24 Horas Na Roma Antiga Philip Matyszak

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 234

Título original: 24 hours in Ancient Rome

Publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha em 2017 por Michael O’Mara Books Limited.
Copyright © Philip Matyszak 2017
Copyright desta edição: © 2022 Culturama Editora e Distribuidora Ltda.
Rua Vico Costa, 54, Cidade Nova
Caxias do Sul - RS - 95112-095
[email protected]
www.culturama.com.br
(54) 3027.3827
Presidente: Fabio Hoffmann
Diretora: Juliana Corso Thomaz
Gerente editorial: Naihobi Steinmetz Rodrigues
Editora: Sabrina Didoné
Tradução: Débora Isidoro
Design e ilustrações da capa: © Patrick Knowles
Projeto gráfico: Jade Wheaton
Adaptação de projeto gráfico: Estúdio Isis
Revisão: Ana Carolina Salinas e Marina Ávila Birriel
A ficha catalográfica deste livro encontra-se em poder da Editora.

Grafia atualizada seguindo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Todos os direitos
reservados. É proibido copiar, armazenar, distribuir, transmitir, reproduzir ou de qualquer outra forma
disponibilizar este livro (ou parte dele) em qualquer que seja o formato ou meio (eletrônico, digital,
óptico, mecânico, por fotocópia, por gravação ou outro), sem a autorização prévia por escrito do
editor. Qualquer pessoa que perpetre algum ato não autorizado em relação a este livro estará sujeita a
ações civis e criminais.
VISITE NOSSAS REDES SOCIAIS:
fb.com/culturamaeditora
@culturamaeditora
youtube.com/culturamaeditora
SUMÁRIO

ANTERROSTO

FOLHA DE ROSTO

PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

HORA NOCTIS VI (0H–1H)


O VIGIA LIDA COM UMA RECLAMAÇÃO

HORA NOCTIS VII (1H–2H)


O CARROCEIRO NO ENGARRAFAMENTO

HORA NOCTIS VIII (2H–3H)


O PADEIRO COMEÇA A TRABALHAR

HORA NOCTIS IX (3H–4H)


A ESCRAVA PREPARA O DESJEJUM

HORA NOCTIS X (4H–5H)


A MÃE CUIDA DE SEU BEBÊ DOENTE

HORA NOCTIS XI (5H–6H)


O MENSAGEIRO IMPERIAL PARTE PARA A BRITÂNIA

HORA NOCTIS XII (6H–7H)


O ESTUDANTE COMEÇA A AULA MATINAL
HORA I (7H–8H)
O SENADOR VAI ENCONTRAR SEU PATRONO

HORA II (8H–9H)
A VIRGEM VESTAL VAI BUSCAR ÁGUA

HORA III (9H–10H)


O JURISTA É CONSULTADO SOBRE UM CASO

HORA IV (10H–11H)
A ADOLESCENTE ROMPE COM SEU NAMORADO

HORA V (11H–12H)
O PEDREIRO TRABALHA EM UMA TUMBA IMPERIAL

HORA VI (12H–13H)
A DONA DA TAVERNA NA HORA DO ALMOÇO

HORA VII (13H–14H)


O CONSTRUTOR DE RELÓGIOS DE ÁGUA COMEÇA UM PROJETO

HORA VIII (14H–15H)


O ATENDENTE DE BANHO RECEBE CLIENTES

HORA IV (15H–16H)
A ANFITRIÃ ORGANIZA A NOITE

HORA X (16H–17H)
A LAVADEIRA TRABALHA ATÉ MAIS TARDE

HORA XI (17H–18H)
O COZINHEIRO FICA AFLITO

HORA XII (18H–19H)


A SACERDOTISA PREPARA O SACRIFÍCIO

HORA NOCTIS I (19H–20H)


O MERCADOR DE ESPECIARIAS SAI PARA JANTAR

HORA NOCTIS II (20H–21H)


A PROSTITUTA ENCONTRA UM CLIENTE

HORA NOCTIS III (21H–22H)


O ASTRÓLOGO DIVULGA UM HORÓSCOPO

HORA NOCTIS IV (22H–23H)


O GLADIADOR FAZ SEU TRABALHO

HORA NOCTIS V (23H–0H)


O PARASITA RETORNA DO JANTAR

AGRADECIMENTOS POR IMAGENS

BIBLIOGRAFIA

CONHEÇA OUTROS LIVROS DO SELO CULTURAMA PLURAL


INTRODUÇÃO

É início de setembro do ano de 137 d. C. O império de Roma está quase no


auge de seu poder. As águias imperiais foram carregadas para Mesopotâmia
e Dacia (e para fora de lá, no caso da Mesopotâmia). Do Tâmisa ao Tigre,
Roma é poderosa, temida e respeitada.
A maioria das pessoas que encontramos neste livro não se importa
com isso. Para elas, a vida não tem a ver com celebrar a glória do império,
mas com pagar o aluguel, lidar com parentes difíceis e com os desafios
diários da casa e do trabalho. Roma pode ser a maior cidade da terra, mas os
que moram nela ainda precisam enfrentar o tráfego, se entender com os
vizinhos e encontrar alimentos bons a preços razoáveis nos mercados.
Este livro nos leva por um dia na vida da Roma de Adriano, com a
cidade vista a partir das perspectivas muito diferentes de seus habitantes,
em 24 horas. Começamos na sexta hora da noite — é bem confuso, os
romanos iniciavam o dia de 24 horas à meia-noite, mas começavam a contar
as horas da noite a partir do pôr do sol. Esse é só um exemplo das diversas
diferenças entre a forma como os romanos viam o mundo e como o vemos
hoje.
Do ponto de vista do leitor moderno, várias pessoas aqui descritas
levam vidas curtas, esquálidas, em uma sociedade injusta e altamente
desigual. A morte por infecção e doença é onipresente. Cuidados com saúde
e segurança são rudimentares, e a maior parte dos serviços sociais é
inexistente. No entanto, não é assim que o povo de Roma percebe as coisas.
Para eles, injustiça e doença são males universais, coisas a serem suportadas
e aceitas. Com todas as suas falhas e inconveniências, Roma ainda é um
lugar melhor para viver do que quase todos os outros no mundo. Roma tem
as mesmas desvantagens que todos os outros lugares, mas suas vantagens
são incomparáveis.
Não que o povo dessa cidade passe muito tempo andando por lá,
admirando seus movimentos e grandes edifícios cívicos. Eles têm que
cuidar da vida, e é nessa vida que damos uma olhada rápida durante esse dia
de fim de verão. Perceba, no entanto, que nosso principal propósito com
isso não é aprender sobre a vida de indivíduos em Roma, mas saber o que
eles podem nos contar sobre Roma propriamente dita. Porque os gregos e
romanos acreditam que, mesmo que se remova paredes, prédios e estradas,
ainda se tem uma cidade.
As pessoas são a cidade: os prédios e monumentos que gerações
posteriores de turistas vão admirar são secundários, importantes apenas
como o eco físico do povo que os construiu e viveu neles. Por esse motivo,
há poucos monumentos neste livro. Os edifícios que encontramos não são
um conjunto de ruínas estéreis, mas parte de um ambiente vivo, desafiador
e de muitas camadas.
Da mesma maneira, os 24 homens e mulheres que conhecemos hoje
não são apenas os habitantes de Roma — eles, e centenas de milhares como
eles, são Roma. Este livro não é uma tentativa de reconstruir as horas do dia
para duas dúzias de indivíduos romanos — ele procura reconstruir uma fatia
da vida da própria cidade, refletida em 24 de suas muitas milhares de
facetas.
Embora as pessoas nessa reconstrução sejam (em grande parte)
fictícias, a vida delas não é. Do ponto de vista do historiador moderno, a
Antiguidade tem menos a ver com “grandes homens” do que com a
infraestrutura social que sustentava esses homens e seus feitos.
Consequentemente, arqueólogos, sociólogos, epigrafistas e os profissionais
de inúmeras outras disciplinas contribuíram para nos dar uma imagem geral
de como pessoas comuns viviam e trabalhavam na Roma Antiga. Este livro
recorreu a todas essas fontes e também às mais valiosas de todas: anedotas,
piadas, discursos e correspondências das pessoas que realmente viveram lá.
O classicista vai notar onde — com o alegre conhecimento de que os
direitos autorais dessas obras venceram séculos atrás — os escritos de uma
horda de romanos contemporâneos ou quase contemporâneos é entremeado
no texto, desde as cartas do erudito Plínio até o grafite lascivo recuperado
de paredes de bordéis. Na medida do possível, aqui o povo de Roma fala
por si mesmo de suas experiências, e, para aqueles romanos que não tinham
voz em sua sociedade, este livro tenta falar por eles. Muitas vezes, são
fornecidos exemplos das fontes originais, como excertos, que acompanham
o texto principal, e, em muitos casos, as experiências de numerosos
indivíduos foram mescladas para descrever uma hora no dia de uma única
pessoa.
A totalidade dessas 24 horas é mais que a soma de suas partes. No fim,
este livro só tem um protagonista. Esse protagonista é a cidade de Roma —
um lugar fervilhante, obsceno, um formigueiro quase ingovernável. Seus
defeitos são muitos e,às vezes, causam horror, mas, ainda assim,
encontramos enorme energia e otimismo nessa cidade.
Existe um espírito empreendedor e uma crença inabalável de que,
independentemente do quanto as coisas possam ser boas ou ruins, sempre se
pode torná-las melhores. Em Roma, o escravo se esforça para ser livre, o
homem livre luta para ser próspero, e o mercador rico quer ser aceito pela
alta sociedade. Embora estejam sempre reclamando de seu quinhão com
amargura, os romanos raramente se conformam com ele. São dinâmicos,
não deprimidos. Eles são convencidos da própria superioridade e imbuídos
do sentimento de que, agora que estão no centro do universo, devem tirar o
melhor disso e abrir caminho na marra para uma vida melhor para eles e
seus filhos.
A Roma Antiga era mais que uma coleção de edifícios. Era ainda mais
que uma sociedade de comunidades interligadas de pessoas e indivíduos
muito diferentes.
Acima de tudo, a Roma Antiga era uma atitude.
HORA NOCTIS VI
(0h–1h)

O VIGIA LIDA COM UMA


RECLAMAÇÃO

O fato de Petronius Brevis ser pai — de uma filha — é motivo para muito
humor atrevido no pequeno prédio de apartamentos que ele chama de lar.
A esposa de Petronius trabalha em uma banca de peixes no Fórum
Piscarium de Roma. Faz parte do seu trabalho supervisionar a transferência
dos peixes vivos. Esses peixes são trazidos à Roma de noite em barris com
água. Eles são transportados vivos para evitar o problema de estragarem no
caminho. Uma vez removidos dos barris, durante as horas de
funcionamento do mercado, os peixes nadam em bacias rasas entalhadas
nos balcões de pedra da banca. Assim, os romanos podem levar o peixe
realmente fresco. Na verdade, não é incomum que um peixe seja servido à
mesa menos de uma hora depois de sua morte na peixaria.
Tirar os peixes dos barris e levá-los para as bacias é algo que precisa
ser feito antes de os primeiros clientes chegarem ao Fórum, mais ou menos
ao nascer do sol, e isso significa que a esposa de Brevis tem que sair de casa
uma hora antes do amanhecer. Antes de ir trabalhar, normalmente ela
prepara o café da manhã e o deixa sobre o balcão da cozinha para o marido
comer quando chegar, apesar de a refeição poder servir de ceia,
considerando a hora em que ele chega.
Brevis normalmente chega em casa uma hora depois de a esposa ter
saído para ir trabalhar, horário em que ele faz sua refeição, lava-se
rapidamente e vai para a cama. Isso porque Petronius Brevis é membro da
Vigiles, a Patrulha Noturna de Roma, e, à essa altura, ele já passou as
últimas nove horas em pé. Por causa desses horários desencontrados, às
vezes Petronius passa uma semana sem ver a esposa. E é daí que vêm as
piadas sobre a filha dele, porque os vizinhos especulam sobre como
conseguiram organizar a concepção.
No momento, Brevis tem várias longas horas de expediente pela
frente. Ele e seu esquadrão têm uma função dupla: embora os vigiles sejam
encarregados de manter a lei e a ordem nas ruas depois que escurece, isso é,
na verdade, incidental à principal obrigação deles, que é a prevenção de
incêndios. Afinal, o estrago que um bêbado violento ou um assaltante
assassino pode causar é pequeno, comparado ao caos provocado por um
incêndio, mesmo que moderado. Roma é dividida em sete distritos para
efeitos de prevenção, e Brevis e seus colegas sabem muito bem que foi no
distrito coberto pelo colega deles — Regio II — que o pior incêndio da
história de Roma começou.
Isso foi em 64 d.C., e o fogo que começou naquelas ruas sinuosas
perto do Circus Maximus acabou crescendo, tornando-se uma conflagração
que só foi controlada seis dias depois — quando bem mais que um quarto
de Roma tinha sido completamente destruído.

O GRANDE INCÊNDIO
Na quente noite de verão de 19 de junho de 64, um incêndio começou em uma das lojas
enfileiradas junto dos muros do Circus Maximus. Como o historiador Tácito explicou
posteriormente, “não havia mansões protegidas por muros, nem templos cercados por
paredes de pedras, nem obstruções de nenhum tipo para impedir seu avanço”.
Tácito — que experimentou o fogo quando jovem — dá a descrição a partir da experiência
pessoal: “As ruas ficaram lotadas de pessoas tentando fugir. Havia mulheres gritando
apavoradas, os incapacitados e idosos. Havia homens cuidando deles mesmos ou de outras
pessoas, alguns com enfermos nas costas, ou esperando por eles. Enquanto olhavam para
trás, [o fogo] os atacava pelos lados, ou pela frente. Às vezes, eles fugiam para um distrito
vizinho, só para encontrá-lo em estado ainda pior do que aquele que tinham abandonado.”
Muitos acreditavam que um incêndio tão grande como aquele só poderia ter sido provocado,
e desenvolveu-se a suspeita de que o Imperador Nero havia decidido que o fogo era uma
forma estratégica de limpeza urbana, depois do qual ele reconstruiria Roma de acordo com
seus planos.
As barracas precárias dos ambulantes nas ruas, os depósitos em
galpões e os andares superiores de muitos edifícios são de madeira, secos e
tão aglomerados que quase não há uma estrutura que não toque outra. Basta
uma faísca de carvão cuspida por um fogo malfeito ou uma lamparina de
óleo derrubada por um rato procurando comida, e, em minutos, uma parede
de chamas podia varrer a rua que Brevis e seu batalhão patrulhavam.

MODELO DE UM CARRO DE BOMBEIROS ROMANO. A ALAVANCA MÓVEL OPERA


UMA BOMBA DE FORÇA.

Não é surpresa, então, que o vigia tenha poder para invadir qualquer
lugar onde desconfie da existência de um fogo fora de controle. Além do
poder estatutário para multar estabelecimentos ou residências descuidados,
o vigia também pode dispensar punição física básica. Dado o grande perigo
que um incêndio representa para a vizinhança, o adjetivo “incendiário”está
entre os piores insultos que um romano pode lançar contra outro, e há pouca
simpatia por qualquer um que se torne alvo das atenções do vigia.
Uma vez detectado um incêndio, a unidade tem protocolos bem-
estabelecidos para enfrentá-lo. Em curto prazo, providencia-se a evacuação
dos edifícios próximos e a organização uma corrente de baldes a partir das
residências no entorno. Todas as casas têm que manter uma quantia
determinada de água para esse fim, e Brevis e seus homens podem informar
de imediato quanto tempo demora para uma corrente de baldes unir
qualquer parte de sua rota de patrulha à fonte mais próxima. Um
desafortunado novato no grupo é designado “homem cobertor” e carrega
cobertores encharcados de vinagre para abafar qualquer pequeno foco de
fogo antes que se alastre. Se for necessário reforço, o grupo do carro de
bombeiros é acionado. O carro de bombeiros não é uma invenção nova —
os ancestrais do veículo, usados pelos vigiles, já apagavam incêndios no
Egito séculos antes. Foi um inventor grego que trabalhava para a Grande
Biblioteca de Alexandria (um homem chamado apropriadamente de Herói)
quem primeiro desvendou os princípios de uma bomba poderosa o
suficiente para transportar água através de uma mangueira.
Todos os grupos de vigiles têm especialistas. Há, é claro, os médicos
que cuidam dos agredidos por assaltantes e dos vigiles que, às vezes, são
feridos em um encontro físico com uma grande gangue de ladrões. Também
têm os que são feridos em incêndios ou pulam de edifícios em chamas
(embora os vigiles também tenham um esquadrão de “homens-colchão” que
tentam amenizar quedas desse tipo).
Se o carro de bombeiros falha, o vigile chama a artilharia pesada, que
é, bem, artilharia pesada. Ao longo de séculos de guerras e cercos, os
romanos se tornaram muito bons em derrubar muralhas de cidades, e
balistas, onagros e outras peças de artilharia usadas para esse propósito são
ainda mais destruidoras quando apontadas para prédios de apartamentos
romanos comuns (isto é, decrépitos). Então, quando acontece um incêndio
importante, o prefeito encarregado dos vigias toma uma decisão rápida
sobre onde deve acontecer a interrupção do fogo. A artilharia entra em ação
e cria a interrupção com um trabalho de demolição ultrarrápido. Uma
construção de quatro andares pode se tornar uma pilha de entulho com
velocidade impressionante, quando submetida aos disparos de um perito.
Uma vez derrubado o prédio, é tarefa de Brevis e seus colegas subir na
pilha instável de escombros, armados com ganchos de cabos compridos, e
arrancar de lá qualquer coisa inflamável. Eles têm que fazer esse trabalho
rapidamente, já que o fogo se aproxima depressa. É óbvio que esse é um
trabalho perigosamente empolgante, e isso ajuda a explicar a veemência
com que Brevis e seu esquadrão advertem aqueles que tratam o fogo com
descuido. (Não é nem preciso dizer que os proprietários dos prédios
demolidos raramente ficam contentes com a escolha do prefeito para a
localização da interrupção do incêndio.)

QUEIMA DE ESTOQUE
Antes de os vigiles serem organizados pelo Imperador Augusto, no início do primeiro século,
as únicas brigadas de incêndio em Roma eram particulares. Uma delas pertencia a Licinius
Crassus. Em caso de incêndio em uma casa, esse indivíduo interessado no bem-estar público
aparecia na propriedade em chamas, com seus bombeiros a postos, e se preparava para
debelar as chamas — assim que o prédio fosse vendido para ele. Quanto mais o proprietário
postergava a venda ou tentava negociar, mais sua propriedade queimava e perdia valor.

Ele comprava casas que estavam pegando fogo, e casas vizinhas


àquela em chamas, e os proprietários as vendiam por ninharia
em razão do medo e da incerteza. Foi assim que ele [Crassus] se
tornou dono de grande parte de Roma.
PLUTARCO, Biografia de Crassus 2

Neste momento, porém, a noite é calma, sem sequer um sinal de


fumaça na brisa. Brevis e seu pelotão estão saindo da via Patricus. Essa rua
é uma das vias mais movimentadas de Roma à noite, porque abriga muitos
dos melhores bordéis da capital. Mais cedo, os vigiles tiveram que voltar
duas vezes pela rota habitual de patrulha para dispersar um grupo
desordeiro de jovens aristocratas que tinham sido expulsos de um desses
bordéis e transferiram sua festa para a rua. Nessas ocasiões, Brevis lamenta
que seus homens tenham apenas cassetetes como armas, em vez das
espadas com as quais as Coortes Urbanas limpavam as ruas de maneira
rápida e letal durante grandes turbulências civis.
Agora é pouco mais de meia-noite, e até as damas da noite decidiram
dar o dia por encerrado. Na rua, só algumas lamparinas queimam atrás das
janelas onde as trabalhadoras dos bordéis se retiraram para os cubículos em
que dormem. O fato de os bordéis terem encerrado suas atividades foi o que
levou os vigiles à rua pela terceira vez naquela noite.
Um magistrado romano, um cavalheiro de considerável importância
que confere a si mesmo importância ainda maior, tentou entrar em seu
estabelecimento preferido depois de um jantar prolongado com amigos no
Monte Aventine. O magistrado não ficou nada contente ao descobrir,
primeiro, que o bordel tinha fechado e, segundo, que sua favorita não tinha
intenção de atendê-lo tão tarde da noite. Em um ataque de fúria ébria, o
magistrado tentou abrir a porta a socos e chutes. Isso fez uma das mulheres
sair para a sacada no andar de cima, pegar um vaso contendo uma pequena
petúnia e jogá-lo na cabeça do barulhento.
Infelizmente, ela acertou o alvo, e os gritos de agonia e ultraje do
magistrado atraíram a atenção dos vigias.
“Eu sou o Curule Aedile, Hostilius Mancinus”, o homem ferido
informou a Brevis e seus homens, “e fui atacado na rua”. O Aedile exige
que os vigiles invadam o prédio e prendam a agressora. Brevis nota,
carrancudo, que a guirlanda de flores que o magistrado ainda tem sobre a
cabeça deve ter amenizado consideravelmente a pancada do vaso, mas,
mesmo assim, é impelido a bater na porta do bordel até a assustada leno
(cafetina) o deixar entrar. Descobre-se que a culpada é uma garota chamada
Mamila, que está sentada na cama em seu dormitório, soluçando, quando
Brevis ouve seu relato. Sem dúvida, ela terá que se apresentar no tribunal
para dar explicações, mas Brevis tem certeza de que, consideradas as
circunstâncias, não haverá punição.
Não é que os vigiles não tenham alguma simpatia pelo Aedile. Coisas
caindo ou sendo jogadas de sacadas são um perigo constante para quem usa
as ruas. O perigo é particularmente maior tarde da noite, porque aqueles que
jogam as coisas tendem a presumir que as ruas lá embaixo estão vazias.
Não é incomum um membro do esquadrão voltar ao alojamento em
condições particularmente malcheirosas, depois de um morador, preguiçoso
demais para esperar até a manhã seguinte e esvaziar seu penico nas latrinas,
despejar o conteúdo pela janela sem notar os vigias passando lá embaixo.

Pense nos outros perigos que espreitam à noite.


Os telhados são muito altos,
E uma telha pode cair em cima de você.
Pense no dano causado ao pavimento
Quando vasos rachados ou vazando são jogados
Pelas janelas para se estraçalharem na rua!
Que tipo de tolo inconsequente, caçador de desastres, é você
Que sai de casa para ir a um jantar e não deixa
um testamento?
Toda janela mais alta em seu caminho
É uma possível armadilha de morte.
Faça uma prece sentida e torça para que o pior que aconteça
Seja uma dona de casa local jogar
O conteúdo de um penico em sua cabeça.
JUVENAL, Sátiras 3

Os vigias passaram pelo Circus Maximus e viraram na direção sul para


patrulhar as vielas ao longo das encostas a leste do Monte Aventine. De dia,
há motivos para se manter atento ali, porque a vida perto das docas é dura a
ponto de se tornar desagradável e fugaz. No entanto, os vigiles podem
relaxar um pouco. Como a maioria das pessoas a leste da Aventine não tem
muito que valha a pena roubar, há menos ladrões por ali, e os estivadores
que têm que carregar os navios algumas horas depois da meia-noite tendem
a estar na cama ao nascer do sol. As ruas são estreitas, escuras e silenciosas.
O silêncio dessas ruas facilita a movimentação porque, à direita do
esquadrão, só uma rua tem o movimento e o barulho da hora do rush
matinal. É a rua de pedras que leva do Portal Ostia ao Fórum. Ali, uma fila
de carroças aparentemente interminável bloqueia a rua, enquanto bois e
carroceiros gritam e berram uns com os outros, e o guincho de eixos sem
lubrificação contribui para a cacofonia.
No momento, o caos parece mais e mais estridente justamente no
ponto onde a rua fica mais estreita, entre as colunas que sustentam os
poderosos arcos do aqueduto Aqua Appia, que passa por cima da via. Com
suspiros contidos de resignação, os vigiles descem ladeira abaixo e vão
investigar o último problema que complica a noite do grupo.
HORA NOCTIS VII
(1h–2h)

O CARROCEIRO NO
ENGARRAFAMENTO

Quem, senão os ricos, dorme em Roma? Aí está a raiz da


desordem. Os engarrafamentos do trânsito de carroças nas ruas
estreitas e sinuosas, os xingamentos entre os condutores quando
o trânsito para — isso torna o sono impossível.
JUVENAL, Sátiras 3.235

Os deuses ctônicos são os deuses do mundo inferior: Mercúrio, Plutão e


Hécate. Nesta noite, como faz a cada nove noites, Caius Vibius invoca esses
deuses e pede a eles que inflijam torturas horríveis à alma dos autores da
Lex Municipalis.
A Lex Municipalis é a desgraça da vida de Caius Vibius. A lei existe
para impedir o congestionamento das ruas urbanas, proibindo veículos com
rodas de entrar na cidade durante as horas do dia. Na opinião de Vibius, o
único efeito dessa lei é prolongar o congestionamento noite adentro,
enquanto ele e, aparentemente, todos os outros condutores do Lácio tentam
entrar na cidade com a luz da lua e sair dela ao nascer do sol. É um negócio
estressante.
Durante oito de cada nove dias, Vibius é um camponês que trabalha
em sua pequena propriedade de sete acres, situada na região rural a sudoeste
de Roma, não muito longe do décimo marco da Via Ápia. É uma vida
tranquila, embora envolva carpir muito e travar uma batalha constante para
manter as lesmas longe das alfaces. Vibius vai para a cama quando o sol se
põe e acorda, descansado e contente, com o primeiro canto dos pássaros ao
raiar do dia. Essa é a rotina habitual. Porém, no nono dia, Vibius é
transformado em um monstro lento de olhos vermelhos que sobe no carro
de boi da família e se prepara para a viagem à Roma.
A causa de sua aflição é o nundinae. Como o nome sugere, esses
mercados de rua funcionam a cada nove dias em Roma. As donas de casa
romanas podem comprar alimentos quando quiserem nos macella
(mercados fechados que funcionam todos os dias), mas todo mundo sabe
que os produtos no nundinae são mais frescos e mais baratos. Isso acontece
porque esses produtos foram colhidos nas fazendas no dia anterior e levados
para Roma durante a noite por carroceiros resignados, como Vibius.
A venda dos produtos é feita pela irmã de Vibius, que mora em Roma.
Ela tem um ponto na via Mercatus, a leste do Monte Aventine, e uma
clientela regular. Esses clientes apreciam a qualidade dos produtos à venda,
porque Vibius é conhecido por trazer o melhor que tem. A esposa de Vibius
faz sua parte no controle de qualidade, garantindo que só os melhores
produtos cheguem à carroça. Ela faz questão, por exemplo, de que
rabanetes e outros vegetais abaixo do padrão sejam dados aos porcos —
que, por sua vez, na época do festival Saturnália, no inverno, fazem a
viagem para Roma na forma de presunto defumado e bacon.
O dinheiro que é auferido no mercado de rua é muito bem-vindo. A
maior parte das necessidades da pequena propriedade de Vibius é atendida
por permutas com os vizinhos, mas ferramentas agrícolas específicas,
roupas de cama e bens supérfluos requerem dinheiro. Parte dele vem de
negociantes especializados. Em diferentes épocas do ano, esses negociantes
percorrem as pequenas propriedades em suas carroças, comprando a safra e
poupando Vibius de ter que fazer mais viagens à capital. Assim, o lupinarii
passou e comprou a safra de vagens e grão-de-bico, e o peponarii pagou
bem pela safra de melão da família. O fructarii faz visitas regulares atrás de
cerejas, pêssegos e maçãs maduros em épocas diferentes. No entanto,
embora a conveniência seja apreciada, vender em casa para atacadistas é
menos lucrativo do que vender diretamente para os consumidores em
Roma, e a necessidade financeira determina que Vibius ainda tenha que
carregar a carroça a cada nove dias.
A PEQUENA PROPRIEDADE RURAL
Juvenal para seu amigo Persicus:
E agora ouça sobre meu [planejado] banquete, nada nele é do
mercado de carne. Minha fazenda em Tivoli vai fornecer um
filhote gordo, o mais tenro do rebanho. Um que ainda não comeu
grama… e há nele mais leite do que sangue. E também aspargos,
colhidos pela esposa do meirinho quando ela termina de tecer.
Ovos dignos de um nobre, mantidos confortavelmente
embrulhados em feno fino, servidos junto com as galinhas que os
puseram. Também uvas que, embora tenham seis meses de idade,
parecem recém-tiradas da videira. Você terá peras… e, nas
mesmas cestas, maçãs com um perfume fresco e tão boas quanto
as do Picenum.

A carga de hoje é bem típica. Tem alfaces em cestos de vime, cenouras


temporãs (roxas, é claro, porque a cenoura cor de laranja só chegará à
Europa um milênio mais tarde), ervilhas debulhadas, alho-poró e aspargos.
Há seis pares de lebres, que foram capturadas na linha de armadilhas ao
lado da horta, e um cesto de ovos guardados desde o último nundinum.
Vibius também leva bens para vender pelos pequenos fazendeiros que
vivem mais longe de Roma. São itens menos perecíveis, como uma
variedade de queijos, potes de mel e maços de coentro, salsa, alecrim e
endro. É mais fácil para esses pequenos produtores de regiões mais
afastadas levar seus bens em mulas até a propriedade de Vibius do que
transportá-las, eles mesmos, em carroças até Roma. Seu lucro menor é mais
do que compensado pela conveniência de ser poupado da última e mais
difícil etapa da viagem até Roma — um sentimento que Vibius entende
muito bem. Acontece também que Vibius tem dois bois — tranquilamente o
bem mais precioso do pequeno produtor, considerando inclusive sua casa.
Além de fazer a viagem regular a Roma e arar os campos, os bois rendem o
próprio sustento quando são alugados a outros pequenos proprietários
quando necessário.
É bem provável que os bois compartilhem do desgosto de Vibius pela
viagem a Roma. Afinal, eles têm que puxar a carroça. Essa carroça é um
triunfo do design utilitário, o tipo conhecido como plaustrum — o veículo
para transporte pesado do mundo romano. Como Vibius pode atestar
dolorosamente, nenhum luxo escapou da omissão na construção do
veículo:ele é basicamente uma caixa rasa de tábuas de carvalho com um
assento (não estofado) na frente. As rodas são discos rústicos de madeira
em cujas bordas foram marteladas tiras de ferro, uma tentativa apenas
parcialmente bem-sucedida de impedir as rodas de rachar cada vez que
passam sobre um buraco. Veículos mais caros têm algum tipo de suspensão,
mas esse e a maioria das carroças de fazenda não têm nada disso. Para
absorver o impacto, Vibius tinha que contrair as nádegas.
O eixo mal é digno do nome, é só uma estaca mantida no lugar por
dois suportes simples de madeira. No entanto, a bucha do eixo e o cubo
interno são revestidos com ferro, o que impede o desgaste. Há um conjunto
de arruelas de ferro ao redor da roda para aliviar o atrito, mas a falta de
rolamentos significa que a jornada de Vibius a Roma é regularmente
interrompida pela necessidade de pular do carrinho e espalhar outro
punhado de gordura no eixo, a qual ele transporta em um pote mantido na
parte de trás para este fim. O lubrificante pode ser feito de gordura de porco
ou azeite reduzido por fervura. De qualquer maneira, lubrificante de eixo
custa dinheiro, e Vibius só se desfaz de algum quando vê que os bois estão
se esforçando indevidamente. Enquanto isso não acontece, as reclamações
de outros usuários da estrada sobre o rangido da fricção de metal contra
metal são tratadas com desdém indiferente.
Os bois foram valentes durante o trajeto percorrido no fim da tarde,
mas, como Vibius esperava com resignação, tornaram-se mais lentos depois
que escureceu, quando a carroça se aproximava da cidade. Como a maioria
dos veículos romanos com rodas, o de Vibius deve ser conduzido pelo
acostamento macio da estrada, deixando a superfície dura, pavimentada
para os pedestres. Mas, quando a carroça se aproxima dos portões da
cidade, as tumbas se acumulam cada vez mais perto do acostamento (é
proibido sepultar corpos dentro da cidade, por isso as estradas no entorno
são cheias deles). Os bois não têm ferraduras e reclamam alto quando são
forçados a marchar pelas pedras do calçamento. Seus mugidos indignados
quando cada pata desprotegida encontra uma pedrinha se juntam à
cacofonia geral da viagem.
Muito tempo de experiência permitiu que Vibius programasse sua
chegada para bem depois de a fila entrar na cidade, ao pôr do sol. Ele se
parabenizava por uma viagem lenta, mas relativamente tranquila, quando
sua sorte mudou à meia-noite. Agora, com o estômago contraído, Vibius
olha para a fila de carroças paradas bloqueando a chegada aos arcos da
Aqua Appia. Pela gritaria, os palavrões e as sugestões inúteis lá na frente,
fica claro que uma carroça está com uma roda quebrada, e o trânsito vai
ficar parado até que o problema seja resolvido.
Xingando, Vibius prepara o chicote preso a uma vareta comprida que,
durante a maior parte da viagem, usou basicamente para espantar moscas
das orelhas dos bois. As tábuas laterais da carroça foram erguidas com um
trabalho em vime para torná-las mais altas, tendo justamente esse tipo de
situação em mente. Virado para trás no assento, Vibius tenta enxergar
melhor à luz pálida das estrelas, pronto quando a primeira mão suja e
pequena agarra a parte de cima da lateral de vime. O chicote desce com
força nos dedos da criança, e o projetinho de ladrão grita de dor, um grito
seguido por uma enxurrada de obscenidades nada infantis.
Esse é um dos motivos pelos quais Vibius levou uma carroça a Roma.
Os eixos primitivos e os arreios duros significam que os bois não podem
puxar uma carga muito grande sem se enforcarem (a coleira de cavalo é
outra invenção que só surgirá séculos depois). Na verdade, Vibius poderia
ter atrelado a mesma carga a cinco mulas e feito a viagem até Roma de
maneira mais conveniente. Porém, com exceção dos serviços rudimentares
dos vigiles, Roma é, em grande parte, um lugar sem policiamento, e um
homem sozinho com cinco mulas transportando bens fáceis de carregar
tinha a mesma chance de chegar ao outro lado da Aventine à noite quanto
uma virgem carregando uma bolsa de ouro. Não importa o que digam sobre
o plaustrum, ele tem, pelo menos, a vantagem de ser um minicastelo sobre
rodas. Além disso, o já mal-humorado Vibius não economiza chicote na
defesa de seus pertences, e, depois de um tempo, os moleques se afastam
para procurar presa mais fácil.
Resta a ameaça mais séria das gangues de bandidos mais velhos, que
tiram proveito da situação para empurrar a carroça para um beco, onde o
assalto é praticado sem pressa. Nesses casos, é de interesse comum que
todos os carroceiros saiam em defesa de qualquer um atacado dessa
maneira. Vibius faz outra prece aos deuses para que isso não aconteça esta
noite, porque, embora moralmente obrigado a se juntar à luta para enfrentar
essa pirataria urbana, ele sabe que os moleques vão roubar tudo que
puderem enquanto ele estiver ocupado.
O alívio é geral quando uma equipe de vigiles vem do Aventine para
investigar a confusão na região da base do aqueduto. Minutos depois de sua
chegada, a procissão de carroças volta a se mover. Quando a carroça passa
sob o enorme arco de pedra, Vibius percebe que — como costuma
acontecer — os vigiles foram eficientes, mas nada solidários. A carroça
com a roda quebrada foi tombada de lado em uma viela, onde o
proprietário, agora desamparado, está sentado em meio aos seus produtos,
esperando que suas aflitas solicitações por um carpinteiro sejam
rapidamente atendidas.
A imagem faz Vibius lembrar que, na próxima parada, é melhor dar
uma olhada nos pinos de metal que mantêm as rodas de sua carroça no
lugar. O torque das rodas nos eixos pode quebrá-los, entortá-los ou afrouxá-
los, e isso, junto às ocorrências mais catastróficas de quebra de roda ou
eixo, é causa comum para um colapso. Por conta desse e de outro bloqueio
anterior, Vibius já está se atrasando. Mais um problema que o fizesse perder
tempo seria desastroso.
Mas o local do nundicum está próximo, logo à frente, onde um
pequeno cortejo de carroças segue para o mesmo mercado de rua em que
Vibius irá parar. Não é coincidência que tantos veículos sigam para o
mesmo mercado, já que cada mercador escolhe um tão próximo de seu lado
de Roma quanto for possível. Assim, os agricultores do leste de Roma vão
procurar consumidores no Monte Esquilino, e os do norte vão vender no
Monte Viminal. Ninguém quer percorrer as ruas estreitas de Roma além do
necessário, embora alguns possam fazer um esforço extra para chegar ao
Fórum Holitorium, o principal mercado de vegetais de Roma, aos pés do
Monte Palatino.
MOSAICO RETRATANDO O CARREGAMENTO DE UMA CARROÇA LEVE DE DUAS
RODAS.
CONSELHO PARA OS AGRICULTORES DO MERCADO
Plante feijão em solo forte protegido das tempestades; ervilhaca
e feno-grego o mais longe possível de ervas daninhas…
Lentilhas podem ser plantadas em solo infértil para outras
culturas. Procure terra vermelha e a mantenha livre de ervas
daninhas. A cevada cresce em solo novo ou em campos que
ficaram em pousio. Plante nabos, sementes de couve-rábano e
rabanetes em terrenos bem adubados ou naturalmente férteis.
CATO, De Agricultura 35

A localização do nundinum de Vibius no Aventino significa que, como


ele teve que trazer sua carroça para Roma, vai poder fazer alguns negócios
extras enquanto estiver por ali. Alguns carroceiros, mais interessados em
lucro do que em higiene, alugam seus veículos para transporte de lixo, que
levam para fora da cidade na viagem de volta. Isso tem a vantagem de
permitir que eles fiquem em Roma por mais tempo, pois as carroças de lixo
são isentas das determinações estritas da Lex Municipalis. No entanto, a
segunda carga de Vibius vai ser bem mais limpa.
Ao pé do Monte Aventino, corre o Rio Tibre. O espaço entre rio e
encosta é ocupado pelo vasto emporium — uma área de depósitos e
estabelecimentos atacadistas que absorvem o fluxo de produtos que chegam
do Império Romano, descarregados de balsas que vieram rio acima do porto
marítimo em Ostia.
A primavera encerrou a temporada do mare clausum (o “mar
fechado”, durante a qual navios de outras nações são proibidos de navegar
pela região), e, em meio a navios mercantes da Espanha, de Cartago e
Bizâncio, o primeiro dos enormes supercargueiros de grãos de Alexandria
atracou. Os navios trazem a preciosa carga de trigo egípcio, que mantém
Roma livre da fome. Esse grão tem que ser distribuído pela cidade, e isso
representa outra oportunidade para um homem com uma carroça ganhar
algum denário extra.
HORA NOCTIS VIII
(2h–3h)

O PADEIRO COMEÇA A
TRABALHAR

Depois de trocar as cargas e subir dois terços do caminho pelo Aventino, o


carroceiro desvia para uma estrada secundária. Isso está longe de ser o
habitual beco romano barulhento, pois é a estrada de serviço que leva aos
fundos das instalações de Misthrathius, o padeiro. Diferentemente da rua
secundária romana mais comum, essa é pavimentada com lajotas planas de
travertino e, além disso, é larga o suficiente para acomodar a carroça sem
dificuldade. A rua é iluminada — há uma tocha encaixada de cada lado do
portão largo da padaria.
Na frente da entrada para o pátio, um escravo está impaciente,
tremendo ligeiramente na túnica fina demais para o ar gelado da noite.
“Está atrasado”, ele diz quando o carroceiro para. O carroceiro
responde com uma descrição de sua viagem noturna carregada de
obscenidades. Mesmo assim, para se desculpar, ele ajuda o escravo a
descarregar da carroça os sacos de grão. Existe uma hierarquia muito rígida
para sacos de grão — não se pode simplesmente empilhar qualquer saco em
qualquer lugar. Os sacos dessa carroça têm lugar de destaque no pátio da
padaria, porque contêm grãos de Alexandria, importados do Egito.
Todo mundo sabe que o grão do Egito faz os pães mais puros, mais
brancos e, o mais importante do ponto de vista do padeiro, mais caros.
Portanto, esses sacos são cuidadosamente acomodados nas prateleiras
elevadas que os manterão livres de umidade e roedores. Do outro lado da
escala, estão os sacos de segunda mão, cuidadosamente estocados contra a
parede do fundo, embaixo de um abrigo rudimentar. O barato grão siciliano
naqueles sacos é adulterado com farelo e cevada e será usado para fazer
panis sordidus, o pão mais barato e mais rústico que o padeiro tem a
oferecer.
Como muitos padeiros no Aventino, Misthrathius lucra bem com o
programa de suprimento de cereais da cidade de Roma. Meio século antes,
o poeta Juvenal comentou que as plebes romanas eram subornadas ao
subjugo por panem et circenses — pão e circo. Porém, essa informação não
é muito precisa. Os romanos são “subornados”, na verdade, por uma ração
de trigo, que é distribuída no último andar do mercado do ex-imperador
Trajano. No entanto, ninguém faz pão em casa hoje em dia, sobretudo
porque qualquer um que acenda um fogo nos prédios de apartamentos
altamente inflamáveis de Roma provavelmente será linchado pelos vizinhos
indignados. Em vez disso, o pobre leva seu grão a padeiros, como
Misthrathius, que o transformam em pão por uma pequena tarifa.
Como a ração de grãos se traduz em mais ou menos dois pães diários
por família, e o padeiro tem mais de 100 desses clientes, não surpreende
que sua padaria seja praticamente 24 horas. Também não surpreende que,
graças a suas habilidades de padeiro, Misthrathius, que chegou em Roma
menino e escravo vindo da Capadócia (de onde saem todos os melhores
padeiros), seja agora um homem livre e discretamente rico. A padaria é um
bom ramo de negócios. Não só a Guilda dos Padeiros (associação
compulsória) é altamente respeitada entre as classes mercantis de Roma,
como os padeiros têm até um candidato próprio que os representa no
Senado. A principal preocupação do senador — e dos padeiros de Roma
como um todo — é pedir constantemente ao imperador um aumento no
preço do pão. Pão é o principal alimento dos pobres, que se rebelam se ele
se torna inacessível. Consequentemente, as autoridades tendem a dar mais
valor à paz e à tranquilidade do que ao bem-estar financeiro dos padeiros, e
o preço do pão é estritamente regulado.
Hoje, como fez quase todos os dias nos últimos 20 anos, Misthrathius
levantou à meia-noite, e, agora, depois de tomar banho e fazer a barba,
aparece na porta do pátio a fim de dar sua contribuição de abuso contra o
carroceiro por ter se atrasado. Enquanto isso, Misthrathius pega distraído
uma vara de amendoeira e bate nos flancos do burro vendado que segue
pacientemente seu curso em torno do moinho de grãos, que domina o centro
do pátio.
O burro não altera em nada o ritmo da marcha. Passou a maior parte
de sua vida miserável preso aos raios do moinho. Tentativa e erro ensinaram
a ele o ritmo ideal para moer o máximo de milho com o mínimo esforço, e
nenhum incentivo do padeiro ou da vara na sua mão vai mudar isso.
O moinho é um cone que, em vez de terminar em ponta, abre
novamente até voltar quase à largura da base. O cone é oco e contém outro
cone ligeiramente mais fino. O grão é despejado na extremidade aberta e
pulverizado na descida, na medida em que o cone externo é girado pelo
burro. Uma mistura de farinha e cascas esmagadas se acumula no sulco
profundo na base, e as cascas são removidas regularmente por escravos.
PADARIA DE POMPEIA EM ESTADO (QUASE) FUNCIONAL.

A HISTÓRIA DO BURRO
Na manhã seguinte, fui atrelado ao que parecia ser a roda maior
do moinho. Minha cabeça foi coberta com um saco e fui
imediatamente empurrado pela trilha curva de sua base circular.
Em uma órbita circunscrita, sempre andando sobre meus passos,
eu viajava por aquele caminho estabelecido…
Embora, como um ser humano, tivesse visto muitas rodas de
moinho giradas de maneira similar, fingi ignorar o processo e,
como um novato, permaneci empacado no lugar em um estupor
fingido. Torcia para ser julgado imprestável e inadequado para
aquele tipo de trabalho e transferido para outra tarefa mais
fácil, ou até solto no pasto.
Mas exercitei esse meu ardil inutilmente, porque vários garotos
armados com varas logo me cercaram e, enquanto eu estava ali,
sem suspeitar de nada por ter os olhos vendados, eles gritaram
todos juntos de repente como se dessem um sinal, e caíram sobre
mim desferindo uma sequência de pancadas, me assustando
tanto com seus gritos, que abandonei rapidamente meu plano,
puxei bem depressa o eixo com toda força e cumpri prontamente
os circuitos prescritos, provocando gargalhadas com minha
súbita mudança de disposição.
APULEIO, O asno de ouro, livro 9, 11-13

Em tese, qualquer um pode fazer pão. Afinal, é basicamente farinha e água.


Na prática, produzir um bom pão é diabolicamente difícil, e até no Aventino
existe uma grande defasagem na qualidade das padarias. É por isso que,
antes de cada pão ir para o forno, Misthrathius os carimba com seu selo
pessoal — ninguém vai comercializar um pão inferior usando seu nome.
Uma razão para o pão caseiro não poder competir com o produto
profissional é o crescimento. Ninguém sabe ainda por que o pão cresce, mas
o fermento não será isolado como causa por mais 1.800 anos.
O que Misthrathius sabe é que ele tem que deixar separada uma
grande porção de cada receita depois de a ter amassado. Essa massa é a
levedura (leven, de “leave”, deixar de lado). Pão sem essa levedura — pão
que não tem uma parte que havia sido “deixada de lado” — assa sem
crescer, pesado, e vira um bloco nada atraente. Porém, esfarelada em água
morna com mel, essa parte separada se transforma, em mais ou menos uma
hora, em uma substância espumante que vai servir de base para o pão do dia
seguinte. Não é preciso dizer que todo padeiro está sempre criando e
experimentado com essa levedura, e às vezes a renova com o mosto retirado
do suco de uva nos primeiros estágios de fermentação. O que acontece com
a levedura, acontece com o pão — e Deus ajude o serviçal que for pego
tentando levar qualquer porção dessa coisa preciosa para um concorrente.

Hoje em dia, preparamos a levedura da mesma farinha que


usamos para fazer o pão. Isso é feito preparando a massa, mas
sem adicionar sal. Mais tarde, ela é fervida até ficar com a
aparência de um mingau grosso. Separamos e deixamos a massa
descansar até azedar.
Em muitos casos, a fervura não é necessária, porque o padeiro
usa um pouco da massa que guardou do dia anterior.
Evidentemente, o que quer que faça a massa crescer é de
natureza ácida, e é igualmente claro que as pessoas que comem
o pão fermentado dessa maneira são mais fortes de corpo.
PLÍNIO, O VELHO, História natural 18.26

Embora a levedura seja a essência e a alma de seu negócio,


Misthrathius prepara uma fornada semanal de pão sem ela. Corta esse pão
em quadrados planos e o vende como biscoito para cachorro.
O interior da padaria é caos controlado. O lugar é, bem, quente como
um forno, o que explica a túnica fina do escravo que esperava o carroceiro
do lado de fora. A maior parte da iluminação é proveniente dos fornos à
lenha um pouco elevados em relação ao chão, o que significa que o espaço
tem a luminosidade de um cenário de pantomima do mundo subterrâneo.
De cada lado da porta, há uma mesa grande, reforçada, com tampo de
basalto. Quase toda a superfície da mesa é ocupada por uma bacia profunda
na qual são despejadas a farinha, a massa reservada (levedura) e a água.
Depois, em quantidades que dependem do produto final desejado,
acrescenta-se sal e azeite de oliva. Quanto mais azeite, mais fofo é o pão, e
o sal, talvez com um toque de alecrim, faz um pão que harmoniza bem com
os molhos pungentes com que os romanos gostam de temperar suas
refeições.
O que dá aos melhores tipos de pão sua excelente qualidade é,
primeiro, a qualidade do trigo e, depois, a fineza do pano em que
ele é peneirado. Alguns gostam de misturar leite ou ovos na
massa, ou até manteiga. Muitos são os prazeres das nações livres
para praticar as artes da paz e cultivar a fina arte da
panificação.
PLÍNIO, O VELHO, História natural 18.27

Um pão de qualidade inferior tem a farinha fina (farina siligineus)


misturada aos grãos inferiores de farro e espelta. Diferentemente de alguns
concorrentes, Misthrathius sabe da importância de amassar bem a massa, e
depois amassar mais.É preciso ter força muscular considerável para manejar
as pás com que a massa é trabalhada nas bacias, e o trabalho é feito,
normalmente, por dois homens em cada recipiente. Considerando que eles
se servem generosamente da abundância de comida que faz parte do
trabalho, esses amassadores podem ser considerados apenas fortes, até que
alguém os veja levantar tranquilamente 100 quilos de massa da bacia e
colocá-la sobre a pedra de mármore, onde é dividida em porções do
tamanho de uma cabeça e deixada para crescer.
Demora cerca de uma hora no calor abafado da padaria para as bolas
de massa dobrarem de tamanho. Então, elas têm que ser achatadas e
moldadas em sua forma final.

Dos tipos de pães que são feitos, descobrimos que eles


recebem seus nomes de várias maneiras.
Alguns vêm da comida com que são comidos normalmente —
por exemplo, Pão de Ostra.
Outros recebem o nome a partir de seus ingredientes
refinados — como o Pão Bolo.
E temos ainda o Speusticus, que pode ser feito rapidamente e,
por isso, é chamado Pão Pressa.
Outras variedades têm seu nome a partir da maneira como
são feitas — por exemplo, Pão Assado no Forno, Pão Fino
[assado em uma caixa fechada de metal], e Pão Assado na
Forma.
PLÍNIO, O VELHO, História natural 18.27

Antes de ir para a cama na tarde anterior, Misthrathius teve de passar


cerca de uma hora planejando que tipos de pães teria que fazer, com qual
farinha e em que ordem. Quando o fogo é atiçado e os fornos chegam à
temperatura para assar, não há tempo para indecisão — tudo tem que
funcionar com precisão militar. Massa crescida tem que ser assada
exatamente quando está pronta. Se esperar demais para colocá-la no forno,
mesmo que só um pouco, o que você vai tirar de lá — se tiver sorte — é
uma coleção de furos contidos por uma casca seca, esfarelada. Na pior das
hipóteses, o pão que cresceu demais simplesmente desaba, e, de qualquer
maneira, o gosto de azedo o torna quase intragável.
Então, agora o padeiro está em todos os lugares — incentivando os
homens que manejam as pás, batendo no menino escravo que modela os
pães sem capricho e berrando na janela para que tragam mais farinha do
pátio.
Ele se encarrega pessoalmente dos pães especiais encomendados para
hoje. Esse pão em forma de U salpicado com sementes de gergelim vai ter a
forma de uma harpa, com cordas de gressinos para ser servido em um jantar
festivo. Um jantar de casamento requer uma grande fornada de pães
modelados realisticamente à semelhança da genitália masculina, porque,
entre os romanos, o falo é considerado um símbolo de prosperidade
fecunda.
Outros pães são circulares, com cerca de trinta centímetros de
diâmetro e dez centímetros de altura. A massa da superfície foi marcada por
cortes para que o pão tenha a aparência dos raios de uma roda. Esse pão vai
para os vendedores nos mercados, que o vendem em pedaços, cortando cada
fatia na hora da compra. Misthrathius vende muitos desses pães e não tem
tempo para pôr e tirar cada um da forma. Assim, com a rapidez conferida
pela longa prática, ele enrola um pedaço grosso de barbante em torno da
“cintura” de cada pão para impedir que esparrame ao assar.
O pão de Picenum cresce com seu néctar branco, como uma
esponja leve incha quando é encharcada de água.
MARCIAL, Epigramas 13.48

Seja qual for o formato, o pão é posto sobre uma pá de madeira, que
será usada para colocá-lo no forno. Ela ocupa o centro da sala e é um
enorme arco feito de tijolos claros de argila. O espaço sob o arco é separado
em dois fornos distintos, dispostos lado a lado e fechados por sólidas portas
de ferro. Avaliando que a fornada no interior do forno está pronta,
Misthrathius abre as portas e libera uma explosão de calor no ambiente. Os
pães dourados estão empilhados lá dentro, a partir da prateleira inferior —
que é menos quente e é onde os pães menores são assados — para a mais
alta, onde são assados os pães grandes.
A cada meia hora, cada forno produz mais uma dúzia de pães, que a
filha do padeiro leva para a frente da loja, com entrada pela rua principal, e
acomoda cuidadosamente nas prateleiras separadas por tipo. Apesar de ser
cedo, já há uma pequena multidão esperando a padaria abrir. Um grupo de
vigias cronometra as rondas de forma a passarem por ali justamente quando
os rústicos, mas saborosos, pães de painço chegam às prateleiras. Os vigias
se misturam a operários suados, que compram um pão antes de irem para
casa depois de passarem a madrugada descarregando as balsas nas docas do
Aventino. Entre os outros clientes, há uma jovem escrava. Como todos os
dias, ela está ali para comprar o grande pão branco que vai ser parte do
desjejum de seu senhor.

O PÃO DE HERCULANO
No início da manhã de 24 de agosto do ano 79 d.C., um pão foi colocado nos fornos de
tijolos de uma padaria na cidade de Herculano. O pão era destinado a Celer, o escravo de
Quintus Granius Verus. Nunca chegou ao seu destino, pois Celer, o padeiro e a maior parte
da população de Herculano foram mortos pelo fluxo de lava da erupção do Monte Vesúvio,
que destruiu a cidade.
No entanto, o design de um forno de tijolos é tão bom para impedir a entrada do calor
externo quanto para retê-lo em seu interior, e o pão sobreviveu — embora assado em ponto
de carbonização. O pão é redondo, “tipo bolo”, descrito anteriormente, com a superfície
marcada por cortes para poder ser dividido em oito pedaços.
O pão foi cientificamente analisado, e a receita, recriada. Este pão em particular é de
fermentação natural, e, embora Celer, o escravo, não soubesse disso, fermentação natural
depende de dois tipos de levedura natural, Lactobacillus e Acetobacillus.
A fermentação pode ser incentivada simplesmente deixando uma mistura de farinha e água
sobre a mesa da cozinha por alguns dias (completando os ingredientes conforme necessário).
Então, uma vez que você tem o seu fermento, adicione:
Meio litro de água
400g (14 onças) de farinha de espelta
(se não encontrar, use farinha de pizza)
400g de farinha integral
Uma colher de sopa de farinha de centeio, se tiver
Uma colher de azeite

Depois de misturar todos esses ingredientes, você terá uma grande porção de massa
ligeiramente pegajosa ao toque. Deixe descansar por 45 minutos em local quente e úmido, e
depois amasse novamente, dessa vez adicionando uma colher de chá de sal. Coloque-a em
sua forma de bolo, pressione seu carimbo pessoal, faça cortes de cerca de 1 cm de
profundidade na superfície da massa para marcar os segmentos e permitir que a massa
cresça.
Depois de uma hora, seu pão deve estar pronto para assar —asse-o por 25 minutos a 220 °C
(428 °F). Não permita que o fluxo de lava de vulcões próximos interrompa o processo de
cozimento, e você deve obter um pão fino e crocante.
HORA NOCTIS IX
(3h–4h)

A ESCRAVA PREPARA O DESJEJUM

Ao sair da padaria quente, a escrava olha para cima e estuda o céu noturno.
Há muito a ser feito antes de o resto da casa começar a despertar. A
primeira tarefa, para a qual ela acaba de comprar o pão, é preparar um
desjejum, que deve ser servido quente. No entanto, cuidar do fogão não
deve atrapalhar os outros preparativos para a manhã. Calcular
cuidadosamente o tempo desses preparativos fará toda a diferença entre
levar uma surra ou ganhar meia hora extra de descanso. Felizmente, é uma
noite clara, portanto, calcular as horas não representa nenhum desafio. O
relógio da escrava está espalhado no céu, brilhando.
Em Roma, a iluminação pública simplesmente não existe, e poucas
pessoas acendem lamparinas a óleo. Acima da cidade adormecida, as
estrelas são visíveis em toda sua glória, e essa escrava é completamente
familiarizada com as constelações. Ela procura a Cauda de Cachorro, a
estrela no fim da constelação da Ursa Menor. Em todo o céu, essa é a única
estrela que nunca muda sua posição. Com a facilidade conferida pela
prática, a garota localiza a estrela e observa o ângulo entre ela e o
aglomerado de estrelas que conhece como os Sete Bois. O ângulo entre a
Cauda do Cachorro e os Bois fica cada vez mais obtuso depois da meia-
noite, enquanto as estrelas giram no céu. Olhando rapidamente para o alto, a
garota sabe que a nona hora da noite está bem adiantada. É hora de correr
pela rua e voltar para casa.1
Este é o único lar que a escrava já conheceu, pois ela é da vernae, a
classe de escravos que nasceram na casa de seu senhor. De fato, sua
aparência e seus maneirismos sugerem com veemência que seu pai é o
próprio paterfamilias, o dono da casa. A garota provavelmente foi
concebida depois do flerte com uma das empregadas uma década e meia
atrás. Tendo mãe escrava e sem nunca ter sido formalmente reconhecida
pelo pai, a menina era, por lei e costume, uma escrava desde o momento em
que nasceu, e assim permaneceu desde então.
O longo tempo de residência na casa e a provável filiação dão à garota
alguns privilégios, mas sua aparência também lhe rendeu a inveja e o rancor
de sua senhora. A senhora não tem filhos, apesar de seus esforços e da
fertilidade a ela prometida por uma variedade de pharmaka gregos e
amuletos etruscos. Ela vê a escrava como uma censura viva por seu fracasso
em dar um herdeiro ao marido. Hoje, essa senhora vai visitar a família do
outro lado de Roma, e isso desperta sentimentos contraditórios na garota.
Por um lado, ela não sofrerá com tarefas e punições arbitrárias enquanto a
senhora estiver ausente, mas, por outro lado, terá de enfrentar o processo de
pentear a dona da casa para a viagem. Essa é uma das razões pela qual a
escrava quer chegar em casa e, rapidamente, reavivar o fogo da residência.

O CASO DE VERGÍNIA
No início da República Romana, um magistrado chamado
Appius Claudius foi tomado de paixão por uma jovem chamada
Vergínia. Para se apossar da menina, ele apresentou falsas
testemunhas. Uma delas alegou que a garota era adotada pelo
pai.
Vergínia era, na verdade, segundo este homem, filha de uma
das escravas de sua casa. Portanto, pela lei romana, ela era
sua escrava. O homem exigiu a custódia da menina, e Appius
— que se autonomeou o magistrado do caso — imediatamente
concedeu a posse.
Uma vez declarada “verna” — uma escrava nascida em casa
— Vergínia poderia então ser vendida ao lascivo Appius. O
plano foi frustrado pelo pai da menina, que esfaqueou a filha
até a morte, depois que todos os recursos legais foram
bloqueados. Aqui, Appius se superou, pois, por decreto dele
mesmo, o pai não era culpado de assassinato, mas de matar
uma escrava, o que configurava dano à propriedade.
O pai indignado liderou um movimento popular que derrubou o
governo. Appius foi preso por seus crimes e se matou na
prisão.
Detalhes em Livy, Ab Urbe Condida 3.44ff

Ao voltar para a cozinha, ela primeiro tirará a longa túnica externa que
usa presa à cintura sobre a roupa interna, mais curta. Depois de pendurar
esta túnica atrás da porta, ela reaviva o fogo e pega o pão. Ela o coloca em
um recipiente de barro de formato especial, que o manterá quente e
fumegante para quando seu senhor chegar para um desjejum apressado.
Depois que o senhor comer, a garota vai atiçar as chamas para que fiquem
mais altas, a fim de aquecer os ferros de modelar para o cabelo de sua
senhora. O cabelo é muito importante para uma mulher romana. A escrava
usa o seu em um estilo “natural”, penteado para trás e preso com um cordão
de couro. Esse penteado revela imediatamente seu status na parte inferior
da escala social. Uma mulher como sua senhora, ou como qualquer pessoa
com pretensões de posição social, usa o cabelo elegantemente penteado,
preso no alto da cabeça e de acordo com a última moda. Conseguir esse
efeito requer tempo e dinheiro, então, quanto mais elegante e elaborado o
penteado, mais dinheiro e lazer deve ter a mulher embaixo dele. A senhora
não é a única a exigir que a escrava tente fazer um penteado que só pode ser
obtido, na verdade, com o dobro do tempo e do orçamento disponíveis. Por
isso, a escrava fica miseravelmente ciente de que pode ser esbofeteada,
furada com grampos de cabelo ou mesmo queimada com o próprio ferro de
modelar, se seus esforços não corresponderem às expectativas.
Para deixar o ferro de modelar (calamistrum) quente o suficiente, a
escrava enterra o cilindro externo oco nas brasas do fogo revivido. Mais
tarde, ela enrolará o cabelo de sua dona ao redor do núcleo sólido do
instrumento e, em seguida, colocará o cilindro externo quente sobre ele. Tal
como acontece com muitas outras coisas na vida da escrava, isso exige um
cálculo cuidadoso de tempo. Se o cilindro externo estiver muito quente,
danificará as mechas de sua senhora. Se não estiver quente o suficiente, o
cabelo não vai enrolar. Em ambos os casos, a culpa recairá sobre a
cabeleireira, e a garota sofrerá as consequências. A técnica preferida da
escrava é deixar o cilindro ficar muito quente e depois resfriá-lo lentamente
até a temperatura ideal — é mais fácil esperar que o cilindro esfrie do que
se preocupar em aquecê-lo novamente.

PENTEADOS — Um negócio sério


O regime doméstico é tão cruel quanto a corte de um tirano
siciliano. Se a senhora tem um compromisso, se quer se enfeitar
ainda mais do que de costume… azar de Psecas, a escrava que
— com o próprio couro cabeludo rasgado e os seios e ombros à
mostra — faz o penteado de sua senhora.
“Por que esse cacho está fora do lugar?”, ela pergunta, com a
tira de couro de touro bem à mão para vingar rapidamente o
crime de um cacho torto. Claro, e você culpa Psecas? Por mais
improvável que pareça, é culpa da escrava, se seu próprio nariz
a desagrada.
Ao mesmo tempo, à esquerda da Senhora, uma escrava puxa o
cabelo, penteia e enrola em um coque. Ela vai pedir os conselhos
de uma escrava da mãe de sua [senhora]… promovida após
longo tempo de serviço com os grampos. Primeiro a opinião
dela, depois as que estão abaixo dela em idade e habilidade vão
conferir. Era de se pensar que havia o risco de perder a
reputação, ou mesmo a vida, tal o desespero com que sua equipe
se empenha pela perfeição.
Finalmente, a cabeça dela está coberta de camadas de cabelo,
camada após camada empilhadas sobre a testa. É Andrômaca
[esposa lendária do guerreiro Heitor] que você vê de frente; de
trás, alguém bem mais baixo.
JUVENAL, Sátiras 6

Enquanto o fogo ganha força, a garota prepara o desjejum. Um


desjejum romano é uma refeição meio passageira, e, de fato, muitas
famílias a ignoram completamente. Por hábito, a garota sabe o que o seu
senhor prefere. O pão que ela preparou é circular, já marcado com cortes na
padaria para que possa ser facilmente rasgado em oito pedaços triangulares.
O senhor provavelmente entrará na cozinha depois de suas abluções
matinais e arrancará três desses pedaços, os quais vai comer com um
punhado de azeitonas que a escrava agora coloca cuidadosamente em uma
tigela em uma das mesas laterais da cozinha. Pouco antes da chegada do
senhor, a garota terá retirado o pão do recipiente em cima do forno e regado
com azeite para deixá-lo ainda mais úmido e macio. Depois de pensar um
pouco, ela também pega alguns queijos de cabra secos ao sol e os leva à
mesa. O mestre pode comê-los ou não, mas, se não os quiser, eles podem
ser recolocados na cesta sem nenhum dano por terem sido oferecidos.
Agora, a garota se volta para uma grande tigela de aveia descascada,
que ficou de molho durante a noite. Ela escorre a água e acrescenta três
pedaços de queijo branco cru do tamanho de um punho. Junta um ovo e,
depois de um olhar sorrateiro pela cozinha, complementa com meia concha
de mel proibido. Depois de amassar vigorosamente toda a mistura em uma
pasta grosseira, ela a despeja em outra tigela e deixa sobre o fogão. Mais
tarde, esse será o desjejum para ela e os outros escravos domésticos, alguns
dos quais estarão muito ocupados durante o dia para almoçar.

Com tudo preparado, a garota sai da cozinha para olhar o céu estrelado, que
é claramente visível acima do átrio aberto da casa. A luz da lamparina já
está piscando em algumas janelas, com a casa começando a se mexer.
Embora reste cerca de um quarto de hora antes de poder esperar seu senhor
na cozinha, a menina sabe, por experiência, que não deve parecer ociosa.
Ela dá um passeio tranquilo até seus aposentos e volta com um grande
novelo de lã de ovelha.

UM RÁPIDO DESJEJUM ROMANO


120g (4,2 onças) de pinhões
Mel
Pimenta branca moída
Um pequeno pote de pasta de anchova
Dois ovos pequenos (se usar ovos de codorna, use quatro)
Comece por demolhar os pinhões em água durante a noite. Escorra-os e leve ao
liquidificador com uma colher de chá de pimenta e uma colher de chá de mel. (Se quiser à
moda antiga, use um pilão e um almofariz, em vez de um liquidificador.) Aqueça o molho
resultante suavemente em uma panela enquanto mistura cerca de duas colheres de sopa de
pasta de anchova. Ao mesmo tempo, cozinhe os ovos em outra panela. (Lembre-se de que
ovos pequenos cozinham mais rápido, então, três minutos e meio de fervura devem ser
suficientes.)
Descasque os ovos e coloque-os inteiros em um prato fundo. Opcionalmente, o fundo do
prato pode conter uma fatia fina de pão de cevada torrado até ficar crocante. Despeje o
molho por cima e sirva imediatamente.

Sentada em um banquinho na cozinha, a garota usa um grande pente


de metal para cardar a lã em fibras prateadas uniformemente espaçadas,
prontas para serem fiadas. A lã já é triada, pois a qualidade varia de acordo
com o animal, ou mesmo com a parte do animal de onde a lã foi retirada.
Este é o pelo grosso de um carneiro, e mais tarde será tecido em um manto.
Como o óleo natural de lanolina na lã ajuda a impermeabilizar a capa
depois de feita, essa lã não foi lavada. Para evitar que uma grande mancha
de gordura apareça em sua túnica, a garota coloca uma grande proteção de
couro sobre os joelhos e se acomoda para pentear a lã até que seu senhor
chegue.
A SENHORA FAZ UMA ESCOLHA DO PORTA-JOIAS QUE SUA ESCRAVA SEGURA.

CARDANDO A LÃ
Comece com um pedaço de lã tosquiado direto de sua ovelha. Lave-o. As ovelhas tendem a
ficar muito sujas, e a sujeira penetra profundamente nas fibras. No entanto, você vai querer
manter os óleos naturais da lã, portanto, não lave a mais de 70 °C (158 °F). (A lanolina em lã
de ovelha não só ajuda a manter a peça final resistente à água, como o óleo também é ótimo
para a pele.) Depois de lavá-la, deixe a lã secar completamente em um local quente.
Em seguida, pegue suas pás de cardar. Elas são como raquetes de pingue-pongue quadradas,
com um lado coberto por pinos de ponta reta. Quanto maior a densidade dos pinos, mais fina
será a lã, mas mais esforço você precisará fazer ao cardar. Portanto, combine o tamanho das
pranchas com a força da parte superior de seu corpo — isso é trabalho duro.
Cubra um quadrado com mechas de lã. Sente-se e coloque esse quadrado sobre o joelho.
Agora passe suavemente o outro quadrado pelas fibras do quadrado carregado. Continue na
mesma direção, pois a ideia é alinhar todas as fibras. Repita até que a maior parte da lã tenha
sido transferida para o quadrado que é movimentado. Em seguida, troque os quadrados e
repita. No fim, todas as fibras de lã serão alinhadas no quadrado.
Enrole suavemente a lã até que obtenha um cilindro frouxo. Isso é chamado de “rolag”, e
agora está pronto para ser fiado.

1 Este método de contar as horas pelas estrelas ainda pode ser usado hoje, pois as constelações
mudaram apenas de nome. A Cauda de Cachorro é agora Polaris, a Estrela Polar, enquanto os Sete
Bois se tornaram o Arado para os europeus e a Ursa Maior para os americanos. (N.A.)
HORA NOCTIS X
(4h–5h)

A MÃE CUIDA DE SEU BEBÊ


DOENTE

Ó gentil Ilithyia, que tem o poder de produzir um nascimento


oportuno, proteja as matronas [em trabalho de parto]; seja seu
nome escolhido Lucina ou Genitalis. Ó, Deusa, multiplique
nossa descendência!
Oração romana em HORÁCIO, Epodos 17

Logo será madrugada, e o pequeno Lucius Curius ainda não dormiu.


Cansada e frustrada, Sosipatra, sua mãe, debruça-se sobre o berço. De novo,
como já fez muitas outras vezes na última hora, ela passa uma esponja
úmida no rosto avermelhado da criança. Em resposta, o bebê contrai ainda
mais o rosto e acrescenta outro gemido aos gritos com que pontuou a noite.
“As crianças nascem, e então tudo fica cheio de ansiedade”,2 como diz
o ditado. São tantas coisas que podem dar errado antes do parto, durante o
parto e nos meses seguintes que um parto normal e uma infância saudável
são a exceção, não a regra. Portanto, como todo jovem casal romano,
Sosipatra e seu marido, Termalis, casaram-se com a expectativa de enterrar
vários filhos na primeira década do casamento. A Roma Antiga não é gentil
com as crianças.
Como a maioria das jovens romanas da classe trabalhadora, Sosipatra
se casou no final da adolescência. Nos dez anos desde então, ela esteve
continuamente grávida ou amamentando um bebê. No entanto, apesar de
todo o esforço, o casal tem apenas um filho saudável. É a filha deles,
Termalia, que agora tem sete anos. Isso é cerca de dois anos além da idade
em que os pais romanos podem ter uma certeza razoável de que o filho
sobreviverá. Isto é, vai superar as doenças que, em Roma, matam de dois a
quatro em cada dez recém-nascidos e crianças antes de completarem cinco
anos.

CUIDADO COM AS GESTANTES


Esse cuidado tem três etapas. A primeira etapa visa à
sobrevivência e à preservação do sêmen injetado. A segunda é a
administração e o alívio de sintomas, como a malácia, à medida
que esses sintomas se manifestam. [Malácia é o desejo durante a
gravidez de comer alimentos não nutritivos, como giz ou areia; o
outro nome para esse sintoma é “pica”, palavra que deriva da
expressão latina para “pega”, um pássaro que os romanos
acreditavam que comia qualquer coisa.] No último período, à
medida que nos aproximamos do parto, o tratamento visa à
perfeição do embrião e à resistência no parto.
Acima de tudo, deve-se ter o cuidado de prescrever alimentos
que são leves no estômago, coisas que são fáceis para a
digestão, mas não se decompõem rapidamente. Coisas como
ovos cozidos, espelta [uma espécie de trigo] preparada com
água fria ou vinagre diluído, ou mingau de cevada sólido…As
aves são boas, se não gordas e de carne seca (como pomba,
tordo e melro)… Vegetais incluem endívias, pastinagas, banana-
da-terra e aspargos selvagens… Maçãs e marmelos devem ser
assados. Crus, são difíceis de digerir; cozidos, perdem muito do
seu valor. Bem triturados e assados, eles mantêm sua força
enquanto se tornam mais digeríveis.
Após o sétimo mês, a futura mãe deve cessar os exercícios mais
enérgicos, especialmente os solavancos causados no transporte
por carroça. Ela deve praticar os outros exercícios com
cautela… Se certos sinais indicam que o parto é iminente, devem
ser feitos preparativos para um nascimento vivo, pois as
evidências mostram que as crianças nascidas de sete meses são
capazes de sobreviver.
Os seios podem ter aumentado de tamanho, caso no qual os
mamilos não devem ser esfregados ou espremidos para que não
se desenvolva um abscesso. Por essa razão, é costume as
mulheres afrouxarem as faixas peitorais, para acomodar o
crescimento.
Excertos do médico do século II, Sorano, em Gynaecology 14.46, 51 e 55

A partir daí, é claro, os perigos habituais da vida na cidade podem


alcançar qualquer um a qualquer momento. E, embora os pais considerem
Termalia saudável, atualmente o pequeno Curius está doente, Sosipatra
abortou quatro vezes e duas vezes uma criança nascida sem problemas
aparentes morreu em um mês.
Em suma, Sosipatra é uma típica mãe romana. No passado, mesmo
Cornélia, a materfamilias da mais aristocrática das famílias romanas,
descobriu que os cuidados de primeira qualidade que lhe eram dispensados
por ser filha de Cipião Africano não eram suficientes para evitar que um
total de nove de seus doze bebês morresse antes da infância.
Em Roma, uma mulher pode esperar engravidar mais de uma dúzia de
vezes na vida, e, mesmo assim, não é o suficiente para manter a população
estável. Isso ocorre, em parte, porque muitas mulheres — como a filha
única de Júlio César — morrem durante o primeiro parto.
Consequentemente, a população de Roma continua caindo. Apenas a
imigração impede que a cidade se torne uma cidade fantasma — com
jovens mães e bebês sendo a maioria dos fantasmas.

É de partir o coração o destino que tiveram as duas irmãs


Helvidiae. Como é triste que ambas tenham morrido no parto e
ao dar à luz filhas. Estou realmente muito entristecido e luto
para manter isso sob controle. No entanto, é muito lamentável
que essas duas belas jovens tenham falecido no início de suas
vidas e bem na hora em que se tornavam mães. Lamento pelas
crianças deixadas sem mãe, por seus excelentes maridos, e choro
por mim mesmo.
PLÍNIO, O JOVEM, Cartas 4.21 para Velius Cerealis

Pelo menos, como seu marido repete constantemente, ela está


saudável. Todos os fetos que Sosipatra abortou sobreviveram até o final da
gravidez, mas o nascimento de seus corpos natimortos não causou nenhum
dano físico à mãe. Esses pequenos cadáveres estão agora enterrados dentro
das paredes da casa, para que Juno Licinia, Deusa do Parto, saiba que esta é
uma casa amiga dos bebês. Pelo menos, Sosipatra pode ter mais filhos.
Muitas de suas amigas ficaram estéreis após um parto difícil — muitas
vezes, dolorosamente, no nascimento de um bebê que não sobreviveu.
A criança Curius nasceu nesta mesma sala. Onde seu berço de vime
está agora posicionado, embaixo da janela, estava a cama de superfície dura
do parto, que parentes ansiosos trouxeram escada acima. Agora, sozinha e
nervosa, vendo seu filho lutar para respirar, Sosipatra se lembra da agitação
e da atividade ininterrupta que cercava o nascimento.
Nunca havia menos de quatro pessoas na sala. Sua irmã estava entre
elas, é claro, assumindo o comando com o costumeiro estilo mandão. Ela e
a parteira uniram forças para impedir que a sogra de Sosipatra tentasse
empurrar uma repugnante poção de esterco de porco em pó pela garganta da
gestante (como é recomendado na História natural, de Plínio, 28.77). A
sogra, no entanto, foi autorizada a colocar a pata mumificada de uma hiena
embaixo da cama, e Sosipatra foi forçada a usar um amuleto para afastar os
maus espíritos. Além disso, apesar das dúvidas sobre a eficácia desses
objetos, ela agarrou obediente a vareta com uma pena de abutre presa a ela,
à qual a sogra atribuía o sucesso do nascimento dos próprios filhos.
Naturalmente, o cabelo de Sosipatra estava solto, assim como o de
todas as mulheres que entravam na sala, mas isso era senso comum, não
superstição. Todo mundo sabe que nada deve estar amarrado no quarto onde
uma mulher está dando à luz. O nó de uma cinta ou mesmo as pernas
cruzadas ou os dedos entrelaçados têm uma aura que, se percebida pela
mãe, inibirá perigosamente a passagem da criança. Todos sabem que a
criança e o cordão umbilical podem se emaranhar de maneira perigosa.
Portanto, porque semelhantes atraem semelhantes, ter nós ou emaranhados
em uma sala de parto é simplesmente pedir para ter problemas.
Depois de tragédias anteriores, nesta ocasião, os jovens pais pagaram
pelos serviços de uma parteira profissional. As parteiras auxiliam com mais
frequência apenas os partos dos ricos, porque uma parteira que se preze
custa pelo menos tanto quanto um bom médico. O que esse casal conseguiu
pelo dinheiro que tinha foi uma mulher sensata que preferia os textos de
médicos gregos às evidências anedóticas e aos amuletos de pais
superempolgados.

CENA PÓS-NATAL EXTRAÍDA DE UM BAIXO-RELEVO ROMANO.

Foi essa parteira que garantiu que, no início do trabalho de parto,


Sosipatra fosse escoltada até a cadeira de parto. Ali, com um travesseiro nas
costas e as pernas apoiadas em banquinhos, o pequeno Curius veio ao
mundo através da abertura em forma de meia-lua na parte inferior da
cadeira, com a parteira agachada para recebê-lo. Enquanto isso, a mãe
agarrava a barra de ferro na altura de seu peito com tanta força que quase
entortou o metal.
A placenta se recusou a seguir até que a parteira a guiasse. Como
muitas parteiras, esta havia amaciado as mãos com óleo de lanolina para
esse tipo de ocasião e mantinha as unhas limpas e bem aparadas, para não
infeccionar ou inflamar o útero. Depois de descartar a placenta e deixar de
lado os panos de parto ensanguentados para lavar mais tarde, a parteira teve
que sair correndo. Irmã e sogra já estavam discutindo com animação sobre
dar a Sosipatra uma mistura de minhocas picadas em vinho de mel para
estimular a lactação para a primeira refeição da criança. (Sosipatra lembrou
que a poção tinha um sabor menos ruim do que ela esperava, e o pequeno
Curius nunca ficou sem leite, isso é certo.)
Como era diferente todo aquele barulho, a discussão e a agitação à sua
volta naquele momento desta vigília solitária seis meses depois. Sosipatra
está sozinha no quarto, pois pai e filha se retiraram para o quarto dos fundos
para tentar dormir. De certo, uma criança gravemente doente não é
justificativa suficiente para Termalis faltar ao trabalho no dia seguinte. Para
todos, menos os pais de luto, bebês mortos são um assunto diário. Mesmo o
grande Cícero havia comentado um século antes: “Deve ser fácil superar
uma criança que morre nova, e, se a criança morre no berço, nem vale a
pena prestar atenção”.3’

Essa escrava, nascida de Fronto e Flacilla, era meu deleite, a


quem eu abraçava e beijava. Que a pequena Erotion não tema as
sombras escuras e as bocas escancaradas de Cérbero. Ela
estava a poucos dias de concluir seu sexto inverno frio… que a
relva cubra seus frágeis ossos, e repouse suave sobre ela, terra.
Ela nunca pesou sobre ti.
MARCIAL, Epigrama 5.34

Mais recentemente, o filósofo Sêneca repreendeu um amigo que sofria


muito com a morte de um filho pequeno: “Não espere que eu o console.
Estou aqui com uma repreensão. Em vez de encarar a morte de seu filho
como um homem, você faz o contrário. Ele ainda era um bebê! Você ainda
não sabia o que esperar da criança, então, tudo que você perdeu foi um
pouco de tempo”.4
No entanto, como Sosipatra sabe, uma coisa é contemplar a morte de
uma criança de maneira abstrata, mas outra bem diferente é quando esse
bebê foi o foco de seu amor e cuidado nos últimos seis meses. Todos os
dias, Sosipatra segurou a criança, amamentou-a e cuidou dela com desvelo
e, aos poucos, com o passar dos meses, ela ousou ter esperança. Agora essa
esperança está em perigo, enquanto o filho está deitado no berço, os
pequenos pulmões lutando pelo ar que ele expulsa em gemidos dolorosos.
Suspirando, Sosipatra vai até a mesa do canto e despeja com cuidado
um pouco mais de óleo na lamparina que ali arde, uma pequena e trêmula
chama que é a única luz do quarto. Reabasteceu a lamparina três vezes
durante a noite. Isso significa que não será necessário reabastecer mais,
pois, antes que o óleo acabe mais uma vez, a luz do dia terá preenchido o
quarto.
Com a luz do dia, virá a irmã de Sosipatra, e, com ela, um desjejum de
leite, azeitonas e pão fresco. Depois, Sosipatra será levada para o quarto dos
fundos para desmoronar na cama recentemente desocupada pelo marido, e a
irmã tentará persuadir o bebê a comer uma refeição de papa de milho
misturada com leite e mel.

Para os Espíritos dos Mortos… este doce, encantador e


agradável bebê. Ele ainda não tinha aprendido a falar. Seu pais
Termalis… e Sosipatra fizeram este [memorial] para seu mais
encantador menino, Lucius Curius, que viveu seis meses e três
dias.
INSCRIÇÃO ROMANA (Corpus Inscriptiones Latinarum 6.17313 Roma)
2 Antífona 87 B. 49d
3 Cícero, Discussões tusculanas 5.2.413
4 Epístolas 99,2
HORA NOCTIS XI
(5h–6h)

O MENSAGEIRO IMPERIAL PARTE


PARA A BRITÂNIA

Titus Aulus Macrius é um homem apressado. Ele também se sente um


pouco pressionado, pois o plano original era sair da cidade pouco depois da
meia-noite. No entanto, os mensageiros expressos para a Britânia não saem
com tanta frequência para levar correspondência imperial, e parece que
cada funcionário do Tabularium no Monte Capitolino tinha a própria
mensagem para adicionar aos despachos imperiais que Titus carrega em
uma bolsa impermeabilizada atrás da sela.
Agora, graças a atrasos burocráticos e mais correspondência acrescida
de última hora, o amanhecer já ilumina o céu e as ruas começam a se encher
de pedestres. Titus conduz o cavalo em um trote rápido, mas, mesmo assim,
quase derruba uma mulher que corre para os apartamentos próximos com
um desjejum de azeitonas e pães. Mais uma hora para atravessar a multidão
nas ruas, Titus calcula, e então sairá pela Ponte de Agripa e seguirá pela via
Aurelia para as colinas frescas ao longo da costa da Toscana.
Como passa menos tempo na cidade, Titus percebe muito mais
claramente as desvantagens que os habitantes da cidade romana aceitam
como parte da vida. O cheiro, por exemplo. Para ser bem franco, Roma
fede. Ali está a principal prova, aquela pilha fedorenta de esterco de boi
recentemente depositada por uma carroça que passava por lá. Esse tem, pelo
menos, a virtude de ser fresco, ao contrário do conteúdo de dezenas de
penicos despejados nas ruas no início da noite por romanos com preguiça
de descer e caminhar até as latrinas públicas e subir novamente. Esse cheiro
desagradável específico se mistura com o odor pungente geral de centenas
de milhares de humanos e animais confinados muito próximos uns dos
outros e se funde com o cheiro de lixo podre que flutua dos becos. Toda vez
que Titus vem a Roma, ele sente as fossas nasais estremecerem de horror.
No entanto, em meio a tudo isso, também há os aromas mais
agradáveis de lenha e pão fresco das padarias e o cheiro mais rústico de
carvão, proveniente das forjas de ferreiro que são preparadas para começar
o dia. Há também o cheiro — muito menos agradável — dos curtumes,
trazido ao seu rosto pelo vento leste da área Transtiberim (isto é, do outro
lado do Rio Tibre). O cheiro ácido da urina concentrada usada para amaciar
as peles é suficiente para fazer lacrimejar os olhos de um menino do campo,
e Titus, nascido nas colinas Sabine, ainda se considera um menino do
campo, apesar dos anos de serviço imperial.
Titus é um tabellarius, que é o nome pelo qual mensageiros imperiais
são conhecidos (porque a maioria das mensagens é escrita em tabletes de
cera chamado Tábellari). Mais especificamente, ele é do tipo conhecido
como stratorus, uma classe de mensageiro cujo nome deriva da palavra
“sela”. Os stratorus andam a cavalo e são o tipo mais escasso e mais caro
de mensageiro. Eles são empregados apenas por ricos aristocratas,
negociantes e — é claro — pelo imperador. Na maioria das vezes em que
um mensageiro dedicado é utilizado, ele viaja em uma carruagem leve e no
seu tempo — na sociedade romana, as pessoas que conhecemos geralmente
moram por perto, então, há pouca necessidade de enviar mensagens
urgentes a longas distâncias. A menos, é claro, que você seja o imperador.
Como a rede de estradas por onde viajam, os mensageiros são parte do
tecido que mantém unido o vasto império de Roma.
Se todos os caminhos levam a Roma, então, por esses caminhos,
chegam a Roma mensagens de governadores de províncias com estimativas
orçamentárias, declarações de impostos e números de tropas. Há relatos de
batedores de movimentos bárbaros ao longo da fronteira e mensagens
enviadas de reis de territórios submissos além das fronteiras romanas. Todas
essas comunicações são absorvidas pelo gargalo da administração romana
no Monte Palatino. Depois, em resposta, mensageiros como Titus se
espalham pelo império, levando instruções aos administradores sobre se
devem ou não promover uma ação militar, ou processar membros daquela
seita irritante conhecida como cristãos, ou se há financiamento disponível
para o projeto de estimação de um governador, seja um complexo de banhos
ou um aqueduto. Adriano é um governante muito prático.

O MAPA DE PEUTINGER
No ano de 1494 d.C., um erudito deparou-se com uma descoberta extraordinária na cidade de
Worms, na Alemanha. Era um pergaminho de quase sete metros (22 pés) de comprimento.
Nesse pergaminho, eram relacionadas todas as estações de caminho (mansiones) do cursus
publicus romano (o nome dado ao correio e serviço de transporte imperial).
O pergaminho não é um mapa propriamente dito, pois a intenção não é mostrar o território,
mas as rotas. Assim, o gráfico é altamente distorcido, da mesma forma que um mapa de
metrô moderno mostrando as estações não reflete com precisão a geografia da cidade acima
delas.
No entanto, a relação é um feito surpreendente que retrata a localização de mais de 500
cidades em rotas de curso e mais de 3.500 estações de passagem e outros locais. O resultado
é que, com ela, é possível reconstruir quase dia a dia a rota mais provável que Titus Aulus
Macrius teria percorrido em sua viagem à Grã-Bretanha. Também é possível traçar rotas
ainda mais românticas, pelo Oriente Médio para a Índia e Taprobana (como os romanos
chamavam Sri Lanka).
O ancestral do mapa foi provavelmente uma carta de cursus publicus elaborada pelo então
capataz do imperador Augusto, Agripa. Ao longo dos séculos, esse gráfico foi melhorado e
ampliado para se tornar a versão que temos hoje. Ela está agora na Biblioteca Nacional
Austríaca em Viena, e mostra o cursus publicus como era por volta de 430 d.C., ou 300 anos
depois que o mensageiro Titus Aulus Macrius trabalhou para aquela organização.
O CORREIO LENTO. UM CARRO CURSUS PUBLICUS.

Como sugere a descrição de seu trabalho, Titus passa muito tempo na


sela. Ele não pode carregar muita correspondência (algo que parece ter
escapado aos funcionários do Tabularium), mas pode carregá-la muito
rapidamente. Um mensageiro particular com um cavalo e uma carroça pode
carregar centenas de cartas, mas, se o mensageiro não poupar o cavalo,
percorrerá apenas cerca de 50 quilômetros por dia. Nas etapas iniciais da
jornada, nas excelentes estradas da Itália central, Titus pretende percorrer o
dobro dessa distância, assim que estiver livre das ruas movimentadas de
Roma. Na velocidade máxima em campo aberto, é possível cobrir 130
quilômetros por dia, se o mensageiro se esforçar. Todo o tráfego nas
estradas romanas dá passagem a um mensageiro, se ele carregar louros em
seu mastro (o que significa que ele traz a notícia de uma vitória romana) ou
penas (que indicam que ele precisa quase voar, literalmente, com a notícia;
penas raramente indicam boas notícias para Roma).
Os viajantes na via Aurélia, como os viajantes na maioria das estradas
italianas, são bem atendidos. No império cosmopolita de Adriano, muitos
romanos viajam a negócios ou lazer, e acomodar esses viajantes é uma
pequena indústria por si só. Como outros viajantes, o mensageiro particular
em exercício de funções não imperiais vai comer e dormir em uma taberna,
uma casa cuja função é muitas vezes sinalizada por uma placa do lado de
fora com a representação pintada de um animal, como um galo ou elefante.
Na maioria das principais estradas, essas tabernas podem ser encontradas a
cada 12 quilômetros, e, em estradas menos movimentadas, a cada 35
quilômetros. Nas terras selvagens antes de Mediolanum, perto dos Alpes,
tem sorte quem encontrar um a cada 60 quilômetros.
Essa não é uma grande preocupação para Titus, pois ele usará as
instalações do governo, ao lado das quais as tabernaes se estabeleceram. A
razão pela qual ele pode viajar nessa velocidade sem sacrificar o cavalo é
que ele troca de cavalo a cada 12 quilômetros em estações chamadas
mutationes. Todas as principais artérias do império têm essas estações.
Depois do exército, elas são uma das maiores despesas do governo imperial,
pois existem milhares de quilômetros de rodovia imperial, cada uma com
suas estações de mudança que abrigam até oito cavalos para uso dos
mensageiros rápidos, reservas de mulas e bois para veículos mais lentos,
ferradores e tratadores para cuidar dos animais e funcionários públicos para
acompanhar e controlar tudo isso.

PLÍNIO, GOVERNADOR DA PROVÍNCIA DE BITÍNIA E PONTO, PARA O


IMPERADOR TRAJANO
Até agora, senhor, nunca permiti o uso do cursus publicus para
qualquer coisa que não fossem fins administrativos. Mas agora
acho que se tornou necessário que eu quebre essa regra até
então rígida.
Quando minha esposa foi informada de que seu avô havia
morrido, ela quis falar com a tia o mais rápido possível. Nessas
circunstâncias, pensei que ela poderia se valer do privilégio [de
viajar com o cursus publicus], pois senti que você entenderia que
seria indelicado impedi-la de cumprir seu dever filial.
Portanto, confiando em sua boa vontade, tomei a liberdade de
fazer o que teria sido tarde demais para decidir se tivesse
esperado seu consentimento.

TRAJANO PARA PLÍNIO


Você me fez justiça, meu querido Secundus, confiando em minha
afeição por você. Certamente, se tivesse esperado meu
consentimento antes de usar os diplomas que eu lhe confiei, sua
esposa não poderia ter sido enviada nessa viagem a bom tempo.
PLÍNIO, Correspondência com Trajano 10.120-1

Embora vitais para o funcionamento do império, as mutationes são


profundamente detestadas pelas comunidades em que estão situadas. São
essas comunidades que têm que arcar com os custos de funcionamento das
estações de troca localizadas em seu território, e esses custos são altos. Tão
altos que o governo imperial, de vez em quando, tentava aliviar o
descontentamento popular com o cursus publicus assumindo o custo da
administração. No entanto, isso simplesmente não é possível para uma
administração eternamente sem dinheiro em qualquer período real e,
invariavelmente, o fardo é devolvido para as comunidades em um jogo
burocrático de empurra-empurra.
O cursus publicus não é simplesmente um Pony Express5 imperial,
embora a comparação possa ser adequada para mensageiros como Titus. Ele
faz parte do “correio rápido” — de fato, como stratorus, ele é o mais rápido
dos rápidos. No entanto, o cursus publicus também tem um “correio lento”,
e ele transporta muito mais do que mensagens. O correio lento é
responsável, geralmente, por carregar familiares e membros da família de
altos funcionários do governo de ou para Roma, levar soldados aleijados em
batalha para a casa de suas famílias e fornecer transporte para qualquer
outro oficial de patente que consiga mexer os pauzinhos para fazer uso dele.
Da mesma forma que existe uma competição feroz entre os
funcionários para expedir suas mensagens por um stratorus, o uso do
correio lento também é um privilégio muito procurado. Afinal, levando em
conta que viajar é um negócio tedioso e caro, quem não prefere viajar de
primeira classe à custa do erário público? Como resultado, qualquer pessoa
que use uma estação de troca é solicitada a exibir seu diploma, o documento
oficial que dá permissão para usar o correio. O documento é
cuidadosamente verificado, porque as falsificações são abundantes. Titus,é
claro, tem seu diploma. No entanto, como presença regular na rota Roma-
Londinium, os trabalhadores mais antigos das estações de troca o
reconhecem de vista.
Mentalmente, enquanto conduz seu cavalo através da multidão cada
vez mais numerosa nas ruas que passam pelo Circo Flamínio, Titus já está
planejando as etapas posteriores da jornada do dia. Como saiu tarde, está
contando com uma refeição tardia em Centumcellae, uma agradável
cidadezinha na costa, não muito longe de Tarquinium na Etrúria. Pensar em
passar a noite ali não causa grande dissabor a Titus, pois tudo o que ele quer
é garantir a melhor velocidade possível. A mansio em Centumcellae é uma
das estações de maior convívio em sua viagem, e é uma pena que os atrasos
em Roma signifiquem que sua chegada será adiada até tarde da noite.
Mansiones são versões maiores das mutationes (estações de troca). A
regra geral é que há uma mansio a cada oito mutationes. Em uma mansio,
não se faz apenas a troca de cavalos; a oferta é uma cama para passar a
noite, uma refeição decente e um banho quente para aliviar as cãibras e
tensões de um dia na sela. Houve um tempo em que a jornada de Titus teria
terminado com a cavalgada do dia até Centumcellae, e as mensagens que
ele carregava seriam entregues ao próximo mensageiro na sequência.
Certamente, era assim que funcionava no antigo sistema persa, que o
imperador Augusto imitou quando estabeleceu pela primeira vez o correio
imperial.

Para descobrir o mais cedo possível o que estava acontecendo


nas províncias, ele [o imperador Augusto] estabeleceu normas
de correio. No início, elas eram cumpridas por jovens em
intervalos regulares ao longo das principais estradas. Mais
tarde, eles foram substituídos por correios regulares com
carruagens rápidas. Augusto achava que os mensageiros
individuais eram mais úteis, porque os portadores dos despachos
estavam presentes quando eles eram escritos e, assim, podiam
fornecer detalhes extras como e quando fossem necessários.
SUETÔNIO, Vida de Augusto 49
Contudo, isso foi antes, e agora é diferente. De fato, a missão em que
Titus está atualmente engajado é uma demonstração muito boa de por que
os imperadores preferem que seus mensageiros carreguem a
correspondência durante toda a viagem. Em meio à correspondência
transportada por Titus há mensagens para o legado da Legio XX Valeria
Victrix, comandante de uma das legiões que atualmente constrói a muralha
de Adriano no norte da província da Britânia.
Não é que o imperador duvide da lealdade desse legado, não
exatamente. Porém, Adriano tem muitos inimigos no Senado e gostaria de
ter certeza absoluta de que o comandante de uma legião romana inteira não
está entre eles. Portanto, além das mensagens oficiais que Titus levará ao
governador na Grã-Bretanha, o mensageiro foi cuidadosamente informado
sobre certas perguntas delicadas que fará pessoalmente ao governador em
nome do imperador.
Em seu regresso a Roma, Titus entregará novamente a
correspondência. Ele então irá para um gabinete pouco conhecido no Monte
Palatino, onde fará um relato verbal ao chefe dos speculatores do governo
sobre o resultado de sua conversa privada com o governador da província. É
por isso que os imperadores preferem que um único mensageiro de
confiança faça toda a viagem. Nesse sistema, não só um único homem é
responsável pela segurança e integridade da correspondência de ponta a
ponta da viagem, como o mensageiro também pode transmitir comunicados
sensíveis demais para serem colocados em pergaminhos.
Como um mensageiro imperial de confiança, Titus fez várias vezes a
viagem à Grã-Bretanha, nem sempre partindo de Roma. Adriano é um
governante altamente peripatético, e Titus ainda lembra com um tremor
aquelas longas viagens do Egito para a Grã-Bretanha, quando o imperador
visitava a antiga província. As viagens de verão de longa distância são
literalmente leves como uma brisa, pois os ventos predominantes sopram de
leste a oeste através do Mediterrâneo, e tudo que um mensageiro precisa
fazer é acenar com seu diploma para abrir passagem nos enormes
supercargueiros de grãos que fazem a rota Alexandria-Óstia.
No inverno, no entanto, a história é diferente. Durante esse período,
um mensageiro do Egito precisa viajar até a costa do Levante, e desviar
para o interior para passar pelos Portões Persas para o interior da Anatólia e
evitar a intransponível costa rochosa da Cilícia. Então, por um tempo, o
mensageiro imperial percorre a mesma Estrada Real que seus predecessores
usaram mais de meio milênio antes, quando carregavam notícias da derrota
da Pérsia na batalha de Maratona, ou mais tarde, quando levaram a notícia
da morte de Alexandre a uma Macedônia em luto.
Em cada mansio, Titus se informa sobre as condições da estrada à
frente. A Gália foi amplamente pavimentada durante o último século de
domínio romano, mas Titus ainda precisa evitar a atividade de bandidos,
obras na estrada e inundações, entre outros perigos. Considerando que ele
agora ultrapassa os portões de Roma, não é irracional esperar que, se
Mercúrio, deus dos poetas e mensageiros, apressar sua viagem, Titus esteja
tomando seu desjejum na mansão do governador da Britânia dentro de três
semanas.
Por enquanto, Titus para novamente. Dessa vez, entre todas as coisas
possíveis, há uma turma de estudantes com seu professor em formação na
calçada e na estrada diante dele. Armado de paciência, Titus espera
enquanto o gramático atrapalhado empurra seus alunos para fora da estrada.
Sua esperança é de os funcionários do lado de Londinium sejam mais
organizados, e ele possa sair em um melhor horário quando iniciar a longa
jornada de volta à cidade superlotada que está deixando agora.

5 Serviço de correio expresso a cavalo inaugurado em 1860, que levava correspondências através de
territórios selvagens dos Estados Unidos. A rota ligava as cidades de St. Joseph e Sacramento. [N.T.]
HORA NOCTIS XII
(6h–7h)

O ESTUDANTE COMEÇA A AULA


MATINAL

Professor maldoso! Antes mesmo de o galo cantar, você quebra o


silêncio com sua voz áspera.
MARCIAL, Epigramas 9.68

Como todos os dias de aula, a manhã de Publius Phelyssam começa com ele
assistindo ansiosamente à contagem de cabeças por seu professor. Até
agora, 15 na turma se afastaram para deixar o mensageiro imperial passar.
O litteratus — professor de Publius — é pago por dia pelos alunos. Se ele
não conseguir 20 estudantes em sua turma, não vai receber o necessário.
Isso é uma coisa ruim.
Em primeiro lugar, porque isso significa que as aulas terão que
acontecer ao ar livre, como agora, e não na basílica em frente. A basílica é,
de longe, a melhor escolha, pois é protegida do sol e do vento e tem bancos
na lateral, nos quais Publius e seus colegas podem sentar. Nos dias em que
o litteratus não pode pagar ao atendente que cuida da basílica o ingresso
para dar a aula, ou quando a basílica está em uso para uma função oficial,
Publius e seus colegas sentam-se infelizes, de pernas cruzadas, na calçada,
com suas tábuas de cera equilibradas desajeitadamente sobre os joelhos.
Publius não gosta disso; a turma é tomada por uma disposição irritadiça, e
os outros usuários da calçada também não gostam muito da ideia.
A segunda razão pela qual não entrar na basílica é uma coisa ruim é
que isso deixa o litteratus de mau humor, e ele desconta nos alunos. Se o
professor soubesse que tinha sido apelidado de “Orbilius” pela turma, talvez
tivesse ficado muito satisfeito. Esse era o nome do professor do poeta
Horácio — a quem ele apelidou de “o flagelador” (plagosus), pela liberdade
com que usava seu chicote. O professor de Publius certamente também não
economiza chicote — uma pequena engenhoca de couro que está
constantemente ao seu lado — e, como a maioria dos romanos, não vê nada
de errado em impor alguma educação aos seus pupilos. É por isso que ele
ficaria satisfeito se soubesse que algum conhecimento de Horácio ficou
retido nos alunos, por mais depreciativa que fosse a forma como aplicaram
esse conhecimento.

Quanto vale o trabalho de um professor? Seja quanto for


(E é menos do que a ninharia ganha por um professor de retórica)
Disso o pedagogo insensível quer sua parte…
Pelo menos garanta que vai ganhar alguma coisa,
Por respirar o fedor de lamparinas e meninos,
Enquanto sua cópia de Horácio cai perdendo a cor,
E a fuligem gruda em seu Virgílio enegrecido.
Embora seja raro você ser pago sem recorrer à lei,
Os pais são ferozmente rigorosos com o professor,
Exigindo que ele seja rigoroso no uso da gramática,
Fluente sobre os historiadores e conhecedor dos grandes autores,
Como conhece as próprias unhas…
Vão exigir que ele molde essas formas tenras sob sua influência,
Como se esculpisse rostos na cera,
Ele tem que agir como um pai para aquele grupo…
Não é fácil supervisionar todos aqueles garotos,
Suas mãos e olhos trêmulos de ansiedade,
E intenção suspeita.
“Bem, esse é o seu trabalho”, dizem os pais…
JUVENAL, Sátiras 7, 1216ff

Quando Publius volta a sentar na calçada, fica satisfeito ao ver outro


grupo de alunos chegando. O professor também os vê, embora faça uma
cara azeda ao ver o pedagogus. A maioria dos alunos do grupo que chega
tem entre seis e dez anos de idade. São muito jovens para estarem vagando
sozinhos pelas ruas de Roma, com todos os seus inúmeros perigos, então, a
maioria dos pais manda os filhos para a escola acompanhados por um
pedagogus, geralmente um escravo designado para este fim. Às vezes,
todos os pais de um quarteirão unem forças para contratar o mesmo
pedagogus, como aconteceu neste caso.
ESTUDANTES ROMANOS EM TRAJES FORMAIS.
O pedagogus também leva o dinheiro para o dia de aulas das crianças,
e a cara azeda do professor é porque ele sabe que o pedagogus não vai se
desfazer desse dinheiro sem receber uma comissão. Então, enquanto
Orbilius e o pedagogus estão se acertando, outro grupo chega, aumentando
a turma para 27 alunos. Aliviados, todos se levantam e vão para a basílica.

Enquanto eu estava lá, um jovem veio prestar seus respeitos a mim.


Quando perguntei se estudava, ele disse: “Sim, em Mediolanum
[Milão]”.
“Por que não aqui?”, perguntei.
O pai do jovem o acompanhava, e ele respondeu:
“Não há professores aqui”.
“Por que não?”, perguntei. Havia vários pais presentes, e eu disse a
eles: “É de importância urgente para os pais que seus filhos tenham
uma educação em sua cidade natal”.
“Se todos contribuíssem, vocês poderiam contratar um professor
[nesta cidade] por um pequeno valor para cada indivíduo… eu até
prometeria pagar tudo sozinho, não fosse o temor que tenho de minha
generosidade ser corrompida para servir a interesses privados, como
vi acontecer em outro lugar”.
“Existe apenas uma maneira de evitar esse problema, e é permitir que
os pais possam contratar os professores. Se tiverem que dedicar uma
parte do salário a isso, terão o cuidado de empregar os homens
certos. Não se pode dar os filhos um presente melhor que esse.”
PLÍNIO, o Jovem, Cartas 6.13

“Ei, Ba’al!” Publius é acompanhado por um menino ruivo e magro


que sorri ao cumprimentá-lo. O menino é Casce, e deve seu nome e cabelo
ruivo a um pai gaulês. Ele e Publius compartilham a condição de
estrangeiros. Como atesta o nome de família de Publius, Phelyssam, o clã é
semítico, da cidade de Leptis Magna, no norte da África. Daí o apelido de
Publius: Ba’al. Era o “Hannibal” mais ofensivo, mas a turma de
nacionalidades variadas não pode realmente escolher ninguém por sua
origem e, se o faz, é das origens do professor que ri pelas costas.
Como muitos professores, Orbilius é um escravo liberto, e, mesmo nos
dias quentes, ele usa um lenço no pescoço para esconder a tatuagem de
escravo que seu antigo senhor ordenou que fosse feita. É por muitos
professores serem ex-escravos que a profissão é muito pouco respeitada
pelos romanos. De fato, Orbilius é o mais baixo dos baixos, pois o respeito
pelos professores romanos aumenta proporcionalmente ao nível de seus
ensinamentos. O professor romano básico — ou seja, Orbilius — é apenas
um litteratus. Geralmente, é considerado bem-sucedido se tiver um aluno
que saiba ler, escrever, fazer contas básicas e tiver algum conhecimento dos
clássicos. Um professor esforçado neste nível — e Orbilius é trabalhador,
apesar do tanto que bate em seus alunos — pode contar com uma renda de
cerca de 180 denários por ano. Isso é mais ou menos a metade do que um
trabalhador qualificado ganharia em qualquer outra profissão. Até
professores de retórica de nível superior ao de Orbilius ganham apenas um
pouco mais. Não é à toa que o poeta Juvenal comentou certa vez: “Muitos
professores têm razão para lamentar a improdutividade da cátedra”.6
A “cadeira profissional”, neste caso, é uma cadeira de espaldar alto e
madeira surrada que Orbilius arrasta para fora de uma alcova na basílica e
prepara cuidadosamente com uma almofada de lã gasta. Publius e Casce
interrompem uma briga amigável e sentam rapidamente, alertas quando
Orbilius golpeia o braço de sua cadeira com o chicote para assinalar que a
aula vai começar.
“Defessi Aeneadae, quae proxima litora…”, entoa o professor
lentamente, enquanto os meninos rabiscam furiosamente em suas tábuas de
cera. Ditar a Eneida, de Virgílio, é um dos métodos de ensino favoritos, pois
ensina redação e clássicos infantis ao mesmo tempo. Os romanos gostam
muito de decorar, e, geralmente, tudo que um aluno estelar precisa ter para
conquistar o sucesso é uma boa memória.

Dizem que Lucius Voltacilius Plotius foi um escravo e até serviu


como porteiro, acorrentado ao seu posto para o trabalho, como
era o costume antigo, até que foi libertado por causa de seu
talento e interesse pelas letras e tornou-se professor.
SUETÔNIO, Retóricos 3

Na opinião pessoal de Publius, o piedoso Eneias e seus heroicos


troianos poderiam todos ir se afogar na fossa mais próxima. Ele vê pouca
utilidade para o conhecimento dos clássicos em seu futuro. Se herdar o
negócio de couro do pai, certamente vai precisar saber ler e escrever,
porque a família ainda tem contatos comerciais na África e faz trocas
regulares de, por exemplo, couro barato por botas prontas. A capacidade de
escrever uma boa carta é essencial aqui, pois gramática ou ortografia ruim
indica que o escritor é um simplório que poderia ser explorado por um
empresário sagaz.
No entanto, a tarefa de declamar retórica ou construir metáforas
verbais elaboradas a partir de um trocadilho envolvendo a mãe de Hécuba
são assuntos que ficam para quem vai passar para a próxima etapa da
educação romana, na qual o conhecimento dos clássicos é essencialmente
um símbolo de status. Ao contrário desses aspirantes a membros da alta
classe, Publius pretende abandonar a escola no momento em que atingir a
idade adulta, em cinco anos. Na idade madura de 14 anos, Publius vai se
livrar formalmente da toga infantil de borda roxa (bem, na verdade, a
família não pode pagar uma toga e vai alugar uma para a cerimônia de
introdução na idade adulta) e vestir a branca e simples (e também alugada)
toga de adulto.

“Indivíduos maçantes e não ensináveis certamente existem, mas,


como outras monstruosidades e deformações da pessoa por
natureza, eles são poucos… Se uma boa promessa de
aprendizado desaparece com o tempo, isso se deve não à falta de
aptidão natural, mas à falta de cuidado em mantê-la.”
“Nenhum [professor] é mais pernicioso do que aqueles que,
tendo aprendido pouco mais que o básico, cobrem-se com o que
erroneamente acreditam ser um manto de conhecimento. Eles se
recusam a dar lugar a melhores ensinamentos e tornam-se
ferozes e imperiosos em sua autoridade (esse tipo de pessoa
geralmente é inchada de autoridade). Não ensinam nada além
da própria loucura.”
“Alguns dizem que os meninos com menos de sete anos não
devem ser colocados para estudar, porque até então não
conseguem entender o que é ensinado, nem sustentar o esforço
ou aprendê-lo…aqueles com essa opinião provavelmente querem
poupar mais os professores do que seus alunos.”
QUINTILIANO, Educação de um Orador, cap.1, excertos

Contemplando a ocasião de entrar na vida adulta, Publius toca


distraído a bulla, que está em seu pescoço quase desde que nasceu. Toda
criança tem uma dessas — uma bolsinha de couro cheia de amuletos e
encantamentos de boa sorte que o acompanha desde a primeira infância até
alcançar o status legal de ser humano em seu primeiro aniversário. Ela
permanecerá com ele até que complete 14 anos, quando Publius devolverá a
bolsa para os pais, assim como a filha mais velha, sua irmã, fez na véspera
do casamento no início daquele ano. O fim de infância e o fim da escola.
Publius mal pode esperar. Claro, este não será o fim da educação. Como um
bom paterfamilias romano, Phelyssam sênior leva muito a sério seu papel
de chefe da casa. Enviar o único filho para um litteratus é só uma parte da
educação do menino e, de certa forma, a menor parte. “Tenha certeza de que
nada custa menos a um pai do que educar seu filho”, comentou o poeta
Juvenal, um tanto sarcástico, na Sátira 7. De fato, Orbilius recebe apenas
uma ninharia pelas aulas que dá, mas Publius sabe que a educação que ele
recebe de seu pai é a mais importante.
Como saber se o couro de touro tem sua espessura nativa ou foi
ardilosamente esticado para tornar a pele maior e, portanto, mais cara; com
quais tropeiros entrar em contato para saber sobre carne estocada prestes a
ser leiloada; como tirar a pele de um cão selvagem morto e transformá-la no
que o cliente desavisado acredita ser um par de luvas infantis de pele da
melhor qualidade. Isso e muito, muito mais é a educação que Publius deseja
ter, e ele só pode obtê-la trabalhando ao lado do pai, não estendendo as
mãos para ser chicoteado por escrever “defessi” errado!
Suspirando, Publius se prepara para uma longa manhã. Como todo
estudante local, está completamente familiarizado com o complexo
calendário romano. Tecnicamente, sua educação poderia ocupar 12 horas
por dia, todos os dias. Felizmente, há cerca de dez a 12 feriados todos os
meses, em geral, quando Orbilius é legalmente impedido de lecionar, e, às
vezes, feriados ainda mais longos são decretados. Por exemplo, é comum
haver pelo menos uma quinzena de celebração toda vez que o imperador
itinerante Adriano decide retornar a Roma.
Hoje, Publius tem um dia inteiro, com apenas uma pausa para o
almoço. Amanhã ele só vai estudar meio dia, porque vai ter que ajudar na
oficina, e, no dia seguinte, é feriado. Enquanto isso: “Saxa vocant Itali
mediis quae in fluctibus aras…”.

Caro Sr. Professor;


Tenha misericórdia de seus alunos simples. Bem, faça isso se
quiser que muitos meninos de cabeça desgrenhada participem de
suas aulas, e faça-se amar pelo grupo que se aglomera em torno
de sua mesa. Então não haverá maior círculo de alunos reunidos
à volta de um professor de aritmética ou de um instrutor de
taquigrafia.
Ponha de lado seu chicote da Cítia com as temidas correias
(mais ou menos como aquela com que Apolo esfolou Mársias), e
aquela impressionante bengala que é seu cajado de autoridade.
Deixe os dois dormirem até o início de outubro. Agora são os
dias quentes e brilhantes do flamejante Leão, e o calor de julho
amadurece a colheita florescente. É o verão. Se seus meninos
permanecerem saudáveis ao longo dele, terão feito o suficiente.
MARCIAL, Epigramas 10.62

6 Sátira 7.203ff
HORA I
(7h–8h)

O SENADOR VAI ENCONTRAR SEU


PATRONO

Mas entre reis e senhores de todo o mundo


o verdadeiro homem circula destemido,
Não é intimidade
Nem pelo brilho do ouro nem pelo esplendor brilhante
De um manto roxo.
LUCRÉCIO, Sobre a natureza das coisas 2.5

O canto dos alunos da basílica traz esse verso à mente do senador enquanto
ele corre para encontrar seu patrono. O fato de Mamlius Aurelius Ofella ser
senador de Roma e, portanto, tecnicamente, estar entre os senhores do
mundo por direito, provoca em Ofella uma ocasional pontada de humor
irônico. Neste momento, Ofella não se sente senhor de nada.
O fato é que Ofella pertence de corpo e alma a um senador mais antigo
— Lucius Ceionius Commodus. Foi Ceionius quem patrocinou Ofella no
Senado quando ele era simplesmente um ninguém relativamente rico, mas
ambicioso, da Espanha. Foi Ceionius quem pagou o custo, de outra forma
proibitivo, de encenar jogos no anfiteatro quando Ofella era Aedili e subia a
escada senatorial. Foi Ceionius quem apresentou Ofella à sua esposa um
tanto empobrecida, mas altamente aristocrática, e foi Ceionius quem
financiou discretamente uma grande parte de seu dote.
Seria bom pensar que Ceionius fez tudo isso apenas porque era um
indivíduo rico e filantrópico, que fez amizade com Ofella por ter um
coração bondoso e, desde então, cuidou de seus melhores interesses. Mas,
se assim fosse, Ofella não estaria tão apressado em meio à multidão matinal
para apresentar saudações ao homem que chama de seu senhor.

Apresente-se e conte-nos! Quando seu sono foi mais tranquilo,


agora ou antes de se tornar “amigo” de César?
Imediatamente vem a resposta: “Parem, pelos deuses, peço-vos,
de zombar da minha fortuna; vocês não sabem que estado
miserável é o meu; nenhum sono chega perto de mim”.
Portanto, quando você vê um homem se curvando para outro ou
bajulando-o, contrariando sua opinião verdadeira, pode dizer
com confiança que ele também não é livre, e não apenas se o
fizer por um jantar insignificante, mas mesmo que o faça por
uma província ou um consulado. Mas aqueles que assim agem
por pequenas coisas podem ser chamados de escravos em
pequena escala, e os outros, como merecem, escravos em grande
escala.
Então, sempre que um homem pode ser impedido ou compelido
por outro à vontade, afirme com confiança que ele não é livre.
Não olhe seus avós e bisavós para pesquisar se ele foi comprado
ou vendido, mas, se você o ouvir dizer “Senhor” de coração e
com sentimento, então o chame de escravo, embora 12, fasces o
precedam [ou seja, ele é um cônsul], e, se você o ouvir dizer:
“Desventurado sou eu, que sou tratado assim”, chame-o de
escravo; resumindo, se você o vir se lamentando, reclamando,
miserável, chame-o de escravo, embora ele use a bainha roxa
[de um senador].
EPÍTETO, Discourses, Cap. 1 passim (Tradução para o inglês de Thomas Wentworth
Higginson)
À frente de Ofella, andam vários guarda-costas, que abrem caminho
pelo simples expediente de empurrar qualquer um que se demore em um
beco ou na rua. Ninguém se opõe seriamente a isso, porque os romanos são
um povo de mentalidade muito hierárquica, e Ofella é evidentemente uma
pessoa do alto escalão. A faixa roxa em sua toga é prova disso, assim como
o séquito que o segue. Sem dúvida, pensa Ofella, muitos daqueles que
observam seu progresso o invejam — assim como ele os inveja.
Talvez tivesse sido mais fácil para Ofella usar uma liteira, uma
confortável caixa forrada de almofadas carregada nos ombros de seis
escravos. No entanto, Ofella conhece a multidão do amanhecer nas ruas e
sabe que uma liteira é ainda mais lenta do que andar a pé. Uma vez, muitos
anos atrás, a esposa do almirante Claudius ficou presa em sua liteira em
uma rua igualmente movimentada. Frustrada, ela desabafou em voz alta sua
decepção pelo fato de o marido — um comandante incompetente que
acabara de perder uma frota e milhares de homens — ainda não ter matado
romanos suficientes para diminuir a multidão. O sentimento não foi bem
recebido.
De qualquer forma, Ofella tem ambições relativas ao comando militar
e pretende conquistar um posto nas legiões orientais enquanto ainda estiver
com seu patrono. Não seria bom, portanto, chegar descansando em uma
liteira como um diletante decadente (embora seu patrono, às vezes, seja
acusado de ser exatamente isso por rivais invejosos). Não, Ofella chegará à
mansão do patrono tendo marchado para lá como pretende marchar à frente
da Legio V Macedônica, ou onde quer que o destino e o capricho do
imperador o levem.
SENADORES ROMANOS EM PARADA, COMO MOSTRADO EM UM SARCÓFAGO DO
SÉCULO III.

Pois não é toda magistratura que liberta seus ocupantes — bem


como a posteridade deles — das relações com um patrono, mas
apenas aquelas às quais a lei atribui a cadeira curule [ou seja,
aquelas que estão acima da classificação do edil plebeu]. Ao
regressar a Roma, ele construiu para si uma casa perto do
Fórum, também, como ele mesmo disse, porque não queria que
os que a ele fossem prestar seus respeitos tivessem o problema de
vir de longe, ou porque pensou que a distância era a razão para
não ter multidões maiores à sua porta.
PLUTARCO, Biografia de Marius 5 e 32

A razão pela qual a marcha desta manhã é particularmente rápida é porque


Ofella acordou antes do amanhecer para lidar com seus clientes, e um
desses clientes teve um problema com um cliente próprio que precisava de
resolução. O problema era que um casal tinha se divorciado e um certo
Julius Hypsates, o agora ex-marido, conforme exigido por lei, teve que
devolver o dote. No entanto, parte do dote estava investido em um
empreendimento comercial, e, se Julius sacasse o dinheiro agora, teria uma
perda substancial. (O que, ele reclama, é exatamente o que sua ex-esposa
vingativa pretende.) Julius tinha explicado seu problema ao seu patrono, e o
patrono direcionou o problema e a sua solução proposta para Ofella.
Essa solução era que Ofella deveria comprar o empreendimento
comercial de Julius, e esse dinheiro poderia ser usado para reembolsar o
dote. Já que, como senador, Ofella não deve se envolver em questões de
comércio, o investimento é agora nominalmente garantido em nome do
cliente de Ofella — o patrono do ex-marido. Fica acertado que o lucro de
Julius será dividido em três partes, entre ele, Ofella e o patrono de Julius,
mas pelo menos ele não terá prejuízo.

O SISTEMA DE PATROCÍNIO
É exatamente para este tipo de transação que existe em Roma a relação cliente-patrono. É
também por isso que nenhum romano, seja mendigo de rua ou senador, sonharia em ficar sem
patrono. O direito romano é lento e caro, e a maioria das questões legais normalmente pode ser
resolvida sem envolver advogados, desde que o sistema cliente-patrono funcione sem
problemas. Passe um problema para cima na cadeia de patronagem e, em algum momento, ele
chegará a alguém com autoridade suficiente para resolver o assunto, ou a dois representantes
de clientes em lados opostos que podem forçar uma resolução.
É também por isso que, assim que atinge qualquer posição de autoridade, um patrono em
potencial começa imediatamente a procurar clientes. Não só muitos clientes contribuem para a
reputação de uma pessoa, mas — como Ofella sabe muito bem — os clientes são
frequentemente os instrumentos pelos quais o patrono faz as coisas.
No caso do desgraçado Julius, as coisas se complicaram porque o ex-
marido havia hesitado por tempo demais e a maior parte da papelada teve
que ser feita ali mesmo. Foi isso que aconteceu, mas agora Ofella tinha que
avançar a passos rápidos para não insultar seu patrono por estar atrasado.
Como Ceionius é um senador de alto escalão e membro do conselho
consultivo de Adriano, evidentemente não lida pessoalmente com assuntos
menores, como divórcios e investimentos. No entanto, ele ainda precisa de
senadores como Ofella tanto quanto eles precisam dele. Na verdade, uma
das razões para Ceionius ser um senador tão importante (e para os rumores
sobre ele ser um possível sucessor do imperador) é precisamente ter muitos
clientes. Clientes no senado apoiam qualquer legislação que Ceionius
propõe e bloqueiam qualquer ação de seus oponentes. Podem animar seus
discursos, contribuir para suas despesas e trabalhar duro para trazer
senadores não alinhados para o lado de Ceionius, quando há uma votação
apertada.
Como cliente, embora esteja muito acima de qualquer outro na rua em
termos de poder e prestígio, Ofella não é dono de si mesmo. Não tem seu
destino nas mãos, mas totalmente ligado ao de seu patrono. Se inimigos
conseguirem miná-lo, Ceionius quase certamente terá um fim difícil.
Adriano executou quase uma dúzia de senadores que o desagradaram, e
Ceionius pode facilmente entrar na lista. Como cliente de Ceionius, Ofella
então também sofreria consequências, certamente, embora não
necessariamente à custa da própria vida. Em vez disso, ele pode, por
exemplo, conseguir enfim o comando militar que está buscando, mesmo
que seja alta a probabilidade de obter apenas um posto menos procurado,
como comandante de um pequeno forte de guarnição em algum lugar na
extremidade mais úmida do novo muro na Grã-Bretanha.
Ou, se acharem que é muito perigoso confiar a Ofella o comando de
soldados potencialmente rebeldes, aqueles que derrubaram Ceionius
poderiam sugerir que, como o ar em Roma é muito insalubre, Ofella pode
preferir se mudar para outro lugar. Toma, por exemplo. As margens do Mar
Negro podem não ser um lugar feliz para um senador desgraçado viver, mas
ele pode ter que se conformar com esse fim, a menos que queira morrer em
Roma. O Senado é implacável com aqueles que caem em desgraça, e
acusações de traição são fáceis de articular contra alguém que não entenda
o sinal e deixe a cidade.
As consequências do fracasso são muito graves, por isso Ofella, como
outros clientes de Ceionius, trabalha para seu patrono com verdadeira
dedicação. As cores dele estão em seu mastro. Mesmo que seu patrono
esteja claramente do lado perdedor, Ofella não pode abandonar o barco.
Como lhe é exigido, Ofella reconheceu publicamente e em repetidas
ocasiões os favores que seu patrono prestou. Até que esses favores sejam
pagos integralmente, não há como Ofella deixar seu patrono sem incorrer
na mais condenável das acusações — ingratidão.

No entanto, embora devam ser acusados aqueles que nem mesmo


demonstram tanta gratidão a ponto de reconhecer sua dívida,
nós mesmos não somos menos culpados. Julgamos muitos
homens ingratos, mas fazemos mais homens o serem, porque, em
um momento, exigimos de maneira dura e reprovadora algum
retorno por nossa generosidade, em outro, somos inconstantes e
lamentamos o que damos, em outro, somos rabugentos e
propensos a apontar defeitos por ninharias. Agindo assim,
destruímos todo o sentimento de gratidão, não só depois de
termos dado alguma coisa, mas enquanto estamos no ato de
doar.
SÊNECA, De Beneficiis 1.1

Para alguém do status de Ofella, tornar-se conhecido como alguém


ingrato é suicídio social. Ninguém iria falar com ele, lidar com ele ou
protegê-lo. Ele seria o saco de pancadas e o bode expiatório em todas as
intrigas senatoriais. Naturalmente, a mulher logo se divorciaria dele,
levando consigo o dote que ele não pode pagar — um eco dos negócios
daquela manhã —, para que Ofella ficasse sozinho, falido e sem amigos.
Nesse ponto, ele poderia muito bem embarcar para Toma de qualquer
maneira, porém ele não poderia pagar por isso.
À frente está a propriedade em direção à qual Ofella tem andado a
passos largos. Quando ele chega às grandes portas de carvalho cravejadas
de pregos, um criado corre para abrilas. A comitiva de Ofella se dispersa,
pronta para se tornar discretamente disponível outra vez quando o senhor
ressurgir da audiência com seu patrono. Não é de bom tom trazer toda sua
comitiva à propriedade do patrono.
No vestíbulo, um escravo ajuda Ofella a tirar as botas de rua e o
manto. Enquanto isso, Ofella faz discretas indagações com o escravo sobre
se chegou na hora, adiantado ou atrasado, e quem está na fila à frente dele.
Há pelo menos um magistrado sênior já em serviço lá dentro. Ofella sabe
disso porque viu os lictores, os assistentes do magistrado, descansando na
porta com seus fasces — os símbolos oficiais da posição do homem.
Naturalmente, Ceionius não vai chamar um magistrado pelo nome
ofensivo de clientes. Nem mesmo Ofella será tratado com tanta grosseria.
Ceionius vai chamá-los de amicus (amigo) e fingir estar encantado com
essa visita social. Com efeito, a relação entre Ceionius e qualquer
magistrado que esteja com ele pode ter começado facilmente como uma
verdadeira amizade. Então, o magistrado precisava de um favor, que só
alguém que tivesse a atenção do imperador poderia arranjar, e foi Ceionius
quem resolveu tudo. Depois, pode ter havido uma pequena dificuldade
política que precisava ser tratada, e Ceionius a resolveu de maneira
“prestativa”.
Se o magistrado pudesse retribuir esses benefícios com favores de um
valor equivalente, então o relacionamento deles se manteria como uma
amizade. Isto é, de fato, a essência de todas as “amizades” políticas em
Roma. Manus manum lavat, como dizem — uma mão lava a outra. Mas,
quando um favor não pode ser retribuído — ah, aí está o problema! Quando
isso ocorre, o status da pessoa que recebeu o favor muda lentamente de
amicus para cliens — e todo mundo sabe disso. Não é à toa que os romanos
fazem a piada irônica: “Eu te odeio por ter feito tanto por mim”.
Ofella sabe como será sua entrevista. Haverá refrescos da mais alta
qualidade. Ceionius perguntará educadamente sobre a saúde de sua esposa e
o progresso do filho pequeno. Em seguida, Ofella, sob o pretexto de
espalhar fofocas senatoriais, relatará suas atividades e as dos colegas
senadores. Ele mencionará como está indo bem nas tarefas que lhe foram
designadas de subornar um comandante do exército e subornar
discretamente outro. Ele continuará sua tarefa, até então infrutífera, de
encontrar material para chantagem sobre um dos rivais de Ceionius e
aceitará a repreensão educada pela falta de sucesso.
Então, com igual cortesia e nenhum indício de coerção, Ceionius
apresentará as tarefas que tem em mente para Ofella na próxima semana.
“Se você pudesse fazer isso por mim, meu caro amigo…”; “Não seria uma
surpresa agradável, se Marcus pudesse de alguma forma ser persuadido
a…”; “Eu nunca gostei daquele Quintus. Não seria triste se alguém
comprasse seu negócio e o jogasse na rua?” E assim por diante, com Ofella
sorrindo, balançando a cabeça e fazendo anotações mentais.

Antes de mais nada, assegure-se disso — quando convidado para


jantar, que você receba o pagamento integral por todos os seus
serviços anteriores. Uma refeição é o retorno que sua grande
amizade lhe rende; o grande homem pontua contra você, e,
embora isso aconteça raramente, ele pontua contra você do
mesmo jeito.
Então, se depois de alguns meses ele tiver o prazer de convidar
seu cliente esquecido, para que o terceiro lugar no sofá mais
baixo não fique desocupado, e ele lhe disser: “Venha e jante
comigo”, você estará no Sétimo Céu! O que mais pode desejar?
Agora, finalmente, Trébio recebeu a recompensa pela qual teve
que interromper seu sono e sair correndo com os cadarços
desamarrados, temendo que toda a multidão de visitantes já
pudesse ter feito suas visitas, em uma hora em que as estrelas
estão desaparecendo.
JUVENAL, Sátiras 5.2 (Tradução para o inglês de G. G. Ramsay.)

Ofella pensa nas pessoas que viu na rua naquela manhã, todas
surpresas e gratas por se encontrarem de repente na presença de um senador
romano — um dos maiores homens em Roma, quando a própria Roma é o
maior poder na terra. O que essas pessoas pensariam, se soubessem que, na
verdade, ele era só um fantoche ambulante, uma marionete vazia?
HORA II
(8h–9h)

A VIRGEM VESTAL VAI BUSCAR


ÁGUA

O pilentum é uma esplêndida carruagem de quatro rodas, mas aberta nas


laterais para que qualquer um esparramado em suas almofadas
luxuosamente macias possa ver a maior parte da rua. Como resultado,
Márcia tem uma visão clara do senador Ofella, quando ele sai da casa de
seu patrono.
“Homenzinho odioso”, ela comenta para ninguém em particular. “Vá
em frente, por que não passa por baixo da minha carruagem?” Na verdade,
apesar da aparência espinhosa, Márcia é uma criatura amável e ficaria
muito aflita se Ofella tomasse esse atalho específico. Como um ou outro
ladrão de rua apressado tinha descoberto em algumas ocasiões, para seu
pesar, tentar atravessar a rua se abaixando para passar por baixo dessa
carruagem de eixo particularmente alto é o equivalente a uma sentença de
morte. A carruagem não é sagrada, mas a ocupante é, e qualquer coisa que
possa ser interpretado por ela como desrespeito geralmente é fatal.
Pois Márcia é uma virgem vestal. Grande parte de sua vida é ocupada
por rituais obscuros e, no caso de erros de omissão (no ritual) ou comissão
(em conduta) — cometidos por ela mesma ou por outras pessoas — por
punições draconianas também. Aliás, Márcia está agora em missão
religiosa. É uma missão de que ela gosta muito, e trocou tarefas com uma
de suas irmãs vestais para poder executá-la.
Na parte de trás do carrinho, há duas grandes urnas de prata. Márcia
vai encher essas urnas com a água que será usada para limpar e purificar o
altar de Vesta no ritual matinal. Há certamente muitas fontes de água mais
próximas, mas a água de Vesta deve vir de uma fonte sagrada particular que
é reservada para uso exclusivo da deusa e de suas assistentes. Trata-se da
Fonte de Egeria, perto do Portão Capentiano. Este portão fica na região sul
de Roma — na verdade, é o portão pelo qual a famosa Via Ápia entra na
cidade.
Márcia escolheu deliberadamente um caminho indireto até lá, porque
gosta dessas viagens para a confusão da metrópole. Outra razão para a rota
inusitada é dar uma segunda chance a prisioneiros condenados que possa
encontrar.
De vez em quando, os guardas que arrastam um homem para seu local
de execução — por exemplo, para a Rocha Tarpeia perto do Monte
Capitólio — podem esbarrar nas atendentes de uma virgem vestal enquanto
ela cumpre seu dever. Naturalmente, os guardas vão dar passagem —
cônsules, tribunos e até o imperador devem fazer isso —, e, então, se quiser,
a vestal pode exercer seu poder para libertar o homem condenado ali
mesmo.
Como os responsáveis pela execução têm uma certa noção de dever,
eles fazem questão de não levar a pretensa vítima pela rota geralmente
usada por uma vestal a caminho da fonte de água sagrada. No entanto,
Márcia gosta de dar uma chance à sua deusa para exercer clemência e,
como os guardas, também não segue o caminho habitual.
O resultado disso foi que ela avistou Ofella, um senador que tem um
sacerdócio menor do que o que lhe foi concedido por seu patrono, Ceionius.
Em Roma, os sacerdócios são compromissos políticos, algo de que as
vestais não desgostam. Isso ocorre porque as vestais são principalmente
filhas excedentes de famílias altamente aristocráticas e, por consequência,
têm o mesmo interesse pela política que o resto de seu clã. As vestais
participam de vários banquetes oferecidos pelos colégios sacerdotais, e
essas ocasiões são uma grande chance para acompanhar as fofocas políticas.

ESCOLHA DE UMA VESTAL


Mas quanto ao método e ritual para escolher uma vestal, não há,
é verdade, nenhum registro antigo escrito, exceto o de que a
primeira a ser nomeada foi escolhida por Numa. Há, no entanto,
uma lei de Papiano que prevê que 20 donzelas [com idades entre
seis e dez anos] sejam selecionadas no povo a critério do sumo
pontífice, que uma escolha desse número seja feita por sorteio na
assembleia, e que a menina que for sorteada seja “tomada” pelo
sumo pontífice e passe a pertencer a Vesta.
Mas essa distribuição de acordo com a lei de Papiano costuma
ser desnecessária, no presente. Porque, se algum homem de
nascimento respeitável for ao Sumo Pontífice e oferecer sua filha
ao sacerdócio, contanto que se considere sua candidatura sem
violar qualquer exigência religiosa, o Senado concede a ele
isenção da lei de Papiano.
AULUS GELLUIS, Attic nights 1.12 (tradução para o inglês de Loeb, ed. 1927.)

Num desses banquetes, o engordurado Ofella tentou subornar,


persuadir e ameaçar Márcia a afirmar que um certo tribuno iniciante tinha
feito avanços impróprios sobre ela. Como essa acusação, se feita por uma
virgem vestal, teria levado um homem inocente a ser açoitado até a morte
no Fórum, Márcia se recusou indignada. Então, o senador insinuou que ele
mesmo poderia fazer a acusação e alegar que o envolvimento foi
consensual.
Essa é uma ameaça terrível com a qual todas as vestais convivem. Sua
virgindade é sagrada para a Deusa, e, se uma vestal é impura, Roma pagará
com fogo, fome, terremoto ou a destruição de seus exércitos. Até mesmo
uma ex-virgem vestal é sagrada, por isso é proibido executá-la. Nem ela
poderia ser enterrada dentro da cidade (porque havia manchado sua
vocação) ou fora dela, porque ainda é uma vestal. Portanto, ela seria
enterrada dentro das muralhas da cidade. E como ninguém tem permissão
para matar uma vestal, ela seria enterrada viva. Na verdade, seria forçada a
descer uma escada para um pequeno quarto esculpido nas paredes. Ali, com
água, uma lamparina e uma única refeição, ela seria sepultada e abandonada
para morrer de fome.
Então, não, Márcia não gosta de Ofella. Ela muitas vezes se pergunta
se, caso Ofella tivesse cumprido sua ameaça, a Deusa a defenderia como
defendeu a Virgem Tuccia vários séculos atrás. Falsamente acusada, Tuccia
provou sua inocência levando água ao santuário de Vesta. No entanto, ela
tirou a água do rio Tibre, em vez da fonte sagrada, e, em vez de urnas, usou
a peneira com que as vestais refinavam a farinha sagrada usada nos
sacrifícios. (Essa farinha é chamada de mola, e é por isso que as vítimas
oferecidas em sacrifício a um deus são imoladas.)
VIRGEM VESTAL EM BAIXO-RELEVO DO SÉCULO I.
MORTE DE UMA VESTAL IMPURA
Mas aquela que quebrou seu voto de castidade é enterrada viva
perto da Porta Colina. Aqui uma pequena elevação de terra se
estende por alguma distância ao longo do interior da muralha
da cidade; a palavra latina para isso é “agger” [vala]. Embaixo
dela é construída uma pequena câmara, ligada ao alto por
degraus. Nela são colocados um divã com suas cobertas, uma
lamparina acesa e pequenas porções do que é necessário para
viver, como pão, uma tigela de água, leite e óleo, como se assim
se absolvessem da decisão de destruir pela fome uma vida que
havia sido consagrada aos mais altos serviços da religião.
Então, a culpada é colocada em uma liteira, sobre a qual
cobertas são postas e amarradas com cordas para que não se
possa ouvir nem mesmo um grito vindo de seu interior, e levada
através do Fórum. Todas as pessoas ali abrem caminho
silenciosamente para a liteira lixo, e a seguem sem emitir um
som, em uma terrível depressão da alma. Nenhum outro
espetáculo é mais terrível, nem qualquer outro dia traz mais
melancolia para a cidade do que esse.
PLUTARCO, Vida de Numa 10 (tradução para o inglês de Loeb ed. 1914)

Graças à deusa Vesta (e talvez também à tensão na superfície da água


e aos furos finos da peneira), Tuccia não derramou uma gota e, dessa forma,
foi isentada de culpa. No entanto, a falta de castidade é algo de que as
vestais são acusadas de maneira rotineira sempre que algo dá errado para
Roma. Em todos os mil anos de história de Roma, embora calúnias e
rumores abundassem, apenas dez vestais foram acusadas formalmente de
não serem castas. No entanto, a contagem sobe para 11 se lembrarmos que a
instituição das virgens vestais é mais antiga que a cidade de Roma, e a mãe
de Rômulo e Remo — os fundadores da cidade — era ela mesma uma
virgem vestal que alegava ter sido estuprada pelo deus da guerra, Marte.
Outra ocasião em que as vestais são suspeitas de terem causado
prejuízo a Roma por seus malfeitos é quando se acredita que uma delas
deixou a chama sagrada de Vesta apagar. Esta é, de fato, uma infração da
qual as vestais são mais frequentemente culpadas.
O número de virgens vestais é fixado em seis, e o fogo no altar não é
grande. Ele deve ser alimentado regularmente em intervalos curtos, e
apenas as vestais podem fazer o trabalho. Isso, portanto, toma muito tempo
de uma vestal. A tarefa é bem fácil durante o dia, quando um turno de seis
horas pode ser dedicado à leitura de um pergaminho, à conversa com
colegas que aparecem e, de vez em quando, à missão de adicionar mais
alguns gravetos ao fogo.
Porém, é diferente quando a vestal tem que cumprir um turno de
serviço na calada da noite, talvez depois de um dia emocionante no Coliseu,
ou talvez até depois de assistir aos gladiadores nos Jogos de Inverno da
Saturnália (as vestais têm assentos reservados para elas na primeira fila).
Márcia está longe de ser a única vestal que, sentada no cômodo abafado,
cochilou, acordou e foi tomada por um horror frenético ao encontrar o fogo
sagrado reduzido às últimas brasas brilhantes.
O Pontifex Maximus supervisiona isso. Bem, hoje em dia, o Pontifex
Maximus é o sumo sacerdote de Roma e o imperador, então, ele não
verifica pessoalmente, mas envia seus assistentes. Se o fogo for descoberto
apagado, então o imperador tem o dever de dar uma chicotada na vestal.
Antes disso, ele tem que reacender o fogo pessoalmente, esfregando dois
pedaços de madeira retirados de felix arbor — uma árvore sagrada. Esse é
um trabalho demorado, frustrante e meticuloso que, sem dúvida, confere
força extra ao braço imperial quando chega a hora da parte da chicotada do
ritual de redenção.
Portanto, Márcia trocou alegremente a obrigação de cuidado do fogo
pela de ir buscar água. Urnas de água não apagam, e, se as derrubar, outra
viagem à fonte sagrada resolve o problema. Claro, a tarefa também envolve
pequenas cerimônias e orações para a ninfa Egeria (a quem pertence a
fonte), e isso deve ser feito sem erros todas as vezes. No entanto, Márcia é
uma vestal do segundo estágio, e esses pequenos rituais agora já fazem
parte de sua natureza.
A carreira de uma vestal dura 30 anos e tem três etapas. Na primeira,
que dura dez anos, a vestal é uma estudante, e, se isso parece muito tempo
para quem olha de fora, certamente não é assim para a aluna, que aprende
textos arcanos, rituais estranhos e uma quantidade surpreendente de leis
nesse período. (Ao contrário da maioria das mulheres, as vestais podem
testemunhar no tribunal e, muitas vezes, são solicitadas a manter sob seus
cuidados contratos, testamentos e outros documentos vitais. Além disso, um
depoimento jurado perante uma vestal é tão válido quanto um testemunho
juramentado em um tribunal.)
Os próximos dez anos da carreira de uma vestal são dedicados à
prática do que ela aprendeu. Nos últimos dez anos, ela ensina esse
conhecimento adquirido dolorosamente para a próxima geração. Depois
disso, está feito. A vestal cumpriu seus deveres e, se quiser, pode passar os
próximos 30 anos aproveitando a vida, enquanto trabalha várias frustrações
reprimidas.
Na realidade, nenhuma vestal faz isso. Muito poucas chegam a se
casar. De maneira geral, a vestal aposentada tem 40 e poucos anos, é rica,
independente e de família aristocrática. Por que uma pessoa assim — entre
as mais livres de Roma — ia querer subordinar-se a um marido é algo que
Márcia não consegue entender. A maioria das ex-vestais são da mesma
opinião, então, geralmente permanecem solteiras e continuam vivendo no
santuário da vestal. Se têm amantes, é tudo muito discreto, e os encontros
acontecem em outros lugares.
Além disso — alguém está contando — as estatísticas também não
parecem boas para futuros maridos. Por alguma razão, os maridos das
vestais que se casam raramente duram mais que um ou dois anos. Os
devotos acreditam que até Vesta, a gentil deusa do lar, tem ciúmes de
compartilhar com os mortais aquelas que um dia pertenceram apenas a ela.
Márcia, que está bem ciente de certas agitações ilícitas dentro de seu
próprio corpo, suspeita em sigilo que, no caso de alguns desses maridos
prematuramente falecidos, uma das causas pode ter sido exaustão.
A carruagem segue em direção à Porta Capentiana (pode ser luxuosa,
mas, como todos os veículos romanos de qualquer tipo, também tem uma
suspensão tão ruim que as almofadas grossas são tanto necessidade quanto
luxo). Márcia reflete tranquilamente sobre a estranha combinação de
circunstâncias envolvida nisso, uma virgem profissional indo buscar água
da nascente de uma deusa ninfa que é adorada principalmente no contexto
da concepção e gravidez. (Egeria também adora legislação urbana,
profecias e rituais da mãe Terra, então, como deusa, ela tem um portfólio
bem diversificado.)
A relação de Egeria com as vestais remonta, supostamente, ao
segundo rei de Roma, o Rei Numa Pompílio. Ele era um tipo cerebral,
relativamente pacífico, que gostava de relaxar em bosques de carvalhos. Em
um desses bosques, regado pela fonte que Márcia vai visitar, ele conheceu a
ninfa Egeria e a amizade logo floresceu e se tornou um relacionamento
mais profundo. Como um rei estava simbolicamente ligado ao crescimento
e à fertilidade do estado, deduz-se que esse crescimento e essa fertilidade
também tinham que ser compartilhados com o estado por meio de sua deusa
do lar e da terra, Vesta. Mais uma vez, de acordo com a lenda, foi Numa
quem fundou o Santuário de Vesta, transferiu as vestais para lá e deu a elas
a custódia da fonte onde ele conheceu Egeria.

GUARDIÃS DA CHAMA
Ao assumir o governo, Numa não interferiu nos lares individuais
das curiae [conselhos públicos ou religiosos], mas construiu uma
comum a todas elas no espaço entre o Monte Capitolino e o
Palatino (pois esses montes já haviam sido unidos por uma única
muralha dentro da mesma cidade, e o Fórum, no qual o templo
foi construído, fica entre eles), e ele decretou, de acordo com o
costume ancestral dos latinos, que a guarda das coisas sagradas
deveria ser confiada às virgens…
E eles consideram o fogo consagrado a Vesta, porque essa
deusa, sendo a terra e ocupando o lugar central no universo,
acende os fogos celestiais a partir dela mesma. Mas há quem
diga que, além do fogo, há algumas coisas sagradas no templo
da deusa que não podem ser reveladas ao público, das quais
apenas os pontífices e as virgens têm conhecimento.
DIONÍSIO DE HALICARNASSO, Roman antiquities 2.66 (tradução para o inglês
de Loeb 1937.)

É um trabalho árduo carregar as urnas cheias de água de Vesta de volta


à carruagem, mas Márcia considera esse um preço pequeno a pagar por
alguns minutos de solidão na tranquilidade do bosque, onde os sons
clamorosos da cidade são filtrados pelo sussurro da brisa nos carvalhos e o
suave avanço do riacho contra as rochas. Agora, com as urnas cheias e
fechadas, Márcia pendura seu manto sobre a stola de linho e se prepara para
a viagem de volta para casa.
A stola é uma vestimenta simples que era popular no início de Roma.
A pressão social insiste para que as vestais se comportem com dignidade e
se vistam com simplicidade, mas com elegância. Quando levanta um braço
para encontrar apoio e subir na carruagem, a vestal Márcia não sabe que,
em 2 mil anos, uma estátua enorme de uma mulher coroada, com a mesma
roupa e a mesma pose estará diante do porto de Nova York segurando
erguida a Tocha da Liberdade.
HORA III
(9h–10h)

O JURISTA É CONSULTADO SOBRE


UM CASO

A terceira hora é testemunha de advogados ativos.


(MARCIAL, Sátiras 4.8.2)

Embora sejam só nove da manhã, agora é metade do expediente em Roma.


A carruagem da vestal Márcia avança lentamente à medida que as ruas se
tornam cada vez mais cheias de gente. Os romanos não são apenas
madrugadores, eles vivem ao ar livre, basicamente. Para alguns romanos
abastados, a “casa” costuma ser pouco mais do que um pequeno cubículo
para dormir e guardar roupas.
Jantar e socializar com os amigos é algo que se faz em muitos
restaurantes e tavernas baratos que podem ser encontrados no andar térreo
de blocos de apartamentos, ou na mesma rua. O banho é tomado nos banhos
públicos, e os lavatórios são instalações comunitárias, geralmente em volta
da base da maioria dos blocos de apartamentos. O entretenimento é
fornecido pelo teatro de rua e, para os mais exigentes, pelos participantes de
julgamentos criminais.
Como se poderia esperar de pessoas cuja vida é, em grande parte,
vivida em público, os romanos são altamente teatrais e amam o dramático.
A publicidade de um bom processo judicial permite que os participantes se
dediquem a uma performance da vida real. Os julgamentos são públicos, e,
como até um caso de pequeno furto — como de um manto — pode resultar
em punição draconiana, o histrionismo dos réus, seus advogados e até do
juiz proporciona um espetáculo intrigante e autêntico para os espectadores.
Um ladrão condenado pode acabar na arena usando a toga molesta —
uma túnica coberta de material inflamável que é incendiada para o deleite
do público. Daí a sinistra piada romana: “Um ladrão roubou uma túnica.
Para esconder a estampa, ele a manchou com piche”.
Não é surpresa, então, que qualquer acusado de um crime procure a
melhor representação legal que puder encontrar. No entanto, não é tão
simples assim. Para começar, aqueles que representam o acusado em um
processo judicial romano não são advogados profissionais. Bem, não
oficialmente, de qualquer maneira. Eles são amadores, supostamente, na
medida em que fingem ser amigos ou colegas do acusado, e certamente são
amadores no sentido de que não são pagos por seu trabalho. (É claro que, na
realidade, um acusado terá pedido a seu patrono que providencie o melhor
defensor possível, e um patrono pode participar de um julgamento, caso em
que o réu é seu cliente em todos os sentidos da palavra.)
Em segundo lugar, o processo judicial romano mediano deve começar
ao nascer do sol e terminar antes do anoitecer. Isso não dá muito tempo à
acusação ou à defesa, então, diversas vezes muitos fatos do caso são
acordados de antemão, e ambas as partes se concentram em convencer o
júri apenas sobre os detalhes contestados.
Há muito interesse no caso que está sendo ouvido na basílica, pois
envolve um escândalo bem conhecido. Uma mulher escrava envenenou a
amante de seu senhor — um crime que ela admite, mas afirma que cometeu
sob as ordens do senhor. De acordo com a escrava, ela agiu por medo dos
terríveis castigos que sofreria se o desobedecesse. O senhor nega ter dado
essa ordem. Afirma que a escrava já foi sua concubina e, quando ele a
abandonou por uma mulher livre, ela envenenou a nova amante por ciúmes.
Essa defesa foi amplamente refutada, e agora o senhor está em julgamento
por incitação ao assassinato.
O mestre em questão é um comerciante muito conhecido, e o caso
atraiu uma multidão de espectadores. A multidão lotou a basílica, onde já
não havia muito espaço disponível, mesmo depois que uma turma de alunos
foi posta para fora sem nenhuma cerimônia. Além do pretor (o magistrado)
e seus assistentes, o acusado e seus amigos, as testemunhas e o júri, também
está presente a envenenadora confessa e os guardas que a acompanham.
O resultado é que o público transbordou pela abertura frontal da
basílica para a rua, e ali impedia tanto a carruagem de Márcia, a vestal, de
retornar com sua água, quanto a de Caio, o Jurista, que foi convocado pelo
pretor. Como jurista, Caio é membro da burocracia imperial e, portanto,
sujeito às ordens do pretor. Isso muitas vezes significa que ele é chamado
em cima da hora em seu gabinete lotado de pergaminhos e convocado a
prestar consulta em um caso como esse.
Pelo menos, hoje o dia está ensolarado. No entanto, Caio inveja alguns
de seus predecessores em sua função, homens como Mucius Scaevola, que
eram amadores ricos e aristocráticos. Seu interesse pelo direito era
puramente acadêmico. Eles não eram retirados de seus gabinetes sem aviso
prévio para participar de julgamentos reais envolvendo pessoas reais.
Embora Caio ame a lei, ele prefere interagir o mínimo possível com os
humanos aos quais ela é aplicada. Certamente, não gosta de abrir caminho
em meio a uma multidão de cotovelos pontudos, com pessoas
constantemente empurrando-o e ameaçando derrubar os pergaminhos de
seus braços.
Caio esperava bastante ansioso por uma manhã tranquila lendo as
cartas legais dos imperadores Augusto e Tibério (libelli), e tentando
estabelecer um conjunto de princípios jurídicos extraídos das respostas do
imperador aos pedidos de julgamento sobre assuntos que afetam a todos, de
particulares a cidades ou mesmo nações inteiras. Agora, em vez de passar
uma manhã tranquila com a correspondência de um imperador morto, ele
terá que dar sua opinião sobre algum escândalo medonho e lúgubre de um
caso enquanto o grandão sujo e boquiaberto observa e grita conselhos não
solicitados e nada profissionais.
A BASÍLICA EM POMPEIA. O ASSENTO DO JUIZ É UM PEDESTAL ELEVADO,
ACESSÍVEL POR UMA PEQUENA ESCADA DE MADEIRA.

O pretor tentava parecer impassível e estoico enquanto esperava a


chegada de Caio, mas a verdade é que está sentado em sua cadeira curule
com irritação crescente. Assim que vê o jurista se debatendo para atravessar
a multidão, ele sinaliza para seus lictores abrirem caminho para Caio até o
tribunal. Caio é capaz de compreender parte da irritação do pretor. A
cadeira curule pode ser o símbolo da majestade dos magistrados superiores
de Roma, mas não é uma cadeira confortável para se sentar por muito
tempo. Não foi projetada para isso. Pelo contrário, a cadeira estreita, sem
encosto e com assento rígido foi projetada para incentivar o ocupante a
concluir os negócios do estado o mais rápido possível.
O pretor está, francamente, cansado de ouvir os lamentos histéricos
das filhas do acusado, levadas ao tribunal justamente para esse fim. Com os
cabelos soltos e desgrenhados e os rostos adolescentes manchados de
lágrimas, as meninas se agarram à toga do pai e imploram ao júri que não o
condene e as deixe órfãs para enfrentar um mundo cruel e indiferente.
Como condiz com a ocasião, a toga do pai é preta (a cor do luto, e essa
toga geralmente é alugada para funerais e não para os réus em um processo
judicial). O pai está com a barba por fazer, mostrando ao mundo que está
perturbado demais para se permitir chegar perto de uma navalha, e lágrimas
escorrem por seu rosto enquanto ele suplica aos amigos, colegas e até
transeuntes aleatórios para cuidar de suas preciosas filhas se o julgamento
for contra ele. Isso já está acontecendo há uma hora, e, embora os
espectadores pareçam adorar, os funcionários da corte estão começando a
dar alguns sinais de cansaço.
Isso nem é o julgamento — é a preliminar de um julgamento. O pretor
está lá porque ele, em sua pessoa aterrorizante, é literalmente a lei. Sua
primeira tarefa quando nomeado pretor urbano foi anunciar quais leis
incorporadas pelos precedentes estabelecidos por seus antecessores ele
seguiria. No julgamento de hoje e durante o restante do ano no cargo, ele
fará novas leis para as próximas gerações. Como o pretor urbano não é
advogado, ele consulta com muita proximidade juristas como Caio e seus
colegas, antes de fazer qualquer coisa irrevogável. Além do mais, o
imperador Adriano tem um grande interesse em questões legais, e o
ambicioso aristocrata agora na cadeira do pretor não quer ser visto como
um incompetente por seu imperador.

Os magistrados do povo romano têm o poder de promulgar


éditos, mas a autoridade máxima pertence aos éditos dos dois
pretores, o urbano e o estrangeiro, cuja jurisdição compete aos
governadores das províncias; bem como aos éditos dos curule
Ædiles, cuja jurisdição os Quæsteroes administram nas
províncias do povo romano, pois não são nomeados nas
províncias do imperador e, portanto, o último édito não é
publicado nessas províncias.
As respostas dos juristas são as decisões e opiniões daqueles que
estão autorizados a definir a lei.
CAIO, 1.6–7

Foi por isso que ele mandou chamar Caio. A primeira coisa que ele
tem que decidir é se o acusado é culpado de envenenamento por atribuição
ou se, ao realizar um ato criminoso, a escrava foi além dos limites de sua
obrigação. Há algumas coisas que não se pode forçar nem mesmo um
escravo a fazer. Se este for um desses casos, o acusado não pode ser
responsabilizado pelas ações de sua escrava, mesmo que tenha ordenado
que ela cometesse o crime.
As coisas eram mais fáceis nos dias da República Romana. Naquele
tempo, um escravo era um escravo — não mais do que uma “ferramenta
falante”, para usar as palavras de Cato, o Velho. No entanto, no mundo mais
civilizado do Império, a lei reconhece que a escravidão é uma condição
antinatural, e os sujeitos a ela — por nascimento ou infortúnio — são, no
entanto, tão humanos quanto qualquer outro. Portanto, todos os tipos de
questões legais se desenvolveram em torno dos direitos dos escravos e seu
relacionamento com seus senhores. Por exemplo, um senhor pode ser
forçado a vender um escravo se, em julgamento, for decidido que ele o
tratou de maneira bárbara, e um senhor que abandona um escravo doente
para economizar o custo do tratamento médico é julgado autor de alforria
por negligência. Se o escravo se recupera, ele o faz em liberdade.
Neste caso em particular, pelos cálculos do pretor, a escrava sabia que
receber ordens para envenenar alguém era flagrantemente ilegal. Portanto
— já que a lei hoje em dia reconhece que os escravos são seres humanos
racionais e não ferramentas —, a resposta adequada deveria ter sido
denunciar seu senhor às autoridades. Esse princípio — de que um escravo
pode denunciar um senhor que está cometendo um crime grave — remonta
à primeira República, quando um escravo chamado Vindictus denunciou
seu senhor por traição.
Esse escravo foi julgado, e a conclusão foi de que ele agiu
corretamente (e é por isso que, em milênios futuros, um homem que
provasse ter agido corretamente seria decretado “vingado”). Esse
precedente, avalia o pretor, significa que, se a escrava presente diante dele
hoje prosseguiu com a matança, não foi por ameaças, mas porque
envenenar a amante do mercador estava totalmente de acordo com suas
próprias inclinações.
Portanto, foi uma ação voluntária. Contudo, os acusadores — a família
do falecido — também estão presentes e o confrontam severamente. O
pretor quer a opinião de Caio antes de decidir que um processo por
envenenamento por atribuição é inadmissível por lei.
É previsto pela Lex Ælia Sentia que os escravos que foram
acorrentados por seus senhores, ou foram marcados, ou foram
submetidos à tortura por algum delito e condenados, ou foram
entregues para lutar com outros ou com animais selvagens, ou
lutar com gladiadores, ou lançados na prisão e depois libertados
pelo mesmo ou por outro senhor, ficarão livres e pertencerão à
mesma classe dos inimigos que se renderam incondicionalmente.
INSTITUTOS DE CAIO 1.13

Sua cautela é especialmente necessária neste caso, porque o homem


que processa o comerciante é conhecido por ter uma boa compreensão da
lei. Embora aja aparentemente como amigo da família do falecido, o pretor
suspeita que o promotor nunca conheceu nenhum deles antes do
envenenamento. Ele é, no entanto, um conhecido rival do comerciante no
cais, e nada o deixaria mais satisfeito do que sufocar um concorrente.
Esse estrangulamento, aliás, seria literal. Se o pretor permitir que o
caso vá em frente e o comerciante for considerado culpado, a sentença de
morte será aplicada automaticamente. Por ser um cidadão romano, o
mercador será poupado das punições extravagantes aplicadas na arena ou de
uma morte horrível por crucificação. Em vez disso, o prisioneiro seria
levado para as celas do Tullianum, que é a prisão de Roma, e lá seria
rapidamente, e sem nenhuma cerimônia, estrangulado por um carrasco. Os
escravos então colocariam um gancho no cadáver e o arrastariam até o
Tibre, onde seria jogado no rio como lixo. Essa perspectiva sombria
certamente é suficiente para deixar as filhas do mercador histéricas.
Caio chegou em meio a um burburinho especulativo entre os
espectadores. Ele já está mais ou menos ciente dos fatos do caso, e o pretor
rapidamente o informa sobre a posição legal adotada pela acusação e pela
defesa. O jurista concorda com a opinião do pretor de que os escravos não
podem ser ordenados por seus senhores a cometer crimes. Caso contrário,
Roma cairia rapidamente na anarquia quando os senhores ordenassem que
seus escravos roubassem, espancassem e matassem outros à vontade,
seguros de que poderiam repudiar seus escravos, se fossem pegos.
Mas, talvez, pergunta o pretor, aplique-se o contrário. O senhor está
efetivamente in loco parentis — em posição de responsabilidade — por seu
escravo e, portanto, é ipso facto pessoalmente responsável pelas ações desse
escravo. Caio balança a cabeça decididamente. Em Roma, os escravos têm
muita liberdade de movimento para que essa abordagem seja praticável.
Caio sabe de escravos que dirigem negócios, têm os próprios escravos e, às
vezes, não veem seus senhores de uma semana para outra. De fato, há todo
um corpo de leis comerciais estipulando quais são as responsabilidades dos
senhores, se uma empreitada comercial dirigida por um escravo der errado,
e que tipos de contratos um escravo pode assinar em nome de seu senhor
sem que o senhor sequer saiba disso. (Caio espera reunir esse corpo de leis
em um único texto — assim que encontrar tempo.)
O pretor se esforça para parecer digno ao mesmo tempo em que se
contorce para aliviar a pressão em suas nádegas dormentes. A cadeira está
funcionando de acordo com suas especificações, e quanto mais cedo o
pretor puder se levantar, mais feliz ele será. Ele murmura uma sugestão, e
Caio concorda com a cabeça. Na verdade, o pretor apresentou a solução que
o próprio Caio ia fazer, e precedentes adequados podem ser encontrados nos
pergaminhos que ele carrega. No entanto, o jurista sente que uma longa
exposição jurídica sobre o assunto não será bem-vinda neste momento.
Ele se afasta enquanto o pretor entrega sua praescriptio. Esta é a
fórmula — um conjunto de pontos legais que serão aplicados ao caso,
quando ele for a julgamento. Os trabalhos do pretor nos estágios
preliminares do caso são nomear um juiz, definir uma data para o
julgamento real e entregar sua fórmula. Os dois primeiros itens foram
tratados enquanto se esperava Caio, de modo que resta apenas a
praescriptio. Até os espectadores se calam quando o pretor faz seu anúncio.
“É minha decisão, de acordo com o julgamento de meus
predecessores, que, em casos como, este ninguém pode atuar como
outorgante. A envenenadora escolheu matar a vítima, em vez de denunciar
seu senhor, então o crime é apenas dela.” Ele faz uma pausa para deixar os
aplausos e assobios consequentes morrerem.
“No entanto, também é meu julgamento que o acusado pode ser
acusado de coniuratio — uma conspiração criminosa para envenenar.
Portanto, se ficar provado, a contento do júri, que o acusado foi cúmplice
do crime, seja incentivando seu cometimento, seja adquirindo o veneno,
seja proporcionando à envenenadora acesso à vítima, ele é cúmplice,
merecendo a morte, e o juiz assim deve decidir.”
Apressadamente, Caio se inclina para frente e murmura com urgência
no ouvido do pretor. Mesmo perto, ele tem que levantar a voz para ser
ouvido em meio aos lamentos das filhas adolescentes. O pretor lança um
olhar azedo a Caio e pede silêncio. “Após a consulta, altero minha fórmula
para esclarecer que deve ser provado que, se o acusado permitiu o acesso à
vítima, isso foi feito conscientemente para fins de envenenamento. Permitir
o acesso sem o conhecimento da intenção da envenenadora não é motivo
para considerar o acusado culpado. Satisfeito?”
Esta última palavra é murmurada pelo canto da boca, enquanto o
pretor olha para Caio. O jurista assente distraído. Ele já está juntando seus
pergaminhos e se preparando para seguir o rastro do pretor, deixar a
multidão e retornar agradecido às cartas de Augusto.

A DESCOBERTA DOS INSTITUTOS


O conjunto de pareceres jurídicos compilados pelo jurista Caio foi um dos textos mais
influentes do direito romano. Este texto (chamado de Institutos de Caio) acabou sendo
substituído pelo Código de Justiniano, um volume de peso que se tornou a base de grande parte
do direito europeu. Presume-se que os Institutos tenham sido perdidos para sempre, e o texto
realmente ficou perdido por 1.500 anos.
Então, no início do século XIX, um estudioso estava lendo um texto antigo das obras de São
Jerônimo em uma biblioteca italiana. Ele observou que o texto havia sido escrito em
pergaminho, do qual um texto anterior havia sido apagado. Felizmente, sob a luz certa, esse
texto pôde ser recuperado, e os escritos do jurista Caio voltaram a ver a luz do dia.
HORA IV
(10h–11h)

A ADOLESCENTE ROMPE COM SEU


NAMORADO

Agora, lamento que sua saliva suja tenha poluído os lábios


imaculados de uma garota pura.
CATULO, Carmina 78b

“Olhe para onde vai, garota estúpida!”


Miyria mal ouve o comentário quando se choca com um oficial da
corte carregando uma braçada de pergaminhos. Ela se levanta e corre, e sua
serviçal cacareja para si mesma enquanto levanta as saias de sua stola para
correr atrás da menina, que é sua responsabilidade.
Elas nem deveriam estar no julgamento do processo, de qualquer
maneira. Miyria e a serviçal estavam escolhendo vegetais no Fórum
Holitorium, quando Miyria decidiu impulsivamente ir assistir ao julgamento
do caso em que Cerinthus, o amor de sua vida, estaria presente com o
pretor. (Seu nome não é realmente Cerinthus — isso é um codinome.
Cerinthus é, na verdade, Marcus Albinus, um dos escrivães assistentes do
pretor. Miyria usa um codinome porque, se o pai descobrisse sobre seu
relacionamento com o garoto, as coisas poderiam ficar difíceis para ele.)
Não pode acreditar com que intensidade o desejo por você me
dominou. Esse anseio é quase inteiramente causado pelo amor e
pelo fato de raramente nos separarmos. Agora acontece de eu
passar a maior parte da noite acordado pensando em você e,
durante o dia, meus pés me levam, sem que eu perceba, ao seu
quarto. Claro que você não está lá, e volto triste e com o
coração partido, como um amante rejeitado.
Só fico livre dessa tortura quando me exauri no trabalho, nos
casos legais e nos casos que incomodam meus amigos. Então,
você pode imaginar como é minha vida, quando meu único
consolo está na labuta e meu único alívio é a miséria e as
ansiedades dos outros.
PLÍNIO para Calpúrnia, Cartas 74

Não que ainda exista uma chance de isso acontecer. Enquanto o pretor
esperava que alguns documentos ou uma testemunha aparecessem,
Cerinthus escapuliu de seu posto e caminhou para a multidão que se reunia
ao redor da basílica. O coração de Miyria palpitou quando ela pensou que
seu Cerinthus a tinha visto e que passaria alguns momentos roubados em
sua companhia. Enquanto ela abria caminho à força entre a multidão para
encontrá-lo, Cerinthus foi interceptado por uma ruiva que usava um vestido
curto.
Intrigada, Miyria parou, ignorando a pressão em seu cotovelo,
enquanto a serviçal tentava puxá-la para longe dali. Quaisquer dúvidas
quanto ao relacionamento entre Cerinthus e a garota logo foram
descartadas. Cerinthus deu uma rápida olhada para a basílica, onde o pretor
estava em intensa consulta com algum oficial, e depois puxou a jovem ruiva
para trás de uma pilastra para um beijo profundo e lascivo, que foi
correspondido de todo coração.
Miyria não tinha ideia de quanto tempo ficou ali parada, atordoada.
Em algum momento, o pretor deixou a basílica, e seu Cerinthus deu um
último abraço e uma apalpada na garota ruiva, depois correu atrás de seu
empregador. Nesse ponto, meio cega pelas lágrimas, Miyria havia fugido da
cena de traição, esbarrando no jurista ao sair correndo.
Sua casa fica no cruzamento da rua da ponte Aemilian, não muito
longe do Porticus Octaviae, onde a audiência estava acontecendo. Então,
em questão de minutos, Miyria passou correndo pelo porteiro assustado,
fugiu para o quarto, jogou-se de bruços na cama e agora está chorando
inconsolavelmente no travesseiro. Vários minutos depois, ouve-se uma
respiração ofegante na porta quando a serviçal chega, verifica o estado da
jovem que é sua responsabilidade e, com sabedoria, retira-se.
Depois de um tempo, Miyria se recompõe. Ela está certa de que seu
relacionamento com aquele porco traidor acabou — sem dúvida. Sua criada
estava certa ao dizer que ela, filha de um rico comerciante, é boa demais
para um mero escrivão legal. E que ele, sem se importar com os riscos que
ela havia assumido, ou com o fato de ela ter se disposto a ignorar a
diferença de status entre eles, a tenha desrespeitado tanto — bem, isso dói
quase tanto quanto a traição. Ela sabe agora que nunca mais o verá. Ele vai
ficar esperando uma mensagem que seria levada à tarde por sua criada
complacente. Bem, que essa mensagem seja tão dolorosa quanto possível
— mas também digna, para mostrar a Cerinthus que não foi uma prostituta
de rua que ele perdeu, mas uma dama.

Até agora, seu aspirante a amante, minha musa lhe disse onde
procurar a presa e como armar suas armadilhas. Agora, a
mulher que você selecionou deve ser cativada e conquistada.
Então, sedutores em todos os lugares, prestem atenção no que
tenho a dizer agora, porque esta é a parte mais importante da
minha lição…
Antes de mais nada, tenha certeza disso. Não há mulher que você
não possa conquistar, se tiver certeza de que é capaz de
conquistá-la. Os pássaros prefeririam parar de cantar na
primavera, o gafanhoto preferiria ficar em silêncio no verão, e
uma lebre se viraria e perseguiria os cães, mas uma mulher não
resistiria ao doce cortejo de um jovem amante.
OVÍDIO, Ars amatoria (A arte do amor)
Felizmente — tudo sem o conhecimento de Cerinthus —, Sulpícia
será a guia dessa jovem, pois ela foi a fonte das cartas amorosas que ela
havia enviado anteriormente. Sulpícia já está morta há várias gerações, mas
o bem mais precioso de Miyria é uma cópia das Elegias de Tibulo e
Propércio, em que os poemas de Sulpícia são preservados. Sulpícia viveu
no reinado do imperador Augusto, mas tinha a idade de Miyria quando
escreveu sua poesia. Dezesseis anos é uma idade tardia para uma garota
aristocrática romana se casar (muitas se casam aos 13 ou 14), mas a filha de
um comerciante, como Miyria, pode se casar mais tarde, na idade avançada
de 18 anos. As duas meninas conheceram a excitação sombria do romance
proibido e a frustração com uma geração mais velha que tentava controlar
cada movimento seu.

GAROTA VESTINDO UM QUÍTON GREGO JOGANDO BUGALHA. ATUALMENTE NO


MUSEU BRITÂNICO, LONDRES.
ROMANCE (DO PONTO DE VISTA DOS PAIS)
Você me pediu para procurar um marido para sua sobrinha… Eu
teria que procurar por muito tempo, se Minicius Acilianus não
estivesse disponível… Sua aparência geral é de uma beleza
nobre, um ponto que não deve ser esquecido, porque uma menina
deve encontrar alguém bonito em troca de sua virgindade.
Já que é para você que estamos procurando um genro, eu
provavelmente não deveria falar nada sobre dinheiro, mas
qualquer outra pessoa gostaria de saber que ele é extremamente
rico… Se quiser pensar no bem-estar dos filhos e seus
descendentes, então, na verdade, quem procura um marido deve
levar isso em consideração.
PLÍNIO para Junius Mauricius, Cartas 1,14

Hic animum sensusque meos abducta relinquo, arbitrio quamvis non


sinis esse meo! (Ele sabe como me sinto sobre esse sequestro, mas ignora a
vontade do meu coração!)7 Quando Miyria leu esse protesto amargo sobre
ser levada de Roma em seu aniversário, para tão longe do namorado,
identificou-se imediatamente com uma garota que, como ela, sofre
restrições constantes sobre onde pode ou deve ir e quem ela vê ou não vê.
Um rubor quente percorre suas bochechas quando ela se lembra da
última carta para Cerinthus, extraída inteiramente dos escritos de Sulpícia.
No entanto, não de uma maneira realmente desonesta. Acontece que
Sulpícia conseguiu dizer o que queria melhor do que ela mesma teria
conseguido (Sulpícia 6):

Minha luz, talvez você não me ame,


Como acho que amava alguns dias atrás,
Se alguma vez na minha jovem vida,
Eu já fiz algo tão estúpido,
Quanto deixá-lo lá sozinho —
Saiba que isso foi feito,
Para esconder minha luxúria ardente.
A próxima carta que Miyria planejara enviar — assim que as viagens
do pai o tivessem tirado de Roma, e sua escandalizada criada pudesse ser
persuadida a fazer vistas grossas — deveria ter tido como modelo o
primeiro dos poemas de Sulpícia:

Vênus manteve suas promessas


E trouxe amor ao meu coração
Que minha história de felicidade seja revelada
Para aqueles que sentem que perdi minha parte
Devo entregar esta carta a alguém
Quem vai tocá-la antes que ele mesmo a toque?
Mas há outro tipo de vergonha
Quando você ajusta as aparências à sua reputação.
Então que isso seja dito a todos…

Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Miyria sussurra para si mesma a


última frase há muito tempo memorizada: cum digno, digna fuisse ferar —
com um homem digno, fui uma mulher digna.
Ela tinha tudo planejado. Com a consumação de seu amor, ela e
Cerinthus seriam oficialmente um casal. O pai certamente entraria em
erupção quando ela lhe contasse a notícia, mas Miyria sempre foi capaz de
dominá-lo. Ele entenderia quando visse que o amor deles era real e o quanto
fazia sua filha feliz.

Vivamos, minha Lésbia, e amemos!


E sem dar a menor importância
aos murmúrios escandalizados de velhos austeros.
O sol, depois que se põe, vai nascer novamente,
Mas nós, quando nosso breve dia acabar,
Dormiremos na noite eterna.
CATULO, Carmina 5

Então, o relacionamento não seria mais um segredo: Cerinthus se


tornaria Marcus Albinus e, quando os dois se casassem, ele deixaria de
trabalhar para o pretor. Ocuparia seu lugar nos negócios do pai dela como
genro e potencial sucessor. Tudo isso, toda a vida que teriam juntos no
futuro, Cerinthus jogou fora por uma vadia ruiva!
Cuidadosamente, Miyria pega o libellus que havia escondido em seu
quarto na tarde anterior. Agora, em vez da mensagem calorosa e saudosa
que teria enviado ao seu amor, a mensagem será fria, distante — e final. O
libellus é composto por duas tábuas finas de madeira perfuradas duas vezes
de um lado e amarradas com barbante. O lado interno de cada placa é
revestido com uma camada de cera, e Miyria usará sua caneta pontiaguda
para riscar a mensagem na cera. De fato, por escrever suas cartas de amor
na cera, foi essa cera — cerinthus, em latim — que se tornou o codinome
de Albinus. (Outra ideia roubada de Sulpícia.)
Albinus é, na verdade, o tipo de idiota semialfabetizado que nunca
leria poesia por prazer (como seus defeitos parecem claros agora!), então,
não há mal nenhum em extrair toda a mensagem diretamente dos versos de
Sulpícia. O rompimento com o namorado foi refinado e digno, mas
doloroso — exatamente como Miyria quer que seja. Ela começa
pressionando a caneta tão profundamente na cera, que marca a madeira de
trás. Isso nunca vai funcionar. Isso mostra que suas emoções estão fora de
controle. Aquecendo uma lâmina de faca plana e sem fio sobre uma vela,
ela alisa a cera e começa de novo:

Bem, obrigada por me mostrar que você é um traidor,


Pois isso me impediu de fazer papel de boba.
Aquela meretriz provavelmente teceu a própria toga chamativa
Ela a quem você prefere a
Miyria, filha de Miyrius de Mari.
(Estavam um pouco preocupados comigo,
Temendo que eu me casasse com alguém socialmente inferior.)

Miyria releu as linhas. É claro, esse o quarto poema de Sulpícia ao pé


da letra, exceto onde ela substituiu o verso original, “Sulpícia, filha do
Servi”, por “Miyria, filha de Miyrius de Mari”.É uma pena, porque a
Sulpícia Servi Filia original carrega o peso e a grandeza de séculos de
nobreza. Isso é algo que simplesmente não se pode carregar, sendo filha de
um mercador de especiarias. Por outro lado, os versos anteriores são
maravilhosamente maldosos, sugerindo que a amatorix de Cerinthus, sua
mulher secundária, não é apenas da classe trabalhadora, mas uma prostituta
(as únicas mulheres em Roma que usam togas).
No geral, Miyria sente uma certa satisfação sombria quando usa as
pontas do barbante para unir as duas tábuas. Ela imagina o prazer
pretensioso de Albinus ao receber o que ele imagina ser outra doce
mensagem de sua pequena idiota, e seu posterior horror e desespero ao
perceber que a perdeu, finalmente e para sempre.
Então Miyria lembra que, assim como Albinus a perdeu, ela também o
perdeu. Ela se joga no travesseiro e as lágrimas começam de novo.

7 Sulpícia 2,7–8 (N.A.)


HORA V
(11h–12h)

O PEDREIRO TRABALHA EM UMA


TUMBA IMPERIAL

Roma prolonga seus trabalhos até a quinta hora.


MARCIAL, Sátiras 4.8.3

Seus assuntos levaram o pretor ao Campus Martius, e assim também vai a


criada de Miyria para a área de exercícios e recreação de Roma, levando
sua mensagem final para o jovem da comitiva do pretor.
Enquanto caminha pelas ruas movimentadas, a serviçal reflete sobre
como a área para exercícios e recreação encolheu consideravelmente desde
os tempos da República. Onde antes havia campos abertos, agora o espaço é
repleto de monumentos, edifícios, túmulos e templos. Aqui, por exemplo,
ergue-se a esplêndida cúpula do que será um dos presentes duradouros do
imperador Adriano para sua cidade — o Panteão reconstruído, templo de
todos os deuses do Olimpo.

O CAMPUS MARTIUS EM TEMPOS ANTERIORES


Nunca houve construtores mais zelosos do que Pompeu, o Divino
[Júlio] César e os amigos de Augusto… O Campus Martius é
onde se situa a maioria desses edifícios, e a visão com que eles
foram projetados resultou no aumento da beleza natural do
local.
O Campus é notavelmente grande, pois, de fato, corridas de
bigas podem ser realizadas ao mesmo tempo em que eventos
equestres, enquanto o resto da população se diverte rolando
aros, jogando bola e com a luta livre, pois a grama cobre toda a
área durante todo o ano.
Isso, e as obras de arte situadas no topo das colinas acima do
rio que desce até seu leito lembram o cenário pintado de um
teatro, um espetáculo que atrai e cativa o olhar.
ESTRABÃO, Geografia 5.3.8

Sobre o Rio Tibre, uma estrutura ainda mais impressionante em forma


de barril está surgindo. Este não é um templo, mas um túmulo. Adriano um
dia estará morto e enterrado, mas o edifício monumental em que será
sepultado garante que ele nunca será esquecido. A criada olha para a
pequena silhueta de um pedreiro trabalhando em uma das muitas estátuas
no topo da tumba e reflete que, com toda essa construção acontecendo, este
é um bom momento para ser artesão em Roma.
Postumus Gallienus, mestre pedreiro, concordaria — embora também
pudesse resmungar que é possível um homem ter demais até de uma coisa
boa. Suas habilidades são muito procuradas, e “demanda” é a palavra-
chave. Gallienus tem a reputação de ser o homem que consegue realizar um
trabalho de artesanato complicado. Quando o mármore começa a apresentar
rachaduras finas, quando um bloco de calcário particularmente físsil
ameaça desmoronar ao toque de um cinzel, quando um golpe descuidado de
um martelo remove inadvertida e traiçoeiramente o nariz da estátua do
imperador — é quando os grandes e bons de Roma enviam mensageiros
exigindo com urgência a presença de Postumus Gallienus para consertar as
coisas.
Gallienus às vezes se pergunta se foi o excesso de trabalho que matou
seu pai. Como o nome “Postumus”8 indica, Gallienus sênior morreu quando
a esposa estava grávida de seu filho. A oficina do pedreiro, que ele deixou
para trás, foi cuidadosamente administrada por um tio, até que aquele filho,
Gallienus, atingisse a maioridade. Esse mesmo tio também ensinou a
Gallienus o ofício familiar do trabalho com pedra, antes de ele mesmo
morrer em um acidente de construção. (Foi quando o antecessor de
Adriano, Trajano, estava ampliando o Circus Maximus para que ainda mais
espectadores pudessem assistir às corridas de bigas. Os esplêndidos
assentos de mármore branco na arena reformada são, acredita Gallienus, um
monumento adequado ao seu amado tio.)
Embora tenha apenas 40 e poucos anos, nos poucos momentos ociosos
de cada dia atarefado, o próprio Gallienus às vezes pensa em aposentadoria.
Certamente, é rico o suficiente, mas, apesar de ser duas vezes casado e duas
vezes viúvo, não tem filhos para quem possa deixar seu próspero negócio. E
seria uma pena simplesmente abandonar a empreitada que foi construída
com tanto cuidado ao longo de duas gerações. Além disso, a aposentadoria
é rara entre os romanos da classe trabalhadora, cuja maioria simplesmente
trabalha até morrer. No entanto, o principal obstáculo para Gallienus
abandonar as ferramentas e ir viver em uma fazenda tranquila no campo é
algo bem diferente.
Ser um mestre pedreiro não é apenas o que Gallienus faz,é o que ele é.
Se não está usando suas habilidades em um pedaço difícil de pedra ou
prestando consultoria em um trabalho de engenharia complicado, ele não se
sente propriamente vivo. Trabalhar com pedra — travertino confortável e
ameno; granito robusto e imprevisível; mármore nobre em suas muitas
cores —, é para isso que ele vive. Desistir disso para ver vacas defecando
em alguma área rural seria mais um pesadelo do que um sonho no fim de
seus dias.
No momento, Gallienus está envolvido em uma corrida monumental.
Literalmente, ele correu de um monumento a outro durante todo o mês. Há
mais um mês de trabalho acumulado apenas no canteiro atual. O projeto do
mausoléu de Adriano é um edifício maciço de 48 metros de altura e com
um jardim no telhado. Este jardim tem 64 metros de largura e é repleto de
estátuas de homens e cavalos. Mais tarde, uma estátua colossal
representando o imperador dirigindo uma carruagem de quatro cavalos
(quadriga) será adicionada ao topo de toda a estrutura.
O MAUSOLÉU ORIGINAL
O termo “mausoléu” deriva de um nome — o de Mausolo de Halicarnasso. Este rei (que
governou a mesma cidade na Ásia Menor que já foi o lar do historiador Heródoto) foi enterrado
em um monumento de tamanha grandeza que se tornou uma das sete maravilhas do mundo
antigo. Desde então, qualquer local de sepultamento construído em escala ambiciosa é
conhecido como “mausoléu”.

Gallienus está lá para consertar e reencaminhar uma dessas estátuas.


Essa estátua em particular retratava originalmente, em mármore, um
ninguém da República Média. Ela estava no local quando os construtores
chegaram e foi removida e armazenada para ser posteriormente
reaproveitada. Como a maioria das estátuas de “retrato”, foi feita em duas
partes separadas: corpo e cabeça. Gallienus tem várias estátuas semelhantes
em sua oficina no quintal. Elas retratam corpos jovens genéricos em
equipamentos militares, em poses atléticas ou em banhos. Funciona assim:
suponha que alguém queira uma estátua de si mesmo. A pessoa a ser
retratada procura um escultor, que fará uma cabeça realista, cujo pescoço
terminará com uma cunha de pedra padronizada. O sujeito da estátua então
pegará essa cabeça e visitará vários pátios de pedreiros como o de
Gallienus, até encontrar um corpo em uma forma e pose agradáveis e
compatíveis.
Todos os corpos vêm com soquetes de tamanho padrão para essas
cabeças, de modo que o pedreiro é capaz de unir perfeitamente o corpo e a
cabeça em uma única estátua, pronta para colocação em um jardim, vila de
campo ou qualquer outro lugar. Este sistema tem a desvantagem de, por
exemplo, ocasionalmente produzir a cabeça de uma matrona romana
madura franzindo severamente a testa sobre o corpo de uma Vênus recém-
pós-pubescente no banho. Por outro lado, tem a vantagem de, logo que a
referida matrona falecer, permitir que sua cabeça seja arrancada e
substituída, mais apropriadamente, pela de uma das netas. (Observe, a
propósito, que reencaminhar a estátua de um imperador vivo dessa maneira
é traição e pode levar à remoção da cabeça do perpetrador de maneira não
substituível.)
Neste caso particular, o ninguém da República Média tinha,
evidentemente, objeções claras a ser substituído na posteridade, pois sua
cabeça foi fixada no lugar de maneira firme. Com tanta firmeza, de fato,
que, no processo de remoção da cabeça, um operário inexperiente fez com
que todo o tronco rachasse no sentido diagonal e deixasse no chão uma
pilha de escombros formada por um braço, meio peito e um bom pedaço de
abdômen. Gallienus passou os últimos dois dias colocando tudo de volta no
lugar. Ele notou que, mesmo que o retratado fosse um ninguém, ele era
evidentemente um ninguém rico, pois toda a estátua era de mármore pário
fino, razão pela qual os construtores querem mantê-la.
Gallienus perfura um buraco a 45 graus e com a largura do
comprimento de meio polegar na parte do tronco que restou e depois faz um
buraco correspondente na porção que foi separada. Em seguida, ele enfia
uma barra de ferro no buraco e espalha concreto fino feito com pó de
mármore sobre as partes onde as duas peças são unidas. Com uma lixada e
uma pintura caprichada (os romanos pintam suas estátuas para torná-las
mais realistas), ninguém verá a emenda.
Ao trabalhar com pedra, Gallienus muitas vezes também trabalha com
concreto e cimento. Ele despreza aqueles que não sabem a diferença entre
esses dois materiais. O cimento vem de cinzas depositadas de um antigo
fluxo de lava vulcânica extraídas das colinas de Alban (o imperador
Augusto, impressionado com a qualidade desse material, decretou que
apenas ele deveria ser usado para estruturas de monumentos
governamentais em Roma). O cimento é misturado com brita ou agregado
para fazer concreto. Muitas estruturas romanas impressionantes, como o
Anfiteatro Flaviano, que alguns chamam de Coliseu, são feitas desse
concreto. Assim, Gallienus é chamado com frequência para ajudar a decidir
a melhor maneira de pendurar uma fachada de pedra nesses edifícios de
concreto, de modo que eles pareçam ter sido feitos de pedra em toda sua
composição.
UM PEDREIRO COM SUAS FERRAMENTAS. MUSÉE D’AQUITAINE, BORDEAUX.

Depois de terminar o trabalho com esta estátua, Gallienus precisa


reunir sua equipe e correr para seu próximo trabalho. Trata-se também de
um mausoléu imperial — o mausoléu de Augusto, do qual, de seu ponto de
vista no topo da futura tumba de Adriano, Gallienus pode ver através do
Campo de Marte. De certa forma, os dois mausoléus estão realmente
ligados. Augusto mandou construir seu túmulo não apenas para ele, mas
também para a família. Então, como todos os imperadores subsequentes
alegaram, ainda que de maneira ilusória, ser um César e, portanto, um
descendente da casa imperial, muitos deles — e suas esposas e mães —
foram enterrados naquele mesmo mausoléu, que agora estava tão cheio de
imperadores mortos e seus parentes que começava a faltar espaço. (O
imperador Vespasiano e sua dinastia escolheram ser enterrados em outro
lugar, mas a tumba foi reaberta para o falecido imperador Nerva.)
Então, o antecessor de Adriano, Trajano, resolveu o problema da
superlotação post-mortem — no caso dele mesmo, pelo menos — sendo
enterrado na base de uma coluna monumental, na qual subiam imagens
esculpidas de suas vitórias na Guerra Daciana (o jovem Gallienus trabalhou
em alguns dos baixos-relevos). No entanto, Adriano deduziu corretamente
que, se todos os imperadores seguissem o precedente de Trajano, Roma
rapidamente se tornaria uma floresta de colunas monumentais. Portanto, ele
começou a construir uma tumba imperial capaz de receber todos os
imperadores mortos do futuro próximo — mesmo com pragas, assassinatos
e guerras civis.

Adriano havia preparado seu túmulo à beira do rio, perto da


ponte Aelian. Ele foi enterrado nesse lugar, pois o Mausoléu de
Augusto estava cheio e, desde então, ninguém mais foi enterrado
lá.
CÁSSIO DIO, História 49.23.1

Embora agora removido do serviço ativo, isso não significa que o


túmulo de Augusto pudesse ser abandonado à própria morte. Além da
necessidade de mostrar respeito pelos mortos imperiais, a decadência da
tumba imperial é um presságio terrível para o imperador em exercício.
Quando uma grande rachadura apareceu no túmulo de Augusto há um
século, foi amplamente interpretada como uma profecia da morte do então
imperador Vespasiano (e uma profecia acertada, pelo que se viu
posteriormente). O fato de sua negligência poder ser um prenúncio de
desgraça por si só já seria motivo suficiente para os imperadores serem
obsessivos com a manutenção da tumba em perfeitas condições, mas o fato
é que o mausoléu de Augusto também é considerado um belo monumento
cívico por si só.
Porém, com 42 metros (a estátua de bronze de Augusto no alto do
edifício está quase na mesma altura do mausoléu de Adriano), a estrutura
parece quase natural, com seus anéis concêntricos de terra. Especialmente
porque a coisa toda é arborizada com espécies perenes e se assemelha tanto
a uma colina pacífica quanto a uma construção feita pelo homem. Na
verdade, a estrutura geral é um pouco maior do que o monumento de
Adriano, porque, como imperador, Adriano tem tato demais para construir
um mausoléu maior do que o de seu grande antecessor. No entanto, o
mausoléu de Augusto deliberadamente se mistura e se torna parte do
cenário. O de Adriano, que se ergue sobre o Tibre, é um tipo de estrutura
deliberadamente mais destacada que parece ainda maior do que realmente é.

O mais notável desses túmulos é aquele que eles chamam de


Mausoléu. É uma elevação alta e maciça perto do rio. A
fundação é de mármore branco, e o conjunto é densamente
coberto de árvores perenes até o topo. Lá em cima, há uma
estátua de bronze de Augusto César em pé sobre dos restos
mortais de sua família e amigos.
Atrás disso tudo, estão os maravilhosos passeios de um grande
tholos [recinto sagrado] de mármore branco com passeios
maravilhosos… A muralha é cercada por uma cerca circular de
ferro, e o terreno é denso de choupos pretos.
CASSIUS DIO, História 49.23.1

Em frente ao túmulo de Augusto, fica o horologium, um dos primeiros


obeliscos egípcios trazidos a Roma. Esta é uma das estruturas favoritas de
Gallianus, pois, quando ele passa por ela em um dia ensolarado, uma rápida
olhada na calçada em frente ao obelisco revela a hora do dia e até a estação.
De fato, há uma linha marcada nas lajes de pedra ao norte do obelisco que
mostra a extensão máxima da sombra em diferentes épocas do ano.
Os detratores dizem que a coisa toda foi projetada apenas para que, no
aniversário de Augusto, a sombra do obelisco apontasse diretamente para a
porta do túmulo de Augusto, mas o cético Gallianus duvida que a coisa toda
seja apenas um exercício de propaganda. Em vez disso, o obelisco, ao medir
o comprimento da sombra projetada pelo sol, atua como prova física de que
o calendário reformado por Júlio César (e posteriormente aperfeiçoado) está
realmente acompanhando as estações. Nos últimos dias da República, o
calendário estava tão fora de sincronia com a realidade, que os festivais de
verão às vezes eram celebrados com neve até os tornozelos.
Hoje, Gallienus visitará o mausoléu por ordem de um alto oficial
imperial. Dois obeliscos simples do Egito ladeiam a entrada da tumba, e
seus zeladores relataram que um tipo de fungo parece estar se espalhando
atrás de cada um deles. Gallienus inspecionará a infestação e aconselhará
sobre como o raro granito vermelho pode ser mais bem limpo sem causar
nenhum dano, que também daria ao fungo uma base ainda melhor no
futuro. E já que ia cuidar disso, mencionou o assistente do oficial, algumas
pedras de mármore na parede inferior poderiam ser recolocadas. No geral,
um par de horas de trabalho e enviar a conta para o Palatino como de
costume.
Bem, o horologium está fazendo seu trabalho hoje. De onde está,
Gallienus pode ver que a ponta da sombra repousa bem no local de sua hora
de almoço. O pedreiro reúne suas ferramentas, coloca-as em uma sacola que
pendura no ombro e grita para seus assistentes que é hora de encerrar a
manhã.

8 Na verdade, essa é uma etimologia falsa, mas um erro contemporâneo e não moderno. (N.A.)
HORA VI
(12h–13h)

A DONA DA TAVERNA NA HORA


DO ALMOÇO

A primeira taverna em uma rua escura engoliu as meninas, com


seus vestidos soltos e cabelos desgrenhados.
PROPÉRCIO, Elegias de amor 4.8

O pedreiro para em frente à taverna do Nono Pilar, e para tão bruscamente


que um transeunte na rua o empurra. O estranho está prestes a fazer um
comentário raivoso, mas se contém e vai embora apressado — anos de
manuseio de grandes blocos de pedra deram ao pedreiro bíceps que incham
de forma intimidadora.
“Como vai, Copa?” Gallienus pergunta ao passar pela mulher na frente
dele. (Todo mundo a chama de Copa, embora seu nome na verdade seja
Myrtalis. “Copa” é simplesmente o feminino da palavra usada para “dono
de taverna”, mas Myrtalis é dona do lugar há tanto tempo que ela mesma
ocasionalmente esquece seu nome de batismo.)
No momento, Copa está inclinada para a porta de sua hospedaria,
esfregando e xingando furiosamente. Um exame mais atento mostra que
algum vândalo decorou a porta com uma variedade de pênis desenhados a
carvão. Copa faz uma pausa e afasta da testa uma mecha de cabelo louro-
escuro encharcado de suor. O grafite é vingança, ela explica, coisa de um
cliente que foi expulso na noite passada.
“Ele ignorou a placa”, ela comenta, apontando com o polegar para o
interior da taverna. Embora não possa ser visto da rua iluminada pelo sol,
há um afresco pintado na parede da sala principal da taverna. A pintura
mostra um jovem beijando furiosamente uma jovem escrava, que usa um
volumoso vestido amarelo e está fazendo o possível para se livrar do
pretendente evidentemente indesejado. A inscrição abaixo diz “Nolo cvm
Syrisca” (“Não [mexa] com Syrisca”). O nome mudou várias vezes nos
últimos anos — as taverneiras, mesmo as escravas, tendem a mudar de
emprego assim que podem.
“O problema com esses adúlteros baratos de beco”, Copa continua, “é
que todos eles pensam que todo mundo está se divertindo com as criadas,
menos eles. Esse bêbado fez um discurso na taverna sobre roubarem ‘sua’
garota. Havia um bando de celtiberos no lugar ontem à noite, e ele disse aos
homens que eram todos um bando de idiotas peludos que vivem em tocas
de coelhos espanhóis e limpam os dentes com urina [é verdade, eles
realmente fazem isso com os dentes]. Depois ele se ofereceu para cuidar do
que era deles. Não acabou bem. Mas eu não precisaria dizer nada disso, se
você soubesse alguma coisa sobre os celtiberos.” Ela acena para os
desenhos toscos. “Então esses desenhos apareceram. Ele deve ter voltado
aqui antes do amanhecer, mas só percebi quando abri para o almoço.”9

Bebidas de castanhas sortidas […]: 14 aus; banha: 2 aus; pão: 3


aus; três cortes de carne: 12 aus; quatro salsichas: 8 aus. Geral:
51 aus.
CONTA DE BAR ENCONTRADA EM HERCULANO Corpus Inscriptionum
Latinarum 4 n10674

Copa mora na própria taverna. Como o lugar costuma ficar aberto até
meia-noite — e às vezes até mais tarde, se os edis estiverem em um dia de
complacência — normalmente, não abre para o desjejum. No entanto, vale
a pena esperar para almoçar aqui, porque o Nono Pilar é um dos
restaurantes mais atraentes do baixo Esquilino. O vinho realmente tem
gosto de uvas, diferentemente dos que são oferecidos por aqui e que têm um
sabor que sugere que os proprietários o fabricaram em suas botas (como diz
o ditado). Porém, o principal atrativo da Taverna Nono Pilar é a atraente
Syrisca.
A melhor palavra para descrever Copa é “carnuda”. Esse atributo às
vezes é útil, pois, quando Syrisca dança para os clientes com o rosto corado
de vinho e uma faixa grega no cabelo, eles definitivamente prestam atenção.
Mesmo aqueles que estão nos divãs caros da alcova dos fundos — com
guirlandas de pétalas de rosas na cabeça e que Copa pretende encher de
vinho até o pôr do sol — vão se sentar e prestar atenção. Mas os olhos são
tudo que eles põem na garota. Tem uma vara de nogueira ao alcance da mão
de Copa, e ela é quase tão grossa quanto seu pulso. Qualquer um que tente
mudar a dança de Syrisca da vertical para a horizontal se familiariza com a
nogueira pouco antes de ser ejetado do local em velocidade média.

CANÇÃO DE COPA
Syrisca está dançando, de um jeito ébrio, sensual,
Uma faixa grega no cabelo
Gira os quadris no ritmo produzido
Por suas castanholas…
Como isso ajuda um homem cansado
A voltar à poeira quente do dia
Em vez de ficar deitado aqui…
bebendo de copos sempre reabastecidos?
Venha descansar seu corpo cansado
Sob as vinhas que dão sombra
Com uma guirlanda de rosas coroando sua cabeça
Enquanto arranca um beijo dos lábios doces
De uma menina jovem.
PSEUDO-VIRGÍLIO, Copa (passim)
Os clientes não são inteiramente culpados. Muitas casas romanas de
bebidas (popina) também funcionam como bordel (lupanaria), assim como
outras tavernas também servem como hospedarias ou pensões, ou
combinam todos esses serviços. Muitos taverneiros presumem
automaticamente que as taverneiras estão disponíveis, mas não é assim que
funciona a Nono Pilar. Copa não tem objeções morais em prostituir suas
garçonetes, mas é que é cansativo resolver brigas entre clientes ciumentos
de um lado e garotas invejosas do outro, e é absolutamente irritante perder
boas funcionárias para a gravidez. Então, Copa mantém tudo limpo — não
por moralidade, mas por conveniência.
Terminado o trabalho lá fora, Copa volta para as sombras amigáveis
de seu estabelecimento. Há uma névoa de fumaça de madeira dos fogos na
cozinha; o aroma do pão assado recentemente se mistura com o cheiro dos
patos assados e aspargos que serão o prato principal de hoje. Há também a
fragrância persistente da madeira de macieira que Copa queima todas as
manhãs para esconder o cheiro azedo de vinho velho e a humanidade
compacta e mal banhada que é uma parte incontornável da atmosfera de
todas as tavernas.
Também há o ruído das conversas. Syrisca não está dançando agora
(porque a taverna está lotada de clientes), e, embora os fregueses apreciem
o show, apreciam ainda mais uma boa refeição. Para muitos ali presentes, a
sexta hora marca o fim da jornada de trabalho, que começou uma hora antes
do amanhecer.
O plano agora é comer uma boa refeição regada com várias taças de
vinho aguado e voltar para casa para dormir, antes de jantar com os amigos.
Consequentemente, Syrisca e duas outras criadas estão atarefadas,
circulando com travessas cheias entre os bancos, empurrando com
delicadeza mãos tateantes e trocando piadas e cumprimentos de baixa
qualidade com clientes regulares. Existe um motivo para as cantadas
grosseiras serem chamadas de taberna blandita, pois os clientes levemente
embriagados da Nono Pilar são tão incapazes de criar epigramas latinos
delicados quanto as mulheres a quem eles se destinariam são incapazes de
apreciá-los.
As tavernas têm a reputação de serem lugares bastante grosseiros e
mundanos, e a Nono Pilar faz o possível para viver de acordo com essa
reputação.
POETA FLORO PARA ADRIANO
Eu não gostaria de ser César
E vagar pela Grã-Bretanha
Sofrendo de gota nos joelhos
Porque geadas citas demoram a descongelar.

RESPOSTA DE ADRIANO
Eu não gostaria de ser Floro
E espreitar nos bares,
Comer tortas e ervilhas
E vagar pelas vinícolas
Infestando-me de pulgas.
HISTÓRIA AUGUSTA Adriano 16

Até o pato que é servido no almoço está contrariando a lei. O puritano


imperador Tibério proibia a venda de qualquer alimento em
estabelecimentos onde também se vendia bebida, embora o imperador Nero
(ele mesmo um conhecedor de ambientes baixos) permitisse que fossem
servidos feijões cozidos e outros vegetais. Tecnicamente falando, essas leis
ainda estão em vigor e podem ser aplicadas, se as autoridades forem pagas
para se interessar pelo assunto. Por isso, Copa faz questão de manter um
bom relacionamento com a concorrência, a taverna mais adiante na mesma
rua, perto do templo de Castor e Pollux. (Embora ela também solicite de
vez em quando a alguns elementos mais ameaçadores de sua clientela que
sugiram ao proprietário do outro estabelecimento o que pode acontecer,
caso os termos desse bom relacionamento sejam violados.)
Enquanto Copa circula pelo salão cheio, parando para conversar com
os clientes favoritos, seus ouvidos alertas captam um som distinto de
chocalho acima do burburinho geral. Ela muda de direção, empurrando os
clientes para o lado como um graneleiro movendo-se em um mar agitado.
Dois jogadores estão olhando atentamente para cinco dados sobre a mesa,
que estão ao lado do copo de couro de onde foram lançados. “Isso é um
dois”, insiste um, apertando os olhos na luz fraca para enxergar os pontos
desbotados nos dados. “Um três”, contesta seu companheiro, e os dois
poderiam ter começado uma briga, se não tivessem sido agarrados com
firmeza pelo pescoço cada um deles por uma das mãos carnudas de Copa.
“Vocês estão tentando me fazer perder a licença?”, rosna a taverneira
enfurecida. “Ou acha que isso aqui é a Saturnália?” (A Saturnália — o
festival de inverno de Roma — é a única ocasião em que o jogo é permitido
em locais públicos.) Os homens sorriem acanhados, enquanto aqueles que
estão ao redor oferecem conselhos em voz alta sobre o que Copa pode fazer
com os dados ofensivos.
Ignorando diplomaticamente os provocadores, Copa empurra os dados
para dentro do copo e o esconde na túnica. “Peguem de volta quando forem
embora”, ela diz aos jogadores. A julgar pelos mantos grosseiros com
capuz, os dois são libertos e não são ricos. O confisco permanente dos
dados não seria apenas um golpe financeiro, mas também a faria perder dois
clientes regulares.
Copa coloca o copo de couro com os dados em uma prateleira da
cozinha. Esta é uma sala pequena e desagradavelmente quente, que se abre
para o beco dos fundos, o qual — apesar de punições e protestos — muitas
vezes serve como banheiro emergencial para os clientes mais desesperados
da taverna.
Copa se lembra de um grupo de bêbados que atravessou a cozinha a
caminho do beco na semana passada. Um conseguiu se incendiar ao se
aproximar demais do forno onde alguns tordos esqueléticos eram assados.
Houve um pandemônio, com clientes em chamas aparecendo
aleatoriamente na sala lotada, enquanto os criados lutavam para apagar as
chamas e outros intrusos oportunistas tentavam pegar a comida. Às vezes,
Copa gostaria de ser um homem e tentar uma carreira mais relaxante —
talvez um posto de legionário no Reno lutando contra invasores
germânicos.
Falando em invasores… Copa vai ao pequeno quintal murado nos
fundos e verifica se ninguém entrou furtivamente para roubar uma das
ânforas de barro empilhadas contra a parede dos fundos. Essas ânforas
contêm o estoque de vinho da taberna. A cada poucas horas, a própria Copa
pega um desses jarros altos, abre a tampa e despeja o conteúdo em algum
recipiente, qualquer coisa entre um pequeno barril e um enorme jarro. É
desse recipiente que o vinho é servido aos clientes, e nele tem a inscrição
encorajadora “Qvi vult, svmat Ocane, veni bibe” (“Eu sou o Oceano, venha
e beba quem quiser”).
DANÇARINA COM ROUPAS EM ESTILO GREGO E GUIRLANDA DE FLORES.
Sextilano, você está ficando bêbado como um nobre (ou cinco)
Você estaria bêbado com água também se tivesse bebido tanto dela
Você não apenas roubou dinheiro de bebida das pessoas próximas
Mas de pessoas sentadas em bancos distantes.
Isso não é suco de uma prensa dos Peligni
Ou vinho barato das colinas da Toscana
É vinho Massic envelhecido em barris escuros
Desde o tempo de Opimio.
Diga ao taverneiro para trazer
A escória dos barris de Laletan, Sextilanus
Se vai beber mais de dez copos.
MARCIAL, Epigramas 1.26

Um aumento repentino no barulho de vozes na sala principal alerta


Copa para mais problemas. Há uma multidão reunida em torno de uma das
mesas e uma furiosa Syrisca tentando acertar alguém no meio da multidão.
Persuadida pela vara de nogueira de Copa, a multidão se afasta para revelar
dois homens lutando selvagemente em uma das mesas, espalhando uma
refeição de lentilhas e feijão vermelho pela superfície de madeira. Isso não
é incomum — na verdade, é tão comum que tem um aviso de despedida na
porta, que Copa aponta para os combatentes levemente atordoados antes de
jogá-los fisicamente na rua: Itis foras rixatis (“Vão brigar lá fora”).
Dentro da taverna, os fregueses já se acomodaram para a refeição.
Pensativa, Copa chupa o dedo indicador que ficou preso entre as duas
cabeças que ela acabou de bater violentamente, e decide que a correria
principal da hora do almoço acabou. As meninas podem cuidar de tudo
daqui pra frente. Ela quer sair para ir supervisionar um presente especial de
aniversário que está preparando para o pai.

Successus, o tecelão, ama Iris, a escrava do estalajadeiro.


Mesmo que ela não o ame, ele implora para que ela tenha
piedade.
[De outra parte] Vá embora.
Successus: Por que tão enciumado e atrapalhando? Dê lugar a
um sujeito mais jovem e mais bonito que está sendo muito
maltratado.
[Resposta] Essa é minha decisão. Já escrevi tudo o que há para
dizer. Você pode amar Iris. Ela não ama você.
Corpus Inscriptionum Latinarum 4, 1.10.2-3 (Bar de Prima); 8258, 825910

9 O incidente na taverna do Nono Pilar descrito por Copa no início da hora é relatado (com mais
obscenidades) pelo poeta Catulo, em Carmina 37. A história de Copa segue seu relato tão de perto
que algumas linhas de Catulo são repetidas quase literalmente. (N.A.)
10 Outros grafites de Pompeia, como os jogadores de dados e o aviso aos fregueses para não
tocarem nas garçonetes, fizeram parte da história de Copa. (N.A.)
HORA VII
(13h–14h)

O CONSTRUTOR DE RELÓGIOS DE
ÁGUA COMEÇA UM PROJETO

Que os deuses destruam o homem que primeiro descobriu como


determinar as horas… para cortar meus dias miseráveis em
pequenos pedaços.
Dramaturgo romano Plauto, citado em Aulo Gélio NA 3.3.1

Copa quer dar um relógio ao pai porque, como a maioria dos romanos, ele
gosta de uma soneca pós-prandial. Em seguida, Pater desce para os banhos
para um jogo de bola com seus amigos idosos. (A versão romana do jogo é
uma mistura animada de handebol e assassinatobol.) O problema é reunir
todo o grupo para um início sincronizado, pois, como diz o provérbio:
“Mais fácil dois relógios entrarem em acordo do que dois filósofos”, com a
implicação de que os dois grupos tendem a ser bastante idiossincráticos. Só
para tornar as coisas mais complexas, o pai de Copa tem o sono pesado,
várias vezes ronca muito além da hora que ele reservou para o exercício e
acorda, mal-humorado e irritado, na hora do jantar. O que ele precisa é de
um despertador.
Acontece que os despertadores são uma proposta relativamente
simples. Um dos mais básicos deles foi inventado séculos atrás por
Ctesibius de Alexandria. Funciona assim: você pega uma jarra e enche com
água de acordo com a hora determinada, marcada no interior. Essa água é
então despejada em um reservatório, do qual flui em um ritmo determinado.
Quando a quantidade de água no reservatório fica abaixo de um peso
específico, uma balança embutida derruba uma bola de chumbo lixado em
um tubo vertical. O tubo tem o diâmetro exato da bola, então, quando a bola
cai, ela empurra o ar para fora através de um apito fixado no fundo. O
resultado é um grito agudo exatamente na hora marcada pela água que foi
despejada.

Na era moderna, a sexta hora (hora sexta) sobrevive, embora tenha percorrido o mostrador
para se tornar a siesta, a hora do cochilo da tarde. Em algum momento da história, trocou de
lugar com a nona hora (hora nona), que se tornou “meio-dia”.
Para muitos romanos (exceto os aficionados pelas orgias primaveris do Festival da Flora), a
melhor época do ano era o feriado da Saturnália no meio do inverno. Era uma ironia cruel
que justamente quando a festa, a entrega de presentes e a alegria estivessem no auge, as
horas fossem mais curtas. O tempo realmente voava quando alguém estava se divertindo.

Esta é a base da clepsidra — o ladrão de água, como esse tipo de relógio é


chamado no ramo de marcação do tempo, embora a maioria dos romanos
simplesmente o chame de horologium ex aqua (o relógio de água). O tipo
básico de despertador pode ser encontrado em inúmeras situações. Por
exemplo, nos tribunais, mede a quantidade de tempo atribuída a cada
orador. Nos bordéis, os apostadores têm que bater o relógio. Nos dois casos,
uma pequena bola de cera é mantida à mão para tapar a saída de água se o
processo for interrompido por qualquer motivo.
Como não depende da observação do céu às vezes nublado, o relógio
de água é a maneira mais confiável de marcar o tempo. Como resultado
dessa confiabilidade, foi usado pela primeira vez pelos egípcios por
algumas centenas de anos, antes de ser passado para os gregos, que o
passaram para os romanos, com cada nação adicionando vários
refinamentos ao longo do caminho. Um relógio de água completo é uma
maravilha da engenharia e faz muito mais do que gritar, martelar ou estalar
ao final de uma hora. Tem que ser complexo, porque controlar o tempo por
um período mais longo é um negócio complicado.
Complicado? A água escoa para fora de um recipiente em um ritmo
determinado. Depois de medir uma hora, multiplique a quantidade de água
por 24 e você tem um dia — o que tem de difícil nisso? Bem, comece com
pressão variável. Quanto mais água houver em um recipiente, mais pressão
haverá no fundo e a água jorrará mais rápido. Então, da meia-noite à 1h da
manhã seria mais rápido que das 23h à meia-noite. (Na verdade, esse é um
problema menor, que pode ser resolvido com facilidade com um segundo
reservatório que mantenha o reservatório de cronometragem abastecido a
um nível constante.)

PROJETO DE RELÓGIO DE ÁGUA ROMANO.

Não, o verdadeiro problema está na natureza dos dias e das noites


romanas. Cada um dura 12 horas, do nascer ao pôr do sol e do pôr do sol ao
amanhecer. Isso seria bom, se todos os dias fossem o equinócio da
primavera e do outono, quando o dia e a noite têm exatamente a mesma
duração. No entanto, um dia no meio do verão é muito mais longo do que
um dia no meio do inverno, embora cada um ainda tenha exatamente 12
horas romanas. Para manter 12 horas para cada dia e noite, as horas
romanas ficam mais longas e mais curtas com as estações. Isso significa que
os relógios de sol funcionam perfeitamente durante todo o ano, mas as
horas variáveis representam um grande desafio para o relojoeiro.
Por exemplo, no equinócio, o tempo necessário para passar por essa
hora, hora septima, é um pouco menos de três quartos do tempo que levará
no solstício de verão, mas um quarto mais longo do que no festival do
solstício de inverno. Depois de calibrar para o dia mais curto ou mais longo,
você precisa construir um sistema de espelhos para medir as noites, que
estão indo em sentido contrário. Nem os dias se movem sem alterações ao
longo dessa variação de meia hora na duração anual da hora romana. As
horas de inverno permanecem curtas até a primavera, e depois dela
começam a se alongar rapidamente. O filósofo Aristarco de Samos (por
volta de 300 a. C.) diria que isso ocorre porque a Terra tem uma órbita oval
ao redor do Sol, mas o homem era evidentemente um tolo e seu argumento
foi amplamente refutado por Arquimedes. A abordagem atual da questão
pula a teorização e tenta lidar com a realidade inconveniente.
Cada relojoeiro tem sua própria abordagem para o problema das horas
variáveis e para quase todos os outros aspectos da relojoaria. (Mais fácil
dois relojoeiros concordarem…?) Por exemplo, Albinus, o relojoeiro que
está fazendo o relógio para o pai de Copa, pertence à escola inflow. Ou seja,
seus aparelhos medem o tempo pela quantidade de água que flui para dentro
de um recipiente. Isso destaca os relógios de Albinus daqueles que ele
chama de “pseudomecânica desajeitada”, que usam o sistema de
escoamento para medir o tempo pela quantidade que escorre de um
recipiente. Na realidade, os dois sistemas têm vantagens e desvantagens
para contar o tempo, e os dois tipos de relógio são amplamente utilizados,
quando eles são usados. A maioria das pessoas acha que olhar para o sol
estreitando os olhos e concordar com a hora por consenso funciona muito
bem.
Essa é uma razão pela qual os relógios de água são raros. Não adianta
ser o único homem na vizinhança que sabe a hora exata. No entanto, um
relógio de água não é simplesmente um relógio. O acabamento e a
engenharia envolvidos significam que o dono de um desses relógios é um
cavalheiro de prestígio entre seus pares, pois pode se dar ao luxo de ter um
objeto tão elegante. Isso significa, por exemplo, que ter o relógio definitivo
vai permitir que o pai de Copa se torne o juiz de quem em seu grupo de
jogadores está adiantado ou atrasado para as sessões da tarde. São requisitos
tão específicos que significam que a construção de cada relógio de água
envolve consultas detalhadas entre Albinus e sua cliente para determinar a
finalidade exata do relógio e, portanto, que tipo de sinos e apitos —
literalmente — ele deve incluir.

Um bom jantar foi prometido… Um dos servos de Agamenon se


aproximou enquanto hesitávamos e disse: “Vocês não sabem na
casa de quem estão hoje? Na de Trimalchio, um homem muito
rico, que tem um relógio na sala de jantar e um trompetista
uniformizado que vive dizendo a ele o quanto de sua vida está
perdida e acabada.”
PETRONIUS, Satíricon 26

Copa praticamente decidiu dar ao pai um relógio de mostrador. Essa


coisa é do tamanho de um guarda-roupa e mostra as horas em um cilindro
embutido no meio. Todos os dias, ao amanhecer, o relógio toca suavemente,
lembrando o proprietário de girar em um ponto o mostrador embutido na
base. Existem 366 furos perfurados ao redor da borda do mostrador, cada
um ligeiramente menor que o outro. Girar o mostrador no sentido horário
do meio do inverno ao meio do verão permite que menos água flua para o
tambor de medição, e, portanto, leva um tempo correspondentemente maior
para encher cada hora. Gire no sentido anti-horário, e, no meio do inverno,
a água jorra no medidor, fazendo com que as curtas horas do dia passem
rapidamente. Essa é a utilidade de 183 dos furos. Os orifícios
correspondentes do outro lado do mostrador medem as horas noturnas e,
embora possam ser muito maiores ou menores do que os orifícios opostos, o
diâmetro combinado dos dois orifícios é sempre o mesmo.
Além de um relógio com mostrador, outra opção muito discutida entre
Copa e Albinus foi o relógio de cone. Isso é usado em relógios municipais
em que a baixa manutenção é mais importante do que o espaço que a
máquina ocupa. Um cone colocado em um grande reservatório significa que
há muita água para encher uma medida de um dia de inverno, mas, nos dias
de verão, quando o nível da água atinge a base do cone, ele ocupa a maior
parte do tanque, e há apenas um fio de água miserável para medir as horas
lentas.
Outra solução para a variação da duração das horas é descrita pelo
escritor Vitrúvio, em seu De Architectura, escrito quase um século antes.

No interior, atrás da face do mostrador, coloque um reservatório


e deixe a água escorrer para dentro dele através de um cano, e
que ele tenha um buraco no fundo. Preso a ele há um tambor de
bronze com uma abertura através da qual a água flui para
dentro do reservatório. No interior deste tambor, há outro menor,
sendo os dois perfeitamente unidos por espiga e soquete, de tal
maneira que o tambor menor gira justo, mas com facilidade, no
maior, como um registro.
Assim, quando o sol está em Capricórnio, a lingueta na beirada
toca todos os dias um dos pontos em Capricórnio na borda do
tambor maior, e é perpendicular à forte pressão da água
corrente. Assim, a água é conduzida rapidamente pela abertura
da borda para o interior do recipiente, que, ao recebê-la e
encher, encurta e diminui a duração dos dias e das horas. Mas,
quando, devido à rotação diária do tambor menor, sua lingueta
atinge as pontas em Aquário, a abertura não será mais
perpendicular, e a água deve desistir de seu fluxo vigoroso e
correr em um fluxo mais lento. Assim, quanto menor a
velocidade com que o recipiente recebe a água, mais aumenta a
duração dos dias.

E tem também esse relógio que é mais parecido com os relógios que
surgirão nos próximos milênios.

Um fluxo regular de água através do orifício levanta uma tigela


invertida, chamada pelos mecânicos de “rolha” ou “tambor”. A
ela estão ligados uma cremalheira e um tambor giratório, ambos
equipados com dentes em intervalos regulares. Esses dentes,
agindo um sobre o outro, induzem uma revolução e um
movimento medidos. Outras cremalheiras e outros tambores,
igualmente dentados e sujeitos ao mesmo movimento, dão
origem, por sua revolução, a vários tipos de movimentos, pelos
quais as figuras são movidas, os cones giram, pedrinhas ou ovos
caem, o som das trombetas e outros efeitos incidentais ocorrem.
As horas são marcadas nestes relógios em uma coluna ou
pilastra, e uma figura que emerge do fundo aponta para eles com
uma vara durante todo o dia.
VITRÚVIO, De Architectura, 9.8.6–13 passim (tradução para o inglês de Oxford
University Press 1914)

Albinus não tem um grande pátio de trabalho, como um pedreiro ou


construtor. Enquanto esses outros artesãos fazem seus negócios em maior
escala, é raro que Albinus tenha mais de dois relógios em andamento ao
mesmo tempo. Normalmente, um deles será um modelo mais caro — nesse
caso, um relógio portátil pequeno, mas preciso, pelo qual um médico pode
cronometrar o batimento cardíaco de um paciente — e o outro será um
dispositivo mais grosseiro. Este último modelo é construído pelo estagiário
de Albinus — um liberto empreendedor da Ásia Menor, a quem Albinus
pretende vender o negócio quando estiver pronto para se aposentar. Este
relógio está sendo montado tanto para treinar o liberto quanto para lucrar.
O “quintal” de Albinus é um espaço de jardim limpo, agora ocupado
por um relógio de sol com as marcações desenhadas nos padrões mais
exigentes. Aqui, um escravo tem o trabalho de ficar ao lado de um relógio
de água recém-concluído enquanto ele funciona e marcar cuidadosamente a
hora no cilindro do relógio para garantir que o relógio de sol e o relógio de
água estejam em completo acordo. Às vezes, é necessário recalibrar um
relógio. Por exemplo, se o proprietário se move significativamente mais
para o norte ou para o sul — digamos, para a Gália ou Sicília —, então a
duração das horas diurnas e noturnas estará em desacordo com as horas em
Roma, e os fluxos de água terão que ser cuidadosamente ajustados para se
adequarem às condições locais. Albinus inveja bastante seus
contemporâneos que vivem no equador — se é que existem —, já que, para
eles, cada dia e noite dura exatamente 12 horas sem flutuações. Que tarefa
simples a cronometragem deve ser em tais lugares!

Um viajante romano com um relógio de sol descobriria que, em Roma, a sombra que tinha
oito nonos do comprimento do gnômon (a ponta que projetava a sombra) tinha três quartos
do comprimento em Atenas e apenas três quintos do comprimento em Alexandria.
O relojoeiro tenta convencer Copa a também comprar para o pai um
aparelho elaborado que move uma agulha através de um mapa das
constelações e, assim, acompanha as estações pelo uso cuidadoso de
engrenagens e alavancas. No entanto, a taverneira astuta não aceita nada
disso. Esses dispositivos são úteis para os astrônomos, ela admite, mas
essas pessoas também insistem em um dia com 24 horas de duração fixa,
para padronizar suas medições. No entanto, Copa quer um relógio de
verdade para seu pai, que o usará para fins práticos. Se ela quiser saber a
estação, olhará para o céu noturno ou para o estado das folhas do plátano
em seu quintal.
Ela tem uma ideia. De qualquer maneira, construa o mostrador, diz a
Albinus, pois isso impressionará os grisalhos do grupo de seu pai, mas
deixe de lado a maquinaria complexa por trás dele. Ela só terá que lembrar
o escravo de seu pai para avançar a agulha um pouco mais a cada semana.

“O que importa em que parte do grande teatro ele se senta, se


mal consegue ouvir as cornetas e trombetas quando todas elas
tocam juntas? Até o escravo que lhe diz a hora do dia precisa
gritar em seu ouvido para ser ouvido.”
JUVENAL, Sátiras 10.225

Sem saber, Copa identificou uma das principais razões pelas quais os
romanos nunca se tornarão uma cultura totalmente mecanizada. Os romanos
têm tanta mão de obra barata disponível, que não há incentivo real para
inventar máquinas para fazer o trabalho ou razão para usar essas máquinas,
se forem inventadas. (Certa vez, alguém inventou um engenhoso guindaste
que reduziria significativamente a mão de obra necessária para construir o
novo anfiteatro do imperador Vespasiano no Coliseu. Vespasiano
recompensou o inventor, mas recusou-se a usar sua invenção, dizendo:
“Você deve permitir que eu dê trabalho aos pobres”.)
Da mesma forma, alguns romanos ricos não valorizam sinos e apitos
operados mecanicamente para marcar a passagem das horas. É mais simples
e barato fazer um escravo olhar para o relógio e depois correr e dizer as
horas, com a vantagem de que o mesmo rapaz pode varrer o chão e servir as
bebidas também.
HORA VIII
(14h–15h)

O ATENDENTE DE BANHO RECEBE


CLIENTES

Aqueles banhos, onde Vulcano arfa suas chamas pela chaminé


incandescente… e os banhistas, embora exaustos pelo calor
intenso, desprezam as piscinas e os banhos frios.
AUSÔNIO, Mosela 337

Nos velhos tempos da República, se um romano queria se limpar, não tinha


escolha a não ser mergulhar nas águas (às vezes geladas) do balneum local.
Essa é a muitas vezes rudimentar casa de banho que ainda pode ser
encontrada perto de muitos dos grandes blocos de apartamentos em que
vive a maioria dos habitantes de Roma. (A água escoada das casas de banho
chega às latrinas em uma parte diferente do mesmo prédio.) No entanto,
nesses dias mais decadentes, os imperadores descobriram que eles podem
comprar popularidade expandindo essas banheiras de pedra bruta em
enormes parques aquáticos. Eles são chamados de thermae e contam não
apenas com instalações de banho de todos os tipos, mas também com outras
comodidades, como ginásios, bibliotecas e até franquias de fast-food. As
pessoas da cidade vão lá não só para se limpar, mas também para socializar
e encontrar contatos comerciais, ou para se exercitar, fazer massagem ou
fazer a barba. É a maneira perfeita de relaxar no final do dia de trabalho.
VIM, VI, BANHEI
Os banhos são um marco da civilização romana. Depois que as legiões se estabelecem em
algum lugar por mais de um ano, uma de suas primeiras construções permanentes é um
complexo de banhos. Muitas vezes, isso se torna o núcleo em torno do qual uma nova cidade
se forma. Assim, vemos casas de banho nas fronteiras do império, como em Aquincum, no
Danúbio, na Panônia, e em Aquae Sulis, na Grã-Bretanha — uma cidade mais tarde tão
conhecida por esse recurso que seu nome se tornará simplesmente “Bath11*”.
Enquanto toda cidade romana tem um banho, a própria Roma é excepcionalmente suprida
deles. Considerando que existem quase 500 casas de banhos e quase o dobro de templos e
santuários, a limpeza é de fato secundária à piedade para o romano comum. Pode ser um
complexo extenso do tamanho de uma quadra da cidade ou um simples conjunto de quartos
situados na parte de trás de um prédio de apartamentos padrão (chamados de balena,
enquanto os banhos principais são chamados de thermae). Por isso, há sempre um banho por
perto, e não há desculpa para não ficar limpo e cheiroso.

O atendente trabalha nas Termas de Nero no Campo de Marte, a oeste


do Fórum, à sombra da poderosa cúpula do Panteão de Roma. Como o
poeta Marcial comentou uma vez em êxtase: “O que poderia ser pior do que
Nero, ou melhor que seus banhos?”12 De fato, os banhos de Nero refletem o
melhor da decadência sensual do imperador tirano. Granito vermelho e
mármore branco fornecem o esquema de cores básico, e afrescos eróticos
correndo (e rolando e se contorcendo) ao longo das paredes dão o tom.
“Excesso com o maior bom gosto possível” era o lema de Nero, e isso
ganhou forma concreta em seus banhos.
INTERIOR DE CASA DE BANHO, POMPEIA.

Nesse dia de setembro, o atendente da casa de banho calcula que serão


entre 2 e 5 mil fregueses que passarão por suas portas e serão recebidos por
uma fonte com uma enorme taça com mais de seis metros de diâmetro, toda
esculpida em único bloco de granito vermelho. Ainda é muito cedo para
quem entra ocupar as águas. As casas de banho estão sendo lavadas e
limpas após o uso matinal, e, no porão, os escravos suados alimentam as
fornalhas que, mais uma vez, elevarão as temperaturas no caldarium para
um pouco abaixo do ponto de fervura. O caldarium é o mais quente dos
banhos e, como leva vários dias para que seja devidamente aquecido a partir
de um ponto de partida frio, raramente é permitido que os fogos se apaguem
completamente.
Há quatro salas de descanso e vestiários em cada lado do caldarium.
Aqui, os clientes podem recuperar o fôlego antes de trazer o sangue de volta
do ponto de ebulição com um mergulho nas águas do autoexplicativo
frigidarium. Aqueles que preferem evitar extremos podem relaxar nas
temperaturas mais amenas do tepidarium, que, em muitos banhos, nem é
uma piscina, mas simplesmente uma sala modestamente aquecida. Nas
Termas de Nero, cerca de 1.500 metros quadrados do complexo são
dedicados a caldarium, tepidarium e frigidarium, com cada área em seu
próprio pátio elegante e colunado.

Nos banhos, ele [o imperador Adriano] deu escravos e dinheiro


a um soldado veterano que conhecia, porque viu o homem
esfregando as costas e outras partes do corpo contra uma parede
de mármore. Quando interrogado sobre o que estava fazendo, o
soldado respondeu que não podia pagar um escravo para
massageá-lo e esfregá-lo. No dia seguinte, havia vários homens
se esfregando na parede e tentando chamar a atenção do
imperador. Ele chamou aqueles homens para que se reunissem
diante dele e disse: “Formem pares!”
ÉLIO ESPARTANO, Vida de Adriano 16

O atendente olha atento para o pátio do caldarium, pois, nos banhos


lotados e movimentados, não é incomum que indivíduos de dedos leves
vasculhem rapidamente os pertences dos banhistas, procurando o que pode
ser jogado rapidamente dentro de uma toalha dobrada e levado. Pela mesma
razão, embora os escravos não possam realmente usar os banhos, muitos
clientes trazem os seus, tanto para cuidarem de suas posses quanto para
esfregá-los e depois raspá-los. Os romanos não usam sabão, mas esfregam
óleo perfumado sobre o corpo e o raspam depois com um estrigil curvo de
metal — ou em uma parede próxima, se nenhum escravo estiver disponível.
Sendo os romanos como são, até nisso há uma chance de se exibir.
Rapidamente nos despimos, entramos nos banhos quentes e,
depois de suar muito, passamos para o banho frio. Lá
encontramos Trimalchio novamente, com a pele brilhando de
óleo perfumado. Ele não era esfregado com linho comum, mas
com panos da mais macia e pura lã.
PETRONIUS, O Satírico

Além de evitar que os escravos contaminem a água, o atendente deve


estar atento aos banhistas menores de idade. As crianças não são permitidas
nos banhos, pois correm o risco de se afogar e receber atenção indesejada
dos adultos. O “barulhento frequentador dos banhos, apresentando as axilas
para serem raspadas e tendo apenas um frasco de óleo para esconder sua
nudez”13 bem poderia deixar cicatrizes em uma psique juvenil. Por causa da
questão da nudez, as instalações da casa de banho costumam ter horários
diferentes para homens e mulheres, com as mulheres geralmente usando as
piscinas nos horários matinais e noturnos. Juvenal dá o exemplo de uma
dama nobre que gosta de tomar banho tarde:

Ela frequenta os banhos à noite; só quando escurece, ordena que


seus potes de óleo e os criados da casa se mudem para lá. Ela
adora toda a agitação do banho quente; quando os braços dela
caem exaustos de usar os pesos pesados, o responsável pelo óleo
passa a mão por seu corpo com habilidade, levando-a até
embaixo e chegando à coxa com um tapa estalado.
JUVENAL, Sátira 6

Algumas casas de banho tentam acomodar clientes do sexo feminino


no meio da tarde, mantendo instalações separadas construídas ao lado do
edifício principal. No entanto, elas raramente são tão opulentas quanto as do
edifício principal e carecem de muitos de seus confortos.
Consequentemente, as senhoras com a disposição decadente preferem adiar
o prazer até o final do dia, quando podem desfrutar das comodidades
sibaríticas do prédio principal.
Embora fiquem abertas até tarde, as casas de banho só abrem
formalmente para os homens à oitava hora (14h), mas já há lá dentro alguns
adiantados, que utilizam as instalações de exercício da palestra, a área de
exercício sob os graciosos arcos da ala leste. Sem precisar virar a cabeça, o
atendente pode ouvir o barulho rítmico das batidas de uma bola de couro,
enquanto os jogadores a jogam rapidamente de mão em mão em um jogo
que lembra voleibol e hematomabol. Tem também as pancadas mais
encorpadas de alguém batendo em um saco de luta livre pendurado no teto.
As regras básicas — e quase as únicas — da luta romana são “não morder
abaixo da cintura, nem arrancar os globos oculares de suas órbitas”, então,
para evitar complicações desnecessárias, os atendentes preferem combinar
os lutadores com esses sacos, em vez de uns aos outros. O atendente
também está prestando atenção em um indivíduo um pouco acima do peso
que se exercita com um conjunto ambiciosamente pesado de pesos de
chumbo. O homem bufa como um cavalo sem fôlego enquanto levanta os
pesos, e sopra o ar com um assobio curioso quando relaxa. A cacofonia
geral é amargamente resumida pelo filósofo Sêneca, que basicamente teve
que desistir de filosofar no início da tarde.

Estou cercado por todo tipo de barulho, porque meus


alojamentos têm vista para os banhos. Evoque em sua
imaginação todos os sons que fazem você odiar os próprios
ouvidos.
Lá estão os atletas grunhindo enquanto se exercitam, puxando
aqueles pesos pesados pelos cantos. Eles estão trabalhando duro
— ou fingindo. Ouço seu assobio agudo quando eles soltam a
respiração reprimida. Mesmo que haja um sujeito preguiçoso
satisfeito com uma simples massagem, é possível saber pelo
estalo da mão no ombro se ela está batendo em um plano ou em
uma área oca.
Se um jogador de bola aparecer e começar a anunciar o placar,é
fim de jogo para mim. Acrescente a isso o barulho de algum
porco pretensioso, o ladrão pego em flagrante e o desajeitado
que gosta do som da própria voz enquanto canta no banho. E,
claro, há quem mergulhe na piscina com um enorme barulho de
água.
Além dos que falam alto naturalmente, imagine o magrelo que
arranca os pelos de axilas, cujos gritos são estridentes para
chamar a atenção das pessoas. Ele nunca para, exceto quando
está fazendo seu trabalho e fazendo alguém gritar em seu lugar.
Agora acrescente a isso os gritos misturados do vendedor de
bebidas e do vendedor de linguiças, do comerciante de produtos
de padaria e de outros vendedores de pratos quentes, cada um
divulgando seus produtos com o próprio grito particular.”
SÊNECA, Cartas 56.1ff

Assim como seus colegas, o atendente da casa de banho recebe uma


pequena parte da modesta taxa de entrada cobrada dos banhistas à medida
que chegam (a taxa costuma ser duas vezes maior para as mulheres, pois os
guardiões da moralidade pública fazem campanha para manter as mulheres
em casa). No entanto, grande parte da renda do atendente vem das ofertas
de serviços menores para os banhistas — raspando-os depois de lubrificá-
los, cuidando de seus pertences (e, de acordo com rumores escandalosos,
realizando serviços ainda mais íntimos para clientes do sexo feminino).
Portanto, o atendente assiste com indignação às travessuras de bajuladores
como Menogenes:

Tente todos os truques artísticos que puder, você nunca poderá


escapar de Menogenes nos banhos, seja no calor ou no frio.
Quando você joga bola, ele vai pegá-la com as mãos ansiosas,
de modo que, uma ou outra vez, você fica devendo a ele pelo
ponto que salvou. Quando a bola cair, ele a tirará da terra para
você, mesmo que esteja de chinelos e tenha acabado de tomar
banho.
Se você trouxer sua própria toalha, ele a declarará mais branca
que a neve, embora seja mais suja que o babador de um bebê.
Enquanto você passa o marfim dentado sobre seu couro
cabeludo calvo, ele vai dizer que você se penteou como Aquiles.
Ele lhe trará o último copo da jarra de vinho fumegante e
enxugará o suor de sua testa. Ele elogia tudo, admira tudo,
suporta pacientemente sofrimentos aos milhares até que,
finalmente, você tem que perguntar a ele “Quer se juntar a mim
para o jantar?”
MARCIAL, Epigramas 82

Os jantares são um componente importante da vida social romana.


Quem vai jantar onde, com que companhia e quais alimentos é o que
compõe boa parte das fofocas que circulam pelas casas de banho, enquanto
Roma se prepara para a refeição mais importante do dia. Até mesmo o
atendente de banho, enquanto perambula pelo local arrumando tudo depois
que a enxurrada de clientes vai embora, está fazendo os próprios planos
para o jantar daquela noite.

Dasius sabe contar seus banhistas. Ele exigiu de Spatale, aquela


senhora de seios fartos, o dinheiro da entrada de três; ela pagou.
MARCIAL, Epigramas 51,1

OS TRÊS PRINCIPAIS BANHOS DE ROMA


(a partir de 123 d.C.)
1. Os Banhos de Trajano
Novo em folha (concluído em 109 d.C.) e projetado pelo renomado arquiteto Apolodoro de
Damasco. Esses banhos estão situados no Monte Opiano, o que os torna centrais e altamente
convenientes. Eles também fazem bom uso de um local que já foi ocupado pelos restos
semidegradados da outrora fabulosa Casa Dourada de Nero.
São quase 70 mil metros quadrados de banhos, divididos em piscinas que comportam juntas
cerca de 8 milhões de litros. Com afrescos, mosaicos e estátuas esplêndidas, esses banhos
são tudo de que você precisa para refrescar o corpo e o espírito.

2. Os Banhos de Nero
Com 22 mil metros quadrados, esses banhos são minúsculos em comparação ao estupendo
complexo de Trajano. Contudo, para o aficionado das termais, os Banhos de Nero têm um
charme insidioso próprio.
As casas ficam perto dos Banhos de Agripa, que evidentemente deveriam ofuscar (e
ofuscam) e são abastecidos pelas famosas águas doces e puras do apropriadamente
denominado Aqua Virgo. Porém, não há nada de virginal nos afrescos eróticos e na
decoração dos quartos internos, que revelam o estilo extravagante de Nero em seu bom gosto
decadente.
Aqueles romanos que planejam para mais tarde uma noite romântica com uma amoratrix,
podem optar primeiro por uma visita ao Nero’s para entrar no clima.
3. Os Banhos de Agripa
Esse foi um dos primeiros grandes complexos de banho da cidade, construído pelo ajudante
de Augusto, Agripa, para melhorar a qualidade de vida em Roma (e, não coincidentemente,
para aumentar o apoio popular de Augusto e as chances de ele permanecer no poder).
Mantendo um tema aquático, os banhos estão localizados no Campus Martius, ao lado da
Basílica de Netuno.
Os banhos já mostravam sinais da idade (foram construídos mais de um século antes, em 27
a.C.) antes de um incêndio destruir o complexo balneário. Tal como acontece com a outra
peça assinada por Agripa — o Templo do Panteão —, caberá ao imperador Adriano
“restaurar” o edifício para algo muito mais magnífico do que o original.

11 11 Banho [N.T.]
12 MARCIAL, Epigramas 7.88
13 Sátira, Juvenal 2
HORA IV
(15h–16h)

A ANFITRIÃ ORGANIZA A NOITE

A nona hora ordena que as pessoas usem divãs cobertos de


almofadas.
MARCIAL, Sátiras 4.8.5

Roma é um mundo de homens. Veja Marcus Aulus Manidus, rico, bem


relacionado e um grande nome no ramo de importação e exportação. Ele
possui mais de 50 escravos e tem um armazém nas docas do Aventino no
valor de dezenas de milhares de denários. Como paterfamilias — o chefe de
sua família —, ele tem o poder de vida e morte sobre suas duas filhas. Se a
esposa lhe der outro filho, ela colocará o bebê no chão diante dele, e, se
Marcus pegar a criança, o bebê será aceito na família. Se ele decidir não
pegá-lo, o bebê será abandonado na rua, para ser apanhado por qualquer
transeunte que queira um filho por qualquer motivo.
Tais são os terríveis poderes investidos na pessoa de Marcus Aulus
Manidus. No momento, porém, o chefe da família Manidus está ocupado
fazendo anotações.
— Tome providências para que aquele terrível Fufidus não force
passagem para o divã de cima, como fez da última vez. Não sei por que
você convidou o sujeito. Ele fala sem parar sobre filosofia, não toma banho
com frequência suficiente e é propenso a zombar dos gladiadores.
Marcus levanta a mão como um colegial. “Hum…” — ele diz, mas
sua esposa continua.
— Além disso, não esqueça que as fronhas de seda nas almofadas são
novas. Custam uma fortuna, então, evite, não, impeça que alguém derrube
molho nelas. Lã deveria ser suficiente, mas Aelia tem almofadas de seda em
seu triclínio, e agora suponho que todas nós temos que tê-las, ou dará a
impressão de que estamos ficando para trás. Maldita mulher! E também…
Você, Seluca! Venha aqui!”
A escrava que estava tentando passar despercebida pela porta entra
cautelosamente.
“Alguma notícia do cozinheiro? Eu falei para você me avisar assim
que ele chegasse.”
A escrava parece acuada.
— Nenhum sinal dele ainda, senhora. Vou verificar novamente com o
porteiro, senhora.
“Faça isso. Marcus! Volte aqui. Ainda não terminamos.”
Marcus suspira e volta para perto da esposa. Não tinha sido ideia dele
fazer esse jantar, de qualquer maneira. Para ele, a melhor maneira de fazer
negócios é com várias taças de vinho de boa qualidade em seus escritórios
perto do cais, acompanhadas de comida comprada em uma taverna local.
Depois, ele e seus associados podem passear pelo armazém, inspecionar
pessoalmente as mercadorias e discutir assuntos pessoalmente com pessoal
experiente. No entanto, Licínia, sua esposa e seu braço direito, tem ideias
muito claras sobre as funções sociais “adequadas a um homem de posição”,
e ela está determinada a fazê-lo se dedicar a essas funções, mesmo que isso
o mate.

APARADOR ROMANO.
(E pode matar. Marcus tem uma digestão delicada totalmente
inadequada para os alimentos ricos e gordurosos e molhos elaborados e
condimentados que são a base dos jantares romanos. Ele ainda estremece
quando se lembra de uma ocasião recente em que evitou cuidadosamente a
lampreia em molho garo, a carne à milanesa e os bolos de mel no vinho.
Apesar de tudo isso, foi derrotado por uma beterraba e passou os três dias
seguintes acampado nas latrinas locais.)
Todo mundo diz a Marcus como ele se deu bem ao casar com Licínia,
cujo pai faz vagas referências sobre ter parentesco com o clã aristocrático
Licinius de Roma. Marcus verificou — o parentesco existe, com certeza,
mas não é nada para se gabar. Várias gerações atrás, o tataravô de Licínia
era escravo na casa de Licinius Lucullus. Ao ser libertado, o escravo fez
como todos os libertos e adotou o gentilictum de seu manumitter, tornando-
se assim um Licínio. Como muitos libertos ambiciosos com um patrono
rico e bem relacionado, o recém-libertado Licínio se saiu bem — como seus
descendentes. Licínia não sabe que Marcus conhece o que ela considera
uma história familiar vergonhosa, e ficaria indignada se descobrisse que
Marcus realmente não se importa com isso. Afinal, o poeta Horácio era
filho de um escravo liberto e também amigo e confidente do imperador
Augusto. Até o grande Catão, o Estoico, descendia de uma escrava
chamada Salônia. A escravidão é um infortúnio que pode atingir qualquer
homem — certamente não há motivo para menosprezar os descendentes
desse homem por isso. É como desprezar um homem por ter uma digestão
fraca, mas, falando nisso, Licínia realmente despreza esse detalhe em
Marcus.
Saber porque a esposa se esforça tanto com suas pretensões sociais dá
a Marcus a resistência para passar pelo planejamento detalhado que faz
parte de cada jantar e sarau da família. Para este jantar, Licínia decidiu que
seu cozinheiro regular não é bom o suficiente para a ocasião, e Marcus vai
ter que se resignar a comer a comida preparada por um fornecedor externo.
O chef em questão é altamente recomendado no círculo social de Licínia, e
isso superou a preferência de Marcus por um homem que ele treinou
cuidadosamente para evitar os alimentos que lhe dão ataques incapacitantes
de indigestão ou crises ainda mais lamentáveis de flatulência.
“… o sinal para que o primeiro prato seja retirado. Não quero que eles
se empanturrem de aperitivos e não tenham espaço para o prato principal,
depois de todo o esforço que fiz para conseguir esse cozinheiro para a
ocasião. Marcus! Você está ouvindo?”
A questão é que, por menos que Marcus goste dessas festas, elas são
parte essencial da vida romana. Receber pessoas para jantares e frequentá-
los é como os romanos de um certo nível social avaliam a credibilidade uns
dos outros, a qualidade de seus amigos e contatos e — uma preocupação
recente de Licínia — as possibilidades de matrimônio de seus filhos. É
também como se ouve as últimas fofocas. Isso não é apenas fofoca social,
mas, em uma era sem jornais, a forma como se ouve falar de um novo
mercado abrindo na Arábia, ou de navios mercantes naufragados por uma
tempestade no Oceano Índico. Essas coisas têm um efeito real nos preços e
nas decisões de negócios, e vale a pena arriscar as consequências malévolas
de comer arganaz assado no mel.
DAMA ROMANA COM PENTEADO ELABORADO.

É uma pena que Licínia não possa participar do jantar — ou, melhor
ainda, comparecer no lugar de Marcus. As mulheres podem e vão a jantares
em Roma, mas Licínia insiste em dizer que ela não é esse tipo de mulher,
como se uma materfamilias romana participando de um jantar fosse tão
escandaloso quanto as mulheres soltas que participavam de simpósios na
Atenas de Péricles. É claro que, se ela participasse da refeição, Licínia
estaria sentada corretamente em uma cadeira, não esparramada em um divã
com mais três ou quarto, como os outros comensais (homens). No entanto,
o fato é que a maioria dos jantares são eventos estritamente segregados por
gênero, e Licínia não pensaria mais em participar de um dos jantares de
Marcus do que Marcus pensaria em invadir um dos encontros matinais que
ela tem com as outras esposas em seu salão matinal.

Quintus disse com a maior gentileza de que foi capaz:


“Pompônia, você poderia convidar as senhoras [para almoçar];
vou convidar os homens.”
Nada, pensei, poderia ser colocado de forma mais educada, não
apenas pelas próprias palavras, mas também pela intenção e por
sua expressão. Mas ela, aos ouvidos de todos nós, exclamou:
“Eu? Eu sou apenas uma estranha aqui!”
A origem dessa explosão foi, eu acho, o fato de Estácio ter ido
antes de nós para cuidar dos preparativos para o almoço.
[Excluindo assim Pompônia de uma tarefa de que uma
materfamilias deveria ser encarregada.]
Depois disso, Quintus me disse: “Pronto, é isso que eu tenho que
aturar todos os dias.”
Você pode dizer: “Bem, o que isso significa?”
Na verdade, significa muito. Ela irritou até a mim com a
veemência desnecessária de sua resposta, sem mencionar como
olhou para ele enquanto falava. Ainda assim, escondi minha
irritação quando nos sentamos à mesa — para uma refeição de
que ela não participou. Quintus mandou os pratos para o quarto
dela, mas ela os mandou de volta.
Em resumo, tive a impressão de que ninguém poderia ser mais
temperamental do que meu irmão, ou mais despeitado do que
sua irmã.
CÍCERO A ÁTICO [IRMÃO DE POMPÔNIA] Cartas 5.1
Em vez disso, Licínia participa dos jantares por procuração,
orientando rigorosamente Marcus de antemão sobre o que dizer e para
quem dizer. Então, enquanto a refeição está em andamento, Licínia deixa de
infernizar a vida do cozinheiro e vai interrogar os criados designados para o
serviço sobre como cada curso está sendo recebido, o clima geral da reunião
e os tópicos específicos que estão sendo discutidos. Licínia também
costumava mandar pelos criados pequenos bilhetes para Marcus com
instruções e orientações durante as refeições, até que o marido, mesmo tão
bem-educado, foi forçado a assumir uma posição e apontar que isso o fazia
parecer ridículo perante seus companheiros de jantar.
“… faça com que seja servido apenas para as pessoas no divã de cima.
O Mamertino é bom o bastante para os outros. Ou você acha que devemos
servir aos divãs de baixo o último vinho grego que ganhamos de presente de
um de seus clientes? Se ao menos seus outros clientes fossem tão gratos
quanto esse…”
Marcus tem vaga consciência de que a esposa está falando sobre os
arranjos de vinhos para o jantar. Na opinião dela — e de muitos outros
anfitriões romanos —, o vinho realmente bom e caro deve ser reservado
apenas para quem está no divã de cima em um jantar. Ele diz a si mesmo
para não esquecer de contrariar silenciosamente, mas, com firmeza, as
instruções da esposa aos servos e garantir que todos bebam Massic de boa
qualidade. Alguns dos que estão nos divãs mais baixos são jovens
promissores que se lembrarão de um descaso, como um prato de qualidade
inferior, e retribuirão o insulto com juros, quando puderem.

Cinna, o tamanho das taças em que bebo e o tamanho daquelas


em que você bebe estão na proporção de sete para onze. E, no
entanto, você reclama por receber um vinho inferior.
MARCIAL, Epigramas 12.28

Uma sala de jantar romana geralmente tem três sofás (que é o que dá
nome ao triclínio). Os convidados se reclinam, apoiados sobre um cotovelo,
três ou quatro em um divã, e comem em uma mesa ao redor da qual os três
sofás estão dispostos. Geralmente, no final de um curso, os garçons
simplesmente retiram a mesa inteira pelo lado aberto e trazem uma nova já
carregada com os pratos do próximo curso. Um jantar é geralmente uma
oportunidade para o anfitrião mostrar riqueza, bom gosto e conexões
poderosas, então, ele se esforçará para garantir que a comida seja a melhor
que ele — ou melhor, sua esposa — possa proporcionar, e que a comida
seja servida às pessoas mais influentes que ele puder encontrar.

No outro dia, aconteceu de eu estar jantando com alguém que


não conheço muito bem. Esse sujeito (na opinião dele) faz as
coisas de maneira econômica, mas com talento. Até onde posso
ver, ele combina o pior da avareza com extravagância.
Pratos elegantes foram servidos para mim e para alguns
favoritos, enquanto todos os outros que lá estavam recebiam
comida barata e restos. Havia também três tipos de vinho em
garrafas pequenas — não para dar aos convidados uma escolha,
mas para remover completamente o poder de escolha. Havia um
vinho para nós e nosso anfitrião, e outros tipos para seus amigos
menores e menos importantes (aparentemente, ele classifica suas
amizades por graus).
PLÍNIO, o Jovem, Cartas 19

Entre os romanos aristocráticos, é considerado falta de educação


discutir negócios ou política durante o jantar. Em vez disso, a conversa deve
ser sobre assuntos abstratos, como crítica poética, demonstrações de
erudição ao discutir as origens de verbos latinos raros e debate filosófico
educado, mas espirituoso. Nos dias em que costumava enviar os bilhetes à
mesa, Licínia tentava constantemente convencer Marcus a conduzir a
conversa na direção desses tópicos. Nunca funcionou, porque os jantares
que Marcus frequenta nunca passaram perto da mesa de um aristocrata, e
ele não têm intenção de perder a chance de conversar com seus colegas.
Para desgosto de Licínia, que está espionando à porta, a conversa
geralmente permanece centrada em taxas de juros, legislação imperial,
impostos provinciais e futuro dos grãos. Quando se afastam desses temas,
geralmente é para discutir as perspectivas de uma ou outra equipe nas
corridas de bigas, ou as chances de um renomado gladiador em uma
próxima luta na arena.
“… antes que o flautista termine. Marcus. Creio que você não está
ouvindo uma palavra do que eu digo. O que é, menina?” A “menina” é a
escrava, Seluca (que, apesar da forma aviltante de tratamento é, na verdade,
uma década mais velha do que sua senhora). Ela engole em seco e transmite
a notícia que trouxe, o porteiro garante que o cozinheiro ainda não chegou.
O cozinheiro agora está decididamente atrasado, e, como ele traz o próprio
bufê com ele, a festa noturna nesse momento não tem comida nem ninguém
para prepará-la. Licínia agora se arrepende amargamente de ter dado a noite
de folga ao próprio cozinheiro.
Não há nada a fazer a não ser enviar mensageiros aos comensais
pedindo que adiem sua chegada em uma hora, enquanto todos os outros
criados disponíveis na casa vasculham a área ao redor da residência do chef
com ordens para encontrar o cozinheiro desaparecido e trazê-lo para a
residência Manidus — à força, se necessário. Licínia dá suas ordens com
um desespero silencioso. Marcus pode ser o anfitrião, mas o planejamento e
a execução bem-sucedidos de um jantar recaem diretamente sobre os
ombros da materfamilias encarregada da casa de Marcus. Se o jantar chegar
sequer perto do fracasso que nesse momento ameaça ser, Licínia pode
contar com a simpatia simulada de seus pares pelas próximas semanas.
Ela olha para o marido. “Isso é tudo culpa sua…”

[Os romanos levavam os próprios guardanapos


para um jantar.
Nem sempre voltavam com eles.]

Hermógenes, parece-me, é um grande ladrão


de guardanapos, como Massa era de dinheiro.
Mesmo que você observe sua mão direita e segure a esquerda,
ele encontrará uma maneira de roubar seu guardanapo.

Quando finalmente, sabendo que seria roubado,
ninguém trouxe um guardanapo,
Hermógenes roubou a toalha da mesa.

Por mais terrivelmente quente que se torne o teatro,
Eles arrancam os toldos quando Hermógenes aparece.
Os marinheiros, com pressa trêmula, começam a enrolar suas
velas
Se Hermógenes se apresentar no porto.

Hermógenes nunca levou um guardanapo a um jantar;
Hermógenes nunca saiu de um jantar sem um.
MARCIAL, Epigramas 12.29
HORA X
(16h–17h)

A LAVADEIRA TRABALHA ATÉ


MAIS TARDE

Canto sobre lavadeiras e corujas, não sobre exércitos e o


homem.
Grafite da Fullonica de Fabius Ululitremulus (Corpus Inscriptiones Latinarum,
Pompeia 4.9131)14

Quem for procurar por Caecilius, o cozinheiro — como os escravos da casa


Manidus fazem agora — agirá como os escravos da casa Manidus e deixará
o quintal de Thais, a lavadeira, por último. Não porque Caecilius não esteja
lá com frequência — na verdade, como ele e Thais têm um envolvimento
romântico, o cozinheiro passa muito tempo lá. No entanto, os aromas do
jardim são tão avassaladores que os escravos preferem passar mais tempo
procurando em lugares mais cheirosos, onde Caecilius provavelmente não
está, do que no salão odorífero onde ele provavelmente está.
O triste é que, com exceção dos curtumes, poucos lugares em Roma
cheiram pior do que uma lavanderia. E os curtumes são relegados por lei ao
distrito de Transtiberim, a oeste do Tibre. Contudo, como o trabalho de
lavanderia é um trabalho especializado e nenhum romano lava as próprias
roupas, há uma lavanderia para o público em geral em quase todas as
quadras residenciais da cidade — então, não há como escapar do cheiro.
A fullonica de Thais é um estabelecimento típico. É um edifício
grande e arejado, projetado para captar cada brisa que passa e levá-la pelo
interior do salão. Thais, como toda lavadeira, está preocupada em levar ar
fresco para suas serviçais pelo simples motivo de que elas morrerão,
provavelmente, se não o receberem. Os produtos químicos usados na
limpeza das roupas são potentes — e pungentes. O escravo que se aproxima
desse prédio em busca de Caecilius sabe do que está se aproximando por
causa da combinação de dois odores que tomam de assalto suas narinas
quando ele se chega à porta — enxofre e urina rançosa.

A urina dos homens alivia a gota, como mostra o testemunho das


lavadeiras, que, por isso, afirmam nunca sofrer desta doença.
PLÍNIO, História natural 28.18

Os romanos acreditam que lavar roupas com urina torna os brancos


mais brancos e as cores mais brilhantes, e esse ingrediente mágico também
remove manchas difíceis. E os romanos estão certos. Sim, esse produto
maravilhoso, o xixi humano, é o que tem a confiança de todas as
materfamilias para a toga branca brilhante de seu marido e para suas roupas
de dormir sedutoramente tingidas. Isso ocorre porque a urina contém o
componente especial amônia, que ainda estará presente no sabão em pó
daqui a dois milênios. Em uma era pré-química, a melhor maneira de obter
amônia é a partir daqueles dispensários baratos e autoalimentados
conhecidos como bexigas humanas.
O que a urina realmente contém é ureia e muito nitrogênio. A
lavadeira mistura isso com um pouco de terra e deixa em um jarro aberto
por uma semana. As bactérias na terra trabalham devorando o nitrogênio na
urina (esse teor de nitrogênio também é o motivo pelo qual a urina pode ser
usada como fertilizante) e produzem amônia como subproduto. Outro
subproduto do processo é um miasma asfixiante que enche a sala e produz
náuseas instantâneas nos inexperientes.
A amônia é necessária para lavar roupas porque a pele humana é rica
em glândulas que produzem uma substância oleosa e cerosa chamada sebo.
Isso protege e umedece a pele, e, em um dia quente de verão em Roma,
suas substâncias químicas emulsionam o suor dos romanos para que se
torne um brilho refrescante na pele, em vez de rolar em gotas. O problema
com o sebo é que ele se espalha nas roupas, tornando-as gordurosas e
depois sujas, pois a gordura atrai a sujeira. A água pura não vai fazer nada
para mudar essa sujeira. A água, com adição do ingrediente extra “Especial
X”, usa amônia para quebrar a gordura e, assim, gera roupas mais limpas.
Mas, espere! Tem mais! As roupas romanas são tingidas por corantes,
que são feitos de materiais naturais, como sementes, folhas, líquens, cascas
e bagas. Esses corantes não são fixos. Eles não apenas saem na lavagem,
como se desprendem mesmo durante o uso normal, a menos que sejam
fixados às fibras do tecido por um agente químico conhecido como
“mordente”. Essa substância se liga aos cromóforos, que dão a um corante
sua cor e o envolvem com uma rede protetora. Os melhores mordentes em
uma sociedade pré-industrial são encontrados em — você adivinhou —
urina velha.
Quando a escrava que procura o cozinheiro, encontra Thais, que está
supervisionando o armazenamento da urina recolhida no dia. Esse
recolhimento acontece em grandes urnas, que Thais colocou de maneira
estratégica, especificamente para esse fim, nas esquinas das ruas, nos cantos
dos becos e atrás das tavernas selecionadas. Os romanos não precisam
gastar um centavo para se aliviar, porque o ato é subsidiado por Thais:
desde meados do século I, as lavadeiras têm que pagar um imposto por cada
urna que usam para coletar o que a natureza entrega com generosidade.

Quando seu filho Titus se opôs a Vespasiano, porque ele havia


criado um imposto sobre as urnas das lavadeiras, Vespasiano
segurou uma moeda do primeiro pagamento junto do nariz do
filho. “Tem cheiro?”
SUETÔNIO, Vida de Vespasiano 2315

Enquanto as urnas são empilhadas, outros escravos estão esvaziando


as piscinas de lavagem no pátio do salão. Como mencionado anteriormente,
os corantes romanos não são de cor fixa, então, é necessário que haja uma
piscina para verdes claros, outra para verdes escuros, outra para marrons e
assim por diante. As piscinas contêm uma mistura de água, corante diluído
e urina morna e são esvaziadas regularmente para evitar que fiquem fétidas
demais. Durante a jornada de trabalho, as roupas que forem deixadas pelo
cliente serão postas nelas de molho. (Thais mantém um registro cuidadoso
de quem depositou o quê, porque, se houver uma confusão ou se as roupas
forem perdidas ou danificadas, elas devem ser substituídas ou consertadas
por conta dela.)
Existem três maneiras de identificar as pessoas que trabalham em uma
lavanderia. Uma é o cheiro acre que parece impregnar até os próprios poros
da lavadeira, e outra é que essas pessoas costumam tossir muito, porque,
por mais bem arejada que seja uma fullonica, a mistura de detergentes
fortes acaba afetando os pulmões. Finalmente, todos os escravos têm pernas
de campeão Olímpico. Isso ocorre porque, depois que as roupas ficam de
molho por um bom tempo, elas são transportadas para as baias, agora
vazias, alinhadas nos dois lados do salão e colocadas em banheiras. Durante
o dia, os escravos ficam nas baias e pulam muito sobre as roupas para fazer
a amônia penetrar nas fibras. Esse salto é chamado de “pulo da lavadeira” e
é praticado nos ginásios por aqueles que desejam desenvolver os músculos
das pernas. Quem não tem escolha a não ser fazer isso o dia todo, todos os
dias, acaba com pernas muito bem desenvolvidas.
Thais olha para o recém-chegado como se o interrogasse, mas esse
olhar é desperdiçado. Em primeiro lugar, porque o salão já está muito
escuro para que sua expressão seja interpretada corretamente e, em segundo
lugar, porque o visitante está no meio de um ataque de espirros por causa de
uma pequena nuvem de enxofre que uma brisa leve soprou pelo salão. São
principalmente as togas que recebem o tratamento com enxofre, porque os
elementos voláteis no vapor da queima do enxofre são bons para remover
manchas.

Mas ela está escondendo sua paixão por um amante secreto. Ele
a encontra constantemente para compartilhar abraços roubados.
Na verdade, ela e seu rapaz estavam fazendo amor com muita
energia quando nós [o marido dela e eu] voltamos cedo da casa
de banhos para o jantar.
Nossa chegada dolorosamente repentina forçou a esposa a agir
rapidamente. Então, ela empurrou o amante para a caixa de
enxofre. Essa caixa era afunilada, feita de varas lisas de vime
com uma abertura estreita no topo. (Eles penduram sobre ela
roupas para branquear nos vapores do enxofre fumegante.)
Com o amante escondido em segurança, ela se juntou com
alegria ao marido à mesa. No entanto, o rapaz estava passando
por um momento difícil em meio à fumaça sufocante, penetrante
e ácida. Finalmente, a densa massa de fumaça começou a
sufocá-lo, enquanto os elementos ativos do enxofre agiram como
de costume e o fizeram espirrar — e continuar espirrando.
APULEIO, O asno de ouro 9.22ff

Irritada, Thais grita no corredor para que os escravos “mudem a baia”.


Os escravos fazem isso com bastante facilidade, pois o pedido está longe de
ser incomum e a atmosfera no salão já está sufocando o suficiente. Quando
uma toga é removida da tina, geralmente é torcida e pendurada para secar.
(O esforço de torcer de quatro a seis metros quadrados de lã encharcada que
compõem uma toga média garante que os antebraços dos funcionários do
estabelecimento sejam tão musculosos quanto suas pernas.) Uma toga tem
forma semicircular quando, quando não está enrolada com elegância em
torno de seu usuário romano, e isso facilita o ato de pendurá-la sobre a
estrutura curva de varinhas flexíveis usadas para secar e defumar uma toga.
Enquanto uma “tenda de toga” está pendurada sobre os vapores de
enxofre, os escravos trabalham em outra, penteando-a com pele de ouriço
para levantar a felpa (os fios na superfície do tecido) — processo que faz
com que o tecido da toga pareça mais espesso e mais luxuriante, e também
garante que o enxofre penetre em todos os cantos e dobras. Se a intenção
for usar a toga em uma ocasião particularmente especial, pode-se pedir à
lavadeira que prepare uma toga cândida. Estas togas são ultrabrancas,
porque foram esfregadas com terra de Címolos, que confere um brilho
perolado particular à peça.
LAVANDERIA (FULLONICA) ROMANA EM POMPEIA.

Os políticos dão atenção especial à toga candida, porque ela é usada


por qualquer pessoa que se candidata a um cargo público (e é por isso que
aqueles que estão nessa posição são chamados de “candidatos”). A
legislação é muito precisa e foi registrada pelo naturalista Plínio, o Velho:

Uma lei referente às lavadeiras ainda é válida… O processo


prescrito é o seguinte: o pano é primeiro lavado com terra Sarda
[da Sardenha] e depois é vaporizado com enxofre. Presumindo
que a tintura seja boa, a roupa deve depois ser esfregada com
terra de Címolos; se for colorida com tinta ruim, isso vai se
tornar evidente, porque ela fica preta e o enxofre faz as cores
escorrerem. No entanto, a terra de Címolos adiciona
profundidade e brilho às roupas adequadamente tratadas.
PLÍNIO, História natural 35,57

Entre tosses e espirros, o escravo consegue verbalizar com voz


sufocada a pergunta sobre o paradeiro do cozinheiro desaparecido. Thais
olha para o homem, sem saber se ele está debochando dela e de seu
estabelecimento ao exagerar e dramatizar demais os efeitos da atmosfera. A
própria Thais anda em lavanderias desde pequena, pois herdou o negócio do
pai. Ela não consegue, sinceramente, sentir o cheiro de que todo mundo
fala.
Isso é o que as eras posteriores chamarão de “habituação de odor”.
Assim como aqueles que moram ao lado de um ferreiro acabam se
acostumando com o barulho do martelo no metal a ponto de deixar de
registrá-lo, o cérebro de Thais há muito tempo aprendeu a ignorar o cheiro
de urina cheia de amônia como se, simplesmente, não fosse relevante para
suas atividades diárias. Às vezes, ela precisa verificar se um jarro está
pronto para ser usado, inclinando-se sobre ele para inalar o conteúdo, apesar
de o cheiro poder derrubar um visitante a 20 passos.

Thais cheira pior do que a urna de uma lavadeira gananciosa


que quebrou no meio da rua …
pior do que uma jarra fétida com conserva estragada.
Desejando ardilosamente esconder esse odor com outro
Ela descarta suas roupas e entra na banheira
Verde de depilatório e meio escondida
Sob uma camada de calcário dissolvido em ácido…
Então ela acha que está segura.
No entanto, apesar de mil artifícios, no final
Thais ainda cheira a Thais.
MARCIAL, Epigramas 6.93
Isso pode ocasionalmente ser um problema — por exemplo, quando
ela veste uma stola mal lavada e se vê andando pelas ruas lotadas de Roma
com uma bolha de dois metros de espaço livre na calçada ao seu redor.
Certamente, cria o inferno em sua vida amorosa.
Normalmente, uma mulher como Thais não teria problemas para atrair
os homens, pois sua ascendência grega asiática lhe deu cabelos escuros e
encaracolados brilhantes, olhos castanhos grandes e expressivos com um
formato ligeiramente exótico e uma figura de ampulheta bem musculosa
pelas exigências de seu trabalho. Caecilius, o cozinheiro, por outro lado,
não é um bom partido, pois, embora o homem seja uma maravilha com uma
frigideira e um peixe-gato, ele é fisicamente um tanto franzino, com o
queixo retraído e os olhos pálidos e lacrimejantes. No entanto, o cozinheiro
se habituou a cheiros fortes e gosta de uma mulher com apetite. Ver Thais
se esbaldar com uma tigela de mexilhões e espelta é uma experiência
comovente para um homem que, às vezes, sente que seus esforços não são
apreciados.
Mas Caecilius não está aqui agora, e Thais dá essa informação ao
escravo com tom brusco. Ele teve que cancelar seus planos para aquela
noite porque havia se comprometido com um show de culinária na casa de
alguma família de mercadores no Monte Caeliano. Uma pena.
O escravo está prestes a responder que é justamente por Caecilius não
ter aparecido no “palco da cozinha” para dar seu espetáculo que ele está
aqui. Porém, nesse momento, um dos trabalhadores derrama uma ânfora
cheia de eau de Romana natural bem envelhecida na piscina atrás dele. A
mistura também contém erva-doce e cascas de cebola trituradas e
demolhadas para melhorar a cor dos tecidos laranja que serão lavados nela.
Uma onda do cheiro de alcaçuz da erva-doce combinado com o odor de
cebola podre embebida em amônia dá ao escravo um tom pálido de verde.
Ele gorgoleja seus agradecimentos e foge do local, deixando para trás Thais
que, confusa, acompanha com os olhos sua partida.
14 A coruja simboliza Minerva, a deusa padroeira das lavadeiras. “Armas e o Varão” é a linha de
abertura da famosa Eneida, de Vergílio. (N.A.)
15 Por causa disso, os mictórios públicos em Paris eram até recentemente chamados de
Vespasiennes. (N.A.)
HORA XI
(17h–18h)

O COZINHEIRO FICA AFLITO

Eu preferiria que os pratos na minha mesa agradassem aos


comensais em vez do cozinheiro.
MARCIAL, Epigramas 9.81

Quando está subindo a colina carregando seus ingredientes especiais e


utensílios de cozinha especializados, Septimius Caecilius é visto por um
escravo da casa, que corre do portão da residência dos Manidus para
informar com urgência ao chef que ele está atrasado. Como se Caecilius não
soubesse.
Ele responde com um grunhido: “Agradeço pela informação. Se mais
tarde eu enfiar sua cabeça no meu forno, por favor, me informe que está
quente”. O cozinheiro não teve uma boa tarde. Desde que conheceu a
anfitriã Licínia há cinco dias e discutiu os arranjos para o jantar, Caecilius
sabe que esta é uma refeição que terá que ser preparada com um esforço de
equipe. Ou seja, a anfitriã ficará atrás dele o tempo todo e fornecerá um
fluxo constante de comentários, sugestões e críticas sobre o preparo da
comida, material que será completamente ignorado por Caecilius.
Não é como se ele não soubesse preparar tetrapharmacum. Desde que
o prato foi popularizado pelo imperador, tornou-se parte necessária do
repertório de todo chef. E esse é o problema. Claro, a refeição é
diabolicamente complexa de preparar. Afinal, se fosse fácil, cozinheiros
especializados como Caecilius não poderiam ganhar a vida. A refeição é
composta por “quatro drogas” (que é o que tetrapharmacum realmente
significa). Essas “drogas” são faisão, javali, presunto empanado em massa e
úberes de porca. (Antes havia um ingrediente adicional, pavão, mas —
francamente — isso era só exibicionismo. O faisão é mais fácil de obter e
tem um sabor muito melhor.)

A que tipo de festa o imperador se entregava quando algo que


custava tanto dinheiro era apenas um acompanhamento de um
jantar modesto? Algo para ser arrotado por um parasita vestido
de roxo…
JUVENAL, Sátira 4

O faisão é facilmente adquirido no mercado, que Caecilius visitou


naquela manhã. O presunto empanado é ainda mais fácil, pois, para obtê-lo,
ele só precisava retirá-lo da prateleira da própria despensa. A massa
folhada, leve e quebradiça, está embrulhada em uma folha de couro fino,
esperando para ser desenrolada na cozinha dos Manidus. Javali parece ser
difícil de conseguir, mas Caecilius tem conexões com os açougueiros, que o
alertam sempre que um novo suprimento chega. Além disso, o javali deve
ter um toque de carne de caça, então, o fato de sua carne ter — cof cof —
maturado não é realmente um problema. O problema são os úberes de
porca.
COMPRA DE LEBRES EM UMA BANCA DO MERCADO.

Todos os outros ingredientes são envoltos no úbere e libertados


quando ele é cortado. Portanto, você vai precisar de um úbere grande. O
que significa que você precisa de uma porca que esteja amamentando
leitões. O que significa que você precisa de um camponês que esteja
preparado para sacrificar uma porca reprodutora antes que seus leitões
sejam desmamados. E você tem que vencer todos os outros chefs de Roma
na disputa por esses úberes, porque o anúncio de úberes à venda faz com os
chefs o que o sangue na água faz com os tubarões.
Consequentemente, Caecilius fará tudo o que puder para orientar a
anfitriã a escolher outros pratos. Ele insinuou com astúcia os encantos
exóticos do bife de tigre ou do filé de girafa. (Um show apresentado no
Coliseu recentemente exibiu a morte desses e de outros animais às centenas.
Os romanos têm uma atitude de “sem desperdício, não vai faltar” em
relação a essas coisas, e quase todas as criaturas abatidas na arena acabaram
encontrando o caminho para uma mesa de jantar romana. Caecilius até
experimentou crocodilo, que ele achou inesperadamente macio e suculento,
um pouco parecido com um bom frango.)
Embora tenha despertado o interesse da anfitriã, Licínia decidiu que,
com sua reputação em jogo, ela preferia agir com segurança. Uma senhora
da alta sociedade pode rir, se seu picadinho de elefante for de mau gosto,
mas alguém lutando para subir na escala social não pode correr esse risco.
Nesse caso, sugeriu Caecilius, a anfitriã talvez queira experimentar
seu prato assinado especial. Nunca foi servido em um jantar comemorativo,
mas ele estava eufórico com isso. Quem não gosta de caracóis fritos
alimentados com leite em azeite com molho de tripa de peixe putrefato?
Caecilius tem uma gaiola especial em sua cozinha com uma coleção de
Helica pomatia, o caracol comestível romano. Quando chega um pedido
para o jantar, os caracóis são mergulhados em potes contendo uma mistura
de leite, mosto de uva e farinha de cevada. A cada poucas horas, um
escravo limpa os excrementos, enquanto os caracóis se empanturram até
ficarem gordos demais para voltarem às conchas. Então, estão prontos para
a fritura no mais delicado azeite extravirgem de primeira prensagem.
Para completar esta extravagância gustativa, Caecilius acrescenta duas
colheres de chá de liquamen. Esse molho salgado de peixe é muito
apreciado pelos romanos, que importam milhares de amphorae da Espanha
todos os anos. É melhor preparar o liquamen no sol quente espanhol, onde
os intestinos de peixe são jogados em água salgada e deixados para se
liquefazer. O resultado é coado em um pano fino para que o líquido (rico
em proteínas e vitamina B) seja vendido como liquamen, e o restante
semissólido como molho garo.

RECEITA DE LENTILHAS COM COENTRO


Cozinhe as lentilhas. Assim que a mistura espumar [retire a espuma] adicione alho-poró
[picado] e coentro verde. Se ainda não estiver triturado, esmague a semente de coentro com
poejo, raiz de sílfio e sementes de hortelã e arruda. Umedeça a mistura com mel e vinagre, um
pouco de garo [use molho de soja, se o garo não estiver disponível] e defrutum [xarope de uva,
se o mercado local não tiver defrutum]. Por fim, adicione o azeite e polvilhe com pimenta
quando as lentilhas estiverem quase prontas.
APÍCIO 192

Caecilius tornou-se positivamente poético ao descrever esse deleite


culinário, mas sem sucesso. Licínia estava irredutível. Se o tetrapharmacum
é bom o suficiente para a mesa do imperador, certamente pode enfeitar a
dela. A entrada — tordos assados em pequenos pães — e a sobremesa —
bolos de mel ao vinho — podem ser selecionadas e preparadas a critério do
chef. Mas, se ele não quiser preparar o tetrapharmacum, Licínia encontrará
um chef que o faça.
Desesperado, Caecilius enviou um de seus criados para percorrer as
pequenas propriedades fora de Roma, ordenando ao homem que comprasse
a porca inteira, se necessário, desde que voltasse com os valiosos úberes.
Durante a manhã, enquanto preparava os outros ingredientes, Caecilius
esperou com ansiedade cada vez maior a volta do criado. Quando voltou —
para desespero assassino de Caecilius —, o homem estava de mãos vazias.

RECEITA DE SALSICHA SEM CARNE


Despeje o mosto [vinho no início da fermentação] sobre a farinha e adicione as sementes de
anis e cominho [trituradas]. Misture banha [ou gordura vegetal] e queijo ralado [queijo de
cabra funciona bem]. Sove a mistura da massa e forme rolinhos. Coloque uma folha de louro
sob cada um. Asse até ficar pronto.
CATO, De Agricultura 121

Não havia nada a fazer, a não ser que Caecilius recorresse ao último
recurso do chef e se colocasse à mercê de seus pares.
O criado foi enviado a outras cozinhas da cidade para indagar se
alguém tinha úberes de porca disponíveis, informando que Caecilius estava
disposto a oferecer tudo, inclusive seu filho primogênito, pelo ingrediente.
Era fim de tarde quando o criado encontrou o que procurava. Um chef da
Ilha Tiberina estava preparando tetrapharmacum para um jantar que uma
sacerdotisa de Ísis ofereceria aos nobres locais.
No último momento, a sacerdotisa descobriu que, como vários desses
nobres locais eram judeus, os úberes de porca estavam definitivamente
excluídos do cardápio. Se Caecilius fosse capaz de fornecer algumas de
suas famosas lebres guisadas em troca, disse o chef, ele poderia ficar com
os úberes. Isso exigiu que Caecilius fosse pessoalmente à Ilha Tiberina,
correndo, carregando vários filés de esturjão pôntico fresco (ou quase). O
cozinheiro da sacerdotisa ficou surpreso ao ser informado de que a lebre
guisada teria violado as restrições alimentares judaicas de forma tão
abrangente quanto a carne de porco, e o chef agradecido entregou os úberes
da porca em troca do peixe.
Como bônus, os úberes já estavam limpos, marinados e preparados, de
modo que tudo o que Caecilius precisa fazer quando chegar à casa dos
Manidus será recheá-los com seus ingredientes prontos e assá-los.
Caecilius enviou um criado antes dele para preparar o forno no local
do jantar e começar a preparar os tordos. Então, ele está sozinho quando sai,
atrasado e já exausto. Sem a ajuda do criado, ele tem que transportar
sozinho todo o equipamento, carregado como o proverbial burro.
O comentário sobre seu atraso por parte do escravo que encontrou
Caecilius ainda fora da casa é a mais branda das reprimendas, comparada à
enxurrada de injúrias com que Licínia recebe seu cozinheiro itinerante.
Caecilius a interrompe de maneira brusca, mas educada.
“Senhora, podemos discutir minhas dificuldades para chegar aqui, ou
posso preparar o jantar para seus convidados. Se preferir a primeira opção,
estou aqui à sua disposição.”
Caecilius está muito feliz por não ser o cozinheiro escravo de uma
casa rica, onde essa ousadia resultaria — no mínimo — em uma surra. Não
é incomum que tais cozinheiros sejam castigados fisicamente, inclusive
durante uma refeição, e o poeta Marcial menciona anfitriões que “preferiam
cortar o cozinheiro ao seu coelho”. O pior que Caecilius pode perder é sua
reputação, e, como a reputação de Licínia também está em jogo, ele sabe
que ela vai recuar diante do ultimato.

Sobre a mesa, havia uma bandeja com um enorme porco. Todos


nós expressamos nossa admiração pela velocidade com que foi
cozido e juramos que uma simples ave comum não poderia ter
sido assada naquele tempo. Isso era ainda mais impressionante
porque o porco parecia ser um animal muito maior do que o
javali do curso anterior. Após alguns segundos, Trimalchio, que
olhava com atenção cada vez maior para a refeição, exclamou:
“Não! Não! Foi eviscerado? Não! Pelos deuses — não foi.
Chamem o cozinheiro!”
O cozinheiro apareceu. Ficou ao lado da mesa. Desgostoso,
admitiu com tristeza que isso nem tinha passado por sua cabeça
— ele tinha esquecido completamente. “Não passou por sua
cabeça?”, gritou Trimalchio. “Ouçam isso! Era de se pensar que
ele pudesse esquecer de adicionar uma pitada de pimenta ou um
toque de cominho. Dispam-no [para uma surra]!”
Momentos depois, o cozinheiro foi despido. Ele parecia
terrivelmente miserável entre dois dos capatazes de Trimalchio.
Todos começaram a interceder em favor do cozinheiro, dizendo:
“Essas coisas acontecem. Perdoe-o desta vez e, se ele repetir o
erro, ninguém falará por ele”.
Pessoalmente, eu era implacável em minha indignação. Não
pude deixar de me inclinar e murmurar no ouvido de [meu
amigo] Agamenon: “Ele deve ser um péssimo criado. Por
Júpiter, como alguém esquece de eviscerar e limpar um porco?
Se dependesse de mim, o homem não poderia esperar
misericórdia, mesmo que tivesse tido esse descuido com um
peixe”.
Mas Trimalchio exibia um sorriso largo. “Muito bem, então!”,
ele decretou. “Se sua memória está tão ruim, faça a evisceração
agora, para que todos possamos ver que a fez.”
Ao receber essa ordem, o cozinheiro, trêmulo, pegou sua faca e
cortou a barriga do animal. O corte se alargou com a pressão
interna, e dele brotou um banquete de salsichas e morcelas.
Todos os criados aplaudiram em uníssono… e o cozinheiro foi
recompensado com uma taça de vinho.
PETRONIUS, Satyricon 49–50

A cozinha estava quente como um forno, como deveria ser. Caecilius


agradece ao criado e à Fornax, a deusa dos fornos, por tudo estar preparado
para ele começar assim que desembalasse os ingredientes. A casa era
equipada com o forno romano padrão, que é uma estrutura baixa construída
junto à parede. Geralmente é de tijolos ou telhas, com espaço para duas
câmaras internas semicirculares, e um grande teto plano de barro.
Há uma variedade de panelas na prateleira ao lado dos fornos, e
Caecilius as observa com um olhar experiente. O forno em si é basicamente
dois fogos abertos em câmaras em arco, nas quais as toras se transformaram
em grandes brasas. Para assar neste forno, seleciona-se uma panela de
tamanho e espessura apropriados, adiciona-se uma gordura e quaisquer
outros ingredientes necessários e insere-se a panela com tudo no forno.
Depois, é uma questão de cronometrar cuidadosamente para que a
argila da panela fique na temperatura certa, movendo-a no forno, ou mesmo
tirando-a das brasas, e mexendo sempre os molhos em panelas de cobre
aquecidas sobre a parte superior plana do forno. Retire a panela, desenrole
cuidadosamente o arame que segura a tampa fechada — e pronto! Uma
refeição bem assada, pronta para a mesa.
O forno pode ser de boa qualidade, mas o resto da cozinha não
impressiona. Muitas cozinhas, mesmo em casas romanas de primeira classe,
são cômodos bastante acanhados nos quais o dono da casa raramente se
aventura. A senhora é outra história, no entanto, pois ela considera parte de
seus deveres garantir que o cozinheiro não esteja desperdiçando o dinheiro
da casa com compras extravagantes, ou fingindo pagar denários por
ingredientes enquanto adquire mercadorias de qualidade inferior e embolsa
a diferença. Caecilius fica satisfeito ao ver que esta cozinha é abastecida
com bom senso, pelo menos, e que o cozinheiro regular, conforme foi
solicitado, providenciou todas as ervas e os utensílios de cozinha de que ele
vai precisar. Talvez a refeição corra bem, afinal.
Quando Licínia sugere sarcástica que Caecilius talvez queira começar
realmente a cozinhar, o porteiro aparece na porta da cozinha. Um dos
criados da fullonica de Thais foi enviado pela namorada de Caecilius para
falar com ele e informar que alguém o está procurando. Aparentemente, ele
está atrasado para preparar algum jantar.
HORA XII
(18h–19h)

A SACERDOTISA PREPARA O
SACRIFÍCIO

Una quai es omnia, Dea Iset — Sendo uma, você é tudo, Deusa
Ísis.
INSCRIÇÃO DE UM CANTO ROMANO À DEUSA

A sacerdotisa suspira e olha para os filés de esturjão deixados pelo


cozinheiro Caecilius. Esses homens devem ser chefs profissionais. Então,
por que, em nome da Deusa, eles não se esforçam para descobrir quais são
as necessidades alimentares de seus clientes? Primeiro, aquele cozinheiro
ignorante que ela havia contratado estava preparando úberes de porca,
apesar de saber que ela tem vários convidados judeus para a ceia tardia.
Certamente, a única coisa que todos em Roma sabem sobre os judeus é que
eles não comem carne de porco?
Na verdade, a própria sacerdotisa também não come carne de porco.
Espanta-a que muitas de suas companheiras romanas o façam, já que o
porco é um animal tão impuro. Além disso, de todos os animais, o porco é o
mais inclinado a acasalar sob a lua minguante, quando as forças da vida
diminuem. Que bem pode advir de uma criatura concebida dessa maneira?
Além de tudo isso, como a sacerdotisa explicou com muita paciência
ao seu cozinheiro (enquanto continha um impulso não sacerdotal de bater
na cabeça dele), é fato bem conhecido pelos egípcios que aqueles que
bebem leite de porca são acometidos por lepra e coceira escabrosa. No
entanto, ele quer alimentar seus convidados exatamente com os úberes em
que esse leite é produzido? Que sobremesa ele estava planejando — calda
de beladona mortal sobre bolos de aconitum?
Aparece então aquele arrogante Caecilius, todo orgulhoso e cheio de si
por saber que o povo judeu também não come carne de lebre — outra coisa
que seu cozinheiro profundamente ignorante não sabia. Porém ele trouxe
peixes — como se uma sacerdotisa de Ísis pudesse comer peixe!
Certamente, outros egípcios comem peixe, e, de fato, razões religiosas
determinam que eles devem grelhar seus peixes no nono dia do primeiro
mês. A sacerdotisa compra o peixe, pois sua religião determina que é o que
deve ser feito nesse dia. Mas ela deixa o peixe continuar cozinhando em seu
pequeno fogão na calçada, do lado de fora de sua casa, até que ele queime
diante da porta.
O peixe é uma criatura impura, pois vem do mar, e o mar é um
elemento supérfluo, material indesejado que sobrou da criação. O mar é
inútil para arar ou beber ou qualquer outro propósito, e, se os deuses não
acharam conveniente fazer uso do mar, sua sacerdotisa certamente não
consumirá os frutos de suas águas profanas, impuras e contaminadas. De
fato, a sacerdotisa gostaria de beber apenas das águas das quais o íbis, o
pássaro sagrado, bebeu, assim como os sacerdotes no grande templo de
Philae no santo Egito fazem — pois, como dizem, o puro nunca deve tocar
o impuro —, e o íbis só bebe água impoluta.

Bem-aventurada Rainha dos céus, doce mãe da humanidade,


que, com sua graça e generosidade, alimenta a todos, mesmo os
mais miseráveis do mundo. Nenhum dia, noite ou um único
instante passa sem suas bênçãos. Você protege a humanidade na
terra e no mar, mitiga as tempestades do infortúnio e detém os
destinos [malignos] escritos nas estrelas. Os deuses acima a
adoram, e os deuses abaixo a honram.
Ao seu comando, os ventos sopram, as nuvens regam a terra, as
mudas brotam e dão frutos. Os pássaros no alto, os animais das
montanhas, as serpentes em seus covis, até os monstros das
profundezas tremem ao seu poder.
Meu espírito é muito pobre para cantar seus louvores completos,
minha riqueza de palavras, muito mesquinha para oferecer como
sacrifício. Não tenho palavras para ofertar o que está em meu
coração. Nem teria ainda o suficiente, mesmo com mil línguas
em mil bocas. Tudo o que seu pobre adorador pode fazer é
lembrar-se sempre de você e guardar sua imagem dentro do meu
coração.
APULEIO, O asno de ouro 11.25ff

A pureza é importante para os seguidores da deusa Iset, a quem os


romanos chamam de Ísis. Por essa razão, enquanto se prepara para o
sacrifício, a sacerdotisa veste um manto de linho. Ao contrário da lã, que
cresce da carne que envelhece, corrompe e morre, o linho do qual o tecido é
derivado vem da terra eterna e imortal. A sacerdotisa, em preparação para o
sacrifício, removeu todos os pelos de seu corpo como supérfluos e impuros.
Por que, então, ela se vestiria com pelos de animais? O linho é simples,
limpo e menos propenso a abrigar piolhos.
Além disso, seu manto foi colhido quando o linho estava em flor, e,
mesmo sem tingimento, o tecido brilha com o azul celeste do céu. Por que
trocar uma roupa dessas por um manto de lã áspera? Agora, a sacerdotisa
contempla a refeição que ela oferecerá após o sacrifício. Basicamente, trata-
se de relações com a comunidade. Cada nação sob o sol tem um
complemento de seus povos em Roma. Há britânicos de rosto vermelho e
descascando, desacostumados ao calor italiano; há mouros morenos dos
desertos profundos da África; e uma vez ela até conheceu um homem que
dizia ser da lendária China, a terra dos dragões, da seda e das lendas.
Ao contrário dos seguidores judeus de seu Deus Único e dos
adoradores palestinos de Ba’al em suas muitas formas, os seguidores de Ísis
são um grupo cosmopolita. Iset, a deusa-mãe egípcia, agora é Ísis, a
Compassiva, a quem gregos, romanos, celtiberos, isauros e muitos outros
oram. Claro, eles também rezam para outros deuses, e todos (exceto os
judeus e cristãos, que a sacerdotisa considera francamente insanos) rezam
para o imperador e o grande Júpiter, guardião de Roma. Até a própria
sacerdotisa é henoteísta, o que significa que, embora dedicada a Ísis, ela
reconhece a existência de outros deuses e até reza para eles de vez em
quando.
ESTÁTUA DA SACERDOTISA DO ISAEUM EM POMPEIA.
TUDO SOBRE ÍSIS
Sabemos muito mais sobre a religião de Ísis do que sobre outras religiões contemporâneas,
porque o escritor contemporâneo (e sacerdote) Plutarco era fascinado pela deusa e muito
respeitoso a ela. Seus escritos Sobre Ísis e Osíris são repletos de detalhes das crenças e dos
rituais iseanos.

Uma questão que afeta a sacerdotisa é que há uma grande população


judaica em seu distrito. (Os judeus gostam de viver juntos, pois assim
escolas, sinagogas e açougues que atendem às suas necessidades estão todos
à mão.) No entanto, devido ao seu estrito monoteísmo, os judeus não
participam das grandes celebrações da religião dela — que são divertidas,
coloridas, fornecem grandes quantidades de comida gratuita e são
apreciadas com entusiasmo pela maioria dos romanos. A celebração de 5 de
março tinha sido uma procissão do templo maior de Ísis, o Iseum Campense
no Campo de Marte, até o rio perto da Ilha do Tibre. Lá, um barco havia
sido formalmente abençoado como representante do barco em que Ísis
viajava pelo mundo procurando partes do corpo de seu amado Hórus,
espalhado pela Terra pelo deus maligno Set.
Além de serem cheios de vida e cor, os festivais são ocasiões
barulhentas e agitadas. Os anciãos barbudos que a sacerdotisa entreterá esta
noite desejam ter certeza de que o festival do final de outubro será mais
calmo, mais contido e menos angustiante para sua congregação. Neste
festival de outubro — bem, para ser honesto, nesta festa de rua com
conotação religiosa —, o papel de Ísis na morte e ressurreição do deus
Serápis será celebrado com entusiasmo. A tarefa da sacerdotisa esta noite
— ajudada, ela espera, por filés de esturjão preparados com esmero — será
dizer aos anciãos diplomaticamente que não, a festa será barulhenta,
desenfreada e turbulenta como sempre, e eles podem se acostumar com a
ideia.
Afinal, os seguidores de Ísis conduzem seus assuntos principalmente
longe dos olhos do público, em templos e santuários fechados às massas.
Ao contrário das cerimônias dedicadas aos deuses de Roma, que são
assuntos muito públicos, muitos dos ritos a Ísis são mistérios dos quais os
profanos são excluídos. Inclusive o sacrifício que a sacerdotisa fará esta
noite será feito dentro das paredes fechadas do santuário, com apenas dois
acólitos presentes. Assim, duas vezes por ano, os festivais de Ísis irrompem
em domínio público. Esses festivais também recrutando seguidores, pois os
curiosos perguntam aos devotos sobre a deusa e seus ritos. Durante o resto
do ano, o santuário de Ísis e as sinagogas e igrejas locais se dão bem, exceto
pelo estranho — às vezes muito estranho — pregador cristão que fica do
lado de fora do santuário e o denuncia como um antro de maldade e
prostituição. (Uma acusação equivocada. Embora as prostitutas
frequentemente perambulem pelos templos romanos cujos pórticos as
protegem da chuva e do vento, os seguidores de Ísis são, na verdade, menos
libertinos do que os membros do público em geral. Isso ocorre porque sua
religião exige períodos de abstinência sexual antes de certas celebrações
religiosas.)

E assim chegamos ao dia do sacrifício. Ao cair da noite, muitos


sacerdotes chegaram… e todos os leigos profanos foram
expulsos do local. Eles colocaram um manto de linho sobre
minhas costas e depois me conduziram para a parte mais íntima,
secreta e sagrada do templo.
Agora, sendo um estudante dedicado, você pode querer saber o
que foi dito e feito enquanto eu estava lá. E, de fato, eu lhe
contaria, se me fosse lícito contar. Mas, se fosse apropriado
saber, você já saberia. Se eu satisfizer ainda mais sua
curiosidade imprudente, tanto seus ouvidos quanto minha língua
sofreriam por isso.
APULEIO, O asno de ouro 11.23

Já passou o tempo em que as autoridades romanas perseguiam os


seguidores de Ísis, e a sacerdotisa pretende lembrar seus convidados desse
fato com toda gentileza. Ela também planeja mencionar que as suspeitas da
República Romana foram despertadas justamente porque os seguidores
praticavam sua religião em silêncio e em particular. Embora, para dizer a
verdade, o senado também não gostasse da natureza cosmopolita da
congregação. Escravos, estrangeiros e despossuídos conviviam com
senhoras bem-nascidas e um ou outro aristocrata durante as cerimônias, o
que fazia dos templos de culto à deusa lugares ideais para fomentar
revoluções.
O resultado foi que, em 50 a.C., os templos particulares de Ísis foram
proibidos, e o cônsul liderou pessoalmente uma gangue de padres e
trabalhadores para desconsagrar fisicamente um desses templos. Os
trabalhadores responderam com uma greve improvisada, apontando que
aquele era o templo de uma grande deusa, e derrubar o local poderia atrair
sua atenção desfavorável. Então, o cônsul — um certo Aemilius Paullus —
tirou a toga, pegou um machado e começou a trabalhar pessoalmente nas
portas do templo. Os sentimentos contrários a Ísis atingiram um pico na
época de Augusto, quando todos os templos de Ísis foram removidos à força
do interior do pomerium, o limite sagrado de Roma (esta é a razão pela qual
o santuário das sacerdotisas fica perto da Ilha Tiberina, fora desse limite,
portanto). No entanto, Augusto terminou as guerras civis fazendo campanha
contra Marco Antônio e sua aliada Cleópatra do Egito. Em sua propaganda,
Cleópatra afirmava ser a reencarnação de Ísis. É possível deduzir o que a
deusa pensava dessa ideia em particular a partir do que aconteceu com
Cleópatra e Marco Antônio posteriormente. A deusa não gosta daqueles que
adotam seu nome em vão.
O imperador Tibério mandou derrubar até esses santuários e jogar
estátuas da deusa no rio. Porém, tanto Calígula quanto Nero (imperadores
que não são avessos à diversão) eram partidários de Ísis. O imperador
Domiciano certamente tinha sido, porque, quando seu pai, Vespasiano,
declarou guerra ao então governo de Roma, Domiciano fugiu de Roma para
um lugar seguro sob o disfarce de um cultista de Ísis. Além disso — como a
sacerdotisa não lembrará a seus convidados, a menos que se trate de uma
briga de puxar a barba com guardanapos —, antes de celebrar formalmente
seu triunfo sobre os judeus na guerra de 64–70 d.C., o imperador
Vespasiano e seus filho Titus já haviam cumprido a exigida noite de
purificação em um templo de Ísis.

ISIDORO
Assim como o nome “Teodoro” significa “presente de Deus”, o nome “Isidoro” significa
“presente de Ísis”. Isso nos permite vislumbrar, de certa forma, as respectivas religiões dos
pais daquele que acabou se tornando o padre da igreja de nome muito confuso, Santo Isidoro
de Sevilha. Depois disso, dois patriarcas da Igreja Ortodoxa Grega medieval (Isidoro I e
Isidoro II)também se proclamaram presentes da deusa.

Dado esse nível de apoio imperial, as chances de a delegação


conseguir que as autoridades obriguem o culto a moderar suas
comemorações são oficialmente zero. O atual imperador Adriano gosta
muito do Egito e das coisas egípcias, assim como o antecessor de Adriano,
Trajano. Hoje em dia, a adoração a Ísis é totalmente respeitável. Se as
coisas correrem um pouco soltas duas vezes por ano, bem, ainda
permanecem bastante respeitáveis, se comparadas a, por exemplo, os
acontecimentos nas Celebrações da Floralia, oficialmente sancionadas, no
final de abril, que apresentam licenciosidade em dezenas de variações
engenhosas.
Tendo ensaiado seus argumentos, a sacerdotisa se prepara para
atravessar a rua entre sua casa e o santuário. De trás das paredes do
santuário — ao contrário dos templos romanos “oficiais”, santuários e
templos de Ísis são fechados, isolados da rua —, soa o balido do filhote que
será o sacrifício desta noite. A sacerdotisa está bastante satisfeita com o
animal, que tem cabelos ruivos e, portanto, é abominável aos deuses. Os
romanos acreditam que os deuses preferem o sacrifício de animais mais
agradáveis para eles — por exemplo, Jano gosta de um carneiro, e Marte,
Deus da Guerra, exige um cavalo todo mês de outubro. No entanto, a
religião de senso comum de Ísis consegue enxergar o erro nesse raciocínio.
Se você sacrifica um animal para agradar aos deuses, bem, você o mata.
Certamente, as criaturas que os deuses preferem ver mortas são aquelas de
que eles não gostam e preferem ver eliminadas da face da terra. (Há uma
razão teológica complexa pela qual os deuses egípcios não gostam de
animais ruivos, que não precisamos abordar aqui.)
Originalmente, a sacerdotisa jogava a cabeça do animal sacrificado no
Tibre. Contudo, depois de vê-la fazer isso algumas vezes, o açougueiro
asiático fez uma boa oferta pelas cabeças dos animais sacrificados. Depois
de consultar o templo, a sacerdotisa descobriu que essa forma mais
lucrativa de descarte também era ecumenicamente correta, então, ela espera
passar um tempo amanhã de manhã negociando os restos mortais de sua
vítima.
Esta noite, antes que ela comece os mistérios sagrados do sacrifício,
há a questão mais mundana de descobrir o que o cozinheiro preparou para
ela no lugar do esturjão proibido. Muito mal-humorado, o chef admite que
decidiu se cercar de total segurança e evitar completamente a carne. Ele
informa à sacerdotisa que ela terá um jantar simples, mas elegante, de bolos
de cevada com cebola picada e nozes. A sacerdotisa olha para cozinheiro
com a expressão vazia.
“Cebolas? Eu não posso comer cebolas!'”

Nada que seja irracional ou fabuloso ou motivado pela


superstição, como alguns acreditam, jamais teve um lugar em
seus ritos [iseanos], mas há neles algumas coisas que têm
valores morais e práticos e outras que não prescindem da
participação dos refinamentos da história ou da ciência natural,
como, por exemplo, as que têm a ver com a cebola.
Pois a história de que Díctis, o filho de Ísis, ao tentar pegar uma
resma de cebolas, caiu no rio e se afogou é extremamente
inacreditável. Mas os sacerdotes evitam cebola e a detestam, e
têm o cuidado de evitá-la por ser a única planta que cresce e
floresce naturalmente na fase minguante da lua.
Não serve nem para jejuns nem para festas, porque, em um caso,
provoca sede e, no outro, lágrimas aos que a consomem.
PLUTARCO em Ísis e Osíris 8 (tradução para o inglês de Plut. Mor. Vol. V de Loeb
Classical Library, 1936)
HORA NOCTIS I
(19h–20h)

O MERCADOR DE ESPECIARIAS
SAI PARA JANTAR

Hoje em dia, todos os anos acontecem viagens à Índia, com uma


tropa de arqueiros a bordo dos navios mercantes, pois esses
mares estão fervilhando de piratas.
PLÍNIO, História natural 6.26

Quando o marido parte, a esposa de Miyrius, o comerciante de especiarias,


beija-o no rosto e diz: “Volte para casa em segurança”. Ela diz a mesma
coisa se ele estiver partindo em uma viagem de dois anos para Alexandria e
sua terra natal, a Síria, ou se estiver saindo por algumas horas, como nesta
noite, para jantar. Não que o jantar com Marcus Manidus seja isento de
perigos, pensa Miyrius com um leve estremecimento. Quando um
mensageiro chegou para informar que o jantar seria adiado, Miyrius
especulou por um momento se isso aconteceria porque a anfitriã, Licínia,
havia comido o cozinheiro original cru e sem sal.
No entanto, a temível Licínia não é nada comparada aos perigos
envolvidos em lidar com o próprio Marcus Manidus. Manidus, como o
comerciante de especiarias descobriu por experiência própria, é um tubarão
tão gentil quanto qualquer um que tenha dado uma enorme mordida nos
lucros de um comerciante desavisado. Ele vai piscar para você daquele jeito
discreto dele —e, então, antes que você perceba, ele o intimidou a alugar
um de seus espaços de depósito a um preço 10% mais alto que a tarifa atual
e o forçou a cumprir esses termos por meio da assinatura de um contrato
rígido.
Miyrius se lembra de ter ido para casa sentindo-se satisfeito e um
pouco culpado por tirar proveito da natureza gentil de Manidus. Então, mais
tarde naquela noite, ele acordou com a percepção do que, exatamente, havia
assinado.
No entanto, Miyrius de Mira não tem escolha a não ser voltar a
negociar com Manidus mais uma vez — embora, desta vez, quando eles
apertarem as mãos para fechar o acordo, ele terá o cuidado de contar os
dedos depois. Ele acaba de saber que o navio mercante Filho de Io atracou
em Ostia. O Filho é uma embarcação típica da época: um navio de 75
toneladas que transporta cerca de 1.500 amphorae. Entre essas amphorae,
há uma dúzia de recipientes bem fechados com o pequeno selo de chumbo
que os marca como propriedade de Miyrius, o comerciante de especiarias.
Os recipientes têm uma forma um pouco estranha, comparados às
amphorae romanas habituais, pela simples razão de não serem amphorae
romanas habituais. Eles vêm de Barace, uma cidade quase desconhecida na
costa oeste da Índia. Seis desses recipientes contêm canela, incenso e
gengibre, e — valendo quase tanto quanto o navio mercante que os
transporta — os outros seis com pimenta preta moída.

Essas cidades mercantis [na costa indiana] são frequentemente


visitadas por grandes navios mercantes em busca de grandes
quantidades de pimenta e malabathrum [uma planta parecida
com a canela].
Aqui também tem muita coisa importada, como ouro, topázio,
tecidos finos e linhos, antimônio, coral, vidro bruto, cobre,
estanho, chumbo, vinho… e trigo para abastecer a cozinha dos
navios, já que os comerciantes daqui não o fornecem.
As exportações incluem pimenta, pois há uma região aqui, um
lugar chamado Cottonara, que abastece todos os mercados
locais. Outras exportações incluem uma abundância de pérolas
finas, marfim, tecidos de seda, nardo indiano do Ganges,
malabathrum do interior e pedras preciosas de todos os tipos,
incluindo diamantes e safiras.
Aqueles que viajam do Egito para esse lugar são mais
favorecidos em Epiphi, que é o mês de julho.
Périplo do Mar Vermelho 56

A pimenta é fantasticamente cara — um trabalhador pagaria metade


do salário de um mês para comprar um único quilo dela. No entanto, os
romanos gostam de sua comida picante, embora muitas de suas especiarias
— incluindo pimenta — tenham que ser importadas de fora do império. A
maioria dos romanos não tem ideia da origem do pó preto que dá mais
sabor à sopa de lentilhas, mas Miyrius sabe que o produto vem de Kerala,
na Índia. (Lá, os moradores chamam a pimenta de kari, e “curry” será para
sempre o nome adotado para os picantes pratos orientais.) Quase todas as
receitas do escritor romano de livros de culinária Apicius contêm pimenta,
mas, para muitos pratos, esse é de longe o ingrediente mais caro.
Roma paga a pimenta e outras especiarias em ouro, e, às vezes,
Miyrius se pergunta se é totalmente prudente enviar todos os anos
toneladas, literalmente, de ouro da economia do país para pagar um luxo
que desaparece nos esgotos imperiais horas depois de ser consumido. Como
o naturalista Plínio, o Velho, havia observado um século antes:

O que há para recomendar a pimenta, além de uma certa


pungência? Fora isso, é inferior a qualquer fruta ou baga. No
entanto, por essa única qualidade desejável, importamos da
Índia! Tanto a pimenta quanto o gengibre crescem selvagens em
seus países de origem, mas aqui nós os compramos por peso —
como se estivéssemos medindo ouro ou prata.
PLÍNIO, História natural 12.14.7

Quando você importa materiais tão valiosos quanto a pimenta para


uma cidade tão venal quanto Roma, o único requisito primordial é mantê-
los em um local de armazenamento o mais seguro possível. É por isso que
Miyrius vai jantar fora esta noite. Seu anfitrião Manidus não só possui um
armazém seguro contra ladrões e invasões externas, como a equipe de
Manidus é famosa por não ser subornável. Miyrius viu muitos potes
valiosos de especiarias “evaporarem” de quartos trancados, ou urnas que
tiveram seus lacres grosseiramente adulteradas e foram enchidas com lixo.
Manidus oferece um serviço caro, mas, pelo menos, as mercadorias saem de
seu armazém na mesma condição em que entraram.
Ao convidar Miyrius para jantar, Licínia comentou de maneira astuta
que, como comerciante, Miyrius poderia estar interessado em um de seus
convidados — um viajante que havia percorrido todo o caminho até Cirene
e contaria suas aventuras à mesa. Fala sério! Miyrius não fala com ninguém
sobre suas viagens, mas viajou muito quando era jovem para estabelecer os
contatos que mais tarde fariam sua fortuna. Um viajante que veio de Cirene,
de fato! Como se uma viagem a uma cidade menor na costa norte da África
contasse como uma aventura épica. Miyrius sabe que o mundo é grande,
muito maior do que o romano comum imagina, sem falar dos cidadãos da
própria cidade imperial, que parecem pensar que a civilização acaba nos
marcos que limitam a cidade.
Ele se lembra de estar em uma praia em Taprobana (que outros mais
tarde chamarão de Serendib, Ceilão ou Sri Lanka). Estava conversando com
um marinheiro que ficou surpreso ao se encontrar tão a oeste, longe de seu
porto natal de Cattigara, em Bornéu, no Sinus Magnus, um enorme corpo de
oceano que o marinheiro chamou de “Mar da China Meridional”. Miyrius
contou ao marinheiro sobre a Gália e a Grã-Bretanha ainda mais distantes e
sobre rumores de terras ainda mais a oeste, e o marinheiro ouviu com
ceticismo educado.
ESPECIARIAS EM TRANSPORTE. MERCADORES E CAMELO EM UM BAIXO-
RELEVO.

Taprobana… foi por muito tempo considerada como um outro


mundo: a era e as armas de Alexandre, o Grande, foram as
primeiras a dar provas satisfatórias de que ela é uma ilha.
Onesícrito, comandante de sua frota, informou-nos que os
elefantes desta ilha são maiores e mais adaptados para a guerra
do que os da Índia; e por Megástenes aprendemos que ela é
dividida por um rio, que os habitantes têm o nome de Paleogoni,
e que seu país é mais produtivo que a Índia em ouro e pérolas de
grande tamanho.
PLÍNIO, História natural 6.24 (tradução para o inglês de John Bostock)
Por sua vez, o marinheiro contou algumas histórias de sua autoria, de
estradas na China Imperial maiores do que qualquer estrada romana que
Miyrius descrevera com tanto orgulho, estradas tão grandes que uma faixa
especial era reservada para funcionários e mensageiros imperiais. Quando
Miyrius perguntou com ceticismo por que um império tão grande não havia
feito contato com Roma, ouviu que os chineses haviam feito esforços
repetidos. Todas as vezes, essas tentativas de contato foram vigorosamente
bloqueadas pelo povo de Pártia, na Ásia ocidental, que lucrava demais com
o comércio ao longo da Rota da Seda para querer que alguém eliminasse o
intermediário.
Isso foi há quase duas décadas. Miyrius partiu da Síria na primavera.
Ele havia parado primeiro no porto árabe de Muza, onde — de acordo com
as ordens de seu pai — conseguiu contratos de longo prazo para a
importação de perfumes e incenso. Então, por iniciativa própria, viajou para
mais longe, chegando a Ocelis exatamente no nascer da estrela que alguns
chamam de Alma de Ísis, e outros, de Sirius, a Estrela do Cão.
Ocelis é o principal ponto de embarque para quem vai para a Índia. O
jovem Miyrius teve sorte, pois o vento que eles chamam de Hippalus
ganhou força quando ele chegou e os navios da frota comercial partiam em
sua viagem anual. Um mês depois, Miyrius estava bebendo vinho com
comerciantes em Muziris, uma cidade na costa oeste da Índia. De lá ele
viajou por terra para o território de um povo chamado Neacindi. O porto
principal aqui fica na foz de um rio — importante para Miyrius, porque a
pimenta é enviada rio abaixo desde o interior. De acordo com os
comerciantes com quem ele falou, os produtores de pimenta no interior
escavavam troncos à maneira de canoas, enchiam-nos com sua preciosa
carga e mandavam essas canoas rio abaixo para vender seus produtos no
porto.

Antun [Antoninus], o governante de Daquin [Roma], enviou


emissários além das fronteiras que chegaram até nós via Rinan
[Vietnã]… Este foi nosso primeiro contato [direto] com eles.
Crônica de Hou Hanshu 166 d. C.
Como todos os operadores de longa distância, Miyrius conhece as
proporções 1:5:28. O primeiro é o custo de transporte de uma ânfora por
mar em uma rota comercial estabelecida.É cinco vezes mais barato do que
transportar essa ânfora pela mesma distância em barcaça fluvial e 28 vezes
mais barato do que transportar as mercadorias por terra em carro de boi. É
por isso que é mais barato importar milho do Egito do que o trazer pelos
Apeninos do Vale do Pó, no norte da Itália.
Desde 246 a.C., um canal liga o Mar Vermelho ao Nilo, e do Nilo os
bens fluem rio abaixo para a grande cidade de Alexandria, e de lá para o
resto do império de Roma. Miyrius retornou por essa rota com sua primeira
carga de pimenta e especiarias, navegando no final de dezembro com os
ventos do sudeste e chegando ao empório de seu pai na Síria pouco mais de
um ano depois de ter partido. E agora, ao jantar, ouviria falar de uma
viagem a Cirene como se fosse uma viagem aos confins da terra. No
entanto, é dos verdadeiros confins da terra que as especiarias em sua mesa
virão, e até Miyrius se pergunta onde esses confins podem realmente estar.
Pois os viajantes dos mares ao redor de Java falavam de terras ainda
muito mais distantes ao sul e ao leste. Outros comerciantes falam de uma
cidade perdida em algum lugar do grande deserto africano e, além disso, de
um poderoso rio negro (“Níger”, que significa “negro” em latim), que pode
ser um braço do Nilo, mas provavelmente não é. Miyrius tem um amigo em
Pompeia em cuja casa há uma estátua que ele afirma ter vindo do nordeste
da Índia, e outro que tem um amuleto curiosamente forjado de Thule, a
“seis dias” de viagem, navegando para o norte da Grã-Bretanha até as
fronteiras do mar congelado (Geografia, de Strabo, 1.4). Um lugar notável
deve ser Thule, pois, como diz Plínio, “quando o sol passa pelo signo de
Câncer, não pode haver noite alguma, assim como no meio do inverno não
haverá dia”.

Os fenícios partiram do Egito pelo Eritreu [Mar Vermelho], e de


lá para o oceano meridional. Todo outono, eles desembarcavam
onde quer que tivessem ido parar e semeavam milho. Esperavam
até que ele estivesse pronto para a colheita e, depois disso,
navegaram.
Eles fizeram isso por dois anos inteiros e, no terceiro ano,
voltaram para casa através dos Pilares de Hércules [Estreito de
Gibraltar] e assim completaram sua viagem. Quando voltaram,
juraram que, quando contornaram o ponto mais ao sul da Líbia
[i.e. África], o sol do meio-dia estava à sua direita. Eu, pelo
menos, não acredito nisso.16
HERÓDOTO, História Livro 4

O mundo é enorme e estranho, e apenas comerciantes em sua busca


por novas rotas comerciais e mercadorias tentaram — sem sucesso —
encontrar seus limites. Às vezes, Miyrius se pergunta se os deuses que
supostamente deram aos romanos seu “império sem limites” percebem que
eles estavam realmente concedendo aos romanos um pedaço de terra
relativamente pequeno nas margens de um mar um pouco menor.
Miyrius pensa nisso enquanto sobe o Monte Célio ao longo da Rua
dos Sandalistas, onde as barracas dos artesãos estão fechadas e sem
movimento no início da noite. Atrás dele, estão dois de seus criados
impassíveis, um pouco guarda-costas e um pouco carregadores de tochas,
que vão iluminar seu caminho de volta. Um deles carrega a synthesis, ou
traje de jantar, que Miyrius vai vestir assim que chegar ao seu destino.
Afinal, embora a toga seja o traje romano formal de costume, ela precisa ser
enrolada ao redor do corpo de um jeito elaborado, e mantida no lugar
mesmo depois de muita bebida alcoólica. A coisa toda não tem fivela ou nó,
o que a torna totalmente inadequada para um jantar.
Mas os romanos não gostam da visão de carne nua em público e, por
isso, criaram a synthesis, um conjunto de roupas coloridas fáceis de vestir
antes de uma refeição (e é por isso que qualquer coisa produzida
artificialmente em épocas posteriores será chamada de “sintética”). Porém,
apenas alguém tão decadente quanto o ex-imperador Nero realmente usaria
uma shyntesis como seu traje diário, pois as roupas de noite são uma boa
maneira de exibir riqueza e status. As de Miyrius, por exemplo, são de seda
cor de açafrão com dragões roxos bordados nas bainhas — anunciando
assim seu acesso às riquezas e aos tesouros do oriente.
Como esta roupa é muito valiosa, Miyrius está alerta para movimentos
suspeitos na rua. Por isso seu olhar é imediatamente atraído para a figura
encapuzada espreitando na calçada mais à frente. Se alguma vez um homem
já esteve à espreita com uma intenção, esse homem está ali. No entanto, é
evidente que ele está esperando que Miyrius se afaste para cumprir seu
propósito nefasto, em vez de fazer do próprio Miyrius seu alvo. O
comerciante de especiarias lança um último olhar curioso para o homem
antes de seguir em frente, a caminho do jantar de negócios e da inevitável
extorsão que o aguarda pelas mãos de Manidus, o homem de olhos suaves e
coração de pedra.

16 De fato, ao meio-dia na Cidade do Cabo, África do Sul, quando você olha para o oeste, o sol está
realmente à sua direita — ou seja, ao norte, assim como no hemisfério norte o sol do meio-dia está à
esquerda. (N.A.)
HORA NOCTIS II
(20h–21h)

A PROSTITUTA ENCONTRA UM
CLIENTE

Qualquer um que acredite que os jovens devem ser proibidos de


ter relações com prostitutas é, de fato, um personagem
moralmente austero!… Ele também está em desacordo com a
moralidade do passado e do presente… Pois, quando isso não foi
feito? Quem já criticou, quem se opôs?
CÍCERO, Pro Caelio 20

Mamila nunca tinha imaginado que sentiria falta de seu quarto no Lupara
Larentia. O bordel em que ela costuma trabalhar e viver tem o nome da
famosa (e infame) Acca Larentia. Esta senhora era contemporânea de
Rômulo, o fundador de Roma, e, de fato, segundo alguns relatos, foi a mãe
adotiva do fundador. Depois de ter feito carreira entretendo os grandes e
bons da época, inclusive Hércules (embora, na verdade, poucas mulheres
contemporâneas pareçam ter escapado desse destino), Larentia fez um bom
casamento. Depois de uma velhice feliz, morreu e deixou sua fortuna
considerável para o povo romano. Sua memória ainda é celebrada em um
festival, o Larentina, todo dia 23 de dezembro.
Também é objetivo de Mamila casar-se bem e fugir de sua vida atual.
No entanto, ela tem consciência de que essa é uma ambição que
compartilha com praticamente todas as outras mulheres dos enxames de
prostitutas que frequentam a cidade. Consequentemente, o grupo de
maridos em potencial foi caçado praticamente até a extinção. De qualquer
forma, Mamila tem apenas uma vaga ideia do que constitui a vida familiar
romana regular. O bordel é a única casa de que ela realmente se lembra.
Como muitas prostitutas romanas, Mamila foi “adotada” ao nascer — e,
neste caso, “adotada” significa que foi retirada da rua onde havia sido
abandonada quando recém-nascida e criada por trabalhadoras de bordéis.
Roma pratica o que tem sido brutalmente chamado de “controle de
natalidade pós-natal”, pelo qual crianças indesejadas como Mamila são
literalmente jogadas no lixo. Os azarados são dilacerados por cães
selvagens, os mais sortudos são apanhados para serem criados como servos
escravos, e os mais sortudos de todos são adotados silenciosamente e
levados para a casa de um casal sem filhos que finge que o bebê sempre foi
deles.
Entre os dois e cinco anos de idade, Mamila passou algum tempo em
uma casa abastada. Ela foi alugada pelo bordel que a “adotara” para ser
uma delicatta, uma combinação de animal de estimação humano e
companheira da filha legítima do casal. Porém, a mesma disposição
tempestuosa que levou Mamila a andar pelas ruas esta noite também a fez
ser considerada um membro inadequado de sua família adotiva.
Depois disso, Mamila foi devolvida ao bordel que a tinha alugado para
a família. Durante os anos seguintes, ela cresceu como uma ancilla
ornatrice. Ou seja, uma garota que ajuda a limpar e arrumar o cabelo das
prostitutas da casa depois de cada encontro amoroso e que as fortifica,
ocasionalmente, com um copo de vinho sem água antes do próximo
encontro. Como uma espécie de filha adotiva das mulheres que trabalhavam
no estabelecimento, Mamila não achava a vida tão ruim. Ela simplesmente
presumia que, assim que o villicus puellarum (que cuidava das meninas do
bordel) decidisse em acordo com o médico que ela era viripotens (capaz de
lidar com um homem), dariam a ela o próprio quarto e um emprego regular.
As coisas não aconteceram bem assim porque, antes que ela pudesse
começar a trabalhar no bordel, houve algum tipo de problema. Talvez o
proprietário não tenha subornado os gângsteres locais, ou se desentendeu
com os magistrados da cidade. Tudo o que Mamila se lembrava era de
homens corpulentos com porretes destruindo o local e espancando e
estuprando as meninas. Ela havia fugido e acabou sozinha na rua.
Rapidamente, passou a se dedicar ao único meio de vida que conhecia,
levando uma vida perigosa como uma prostituta sem licença. (O que
aconteceu com seus proprietários originais, Mamila não tinha nem ideia.
Fez questão de não descobrir, já que se considerava uma mulher livre desde
que fugiu do estabelecimento anterior.)
De um modo geral, uma mulher que pretende trabalhar como
prostituta vai procurar o edil da cidade e informa seu nome, idade e local de
nascimento. Ela então escolhe um pseudônimo que será seu nome de
trabalho, já que a maioria das famílias prefere que uma garota trabalhadora
abandone o nome de família original. O edil então dá à mulher uma licença
e faz uma avaliação aproximada do que ela deve cobrar. (Este não é um
conselho gratuito — é porque espera-se que ela pague impostos sobre esse
valor por cliente.)

Ele [Calígula] foi o primeiro a criar um imposto sobre os ganhos


das prostitutas, uma porcentagem do que cada uma ganhava por
uma sessão, e acrescentou uma cláusula de que todas as que já
foram prostitutas deveriam fazer esse pagamento, mesmo que
agora fossem casadas.
SUETÔNIO, Vida de Calígula 40

O historiador Tácito comentou com horror indignado a história de uma


mulher aristocrática chamada Visitilia que, enfrentando punição por seus
numerosos relacionamentos, escapou da lei simplesmente solicitando uma
licença de prostituta (licentia stupri). Quando os edis não encontraram
razão para não conceder a autorização, ela continuou como antes, mas
passou a cobrar por isso.
Enquanto muitos romanos da classe trabalhadora consideram a
prostituição licenciada simplesmente como outra opção de carreira, a vida
de uma garota que trabalha sem licença é marginal, na melhor das
hipóteses. Ela tem que competir com as mais baratas entre as prostitutas
legalizadas, e a maioria delas se oferece por pouco mais que um pedaço de
pão e uma taça de vinho. Portanto, Mamila se considera afortunada por ter
conhecido Syricus, um homenzinho mau. Após cuidadosas negociações, a
dupla formou uma parceria. Mamila atraía os alvos para becos ou alcovas
silenciosas, e ali seus possíveis clientes eram aliviados de suas bolsas,
roupas e qualquer outra coisa de valor diante da ponta da adaga de Syricus.
Mamila teve o bom senso de perceber que a vida de uma galina —
como são chamadas essas prostitutas-ladras — tende a acabar mal, seja em
algum beco anônimo ou dramaticamente na arena (os magistrados gostam
de demonstrar uma criatividade sádica ao transformar em exemplos as
mulheres condenadas que exerciam sua profissão). Mesmo lucrando com os
produtos do crime, Mamila planejava sua fuga.

UMA PROSTITUTA DERRUBA SUA TOGA NESTA CENA DE MOSAICO.


Lucius [na forma de burro] fica horrorizado com a perspectiva de
fazer sexo em público com uma mulher:

Um soldado correu para tirar a mulher de sua cela. Como eu


disse anteriormente, ela havia sido condenada por seus muitos
crimes e deveria ser jogada às feras depois de copular comigo.
Para isso, era preparado um sofá, ricamente decorado com
cascos de tartaruga da Índia, um colchão de penas e uma colcha
de seda florida.
Já era ruim o suficiente eu ter que me envergonhar fazendo sexo
publicamente com aquela mulher imunda. Mas eu também estava
com medo por minha própria vida. Uma vez que estivéssemos
enlaçados no abraço de Vênus, que animal selvagem eles
soltariam para devorar a mulher? Qualquer que fosse,
dificilmente seria tão bem treinado e extraordinariamente gentil
a ponto de dilacerá-la e poupar a besta inocente presa entre suas
coxas.
APULEIO, O asno de ouro, livro 10

Acumulando cuidadosamente seus ganhos ilícitos, Mamila conseguiu


se livrar de Syricus (segundo alguns relatos, ele ainda está procurando por
ela), mudou de nome e se registrou oficialmente com as autoridades. Depois
disso, alugou um quarto no Lupara Larentia, do outro lado da cidade.
“Quarto” é força de expressão — na verdade, o que Mamila tem é um
recanto apertado e sem janelas com uma cortina que o separa do salão
principal. Ao lado da cortina, há uma pequena placa que informa seu nome,
preço e especialidades. Na parte de trás, está escrito apenas uma palavra,
“ocupada”. Quando um cliente entra na alcova, ele vira a placa para que os
outros saibam que devem esperar sua vez.
O cubículo de Mamila tem uma cama de concreto maciço e, para
compensar, um colchão grosso, coberto com um cobertor que, por motivos
óbvios, é trocado com frequência. A coisa de que Mamila menos gosta
nesse quarto é a falta de ventilação. Por conta disso, ela tem constantemente
o cheiro de fumaça de sua lamparina, apesar das frequentes visitas aos
banhos. (Um benefício adicional de seu trabalho é que, como não é
respeitável, Mamila não é banida dos banhos quando os homens estão
presentes. Não só pode tomar banho a qualquer hora do dia, como
geralmente ganha o valor de seu ingresso quinze minutos depois de chegar.)
Não é a vida que ela teria escolhido, mas até ontem à noite, Mamila
achava que estava sobrevivendo. É verdade que as boas intenções de
economizar para a velhice parecem se desfazer na presença de vestidos
amorges ou perfumes árabes, mas ela tinha um emprego estável, uma
clientela fiel e a maior parte da vida pela frente.

A Floralia [Festival da Deusa Flora] era comemorada com todo


tipo de libertinagem. As prostitutas usavam sua liberdade de
expressão para dar vazão a todo tipo de obscenidade e,
instigadas pela ralé, despiram-se. Então agiam como mímicas,
mantendo a multidão fascinada com as contorções de suas
nádegas.
LACTANTIUS, Institutiones divinae 20, 6.

Então Mancinus, aquele idiota do edil, teve que ir bater na porta dela
depois da meia-noite. Mamila não se arrepende de ter atirado o vaso de
flores na cabeça do magistrado e, de fato, secretamente se orgulha de sua
mão firme e boa pontaria. No entanto, lamenta muito que o ato impetuoso
tenha resultado em sua suspensão do bordel até que se apresente no tribunal
na próxima semana.
LAMPARINA A ÓLEO ROMANA ERÓTICA.

A partir daí, se a ameaça de Mancinus se concretizar, Mamila será


condenada a servir como escrava entre os seguidores de campo do exército
romano. Esta é uma vida de labuta e uso contínuo de seus serviços,
interrompida por momentos de puro terror quando as tropas estão em ação.
Os seguidores de campo são os últimos a serem alimentados e os primeiros
a serem abandonados se houver perigo. Basicamente, é o equivalente às
minas de escravos às quais um homem pode ser condenado.
Portanto, na próxima semana, Mamila vai trabalhar como nonaria,
uma “menina da nona hora”. Esse é o termo para denominar as prostitutas
que trabalham na rua e só podem praticar a profissão depois que a maioria
das pessoas terminou o trabalho na nona hora (15h). Ao se candidatar, ela
espera ter recursos suficientes para recorrer a um jurista e explorar suas
opções sobre como apresentar uma defesa ao juiz.
É por isso que ela está se censurando por ter se aproximado da base do
Monte Célio. A colina em si é um bastião de respeitabilidade (ou, pelo
menos, as pessoas que moram ali podem pagar para ter as próprias escravas
concubinas, o que equivale a ser respeitável). A base é cercada de
trabalhadores que ganham a vida com o patrocínio dos que moram no alto
da colina, e a maioria dessas barracas de trabalhadores está fechada durante
a noite. Os clientes são poucos. Ao mesmo tempo, não adianta ir para o
Subarra ou o Cariniae ao pé do monte Esquilino. Essa área é repleta de
bordéis, tavernas e autônomas, e, francamente, Mamila prefere menos
concorrência.
Um homem engravidou sua escrava. No nascimento, o pai dele
sugeriu que a criança fosse morta. O gênio respondeu: “Mate
seu próprio filho e depois venha me dizer para matar o meu”.
FILOGELOS 57

Ela está pensando se deve descer em direção ao Coliseu para ver se


consegue encontrar algum comércio ao redor da fonte, ou talvez ao pé da
gigantesca estátua do deus sol que dá nome à área. (Os arcos — fornes —
da enorme arena que domina a área do Coliseu são tão populares entre as
prostitutas que dizem ser essa a origem da palavra “fornicação”). No
entanto, Mamila para onde está ao ver um pequeno grupo se movendo pela
Rua dos Sandalistas.
Não, é um grupo animado. Parecem estar a caminho de uma ocasião
social e, a esta hora, estão atrasados, de qualquer maneira. O tipo asiático
bem-vestido, que evidentemente é o líder do grupo, olha para ela de relance
uma única vez e, imediatamente, a ignora. Os serviçais que o seguem
também a ignoram e se concentram, em vez disso, em uma dupla de
aparência estranha do outro lado da rua.
Um deles é uma figura encapuzada que, de maneira muito suspeita,
tenta evitar chamar atenção. O outro é um grandalhão musculoso que, na
verdade, evitou os olhares do grupo andando casualmente para trás de um
quiosque de rua e parando ali mesmo. O homem encapuzado espera
miseravelmente sob o escrutínio do grupo até que os homens se afastem,
depois olha em volta com ar nervoso, procurando o grandalhão. Mas a essa
altura o homem musculoso viu Mamila, e os dois trocam um olhar
demorado de mútua apreciação e avaliação.

Se você quer uma boa cópula, procure Attice. Ela cobra apenas
16 moedas de cobre.
GRAFITE EM POMPEIA, Corpus Inscriptiones Latinarum 4.17.61
Não é difícil descobrir o que Mamila está fazendo lá. Ela não é tão
descarada quanto as dórides (mulheres que ficam nuas nas portas de alguns
bordéis e tavernas para atrair os transeuntes), mas está vestida com uma
toga. Em um homem romano, a toga é um símbolo de respeitabilidade. Em
uma mulher romana de virtude negociável, a toga é uma vestimenta
altamente prática, sem fechos que a) cai no chão após um movimento
treinado dos ombros, e, b) quando no chão, a vestimenta — que, na
verdade, é um semicírculo de tecido de lã grossa — funciona como um
cobertor macio para o que acontece a seguir.
O homem encapuzado acompanha o olhar do grandalhão e fala alguma
coisa com uma atitude irritada. Relutante, o grandalhão segue em frente,
com Mamila seguindo esperançosa cerca de 40 passos atrás. A figura
encapuzada para em uma portinha sem identificação recortada em uma
parede. Depois de um olhar furtivo em volta que atrai até a atenção dos
pombos,únicos outros ocupantes da rua, o homem encapuzado passa
sorrateiro pela porta. Ao mesmo tempo, ele murmura alguma coisa para o
grandalhão, e um brilho de prata troca de mãos. Mamila se mantém firme,
sorrindo descaradamente enquanto o grandalhão se aproxima.

A loira me ensinou a odiar as garotas de cabelos escuros, então,


odiá-las é o que vou fazer — da melhor forma possível. Eu
gostaria mais de amá-las, em vez disso. Vênus Física escreveu
isso.
GRAFITE NA PAREDE DO ÁTRIO DE UM BORDEL EM POMPEIA, Corpus
Inscriptiones Latinarum 6.14.43 1520

“Ei, garotão. Tem alguma coisa para mim?”


A testa com cicatrizes deixadas pelo capacete, o torso musculoso —
ou ele é um ex-soldado que carregava pesos, ou é um gladiador.
O interesse do gladiador é evidente, e não apenas em sua expressão.
Ele estende a mão, mostrando moedas que valem o salário de um dia.
“Meu cliente disse para eu lhe dar isso, e você esquece que o viu
aqui.”
Quando Mamila pega o dinheiro, o gladiador afasta a mão de um jeito
brincalhão. “Na-não. Se você quer, você tem que fazer por merecer. Eu
deveria estar vigiando aquela porta ali, mas acho que ainda teremos uma
boa visão dela daquela rua lateral. Negócio fechado?”
Sem esperar por uma resposta, ele pega Mamila casualmente e a
carrega embaixo do braço como um pacote de roupa para lavar. Segue
determinado para a sombria via de serviço, e a toga deslocada de Mamila
tremula atrás deles como um vestido de noiva.

Mamila apelou para os Tribunos da Plebe, declarando que


Mancinus a tinha procurado em trajes de festa e tentado
invadir… Os tribunos decidiram que se ele [Mancinus]tinha
estado no local como frequentador, o tratamento foi justo; se
tinha estado lá como magistrado, não era apropriado nem que
tivesse ido.
AULO GÉLIO NA 4.14
HORA NOCTIS III
(21h–22h)

O ASTRÓLOGO DIVULGA UM
HORÓSCOPO

Sempre considere o universo como uma única entidade viva, com


uma forma e uma alma. Observe como tudo faz referência a uma
percepção, a percepção dessa única coisa viva. Veja como todas
as coisas agem com um só movimento; e como todas as coisas
são a causa interativa de tudo o mais. Veja como a teia da vida é
assim formada em fios e texturas.
MARCO AURÉLIO, Meditações 4,40

Quando o cliente entra na sala, o astrólogo Balbilus sente-se tentado a


esconder a cabeça entre as mãos. Como é que esse Ofella, o homem
conhecido geralmente como um mestre da intriga, o implacável reparador
do poderoso Lúcio Ceionius Commodus, senhor do Senado romano, pode
ser tão ruim no trabalho de capa e espada?
Será que ele, Balbilus se pergunta, realmente carregava uma placa que
proclamava “Juro que vou fazer coisa errada”, enquanto se escondia tão
visivelmente andando pelas ruas de Roma? Balbilus espera que não, porque
a última coisa que ele quer é a divulgação da consulta desta noite. O que ele
e Ofella vão fazer esta noite pode ser interpretado como alta traição, pois
eles vão tentar descobrir quando e como o imperador Adriano morrerá.
(Não que o próprio Adriano já não saiba disso. O imperador é um
astrólogo tão experiente que todos os anos, nas kalends de janeiro, ele
escreve tudo o que vai acontecer com ele no próximo ano. De fato, há
rumores de que ele tenha registrado o que estará fazendo na hora de sua
morte.)
Obviamente, os imperadores não têm interesse em divulgar para o
público em geral para quando está prevista sua morte para que políticos de
alto escalão que sejam seus inimigos decidam que este é um momento
auspicioso para garantir que eles realmente morram. Portanto, a divulgação
de um horóscopo imperial é algo que costuma ser terminantemente
desaconselhado. No entanto, há aqueles como este cliente, um senador de
importância relativamente menor, para quem o conhecimento de quando
haverá uma mudança de governante não é uma questão de conveniência
política, mas de simples sobrevivência. Além do horóscopo do imperador,
Balbilus também recebeu uma pequena fortuna para fazer os horóscopos do
patrono de Ofella, Lucius Ceionius Commodus, e de seu rival mais feroz,
Pedanius Fuscus Salinator. Ofella está pagando, em suma, por uma
descrição do que acontecerá quando Adriano morrer e quem o sucederá.

Um certo adivinho avisou César de que ele estaria em grande


perigo naquele dia de março que os romanos chamam de Ides.
Quando esse dia amanheceu e César estava a caminho da casa
do senado, ele notou o vidente e, brincando, disse a ele: “Veja,
os Ides de março chegaram”.
“Sim”, murmurou o vidente, “mas ainda não acabaram.”
PLUTARCO, Biografia de César 63

Por um momento, Balbilus se distrai ao lembrar de uma piada popular:


uma mulher vai a um astrólogo e pede que ele faça o horóscopo de seu filho
doente. Ao ter certeza de que o rapaz tem uma vida longa e próspera pela
frente, a mulher, agradecida, promete pagar ao astrólogo no dia seguinte.
“Pague agora”, diz o astrólogo. “Só por precaução.”
Embora, na verdade, não tenha nada a ver com astrologia, Balbilus
acredita que pode prever com alguma certeza que o imperador Adriano está
de saída, e a causa será uma doença cardíaca. Ele estava na multidão alguns
anos atrás, quando o imperador dedicou o templo a Vênus e Roma. Por
acaso, Adriano passou perto dele o suficiente para o astrólogo notar uma
prega transversal no lóbulo da orelha do imperador. Balbilus tem uma prega
semelhante na própria orelha, e a experiência familiar relata que aqueles
que têm esse sinal são propensos a morrer precocemente de insuficiência
cardíaca congestiva. Dadas as tensões que a carreira impõe a um imperador
(até agora, oito dos 12 imperadores de Roma morreram violentamente ou
em circunstâncias altamente suspeitas), pode-se supor que até mesmo um
coração imperial saudável estaria sujeito a certo grau de estresse. Se
Adriano tiver um pequeno defeito coronário, então, seu destino está escrito
no lóbulo da orelha, não nas estrelas.
Ofella está ansioso para começar o mapa. Ele colocou um gladiador
para guardar a porta a fim de garantir que não haja distrações e, agora que
revelou sua intenção, quer que todo o negócio seja feito e esquecido o mais
rápido possível. A primeira questão — e o obstáculo que deteve os
conspiradores na semana passada — é que o astuto Adriano não tem
intenção de facilitar para aqueles que querem fazer seu horóscopo. Como
resultado, ninguém sabe exatamente quando ou onde ele nasceu.
Por indagações muito discretas, Ofella descobriu que o imperador
comemora seu aniversário em 24 de janeiro e que seu nascimento ocorreu
no ano 829 AUC (Ab urbe condita — os anos desde a fundação da cidade
de Roma) ou 76 d.C., na contagem posterior. Isso significa que o Sol estava
em Aquário, e Adriano tem os signos dominantes de Aquário, Capricórnio e
Peixes com os planetas regentes de Urano e do Sol. Até aqui, tudo bem,
mas o ângulo da lua no ascendente é determinado pelo local de nascimento,
e, enquanto alguns dizem que isso aconteceu em Itálica, na Espanha, outros
insistem em afirmar que o nascimento aconteceu em Roma, na verdade.
Naturalmente, Adriano não tem pressa em esclarecer a confusão, e seus
agentes são bastante persistentes em perguntar as razões exatas pelas quais
o investigador quer saber esses detalhes.
No final, Balbilus decidiu que a coisa mais fácil é fazer dois
horóscopos, um para cada local, e presumir com otimismo que Adriano não
está mentindo sobre sua data de nascimento.
Outra piada popular surge traiçoeiramente na mente do astrólogo:
Durante uma viagem ao exterior, um jovem visita um astrólogo,
buscando informações sobre como está a família durante sua
ausência. Depois de verificar as datas estelares do jovem, o
astrólogo informa ao jovem com confiança que tudo está bem em
casa, e sua mãe e seu pai estão prosperando.
“Espere”, diz o jovem. “Meu pai está morto há quinze anos.” O
astrólogo consulta o mapa novamente e com simpatia diz: “Você
não tem ideia de quem é seu verdadeiro pai, tem?”

AUGUSTO ERA DE CAPRICÓRNIO.

A FAMÍLIA BALBILUS
O primeiro Balbilus era filho do famoso astrólogo Trasilo, que era amigo do imperador
Tibério. Uma vez, Tibério estava prestes a jogar Trasilo de um penhasco por prever sucesso
futuro enquanto ele permanecia em miserável exílio. No entanto, Trasilo apontou para um
navio e previu corretamente que a embarcação trazia notícias da restauração de Tibério a
Roma.
O filho de Trasilo foi astrólogo da corte de Cláudio, Nero e Vespasiano. Depois de servir a
esses três imperadores muito diferentes, ele escreveu um tratado sobre astrologia, do qual
sobrevivem fragmentos. Sêneca, o filósofo e homem de letras, descreveu-o como “um
homem de erudição esotérica”. Balbilus morreu em Éfeso na época em que Adriano nasceu.
Sua filha se chamava Claudia Capitolina, e, se ela tivesse dado à luz um filho, este seria o
Balbilus aqui descrito.

Em outras palavras, lixo entra, lixo sai e Balbilus não tem ideia da
precisão das informações que está usando para prever o futuro de Adriano.
Ele sabe que esse trabalho já foi feito antes — Adriano aprendeu suas
habilidades astrológicas com seu tio paterno Aelius, que era considerado
um dos grandes especialistas de sua época. Ele deixou transparecer que o
horóscopo de Adriano preenchia as principais pré-condições de um
horóscopo imperial em que:

O epicêntrico Sol e a Lua foram igualmente servidos por cinco


outros planetas. Acima de tudo, o Sol e a Lua estão localizados
nos pontos-chaves essenciais: ou seja, no Ponto Horoscópico ou
no Mesouranema, e assim são servidos por todos os planetas.
Consequentemente, esses aspectos fazem com que aqueles que
nascem sob tal conjunção se tornem reis governando muitas
nações.
FRAGMENTO DO Astronomica de Antígono de Nicéia

Ter um tio cujas adivinhações revelam que se tem um horóscopo


imperial é certamente uma bênção duvidosa. Quando um Vettius
Pompustius descobriu que tinha um horóscopo imperial, considerou essa
informação uma bizarrice divertida, até que o imperador nada divertido da
época (Domiciano) o executou, apenas por precaução.
Talvez uma abordagem mais sensata tenha sido a do pai de
Domiciano, Vespasiano. Quando informantes lhe trouxeram notícias de um
senador cujo horóscopo (erroneamente) previa que ele seria imperador,
Vespasiano não mandou matar o homem. Em vez disso, deu a ele uma
grande propriedade. Quando seu filho perguntou o que Vespasiano achava
que estava fazendo, o astuto velho imperador respondeu: “Parece ser
necessário que um dia este homem nos deva um grande favor”.
Enquanto trabalha com seus números, Balbilus encontra outro
obstáculo. Ofella, ao que parece, é um astrólogo secundário. Depois de os
dois discutirem sobre várias interpretações dos dados, uma divisão
teológica é revelada. Ofella segue os ensinamentos de Ptolomeu do Egito.
Ptolomeu é, sem dúvida, um grande astrólogo, cujas obras determinarão o
curso da astrologia nas eras futuras. Suas obras épicas — o Almagesto e o
Tetrabiblos — estão destinadas a durar séculos, senão milênios, por
explicarem tão bem os fenômenos celestes e sua interpretação.

CLÁUDIO PTOLOMEU
Nascido no Egito em data desconhecida, Ptolomeu fez seu melhor trabalho no início do
século II. Ele provavelmente baseou sua matemática no trabalho de um certo Teão de
Esmirna e, além disso, teve acesso à riqueza de material da grande Biblioteca de Alexandria.
Sua obra chamada Almagesto não era assim chamada em Roma, na verdade, pois este termo
vem de uma tradução do grego para o árabe, e somente na Idade Média foi traduzido para o
latim. Junto com Elementos de geometria, de Euclides, é um dos textos científicos mais
duradouros.
Ptolomeu descreveu tão bem os fenômenos astronômicos de sua época que sua teoria de que
a Terra era o centro do universo sobreviveu até a invenção do telescópio. Hoje em dia,
“universo ptolomaico” é usado para descrever uma teoria que explica todos os dados
conhecidos. Mesmo estando completamente errada.

No entanto, Ptolomeu é um fenômeno recente que estourou no cenário


astrológico. Embora tenha conquistado bandos de seguidores, como o
irritante Ofella, muitos profissionais, como Balbilus, preferem trabalhar
com o sistema de Marcus Manilius, cujo trabalho antecede o de Ptolomeu
em várias gerações. A família Balbilus tem tido astrólogos por todo esse
tempo, e uma razão pela qual Ofella escolheu consultar Balbilus é porque
há rumores de que Manilius pessoalmente passou para o bisavô de Balbilus
Trasilo o Grande Segredo: como, através da astrologia, o período da vida de
um homem pode ser calculado.
“Mas Ptolomeu fez da astrologia uma ciência”, argumenta Ofella.
“Basta olhar para as fórmulas matemáticas dele.”
“O sistema maniliano funcionou para Domiciano”, rebate Balbilus.
Há uma pausa, e a dupla reflete sobre o relacionamento do falecido e
não chorado imperador Domiciano com os astrólogos contemporâneos de
seu império. Houve, por exemplo, o caso do astrólogo Ascletário. Este
homem, um iniciado no Grande Segredo, não fingiu que não conhecia o
futuro. Levado perante o imperador, ele admitiu que havia verificado qual
seria seu próprio destino. Seu cadáver, disse ele, seria dilacerado por cães
— e isso aconteceria muito em breve. Domiciano raciocinou que, se o
próprio homem pensava que morreria em breve, deveria provar que estava
certo. Se não, mereceria a morte por ser um charlatão insolente.
Assim, ele executou o homem. Porém, ordenou que, em vez de ser
jogado aos cães, o cadáver fosse enterrado com todas as honras. Mais tarde,
enquanto o imperador estava jantando, um convidado mencionou um
incidente estranho — uma pira funerária foi derrubada por um vendaval
repentino e, antes que os serviçais pudessem detê-los, cães selvagens
despedaçaram o cadáver do falecido — que era um astrólogo chamado
Ascletário.
Domiciano também ficou perturbado com uma profecia de que
“Haverá sangue na lua quando ela entrar em Aquário, e um feito perpetrado
será comentado em todo o mundo”. Desde a noite anterior à sua morte, a
lua estava realmente vermelho-sangue — como pode acontecer se o vento
do sul soprar a poeira do Saara para a atmosfera superior. O problema,
como bem sabia o astrologicamente consciente Domiciano, era que nessa
ocasião a lua deveria entrar em Aquário na quinta hora daquele mesmo dia.
Isso, junto com outros sinais e presságios, fez Domiciano saber a hora
exata de sua morte próxima. Chegou a hora, e o imperador esperava
nervoso, cercado por guardas supostamente leais. Em algum momento, ele
perguntou as horas. Conforme combinado, seus libertos mentiram,
informando que era a sexta hora. Aliviado por saber que a hora prevista
para sua morte tinha passado, Domiciano saiu rápido e feliz para se preparar
para um banho — e lá no quarto encontrou seu assassino, exatamente na
hora anunciada.
Para que o sistema maniliano funcione melhor, o astrólogo precisa não
só da hora e do local exatos de nascimento, mas também da hora da
concepção, pois, como o próprio grande homem observa:

Os destinos governam o mundo, e todas as coisas são


determinadas por uma lei estabelecida; cada longa era é
marcada com sua fortuna estabelecida. Ao nascermos,
começamos a morrer, e nosso fim depende de nosso começo.

Ao contrário de Ptolomeu, que prefere fazer suas adivinhações


principalmente pelos signos solares, os seguidores de Manilius tendem a dar
igual importância à lua e ao ascendente.É por isso que, nas décadas
anteriores ao sistema ptolomaico, muitos romanos importantes tomaram
como signo astrológico um diferente do signo solar. Por exemplo, o
imperador Augusto (nascido em 23 de setembro) era — de acordo com
Ptolomeu — libriano. No entanto, Augusto se considerava capricorniano.
Aqueles com ascendente em Capricórnio são bons administradores,
competentes, preocupados com a imagem e motivados. Muitas vezes, têm
uma infância difícil, sendo forçados, por exemplo, a lidar com doenças, ser
o protegido de Júlio César e ter que sobreviver ao seu assassinato.

Em sua aposentadoria na Apolônia, ele foi com o amigo Agripa


visitar Teógenes, o astrólogo, em sua galeria na cobertura.
Agripa, que primeiro consultou os destinos, tinha grandes e
quase inacreditáveis fortunas previstas para ele; Augusto não
quis dar a conhecer os detalhes de seu nascimento, e persistiu
por algum tempo na recusa, por um misto de vergonha e medo,
para que não se predissesse sua sorte como inferior à de Agripa.
Sendo persuadido, no entanto, depois de muita insistência, a
divulgar essas informações, Teógenes levantou-se de seu assento
e o adorou. Pouco tempo depois, Augusto estava tão confiante na
grandeza de seu destino que publicou seu horóscopo.
SUETÔNIO, Vida de Augusto 92 (tradução para o inglês de Alexander Thomson ed.)

Adriano, nascido em 24 de janeiro (supostamente), é aquariano.


Portanto, como seria de se esperar de um homem que tem como hobby a
arquitetura e gosta de fazer experimentos com cúpulas, esse aquariano se
interessa por tecnologia. Aqueles que nascem nessa data são, supostamente,
muito inteligentes (Adriano é um polímata) e um tanto inseguro (Adriano
tem o hábito de se voltar de repente contra amigos que ele acha que podem
tê-lo traído). Como sua data de nascimento está ligada ao ar, Adriano é
propenso a viajar — até agora foi à Grã-Bretanha, à África, à Ásia Menor e
ao Egito. Sua data de nascimento está ligada à capacidade espiritual e
psíquica.
“Sim, sim”, murmura Ofella, “mas quando ele vai morrer?”
Bem, pensa Balbilus, provavelmente uma insuficiência cardíaca
matará o imperador. Agora, Áries rege a cabeça, Touro rege o pescoço,
Libra os genitais, e Câncer, o peito. Pois bem, o coração está no peito, e o
signo de Câncer vai de 21 de junho a 22 de julho… então, olhando para a
posição de Júpiter, o regente dos planetas e o alinhamento do sol com
Aquário…
“Julho. Até onde minhas habilidades me informam, o imperador estará
morto no dia ou pouco antes dos Ides em [15] de julho.”

Depois disso, Adriano partiu de [Roma] para [o balneário de]


Baiae. [O futuro imperador] Antonino foi deixado no comando
de Roma. Mas o estado de Adriano permanecia crítico, e ele
mandou chamar Antonino e morreu em sua presença no sexto dia
antes dos Ides de julho.
ADRIANO, História Augusta 25
HORA NOCTIS IV
(22h–23h)

O GLADIADOR FAZ SEU


TRABALHO

A vida é boa para Sergius, o gladiador. Também é notavelmente simples.


Um colega cruel uma vez comentou que o principal objetivo do cérebro de
Sergius é manter seus ouvidos separados, mas isso não é inteiramente
verdade. É só que, para Sergius, a vida tem a ver principalmente com luta,
fornicação e encontrar alguém que pague por isso.
Assim como raramente faltam companheiras de cama dispostas, nunca
é difícil para Sergius entrar em uma briga. Ele foi treinado até um passo
antes da morte (e sabe de outros que deram esse último passo) na escola de
gladiadores. Esta escola é um lugar implacável, onde o lanista (treinador de
gladiadores) pode bater, chicotear ou marcar seus alunos, e, como todo
gladiador que se inscreve na escola, Sergius fez o juramento do gladiador
“uri, vinciri, verberari, ferroque necari” (“Eu me submeterei a ser
queimado, amarrado e espancado. Eu posso ser morto pela espada”).
É um negócio brutal. Um aprendiz que não corresponde ao que é
esperado pode até ser designado para lutar contra um rival mais proficiente,
simplesmente para dar ao outro a prática de matar. E, no entanto, mesmo
não sendo mais obrigado a isso, Sergius ainda frequenta essa escola e,
quando está lá, aproveita a oportunidade para treinar como se sua vida
dependesse disso — porque depende.
AVE CÉSAR
“Ave Caesar, moriaturi te salutant!” Esta é a famosa saudação que muitos presumem que
marcava o início de todas as lutas de gladiadores. Só que não. Até onde sabemos, a expressão
foi usada uma vez só. Foi quando, para comemorar a conclusão das obras públicas no (agora
drenado) Lago Fucine, o imperador Cláudio promoveu uma batalha naval simulada
(“simulada” só no nome — para os participantes, foi uma luta muito real, mesmo).
Os prisioneiros reunidos saudaram Cláudio com o agora famoso “Ave César! Aqueles prestes a
morrer te saúdam”, ao que Cláudio respondeu enigmático: “Aut non” (“Ou não”). No entanto,
depois ele poupou muitos dos sobreviventes depois.

Porém, após essa utilização por lutadores que não eram propriamente gladiadores, essa famosa
saudação dos condenados aparentemente nunca mais foi usada.

SUETÔNIO, Vida de Cláudio 21

Sergius é um auctorato. Isso significa que, enquanto a maioria dos


gladiadores luta porque não tem escolha, Sergius é um gladiador por
vontade própria. Originalmente condenado a lutar na arena como punição
por banditismo, há cinco anos Sergius se tornou famoso por um período
depois de matar um oponente conhecido. Astuto, ele investiu o dinheiro que
ganhou com aquela luta para se livrar do contrato. O bem de que ele mais se
orgulha é sua rudis, a espada de madeira que recebeu junto com a liberdade.
Esta espada é a prova de que ele expurgou seu crime pela bravura, e,
embora Sergius nunca possa se tornar um cidadão romano, a boa vida em
Roma está à sua disposição.
MOSAICO MOSTRA GLADIADORES PRATICANDO.

Por mais livre que seja, uma pilha de músculos de 1,80 m de altura
ainda precisa de emprego. Então, Sergius continua a lutar na arena como
um murmillo, um gladiador fortemente armado que empunha um escudo de
legionário e usa uma espada pesada do comprimento de seu antebraço.
Embora use uma armadura parcial ao lutar, seu orgulho e alegria é o
capacete — um objeto de abas largas de aço da Trácia cravejado de
arabescos de ouro. Uma grade esconde seu rosto enquanto ele está combate,
e, no topo do capacete, há uma crista larga como a barbatana de um peixe
(mormylos) que dá ao murmillo sua designação. Em relevo no brasão de
Sergius, há cenas da luta que lhe rendeu sua reputação e sua liberdade.
Até agora, Sergius lutou uma vez este ano — e perdeu. Felizmente,
apenas uma em cada cinco lutas de gladiadores é fatal. Este combate fez
parte do Ludi Cerealia, no final de abril, e foi travado com espadas cegas.
Afinal, os gladiadores são investimentos muito caros, e seus proprietários
(ou, no caso de Sergius, agentes) não querem vê-los mortos.
No entanto, quando o imperador está patrocinando os jogos, ou no
festival de inverno da Saturnália — quando acontecerá a próxima luta de
Sergius —, a história é diferente. Nessas ocasiões, os oponentes lutam até a
morte. De fato, antes da luta, o editor, que promove os jogos da Saturnália,
terá em mãos as espadas de Sergius e de seu oponente para que ele possa
verificar por si mesmo se estão afiadas a ponto de serem letais. Sergius está
muito ansioso para a ocasião, pois será sua partida de volta com o gladiador
hoplomachus (de estilo grego) que o humilhou da última vez.

POLEGAR PARA BAIXO SIGNIFICA


“POUPADO”?
É verdade que os romanos sinalizavam o destino de um gladiador derrotado com o pollice
verso (a “virada do polegar”). No entanto, nenhum lugar informa em que direção o polegar é
virado. Pense nisso. Um gladiador condenado se sustenta segurando o joelho do adversário e
é morto por um golpe de cima para baixo que atravessa o pescoço.
Então, segure uma espada imaginária para desferir um golpe de cima para baixo e observe
para onde aponta seu polegar.
Ele aponta para cima. Agora, em vez de matar seu oponente, guarde a espada da bainha —
como os romanos faziam — no lado oposto do seu corpo (ou seja, se você é destro,
embainhe a espada do lado esquerdo do quadril). Seu polegar aponta para baixo.
Portanto, pode ser que os polegares para cima sinalizassem “matar”, e os polegares para
baixo significassem “guardar a espada”.

Dois combates por ano representam pouco menos da metade das vezes
que um gladiador em tempo integral costuma lutar. Isso provavelmente
explica por que, ao contrário da maioria de seus contemporâneos, Sergius
sobreviveu até os 30 anos. Embora ele receba uma boa quantia por cada luta
— aproximadamente o equivalente ao salário de um ano de um artesão
habilidoso —, Sergius tem gostos caros e uma inclinação infeliz para
apostar nos Azuis nas corridas de bigas. (O jogo era ilegal em Roma, mas
isso não afeta Sergius, que tem amigos nos lugares altos e baixos.)
Qualquer gladiador sabe o que acontece com um homem que não pode
pagar suas dívidas de jogo, pois, como muitos de seus colegas, Sergius tem
um lucrativo negócio paralelo quebrando cientificamente dedos, pernas ou
rótulas (de acordo com as especificações) de devedores inadimplentes.
Cobrança de dívidas à parte, Sergius também mantém seus credores
satisfeitos com o trabalho de guarda-costas. Esses serviços são geralmente
pagos por hora por aristocratas ricos que querem guarda-costas mais para
mostrar sua importância do que para protegê-los do perigo real. No entanto,
há momentos — como no trabalho que Sergius acabou de realizar tão mal
— em que uma reunião clandestina pode ter se tornado violenta sem a
sombra de um gladiador pairando ao fundo.
Sergius não tem ideia do que aconteceu atrás das portas que ele estava
guardando recentemente. Um conclave de contrabandistas, um plano de
traição ou disputas de território entre líderes de gangues de rua — Sergius
manteve a paz em todos esses eventos e se importava menos com os
procedimentos do que com seu pagamento. Com as moedas guardadas e
seguras em sua bolsa, ele corre para o próximo contratante — uma casa
aristocrática no Monte Célio, onde o jantar está terminando.
Um bom anfitrião vai encerrar um jantar com um entretenimento.
Dançarinas lascivas de Gades, talvez, ou os poemas excitantes de Catulo
recitados por uma moça bonita com uma lira. Alguns anfitriões preferem
mostrar acrobatas da Lycia, na Ásia Menor, e outros ainda vão encenar uma
luta de demonstração com gladiadores reais. O combate desta noite será
com espadas de madeira para treinamento de legionários, então, ninguém
morrerá, embora possamos sair com alguns ossos quebrados e contusões
sejam uma certeza. Antecipando-se para o evento, Sergius já guardou seu
equipamento na casa do cliente.

Embora ele [Alypius] detestasse esses espetáculos, um dia se


encontrou com um grupo de amigos e colegas que voltavam de
um jantar. Com violência amigável, arrastaram-no chutando e
gritando para dentro do anfiteatro, em um dia com um daqueles
espetáculos cruéis e assassinos.

Ele protestou: “Vocês podem arrastar meu corpo e me sentar


aqui. Mas não podem fazer meus olhos ou minha mente se
concentrarem no espetáculo. Estarei ausente enquanto estiver
presente”.
Antes tivesse fechado os ouvidos também! Um dos combatentes
caiu durante a luta, e a reação estrondosa dos espectadores o
abalou tão intensamente que ele foi dominado pela
curiosidade… Abriu os olhos e foi atingido de maneira ainda
mais profunda na alma do que a vítima tinha sido ferida em seu
corpo… porque assim que ele viu o sangue, a mente o bebeu com
uma disposição selvagem, e ele não se virou, mas fixou os olhos
no passatempo sangrento. Absorveu a loucura extasiado com a
disputa perversa, embriagado com desejo de sangue.
AGOSTINHO, Confissões 6.8

Sergius veste o baletus largo (um cinto de couro cravejado de metal


que protege grande parte de seu abdômen) e uma cobertura de braço
acolchoada que ajudará a proteger o braço da espada contra os golpes de
seu oponente, um gladiador em estilo trácio que usará uma espada curva e
mais leve, também de madeira. A dupla tem uma breve conversa aos
grunhidos antes da luta. Fica combinado que eles vão lutar por cerca de 15
minutos para apresentar um espetáculo aos espectadores e, depois, bem, que
o melhor vencesse.

SERGIUS, EM POSE AGRESSIVA

Aplausos saúdam os gladiadores que desfilam do átrio para um jardim


murado iluminado por tochas na parte de trás da casa. O anfitrião e seus
convidados sentam-se em cadeiras montadas em torno da arena
improvisada, e Sergius percebe que a anfitriã está sentada na primeira fila,
como fazem as virgens vestais nas lutas mais mortais no Coliseu. Escravos
espiam furtivamente pelas janelas da cozinha, onde o cozinheiro irritado de
vez em quando os manda de volta para realizar seus afazeres, preparar e
servir iguarias e lanches após o jantar. O trácio é ágil e habilidoso. Ele
dança ao redor do pesado Sergius e acerta alguns golpes encenados no
capacete premiado de seu oponente. Os espectadores aplaudem ou vaiam de
acordo com suas apostas e suspiram quando Sergius leva um golpe perverso
nos rins. Ele está levando a pior na luta, é evidente, antes de o trácio
sinalizar que o tempo do espetáculo acabou e investir contra o rosto de
Sergius com sua espada curva. Sergius bloqueia o golpe levantando o
escudo, de modo que a espada passa por cima de seu ombro.
Essa defesa desajeitada é exatamente o que o trácio queria, pois agora
ele pode enfiar a ponta curva de sua espada nas costas desprotegidas de seu
oponente.
Pouco antes de ele poder atacar, Sergius age. O gladiador passou o
último quarto de hora atraindo o oponente para uma ilusória sensação de
superioridade e foi ficando muito irritado durante o processo. Justamente
quando o trácio se preparava para atacar, Sergius levanta o escudo com a
força de um soco. A guarda do escudo é uma cabeça da Medusa em bronze
e, mesmo que o trácio esteja protegido pela grade de seu capacete, quando
um gladiador musculoso de mais de 90 quilos põe toda sua força em um
soco, o que ele soca permanece devidamente socado. Atordoado, o trácio
cai no chão, e os espectadores aplaudem quando Sergius coloca o pé na
garganta do oponente em um gesto simbólico de vitória.
“Você não precisava ter feito aquilo”, o trácio reclama resmungando
pouco depois. Ele está sentado em um banquinho no camarim improvisado,
balançando um dedo para frente e para trás na frente do nariz para verificar
se houve concussão.
“Então você não devia ter batido tanto no meu capacete”, responde
Sergius com um rosnado. Uma escrava está usando um estrígil para raspar o
suor de seu corpo, e Sergius está sendo pago por isso também. O suor de
gladiador depois de uma luta é um elemento muito valorizado em óleos
corporais e cosméticos femininos, assim como o sangue de um gladiador
morto às vezes é colocado na ponta da lança com a qual um noivo romano
reparte cerimoniosamente o cabelo de sua noiva. Tudo faz parte da mística
do gladiador.

O ESTRÍGIL
Os romanos não acreditavam que sentar em uma banheira cheia de espuma era o caminho
certo para a limpeza. De fato, sentavam em uma banheira grande, de preferência na
companhia de amigos, mas o objetivo do exercício era abrir os poros da pele adequadamente.
Neste ponto, você saía do banho e era devidamente ungido com óleo perfumado. Então,
depois de marinar por alguns minutos, o óleo era raspado da pele, levando consigo qualquer
sujeira, pele morta ou outros impedimentos à higiene.
O raspador era chamado de estrígil, uma lâmina de cobre curva e sem corte que podia ser
operada pelo próprio ocupante do corpo, mas era idealmente empunhada por um servo ou um
escravo gracioso. Eras posteriores têm muitos exemplos de estrígil bem preservado, porque
as conotações de limpeza e purificação significavam que esses objetos eram frequentemente
enterrados simbolicamente com o falecido.

Mais tarde, Sergius irá ponderar sobre isso enquanto, vestindo uma
túnica limpa, dirige-se a um local ainda mais alto no Monte Célio para o
último trabalho da noite.
Uma tarefa nada desagradável o aguarda. A senhora Eppia está
cansada de dormir sozinha enquanto seu marido aristocrata viaja para o
exterior com a corte de seu peripatético imperador Adriano. Consciente de
que a esposa poderia se perder, o marido colocou vigias à porta de sua casa.
No entanto, como observou o poeta Juvenal: “O tempo todo meus velhos
amigos aconselham: ‘Tranque as portas e mantenha sua mulher atrás delas’.
Sim, de fato, mas quem vai guardar os guardas?”
Por uma generosa remuneração, Sergius passará a noite com essa
senhora. O que ela vê nele, se pergunta, que se permite ser chamada de
“carne de gladiador”? Seu rosto está deformado e maltratado, e o capacete
deixou uma cicatriz permanente na testa. Há uma secreção constante em um
olho provocada por uma lesão antiga e uma úlcera no braço.
Mas, como Juvenal também aponta, “Ele é um gladiador! É isso que
ela prefere aos filhos e à família. O que essas mulheres amam é a
espada!”17
Hermes é o sucesso da cidade em competições marciais,
Hermes é habilidoso com todas as armas,
Hermes é um gladiador; o mestre gladiador.
Hermes aterroriza e impressiona toda a sua escola!
[…]
Hermes é objeto do carinho e da ansiedade das atrizes.
Hermes da lança orgulhosa e guerreira.
Hermes ameaça com o tridente de Netuno.
Hermes, o terrível, com seu capacete que esconde o rosto.
Hermes, em todos os sentidos, a glória de Marte
Tudo isso e três vezes homem.
MARCIAL, Epigramas 5.24

17 Ambos Sátira, Juvenal 6.347 (N.A.)


HORA NOCTIS V
(23h–0h)

O PARASITA RETORNA DO JANTAR

Sim, estou tentando ser convidado para jantar com você,


Tenho vergonha disso,
E, no entanto, Máximo, continuo tentando.
MARCIAL, Epigramas 2.18

É tarde, e a lua está se pondo sob os telhados quando o parasita volta para
casa, as roupas de jantar enroladas embaixo de um braço e um guardanapo
cheio de salgadinhos, pãezinhos e iguarias diversas fechado como um saco
de butim no outro. “Selius, o Parasita”, é assim que o chamam, e —
amolecido pela boa comida e o vinho de seu anfitrião — Selius se pergunta
se isso é realmente um insulto.
Ok, ele é um parasita — isto é, um “para sitos”, que vem do grego e
significa “companheiro comensal”. Também é verdade que os outros no
jantar o desprezam porque, como as flautistas durante a refeição e os
gladiadores depois, ele é menos um dos convidados à mesa e mais parte do
entretenimento que o acompanha. Ninguém convida um parasita tedioso
para jantar; Selius tem que fazer por merecer sua refeição sendo espirituoso,
contando piadas elegantes e citando poesias obscuras. Ele deve ofuscar os
outros em torno da mesa com seu estilo e sua genialidade, e ainda assim
tudo isso deve parecer natural e espontâneo. Isso não é, então, uma arte?
Uma profissão? Considere, reflete Selius enquanto caminha, qual é o
destino de um marinheiro inexperiente? Ele se afoga. Um soldado
inexperiente com as armas é morto rapidamente. Um artista, um escultor,
sem habilidade e treinamento, não encontra clientes. Ele morre por falta de
trabalho. É assim com um parasita — se ele não consegue entrar em um
jantar, ele morre de fome. Na verdade, o parasita é um artista mais talentoso
do que, digamos, um pintor ou um poeta. Um poeta pode passar dias ou
semanas sem produzir um epigrama decente, e um pintor pode deixar sua
arte definhar entre uma encomenda e outra. No entanto, se Selius não
estiver em sua melhor forma, refinando as habilidades pela prática de sua
arte todas as noites, sem esse exercício diário de habilidade sua arte
pereceria, e ele com ela. Dito isso, Selius tem que admitir — com um
tremor interno — que esta noite não foi seu melhor momento.
Maldito seja esse Manidus e seu péssimo senso de humor!Selius
chama Manidus de “amigo” porque ele já foi convidado para jantares com o
homem e participou de um de seus jantares. E como o escritor Lucian
declarou:18

Bem, você não convidaria um inimigo, um estranho ou mesmo


um conhecido casual para jantar. Ele tem que ser um amigo
diante do qual você possa partir o pão e comer, e confiar a ele
seus segredos. Você nunca ouviu as pessoas dizerem: “Amigo?
Como ele pode se dizer amigo se nunca jantou ou bebeu
conosco?” Eu sei que já ouvi isso.
Um homem só é confiável se você jantou com ele.
LUCIAN, Parasitos 22

Na tarde anterior, enquanto estava nas Termas de Trajano, Selius havia


encontrado Manidus conversando com um companheiro. A palavra
“Cirene” surgiu, e Selius agarrou a oportunidade.
“Cirene? Um lugar magnífico e exótico! Esteve lá? Há tanto para
saber, tanto para contar, sobre essa grande cidade. Ah, África — ex África
aliquid semper novi. Qualquer coisa nova sempre vem de lá. Você se
surpreenderia com o que há para saber sobre Cirene.”
Divertindo-se com essa história, Manidus prontamente convidou
Selius para jantar no dia seguinte, de modo que “você possa nos contar
tudo”. O encantado Selius imediatamente aceitou o convite e depois se
despediu com toda a decência possível para sair correndo das Termas de
Trajano para a Biblioteca de Trajano, no sopé do Monte Esquilino, para
estudar o máximo que pudesse sobre Cirene, pois, na realidade, Selius mal
pôs os pés fora de Roma. O ar do campo provoca nele a febre do feno.

Se ele vê a ameaça de ter que jantar em casa,


Selius não deixa pedra sobre pedra.
Ele vai correr de um ponto de referência a outro,
Não apenas aos edifícios cívicos e templos de Roma,
mas até nas insalubres casas de banho.
Em seu desespero, ele se banha três vezes nos banhos
públicos.
Ainda sem sucesso, corre de volta para onde começou no
Pórtico da Europa.
Talvez lá ele esbarre em um conhecido que ainda está
pela rua.
Pelos céus, Touro de Júpiter, você não vai levar Selius
para jantar?
MARCIAL, Epigramas 2.14

O jantar começou bem. Quem poderia se igualar a ele em brincadeiras


ou em sua intensa apreciação das habilidades do cozinheiro? Quem mais
poderia ter feito os companheiros relaxarem com uma observação
apropriada, um elogio astuto ou uma piada depreciativa? É o que ele faz.
Como se costuma dizer, para quem exerce a maioria das profissões, os
momentos de gozo acontecem duas ou três vezes por mês; para o parasita
profissional, todas as noites são uma festa.
O problema veio junto com os docinhos, quando Manidus dobrou o
guardanapo e perguntou inocentemente sobre Cirene. Selius imediatamente
começou seu dever de casa. “Para essa viagem perigosa”, ele começou sua
declamação, “eu peguei um navio que partiu de Ostia”.
Imediatamente, o cavalheiro sírio barbudo no divã de cima olhou
interessado. “Sério?”, ele perguntou. “Que navio? A maior parte do
comércio para Cirene passa por Puetoli. Se houver alguém que zarpe de
Ostia, gostaria de conhecer essa pessoa”.
As coisas pioraram a partir daí. Rapidamente ficou claro que o sírio
era um comerciante de especiarias que conhecia Cirene e o Mediterrâneo
Oriental, assim como Selius conhece o caminho para sua própria latrina.
Selius se contorce mentalmente com a lembrança de Manidus limpando os
lábios com um guardanapo para esconder um sorriso, enquanto o
comerciante gentilmente o corrigia a cada passo. “Bandos de íbex voando
para o pôr do sol? Talvez queira dizer íbis? É que o íbex é uma espécie de
antílope, e não é muito aerodinâmico.”

ESCRAVOS SERVEM UM JANTAR, NESTE MOSAICO.

“Sua refeição foi aromatizada com sílfio? Que maravilha que eles
redescobriram um suprimento da planta! Todos pensavam que tinha sido
extinto nos últimos cem anos. E você comeu na taberna de Tingitus perto do
porto? Isso é uma excelente notícia. Alguém me disse que tinha sido
destruída pelo fogo alguns anos atrás. Fico feliz em saber que foi
reconstruída.”
A essa altura, estava claro para Selius que o comerciante de
especiarias o considerava uma fraude, mas Manidus continuava
pressionando como um sádico, pedindo detalhes. “Então, ontem você nos
disse que conheceu um dos famosos Ciápodes? Essas estranhas pessoas de
uma perna realmente deitam de costas no sol do meio-dia e usam seu pé
enorme como um guarda-sol?…Oh, céus, parece que meu amigo aqui teve
um ataque de tosse. Deixe-me cuidar dele antes de nos contar sobre isso.”

Há uma tribo de homens [na Etiópia] chamados Pernetas, que


realmente só têm uma perna. Eles saltam e se movem a uma
velocidade notável. Essa raça de pessoas também é chamada de
Ciápodes — os pés de sombra — porque, no clima mais quente,
eles se deitam de costas no chão e se protegem do sol com o pé.
PLÍNIO, o Velho, História natural 7.23

Tortura. Isso é o que era, pura e simples tortura. De fato, quando ele
estava saindo, um dos outros convidados comentou com simpatia que tinha
sido muito menos doloroso ver os gladiadores sendo atingidos na cabeça na
exibição depois do jantar.
Bem, Selius não vai tolerar isso. Da próxima vez que Manidus
convidá-lo para jantar, ele simplesmente não vai.
Ele não percebe que um homem rico, mesmo tendo todo o ouro de
Creso, ainda é pobre se janta sozinho? Quem então o cumprimentará pela
riqueza de seus móveis, o esplendor de seu triclínio, a beleza de seus
serviçais? Um soldado sem suas armas, um cavalo sem seus adornos — isso
é um homem rico à mesa sem um parasita como convidado. Ele oferece um
espetáculo pobre e mesquinho. Não, o patrono precisa do parasita mais do
que o parasita precisa do patrono. Melhor servir uma refeição sem sal do
que ter companhia sem o fermento do charme e da inteligência de um
parasita. O parasita — quando não está sendo interrogado sobre
curiosidades de Cirene — é uma alma alegre e despreocupada. Ele não tem
nenhum cozinheiro com quem se zangar, nenhuma fazenda rural com
capatazes e colheitas para decepcioná-lo. Ele é o único homem à mesa que
pode comer e beber sem as preocupações de que os outros não podem
escapar. Considere as relações tensas tão evidentes entre o cozinheiro e a
anfitriã na refeição desta noite. Se você é o anfitrião e o cozinheiro o
decepciona, você tem que tolerar seu mau humor, ou comprar paz e sossego
comendo mal e abrindo mão de seu prazer. Não Selius, que todas as noites
prova o trabalho de um cozinheiro diferente. Portanto, pensa Selius,
ofereço-te, Manidus, o digitus impudicus, esse gesto obsceno com o dedo
médio que indica desprezo e desdém. Eu não preciso disso.
Quando Selius estava deixando a casa de Manidus, a esposa
murmurou para o marido — sem fazer nenhum esforço para não ser ouvida
—: “Isso foi um desastre. Da próxima vez, convide um filósofo”.

Você vai a contragosto a esse jantar —


Pelo menos, é o que você diz, Classicus,
E aceito ser enforcado, se não estiver mentindo!
Apicius [mestre da cozinha em Roma] ficava muito feliz
quando ia comer fora
e sentia-se miserável quando jantava em casa.
Então, se você vai a contragosto, Classicus,
Por que ir?
“Sou obrigado a ir”, você diz.
Claro que é, assim como Selius é obrigado.
Agora Melior o convidou para um esplêndido banquete,
E onde estão todos os seus protestos?
Coloque seu estômago onde está a boca
E recuse-se a ir.
MARCIAL, Epigramas 2.69

Claro, pensa Selius, isso vai funcionar. Quem você quer no jantar —
alguém que se esforça muito para ser a vida e a alma da festa, ou um
homem sem nenhum senso de humor, que fica ali sentado com um manto
puído e os olhos no chão, como se estivesse em um funeral, não em um
jantar. Talvez Vossa Dragonice esteja pensando em convidar um epicurista
— afinal, os seguidores de Epicuro devem considerar a felicidade o maior
bem, e comidas e vinhos finos podem ajudar bastante a incentivar esse
sentimento.
Pessoalmente, Selius sente que, no que diz respeito à felicidade, os
epicuristas copiaram uma página do próprio manual do parasita. Profundo
em suas meditações, e com seus pensamentos um pouco confusos pelo
vinho, Selius automaticamente vira à direita quando chega ao Velia e
começa a subir um pouco a colina em direção a seus aposentos na parte
inferior do Monte Viminal. Ele murmura para si mesmo: “É puro roubo, os
filósofos aspirando à felicidade. Quero dizer, o que é a felicidade, quando
você chega a ela? Considero que a felicidade é uma alma tranquila em um
corpo em paz consigo mesmo. Então, quem tem isso? É o homem que está
constantemente indagando sobre a forma da terra, se o espaço é infinito e
qual é o tamanho do sol? Luto com as distâncias astronômicas, a natureza
dos elementos, a existência ou não dos deuses, ou me envolvo em
incessantes controvérsias com meus colegas? Esse é o seu filósofo. Eu,
depois de organizar meu próximo jantar, estou convencido de que vivo no
melhor de todos os mundos possíveis. Uma vez que meu estômago está
satisfeito, minhas mãos e pés podem cuidar de si mesmos. Filósofos, ah!
Eles não cabem em um salão de jantar decente”.
Tão preocupado está Selius com sua diatribe interna, que se
encaminha diretamente para um grupo de jovens que vem em sentido
oposto. Há uma colisão violenta e as inevitáveis recriminações. Olhando
para os rostos raivosos, Selius percebe que tem um problema. Esses jovens
foram a uma festa e ele reconhece o tipo de sujeito que só consegue dormir
depois de uma briga. Se é que se pode chamar isso de briga, considerando
que ele vai levar todos os socos e eles vão dar toda a surra.
“Quem comeu o feijão que fez seu rabo explodir?”, pergunta um
desses idiotas, avançando com ar ameaçador. Ele vê as roupas de jantar
embaixo do braço de Selius e dá uma gargalhada. “Com que sapateiro
esteve mastigando alho-poró cortado e cabeça de ovelha cozida, hein?
Responda, ou vai levar — isso — nas canelas!”
Selius salta para trás alarmado. A essa altura, ele está rezando para
chegar em casa com alguns dentes na boca. “Ei, rapazes…”, diz ele
insinuante, e olha novamente para as silhuetas grandes e sombrias que
avançam em sua direção. Onde estão os vigiles quando você precisa deles?
Tomando uma decisão instantânea, Selius joga seu guardanapo cheio
de guloseimas no grupo e foge correndo, batendo ruidosamente as sandálias
nas pedras da rua. Ele desaparece nas sombras seguido pelas risadas
debochadas e pelos gritos ofensivos, mas, para seu grande alívio, ninguém
faz nenhum esforço sério para segui-lo.
Os jovens descem em direção ao Fórum falando alto e, depois de um
tempo, a paz retorna. No silêncio, um gato de rua emerge das sombras para
investigar os alimentos caídos na rua e começa a comer. Acima da rua agora
tranquila, as estrelas brilham no céu na escuridão da meia-noite. E,
enquanto a cidade dorme, o lento movimento das constelações leva Roma
para outro dia.

18 Um pedido de desculpas a Lucian de Samósata (125-180 d.C.), cujos advogados estão, sem
dúvida, preparando suas canetas para redigir uma ação de direitos autorais contra Selius, já que a
maior parte de seu filosofar e divagar é retirada diretamente do diálogo satírico de Lucian, O
parasita. Da mesma forma, o encontro e o diálogo com os bandidos de rua vêm quase textualmente
da terceira Sátira de Juvenal. (N.A.)
AGRADECIMENTOS POR IMAGENS

Modelo de um carro de bombeiros romano (página 16), Mary Evans Picture Library
Mosaico de carrinho de duas rodas (página 30), MuseoPics — Paul Williams/Alamy
Padaria de Pompeia (página 36), foto, Jeremy Day
Amante e escrava (página 52), Werner Forman/Universal Images Group/Getty Images
Cena pós-natal em baixo relevo romano (página 59), Mary Evans Picture Library
O correio lento (página 67), Johann Jaritz/Creative Commons CC-by-SA-3.0
Estudantes romanos em trajes formais (página 78), foto, Philip Matyszak, do Museu do
Vaticano
Senadores romanos em desfile (página 88), DEA/G Dagli Orti/Getty Images
Virgem vestal (página 100) Art Media/Colecionador de Impressos/Getty Images
A Basílica de Pompeia (página 110), martin951/Shutterstock.com
Garota jogando bugalha (página 122), Carole Raddato/Creative Commons CC-by-SA-2.0
Pedreiro com suas ferramentas (página 133), Azoor Photo/Alamy
Estatueta de uma dançarina (página 146), Museu J. Paul Getty/Presente de Barbara e
Lawrence Fleischman
Relógio de água (página 151), Nicku/Shutterstock.com
Interior da casa de banho (página 162), Foto Jeremy Day
Aparador romano (página 173), ilustração de A Vida Privada dos Romanos, de Harold W.
Johnston; Scott, Foresman and Co., Chicago 1903
Dama romana (página 175), DEA/De Agostini/Getty Images
Lavanderia romana (página 187), foto, Jeremy Day
Compra de lebres na banca do mercado (página 193), Museo Ostiense, Ostia Antica, Roma
Estátua da sacerdotisa (página 205), foto Jeremy Day
Especiarias em transporte (página 216), DEA/G. Dagli Orti/Getty Images
Prostituta (página 226), Pecold/Shutterstock.com
Lamparina a óleo romana erótica (página 228), Anagoria/Creative Commons CCby-3,0
Capricórnio (página 237), xilogravura de Quaestio Virgiliana por Francisci Campani, 1540
Mosaico mostrando gladiadores (página 246), Leemage/Corbis via Getty Imagens
Estátua de gladiador (página 250), Granger/REX/Shutterstock
Mosaico de escravos (página 259), Museu Nacional do Bardo, Túnis
BIBLIOGRAFIA

PRINCIPAIS TEXTOS CONSULTADOS PELO AUTOR


Adkins, L & Adkins, R. Handbook to Life in Ancient Rome 1998
Caio, (trad. E.Post.) The Institutes of Roman Law 2017
Crook, J. Law and Life of Rome 1967
Dudley, D. Urbs Roma 1967
Joshel, S. Work, Identity, and Legal Status at Rome: a Study of the Occupational Inscriptions 1992
McGinn, T. The economy of prostitution in the Roman world: a study of social history & the
brothel 2004
Nippel, W. ‘Policing Rome’, Journal of Roman Studies 74 (1984) 20-29
Platner, S. A Topographical Dictionary of Ancient Rome 2015
Potter, D. and Mattingly, D. (eds) Life, Death, and Entertainment in the Roman Empire 1999
Rainbird, J. ‘The fire stations of imperial Rome’, Papers of the British School at Rome 41
(1986) 147-169.
Rawson, B. (ed.) Marriage, Divorce and Children in Ancient Rome 1991
Rich. A. Dictionary of Roman and Greek Antiquities 1860
Treggiari, S. Roman Social History 2002
Veyne, P. (B. Pearce trans.) Bread and Circuses: Historical Sociology and Political Pluralism
1990

LEITURA COMPLEMENTAR RECOMENDADA


Casson, L. Everyday Life in Ancient Rome 1999
Coletta, G. Rome: Reconstructed 2007
Edwards, C. & Woolf, G., (eds) Rome the Cosmopolis 2003
Harvey, B. Roman Lives, Corrected Edition: Ancient Roman Life Illustrated by Latin
Inscriptions 2015
Matyszak, P. Ancient Rome on 5 Denarii a Day 2006
Stambaugh, J. The Ancient Roman City 1988
Conheça outros livros do selo
Culturama Plural

24 HORAS NO ANTIGO EGITO


Philip Matyszak

Volte no tempo para o Egito antigo para passar um dia com as pessoas que moravam lá. É
1414 a.C., o 12° ano do reinado de Amenotepe II, na XVIII Dinastia do Novo Reino do
Egito, e época de construção do império. Neste livro, você descobrirá como era um dia no
Egito antigo, passando 24 horas com o povo de Tebas, uma das capitais políticas e
religiosas mais importantes do país. A cada hora, você encontrará um egípcio diferente –
de fazendeiros a soldados, de carpideiras profissionais a parteiras, de construtores a
sacerdotes – e descobrirá as várias camadas da sociedade egípcia. Descubra os perigos
de se desenhar um hieróglifo incorretamente, como as gorduras de íbex e de hipopótamo
podem curar a calvície e conheça o verdadeiro Egito antigo através dos olhos de seu povo.

24 HORAS NA ATENAS ANTIGA


Philip Matyszak

Volte no tempo para a Atenas da Antiguidade e passe um dia com as pessoas que viveram
lá. É 416 a.C., e Atenas está no auge: seu poderio político e militar é temido em todo o
Mundo Antigo, ao mesmo tempo em que a cidade testa os limites da experimentação
social, literária e filosófica. Ao longo de um dia comum, encontramos 24 atenienses típicos
—da menina escrava ao político; da vendedora de peixe ao pintor de vasos; do cavaleiro
ao médico — e descobrimos como era a verdadeira Atenas, passando uma hora com cada
um deles. Descubra os segredos do simpósio grego, os mistérios das acólitas da deusa
Atena, como amaldiçoar um rival e as intrigas entre Atenas e seus inimigos, enquanto a
cidade paira à beira da guerra fatídica que destruirá sua era de ouro.

24 HORAS NA CHINA ANTIGA


Dr. Yijie Zhuang

O ano é 17 d. C. A Dinastia Han está no poder e estamos nos arredores de Chang’an, a


capital e uma das regiões mais desenvolvidas do Império Chinês, que desfruta de um
apogeu econômico e cultural prolongado. É uma era vibrante e inovadora, mas também
repleta de conflitos e contradições. Por mais bem-sucedido que seja o império, a realidade
é que a vida dos habitantes comuns ainda tem os mesmos problemas antigos: ganhar
dinheiro, problemas no trabalho e dramas familiares. Descubra como era um dia na China
Antiga ao passar 24 horas com as pessoas que lá viviam. A cada hora, conhecemos uma
nova pessoa — de dançarinas a médicos, sacerdotes e condenados, tecelãs e ladrões de
tumbas — e construa uma imagem multifacetada do tecido social da China Antiga e desse
período fascinante da história.

PENSANDO COMO UM EMPREENDEDOR


Daniel Smith

Pensando como um empreendedor aprofunda-se nas ideias e estratégias dos maiores


empresários do mundo para que você possa aprender o que faz com que alguém seja um
empreendedor de sucesso. Trazendo histórias, experiências e ideias de empreendedores
icônicos de todo o mundo e diversas épocas – de Andrew Carnegie e Oprah Winfrey a
Steve Jobs e Jack Ma – o livro está repleto de conselhos perspicazes e intelectualmente
instigantes. Cada capítulo trata de um aspecto específico do empreendedorismo e traz
lições que você pode aprender com os grandes, como: para crescer, é preciso pensar
grande; aproveite seu momento, não tenha medo de causar disrupção; e dinheiro não é o
único indicativo de sucesso. Informativo e educativo, este livro é sua passagem para
compreender como se forma um empreendedor de sucesso – para que possa seguir os
passos deles.

PENSANDO COMO CHURCHILL


Daniel Smith

Uma das grandes figuras da história moderna, Winston Churchill liderou seu país da hora
mais sombria — isolado e enfrentando uma possível invasão — até o auge, enquanto dava
ao mundo o tempo e o espaço necessários para derrotar os exércitos de Hitler. Este livro
inspirador convida você a explorar a abordagem única de Churchill para lidar com os
profundos desafios políticos de sua época e traça as ideias e influências díspares que
ajudaram a moldar sua personalidade e perspectiva, decodificando-as para revelar como
você pode aplicar seus métodos e práticas a todas as áreas da vida. Você também poderá
aprender a pensar como o homem que ganhou a reputação de maior britânico que já
existiu.

Você também pode gostar