perspectiva de prolongamento ou
modificação é o tema que segue. Essa passagem é importante, já que em Hobbes ela é citada, mas
não aprofundada e problematizada. Utilizo Pogrebinschi em função do caráter sistemático dada pela
autora ao tema. No terceiro tópico, trabalho outro personagem conceitual que é o homem artificial,
ou o Estado, criatura feita à imagem e semelhança do homem. O Estado é o que coloca limites, cria
condições de possibilidades para vivermos em paz.
Nasce com a modernidade, sendo Hobbes o seu arauto. A virtualidade deste Estado fundado
sobre leis naturais, pactos e deliberação humana nos remete aos limites da razão no que se refere ao
controle da natureza passional do homem. Se, na primeira parte do Leviatã, Hobbes dá indícios de
nos falar em ciência utilizando elementos materialistas e mecanicistas, na parte referente ao Estado
utiliza-se de elementos da teologia judaico-cristã que, embora aparecendo na parte sobre homem,
toma fôlego e ganha maiores proporções na parte sobre o Estado. Os elementos teológicos no
pensamento de Hobbes dariam um trabalho à parte, mas não poderia excluí-los deste, mesmo
correndo o risco de não aprofundá-los.
Contudo, o que iremos abordar sobre os postulados de Thomas Hobbes sobre a natureza
humana poderá nos demonstrar uma visão filosófica do que levou nosso pensador a ser considerado
“maldito” e “famoso”.

O HOMEM NATURAL: CORPO, PAIXÃO E PODER

Vive em uma época em que, por causa de nossas guerras civis, abundam os exemplos de
incrível crueldade. Não vejo na história ainda nada pior do que os fatos desta natureza, que se
verificam claramente e dos quais não me acostumo (MONTAIGNE, 2000, P. 367).
Segundo Limonji (2002), Hobbes concebe, em acordo com o espírito do racionalismo do seu
tempo, a filosofia como um sistema em que, partindo-se de noções fundamentais, procede-se de
maneira a derivar delas todas as demais noções que deverão compor o edifício do conhecimento.

[...] essas noções fundamentais são as noções de corpo e de movimento. A partir delas, ele
construiu uma física, da qual derivou uma teoria da natureza humana (uma teoria de

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Ensaios sobre filosofia política

percepção, uma teoria das paixões e dos costumes, que por sua vez lhe serviu de base para
sua teoria política) (LIMONJI, 2002, p. 14).

Hobbes é um filósofo que utiliza elementos materialistas e, de acordo com a época, adotou a
visão mecanicista vigente debitária da nova física, cujos fundamentos encontram-se na Grécia antiga,
através de pensadores como Demócrito, Leucipo, Epicuro, Lucrécio e principalmente Arquimedes e
Euclides. Hobbes situa o corpo do homem na natureza, inserido no espaço de outras espécies
animais, com as quais o homem tem muitas semelhanças. No Leviatã, Hobbes não só compara nossa
espécie com outras quanto à diversas faculdades, como delimita a linguagem como a linha divisória
entre o homem e outras espécies. Sensação, imaginação, memória, experiência, paixões, deliberação
e vontade, todas essas faculdades não nos separam de outras espécies animais. Em relação às
paixões, o desejo e a aversão com o movimento que coloca nosso corpo em busca ou em fuga de
objetos, são comuns a todas as espécies.
Neste aspecto Hobbes utiliza-se de elementos da filosofia de Aristóteles; Aristóteles
delimitou a percepção, a reminiscência, e imaginação (phantasia), linguagem (lógos) e intelecto
passivo (nóesis) e ativo (nóus) como funções que aparecem especificamente no homem. Da nutrição
a sensação, passando pelo apetite (órexis e hormé), o homem encontra-se ligado a todas espécies
animais. A razão em Aristóteles transforma o páthos (passividade) em ação, ou atividade da vontade
que delibera ou escolhe com vistas ao bem do agente para sua felicidade.
Neste movimento do apetite ao controle da razão através da deliberação, encontra-se o
conceito da autarquia cujo objetivo final é a eudaimonia ou a busca da felicidade. Como o homem é
um ser político por excelência, este percurso que passa pela autarquia visa possibilitar o
aprimoramento do animal político. Hobbes acompanha Aristóteles até certo ponto; sendo que muitas
das funções que Aristóteles atribui ao homem, Hobbes liga-as a outras espécies animais; incluindo a
experiência e a deliberação.
Só a linguagem, pela imposição dos nomes, criadas pelo homem através da paixão da
curiosidade, nos diferencia de outras espécies. No Leviatã, Hobbes atesta que, mais que o
discernimento, é a curiosidade que diferencia o homem do animal; “sendo as alegrias desta paixão,
diferentemente do prazer sexual, insaciáveis e muito superiores” (HOBBES, 2000, p. 175). Não
existe separação mente e corpo em Hobbes, sendo este um dos principais aspectos que o distingue de
Descartes. Na Segunda Objeção a Descartes, Hobbes coloca que, como não podemos conceder
qualquer ato sem seu sujeito, assim também não podemos conceber o pensamento sem uma coisa
que pense, a ciência sem uma coisa que saiba e o passeio sem uma coisa que passeie. “De onde se
segue que uma coisa que pensa é alguma coisa de corporal” (HOBBES, 2000, p. 142). Segundo
Bernardes:

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Ensaios sobre filosofia política

[...] em Hobbes, os homens pertencem à classe dos corpos vivos, animais e finitos e,
utilizando-se da física de Galileu todo corpo que pertence ao conjunto dos corpos que se
encontram em movimento persevera neste estado. Existem corpos existencialmente finitos que
pertencem a uma subclasse de corpos animados e que se encontram em um estado cinético
específico, a saber: o movimento intenso, daí segue-se que todo ser vive se esforça em
perseverar em seu estado de movimento interno, o qual se designa por movimento vital
(BERNARDES, 2000, p. 28 e 29).

O conceito de corpo é um elemento fundamental no projeto lógico dedutivo de Hobbes. O


corpo humano é uma peça da engrenagem maior que chamamos corpo artificial ou Estado. Para
construir seu projeto, Hobbes inicia por definir o corpo, o homem e o cidadão: “Do Bios ao
Artifício”. Para Hobbes

[...] a natureza do homem é a soma das suas faculdades e potências naturais, tais como as
faculdades da nutrição, movimento, geração, sensação, razão, etc. Chamamos estas potências
de naturais e elas estão contidas na definição do homem sob estas palavras: animal e racional
(HOBBES, 2000, p. 12).

O homem animal, que no momento nos interessa, liga-nos à natureza. A natureza nos liga a
outras espécies que possuem as mesmas faculdades tais como sensação, imaginação, paixão,
experiência, prudência e preservação da vida. Em Hobbes, o homem é um animal como outros
animais. Para Hobbes, os animais de outras espécies não chegam a constituir sociedades políticas
complexas em função de suas paixões serem mais simples e estarem associadas à autopreservação de
necessidades básicas, tais como excreção, alimentação, reprodução e sobrevivência. Hobbes enumera
alguns argumentos que diferenciam o homem de outras espécies: 1 competição pela honra e
dignidade não encontra-se presente em outras espécies; 2 estas não diferenciam o bem comum do
bem individual e, por natureza, tendem para o bem individual, o que acaba promovendo o bem
comum. O homem tende a comparar e tirar prazer do que é eminente; 3 Em função de não possuir o
uso da razão, não existe em outras espécies o julgamento do outro, enquanto o homem sempre se
julga mais sábio; 4 os animais que não o homem não estão sujeitos aos males e vícios no uso da
linguagem, que é inerente ao homem; 5 a não distinção entre injúria e dano faz com que não exista o
sentimento de ofensa em outras espécies; enquanto na nossa quanto mais satisfeitos mais implicativo
somos.
E finalizando, “por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o
homem surge apenas através do pacto, isso é, artificialmente” (HOBBES, 2000, p. 143). Nesta
passagem é fundamental situar o que começa a definir o que é propriamente humano: paixões como
orgulho, vanglória, inveja, curiosidade, que não servem para garantir nossa sobrevivência, mas
aumentar nosso poder. Linguagem e razão que possibilitam nomear conceitos como justo, injusto,
meu, seu, bem e mal, a religião que nasce da curiosidade e da revelação divina, e por fim, a
necessidade do pacto ou artifício para tentarmos viver em paz, o que para as outras espécies é uma

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Ensaios sobre filosofia política

consequência de sua pertença a natureza. O homem rompe com a natureza e cria o Estado artificial.
O corpo que se move atraído por ou repelido por objetos é o homem em estado natural
movido pela lógica de causa e efeito. Este corpo é o espaço determinado por leis passionais de busca
e fuga pelos objetos que causam prazer ou dor. Contrapondo-se a Aristóteles, Hobbes não situa na
razão mas nos movimentos passionais do corpo a causa das ações.
O homem é força corporal, passionalidade e experiência. A autoconservação ou preservação
da vida é o fundamento deste corpo. A preservação do corpo é obtida através do poder. Poder, como
já vimos, natural e instrumental: o poder que aumenta a potência do corpo para obter possíveis bens
futuros, no homem, associa-se as paixões que são complexificadas pela linguagem. Este poder é
movimento ou a liberdade de mover-se no espaço até outro corpo impedir este movimento (lei da
inércia).
Glória, reputação, riqueza, vanglória, vingança, competição, inveja, todas estas paixões levam
ao movimento de poder invadir e cada vez mais ocupar o espaço do outro. Esta equação do poder, no
Leviatã, assume uma dimensão geométrica, pois não é apenas a qualidade e diversidade dos desejos
que move a busca por poder, mas a incerteza quanto a garantir os meios necessários para
sobrevivência que impele o homem a adquirir mais poder. Este movimento ocorre até o limite onde a
causa inicial encontra-se ameaçada pela morte.

O ser humano, como ser finito dotado de vontade e razão, está determinado a apropriar-se de
um número de bens que possibilite a manutenção do movimento vital e, portanto, de sua
identidade. A característica acumulativa dessa busca por bens é apresentada no seguinte
segmento: dada a finitude da existência humana e que a abundância de bens não pode ser
demonstrada a priori, então é mais racional – por este ser de existência finita – a suposição
da escassez dos bens do que sua abundância. Em outros termos, para um ser racional finito é
mais razoável a suposição da finitude dos bens que o seu contrário. A consequência disso é
que de quanto mais meios (bens) um homem dispuser para manutenção da vida, tanto mais
estará assegurado que o fim último, a preservação da sua vida, será almejado
(BERNARDES, 2002, p. 32).

A preservação da vida e o acúmulo de poder criam para Hobbes algumas dificuldades, quais
sejam: 1 A vida e a manutenção desta é o princípio e finalidade ao qual todo corpo ou ser vivo
almeja; 2 O poder ou expansão do movimento para a garantia os meios para sobrevivência do corpo
nos faz ameaçar ou tirar o direito a vida de outros corpos; 3 No estado de natureza, todos são iguais e
tem direito a garantir os meios para manutenção da vida da maneira que mais aprouver; 4 O conflito,
a guerra, a ameaça da vida do outro é a consequência lógica deste movimento, inclusive de quem
acumula mais e mais, já que existem outros que serão lesados e tentam por todos os meios se
defender e reconquistar o que foi usurpado; 5 Neste exato momento, sentindo a ameaça de morte, ou
a iminência da privação do maior bem; a vida, a paixão do medo faz cessam este movimento. Nesta
passagem o homem começa a deixar o estado passional de natureza e tenta entrar no Estado artificial

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Ensaios sobre filosofia política

dos pactos e das leis jurídicas.


A ideia do direito natural iniciada na época clássica, continuou na Idade Média e, a partir de
Hugo Grócio (1588 – 1625) foi consolidado, na vertente moderna, principalmente a partir do livro
Iure Delli ac paces, de 1625. Hobbes, assim como Espinosa, Locke, Rousseau, faz parte da escola do
direito natural moderno; apesar das concepções filosóficas diferentes. O direito natural moderno
pode ser considerado uma unidade caracterizada por razão e método, sendo não metafísico,
ontológico e ideológico.
Para Bobbio, historicamente, o direito natural é uma tentativa de dar uma resposta
tranquilizadora as consequências corrosivas que os libertinos tinham retirado da crise do
universalismo religioso. Sendo uma reação ao pirronismo moral e relativismo ético. Hobbes utilizou
o direito natural para deduzir sua teoria do homem no estado de natureza e Estado social, utilizando-
se de um modelo dicotômico tipo: ou o homem vive no estado de natureza ou vive no Estado civil.
Bobbio coloca que:
A contraposição entre os dois estados consistente no fato de serem os elementos constitutivos
do primeiro indivíduo singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam
de fato seguindo não a razão (que permanece oculta ou impotente), mas as paixões, os
instintos ou os interesses (…) (BOBBIO, 1991, p. 39).

As paixões, no estado de natureza, predispõem a insociabilidade e a guerra. A vanglória e a


vaidade são paixões que, no estado de natureza, impulsionam o homem para a busca de poder e mais
poder. Este poder é exercido no estado de natureza como o conjunto dos meios empregados para
obter vantagens futuras. Este é insaciável como nossas paixões. O que se pode esperar de homens
inclinados a cupidez e a preguiça? Luta; disputa e acúmulo de poder. A generosidade tão difícil de
ser observada no homem, aparece apenas em poucos indivíduos. Poderíamos considerar
metaforicamente o homem no estado de natureza como exercício da animalidade sem freios onde o
cavalo preto do mito platônico segue seu caminho, indomável, indócil e triunfante ruma as aragens
obscuras do desejo e poder. O cocheiro tenta em vão domesticá-lo, e o cavalo branco é apenas um
bebê inerte a chorar desolado nas garras poderosas da vanglória do cavalo negro.
Para Bobbio, Hobbes, no Leviatã, descreve o estado de natureza em três circunstâncias: 1 nas
sociedades ditas primitivas incluindo os povos bárbaros da antiguidade ou indígenas cujos relatos
Hobbes teria acesso através dos grandes navegações; 2 na guerra civil, onde impera, dentro de um
Estado constituído, a anarquia; 3 na guerra e conflitos entre Estados. A estas três situações Bobbio
denomina a sociedade pré-estatal, anti estatal e interestatal respectivamente.
No Leviatã Hobbes refere-se a essas três situações, tendo inclusive vivenciado a segunda
(anti estatal), na Inglaterra. A análise de Hobbes é descritiva, faltando uma visão dialética da história.
Para Bobbio, existem variações sobre temas fundamentais no que se refere ao estado de natureza

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Ensaios sobre filosofia política

Hobbesiano: na primeira variação o estado de natureza seria um fato historicamente determinado ou


socialmente imaginado; na segunda pontua-se a belicosidade ou harmonia deste estado e na terceira
variação refere-se ao indivíduo isolado ou em sociedade, ainda que seja primitiva.
Na primeira variação, segundo Bobbio, o estado de natureza em Hobbes é parcial, não
universal, e circunscrito a certas relações entre os homens ou grupos. Neste aspecto, diferente de
Rousseau, este estado nunca existiu e é uma hipótese baseada em fatos empíricos de certos
momentos específicos onde não existe um estado jurídico forte. O Beheemoth é a discrição empírica
do estado de natureza provocado pela guerra civil. Bobbio, em relação a belicosidade ou harmonia
do estado de natureza, afirma que:
[...] na figuração Hobbesiana do estado de natureza, confluem três inspirações diversas: a
representação do estado ferino da sociedade humana, segundo a concepção epicuriana
transmitida por Lúcrecio no quinto livre do DE RERUM NATURA; as descrições dos
viajantes ao novo mundo, como foi documentada, de modo amplo e admirável por Landucgi; e
as vivas impressões da guerra civil inglesa (BOBBIO, 1991, p. 50).

Em relação a se o estado de natureza é individual ou social as teorias jusnaturalistas se


inspiram em princípios individualistas. A criação da sociedade política seria portanto uma criação
dos indivíduos. Ao contrário da teoria aristotélica em que há uma continuidade, passando por
indivíduo, famílias, grupos, neste modelo a sociedade política é diversa da natural, sendo um corte
ou criação artificial, advindo assim a dicotomização entre estado de natureza e social. Hobbes,
segundo Bobbio, pode ser considerado o pai do jusnaturalismo moderno já que Grócio ainda utiliza
referências do jusnaturalismo medieval.
É fundamental que, para marcar bem o homem natural de Hobbes possamos recapitular
alguns conceitos básicos no que se refere às faculdades corporais: passionalidade, liberdade,
movimento, poder e guerra de todos contra todos. A conservação da vida humana é o alicerce deste
arcabouço teórico. Pela conservação o poder conquista, invade, orgulha-se, vangloria-se e torna o
estado de natureza o espaço de uma luta sem trégua, sendo que, até o tempo em que não existe luta,
seja um tempo de preparação para esta. O medo, unido a uma tênue esperança de uma vida mais
confortável impele o homem natural a pôr fim à guerra, para dar um basta a sua própria insegurança
e destruição. Segundo Ribeiro:

[...] o medo é das principais experiências que temos de nossa condição. Revela ao homem, no
estado natural, que este é insustentável: por natureza cada indivíduo quer expandir-se; mas
fazendo-o, entra em guerra com os outros. A morte violenta, resultado da própria natureza
humana, limita-a brutalmente: vivemos a temê-la; até novo estado, o medo é a paixão que
melhor nos define. Depois, porém, contêm-se o temor à morte bruta, ao qual não se compara o
novo medo, ao soberano: com ser discricionário, este é discreto e se levarmos uma vida
retirada” estaremos tranquilos (RIBEIRO, 2003, p. 295).

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Ensaios sobre filosofia política

Para Bobbio, o homem, na antropologia do Leviatã, não é um valor absoluto. Não existe
propriamente uma moral no estado de natureza e esta é um produto da invenção da linguagem e
razão e, principalmente, do Estado social. O realismo em Hobbes coloca o homem como um ser
passional e mesquinho no estado de natureza não cabendo a esta antropologia a problemática da
maldade, já que bem e mal são nomes ou marcas postas pela criação da linguagem. Para Bobbio, no
Leviatã:

[...] o homem é um ser da natureza, determinado por leis mecânicas, dominado por paixões
inatas e prepotentes que configuram de modo irrevogável sua posição no mundo. A paixão
mais característica do homem é, talvez, na antropologia de Hobbes, a vaidade: mais a
vaidade do que o interesse, ou seja, mais o prazer de ser estimados e honrado pelos outros do
que de tirar vantagens deles, sendo que a vaidade é o prazer da alma, enquanto o interesse é
o prazer dos sentidos (…) (BOBBIO, 1991, p. 85).

Autores como Bobbio e Skinner consideram que Hobbes absorveu uma antropologia
humanística que deve muito aos autores clássicos. Sendo que aponta não apenas para o trágico, mas
sobretudo para o ridículo ou satírico da condição humana.Nesta passagem sutil entre o estado de
natureza para o Estado social, ou do homem natural para o artificial, encontramos dois aspectos de
nossas paixões que podem ser consideradas como propulsores do movimento de passagem da nossa
passionalidade para nossa racionalidade: a busca e a curiosidade.
O que se pode dizer da moralidade no Leviatã? No estado de natureza não podemos falar de
moral. Na luta de todos contra todos não existe valores morais. Hobbes fala de preço ou valor que
uma atitude tem em relação a uma outra. Todo homem tem seu preço dependendo do valor que
outros dão a determinada ação. Sendo assim, matar, trair, competir, ser generoso ou altruísta só pode
ser valorizado sob o prisma do interesse do outro que observa e coloca um preço na ação. Sem leis
naturais e jurídicas e uma força maior que as façam cumprir não se pode falar de moral.
A moral, no Leviatã, não é apriorística, não nasce com o homem, nem muito menos é
corolário do homem em estado de natureza, mas depende da sociedade política. O homem passional
é, portanto, um ser amoral. Mesmo utilizando-se do recurso das leis naturais provenientes de Deus,
no estado de natureza, o homem não é capaz de, em foro externo, cumpri-las.
Estas leis, que são preceitos morais, como vimos anteriormente, mesmo funcionando em foro
interno, não garantem sua execução, não sendo suficiente para fazer cumprir os pactos. Para Hobbes,
no estado de natureza “as noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem ai ter lugar.
Onde não há poder comum, não há lei, e onde não há lei, não há injustiça” (HOBBES, 2000, p. 110).
Sendo assim, o homem natural, apesar de leis ou normas, necessita do poder da espada para cumpri-
las, pois sua passionalidade não garante a obediência às leis da natureza. O homem as vislumbra,
mas as paixões às obnubilam. Para Hobbes, o Leviatã, alegoria da razão, só é possível a partir do

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Ensaios sobre filosofia política

homem natural e suas paixões desenfreadas.


Como um geômetra, Hobbes vai conduzindo-nos, com algumas pitadas de filosofia clássica
grega e teologia cristã aos labirintos do medo que nos leva a capitular diante do cavalo negro do
terror e da lascívia, que só é detido pelas chicotadas ferozes do cocheiro Leviatã. O homem artificial
é um prolongamento ou modificação do homem natural?
As leis da natureza, baseadas na razão, permitem a passagem do estado de natureza ao Estado
social. O homem artificial constitui-se a partir das leis da razão, sendo um artifício, uma criação.
Para a perspectiva legalista, o homem artificial é uma grande máquina. Esta máquina institui as leis
civis e obrigam o homem a cumpri-las. Do contrato à formação do Estado, as leis da razão
possibilitam a saída do homem do estado de natureza para o Estado social. O soberano transforma as
leis da natureza em leis civis e faz cumprir os pactos. O papel da razão nesta interpretação é
fundamental.
A passagem, misto de paixão e razão, não torna o homem artificial diverso, apenas mais
obediente do que o homem natural. Sendo que o homem natural seria um produto imperfeito fazendo
com que este crie o homem artificial para tentar corrigir as imperfeições geradas pela sua
passionalidade. Passaremos a analisar agora o homem artificial, enfocando as noções de linguagem,
razão e moral e criação do estado por pacto e deliberação do homem.

DO ESTADO: O HOMEM ARTIFICIAL E A LIBERDADE

A linguagem e razão são faculdades que distinguem o homem de outras espécies animais.
São, portanto, pontos de passagem entre o homem natural e artificial. O homem artificial é um
produto da vontade humana, que por medo de sua própria destrutividade entrega o direito e liberdade
naturais ao soberano.
O Estado, homem artificial, como o corpo do homem natural, nasce, alimenta-se, gera e
adoece. A introdução ao Leviatã define e sintetiza o homem artificial, que se desdobra nos seguintes
aspectos: 1 Assim como Deus criou o mundo, o homem, criatura, imita pela arte o criador e cria o
homem artificial: o Estado é uma criação humana; 2 A vida humana é movimento que inicia nos
membros, cujo início vem de uma parte interna do corpo, e os órgãos tipo coração, nervos e juntas
podem ser comparadas a corda, ponteiros e rodas, cuja engrenagem se assemelha a uma máquina
(relógio, por exemplo), sendo o ser humano um autômato criado por Deus. Este autômato humano,
pela arte cria a grande maquina artificial da qual é apenas uma parte; o Leviatã Estado ou cidade; 3 O
homem artificial foi projetado para a criação e proteção do homem natural, sendo um homem de
maior estatura e porte, portanto, mais potente; 4 Se fossemos desenhar o homem artificial, a alma ou

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Ensaios sobre filosofia política

cabeça artificial seria o soberano, os magistrados e outros funcionários as juntas artificiais, a


recompensa e castigo são os nervos, a riqueza e a prosperidade de todo membro individual é a força;
a segurança do povo, seu objetivo; os conselheiros a memória, a justiça e as leis, razão e vontades
artificiais; a concórdia e a saúde; a sedição é a doença; e a guerra civil é a morte. Pactos e
convenções são a luz, ou verbo que determina: faça-se o homem artificial.
Hobbes adota um modelo inspirado na medicina, produto da fisiologia e anatomia da época
para criar a metáfora do Estado. A criação do Leviatã é uma mistura de ciências fisiológicas,
anatômicas, medicina, retórica clássica e teologia. Para Bobbio, a criação do Estado no Leviatã é
uma tentativa de controlar as forças passionais e obscuras do homem natural, unindo a política à
geometria.
Relojoeiro ou arquiteto, o homem – ou melhor, o gênero humano em seu desenvolvimento
histórico – construiu, ao instituir o Estado, o mais complicado, talvez mesmo o mais
delicado, certamente o mais sutil dos engenhos, o que lhe permite nada menos do que
sobreviver na natureza nem sempre amiga. Se é verdade que o homem é chamado não
apensas a imitar, mas também a corrigir a natureza, a expressão mais alta e mais nobre dessa
sua qualidade de artífice é a constituição do Estado (BOBBIO, 1991, p. 313).

No Estado social não podemos mais falar do homem, mas do soberano e dos súditos. Como
súditos, o homem não tem a liberdade de fazer o que a razão de cada um aprouver. A liberdade do
súdito, no âmbito da lei, é apenas a permissão de agir de acordo com a normatização do soberano:
comprar e vender, realizar contratos mútuos, escolher a residência, alimentação; profissão instruir
filhos e alguns atos de foro íntimo.
Para grande parte das ações existem leis que determinam e regularizam o caminho a ser
seguido. O homem artificial se move dentro da sociedade jurídica, sendo sua liberdade limitada por
esta. Existe porém, no Leviatã, um direito natural que o homem mantém no Estado social que é o da
preservação da vida e do corpo. Quando está sendo ameaçada a vida ou a manutenção desta o súdito
tem pleno direito de resistir.
O medo da morte e esperança de uma vida melhor iniciam o movimento para a criação do
Estado social. E esta é o único e inalienável direito que o homem não perde na passagem do estado
de natureza ao Estado social. Nas ocasiões em que este direito está sendo ameaçado o súdito tem,
inclusive, a liberdade de desobedecer.
A liberdade de conservar a vida e o corpo íntegros é acompanhada da liberdade de não
confessar a um crime cometido pela pessoa ou por outrem; assim como a liberdade de recusar matar-
se e matar a outro, mesmo que seja ordenado pelo soberano. A deserção de obrigações militares
também pode ser considerada outra liberdade natural, pois as obrigações militares podem
comprometer a integridade do corpo. Excetuando-se esta liberdade de manter a vida e a integridade

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Ensaios sobre filosofia política

do corpo, outras liberdades dependem do silêncio das leis. A liberdade no homem artificial não pode
ser reduzida a coação externa ou medo de punição por violar as leis. Apesar dos limites da imposição
e do medo, esta liberdade busca a paz entre os homens, que no estado de natureza é impossível. A
necessidade de paz e da manutenção da vida gera no homem uma colocação de limites na sua
liberdade natural.
A passionalidade pode ser considerada uma coação interna, pois nos faz agir de maneira a
prejudicar o outro. Sendo o homem determinado por suas paixões no estado de natureza, só a entrega
voluntária da sua liberdade ao poder soberano dá garantia de preservarmos a vida. Em relação aos
súditos, Hobbes analisa pecados e crimes cometidos por estes como transgressões, atos contra a lei e
omissão de atos ordenados pela lei. Para ele, todo crime é pecado, mas nem todo pecado é crime.
Ambos só existem em Estado social e referentes às leis. Onde acaba a lei não existem, portanto,
pecados e crimes. A busca de crimes se encontra em defeitos de entendimento, erros no raciocínio ou
brusca força das paixões. Das paixões que mais predispõe ao crime a vangloria é a mais frequente. O
medo é a paixão que menos faz tender os homens a violar as leis.
Assim podemos colocar num gráfico hipotético o medo como ponto 1 de uma escala que
predispõe ao crime e a vanglória como grau . Dos medos, o de aniquilação corporal é o principal.
Dentre os crimes o pior é matar contra a lei, e se for com tortura, mais grave do que simplesmente
matar. Por ordem de gradação de gravidade podemos colocar em ordem crescente, segundo o
Leviatã: 1 violação da castidade de mulher solteira por sedução; 2 violação da mulher casada pela
força; 3 roubar por consentimento fraudulento e por clandestina subtração;4 roubar por temor da
morte ou ferimentos corporais; 5 mutilação de um membro; 6 matar simplesmente e 7 matar por
tortura como vimos no início.
Os crimes são feitos ou contra o Estado ou contra um particular, sendo chamados de públicos
ou privados. Estes recebem uma pena que é um “dano infringido pela autoridade pública, a quem fez
ou omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a
vontade dos homens fique mais disposta à obediência” (Hobbes, 2000, p. 235).
A obediência ou a sujeição da liberdade natural é fundamental para contrapor ao orgulho,
vanglória e outras paixões que fazem o homem tentar destruir o direito de outro homem. Segundo
Pogrebinschi (2003), Hobbes é um autor secularista e teológico, cuja teoria do contrato social é
transcendente; o que leva a remeter a obediência e a capitulação do homem ao estado a uma fé que,
junto com o medo, formam a base da capitulação do homem natural ao Estado. A existência de uma
razão teológica e uma paixão divina, seja ela a fé ou o medo, são, para a autora, elementos teológicos
que são pouco estudados na teoria de Hobbes.
Bobbio tem uma visão diversa; já que considera que a teologia em Hobbes ocupa um lugar

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Ensaios sobre filosofia política

diferente da teoria política, incluindo uma interpretação do cristianismo diferente da igreja católica e
protestante. A obediência seria uma consequência dedutiva de sua visão política e de sua opção pelo
regime monárquico, embasando em análise científica o surgimento do homem artificial. Para Bobbio
e Ribeiro, não existe transcendência na política Hobbesiana.
Hobbes é um autor conservador, não dialético, realista e com compromisso histórico pela
monarquia bem delimitado. Mesmo assim não se pode reduzir o pensamento de Hobbes a construção
de uma justificativa política para a monarquia. Ao discorrer sobre os três principais tipos de
governos; monarquia, aristocracia e democracia, Hobbes tenta agir como cientista político analisando
os prós e contras de cada forma de governo. Se nos conduz a monarquia como, das três, a preferível,
é porque utiliza argumentos baseados na sua antropologia e coerentes com ela.
Embasados na passionalidade humana, vê na democracia e aristocracia possibilidades de
deturpação do exercício do poder que, apesar de presentes na monarquia, teria um risco menor de
ocorrer nesta forma de governo. Seria a monarquia absoluta então, a forma mais provável de governo
que possibilita a paz entre os homens, mesmo com riscos de degenerescências e doenças do exercício
do poder. a sociedade civil e o homem artificial ser viável é necessário um Estado forte. Para
Hobbes, a monarquia é o mais adequado. O Estado pode ser por instituição ou por aquisição. No
primeiro caso, por medo uns dos outros, os homens pactuam para dar o poder ao Estado, que tem por
obrigação garantir a paz e tirar os súditos da condição de guerra. O Estado por aquisição é quando o
poder é usurpado ou conquistado através da força, como é o caso da guerra, ou através da geração
que é o poder que se exerce no interior de uma família.
O que nos interessa focar no Leviatã é que o Estado, homem artificial, deve garantir aos
súditos o que eles buscam ao pactuar, que é a paz, a vida e condições adequadas para exercê-la. O
Estado é quem define o que é meu e seu, inclusive o direito a propriedade. Esta invasão do poder
central na vida do súdito visa transformar o homem num ser menos passional e querelante. Sem os
limites impostos pelo Leviatã não é possível, para Hobbes, uma convivência pacífica entre estes. O
Estado, razão absoluta, seria a solução Hobbesiana para a passionalidade humana.
Antes de falar sobre as doenças do Estado, Hobbes nos fala de sua saúde ou nutrição e
procriação. Por nutrição Hobbes entende a abundância e distribuição dos materiais necessários a
vida, no acondicionamento e preparação e entrega para uso público. A matéria desta nutrição pode
ser nativa ou estrangeira, e consiste em animais, vegetais e minerais. Depende do trabalho e esforço
dos homens. A distribuição esta relacionada à propriedade. Só podemos falar de propriedade
relacionada ao advento do Estado, pois para o homem natural não existe delimitação entre o meu e
teu. A propriedade do súdito consiste
[...] no direito de excluir todos os outros súditos do uso destas terras, mas não de excluir o

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Ensaios sobre filosofia política

soberano, quer este seja uma assembleia ou um monarca. Dado que o soberano, quer dizer, o
estado (cuja pessoa ele representa), se entende que nada faz que não seja em vista da paz e
segurança comuns, essa distribuição das terras deve ser entendida como realizada em vista
do mesmo. Em consequência, qualquer distribuição que ela faça em prejuízo dessa paz e
dessa segurança é contraria a vontade de todos os súditos que confiaram a paz e a segurança
de suas vidas à discrição e consciência do soberano, e assim essa distribuição deve pela
vontade de cada um deles ser considerada nula (HOBBES, 2000, p. 191).

Para Hobbes a propriedade não é um direito natural, mas artificial. O Estado como regulador
do direito à propriedade pode ser visto, em Hobbes como uma solução política para limitar a
usurpação e voracidade da nascente burguesia. Ribeiro considera neste aspecto, Hobbes um pensador
político que tenta frear a acumulação burguesa através do Estado. Ribeiro analisa a propriedade em
Hobbes como a condição do homem em sociedade, vinculada à justiça distributiva e instauradora da
desigualdade, já que confere a cada um o que é próprio. Não existe no Leviatã um direito de
propriedade, mas a propriedade é considerada uma concessão arbitraria do Estado. A lei, lex é o que
instaura a propriedade.
A lei civil e a lei da natureza se interelacionam e são de idêntica extensão. Só o Estado
legisla, faz e aplica as leis. O soberano de um Estado não está sujeito às leis civis, porém está sujeito
às leis da natureza. A lei civil é uma obrigação que nos priva da liberdade natural. Não podemos
confundir lei e jus; ou, obrigação e liberdade. As leis civis são então a extensão das leis da natureza,
sendo alicerces fundamentais para a construção do homem artificial. Ao soberano cabe fazer os
súditos cumpri-las e a estes obedecerem. Este é o resultado do ato que nos tira do estado de guerra.
Obedecer ou morrer. Paz e obediência são os dois lados da mesma moeda. Segundo Pogrebinschi:

[...] está percebido, portanto, que a lei civil não apenas retira sua validade da lei da natureza
como também seu próprio conteúdo a refletir este entendimento afasta o argumento de que
os homens Hobbesianos devem obediência à lei civil e nada mais, posto que ela é a lei do
soberano, a lei do estado. Ao obedecerem às leis civis, os homens estão antes e
necessariamente obedecendo as leis da natureza ou leis de Deus. Sem o estado forte não é
possível a obediência às leis. O soberano é o que obriga ao cumprimento delas in foro
externo (POGREBINSCHI, 2003, p. 165).

Vimos então, na nutrição e procriação do Estado alguns elementos vitais para o bom
funcionamento. As leis seriam a normalização deste funcionamento, extensão da razão que se torna
lex. Quanto à circulação do dinheiro, que faz parte do Estado, Hobbes utiliza uma metáfora
fisiológica comparando esta circulação no homem artificial a circulação sanguínea do homem
natural.
A procriação do Estado seria os nichos do Estado, grupos de pessoas enviadas pelo Estado,
sob a direção de um chefe ou governador, para povoar um país estrangeiro. Hobbes faz alusão às
colônias e a normatização destas. Em toda a análise da nutrição e procriação do Estado perpassa a
ideia do homem artificial, corpo único, ou Estado-soberano e súditos unidos pela conservação da paz

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Ensaios sobre filosofia política

e esperança de uma vida satisfatória. A sociedade civil, as leis e a obediência ao poder central
formam o tripé desse Estado moderno. Um Estado que garante a paz em troca da liberdade natural.
Tal qual o homem natural, este Estado adoece e se enfraquece.
É são estas doenças que vamos analisar agora. “Muito embora nada do que os mortais fazem
possa ser imortal, contudo, se os homens se servissem da razão da maneira como fingem fazê-lo,
podiam pelo menos evitar que seus estados perecessem devido a males internos” (HOBBES, 2000, p.
243).
O uso inadequado da razão produz enfermidades no homem artificial. Um dos motivos
principais é o uso de um poder menor do que se deveria ter para rebeliões. O não exercício do poder
de maneira ilimitada leva a desobediência dos súditos, gerando enfraquecimento e doença tal como o
corpo do homem natural que tem defeitos e gera crianças defeituosas. Existem doenças que provém
de doutrinas falsas e sediciosas, principalmente as que pregam que o indivíduo é juiz de todas as
coisas, inclusive do bem e mal. Agir de acordo com a consciência individual e não de acordo com a
lei civil é um fator de corrosão do Estado.
No que se refere a religião, a opinião de que a fé e a santidade não são atingidas pela razão e
sim pela inspiração sobrenatural; relativiza a religião e faz com que haja uma infusão de crenças, o
que pode desestabilizar o Estado. O Estado necessita dirigir às consciências e crença para não haver
multiplicidade de opiniões, o que enfraquece o homem artificial. Ele não está sujeito a leis civis é
uma condição fundamental para o poder soberano ser exercido e a opinião contraria é contra a
estabilidade do Estado. As únicas leis às quais o soberano deve obedecer são as naturais que são
provenientes de Deus.
O livre direito a propriedade é outra causa que enfraquece o Estado. Este é um aspecto
importante no Leviatã, como já analisamos, já que a propriedade nasce com o Estado, não sendo
direito, mas sendo adquirido através da lei com o controle do soberano. A divisão dos poderes e a
rebelião são graves enfermidades, sendo a última comparada a Hidrofobia. O poder não pode ser
dividido, e muito menos contestado.
Neste aspecto Hobbes, diverge das teorias liberais de Locke e Montesquieu, que acabaram
por triunfar historicamente. A liberdade de pensamento, a leitura de livros de política e história que
possam levar a rebelião são males corrosivos para a vitalidade do Estado. A existência de mais de um
poder e principalmente a divisão entre poder espiritual e terreno contribui para a derrocada do
Estado. A epilepsia é a doença que corresponde a esta divisão que refere-se a supremacia do
espiritual sobre o terreno e
vice-versa. Este é um dos aspectos fundamentais no Leviatã, que fala da indivisibilidade do
poder civil e da laicização do Estado. Este é obra de homens e governado por homens. Mesmo

33
Ensaios sobre filosofia política

derivando as leis natural do poder divino e comparando os dois reinos quanto a sua constituição,
Hobbes não os mistura.
Bobbio coloca que, no Leviatã, há uma total conversão da igreja em instituição do Estado.
Ambos, igreja e Estado compõe o homem artificial. A partilha do Estado atribuindo diversas funções
a terceiros, é comparado a uma aberração humana para Hobbes que compara a divisão do poder a
uma aberração ou teratogênia dizendo: “mas uma vez vi um homem que tinha outro homem ligado a
um dos seus lados, com cabeça, braço, tronco e estômago próprios: se tivesse outro homem do outro
lado, a comparação podia então ser exata” (HOBBES, 2000, p. 249).
A corrupção é pleurisia com febres e pontadas ao tórax. A infusão de doutrinas falsas no
Estado é ascaridíase. As conquistas sem limites, são bulimia, as caóticas, tumores. A demagogia e
populismo são comparados a feitiçaria e predispõe a revoltas. Por fim, ao sucumbir a doença, o
estado de natureza é restabelecido quando o estado é dissolvido por guerra interna e externa.
Entramos então no reino do Behemoth.
O homem artificial, que metaforicamente chama-se Leviatã, ou REI DA SOBERBA é o
antípoda de Behemoth, rei e senhor do caos. Ambas as alegorias bíblicas fazem parte de um círculo
onde, ora Leviatã prevalece e Behemoth sucumbe ou vice e versa. A antropologia em Hobbes
complexifica-se em um homem natural real e um homem artificial ficção. O Estado Leviatã é um
corpo, máquina construída por medo e esperança ou ainda fé. A obediência é o que possibilita este
corpo funcionar. A razão guia o homem artificial do pacto ao Estado. Tentamos pelo poder da espada,
viver em paz, mas a razão se corrompe e adoece, é falível, assim como o homem artificial.

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36
Ensaios sobre filosofia política

CAPÍTULO 3

PERCEPÇÃO E REFLEXÃO HISTÓRICA


SOBRE O ESTADO SOCIAL DE DIREITO

Considerações iniciais

O propósito desse trabalho é buscar analisar em linhas gerais algumas teses de pensadores
que optaram pela abordagem do tema o Estado Social de Direitos em suas percepções e reflexões,
visando compreender em sua construção embasada na questão dos Direitos Humanos. Nesse sentido,
ressalta-se a igualdade jurídica construída pelo processo Revolucionário europeu dos séculos XVII e
XVIII, diante desses pressupostos perceba-se e reflita numa construção crítica e dialética dos
conceitos da igualdade material. Salientamos que essa questão tem origem na Grécia com o
pensamento aristotélico que apresenta4va como único conceito de justiça: os iguais devem ser
tratados de maneira igual e os desiguais de forma desigual, sendo a4ss4im um modelo de estado de
Direito com ênfase na subordinação, porém é objeto central deste artigo, pois, a questão da igualdade
a todos é um tema fundido na modernidade ou seja nos século XVII e XVIII com a crescente
burguesia nos processos Revolucionários Inglês, Francês e Americano, destacando a França que
defendia a igualdade diante do novo Estado ou Regime que estava emergindo. Na Inglaterra com: a
Petição de Direito (“Petition of Right”), de 1628, elaborada na Inglaterra por Edward Coke
direcionando ao Rei, estabelecendo: “Petição de Direito”, de 1628, que recebia solicitações distintas,
tanto em nome de um particular, como também em nome do interesse coletivo. Esta Petição de
Direito expressava, por exemplo, que ninguém seria obrigado a contribuir com qualquer oferta,
empréstimo ou benevolência e a pagar qualquer taxa ou imposto, sem o consentimento de todos,
sobretudo do Parlamento, como uma espécie de autorização parlamenta a Lei do “Habeas Corpus”
(“Habeas Corpus Amendment Act”), de 1679, que não teve muita eficiência naquele momento,
porém, enfatizava as reivindicações de liberdade individual, garantia de liberdade, e retirava da
nobreza uma das suas mais importantes armas: as prisões arbitrárias” e a Declaração de Direitos
(“Bill of Rights”), de 1689, criada a partir da Revolução Gloriosa ocorrida na Inglaterra entre 1688 e
1689 A “Declaração de Direitos” 1689, definida por Dallari:

O “Bill of Rights”, cujo título oficial era “um ato declarando os direitos e as liberdades da
pessoa e ajustando a sucessão da coroa”, sucedeu “uma declaração que visava dar
legitimidade aos sucessores do rei que havia fugido, bem como afirmar a legitimidade do
próprio Parlamento. O novo texto aprovado por esse Parlamento foi promulgado como
declaração com força de lei, razão pela qual passou a ser conhecido como ‘Bill of Rights’”
(DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 176).

37
Ensaios sobre filosofia política

Constitui-se um dos textos constitucionais mais importantes, pois, produziu um significado


de restrição ao poder do Estado representado pelo Rei desse modo, trazia no seu bojo, o
fortalecimento do princípio da legalidade, a liberdade da eleição dos membros do Parlamento e a
proibição de aplicação de penas arbitrarias. Com todo o avanço em termos de declaração de direitos,
a mesma estabelecia em seu nascedouro a negação expressa da liberdade e igualdade religiosa. No
entanto, o documento mais importante da Idade Moderna sobre direitos humanos individuais é a
Declaração de Direitos (“Bill of Rights”) de 1688, resultado do processo da Revolução burguesa
inglesa, através da supremacia do parlamento inglês, que impões a abdicação do Rei Jaime II e da
designação dos novos monarcas Guilherme III e Maria II, que tinham poderes reais mais restrito.
Dessa forma, aparecendo na Inglaterra, uma Monarquia Nacional Constitucional, submetida à
“soberania popular”, derrotando a Monarquia de Direito Divino.
Salienta -se que esse processo Revolucionário inglês inspirou a edição de declarações e leis
semelhantes nas colônias inglesas da América do Norte, tendo como consequência final a aprovação
de um conjunto de dez emendas contendo declarações de direitos fundamentais e suas garantias que
foram incorporadas à Constituição dos Estados Unidos da América de 1787.
Portanto, com as Revoluções Burguesas instaura se os direitos humanos tendo uma tradição
liberal pois separou o público do privado - que conduziu o processo histórico entre os séculos os
XVII até o início do Século XIX, quando termina o período das revoluções burguesas – extingui -se
os privilégios do Antigo Regime, mas criou novas desigualdades e novos privilégios. É nesse
contexto histórico que irrompe na cena política o socialismo, que tem suas raízes naqueles
movimentos mais radicais da Revolução Francesa que queriam não somente a realização da
liberdade, mas também da igualdade. Segundo (HOBSBAWN, 1982), a egalité da Revolução
Francesa era a igualdade dos cidadãos diante da lei, mas o capitalismo estava criando novas grandes
desigualdades econômicas e sociais, e os socialistas reivindicam uma igualdade mais efetiva.
Durante todo o século XIX e grande parte do século XX, o movimento socialista agiu em duas
direções: ampliação e universalização dos direitos “burgueses”, ou seja, dos direitos civis e políticos,
e criação de novos direitos, econômicos e sociais. Essas lutas foram realizadas “contra” o
liberalismo, porque, no seu embate contra o absolutismo, o liberalismo considerava o Estado como
um mal necessário e mantinha uma relação de intrínseca desconfiança: a questão central era a
garantia das liberdades individuais contra a intervenção do Estado nos assuntos particulares. Agora,
ao contrário, o socialismo exigia que Estado fornecesse um certo número de serviços para diminuir
as desigualdades econômicas e sociais e permitir a efetiva participação de todos os cidadãos à vida e
ao “bem-estar” social.
Estando presente entre os lemas das Revoluções burguesas, o tema da igualdade sempre foi o

38
Ensaios sobre filosofia política

centro do debate das ideias do socialismo. Fertilizada, nas ideias do Iluminismo de Rousseau como
antecessor, constituindo a essência dos movimentos socialistas que surgem, no começo do século
XIX, é construído a partir dos movimentos revolucionários de 1848 (publicação do Manifesto
Comunista) (MARX, 1991), se contrapondo às profundas desigualdades econômicas e sociais criadas
pela revolução industrial do século XIX que atingiu outros países.
Durante a Revolução Francesa, nas constituições subsequentes à “Declaração dos direitos do
homem e do cidadão de 1789”, ressaltando que foi influenciada pela Declaração de Independência
dos Estados Unidos, de 04 de julho de 1776, redigida por Thomas Jefferson, conhecida como
“Declaração da Filadélfia”, documento de grande valor histórico, sendo resultado da luta das
colônias da parte Norte dos Estados Unidos( Povoamento) contra o autoritarismo do Estado Inglês da
época e do desenvolvimento das ideias burguesas. A Declaração de Independência dos Estados
Unidos teve como esteio preponderante a restrição do poder estatal, como se percebe de alguns
pontos do documento:
Percebe se uma posição antiabsolutista sobre a influência do protestantismo que configurava
o quadro histórico em que os colonos conquistavam sua independência. Como queriam se libertar do
governo absoluto inglês através de um processo de luta que união as colônias pela autonomia
pautado no espirito das leis. Sendo dessa forma, é necessário verificar a conjuntura apresentadas nas
primeiras frases da Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, de 04 de julho de
1776, onde foi proclamado o que segue:

Quando, no decurso da história humana, se torna necessário a um povo quebrar os elos


políticos que o ligavam a outro e assumir, de entre os poderes terrenos, um estatuto de
diferenciação e igualdade ao qual as leis da natureza e do Deus da natureza lhe conferem
direito, o respeito que é devido perante as opiniões da humanidade exige que esse povo
declare as razões que o impelem à separação. Consideramos estas verdades por si mesmo
evidentes, que todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador
certos Direitos inalienáveis, entre os quais se contam a Vida, a Liberdade e a busca da
Felicidade. Que sempre que qualquer Forma de Governo se torne destruidora de tais
propósitos, o Povo tem Direito a alterá-la ou aboli-la, bem como a instituir um novo
Governo, assentando os seus fundamentos nesses princípios e organizando os seus poderes
do modo que lhe pareça mais adequado à promoção da sua Segurança e Felicidade. Mas
quando um extenso rol de abusos e usurpações, invariavelmente com um mesmo objetivo,
evidencia a intenção de enfraquecê-lo sob um Despotismo absoluto, é seu direito, é seu
dever, destituir tal Governo e nomear novos Guardas para a sua segurança futura. Tal tem
sido o paciente sofrimento destas Colônias; e tal é agora a necessidade que as obriga a alterar
os seus anteriores Sistemas de Governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha é uma
história de sucessivas injúrias e usurpações, todas com o objetivo último de estabelecer um
regime absoluto de Tirania sobre estes Estados. Para provar tudo isto, que se apresentem os
fatos perante o Mundo honesto.

Em tempo, também que essa Revolução, por exemplo, nas de 1791 e 1793, surgindo os primeiros
“direitos sociais”: a assistência pública aos pobres e necessitados é considerada “um direito
sagrado”, assim como o trabalho, a instrução primária universal e gratuita. Tais direitos não tiveram

39
Ensaios sobre filosofia política

maiores consequências na época, mas reaparecerão com mais efetividade na Constituição Francesa
de 1848. (COMPARATO, 2001) Estava, assim, aberto o caminho que levaria progressivamente à
inclusão de uma série de direitos que foram conquistados “contra” a tradição liberal, em nome do
socialismo. Desse modo, esses acontecimentos fizeram reascender um novo conceito de igualdade, a
igualdade formal ou jurídica. Para Rodrigues:

O sujeito adquiriu importância no meio social, diferentemente do que ocorria na Antiguidade


e na Idade Média onde predominavam os valores coletivos. Na Modernidade primeiro se
pensa o sujeito com suas particularidades e anseios para depois se pensar na sociedade que
nada mais é do que a junção dos interesses de cada indivíduo. O privado supera o público e o
indivíduo prevalece sobre o corpo social. Se para os antigos, a virtude cívica significava
subordinação dos interesses pessoais aos ideais coletivos. Entre os modernos, o ordenamento
das questões públicas deve respeitar e refletir as preferências individuais.

No entanto, segundo José Afonso da Silva (2000, p. 217):


[...] cunhou o princípio de que os indivíduos nascem e permanecem iguais em direito. Mas aí
firmara a igualdade jurídico-formal no plano político, de caráter puramente negativo, visando
a abolir os privilégios, isenções pessoais e regalias de classe. Esse tipo de igualdade gerou as
desigualdades econômicas, porque fundada numa visão individualista do indivíduo, membro
de uma sociedade liberal relativamente homogênea.

Este movimento tomará um grande impulso com as revoluções socialistas do século XX. Já a
Revolução Mexicana de 1915/17 havia colocado claramente em primeiro plano a necessidade de
garantir os direitos econômicos e sociais. Em 31 de janeiro de 1917, os revolucionários mexicanos
aprovaram uma Constituição que, além de estender os direitos civis e políticos a toda a população,
pela primeira vez incorporava amplamente direitos econômicos e sociais, com o consequente
estabelecimento de restrições à propriedade privada (COMPARATO, 2001). Sendo considerado
marco normativo em matéria de direitos humanos porque garantiu direitos individuais com fortes
tendências sociais, como, por exemplo, direitos trabalhistas e efetivação da educação. Vejamos a
Constituição Politica dos Estados do México:
Articulo 1º: En los Estados Unidos Mexicanos todo individuo gozará de las garantías que
otorga esta Constitución, las cuales no podrán restringirse ni suspenderse, sino en los casos y
con las condiciones que ella misma establece. Articulo 2º: Está prohibida la esclavitud en los
Estados Unidos Mexicanos. Los esclavos del extranjero que entren al territorio nacional
alcanzarán por ese solo hecho, su libertad y la protección de las leyes. Articulo 3º: La
educación que imparte el Estado - Federación, Estados, Municipios -, tenderá a desarrollar
armónicamente todas las facultades del ser humano y fomentará en él, a la vez el amor a la
patria y la conciencia de la solidaridad internacional, en la independencia y en la justicia: I.
Garantizada por el artículo 24 la libertad de creencias, el criterio que orientará a dicha
educación se mantendrá por completo ajeno a cualquier doctrina religiosa y, basado en los
resultado del progreso científico, luchará contra la ignorancia y sus efectos, las
servidumbres, los fanatismos y los prejuicios. Además: a. Será democrática, considerando a
la democracia no solamente como una estructura jurídica y un régimen político, sino como
un sistema de vida fundado en el constante mejoramiento económico, social y cultural del
pueblo; b. Será nacional en cuanto -sin hostilidades ni exclusivismos- atenderá a la
comprensión de nuestros problemas, al aprovechamiento de nuestros recursos, a la defensa
de nuestra independencia política, al aseguramiento de nuestra independencia económica y a
la continuidad y acrecentamiento de nuestra cultura; y; c. Contribuirá a la mejor convivencia

40
Ensaios sobre filosofia política

humana, tanto por los elementos que aporte a fin de robustecer en el educando, junto con el
aprecio para la dignidad de la persona y la integridad de la familia, la convicción del interés
general de la sociedad, cuanto por el cuidado que ponga en sustentar los ideales de
fraternidad e igualdad de los derechos de todos los hombres, evitando los privilegios de
razas, sectas, de grupos, de sexos o de individuos; II. Los particulares podrán impartir
educación en todos sus tipos y grados. Pero por lo que concierne a la educación primaria,
secundaria y normal y a la de cualquier tipo o grado, destinada a obreros y a campesinos
deberán obtener previamente, en cada caso, la autorización expresa del poder público. Dicha
autorización podrá ser negada o revocada, sin que contra tales resoluciones proceda juicio o
recurso alguno; III. Los planteles4 particulares dedicados a la educación en los tipos y grados
que especifica la fracción anterior, deberán ajustarse, sin excepción, a lo dispuesto en los
párrafos iniciales I y II del presente artículo y, además, deberán cumplir los planes y los
programas oficiales; IV. Las corporaciones religiosas, los ministros de los cultos , las
sociedades por acciones que, exclusiva o predominantemente, realicen actividades
educativas, y las asociaciones o sociedades ligadas con la propaganda de cualquier credo
religioso, no intervendrán en forma alguna en planteles en que se imparta educación
primaria, secundaria y normal, y la destinada a obreros o a campesinos; V. El Estado podrá
retirar, discrecionalmente, en cualquier tiempo, el reconocimiento de validez oficial a los
estudios hechos en planteles particulares; VI. La educación primaria será obligatoria; VII.
Toda la educación que el Estado imparta será gratuita; y VIII.Las universidades y las demás
instituciones de educación superior a las que la ley otorgue autonomía, tendrán la facultad y
la responsabilidad de gobernarse a sí mismas; realizarán sus fines de educar, investigar y
difundir la cultura de acuerdo con los principios de este artículo, respetando la libertad de
cátedra e investigación y de libre examen y discusión de las ideas (MÉXICO, 1917).

Na Rússia, no dia 4 de janeiro de 1918 (dia 17, pelo calendário atual), o "Congresso dos
Sovietes" proclamava ao mundo a "Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado", que
viria a ser conhecida como um contraponto proletário à "Declaração burguesa” de 1789. A
Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, redigida e apresentada por
Lenin trazia na sua essência:
Tendo-se determinado como missão essencial abolir toda a exploração do homem pelo
homem, suprimir por completo a divisão da sociedade em classes, esmagar de modo
implacável a resistência dos exploradores, estabelecer a organização socialista da sociedade e
alcançar a vitória do socialismo em todos os países, a Assembleia Constituinte, decreta,
também: 1) Fica abolida a propriedade privada da terra. Declara-se patrimônio de todo o
povo trabalhador toda a terra, com todos os edifícios, o gado de trabalho, as ferramentas e
demais acessórios agrícolas. 2) Se ratifica a lei soviética sobre o controle operário e o
Conselho Superior de Economia Nacional, com o objetivo de assegurar o Poder do povo
trabalhador sobre os exploradores e como primeira medida para que as fábricas, minas,
ferrovias e demais meios de produção e de transporte passem por inteiro a ser propriedade do
Estado operário e camponês. 3) Se ratifica a passagem de todos os bancos para a propriedade
do Estado operário e camponês, como uma das condições da emancipação das massas
trabalhadoras do jugo do capital. 4) Fica estabelecido o trabalho obrigatório para todos, com
o fim de eliminar as camadas parasitas da sociedade. 5) Se decreta o armamento dos
trabalhadores, a formação de um Exército Vermelho socialista de operários e camponeses e o
desarmamento completo das classes proprietárias, com o objetivo de assegurar a plenitude do
Poder das massas trabalhadoras e eliminar toda a possibilidade de restauração do Poder dos
exploradores” (Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de
janeiro de 1918).

Entretanto, em julho de 1918, conheceram a primeira Constituição Soviética (Lei


Fundamental) de julho de 1918 (Lei Fundamental Soviética) que além dos direitos da Declaração
Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de janeiro de 1918, proclamou o princípio

41
Ensaios sobre filosofia política

da igualdade, independentemente de raça ou nacionalidade, determinando a prestação de assistência


material e qualquer outra forma de apoio aos trabalhadores operários e camponeses mais pobres, a
fim de concretizar a igualdade, o seu artigo 16 estabelecia:

Com o objetivo de assegurar aos trabalhadores verdadeira liberdade de associação, a


República Socialista Federativa Soviética Russa, tendo destruído o poder econômico e
político das classes possidentes e, desse modo, abolido todos os obstáculos que, até então,
haviam impedido aos trabalhadores e camponeses de exercerem, na sociedade burguesa, a
sua liberdade de organização e a sua liberdade de ação, proporciona assistência de ordem
material e de outros gêneros aos trabalhadores e ao campesinato mais miserável, em suas
atividades de unir e de organizar” (Lei Fundamental Soviética, de 10 de julho de 1918).

Tal declaração inaugurou uma ótica completamente nova e polêmica na abordagem


tradicional dos Direitos Humanos, colocando os direitos econômicos e sociais como alicerces da
nova sociedade e servirá de modelo para as outras revoluções comunistas do mundo inteiro.

Apresentamos alguns conceitos de igualdade


Quanto à igualdade, a proposição ordinária de que todos os homens são iguais por natureza
contém o equívoco de confundir o natural com o conceito. Importa, pelo contrário, dizer que,
por natureza, os homens são apenas desiguais. Que a igualdade exista, que o homem – e não
como na Grécia e em Roma, etc., apenas alguns homens – seja reconhecido e valha
juridicamente como pessoa, eis algo que é tampouco por natureza, que é antes produto e
resultado da consciência do princípio mais profundo do Espírito, e da universalidade e do
desenvolvimento desta consciência G.F. W. Hegel

Esta expressão de Hegel (1992, p. 133), possui uma comprovação histórica. Dessa forma,
durante grande parte da história da humanidade, os “homens” não se reconheceram entre si como
iguais, mas com diferenças, e as diferenças eram vistas como desigualdades. Assim foi entre os
membros das comunidades primitivas, que só consideravam a si mesmos como “homens”, até os
choques entre civilizações da contemporaneidade, o que prevaleceu foi o princípio de que os homens
são desiguais “por natureza”. Segundo Tossi: ainda que o conceito do reconhecimento de uma
natureza humana comum tenha estado sempre presente na história, a tendência hegemônica foi a da
naturalização das desigualdades sociais, tanto interna como externamente às sociedades. Seguindo
Tossi: as doutrinas políticas igualitárias possam ser encontradas na Antigüidade (estoicismo) e na
Idade Média (cristianismo), é somente na Modernidade que a consciência da igualdade (junto com a
da liberdade) se torna um pré-conceito (vor-begriffe) do nosso tempo.
Polemizando com os jusnaturalistas Hegel identificar a igualdade como um conceito
fundamentado historicamente e, por isso, acrescentaríamos nós, sempre sujeito às vicissitudes da
história, uma vez que, à diferença de Hegel, não temos mais a confiança de que a Providencia ou a
Razão governam a história. Nessa ideia Hegel confunde dois conceitos distintos: diversidade e

42
Ensaios sobre filosofia política

igualdade. Entretanto, por natureza os homens não são desiguais, mas existindo diferenças; sendo a
diversidade um fato, a igualdade constitui um valor moral que deve ser transformado numa norma
jurídica (FERRAJOLI, 1999, p. 73-96). Para Reale as diferentes doutrinas políticas podem ser
avaliadas a partir da relação que estabelecem entre o fato, o valor e a norma. Nesse sentido
encontramos um ponto fundamental ou crucial: que as doutrinas não igualitárias são construídas
dessas diferenças desigualdades naturais, já as doutrinas igualitárias não rejeitam a natural
diversidade dos homens, desse modo, afirmam que todos os seres humanos “nascem livres e iguais”
e devem ser tratados como pessoas, “sem distinção de qualquer espécie, estando presente nos artigos
1 e 2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (NAÇÕES UNIDAS, 1948). Penso
que, o que se opõe à igualdade não é diversidade, mas desigualdade, o que se opõe à diversidade é
uniformidade: há diversidade de condições, mas igualdade de direitos.
Apresentamos o critério embasado em Bobbio, sendo importante para enfatizar e formular a
fundamentação da igualdade distinguindo quais sujeitos devem ser considerados iguais (se todos ou
somente alguns), Bobbio segue com a tese: quais bens materiais e imateriais devem ser distribuídos a
esses sujeitos e quais critérios devem ser utilizados nesta distribuição, ou seja, que tipo de justiça
distributiva e/ou corretiva deve prevalecer. Trabalhando com os critérios de Bobbio, afirmaremos
que existem quatro maneiras distintas de conceber a relação entre diversidade e igualdade.
O anti-igualitarismo segundo Ferrajoli são todas aquelas doutrinas que defendem uma
diferenciação jurídica das diferenças, seguindo os preceitos de Ferrajoli, identificando as
diversidades naturais como desigualdades naturais. Tais doutrinas dão sustentação às sociedades
estamentais ou de casta, onde as hierarquias sociais são sacralizadas e naturalizadas e a desigualdade
considerada permanente e que não se consegue nem se pode eliminar. Se os sujeitos são
naturalmente desiguais, a distribuição dos bens deve ser também desigual: tratar desiguais como
iguais seria uma injustiça. Tais doutrinas não reconhecem nem a igualdade jurídica formal de todos
diante da lei e menos ainda a igualdade substancial ou material.
A igualdade formal ou igualdade perante a lei é típica do liberalismo moderno, que defende
uma indiferença jurídica das diversidades, ou seja, uma concepção abstrata e formal da igualdade,
como igualdade de todos os cidadãos diante da lei, indiferentemente de suas condições econômicas
ou sociais. Tal concepção foi, e continua sendo, uma grande conquista da civilização, na medida em
que eliminou os fóruns privilegiados das sociedades estamentais e garantiu a todos os cidadãos a
igualdade de direitos. Porém não teve nenhum efeito com relação às desigualdades econômicas, aliás
foi uma condição necessária para a justificação e o desenvolvimento de tais desigualdades no sistema
capitalista, não garantido assim a igualdade nos direitos (BOBBIO, 1995, p. 22-24).
O pressuposto do liberalismo, radicalizado pelo neoliberalismo contemporâneo, é que a

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Ensaios sobre filosofia política

desigualdade econômica e social é eliminável e benéfica para a sociedade: o que deve prevalecer é o
livre desenvolvimento das capacidades e atitudes individuais, na presunção de que o egoísmo de
cada um vai redundar em benefícios para todos. Neste sentido, como afirma Bobbio (1995, p. 37):

O liberalismo é uma doutrina só parcialmente igualitária: entre as liberdades protegidas


encontra-se também a liberdade de possuir e acumular, a título pessoal, bens econômicos
sem limites, e a liberdade de empreender operações econômicas (a chamada liberdade de
iniciativa econômica), das quais tiveram origem e continuam a se originar as grandes
desigualdades sociais nas sociedades capitalistas mais avançadas e entre as sociedades mais
avançadas e as do Terceiro Mundo.

O liberalismo defende uma indiferença jurídica das diversidades, ou seja, uma concepção
abstrata e formal da igualdade, como igualdade de todos os cidadãos diante da lei, indiferentemente
de suas condições econômicas ou sociais. Esse processo de conhecimento foi, e continua sendo, uma
herança das revoluções burguesas europeias para o processo civilizatório, na medida em que
eliminou os privilégios das sociedades de estamento e garantiu a todos os cidadãos a igualdade de
direitos. Porém não teve nenhum efeito com relação às desigualdades econômicas, aliás foi uma
condição necessária para a justificação e o desenvolvimento de tais desigualdades no sistema
capitalista, não garantido assim a igualdade nos direitos.
O pressuposto do liberalismo, radicalizado pelo neoliberalismo contemporâneo, é que a
desigualdade econômica e social é ineliminável e benéfica para a sociedade: o que deve prevalecer é
o livre desenvolvimento das capacidades e das atitudes individuais, na presunção de que o egoísmo
de cada um vai redundar em benefícios para todos. O principal pensadores desta concepção são os
neoliberais como Friedrich von Hayek (1983), para o qual o conceito de justiça social é uma
contradição em termos, liberaristas econômicos como Milton Friedman (1980) e a escola de Chicago
por ele dirigida, e os libertários “anárquicos” como Robert Nozick (1991) que escreveu Anarquia,
Estado e Utopia, defensor da tese contra a distribuição da riqueza. Apoiado pelos fanáticos do
mercado, favorável aos limites morais às liberdades pessoais e a obrigação dos indivíduos de
contribuir materialmente para com a sociedade (NOZICK, 1997: 227).

A igualdade econômica do socialismo revolucionário

Por igualdade material entende-se uma homologação jurídica das diferenças, ou seja, a
igualdade não somente de direito, mas nos direitos, em particular nos direitos econômicos e sociais,
tese defendida pelo socialismo revolucionário ou comunista. A corrente revolucionária, a partir da
crítica radical de Marx ao liberalismo e aos direitos humanos enquanto direitos burgueses (MARX,
2000), privilegiou os direitos econômicos e sociais em detrimento dos direitos civis e políticos.

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Ensaios sobre filosofia política

Marx foi o maior crítico radical das doutrinas dos direitos humanos usando a sua obra Crítica
ao programa de Gotha, expondo as suas teses contrárias a igualdade perante a lei porque, sendo um
historicista apresentava a teoria da igualdade material, neste aspeto, fiel ao ideal do espaço negativo
da ação do Estado, pois, para ele as classes poderiam se diferenciar livremente, desse modo
garantindo a luta de classe. Dessa forma, não podia admitir “direitos naturais”, mas só direitos
historicamente determinados. Para ele, os direitos humanos são frutos de uma sociedade burguesa,
portanto, não são universais. Marx discuti com exatidão que não pode existir igualdade como noção
abstrata, separada da materialidade dos acontecimentos, sendo dessa forma uma repetição do
idealismo das revoluções burguesas, portanto uma expressão dos interesses de uma classe específica,
a burguesia, como direitos burgueses, não interessa à classe proletária, antagonista direta e
irreconciliável da burguesia. Tais críticas foram expressas num escrito do Jovem Marx intitulado A
questão judaica, onde Marx é radicalmente avesso à doutrina jurídica tradicional. a postura de Marx
é crítica quanto à mera operacionalização da esfera jurídica, a qual ele questiona e seu
funcionamento desde os seus primeiros escritos, em especial sobre o direito de propriedade e de
liberdade de religião, afirmando:

Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa o egoísmo do homem, do homem como
membro da sociedade burguesa, isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para o seu
interesse particular, em sua arbitrariedade privada e dissociada da comunidade. [...] Assim, o
homem não se viu libertado da religião; obteve, na verdade, a liberdade religiosa. Não se viu
libertado da propriedade; obteve a liberdade de propriedade. Não se viu libertado do egoísmo
da indústria; obteve a liberdade industrial.

Tal processo formativo foi criticado seguidas e repetidas vezes, Marx deste modo, também
defende uma Estado racional que se coloca fortemente contra o privilégio e explicitamente contra a
ligação entre Direito, Estado e religião. Nesse aspecto, formula e defende uma espécie de sociedade
política, que deveria superar a oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado. Portanto, Marx
sendo um materialista histórico negava veementemente os pressupostos da Doutrina Liberal que
construiu os Direitos Humanos.

Assim, não há conciliação possível entre, por um lado, conceber o homem como um ser
em autoconstrução interminável, autoconstrução condicionada social historicamente,
inserido numa sociedade cortada por interesses antagônicos, cuja marca é a exploração dos
trabalhadores; e, por outro lado, conceber o homem como um ser abstrato e individualmente
considerado, conformado por uma natureza invariável e portador, desde sempre, de ‘direitos’
inatos e não-históricos. Como não há conciliação possível entre a perspectiva da
transformação social em direção a uma sociedade sem classes e, ao mesmo tempo,
contemporizar com a apropriação privada capitalista dos meios sociais de produção.
Portanto, seja por seus pressupostos filosóficos, seja por seus propósitos sociais e históricos,
direitos humanos e marxismo nasceram de costas um ao outro. (TRINDADE, 2010, p. 220).

No entanto para o marxismo-leninismo revolucionário, que se tornou a ideologia oficial dos

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Ensaios sobre filosofia política

regimes comunistas do século XX e influenciou os partidos comunistas do mundo inteiro, não era
possível uma igualdade econômica efetiva sem a superação da divisão de classe entre proprietários
dos meios de produção e proletários, significa a abolir a propriedade privada e a superação do
capitalismo. Nos países do socialismo real, os direitos econômicos e sociais se tornaram assim, com
o triunfo do comunismo, obrigações do Estado, que garantia a todos os cidadãos o direito à
alimentação, à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho, ao lazer, ao transporte, etc.

A desigualdade social é, portanto, o solo matrizador do direito. Vale dizer, o direito regula a
atividade social no interior de uma sociabilidade fundada na desigualdade social sem, em
nenhum momento, atingir a raiz dessa desigualdade. Assim como a política, o direito é
expressão e condição de reprodução da desigualdade social. Tonet (s/d, p. 5).

Ao mesmo tempo, porém, o Estado assumia, através de eliminação da propriedade privada, o


controle total da produção e circulação de bens, eliminando ou restringindo fortemente não somente
a liberdade de iniciativa econômica, mas também as liberdades individuais em geral: a liberdade de
imprensa, de manifestação de opinião, de religião, de ir e vir dentro e fora do país, de formação de
associações, partidos ou sindicatos autônomos. Na concepção burguesa as leis fundam a sociedade,
já Marx critica a ideia liberal de que as leis fundam a sociedade, tão cara aos liberais iluministas e
ainda mais usada pela burguesia, já como classe dominante, na sua decadência ideológica. Na sua
demonstração de como funciona a sociedade capitalista, chega ao fundamento do direito, qual seja:
uma das peculiaridades do modo de produção capitalista é a necessidade da liberdade e igualdade de
mercado.
[...] a força de trabalho só pode aparecer como mercadoria no mercado na medida em que é
colocada à venda ou é vendida pelo seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força
de trabalho. Para vendê-la como mercadoria, seu possuidor tem de poder dispor dela,
portanto, ser o livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. Ele e o
possuidor de dinheiro se encontram no mercado e estabelecem uma relação mutua como
iguais possuidores de mercadorias, com a única diferença de que um é comprador e o outro,
vendedor, sendo ambos, portanto, pessoas juridicamente iguais. (MARX, 2013a, p. 242).

O Estado, através de um forte aparato policial vigiava a vida privada de todo os cidadãos,
reprimindo os opositores nas mais variadas formas, recorrendo inclusive ao famigerados
gulags,campos de trabalho e de concentração. O objetivo era a igualdade total das condições
econômicas através da “socialização” (de fato estatização) dos meios de produção, porém, na
realidade, estas sociedades reprimiram os direitos civis e políticos, e, ao mesmo tempo, criaram
outras formas de desigualdades econômicas e políticas, a partir de uma nova estratificação do poder
e das classes sociais.

46
Ensaios sobre filosofia política

A igualdade de oportunidade do socialismo reformista

Em alternativa e competição com o comunismo, o socialismo reformista ou social-


democrático propõe uma valorização jurídica da diferença, ou seja, o reconhecimento de que é
preciso dar um tratamento jurídico às diferenças, não para naturalizá-las e perpetuá-las, como
afirmam as teorias anti-igualitárias, nem tampouco para eliminá-las radicalmente como pretende o
comunismo revolucionário. Com a introdução do sufrágio (voto) universal, as massas populares
entraram a fazer parte do jogo político, através da criação dos partidos de massa e começaram a
reivindicar uma democracia, ao mesmo tempo, política e social (LIMA Jr. 2003).
Diferentemente do liberalismo clássico, a socialdemocracia entende a igualdade de
oportunidade não somente como garantia dos direitos fundamentais à vida, à propriedade, à
liberdade, e à igualdade perante a lei, mas como distribuição de privilégios jurídicos e benefícios
materiais para os não privilegiados, para colocá-los no mesmo nível de partida.
Diferentemente do comunismo, a social democracia renuncia à ideia da abolição do mercado
capitalista, mas atribui ao Estado um forte poder de intervenção nos mecanismos econômicos para
garantir ao maior número de cidadãos possível algumas condições mínimas que lhe permitam
competir em condições de igualdade, ou seja, de ter as mesmas oportunidades nas relações
mercantis.
Os direitos econômicos e sociais não são garantidos plenamente, porque não podem ser
exigidos diante de um Tribunal, como no caso dos direitos civis e políticos, mas o Estado Social de
Direito assume uma responsabilidade político-programática para a sua realização, oferecendo aos
cidadãos as condições mínimas para que possam competir com sucesso no mercado. A Constituição
alemã de Weimar, de agosto de 1919 apresenta uma divisão em dois documentos: o Primeiro dos
artigos 1º ao 108º enfatiza a questão estrutural e objetivos da República alemã” e Segundo os artigos
109º ao 165º estão relacionados aos “direitos e deveres fundamentais do cidadão alemão”, que
estabelece, além dos tradicionais direitos e garantias individuais, os direitos relacionados à vida
social, à religião e às Igrejas, à educação e ensino e à vida econômica.
Com relação a questão do indivíduo, os artigos 109 a 118 mencionam à igualdade diante da
lei, à liberdade, domicílio inviolável, devido processo legal, ampla defesa. Fundamenta à vida social,
a Carta Magna alemã de Weimar, de 11 de agosto de 1919 garanti o matrimônio fundamentado na
igualdade jurídica dos dois sexos, à família, a educação da prole para o desenvolvimento corporal,
espiritual e social; igualdade dos filhos; proteção da juventude contra exploração, abandono moral,
espiritual e físico; o direito às reuniões, corporações e associações; voto secreto; direito de petição;
admissão a cargos públicos; e obrigações tributárias na forma da lei. Finalizando assegura a

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Ensaios sobre filosofia política

organização da vida econômica fundamentada na justiça, mas também criou direitos tradicionais
como propriedade, sucessão e liberdade contratual, deu grande ênfase aos direitos socioeconômicos,
no que se referi ao trabalho assegurou a liberdade de associação para defesa e melhoria das
condições de trabalho e de vida, permissão da existência de tempo livre para os empregados e
operários poderem exercer seus direitos cívicos e funções, e sistema de seguridade social, para
conservação da saúde e da capacidade de trabalho, garantia da maternidade e prevenção dos riscos da
idade, da invalidez e das vicissitudes da vida.
Constituição social-democrática da República de Weimar, in: COMPARATO) De fato, os
direitos sociais, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, começaram a ser colocados nas Cartas
Constitucionais e postos em prática em larga escala, com a criação do “Estado do Bem-Estar Social”
(Welfare State) nos países capitalistas, sobretudo europeus. Desta forma, os governos se viram
obrigados – para satisfazer os movimentos sociais internos e afastar a ameaça externa do comunismo
– a realizar amplos programas de socialização e distribuição da renda, com as experiências social-
democráticas, labouristas e cristão-democráticas.
A igualdade de oportunidade é defendida pelo socialismo reformista ou social-democrático
que propõe uma valorização jurídica da diferença, ou seja, o reconhecimento de que é preciso dar um
tratamento jurídico às diferenças, não para naturalizá-las e perpetuá-las, como afirmam as teorias
anti-igualitárias, nem para eliminá-las radicalmente como pretende o comunismo revolucionário,
mas para superá-las parcialmente. A diferença do liberalismo clássico, a socialdemocracia entende a
igualdade de oportunidade não somente como garantia dos direitos fundamentais à vida, à
propriedade, à liberdade, e à igualdade perante a lei, mas como distribuição de privilégios jurídicos e
benefícios materiais para os não privilegiados, para colocá-los no mesmo nível de partida
(OPPENHEIM, 1986, p. 605). A social democracia renúncia – implícita ou explicitamente - à ideia
da abolição do mercado capitalista, mas atribui ao Estado um forte poder de intervenção nos
mecanismos econômicos para garantir ao maior número de cidadãos possível algumas condições
mínimas que lhe permitam competir em condições de igualdade, ou seja, de ter as mesmas
oportunidades nas relações mercantis. Os direitos econômicos e sociais não são garantidos
plenamente, porque não podem ser exigidos diante de uma Corte de Justiça, como no caso dos
direitos civis e políticos, mas o Estado Social de Direito assume uma responsabilidade político-
programática para a sua realização, oferecendo aos cidadãos as condições mínimas para que possam
competir com sucesso no mercado.
De fato, os direitos sociais, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, começaram a ser
colocados nas Cartas Magnas e postos em prática em larga escala, com a criação do “Estado do Bem-
Estar Social” (Welfare State) nos países capitalistas, sobretudo europeus: os governos se viram

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Ensaios sobre filosofia política

obrigados – para satisfazer os movimentos sociais internos e afastar a ameaça externa do comunismo
– a realizar amplos programas de socialização e distribuição da renda, com as experiências social-
democráticas, labouristas e cristão-democráticas.

Igualdade como equidade

Falando sobre a tradição do liberalismo político, colocamos as teorias que propõem a


“igualdade como equidade”, nesse sentido destacamos Rawls que defende a tese da “justiça como
equidade” apresentando os princípios da justiça que são escolhidos pelos indivíduos na “posição
original” (que corresponde ao “estado da natureza” na teoria do contrato social), em que
desconhecem que posição econômica ou que status ocuparão na sociedade ou seja, como um critério
de justiça e, portanto, de distribuição justa e equitativa (fairness) dos bens, entre os sujeitos. Segundo
Rawls, a justiça é o ponto central da virtude das instituições sociais, nesse aspecto, aquilo que a
verdade é para a ciência, também deve ser a justiça para as instituições sociais. Rawls concebe a
sociedade como um todo e suas instituições como corpos (em sentido amplo), negando assim a visão
individualista, que, por vezes, recai num utilitarismo, por ele combatido.
Podemos dizer que o nascimento da teoria da justiça como equidade que propõe um novo
modelo de justiça que possa responder as iniquidades do ponto de vista moral, filosófico e religioso,
com o objetivo de orientar o funcionamento das instituições sociais de caráter público. O conceito da
sociedade formulado por Rawls é a de uma associação mais ou menos autossuficiente de indivíduos
que, em seu relacionamento, reconhecem regras de condutas como obrigatórias, e que, na maioria
das vezes, são obedecidas. Essas regras de conduta especificam um sistema de cooperação social
concebido para realizar o bem comum das pessoas. - Por isso é preciso utilizar, na distribuição
equitativa dos bens, um critério que considere os “menos favorecidos” (worst off), colocando assim
limites políticos e econômicos à ilimitada liberdade de acumulação de bens dos mais favorecidos
(best off). Desse modo, John Rawls, que tem o mérito de estar no centro do debate atual sobre a
justiça, dois são os princípios definidores de uma sociedade justa: (a) o da igualdade fundamental
entre todos os membros e (b) o de que apenas devem ser toleradas as desigualdades que resultem em
benefícios para o conjunto da sociedade. Com isso, Rawls procura conciliar os princípios liberais de
igualdade jurídica com uma preocupação em limitar as desigualdades sociais, priorizando em sua
teoria o princípio distributivo.
Em primeiro lugar, inserindo-se na tradição do liberalismo político, colocamos as teorias que
(re)propõem um “igualitarismo das oportunidades” (RAWLS, 2002 - DWORKIN, 2002) . Tais
doutrinas concebem a igualdade como um critério de justiça e, portanto, de distribuição justa e

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Ensaios sobre filosofia política

equitativa (fairness) dos bens, entre os sujeitos sem recorrer a uma teoria do bem e da vida boa, que
seria incompatível com as sociedades contemporâneas, nas quais impera o pluralismo ou politeísmo
dos valores e das visões de felicidade.

Considerações Finais

A condição humana é principio basilar e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos.


Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que Ihe é própria, sendo incondicionada, não
dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. De acordo com (COMPARATO, 2008, p.
26), O homem demorou muito para perceber o seu valor fundamental, para colocar-se no centro do
sistema, identificando os direitos humanos “com os valores mais importantes da convivência
humana”. Posteriormente à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a afirmação
dos direitos fundamentais se completou pela conscientização da necessária proteção judicial dos
direitos fundamentais, através de um processo de positivação voltado à organização da vida social e
o reconhecimento do direito à dignidade da pessoa humana.
De acordo com Rodrigues, sujeito adquiriu importância no meio social, diferentemente do
que ocorria na Antiguidade e na Idade Média onde predominavam os valores coletivos. Na
Modernidade primeiro se pensa o sujeito com suas particularidades e anseios para depois se pensar
na sociedade que nada mais é do que a junção dos interesses de cada indivíduo. O privado supera o
público e o indivíduo prevalece sobre o corpo social. Se para os antigos, a virtude cívica significava
subordinação dos interesses pessoais aos ideais coletivos. Entre os modernos, o ordenamento das
questões públicas deve respeitar e refletir as preferências individuais.
Nesse sentido, Perry Anderson refere se em sua teoria sobre o Estado Absolutista da Idade
Moderna, a centralização econômica, o protecionismo e a expansão ultramarina engrandeceram o
Estado Feudal tardio, ao mesmo tempo em que beneficiaram a burguesia emergente. Expandiram os
rendimentos tributáveis de um, fornecendo oportunidades comerciais à outra, porém, o domínio do
Estado Absolutista permanecia nas mãos da nobreza feudal, seguindo o pensamento de Perry
Anderson, esse regime econômico-político da propriedade perdurou por toda a Idade Moderna,
beneficiando os senhores feudais ou a nobreza e a Igreja, como titulares do domínio sobre vastas
áreas de terras. O regime se transformou em forma de exploração, gerando constantes movimentos
de revolta dos burgueses contra os feudos, que desencadearam a Revolução Francesa de 1789,
instigada por diversos acontecimentos e movimentos sociais que visavam acabar com o antigo
regime, caracterizado por uma estrutura hierarquizada - clero, nobreza e povo -, correspondente às
monarquias absolutas e ao desenvolvimento do capitalismo comercial, sob influência dos ideais

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Ensaios sobre filosofia política

iluministas e da Independência dos Estados Unidos da América. Com efeito, “a miséria popular,
como resultado de uma contextualização mais global, enquanto fator que agride o direito à vida
digna, dá origem ao processo revolucionário francês, unificando uma série de reivindicações”.
Para Leal, com as revoluções burguesas instalou-se o Estado Liberal que promoveu a
distinção entre Estado e sociedade civil (público e privado) e fez nascer à primeira noção de Estado
de Direito. A grande conquista deste período histórico foi a liberdade consubstanciada nos direitos e
garantias individuais (todo poder emana do povo e em seu nome será exercido). E é esse importante
acontecimento histórico chamado de “Revolução Francesa” que ensejou a elaboração da primeira
declaração contemporânea dos direitos humanos.
Retomando, o valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional
de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam características de proteção judicial
dos direitos fundamentais, através de um processo de positivação voltado à organização da vida
social e o reconhecimento do direito à dignidade da pessoa humana., incorporam o valor da
dignidade humana.
[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria
existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2001, p.60.).

A dignidade da pessoa humana refere-se a uma qualidade intrínseca pertencente a cada


pessoa, que a coloca em posição merecedora de respeito por parte de seus semelhantes e do Estado,
motivando e alicerçando os direitos humanos e os direitos fundamentais (aqueles positivados pelo
Estado), que a protegem de abusos e violações. A dignidade confere às pessoas a possibilidade de se
autodeterminar em sua vida e participar ativamente do destino da comunidade, vez que estas
possuem um valor próprio, que lhes conferem direitos:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se
manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que
trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se de um
mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas
excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas
sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres
humanos (MORAES, 2002, p. 128-129).

Começa, assim, a empreitada da constitucionalização dos direitos humanos. As constituições


escritas atuais já trazem em seus a disciplina de direitos fundamentais e de valores que devem
nortear não apenas a atuação do Estado, mas também assegurar a proteção dos indivíduos.
O direito a existência digna abrange o direito de viver com dignidade, de ter todas as
condições para uma vida que se possa experimentar segundo os próprios ideais e vocação, de
não ter a vida atingida ou desrespeitada por comportamentos públicos ou privados, de fazer

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Ensaios sobre filosofia política

as opções na vida que melhor assegurem à pessoa a sua realização plena. O direito de viver é
também o direito de ser: ser o que melhor pareça à pessoa a sua escolha para a vida, quer
façam as opções da própria pessoa ou quem a represente (pais, responsáveis, etc.). O direito
contemporâneo não reconhece e garante apenas o direito à vida (ou o direito a existência,
mas a vida digna). Daí a ênfase dada a este princípio do direito contemporâneo. Nem por
isso ele é menos porejado de dúvidas, que se mostram, às vezes, em dilemas de gravidade
inconteste (ROCHA, 2004, p. 26).

O princípio da dignidade da pessoa humana ganhou presença e envergadura após a Segunda


Guerra Mundial (1939-1945), quando passou a integrar diversas constituições e tratados
internacionais, com o objetivo de afastar e impedir barbáries como aquelas que ocorreram durante o
nazismo, onde muitas pessoas, principalmente judeus, foram presos e sumariamente executados. Pior
do que isso, nos campos de concentração “se criou uma condição de completa privação de direitos
antes que o direito à vida fosse ameaçado” (ARENDT, 1989, p. 329), especialmente em decorrência
das barbáries do Holocausto e do extermínio de pessoas consideradas indesejáveis pelo regime
nazista fundado por Adolf Hitler, é que houve de fato uma conscientização generalizada que resultou
u na proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que acabou por
reconhecer a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da
liberdade, da justiça e da paz no mundo. De fato, “os direitos humanos são a expressão direta da
dignidade da pessoa humana, a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre do
próprio reconhecimento dessa dignidade”.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana garante, de modo obrigatório, o respeito, a
identidade e a integridade de todo ser humano, exige que todos sejam tratados com respeito.
O princípio abrange não só os direitos individuais, mas também os de natureza econômica,
social e cultural, pois, no Estado Democrático de Direito a liberdade não é apenas negativa,
entendida como ausência de constrangimento, mas liberdade positiva, que consiste na
remoção de impedimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam embaraçar a plena
realização da personalidade humana (CARVALHO, 2009, p. 673).

Hoje o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, sem distinções de


qualquer espécie, é uma norma fundamental do direito internacional na área dos direitos humanos. A
eliminação de qualquer tipo de discriminação e ofensa aos direitos humanos deve ser tarefa
prioritária para os Estados e para a comunidade internacional, que devem tomar medidas eficazes
para preveni-las e combatê-las (Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993).
A entronização do princípio da dignidade da pessoa humana nos sistemas constitucionais
positivos com o sentido que é incialmente concebido e com a amplitude que ganhou nos
últimos anos (e que ultrapassa a individualidade, estendendo-se a espécie humana) é, pois,
recente e tem como fundamentos a integridade, a intangibilidade e a inviolabilidade da
pessoa humana pensada em sua dimensão superior, quer dizer, muito além da mera
contingência física. A fonte imediata desta opção é a reação contra os inaceitáveis excessos
da ideologia nazista, que cunhou o raciocínio de categorias diferenciadas de homens, com
direitos e condições absolutamente distintas, e muitas delas destinando-se tão somente às
trevas dos guetos, às sombras dos muros em madrugadas furtivas e o medo do fim indigno a
fazer-se possível a qualquer momento (ROCHA, 2004, p. 35).

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Ensaios sobre filosofia política

Entretanto, os esforços das Nações Unidas buscando garantir o respeito universal e a


observância de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, contribuem
para a estabilidade e bem-estar necessários à existência de relações pacíficas e amistosas entre as
nações, como também para melhorar as condições de paz, segurança e o desenvolvimento social e
econômico, em conformidade com a Carta das Nações Unidas (artigo 6º, da Declaração e Programa
de Ação de Viena, de 1993).

O núcleo básico dos direitos humanos é algo absoluto. São direitos universais imutáveis e
que surgem da própria natureza humana. As realidades, teorias e denominações dos direitos
humanos surge da conjugação do jusnaturalismo e culturalismo, tendo como fundamento
nuclear a dignidade da pessoa humana. [...] A dignidade da pessoa humana é um valor
supremo que agrega em si todos os direitos humanos e constitui seu principal fundamento.
[...]. A pessoa possui um valor em si, que é absoluto, que constitui sua dignidade e se
exterioriza pelos direitos humanos (SIQUEIRA, 2009, p. 258).

A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o
ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada
indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do
ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de
medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua
observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os
povos dos territórios sob sua jurisdição (Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948).
Após a queda do muro de Berlim em 1989, entraram em crise tanto o sistema comunista
quando a sistema de Welfare da socialdemocracia ocidental e se abriu uma nova fase histórica na
qual estamos imersos e que é difícil de decifrar completamente. Com término do ciclo revolucionário
que havia caracterizado a história da Europa e do mundo nos últimos dois séculos e que tinha
encontrado o seu paradigma na Revolução Francesa. A característica principal deste ciclo
revolucionário (que o diferencia das revoluções Inglesa e Norte-americana) é a sua pretensão de
universalidade.
Foram revoluções que não se limitam à transformação do próprio país, mas pretendem ser o
início, ou a vanguarda de uma revolução mundial, de uma transformação radical da humanidade
como um todo. representa simbolicamente não somente a vitória do sistema capitalista e a derrota de
uma alternativa global a este sistema. mas foi interpretada pelas potências ocidentais. Por outro lado,
a expansão dos mercados internacionais provocou um aumento das desigualdades sociais a nível
internacional, um aumento das situações de risco ambiental, um aumento das tensões militares, um
retorno à corrida armamentista, o fortalecimento do fenômeno do terrorismo global e a possibilidade
de uma” guerra global” (GALLI, 2002). Nessa perspectiva BECK, afirma que ficou evidente que a

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Ensaios sobre filosofia política

liberdade e a igualdade burguesa, entendidas meramente como liberdade civil e política e como
igualdade jurídica formal diante da lei, não foram suficientes para superar as desigualdades
econômicas.
O processo neoliberal contribuiu também para gerar uma crise do sistema de Welfare nos
Estados desenvolvidos. O neoliberalismo exercita uma pressão muito forte sobre os sistemas
econômicos nacionais através de uma competição feroz dos países “emergentes” que podem contar
com uma mão de obra barata, provocando a deslocalização industrial, com reflexos sobre os níveis
salariais e o sistema de seguridade social. Segundo Tossi, essa onda neoliberal criou um processo
imigratório provocado pelas enormes desigualdades entre países pobres e ricos pressiona fortemente
as próprias estruturas democráticas desses países e o sistema de proteção social que a classe
trabalhadora havia conquistado ao longo de décadas de lutas.
Parece difícil negar que as experiências históricas destes últimos dois séculos apontam a
necessidade de superar dois extremos: a utopia comunista da eliminação do mercado e a utopia
neoliberal da autorregulamentação do mercado. No pensamento de Tossi: se o ciclo das revoluções
políticas burguesas se encerrou na metade do século XIX, o ciclo das revoluções industriais nunca
parou e continua em franco desenvolvimento e em continua evolução, através das sucessivas
revoluções tecnológicas que acontecem em ritmo frenético. Assim, Habermas responde da seguinte
maneira: subsistema econômico tende a colonizar os outros subsistemas: social, político, religioso,
artístico e a invadir sempre mais “o mundo da vida” com a sua racionalidade instrumental.
Neste sentido, a igualdade desejável não é somente uma mera igualdade jurídica, nem uma
impossível e indesejável igualdade substancial, mas tampouco uma igualmente impossível igualdade
de oportunidades para que o maior número de pessoas, e tendencialmente todos, possam se tornarem
livres consumidores no mercado global. Como afirma Ronald Dworkin: “A igualdade é uma espécie
ameaçada de extinção entre os ideais políticos”.
Apesar das diferenças significativas entre essas abordagens com respeito à fundamentação e à
concepção de igualdade, existem convergências e afinidades práticas. Trata-se de tentativas de
superar a dicotomia entre liberdade/igualdade e igualdade/diversidade a partir do novo contexto
provocado pela globalização. Contudo, a questão da tese igualdade não desapareceu das teorias da
filosofia política e das construções das lutas sociais por novos direitos, ao contrário, a luta pela
igualdade continuará como tema central das manifestações sociais de cunho reivindicatório de
direitos no mundo inteiro e nem tão pouco desaparecerá das principais teorias políticas do Mundo
Atual. Não podemos pensar e construir uma sociedade justa sem que esteja presente e marcada por
critérios de igualdade: econômico, político, social, jurídico. Finalizando com Serrano: Sabemos que
o surgimento do Estado de Direito significou uma nova forma de governo e de exercício da

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Ensaios sobre filosofia política

soberania, marcada pela ideia de um Estado racional cujas decisões racionais objetivam garantir
certos valores embasados nos princípios democráticos através dos quais o Estado deve garantir
direitos fundamentais a seus cidadãos. Nesses aspectos, Silva afirma o seguinte: a lei possui uma
importante função que é a de sujeitar o Estado, para que este não se torne absolutista e garanta a
concretude dos princípios de igualdade e dignidade de toda pessoa humana. Concluo com a seguinte
indagação: Direitos Humanos, para quais humanos?

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Ensaios sobre filosofia política

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59
Ensaios sobre filosofia política

CAPÍTULO 4

O PODER COMO UM DESAFIO TEÓRICO E PRÁTICO:


A CRÍTICA DE FOUCAULT AO MODELO HOBBESIANO DE PODER

Partimos da premissa de que, considerando a amplitude da reflexão filosófica sobre a


“inteligência dos mecanismos de governo” no Ocidente, das cidades gregas às modernas sociedades
industriais, e o sem-número de questões que esta reflexão sucinta, devemos escolher uma via de
acesso à apresentação dessa filosofia política empenhada em contestar o modelo hobbesiano.

Recordem o esquema do Leviatã: enquanto homem construído, o Leviatã não é outra coisa
senão a coagulação de um certo número de individualidades separadas, unidas por um
conjunto de elementos constitutivos do Estado; mas no coração do Estado, ou melhor, em
sua cabeça, existe algo que o constitui como tal e este é a soberania, que Hobbes diz ser
precisamente a alma do Leviatã.

Não escolheremos uma via de acesso qualquer. Um interesse dita nossa escolha: apresentação
do pensamento sobre o poder, posta em cena por Michel Foucault. Ao eleger a teoria da soberania
como a hipótese sobre o poder que deve ser explicitada e refutada, Foucault coloca-se em sintonia
com algumas tendências das pesquisas sociais voltadas para a reflexão política em voga na França
dos anos de mil novecentos e sessenta e setenta.
Châtelet contextualiza o pensamento de Foucault, afirmando:

O poder – e não somente o Estado, já que a questão do poder parece mais pertinente, mais
ampla, mais profunda; já que essa simples mudança de termo desloca o ponto de vista. O que
faz com que as pessoas obedeçam?
Como explicar que certos homens se instituam como dominantes e decidam por todos,
fabricando os meios de perenizar sua dominação e de aplicar suas decisões? O que faz com
que eles obtenham a obediência de uma comunidade por vezes muito ampla, onde as
relações empíricas entre dominantes e dominados parecem por vezes tão tênues? E o que faz
com que alguns já não obedeçam mais?
Colocar essas questões, procurar por toda parte o poder e seus pontos de apoio: é nisso que
se empenha uma problemática nova na pesquisa social, particularmente na França.

Conforme indica Châtelet no texto citado, a questão do poder se constituía como uma
tendência da pesquisa social francesa a partir de meados do século passado. Em sintonia com essas
preocupações, vários ensaios foram dedicados ao tema visando superar teoricamente os impasses da
filosofia política e apontar saídas para o exercício efetivo do político. Foucault, muito embora
assumisse posições sempre em sintonia com alguns postulados ideológicos da esquerda de seu
tempo, caminhava na contramão dessas tendências. Suas análises históricas não se harmonizavam
com aquelas tidas classicamente como de esquerda. Nas suas obras não encontramos as grandes

60
Ensaios sobre filosofia política

histórias construídas concentricamente em torno de noções como: capitalismo, burguesia,


burocracia, individuo, Estado ou sociedade. Esses conceitos ganham espaço em seus escritos quando
se harmonizam com problemas e esquemas por ele formulados, sem que isso lhe garanta o estatuto
de um ideólogo ou militante da esquerda.
Sabe-se que Foucault filia-se a uma tradição acadêmica ligada à epistemologia:

A tradição acadêmica seguida por Foucault (Brunschwicg, Bachelard, Canguilhem)


questiona a pretensão de verdade dos discursos científicos e suas condições de possibilidade
aquém do limiar de reflexividade a partir da qual a história clássica das ciências se desenrola
como uma interdependência de puras produções da mente.

Suas principais influências vêm de autores que produziram, no âmbito desta disciplina,
questionamentos e inovações conceituais que repercutiram diretamente em suas pesquisas históricas
e filosóficas. Nessa perspectiva, Foucault elabora uma nova compreensão do poder em que o termo
“politizável” ganhará uma nova acepção. Define-se, assim, um novo papel para o intelectual e este
não mais se coaduna com o de “legislador universal” que aponta para as massas o caminho da
resistência, da revolução. No trabalho específico do intelectual, há, sem dúvida, um espaço para a
resistência política. Porém, ao caracterizar a militância política de forma diferenciada, Foucault
desmonta o espaço do agir político configurado pelo modelo hobbesiano. Assim ele esclarece seu
posicionamento:
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles
para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem
muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse
saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que
penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios
intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a ideia de que eles são agentes da
“consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é
mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade
de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo
tempo, objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do
discurso.

Essa contextualização do pensamento foucaultiano em relação ao pensamento francês pode


despertar em nós a ideia equivocada de que suas postulações teóricas estariam de tal forma ligadas a
esse contexto que não teriam qualquer ressonância fora desse universo. Sendo assim, suas análises
poderiam ser tomadas como intuições brilhantes de um pensador original, mas sem qualquer ligação
com a filosofia política clássica.
Devemos nos perguntar se as ideias elaboradas por Foucault têm pertinência ou são meros
exercícios teóricos, sem maiores ressonâncias. Para tanto, consultamos um pensador político
moderno, cuja obra se encontra no campo da filosofia política, Noberto Bobbio.
Bobbio ao procurar esclarecer aspectos do pensamento político ocidental, faz circular ideias

61
Ensaios sobre filosofia política

que convergem para a perspectiva foucaultiana, mostrando que há, de fato, uma descontinuidade no
exercício do poder e uma persistência do tema hobbesiano no pensamento político ocidental.
Bobbio põe em cena duas posturas possíveis em relação à noção de Estado. A primeira
enfatiza a “continuidade”, isto é, aceita que o tema do Estado, presente na reflexão clássica, aparece
como uma antecipação embrionária das hodiernas problematizações políticas. Aqui temos, por
exemplo, as considerações aristotélicas sobre a polis grega, tomadas como abordagem do Estado tal
como entendem os modernos. A outra, destacando a “descontinuidade”, sugere que a realidade
estudada pelos antigos não tem nenhuma continuidade com a realidade do Estado descrita pelos
modernos, ou seja, a polis grega e o Estado moderno são dois fenômenos de natureza distinta.
O termo Estado ganha cidadania no pensamento político de Maquiavel, cuja obra fundadora
do pensamento político moderno, O Príncipe, utiliza o vocábulo em sentido bem específico:
domínio. Os que defendem a descontinuidade consideram a introdução deste termo novo – Estado –
como exigência de uma nova realidade não mais passível de descrição e compreensão a partir dos
antigos.
Portanto, Estado seria um nome novo, de modo que o que dele faz o pensamento político nos
remete a um reordenamento de forças e fenômenos completamente novos. A realidade por ele
descoberta é algo essencialmente moderno de tal modo que falar em “Estado moderno” seria uma
redundância, pois o Estado traz em si a marca da modernidade.
A abordagem foucaultiana do poder está em sintonia com a leitura da história política dos que
defendem a descontinuidade, pois ela corrobora sua afirmação de que ainda pensamos o poder tal
como Hobbes o descreveu. A correlação de forças recoberta pelos termos – Estado, Soberania –
traduz uma realidade que nasce numa época bem específica: as monarquias do século XVII. Porém,
essa realidade não é mais o dado fundamental do exercício do poder nas sociedades contemporâneas.
Nas modernas sociedades industriais, o poder se efetiva muito mais pelas disciplinas do que
pela soberania. Do mesmo modo que a realidade política tematizada pelos modernos não está em
continuidade com aquelas tematizadas com os antigos, Foucault apontará o estabelecimento de uma
nova ruptura e esta nos obriga a repensar o político e as categorias utilizadas na compreensão desse
fenômeno.
O termo poderá ser mantido, mas revestido de um novo conceito que implicará as noções de
disciplina, autogoverno, adestramento, biopoder, governamentabilidade, etc. Essas modelações no
conceito são fundamentais para a compreensão dos mecanismos de controle a que estamos
submetidos, pois a descontinuidade apontada por Bobbio entre a realidade política antiga e a
moderna está bem presente quando analisamos a realidade política moderna, colocando-a em face da
contemporânea.

62
Ensaios sobre filosofia política

Para desenvolver essa sua análise Foucault assume Hobbes como sendo o autor que melhor
expõe a realidade do Estado enquanto este é compreendido como a constituição de uma Vontade
Única fundamentada no uso da força. Elabora, assim, um modelo de exercício do poder que se
tornou lugar comum na definição do poder político: “o poder é aquele concreto, que todo indivíduo
detém e que viria a ceder, total ou parcialmente, para construir um poder, uma soberania política”.
Essa afirmação de Foucault será respaldada por Bobbio que demonstra, num contexto conciso, a
presença do tema hobbesiano no pensamento político:

O tema da exclusividade do uso da força como característica do poder político é o tema


hobbesiano por excelência: a passagem do estado de natureza ao Estado é representado pela
passagem de uma condição na qual cada um usa indiscriminadamente a própria força contra
todos os demais a uma condição na qual o direito de usar a força cabe apenas ao soberano. A
partir de Hobbes o poder político assume uma conotação que permanece constante até hoje.

Se dermos crédito a Bobbio, e não temos razão para não fazê-lo, Foucault não está se
digladiando quixotescamente contra moinhos de vento: suas análises são pertinentes. O adversário
por ele escolhido – a compreensão do poder como fenômeno repressor por excelência – é real e tem
fôlego. O mundo moderno já cortou a cabeça do rei, mas continua a pensar como se ele estivesse
ainda em pleno exercício de suas funções, ironiza Foucault num de seus textos.
Para Bobbio, historicamente, o direito natural é uma tentativa de dar uma resposta
tranquilizadora às consequências corrosivas que os libertinos tinham retirado da crise do
universalismo religioso, constituindo-se numa reação ao pirronismo moral e relativismo ético.
Hobbes utilizou o direito natural para deduzir sua teoria do homem no estado de natureza e
Estado social, utilizando-se de um modelo dicotômico tipo: ou o homem vive no estado de natureza
ou vive no Estado civil. Bobbio coloca que:

A contraposição entre os dois estados consistente no fato de serem os elementos constitutivos


do primeiro indivíduo singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam
de fato seguindo não a razão (que permanece oculta ou impotente), mas as paixões, os
instintos ou os interesses [...].

As paixões, no estado de natureza, predispõem à insociabilidade e à guerra. A vanglória e a


vaidade são paixões que, no estado de natureza, impulsionam o homem para a busca de poder e mais
poder. Esse poder é exercido no estado de natureza como o conjunto dos meios empregados para
obter vantagens futuras. Este é insaciável como nossas paixões.
O que se pode esperar de homens inclinados à cupidez e à preguiça? Luta; disputa e acúmulo
de poder. A generosidade, tão difícil de ser observada no homem, aparece apenas em poucos
indivíduos.
Poderíamos considerar metaforicamente o homem no estado de natureza como exercício da

63
Ensaios sobre filosofia política

animalidade sem freios onde o cavalo preto do mito platônico segue seu caminho, indomável, indócil
e triunfante rumo às aragens obscuras do desejo e do poder. O cocheiro tenta em vão domesticá-lo, e
o cavalo branco é apenas um bebê inerte a chorar desolado nas garras poderosas da vanglória do
cavalo negro.
Para Bobbio, Hobbes, no Leviatã, descreve o estado de natureza em três circunstâncias: 1)
nas sociedades ditas primitivas incluindo os povos bárbaros da antiguidade ou indígenas a cujos
relatos Hobbes teria acesso através das grandes navegações; 2) na guerra civil, onde impera, dentro
de um Estado constituído, a anarquia; 3) na guerra e conflitos entre Estados. A estas três situações
Bobbio denomina a sociedade pré-estatal, antiestatal e interestatal, respectivamente.
No Leviatã Hobbes refere-se a essas três situações, tendo inclusive vivenciado a segunda
(antiestatal), na Inglaterra. A análise de Hobbes é descritiva, faltando uma visão dialética da história.
Para Bobbio, existem variações sobre temas fundamentais no que se refere ao estado de
natureza hobbesiano: na primeira variação o estado de natureza seria um fato historicamente
determinado ou socialmente imaginado; na segunda, pontua-se a belicosidade ou harmonia deste
estado e na terceira variação refere-se ao indivíduo isolado ou em sociedade, ainda que seja
primitiva.
Na primeira variação, segundo Bobbio, o estado de natureza em Hobbes é parcial, não
universal, e circunscrito a certas relações entre os homens ou grupos. Neste aspecto, diferente de
Rousseau, esse estado nunca existiu e é uma hipótese baseada em fatos empíricos de certos
momentos específicos onde não existe um estado jurídico forte. O Beheemoth é a descrição empírica
do estado de natureza provocado pela guerra civil.
Bobbio, em relação à belicosidade ou harmonia do estado de natureza, afirma que:

[...] na figuração Hobbesiana do estado de natureza, confluem três inspirações diversas: a


representação do estado ferino da sociedade humana, segundo a concepção epicuriana
transmitida por Lucrécio no quinto livre do DE RERUM NATURA; as descrições dos
viajantes ao novo mundo, como foi documentada, de modo amplo e admirável por Landucgi;
e as vivas impressões da guerra civil inglesa.

Em relação a se o estado de natureza é individual ou social as teorias jusnaturalistas se


inspiram em princípios individualistas. A criação da sociedade política seria, portanto, uma criação
dos indivíduos. Ao contrário da teoria aristotélica em que há uma continuidade, passando por
indivíduos, famílias, grupos, neste modelo a sociedade política é diversa da natural, sendo um corte
ou criação artificial, advindo assim a dicotomização entre estado de natureza e social.
Hobbes, segundo Bobbio, pode ser considerado o pai do jusnaturalismo moderno, já que
Grócio ainda utiliza referências do jusnaturalismo medieval.
É fundamental que, para marcar bem o homem natural de Hobbes, possamos recapitular

64
Ensaios sobre filosofia política

alguns conceitos básicos no que se refere às faculdades corporais: passionalidade, liberdade,


movimento, poder e guerra de todos contra todos. A conservação da vida humana é o alicerce desse
arcabouço teórico. Pela conservação o poder conquista, invade, orgulha-se, vangloria-se e torna o
estado de natureza o espaço de uma luta sem trégua, sendo que, até o tempo em que não existe luta,
seja um tempo de preparação para esta. O medo, unido a uma tênue esperança de uma vida mais
confortável, impele o homem natural a pôr fim à guerra, para dar um basta a sua própria insegurança
e destruição. Segundo Ribeiro:

[...] o medo é das principais experiências que temos de nossa condição. Revela ao homem,
no estado natural, que este é insustentável: por natureza cada indivíduo quer expandir-se;
mas fazendo-o, entra em guerra com os outros. A morte violenta, resultado da própria
natureza humana, limita-a brutalmente: vivemos a temê-la; até novo estado, o medo é a
paixão que melhor nos define. Depois, porém, contém-se o temor à morte bruta, ao qual não
se compara o novo medo ao soberano: com ser discricionário, este é discreto e se levarmos
uma vida retirada estaremos tranquilos.

Para Bobbio, o homem, na antropologia do Leviatã, não é um valor absoluto. Não existe
propriamente uma moral no estado de natureza e esta é um produto da invenção da linguagem e
razão e, principalmente, do Estado social. O realismo em Hobbes coloca o homem como um ser
passional e mesquinho no estado de natureza não cabendo a esta antropologia a problemática da
maldade, já que bem e mal são nomes ou marcas postas pela criação da linguagem. Para Bobbio, no
Leviatã:
[...] o homem é um ser da natureza, determinado por leis mecânicas, dominado por
paixões inatas e prepotentes que configuram de modo irrevogável sua posição no
mundo. A paixão mais característica do homem é, talvez, na antropologia de
Hobbes, a vaidade: mais a vaidade do que o interesse, ou seja, mais o prazer de ser
estimado e honrado pelos outros do que de tirar vantagens deles, sendo que a
vaidade é o prazer da alma, enquanto o interesse é o prazer dos sentidos [...].

Autores como Bobbio e Skinner consideram que Hobbes absorveu uma antropologia
humanística que deve muito aos autores clássicos. Sendo que aponta não apenas para o trágico, mas,
sobretudo, para o ridículo ou satírico da condição humana.
Nesta passagem sutil entre o estado de natureza para o Estado social, ou do homem natural
para o artificial, encontramos dois aspectos de nossas paixões que podem ser consideradas como
propulsores do movimento de passagem da nossa passionalidade para nossa racionalidade: a busca e
a curiosidade.

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Ensaios sobre filosofia política

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66
Ensaios sobre filosofia política

SOBRE O AUTOR

Antonio Santana Sobrinho possui Graduação em História e mestrado em Filosofia pela


Universidade Federal da Paraíba. Atualmente, é professor EBTT, Ensino Médio e Superior do
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará. Foi professor do Ensino Privado de
João Pessoa, lecionando as disciplinas de História: ( Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea e
Brasil) nos Colégios: GEO E MOTIVA, entre outros, professor de Cursos pré vestibulares.
Coordenador Pedagógico do Projovem Trabalhador da Prefeitura Municipal de João Pessoa (2011 e
2012), Diretor do Departamento Pedagógico e Articulação (DPAA) da Secretaria de Educação de
João Pessoa. Desenvolveu pesquisa pelo Neabi da UFPB através de Bolsista do Programa Prolicen/
Margens do Atlântico organizado pelo Professor Dr. Elio Chaves Flores. Bolsista do CNPQ,
Coordenador do Curso de Agropecuária o e presidente Conselho do Curso de agropecuária do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano, também lecionou na mesma instituição
as disciplinas de História e História das Ciências na Especialização em Ciências da Natureza e
Membro do Colegiado. Docente Efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Ceará- Campus Cedro lecionando as disciplinas de História, História da Educação e História das
Ciências. Estuda Filosofia Política, História da Educação e História do Brasil Império e Republica.

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Ensaios sobre filosofia política

ÍNDICE REMISSIVO

Antropologia filosófica..................................................................................................................21, 37

Aristóteles...............................................................................................................18, 20, 23, 25, 36, 56

Beheemoth......................................................................................................................................27, 65

Bentham....................................................................................................................................11, 12, 17

Biopoder.........................................................................................................................8, 13, 14, 15, 63

Biopolítica..................................................................................................................................9, 13, 16

Bobbio................................22, 26, 27, 28, 30, 31, 32, 35, 36, 44, 45, 56, 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67

Châtelet...........................................................................................................................................61, 67

Cidadania......................................................................................................................57, 58, 59, 60, 63

Democracia.....................................................................................32, 41, 48, 49, 54, 57, 58, 59, 60, 67

Dignidade humana..........................................................................................................................52, 59

Direitos humanos........................................16, 38, 39, 41, 43, 44, 45, 46, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 58, 60

Direitos sociais.........................................................................................................................40, 49, 58

Estado....6, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38,
39, 40, 41, 42, 43, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66,
67

Estado de natureza..................................................19, 20, 22, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 35, 64, 65, 66

Estado moderno............................................................................................................16, 19, 21, 34, 63

Estado social.........................................................................6, 19, 26, 28, 29, 30, 31, 38, 48, 49, 64, 66

Estado social de direito........................................................................................................6, 38, 48, 49

Foucault............................................................6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 61, 62, 63, 64, 67

Francis Bacon.......................................................................................................................................18

68
Ensaios sobre filosofia política

Governo..............................................................................10, 14, 15, 20, 32, 40, 49, 55, 60, 61, 63, 66

Hobbes...6, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 61, 62, 63, 64,
65, 66, 67

Homem artificial..................................................................................18, 22, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35

Homem natural...................................................................22, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 65, 66

Iluminismo.................................................................................................................................8, 20, 40

Maquiavel...........................................................................................................................19, 36, 58, 63

Marx.................................................................................................................40, 45, 46, 47, 57, 58, 60

Modelo Hobbesiano...................................................................................................................6, 61, 62

Panóptico........................................................................................................................................11, 12

Platão........................................................................................................................................20, 21, 37

Poder....6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 31, 32, 34, 35, 37, 39, 40,
42, 43, 46, 47, 48, 49, 52, 57, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67

Razão................15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 43, 64, 66

Skinner.........................................................................................................................18, 19, 28, 37, 66

Socialismo............................................................................................39, 40, 41, 42, 45, 47, 48, 49, 58

Thomas Hobbes........................................................................................................6, 18, 22, 35, 36, 37

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