Letramento Literario de Re Existencia PR

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Sonia Cristina Poltronieri Mendonça

Lucas Evangelista Saraiva Araújo


Rogério Back
[orgs.]

Letramento Literário de (re)existência:


práticas e debates

TUTÓIA-MA, 2021
EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva

CONSELHO EDITORIAL
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
2021 - Editora Diálogos
Copyrights do texto - Autores e Autoras

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei no 9.610, de 19/02/1998.


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Capa: Geison Araujo Silva e Ana Clara Lopes Fank


Fotografia da capa: Aleyna Rentz / Unsplash
Diagramação: Geison Araujo Silva
Revisão: Editora Diálogos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
L649
letramento literário de (re)existência [livro eletrônico] :
práticas e debates / Organizadores Sonia Cristina Poltronieri
Mendonça, Lucas Evangelista Saraiva Araújo, Rogério Back. –
Tutóia, MA: Diálogos, 2021.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-89932-16-1

1. Literatura brasileira – História e crítica. 2. Literatura –


Estudo e ensino. 3. Prática de ensino. I. Mendonça, Sonia
Cristina Poltronieri. II. Araújo, Lucas Evangelista Saraiva. III.
Back, Rogério
CDD 807

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

https://doi.org/10.52788/9786589932161

Editora Diálogos
[email protected]
www.editoradialogos.com
Sumário

Apresentação ..................................................................................................7

Letramento literário de reexistência na periferia de Fortaleza:


cartografia do Programa Viva a Palavra e de Bibliotecas
Comunitárias ................................................................................................14
Vanusa Benício Lopes
Claudiana Nogueira de Alencar

Gênero e literatura na América Latina: estudo de mulheres de


olhos grandes, de Ángeles Mastretta ................................................. 30
Julia Danielle dos Santos
Odair José Silva dos Santos

Felicidade Clandestina: literatura e relações de poder ................. 56


Jackson José Pagani
Marco Antonio Hruschka Teles

Os discursos literários como ferramenta social: uma análise de


recortes harry potterianos de J.K. Rowling ..................................... 68
José Lucas do Nascimento Barbosa
Rosilda Maria Araújo Silva dos Santos

Projeto literatura e diversidade sexual: letramento e


diversidade .....................................................................................................91
Roberto Muniz Dias

Escrita feminina afro-brasileira e a memória negra em Úrsula,


de Maria Firmina dos Reis: uma leitura em função do letramento
literário .........................................................................................................108
Marcos Antônio Fernandes dos Santos

O destino trágico de personagens femininas na literatura


brasileira contemporânea..................................................................... 124
Ana Paula Gonçalves de Oliveira
A Literatura de Cordel como resistência: um olhar sobre os anos
finais do ensino fundamental .............................................................. 139
Mikaelly Keila Pereira da Silva

(Res)significando as literaturas e as identidades da mulher


indígena na literatura de Sol Ceh Moo .............................................151
Rogério Back
Lucas Evangelista Saraiva Araújo
Sônia Cristina Poltronieri Mendonça

Repensando a sala de aula: Solano Trindade, o rap, o resgate da


identidade afrodescendente e a poesia como arma libertadora ..172
Vera Horn

“Seu cabelo rosa não é problema para mim; o seu azul tampouco
me é, por que hão de ser para os outros?” Identidade e diferença
na narrativa juvenil Dois garotos se beijando (2015), de David
Levithan ........................................................................................................197
Yuri Pereira de Amorim
Silvana Augusta Barbosa Carrijo

Letramento literário: a formação do leitor literário a partir da


quebra de velhas práticas..................................................................... 220
Dirlenvalder do Nascimento Loyolla
Júlio Luís Assunção Vasconcelos

Posfácio ........................................................................................................242
Marcel Alvaro de Amorim

Sobre os organizadores..........................................................................246

Sobre as autoras e autores....................................................................247

Índice remissivo ........................................................................................ 251


Apresentação

Fogo!...Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!...Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!...Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!...Queimaram Pau de Colher...
E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades
que os vão cansar se continuarem queimando
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade.

Nego Bispo
(Antônio Bispo dos Santos)1

1 SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília; INCT/UnB, 2015.
De abordagens metodológicas a relatos de experiência, este e-book
reúne textos que partem de algum tipo de “letramento reexistencial”
como um caminho para debater e pôr em prática questões contempo-
râneas intra e extraliterárias, as quais afetam o modo de ver e fazer lite-
ratura atualmente. Nesta esteira, consideramos o pressuposto de Souza
(2009)2, que elenca a necessidade de questionar as práticas sociais de le-
tramento legitimadas e buscar formas de reexistir ante uma sociedade
racista - que nega, invisibiliza e exclui diversos grupos e sujeitos sociais.
Diante disso, ponderamos que a difusão, o consumo e aproximação com
as diversas manifestações literárias de autores de grupos historica-
mente minorizados (indígenas, afro-brasileiros, imigrantes, mulheres,
LBGTQIA+, entre outros) podem se tornar um viés de reexistência, (re)
ssignificação e valorização destas literaturas e, por conseguinte, um
olhar mais humano a essas populações.
Letramento Literário de (Re)existência: práticas e debates surge em
pleno cenário de pandemia do Covid-19 e no momento de uma nova eta-
pa de nossas vidas em que precisamos (re)existir diante da necessidade
de adaptação do Ensino, da Pesquisa e da Extensão à modalidade remo-
ta síncrona. Esta obra foi motivada por nossas inquietudes e práticas
pedagógicas que vivenciamos em seminários, encontros, aulas em pro-
gramas de graduação e pós-graduação na UFPR, na Unioeste, na Unila,
na UFPI e outros lugares que nem imaginávamos. Foram muitas con-
versas e troca de saberes para a organização desta obra com diferentes
possibilidades de agir no meio eletrônico e conexões facilitadas pelo uso
da tecnologia como e-mail, vídeo chamadas gratuitas por plataformas
como o Google Meet, WhatsApp, entre outras.
Divididos em duas grandes partes – práticas e debates – os textos
deste livro procuram contribuir para uma reflexão acerca do que é lite-
ratura e qual o seu papel nessa sociedade capitalista, machista e racista,
debruçando-se sobre a necessidade de diálogo com outras literaturas
que vão mais além do cânone literário e que descentralizem o eixo da
leitura literária a partir de outras vivências. (....) É disso, portanto, que

2 SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de Reexistência: culturas e identidades no movimento hip-hop. Tese
(Doutorado em Estudos da Linguagem). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.
Campinas, SP: [s.n.], 2009.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 8


se trata esse livro, em cuja composição apresenta estudos com olhares
para a literatura de (re)existência, visando contribuir para o conjunto
de conhecimentos produzidos, em contexto brasileiro, acerca desta te-
mática.
Abrindo as discussões, no capítulo Letramento literário de reexistên-
cia na periferia de Fortaleza: cartografia do Programa Viva a Palavra e de
Bibliotecas Comunitárias, as autoras Lopes e Alencar discutem sobre as
práticas de mediação de leitura que acontecem na periferia de Fortale-
za, por meio do Programa de Extensão Viva a Palavra da Universidade
Estadual do Ceará e das Bibliotecas Comunitárias e Livres. Desde suas
percepções, analisam que além de constituírem-se como “letramentos
de reexistência”, estas práticas colaboram para assegurar o direito à li-
teratura à população que vive na periferia de Fortaleza e contribuem
para a formação de leitores críticos diante da realidade atual.
Em Gênero e literatura na América Latina: estudo de Mulheres de olhos
grandes, de Ángeles Mastretta, Santos e Santos problematizam o fato de
que, por muito tempo, a representação da mulher somente era cons-
tituída sob a perspectiva masculina nos textos literários. Assim sen-
do, ponderam ser necessário tensionar a ideologia dominante que tem
perpassado as produções literárias. Neste capítulo, valendo-se da obra
Mulheres de olhos grandes, de Ángeles Mastretta, os autores observam
como a leitura, sob a perspectiva feminina, pode contribuir com a des-
construção da ideologia patriarcal dominante e auxiliar na construção
de sujeitos aptos a transformar as práticas sociais.
No capítulo seguinte, Pagani e Teles, em Felicidade clandestina: li-
teratura e relações de poder, apresentam uma análise da obra Felicidade
Clandestina, de Clarice Lispector, levando em consideração as relações
de poder e de que modo possuir (ou ler) um livro pode reforçar ou deses-
truturar os pilares do status quo. De acordo com os autores, para que a
literatura surja como um fenômeno artístico e transformador, é preciso
que o leitor aproprie-se do texto, reinterprete-o e reconstrua os seus
significados.
O capítulo que sucede, Os discursos literários como ferramenta so-
cial: uma análise de recortes harry potterianos de J.K. Rowling, Barbosa e
Santos dissertam sobre a relevância em analisar as narrativas ideológi-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 9


cas na literatura. Defendem, também, a existência de discursos na saga
Harry Potter que contribuem para a formação humana, crítica e social,
proporcionando ao leitor reflexão sobre questões sociais. Por meio de
discussões de recortes discursivos dos personagens da saga, os autores
argumentam a necessidade de que obras literárias sejam objetos de en-
sino/análises a fim de ocasionar reflexão, mudança de comportamento
e impulsionar uma formação humana mais sensível, solidária e iguali-
tária.
Mais adiante, Dias apresenta no capítulo Projeto literatura e diver-
sidade sexual: letramento e diversidade, um relato do projeto intitulado
Literatura e Diversidade Sexual, realizado em um momento no qual se
discutia a identidade de gênero no âmbito escolar, e se apropria da li-
teratura LGBT como viés metodológico e operacional. O projeto teve
como intuito a sensibilização quanto às problemáticas do bullying, da
violência de gênero, do preconceito linguístico e social pelos quais os
indivíduos com características não hegemônicas passam no dia a dia.
Desde sua percepção, o autor assevera a necessidade da leitura como
forma de letramento social, como instrumento de criação de um conhe-
cimento e criticidade em relação aos temas, bem como da velocidade
dinâmica das mudanças das estruturas sociais no que diz respeito aos
papéis sociais desempenhados por esta população jovem.
Em Escrita feminina afro-brasileira e a memória negra em Úrsula, de
Maria Firmina dos Reis: uma leitura em função do letramento literário, San-
tos objetiva analisar o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, em
prol do letramento literário, a partir da escrita de uma mulher negra e
das vozes que ecoam de suas personagens marginais. Ao abordar a te-
mática da escravização de pessoas negras nos textos literários, o autor
aponta a indissociabilidade entre a literatura e a história. Aponta ainda
que a leitura de Úrsula e o ecoar das vozes das personagens da narrativa
são capazes de promover o letramento literário, de modo que, a partir
da experiência estética, o leitor é capaz de se apropriar do texto, tor-
nando-o significativo e, modificado por este, poderá transformar suas
práticas sociais.
Avançando as discussões, Oliveira se mostra incomodada pelo fato
de que temáticas como suicídio, abuso sexual, feminício, depressão, en-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 10


tre outras tragédias, estarem constantemente associadas aos percursos
de vida de personagens femininas em diversos períodos da literatura
brasileira. No capítulo O destino trágico de personagens femininas na li-
teratura brasileira contemporânea, a autora recorre à obra Sinfonia em
branco, de Adriana Lisboa, para investigar como essas conjecturas de
tragédias se apresentam na literatura contemporânea de autoria femi-
nina. O estudo da autora aponta que a escrita de Lisboa está ligada a um
movimento de escritoras e escritores contemporâneos que estão com-
prometidos em produzir literatura que abre caminho às vozes silencia-
das. Conclui, ainda, que é necessário estar atento, para que a produção
literária não seja espaço de banalização dessa realidade.
No oitavo capítulo, A Literatura de Cordel como Resistência: Um olhar
sobre os Anos Finais do Fundamental, Silva relembra que a literatura de
cordel é uma manifestação artística de resistência que procura se man-
ter viva, atualizada e dinâmica para ser capaz de expressar realidades
que são próprias do meio em que está inserida. Em seu texto, a autora
objetiva verificar a presença da literatura de cordel nos livros didáticos
de Língua Portuguesa do nível Fundamental-Anos Finais, ademais de
procurar evidenciar como é o direcionamento para o trabalho docente
nessas obras. Após as discussões, a autora reforça a importância da lite-
ratura de cordel na sala de aulas e nos livros didáticos de Língua Portu-
guesa, pois, segundo assevera, conhecê-la é compreender e valorizar a
produção literária que está próxima dos leitores e alunos.
Se aproximando do término do e-book, no capítulo (Res)significando
as literaturas e as identidades da mulher indígena na literatura de Sol Ceh Moo,
Back, Evangelista e Mendonça discutem e problematizam o que se conven-
cionou chamar de literaturas indígenas. Além disso, objetivam articular
uma reflexão literária com vistas à (res)significação das identidades indíge-
nas (sobretudo da mulher indígena) por meio de suas produções artístico
literárias. Para ilustrar como estas literaturas, bem como as identidades
indígenas, são plurais, analisam a obra Jats’ts’illoolilo’ob Xibalbaj (Jardines
de Xibalbaj), da escritora mexicana Sol Ceh Moo, pertencente ao povo Maya
Yacuteco. Para os autores, o intuito é mostrar como uma mesma obra pode
abarcar diferentes temáticas, algumas mais tradicionais e outras de denún-
cia, caracterizando-se como um ato político de resistência

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 11


No décimo capítulo, Horn apresenta o texto Repensando a sala de
aula: Solano Trindade, o rap, o resgate da identidade afrodescendente e a
poesia como arma libertadora, no qual problematiza o espaço do rap nas
salas de aulas de língua portuguesa. Dentre alguns questionamentos
levantados, a autora questiona: “Será que, no que se refere ao estudo da
língua portuguesa, somos capazes de superar os efeitos da colonização
(e do sistema escravagista) que ainda perduram?”. Guiada por estas e
outras inquietudes, Horn vai construindo seu posicionamento crítico
por meio de uma seleção sobre a diáspora africana no Brasil, destacando
a dor e os heroísmos através da “negroesia” de Solano Trindade e do rap
brasileiro, como contraponto.
Já o texto do penúltimo capítulo se intitula Seu cabelo rosa não é
problema para mim; o seu azul tampouco me é, por que hão de ser para os
outros? Identidade e diferença na narrativa juvenil Dois garotos se beijando
(2015), de David Levithan. Os autores Amorim e Silvana Carrijo apresen-
tam um recorte de uma pesquisa de mestrado já concluída com objetivo
de analisar sobre o modo como a orientação sexual (parte da identidade
dos personagens) de Avery e Ryan é fixada na esfera da exclusão e da
marginalização em algumas partes do romance de Levithan (2015). Fei-
to suas observações, Amorim e Carrijo ponderam que a obra é uma ten-
tativa, por parte da crítica especializada, de dar a conhecer ao público
interessado uma narrativa voltada ao subsistema literário juvenil que
trata de temas relevantes à condição humana pelo ângulo da plurissig-
nificação, da humanização e também da identificação.
Encerrando as discussões, Loyolla e Vasconcelos apresentam no
capítulo 12 o texto Letramento literário: A formação do leitor literário a
partir da quebra de velhas práticas. Já em suas primeiras palavras, os au-
tores nos provocam com a indagação: para que ensinamos literatura
nas escolas? Desde suas vivências em sala de aula, os autores relatam
que existe, sim, um descaso para com a leitura literária, fato este que
lhes causam um sentimento de preocupação. No intuito de ilustrar uma
possibilidade de mudar este cenário de descaso para com o objeto lite-
rário no âmbito escolar, Loyolla e Vasconcelos apresentam alguns dos
resultados de oficinas de leitura literária que desenvolveram junto a
alunos do ensino fundamental II. O resultado da prática mostra que

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 12


as atividades elaboradas com atrativos específicos e com o objetivo de
despertar o interesse do aluno em ler a obra, motivaram a vontade do
aluno de se manifestar, o desejo de saber mais sobre o assunto tratado e
a oportunidade de usar a imaginação para criar e explorar este universo
da literatura e do letramento literário que a literatura traz até nós.
Esboçando uma tentativa de resposta ao questionamento “Mas por
que é urgente falarmos das literaturas de reexistência?”, o professor
Marcel Álvaro de Amorim encerra este e-book em um posfácio pequeno
em extensão, mas enorme em provocações que nos fazem refletir a po-
tência do objeto literário e das literaturas de reexistência.
É com alegria que oferecemos aos leitores Letramento literário de
(Re)exitência: práticas e debates, desejamos que sua leitura possa contri-
buir para o enriquecimento de debates, investigações e ações para que
grupos historicamente marginalizados, invisibilizados e inviabilizados,
bem como as literaturas tidas como “periféricas”, assumam um lugar
que é seu por direito. Significa dizer que nosso objetivo será alcançado
quando o Letramento Literário de Reexistência transcender as práticas
e/ou debates aqui apresentados, acerca da literatura, que para Candido
(1988, p. 176) “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”3.

Sonia Cristina Poltronieri Mendonça


Lucas Evangelista Saraiva Araújo
Rogério Back

3 CANDIDO, Antonio. Vários escritos (4ª ed.). São Paulo: Duas Cidades, 1988.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 13


Letramento literário de reexistência na
periferia de Fortaleza: cartografia do
Programa Viva a Palavra e de Bibliotecas
Comunitárias

Vanusa Benício Lopes


Claudiana Nogueira de Alencar

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-1

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 14


Introdução

Este estudo faz parte de uma pesquisa de doutorado4 da qual tra-


zemos aqui um recorte e refletimos sobre as práticas do letramento li-
terário de reexistência que acontece na periferia de Fortaleza, por meio
do Programa de Extensão Viva a Palavra, da Universidade Estadual do
Ceará e das Bibliotecas Comunitárias e Livres. Diante disso, apresen-
tamos algumas considerações sobre o direito à literatura (CÂNDIDO,
2004), sobre os letramentos de um modo geral, incluindo os letramen-
tos sociais, que numa perspectiva crítica consideram que as práticas de
leitura e escrita possuem significados culturais, alegações ideológicas e
se inserem em relações de poder. E com foco nos “letramentos de ree-
xistência”, que de acordo com Souza (2006), “implica considerar as prá-
ticas desenvolvidas em âmbito não escolar, marcadas pelas identidades
sociais dos sujeitos nelas envolvidas”. Assim, realizamos uma cartogra-
fia das práticas de mediação de leitura que são realizadas pelo Progra-
ma de Extensão Viva a Palavra e pelas Bibliotecas Comunitárias e Livres
que são situadas em bairros periféricos de Fortaleza. Utilizamos como
metodologia a cartografia (PASSOS, KASTRUP e TEDESCO, 2014) que
se trata de um método em que o pesquisador acompanha o processo, ou
seja, o percurso de sua pesquisa e a análise vai se delineando a partir do
contexto em que o pesquisador está inserido. Ele vivencia cada situação
de sua pesquisa, traçando metas, definindo e redefinindo os seus objeti-
vos de acordo com as percepções no decorrer do percurso.
Temos o propósito, com este estudo, de refletir sobre como as prá-
ticas de mediação de leitura realizadas pelo Programa Viva a Palavra e
pelas bibliotecas comunitárias por meio do letramento literário podem
se constituir como “letramentos de reexistência”, além de colaborarem
para assegurar o direito à literatura à população que vive na periferia
de Fortaleza e contribuírem para a formação de leitores críticos diante
da realidade atual.

4 Este estudo faz parte de uma pesquisa que deu origem à tese de doutorado intitulada: “Práticas
de mediação de leituras na periferia de Fortaleza: cartografias do Programa Viva a Palavra e de
bibliotecas comunitárias de iniciativa popular”, realizada no Programa de Pós-Graduação em
Linguística Aplicada (PosLA) da Universidade Estadual do Ceará (2020).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 15


O direito à literatura nos diversos contextos sociais

Nesse estudo, discutimos o letramento literário como um direito


de todos e, assim, buscamos demonstrar como as Bibliotecas Comuni-
tárias se colocam na luta por esse direito. Também investigamos o pa-
pel da extensão universitária por meio do Programa Viva a Palavra no
fortalecimento dessa luta. Diante disso, iniciamos a discussão trazendo
aqui algumas considerações sobre o direito à literatura defendido por
alguns estudiosos. “A literatura desenvolve em nós a quota de humani-
dade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a
natureza, a sociedade e o semelhante” (CANDIDO, 2004, p. 180).
Segundo Candido (2004, p. 175), “a literatura concebida no sentido
amplo parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa
ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”. É pensando na lei-
tura como um direito que Santos (2009) apresenta uma série de motivos
que todas as pessoas podem ter para acessar a leitura nos mais diversos
espaços e contextos:

Toda pessoa tem o direito de ler. O direito de ler em casa no aconchego


com os pais, os filhos, o marido, a esposa, o namorado, a namorada. O
direito de ler na escola com o carinho da professora. O direito de ler
na biblioteca com a companhia dos livros. O direito de ler na roda com
amigos. O direito de ler para dormir e sonhar. O direito de ler para acordar
o mundo. O direito de ler para amar. O direito de ler para conversar
melhor sobre as coisas da vida e do mundo. O direito de ler na escola
durante uma aula chata ou na rede para enganar a preguiça. O direito
de ler para se aventurar por entre saberes e sabores. O direito de ler
para viajar por pessoas, tempos e lugares. O direito de ler para gastar os
livros com as impressões digitais e com as asas da imaginação. O direito
de ler para brincar com as palavras, as histórias, as poesias, as fábulas,
os contos. O direito de ler para crescer com os livros fazendo parte de
sua vida e da sua história. O direito de ler para compreender o que lê.
O direito de ler para poder se encontrar com o outro, com o mundo e
consigo mesmo. O direito de ler para escrever, reinventar e transformar
o mundo. Junto a isso, mais dois direitos fundamentais: toda pessoa tem
o direito de não saber ler, mas toda pessoa tem o igual direito de ter
vontade de aprender a ler para viajar nos mundos que moram dentro das
palavras. (SANTOS, 2009, p. 37-38)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 16


Dessa forma, é possível observar que a literatura e a leitura de um
modo geral podem estar presentes em nossas vidas em diversos luga-
res, em diversos momentos e com os mais diversos objetivos possíveis,
indo desde o deleite à descoberta de novos conhecimentos, dentre tan-
tas outras ações que são imprescindíveis ao ato de ler. Para Martins
(2006, p. 87),

Literatura e leitura mantêm relações dialógicas, pois revelam uma


natureza interdisciplinar quando convergem para um ponto: o diálogo
entre as diversas áreas do conhecimento subjacentes ao ato da leitura e
a recepção do texto literário.

A literatura é vida. Ela pode tornar uma aula agradável depois


de um belo poema recitado pelo(a) professor(a) ou uma noite de sono
tranquila para uma criança, depois de uma bela história contada pelos
pais na hora de dormir etc. É isso que nos inquieta: ao pensar que o di-
reito à literatura, muitas vezes, é negado, pois falta acesso por tantas
pessoas aos textos literários. Na maioria das vezes, elas não têm direi-
to à literatura por falta de condições financeiras, tendo em vista que os
livros no país são artefatos caros e a prioridade de muitas são os bens
considerados essenciais, principalmente a alimentação. Essas pessoas
não podem deixar de comprar o alimento, pagar a conta da água, da
luz e de tantas outras coisas necessárias para a sobrevivência, em de-
trimento à compra de um livro. Isso é perfeitamente compreensível,
diante de uma realidade de muitas dificuldades que tantas pessoas
vivem, considerando as infraestruturas social e econômica baseadas
no sistema mundo capitalista colonial, que gera regimes de opressão
e morte. Mesmo diante das dificuldades de acesso aos bens culturais,
incluindo o acesso aos livros, infelizmente, no momento político em
que o país se encontra, deparamo-nos com uma proposta de reforma
do Governo Federal que prevê cobrança de contribuição para o setor
de livros5.

5 O setor de livros não paga impostos e é protegido dessa cobrança pela Constituição Federal. No caso das
contribuições, como o Pis/Pasep e o Cofins, ele é protegido da cobrança pela Lei 10.865, aprovada em 2004,
que isenta tributação sobre vendas e importações. Na proposta de reforma tributária, essa isenção de
contribuição deixa de existir. Com isso, as vendas de livro no Brasil estariam sujeitas à alíquota prevista de

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 17


É nesse contexto que se insere como uma luta pela transformação
dessa realidade, as ações desenvolvidas pelo Programa de Extensão Viva
a Palavra e pelas Bibliotecas Comunitárias na periferia de Fortaleza.
No contexto atual em que estamos vivendo, cada vez mais os direi-
tos dos(as) trabalhadores(as), dos(as) pobres, dos(as) negros(as) são ne-
gados ou retirados por aqueles que deveriam proporcionar uma melhor
qualidade de vida para esses(as) moradores(as) das periferias. Assim,
essas ações de mediação de leitura podem ser consideradas como uma
forma de esperança, de reexistência, como um sonho de mudança dessa
realidade. Para Freire (2011):

Enquanto projeto, enquanto desenho do “mundo” diferente, menos feio, o


sonho é tão necessário aos sujeitos políticos, transformadores do mundo
e não adaptáveis a ele, quanto permita-se-me a repetição, fundamental é,
para o trabalhador, que projete em seu cérebro o que vai executar antes
mesmo da execução (FREIRE, 2011d, p. 127).

É preciso, portanto, que cada vez mais se possa refletir acerca das
dificuldades e dos conflitos vividos por essas pessoas, que sofrem, pas-
sam por privações, injustiças, mas lutam e não deixam de acreditar em
dias melhores. E, assim, mais e mais as reflexões apresentadas por Pau-
lo Freire se tornam presentes, não apenas como uma fonte de estudos,
de referência bibliográfica, mas como um incentivo e orientação para
que professores(as), educadores(as), bibliotecários(as), estudantes, pes-
quisadores(as), qualquer pessoa possa contribuir de alguma forma para
a mudança dessa realidade.

Os letramentos

O significado do termo letramento foi passando por diversas modi-


ficações ao longo do tempo, ou seja, para letramento foram sendo atri-

12%, consequentemente, o valor das obras para o consumidor final se tornaria mais alto. Disponível em: https://
g1.globo.com/pop-arte/noticia/2020/08/11/taxacao-de-livros-como-proposta-de-reforma-tributaria-pode-
encarecer-obras.ghtml. Acesso em: 20 out. 2020.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 18


buídos diversos sentidos. Inicialmente se referia principalmente ao pro-
cesso de alfabetização, em que se considerava letrada uma pessoa que
dominava a leitura e a escrita. Depois se passou a considerar letrado o
indivíduo que não apenas soubesse ler e escrever, mas que tivesse o co-
nhecimento das funções sociais da leitura e da escrita.
Com o advento das tecnologias, as pessoas passaram a ter a neces-
sidade de possuir vários conhecimentos tecnológicos, surgindo assim
os vários tipos de letramentos. Ao tratar da escola e inclusão social, Rojo
(2009) se refere a “letramentos múltiplos”.

Essas mudanças fazem ver a escola de hoje como um universo onde


convivem letramentos múltiplos e muito diferenciados, cotidianos e
institucionais, valorizados e não valorizados, locais, globais e universais,
vernaculares e autônomos, sempre em contato e em conflito, sendo
alguns rejeitados ou ignorados e apagados e outros constantemente
enfatizados (ROJO 2009, p. 106).

Assim, podemos perceber que cada vez mais a noção de letramento


vai se ampliando, não se colocando como superiores ou inferiores às
noções de letramentos já existentes, mas colocando-se ao lado destas
como habilidades e conhecimentos necessários para desempenharmos
as mais diversas atividades na sociedade contemporânea. “Os letramen-
tos multissemióticos exigidos pelos textos contemporâneos, ampliando
a noção de letramentos para o campo da imagem, da música, das ou-
tras semioses que não somente a escrita” (MOITA-LOPES & ROJO 2004,
apud ROJO 2009, p. 107).
Cosson (2015, p. 173) em seu artigo Letramento Literário: uma loca-
lização necessária nos apresenta uma série de denominações para le-
tramento, as quais abrangem desde o letramento digital ao letramento
emocional, o que nos leva a perceber que é um engano pensar que o
termo letramento nos dias atuais está apenas associado aos estudos no
campo da linguagem, tratando de temas como leitura, escrita e/ou alfa-
betização. Assim, concordamos com Rojo (2009) ao tratar os letramen-
tos como “múltiplos” e situamos a nossa pesquisa como uma análise dos
letramentos de reexistência (SOUZA, 2011) na periferia de Fortaleza.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 19


No que se refere aos letramentos sociais, as teorias do letramento
numa perspectiva crítica consideram que as práticas de leitura e escri-
ta possuem significados culturais, alegações ideológicas e se inserem
em relações de poder. Para Street (2014), o letramento, nessa vertente,
expressa-se por meio da concepção dominante, a qual o reduz “a um
conjunto de capacidades cognitivas, que pode ser medida nos sujeitos”.
Portanto, as práticas de letramento estão sempre associadas à lei-
tura e à escrita, porém abrangem um universo bem mais amplo do que o
seu uso no ambiente escolar ou até mesmo a função social dos textos do
contexto social. A noção de letramento envolve aqui aspectos culturais
e relações de poder, estando os letramentos estreitamente ligados às
ideologias que estão nos textos que circulam na sociedade.
Assim, podemos perceber que as práticas de letramento impactam
na construção das identidades. No caso do letramento numa perspecti-
va funcionalista, delineado por meio de um modelo autônomo, há uma
hegemonia das possibilidades de se estabelecer padrões identitários le-
gitimadores, com intuito de naturalizar os processos de exploração e
dominação via usos da linguagem, contribuindo para manutenção da
colonialidade. Nessa vertente:

[...] se encontra normalmente uma imagem muito ocidentalizada e


estreita do que seja o ‘letramento’, um modelo fundado nos usos e
associações particulares do letramento na história recente da Europa e
da América do Norte (STREET, 2014, p.30).

Com os Novos Estudos do Letramento, denominados por Street


(2014) de Letramentos Críticos, construídos com base no modelo ide-
ológico, compreende-se a cultura escrita para além de um olhar psico-
linguístico, considerando os pontos de vista histórico, antropológico e
cultural.
Assim, a leitura e a escrita jamais devem ser percebidas apenas
como meras habilidades técnicas, precisam ser vistas como um conjun-
to específico de convenções próprias de uma cultura, de maneira que “o
letramento, portanto, não precisa ser associado com escolarização ou
com pedagogia” (STREET, 2014, p. 127).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 20


Aqui em nosso estudo, podemos perceber a materialização dos “le-
tramentos de reexistência” por meio das práticas de mediação de leitu-
ra que são realizadas nas Bibliotecas Comunitárias e pelas atividades
promovidas pelo Programa de Extensão Viva a Palavra, como também,
na realização dos saraus, das batalhas de rap, das lutas dos movimen-
tos sociais por seus direitos que muitas vezes são retirados ou negados.
Para Souza:

Todo uso da palavra envolve ação humana em relação a alguém, em um


contexto interacional específico no qual ocorre a busca pela apropriação,
a batalha pelas palavras e seus sentidos, a disputa por identidades sociais.
E onde também se configuram as relações dialógicas de reexistências
inscritas em um processo que envolve negociação, reinvenção e subversão
de relações assimétricas de poder. Por mais simples que seja um
enunciado, ele sempre se dirige a alguém e carrega um posicionamento,
uma ação frente à realidade em que se vive. (SOUZA 2011, p. 55).

Assim, podemos refletir acerca das armas que esses sujeitos usam
para resistir às injustiças e à desigualdade social, sendo por meio da
fala, da linguagem, que eles não se calam e se organizam para lutar cada
vez mais. Dessa forma, a periferia não é apenas lugar de pobres e despri-
vilegiados, o que sempre é evidenciado, mas é também lugar de pessoas
organizadas e de coragem que não desistem nunca diante das dificulda-
des; e, ao se organizarem para lutar, mostram o valor de sua existência,
reexistindo, assim, por meio de sua voz, a qual muitas vezes luta-se para
tentar silenciar E sobre a visão que muitos que ocupam lugares de pri-
vilégio têm acerca dos que vivem nas periferias, Freire (2011) esclarece
que:

Àqueles e àquelas que veem essas populações como “naturalmente


inferiores e incapazes” e atribuem a esta “inferioridade” todas as
deficiências materiais que caracterizam uma favela, sugeriríamos que
discutissem um dia com favelados sobre o que significa sua existência”
(FREIRE 2011c, p. 93).

E assim, podemos inferir que a reexistência desses sujeitos se dá


pelo valor que eles dão para a sua própria existência, não se conforman-
do com as injustiças sociais, mas reexistindo para continuarem firmes e
fortes na luta por uma transformação social.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 21


No contexto das periferias, podemos dizer que reexistir é criar es-
paço para dar voz a essas pessoas que muitas vezes são silenciadas. As-
sim, situamos aqui, as práticas de mediação de leitura realizadas nas
periferias por meio das bibliotecas comunitárias, como também as prá-
ticas de mediações de leitura e de tantas outras atividades que são de-
senvolvidas pelo Programa Viva a Palavra como formas de reexistência.

Mediação de leitura

A mediação de leitura ultrapassa os limites de uma atividade desen-


volvida no âmbito escolar, podendo acontecer tanto na escola como nos
mais diversos espaços de disseminação da leitura, a exemplo de praças,
parques, mercados, hospitais, associação de moradores de bairros, nas
bibliotecas comunitárias e/ou livres e nos mais diversos espaços onde
circulam os livros e existe a presença de um mediador de leituras. O
mediador de leituras é alguém que consegue, a partir de sua experiên-
cia e prazer com a leitura e com a literatura, seja esta escrita ou oral,
disseminar e despertar a curiosidade e o gosto pela leitura em diversos
sujeitos.
De acordo com Barbosa e Barbosa (2013, p.10) “A efetiva apropria-
ção de texto pressupõe que o leitorantes de exercer de forma autônoma
essa prática, tenha tido um mediador, para quem os livros são familia-
res”. Portanto, o mediador de leitura muitas vezes não se trata de al-
guém com grandes experiências com a leitura e a escrita, como escrito-
res ou professores, que também podem ser mediadores de leitura, mas
pode ser qualquer pessoa que ao fazer parte do cotidiano das pessoas,
na maioria das vezes na infância, apresenta o mundo da leitura e das
descobertas que esta pode proporcionar.
Dessa forma percebemos o quanto é grandioso o papel de um me-
diador de leituras em qualquer espaço que ele atue, seja um membro
da família, um vizinho, um morador da comunidade, um professor, um
bibliotecário, um amigo, etc. De acordo com Rosing (2009, p.138) “A me-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 22


diação de leitura pressupõe a formação do mediador enquanto leitor e
leitor de textos literários”.
A mediação de leituras é, portanto, uma atividade que articula vá-
rios critérios no momento de seleção dos textos a serem apresentados,
como por exemplo: o contexto dessa leitura; os objetivos; as possibilida-
des de leitura; o público e o repertório de textos. Ao levar em conside-
ração esses aspectos, o mediador de leituras estará proporcionando um
momento no qual os leitores não apenas se sintam atraídos pelo texto,
mas também um momento necessário para a construção de sentidos, o
que contribuirá para a formação de leitores críticos e estará diretamen-
te ligado às experiências de vida e subjetividades que cada leitor traz
consigo.

Bibliotecas comunitárias

Diante de um contexto histórico e cultural, no qual cada vez mais


as pessoas necessitam de estarem formadas e informadas sobre a reali-
dade, e as tecnologias estão cada vez mais avançadas, muitas mudanças
vêm ocorrendo acerca do verdadeiro papel das bibliotecas na sociedade
contemporânea.
Existem vários tipos de bibliotecas, que podem ser públicas ou pri-
vadas. Nas bibliotecas públicas o acesso aos livros e outros materiais
costuma ser gratuito, sendo permitido o empréstimo de livros por um
determinado período e têm o objetivo de propiciar para as pessoas, o
acesso às informações e à cultura. Há também as bibliotecas comunitá-
rias, que geralmente situam-se em bairros da periferia, e nem sempre
recebem apoio do Governo. Segundo Botelho (2012):

Geralmente, as bibliotecas comunitárias surgem porque a população de


alguma forma almeja transformar seu espaço, quase sempre marcado
pela violência, jovens envolvidos com drogas, desemprego, precariedade
nos serviços e saúde, educação e cultura. (BOTELHO, 2012, p.54)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 23


Além das necessidades de acesso à cultura e à informação, den-
tre outras privações que passam os moradores das periferias, há tam-
bém uma preocupação com a formação crítica dessas pessoas, há uma
consciência por parte de seus idealizadores de que uma iniciativadessas
pode contribuir para a emancipação desse público que será beneficiado
pelo acesso à biblioteca no bairro. Diante disso, Machado (2009) apre-
senta um conceito consolidado para bibliotecas comunitárias que con-
siste em:

Projeto social que tem por objetivo, estabelecer-se como entidade


autônoma, sem vínculo direto com instituições governamentais,
articuladas com as instâncias públicas e privadas locais, lideradas por
um grupo organizado de pessoas com o objetivo comum de ampliar o
acesso da comunidade à informação, à leitura e ao livro, com vistas à sua
emancipação social. (MACHADO, 2009, p.91)

Dessa forma, o objetivo dessas bibliotecas se configura em propor-


cionar o encontro do leitor com o texto de forma diferenciada, não se
tratando apenas de emprestar livros para leituras ou pesquisas indivi-
duais, mas, além disso, proporcionar um espaço para leituras e reflexões
coletivas, o que Freire (2011a) chama de “seminários de leitura”, assim,
se proporciona um espaço de formação de leitores coletivamente, o que
deve partir de interesses comuns a um determinado público, no caso
das bibliotecas comunitárias ou populares, são os moradores das peri-
ferias o público alvo.
De acordo com Prado (2010,) as bibliotecas comunitárias podem
ser consideradas como “territórios de memória”, para o autor ”... o livro
e a leitura, além de ter a função do prazer dos seus usuários, são usados,
sobretudo, como suportes informacionais voltados à libertação da men-
te humana”. (PRADO 2010, p.145).
Assim, verificamos que as bibliotecas comunitárias possuem algu-
mas diferenças se comparadas aos outros tipos de bibliotecas, dentre as
quais podemos destacar o seu propósito de atuação, há uma preocupa-
ção em constituir um acervo que contemple diversos interesses. Outro
aspecto é o fato de se manterem com recursos próprios, que são obtidos

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 24


por meio de doações, parcerias, associação de moradores etc. De acordo
com Coelho e Bortolin (2017, p.98) “A proposta dessas bibliotecas está
atrelada a um projeto de ação cultural que visa promover a igualdade de
acesso e a formação de leitores críticos, dando voz aos excluídos”.
Nesse sentido, a prática das bibliotecas comunitárias pode ser con-
siderada como um instrumento de transformação da vida de jovens,
crianças e de todos que tiverem acesso aos bens oferecidos por meio
dessa iniciativa que é capaz de oferecer até mesmo a esperança de mu-
dança num contexto em que as pessoas só tinham como perspectiva
uma realidade de violência e desigualdade.

Letramento literário de reexistência na periferia de


Fortaleza

O Programa de Extensão Viva a Palavra tem como objetivo fortale-


cer as práticas de letramentos juvenis na periferia de Fortaleza, visando
ao enfrentamento do extermínio da juventude. Nessa perspectiva, vem
desenvolvendo no bairro Serrinha (bairro periférico de Fortaleza), di-
versas atividades de “letramentos múltiplos”, que beneficiam os mora-
dores da comunidade, como também jovens que se deslocam de outros
bairros para ter acesso à essas atividades. Dentre as atividades que são
realizadas, podemos destacar: Contação de histórias, Saraus, Cursinho
Popular, Mediação de Leitura, Círculos de Leitura, dentre as mais diver-
sas oficinas que vêm sendo ofertadas. O referido programa conta com a
participação e colaboração de professores e alunos da Universidade Es-
tadual do Ceará-UECE, como também com as parcerias das escolas da
comunidade de Serrinha e de representantes de diversos movimentos
sociais dessa comunidade.
Dentre as atividades realizadas, fizemos uma cartografia das práti-
cas de mediação de leitura na periferia de Fortaleza, que além das vivên-
cias dos círculos de leitura que são promovidas no bairro Serrinha, re-
alizamos algumas visitas a várias bibliotecas comunitárias e/ou livres,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 25


e percebemos como essas bibliotecas se configuram como espaços de
leitura e de resistência dos moradores desses bairros.
Em cada uma das bibliotecas cartografadas, encontramos não ape-
nas livros e um ambiente acolhedor, o que foi comum a todas elas, mas
também histórias de vida, trajetórias de mediadores de leitura que a
partir de suas experiências com a leitura, buscam oportunizar aos mo-
radores dos bairros periféricos onde vivem, o contato com a leitura
como meio de transformação da realidade.
A Biblioteca Comunitária “Casa Camboa”, situada na praia de Sa-
biaguaba, busca valorizar a cultura local, disponibiliza um vasto acervo
com diversos gêneros textuais e literários e promove diversas ativida-
des que podem contribuir para a formação de leitores críticos da reali-
dade.
Na Biblioteca Comunitária Okupação, localizada no Bairro Antônio
Bezerra, encontramos uma Geloteca. As Gelotecas são geladeiras velhas,
geralmente grafitadas, nas quais as pessoas podem doar livros e levar
livros emprestados. Normalmente se encontram em espaços públicos
e são consideradas bibliotecas livres, pois os usuários decidem quando
pegar, devolver ou fazer doações de livros. Por meio dessa biblioteca,
são realizadas diversas atividades artísticas e culturais, como saraus e
slams. Os saraus são realizados no espaço da biblioteca, enquanto os
slams acontecem numa praça. É uma área que eles desejam estar pró-
ximos, é uma forma de levar essas atividades para aquelas pessoas que
não tem tanto contato com a literatura, ou não valorizam.
A Biblioteca Viva se localiza no Bairro Barroso, conta com um imen-
so acervo e a diversidade de livros organizados por área: Infanto Juvenil,
Educação, Psicologia, História, Filosofia, Sociologia, Biografias, Litera-
tura Brasileira, Poesia, Literatura Estrangeira, Seção Infantil, Terceira
Guerra Mundial, Biografia de Einstein, Terceiro Reich, Ditadura Militar,
Moby Dick, etc.
A Biblioteca Comunitária Papoco de ideias é situada no bairro Pici.
Nessa biblioteca observamos que há uma preocupação muito maior do
que levar livros, atividades diversas, conhecimentos e informações para

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 26


as crianças, adolescentes e jovens frequentadores desse espaço. Há um
cuidado com os sentimentos dessas pessoas em relação ao mundo em
que vivem, com a autoestima e a esperança de um futuro melhor.
São várias as mudanças que vão ocorrendo nos bairros. A partir da
iniciativa da Biblioteca Livro Livre, situada no bairro Curió, além dos
livros para serem emprestados para a comunidade, a biblioteca trouxe
parcerias com instituições; inovação por meio da criação do jornal “Fo-
lha Curió”; reconhecimento do local por meio da divulgação da Flores-
ta Curió; oportunidade de estudo e transmissão de conhecimentos por
meio do Projeto Enem de leitura e escrita.
Podemos perceber que cada uma das bibliotecas possui um grande
potencial de letramento literário de reexistência, seja por meio de em-
préstimo de livros, valorização da cultura local, realização de diversas
atividades de mediação de leitura, atividades artísticas e culturais, por
meio das quais as pessoas dessas comunidades tem acesso à leitura, à
cultura e sobretudo à esperança na transformação da realidade.

Considerações finais

Por meio desse estudo verificamos que o letramento literário de


reexistência promovido através das práticas de mediação de leitura re-
alizadas pelo Programa Viva a Palavra e pelas Bibliotecas Comunitárias
e livres da periferia de Fortaleza proporcionam o acesso à literatura e a
diversos outros tipos de letramentos. Dessa forma, as pessoas se apro-
ximam num primeiro momento em busca dos livros e da leitura, ou seja,
do letramento literário, e encontram diversas outras atividades, como
oficinas, saraus e slams, sobretudo esses dois últimos que podemos con-
siderar legítimos letramentos de reexistência.
Trabalhar com esse público não implica apenas possibilitar aos
jovens da comunidade a oportunidade de participarem de atividades
propostas pelo Programa Viva a palavra e/ou pelas Bibliotecas Comuni-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 27


tárias, mas também nos possibilita perceber como as práticas linguís-
ticas desses sujeitos estão a serviço de uma luta pela transformação da
sociedade por meio de seus discursos, ou seja, por meio da linguagem.
Dessa forma evidenciamos que as atividades que são realizadas
pelo Programa Viva a Palavra e pelas Bibliotecas Comunitárias, por
meios de diversos tipos de letramentos, sobretudo o letramento literá-
rio de reexistência tem um objetivo em comum: a luta por um mundo
melhor. Isso nos filia ao pensamento de Paulo Freire (2011b) ao pregar
uma “pedagogia da esperança”. Segundo o autor, “enquanto necessidade
ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude
histórica”. E assim, concluímos que essas práticas de leitura e de escrita
podem contribuir, não apenas para a formação de sujeitos, mas, tam-
bém para a geração de formas de resistência e promoção de processos
emancipatórios, fortalecendo a luta pela mudança da realidade.

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 29


Gênero e literatura na América Latina:
estudo de mulheres de olhos grandes,
de Ángeles Mastretta

Julia Danielle dos Santos


Odair José Silva dos Santos

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-2
Introdução

Considerando que na literatura a mulher foi, durante muito tempo,


representada somente sob a perspectiva masculina nos textos literá-
rios, sendo essa mais uma das inúmeras opressões sofridas pelo gênero
feminino em uma cultura machista e patriarcal, existe a importância de
se questionar a ideologia dominante, que tem perpassado as produções
literárias, suas representações da mulher, e reconhecer produções pas-
sadas e contemporâneas desse segmento literário.
Nesse sentido, este texto tem como objetivo verificar a represen-
tação feminina e implicações na interpretação leitora sob a perspectiva
da leitura de gênero na coletânea de contos Mulheres de olhos grandes
(2001), de Ángeles Mastretta que, caracterizada por uma escrita femi-
nista, apresenta histórias de várias mulheres de uma mesma família as
quais, apesar das adversidades, subvertem, ao seu modo, o sistema so-
cial patriarcal em que vivem. Além disso, ao final, apresenta a importân-
cia de se narrar e tornar públicas histórias de mulheres de olhos gran-
des que não desistem de se tornar sujeitas ativas de sua própria vida.
Para isso, o estudo aqui desenvolvido se debruça sobre os pressupostos
teóricos dos Estudos Culturais de Gênero, da Crítica Literária Feminis-
ta e da Estética da Recepção, buscando demonstrar a importância da
leitura de literatura feminina para transformação do cenário ideológico
patriarcal.
A escolha de Mulheres de olhos grandes (2001) para a realização da
pesquisa se deu em razão de as obras da autora mexicana Ángeles Mas-
tretta encaixarem-se nessa perspectiva, pois suas narrativas apresen-
tam aspectos de denúncia e de emancipação do gênero feminino, além
de o engajamento da autora no movimento feminista ser reconhecido
na América Latina.
Assim, faz-se relevante estudar a representação feminina presen-
te na obra Mulheres de olhos grandes (2001), de Ángeles Mastretta e seu
efeito dentre seus leitores, buscando-se observar como a leitura sob a
perspectiva feminina pode contribuir com a desconstrução da ideologia
patriarcal dominante.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 31


Escrita de autoria feminina e crítica literária feminista

Em razão da posição marginal imposta à mulher na sociedade ao


longo da história humana, restando-lhe permanecer à sombra mascu-
lina, sendo privada de sua autonomia, a mulher por muito tempo foi
impedida de se expressar como sujeito de sua história. Assim, os meios
intelectual, acadêmico e literário eram considerados lugares exclusiva-
mente masculino. As representações da figura feminina na literatura
refletiam a hegemonia da cultura falocêntrica6, e as produções femini-
nas consideradas de menor valor estético e literário, fazendo com que
a literatura produzida por mulheres ficasse fora do cânone. Segundo
Zinani (2010, p. 151), “até meados do século XX, a possibilidade de o “se-
gundo sexo” se afirmar em domínios que não o doméstico era, prati-
camente, inaceitável, evidenciando-se claramente as relações de poder
que dominavam as relações de gênero”. De acordo com Constância Lima
Duarte (1997 apud ZINANI, 2010, p. 151), muitas autoras “tiveram suas
obras usurpadas por maridos, irmãos ou filhos”, e muitas “utilizaram
pseudônimos masculinos para ter seu trabalho literário reconhecido e
valorizado”.
Zinani (2012, p. 19), fazendo uma retrospectiva do caminho traçado
pela mulher no mundo das letras, diz que “a produção literária femini-
na teve lugar a partir do momento em que as mulheres se apropriaram
da palavra”, no século XIX, com o desenvolvimento da correspondência
ocasionado pelo avanço dos meios de transporte, e com a ampliação do
sistema educacional. Assim, as mulheres iniciaram seu trajeto na es-
crita, por meio das cartas trocadas com parentes distantes; e na leitu-
ra, como consumidoras dos folhetins publicados nos jornais; logo após,
tornaram-se escritoras, ocupando o espaço dedicado ao rodapé nos jor-
nais para a exposição de suas produções (ZINANI, 2012).

6 Falocêntrico (a): De acordo com o Novíssimo Dicionário Caldas Aulete, (fa.lo.cên.tri.co), 1. Que está centrado no
falo; 2. Em que há convicção da superioridade do sexo masculino. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/
faloc%C3%AAntrico>.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 32


Essa posição marginalizada relegada à escrita feminina e a neces-
sidade que as mulheres escritoras tiveram de submeter-se a pseudôni-
mos ou a permitir que seus maridos, filhos e irmãos recebessem os cré-
ditos pelos escritos produzidos por elas, evidencia a resistência do meio
literário em reconhecer uma literatura produzida por mulheres. O que
pode ser explicado, como afirma Zinani (2010, p.67), por uma “aversão
dos críticos (homens) aos textos femininos, que se caracterizavam por
apresentar identificação com sua experiência de vida, por representa-
rem a figura masculina fora dos estereótipos viris e másculos da litera-
tura produzida por homens”.
A partir do século XX, segundo Zinani (2010, p.47), com o desenvol-
vimento do movimento feminista e com as publicações das obras Um
teto todo seu, de Virginia Woolf (1882-1941) e O segundo sexo, de Simone
de Beauvoir (1908-1986), respectivamente nos anos 1928 e 1949, as dis-
cussões e estudos sobre gênero foram impulsionados. Em Um teto todo
seu, Woolf “reivindicava para as mulheres uma pensão de 500 libras e
um quarto com chave, pois somente com independência financeira e
privacidade as mulheres conseguiriam produzir literatura de qualida-
de” (ZINANI, 2012, p.19), contribuindo, dessa forma, com críticas às li-
mitações impostas na época às mulheres que as impediam de conquis-
tar espaço no meio literário, já Beauvoir em sua obra que consagrou a
assertiva “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2016,
p.11) ofertou às discussões sobre gênero um referencial teórico organi-
zado e contribuiu com a transformação do pensamento ocidental em
relação às questões de gênero, apresentando-o como uma construção
sócio histórica.
Em razão dos avanços conquistados pela mulher no âmbito das le-
tras, a partir da década de 1980, surge uma modalidade de crítica lite-
rária comprometida com a escrita de autoria feminina, buscando rei-
vindicar o espaço feminino no cânone literário consolidado por obras
de autoria masculina7, e questionando a representação da mulher dada,

7 Zinani (2010) defende que o cânone literário ocidental é constituído por um grupo privilegiado de autores que
tem enquanto conceito de literatura a função exercida pela obra na sociedade. Por esse viés, a seleção das obras
que o compõem ou não se torna um mecanismo de poder. Por essa razão, “as obras privilegiadas restringem-se às

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 33


até então, somente pela ótica patriarcal, crítica essa que, por se compro-
meter com o projeto político feminista de dar voz à mulher, ensejando a
ruptura dos alicerces da hegemonia ideológica patriarcal, é denomina-
da feminista.
Nessa perspectiva, a crítica literária feminista se desdobrou em
duas vertentes: uma preocupada em discutir as representações da figu-
ra feminina veiculadas nos textos literários, portanto, ideológica, pois
busca discutir os estereótipos instituídos socialmente à mulher por
uma cultura patriarcal, demonstrando, também, preocupação com a
mulher enquanto leitora; e outra, denominada ginocrítica, que reivin-
dica o reconhecimento de mulheres escritoras, discutindo a formação
do cânone, buscando recuperar obras de autoria feminina relegadas ao
ostracismo, além de procurar verificar as especificidades de uma escrita
gendrada8, como explica Elaine Showalter (1994, apud ZINANI, 2010, p.
155): “é o estudo da mulher como escritora, e seus tópicos são a história,
os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos das mulhe-
res”.
Observando as bases da crítica feminista que investigam as parti-
cularidades de uma escrita feminina, Elaine Showalter (1994, apud ZI-
NANI, 2011, p. 6) explica que existem quatro modelos teóricos: biológico,
que observa a relação estabelecida entre a escrita e o corpo; linguístico,
centrado na relação escrita e linguagem; psicanalítico, que estabelece a
relação entre a escrita e a psique; e o modelo cultural, considerado pela
autora o mais adequado para se analisar a literatura de autoria femini-
na, pois visa a verificar a relação escrita e cultura.
A crítica que se centra em aspectos biológicos, restringe a criação
da textualidade à anatomia, o que não deve ocorrer, visto que toda ex-
pressão é mediada por estruturas linguísticas, sociais e literárias (ZI-
NANI, 2011, p. 6).

produzidas em código escrito, por autores pertencentes a uma elite, destinando-se ao segmento da humanidade
que detém recursos semelhantes e professa ideias análogas” (ZINANI, 2010, p.66), e, assim, a produção de grupos
minoritários e das mulheres foram excluídos ou enfrentaram certa resistência em serem admitidos.
8 Termo utilizado no âmbito da crítica literária feminista para denominar a escrita sob a perspectiva de gênero.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 34


Já o modelo linguístico, que se baseia em estudos que buscam com-
provar que o uso da linguagem ocorre de forma diferente de acordo com
o gênero do indivíduo, se faz insuficiente, de acordo com a autora, pois
estudos linguísticos asseveram que embora existam diferenças nas mo-
dalidades de interação entre homens e mulheres, não há um sistema
linguístico próprio de cada gênero (ZINANI, 2010, p.156).
O modelo psicanalítico, que relaciona escrita e psique também se
mostra insuficiente. Fundamentando-se nos estudos de Freud e Lacan,
esse modelo de crítica literária feminista, segundo Zinani (2011, p. 6),
discute língua, cultura e fantasias femininas com base na ausência do
falo, ignorando, assim como o modelo biológico, as especificidades his-
tóricas e sociais.
Por esse viés, por considerar aspectos como raça, classe, história de
vida, nacionalidade, condicionantes de particularidades das experiên-
cias femininas, o modelo cultural de crítica feminista se faz mais abran-
gente, à medida que “coloca em evidência modalidades de consciência e
de vivência particulares, consequentemente, expressões literárias pró-
prias” (ZINANI, 2011, p.07).
Dessa maneira, pensar em uma escrita gendrada é pensar em uma
escrita diferenciada marcada pelo gênero. Sendo o gênero, como afir-
ma Beauvoir, uma construção social, faz-se necessário analisar a her-
menêutica9 do texto literário produzido por mulheres através de uma
perspectiva cultural. Considerando que homens e mulheres ocupam,
socialmente, papéis e posições diferentes, pode-se afirmar que as ex-
periências vividas pelos membros de cada gênero também se diferen-
ciam e, portanto, o discurso veiculado por cada um apresentará visões
de mundo diferenciadas marcadas por suas experiências culturais. Des-
sa forma, analisar a escrita produzida por mulher sob uma perspectiva
cultural, “é relevante no sentido de verificar como ela vê o outro, como
é vista pelo grupo dominante e, consequentemente, por si mesma” (ZI-
NANI, 2013, p. 25).

9 Termo da área da filosofia que se refere à teoria da interpretação.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 35


Considerando que o texto literário é constituído por determina-
das categorias, Zinani (2013, p. 21) afirma que, para buscar as especifi-
cidades de uma escrita literária feminina, tem-se que observar “além
da caracterização da personagem feminina e das estruturas narrativas
que determinam seu destino, o papel do narrador como instância enun-
ciativa”, visto que “ele é o elemento estruturador da história” (GANCHO,
2002, p. 26), e que, por essa razão, apresenta a sua visão dos fatos orien-
tando, portanto, a visão do leitor. Em relação à função do narrador no
texto literário feminino, Zinani (2013, p.21) diz que se pode “afirmar que
o enunciador, como elemento portador da ideologia, pode apresentar
caráter emancipador ou não, na medida em que demonstra, ou não, uma
posição coerente com os postulados feministas”.
Na próxima seção discutiremos a questão da literatura de autoria
feminina no contexto da América Latina.

Literatura de autoria feminina e o contexto da américa latina

Passando ao contexto da América Latina, se a mulher das nações


do Primeiro Mundo já sofria com as limitações impostas ao seu gênero
pela cultura patriarcal, nos países latino-americanos a condição de desi-
gualdade de gênero e de relações de poder eram ainda mais intensas em
razão do histórico de exploração desde os períodos de colonização pelos
europeus. Porém, embora tenham sido grandes os obstáculos enfren-
tados pela mulher latino-americana para inserir-se no meio literário,
Zinani (2010, p.90) afirma que “há um apreciável contingente feminino
que produz textos com qualidade artística inquestionável, cujos temas
abrangem uma gama variada, desde a discussão dos problemas de gê-
nero às questões culturais e históricas”.
Em relação à caracterização da literatura escrita por mulheres na
América Latina, Zinani (2010, p. 159) destaca que o quadro de explora-
ção, opressão e miséria que marca a história do povo latino-americano
propiciou o desenvolvimento de modalidades de literatura e de discur-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 36


so crítico femininos de grande qualidade, visto que incorporam tanto
o aparato teórico-acadêmico quanto a experiência vivencial, o que de-
monstra um compromisso político com a questão epistemológica da
literatura feminista. Por essa razão, Zinani (2010, p. 159) afirma que há
uma crítica literária feminista específica da América Latina, marcada
pelo compromisso com o desvelamento da cultura machista e patriar-
cal vigente no contexto latino-americano através do incentivo à voz das
mulheres escritoras para que suas obras denunciem as injustiças so-
ciais sob uma perspectiva feminina. Assim, Zinani (2010) assevera:

O Discurso Crítico Feminista Hispano-Americano tem sido sensível a


estas diferenças políticas e sociais, geralmente propondo que formas de
engajamento devam existir entre autora e seu trabalho, para que venham
a denunciar, sob variadas formas literárias, as injustas estruturas sociais
existentes (ZINANI, 2010, p. 159).

É possível observar que muito antes da organização do movimen-


to político feminista surgir nos países do Primeiro Mundo, na América
Latina, a luta pelo direito ao acesso ao mundo das letras pelas mulhe-
res já ocorria, a mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz (1648-1695), por
exemplo, foi uma das escritoras latino-americanas que entraram para a
alta literatura mundial. Símbolo de luta pelo direito à educação, Juana
Inés abdicou de sua liberdade e se enclausurou em um convento para
que pudesse ter acesso às produções intelectuais e, assim, conseguir
se desenvolver no mundo das letras. Além disso, mesmo sem se pensar,
na época, o que viria a ser considerada uma postura feminista, já exer-
cia sua militância em relação à desigualdade social sofrida pela mulher.
Seus escritos apresentavam críticas aos valores patriarcais que perme-
avam a sociedade da época, e que vigem ainda hoje, como pode ser per-
cebido em seu poema Hombres necios, em que critica a culpabilização
apenas das mulheres nas relações de adultério: Quién tiene la culpa? La
que peca por la paga/ o el que paga por pecar? (PAZ, 1998, p.418).
Embora a escrita feminina já estivesse sendo produzida na Améri-
ca Latina desde meados do século XVII, é somente a partir da segunda
metade do século XX, acompanhando os avanços do movimento femi-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 37


nista ocorridos nos países do Primeiro Mundo, que ocasionaram diver-
sas mudanças sociais, possibilitando à mulher o acesso à educação e
ampliando a sua participação nos âmbitos econômico e político, que
ocorre seu boom e a literatura produzida por mulheres começa a ga-
nhar espaço notável. Em 1970, por exemplo, a uruguaia María Esther
Gilio se destacou com sua narrativa testemunhal La guerrilla tupamara
e recebeu o prêmio Casa de las Américas. Nos anos 80 a produção literá-
ria feminina na América Latina se intensifica e surgem autoras como a
nicaraguense Gioconda Belli, autora da obra A mulher habitada (1988), e
Ángeles Mastretta, com Arranca-me a vida (1985), comprometidas com
uma escrita de caráter feminista.
A próxima seção trata da vida e obra de Ángeles Mastretta, sua tra-
jetória e compromisso com o movimento feminista muito além de seus
textos.

Ángeles mastretta: vida e obra

Ángeles Mastretta nasceu em 09 de outubro de 1949, na cidade me-


xicana de Puebla, onde viveu até os dezessete anos quando se mudou
para a capital Cidade do México, após o falecimento de seu pai, o jorna-
lista Carlos Mastretta.
Mastretta cursou jornalismo pela Faculdade de Ciências Políticas e
Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), e con-
tribuiu com diversos jornais e revistas, dentre eles com o jornal mexi-
cano Ovaciones, na coluna chamada Del absurdo cotidiano, revista Nexos,
da qual Héctor Aguilar Camín (1946), seu esposo, foi diretor entre os
anos 1983 e 1995, e com jornais de grande relevância global como o es-
panhol El país e o alemão Die Welt.
Em 1974, a autora foi contemplada com uma bolsa de estudos no
Centro Mexicano de Escritores, podendo participar de uma oficina lite-
rária ao lado de escritores como Juan Rulfo (1917-1986) e Salvador Eli-
zondo (1932-2006). A partir do ano seguinte, 1975, até 1977, Mastretta

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 38


exerceu o cargo de diretora de Difusão Cultural da Escola Nacional de
Estudos Profissionais (ENEP), Acatlán, no México, e de 1978 a 1982 foi
diretora do Museo del Chopo.
Em 1985, a autora publicou seu primeiro romance Arranca-me a
vida, que lhe rendeu o Prêmio Mazatlán de Literatura, e foi traduzido a di-
versas línguas como ao italiano, português, inglês e francês. E, em 1996,
publica Mal de amores, obra que a levou a ser a primeira mulher a receber
o Prêmio Internacional de Romances Rômulo Galegos, em 1997, prêmio re-
cebido anteriormente por autores como Carlos Fuentes e Vargas Llosa.
A escritora mexicana publicou também outras obras como Mu-
lheres de olhos grandes (1990), objeto de estudo desta pesquisa, Porto Li-
vre (1993), O mundo iluminado (1998), Nenhuma eternidade como a minha
(1999), O céu dos leões (2003), Maridos (2007), Anjo maligno (2008), Ho-
mens de amores (2008) e A pássara pinta (2009), todos com temas relacio-
nados à questão de libertação da mulher da cultural patriarcal.
Mastretta também é responsável pela fundação do grupo União de
Mulheres Antimachistas, na capital mexicana, demonstrando que seu
engajamento com o movimento político feminista está além da litera-
tura.

Mulheres de olhos grandes: apresentação e


análise introspectiva

As pesquisas que apresentam análise introspectiva “têm provido


insights detalhados sobre a possível interação entre linguagem-men-
te-corpo que servem como fonte de hipóteses experimentais sobre o
funcionamento do inconsciente cognitivo”10 (GIBBS, 2006, p. 3). Dessa
forma, a presente seção discorrerá sobre a obra Mulheres de olhos gran-
des, de Ángeles Mastretta e apresentará uma breve análise introspecti-
va dos contos que apresentam uma possível representação feminina e

10 Tradução livre da autora. No original: “[...] have provided detailed insights into possible language-mind-body
interactions that serve as the source of experimental hypotheses on the workings of the cognitive unconscious”.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 39


como sua leitura pode contribuir com o projeto político feminista atra-
vés de sua intervenção no horizonte de expectativas do leitor, expondo
possíveis reflexões levantadas por meio de sua leitura.11
A obra Mulheres de olhos grandes, de Ángeles Mastretta, primeira
coletânea de contos da autora mexicana, foi publicada em 1990. A obra
que é composta por trinta e sete contos não intitulados trata das mais
diversas questões relacionadas à temática da mulher socialmente, como
as posições ocupadas por ela, enquanto mãe, filha, esposa, amante, seus
desejos, angústias e seus dilemas vivendo em uma sociedade patriarcal.
As histórias, ambientadas na cidade mexicana de Puebla, são nar-
radas por um narrador-observador onisciente, portanto, em terceira
pessoa, que transforma cada conto em retratos de suas supostas “tias”,
assim, a organização da narrativa na obra dá ao leitor a sensação de se
estar “folheando um velho álbum de fotos de família, provocador de re-
cordações, levando-o a juntar cacos de personagens e de cenários, num
trabalho de bric-à-brac” (SILVA, 2004, p. 136). A linguagem utilizada é
simples, assim como as personagens e os fatos narrados, o que permi-
te ao leitor identificar-se com as histórias relembrando, possivelmente,
figuras femininas de sua própria família. Na sequência, apresentamos
e descrevemos, no quadro 1, as “tias” dos contos aqui selecionados para
análise.

Quadro 1 – Tias e suas características

Personagens Características
Tia Leonor Jovem sensual e racional.

Tia Elena Jovem corajosa que se arrisca com o pai na época da Re-
volução Mexicana.

11 A análise aqui disposta não foi realizada com todos os contos da obra. A partir da leitura da obra
foram selecionados os contos que apresentavam uma representação de mulher de forma mais
explícita. Os demais contos que não constam na análise também propõem leituras significativas,
porém desperam reflexões distintas da temática da presente pesquisa.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 40


Tia Cristina Martí- Não era bonita, mas alguma coisa havia em suas pernas
nez finas e sua voz atropelada que a tornava interessante.

Tia Valeria Era “a mais fiel”, “apaixonada” e “solícita” das mulheres.

Tia Fernanda Tinha um segredo para se manter feliz e contente com


seu casamento.

Tia Chila Huerta Era uma das maiores heroínas da coletânea de contos, é
retratada como uma mulher independente e bem-sucedi-
da profissionalmente.

Tia Mercedes Rompe com a concepção de amor tradicional.

Tia Verônica Moça rebelde que estuda em um colégio religioso.

Tia Natália Esparza Mulher insatisfeita com a vida que levava na cidade me-
xicana de Puebla, envolta pela rotina do coser e do piano
e pela mesma paisagem vulcânica.

Tia Clemencia Era bonita, só que embaixo das madeixas morenas tinha
pensamentos, e isso chegou a ser um problema.

Fátima Lapuente Representa a força e a coragem das demais personagens.

Tia Magdalena Rompe com a concepção tradicional de amor, ama seu


marido, mas tem uma relação extraconjugal.

Tia Rebeca Paz y Era uma mulher orgulhosa, que não se permitiu sofrer
Puente nem por doenças físicas nem pelas da alma durante os
103 anos que se mantivera viva.

Laura Guzmán Era representada como uma mulher que aparentemente


vivia à sombra do marido.
Tia Pilar e Tia Marta Representam a força em serem sujeitas ativas de suas
vidas.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 41


Tia Mônica Era uma mulher inquieta, se matinha sempre ocupada
com as funções de casa, com os sobrinhos e com o ma-
rido, fazia de tudo para tentar não dar lugar às fantasias
que lhe perturbavam, não dar lugar ao desejo de se sentir
livre, de levar uma vida menos monótona, de conhecer o
mundo e viver outros amores.
Tia Elvira Era uma mulher cheia de opiniões e não tinha os modos
considerados bons pela sociedade poblana.

Tia Concha Sustentava a casa e, assim, era uma mulher forte e inde-
pendente.

Tia Jose Mulher forte que salva sua filha contando a história das
mulheres de sua família.

Fonte: elaborado pelos autores.

O primeiro conto retrata Tia Leonor como uma jovem sensual e


racional, atribuindo sua racionalidade ao fato de abrir mão do amor que
cultiva desde a infância por seu primo Sérgio e se casar, após a morte
do pai, com um homem mais velho para que nem ela, nem sua mãe, Lui-
sita, passem por dificuldades financeiras, como pode ser observado no
seguinte trecho: “aos 17 anos casou-se com a cabeça e com um homem
que era exatamente o que uma cabeça escolhe para se assentar na vida”
(MASTRETTA, 2001, p. 7). A narrativa permite-nos relembrar que o ca-
samento para muitas mulheres, na sociedade, pode significar garantia
de estabilidade financeira. Em outras palavras, por muito tempo, a mu-
lher foi impossibilitada de trabalhar e conquistar sua independência,
tendo, assim, que se submeter à dependência de seu cônjuge, ou, como
afirma Beauvoir:

mesmo nos casos em que ela é mais emancipada, o privilégio econômico


detido pelos homens a incita a preferir o casamento a um ofício: ela
procurará um marido de situação superior à sua, esperando que ele
“vença” mais depressa, vá mais longe do que ela seria capaz (BEAUVOIR,
2016, p. 90).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 42


Embora, na mocidade, Leonor tenha se privado de viver o amor que
sonhava, em sua fase adulta reencontra Sérgio e retoma o romance, de-
monstrando ser também uma mulher corajosa ao tomar a direção de
seu destino para terminar de escrever sua história como queria.
O segundo conto da obra apresenta Tia Elena como uma jovem co-
rajosa que se arrisca com o pai na época da Revolução Mexicana, período
em que perderam sua casa na Fazenda Arroyo Zarcas para os rebeldes,
apenas para recuperar as garrafas de vinho que o pai sentia falta e que
foram deixadas para trás. Depois do feito, Elena conta orgulhosa a aven-
tura ao namorado que não lhe dá créditos e ainda lhe pede que deixe de
“invencionices”, pois seu pai não seria um “beberrão irresponsável”. A
partir disso, Elena percebe que “o melhor dos homens tem um parafuso
a menos”, embarca em um trem levando de bagagem apenas o futuro
(MASTRETTA, 2001, pp. 18-19) e nos deixando a reflexão em relação a
como a mulher é subestimada socialmente, remetendo à concepção de
que a mulher é um sujeito frágil e fazendo o leitor pensar sobre quantos
feitos de mulheres foram relegados ao ostracismo ou atribuído seu re-
conhecimento a um homem.
Tia Cristina Martínez, apresentada no quarto conto da obra de
Mastretta, “não era bonita, mas alguma coisa havia em suas pernas finas
e sua voz atropelada que a tornava interessante” (MASTRETTA, 2001,
p.27). O conto, que já se inicia expondo uma moça que não se enquadra
nos padrões de beleza femininos impostos socialmente, retrata a dificul-
dade de Tia Cristina em se casar, pois “os homens de Puebla não estavam
atrás de mulheres interessantes para casar” (MASTRETTA, 2001, p.27),
portanto, construindo a representação feminina da “encalhada”. Em uma
sociedade na qual as moças casam-se muito jovens, Cristina sofre, aos
seus 21 anos, julgamentos por, ao contrário de suas irmãs, ter o costume
de questionar a relação entre homens e mulheres e ainda não ter consti-
tuído uma família: “Quando fez 21, suas quatro irmãs já estavam bem ou
mal casadas, e ela passava o dia inteiro humilhada por estar ficando para
titia. Em pouco tempo, seria chamada de encalhada pelos sobrinhos, e
não estava certa de poder suportar o golpe” (MASTRETTA, 2001, p. 27).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 43


Mais uma vez o casamento se apresenta como algo necessário à fi-
gura feminina, de modo que a mulher só se concretiza enquanto sujeito
se fechar o contrato do matrimônio, assim, “admite-se unanimemente
que a conquista de um marido – ou, em certos casos, de um protetor -,
é para ela o mais importante dos empreendimentos” (BEAUVOIR, 2016,
p. 76).
Porém, Cristina não se abate. Mesmo que não enfrente de forma
explícita essa situação na qual a sociedade lhe coloca, ela enfrenta essa
batalha em seu interior e casa-se sozinha com a ajuda de um amigo para
calar os falatórios do povo poblano. Cristina, com a ajuda de seu amigo
Emilio Suárez, promove um casamento no qual ele diz estar represen-
tando o suposto noivo da amiga, senhor Arqueros, quem a família nunca
conheceu. Após o casamento, Cristina vai para Valladolid e retorna um
ano depois dizendo-se viúva, mas livre do peso de ser considerada uma
solteirona:

Dizem as más línguas que o senhor Arqueros nunca existiu. Que Emilio
Suárez disse a única mentira de sua vida, convencido por sabe-se lá que
artes de tia Cristina. E que o dinheiro que dizia ser de sua herança, ela
o conseguiu com um contrabando que levou nas malas do enxoval de
noiva (MASTRETTA, 2001, p.31).

Tia Valeria, à qual o quinto conto se refere, é “a mais fiel”, “apaixo-


nada” e “solícita” das mulheres, um perfil de esposa perfeita e exemplar.
Embora seu marido, um “homem comum, com seus inevitáveis ataques
de mau humor, com seu indefectível pouco-caso pela comida do dia,
com sua ingrata certeza de que a melhor hora para o amor era a que
lhe dava na veneta” (MASTRETTA, 2001, p. 33), demonstrasse em todas
suas atitudes a herança machista recebida socialmente, Valeria se mos-
trava a mais feliz das mulheres em seu casamento. Quando questionada
sobre o segredo para se manter feliz mesmo cumprindo com todas as
obrigações que uma mulher tem, Valeria dá uma resposta inesperada
e diz que tem um amante a cada noite: “- Basta fechar os olhos – disse,
sem abri-los – e você transforma seu marido em quem bem entender”
(MASTRETTA, 2001, p.35).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 44


Dessa forma, a personagem de Tia Valeria promove um desvela-
mento, à medida que se mostra dona de seu corpo através da sexualida-
de, ainda que seja apenas por meio da imaginação. O interessante aqui
está na consciência que Valeria tem de seu corpo e seus desejos, e como,
embora enclausurada em um contrato social, não anula o sujeito que
é, além disso, apresenta essa possibilidade a suas companheiras. Dessa
maneira, Valeria nos apresenta outra instância do feminino ignorada
socialmente por muito tempo: a sexual, ademais nos faz refletir sobre a
objetificação do corpo feminino, do relacionamento abusivo que faz da
mulher uma propriedade.
Tia Fernanda, protagonista do sexto conto da coletânea de Mas-
tretta, assim como Tia Valeria, tinha um segredo para se manter feliz e
contente com seu casamento, a diferença é que o amante de Tia Fernan-
da não existia somente em sua imaginação. Não que ela não amasse seu
marido, “é que o carinho não gasta” (MASTRETTA, 2001, p. 39). Estando
seu marido sempre muito ocupado com assuntos que, para a sociedade
da época, não diziam respeito à consciência feminina, Fernanda se sen-
tia revigorada nos braços de outro homem, de modo que sofre quando,
certo dia, ele a abandona. Fernanda passa mais de um mês afundada em
lágrimas em sua cama até que decide se recuperar, levanta e retorna às
“suas funções”. Fernanda, na obra de Mastretta, é, nesse sentido, mais
uma representação feminina da mulher corajosa, que burla o sistema
para poder viver como deseja, embora permaneça cumprindo suas fun-
ções às vistas da sociedade.
Tia Chila Huerta, uma das maiores heroínas da coletânea de contos
de Mastretta, é retratada como uma mulher independente e bem-suce-
dida profissionalmente. Ao largar o marido, após sete anos de casados,
homem que, perante todos, era um exemplo de gentileza, foi julgada
pela cidade: “- É uma vagabunda – diziam uns. – Irresponsável – di-
ziam outros” (MASTRETTA, 2001, p.51). Porém, certo dia, em um salão
de beleza, salva sua amiga Consuelo das agressões do marido, fazendo
com que todas as mulheres que estavam no salão passassem a defendê-
-la sempre que escutavam alguém a condenando: “Do salão de Inesita,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 45


a notícia se espalhou rápida e generosa como cheiro de pão quente. E
nunca ninguém tornou a falar mal da tia Chila Huerta, porque sempre
havia alguém, ou uma amiga da amiga de alguém, que estava no salão de
beleza naquela manhã, disposta a defendê-la (MASTRETTA, 2001, p.53).
Mais radical que as personagens anteriores, Tia Chila apresenta
sua bravura e coragem em defender-se enquanto mulher e dona de sua
vida a todos. Como apresentado no conto, sofre consequências por sua
postura, mas não se deixa abater, Chila torna-se independente, e vai à
contramão das outras tias: não se submete a um casamento que não
lhe agrada. É interessante observar a importância da sororidade para
as mulheres, enquanto muitas julgavam Chila por desfazer-se de seu
casamento, ela, diferente das outras, agiu em defesa de uma colega que
sofria os mesmos abusos no relacionamento.
No conto de Tia Mercedes, é apresentada mais uma tia que rompe
com a concepção de amor tradicional. Uma noite em uma festa, Mer-
cedes reencontra seu amor de mocidade, com quem a partir de então
passa a ter um relacionamento fora do casamento. O homem, vez e ou-
tra, lamentava o fato de não terem ficado juntos desde o início, porém
Mercedes lhe dizia “que nada podia ser diferente”, que “o destino está
escrito” (MASTRETTA, 2001, p. 63), e, assim, quando estavam separa-
dos, Mercedes reconstruía as lembranças das aventuras vividas com
seu amor clandestino. Mercedes, embora não rejeite o casamento que
tem perante a sociedade, vive uma felicidade clandestina.
Tia Verônica é retratada como uma moça rebelde que estuda em
um colégio religioso. Verônica sofre punições por quebrar os jejuns e
criar truques para não se confessar. Certo dia, sem mais soluções para
faltar ao confessionário, Verônica confessa ao padre que pecou contra o
sexto mandamento, o padre por acreditar que a menina não sabia o que
aquilo significava, apenas a ordena dar “uma olhadinha no Santíssimo”
(MASTRETTA, 2001, p.71) e ir para a cama.
Assim, Verônica seguiu pecando, sozinha, contra o sexto manda-
mento todas as noites. A preocupação de Verônica em ter que confes-
sar o que faz em sua intimidade representa a condição a qual a mulher

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 46


foi, e é submetida de não poder possuir o próprio corpo. Por tempos, a
sexualidade feminina foi reprimida, seus desejos ignorados, sendo seu
corpo reduzido à propriedade de um senhor e à função reprodutora que
representaria, esse deveria ser guardado até o momento do casamento,
de forma que a sexualidade e o prazer para as mulheres sempre foi um
tabu, algo que deveria ser de conhecimento apenas masculino.
A Tia Natália Esparza, apresentada no décimo sexto conto, é re-
tratada como uma mulher insatisfeita com a vida que levava na cidade
mexicana de Puebla, envolta pela rotina do coser e do piano e pela mes-
ma paisagem vulcânica. Movida pelo desejo de ver o mar, de mudar de
realidade, Natália abandona sua cidade natal e segue sozinha em busca
de seu sonho. No caminho encontra dois pescadores, com os quais se-
gue viagem até chegar ao mar. Após anos longe de sua terra, Tia Natá-
lia retorna famosa por suas pinturas marcadas pelo azul do mar. Dessa
maneira, Natália representa na obra a mulher que batalha por indepen-
dência, por desbravar outras realidades. Natalia é também o retrato da
mulher que não se satisfaz com a vida doméstica, que ambiciona muito
mais.
Descrita como uma mulher ímpar, “Tia Clemencia era bonita, só
que embaixo das madeixas morenas tinha pensamentos, e isso chegou
a ser um problema” (MASTRETTA, 2001, p.85). A partir disso percebe-
mos que a protagonista do décimo sétimo conto da obra de Mastretta, é
mais uma transgressora que rompe com os padrões comportamentais
femininos esperados socialmente. Clemencia, no conto, é representada
como uma mulher voluptuosa, que tem consciência de ser dona de seu
próprio corpo, que não quer se casar e que rompe, assim, com a ideia do
amor romântico, e que sofre, em razão disso, julgamentos preconceitu-
osos por parte de seu namorado, demonstrando a resistência masculina
em aceitar a não submissão feminina: “- Não entendo – disse o namo-
rado, que era um homem comum. – Você quer ser puta para o resto da
vida?” (MASTRETTA, 2001, p.87).
Fátima Lapuente, seguindo a força e a coragem das demais perso-
nagens de Mastretta, não se importa com as normas vigentes no meio

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 47


em que vive. Foi noiva de José Limón por dez anos, enquanto ele esteve
vivo, e pelo resto da vida. Nunca cobrou provas de amor de José, nunca
o cobrou matrimônio, o que tinham quando estavam juntos lhe bastava.
Muitos questionavam quando e se sairia o casamento, mas Fátima não
se importava. O amor sentido por José e o que vivia nos momentos que
passavam juntos foi suficiente para que o amasse além da vida, dessa
forma, Fátima também, ainda que vivesse em uma sociedade que espe-
rasse que ela seguisse o ideal de vida conjugal, desconstrói a concepção
de amor romântico simbolizado pelo casamento:

José me pertence. Atravessou a minha vida com a sua vida e não haverá
quem o tire de meus olhos e de minha alma. Por mais que se queira morto.
Ninguém pode matar a parte de si que fez viver nos outros (MASTRETTA,
2001, p. 94).

O conto de Tia Magdalena aborda um dos temas mais abordados


por Ángeles Mastretta: o casamento. Porém, nesse conto, Mastretta sur-
preende o leitor permitindo que o marido de Magdalena também se so-
bressaia na narrativa e nos impressione com suas atitudes. Magdalena
como outras tias já retratadas possuía uma relação extraconjugal, mas,
o marido não busca puni-la, não se ira com ela por amar a dois homens,
mas se ira com o amante por ser “capaz de perder voluntariamente essa
mulher” (MASTRETTA, 2001, p.99). Assim, Magdalena faz parte do gru-
po de tias que tem uma concepção de amor mais aberta, amam seus
maridos, mas não deixam de desejar outros homens, não negam esse
fato e vivem como desejam.
Tia Rebeca Paz y Puente é retratada como uma mulher orgulhosa,
que não se permitiu sofrer nem por doenças físicas nem pelas da alma
durante os 103 anos que se mantivera viva. Tia Rebeca se recusava a
morrer, passou meses entre a vida e a morte porque não queria ser en-
terrada no mesmo túmulo que seu falecido marido. Em seus últimos
momentos de vida, conseguiu transmitir esse orgulho a uma de suas
netas que sofria por ser abandonada pelo marido. Após a morte de Tia
Rebeca, o marido de sua neta apareceu querendo reatar o compromisso,
mas a jovem, seguindo o orgulho deixado pela avó disse: “Pegue suas

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 48


flores e suma. Não quero ser enterrada com você” (MASTRETTA, 2001,
p.112), nesse viés, a força e o orgulho de Tia Rebeca serviram para enco-
rajar a neta a valorizar a mulher que era e se reerguer, libertando-se do
amor sentido pelo o homem que a fez sofrer.
Laura Guzmán é retratada como uma mulher que vive à sombra do
marido durante o dia, como exemplo de esposa da sociedade patriarcal.
Laura cuida dos filhos, da casa, mantém sua fé cristã e seu casamento
como deve ser, isso às vistas da sociedade poblana. Seu casamento exis-
tia por conveniência, seu marido nem se quer conversava com ela e os
filhos, de forma que sua existência só era notada por ele nos eventos
sociais quando se engajava em elogiá-la e se vangloriar pela mulher que
possuía. Até que um dia, cansada de calar, de se anular, de esconder seus
gostos e desejos, Laura, em um jantar com membros da igreja, deixa
soltar inúmeros impropérios que guardava dentro de si contra a igre-
ja, o marido e toda a hipocrisia que a cercava, lhe rendendo a anulação
do casamento. Visto isso, Laura é a representação da propriedade que
se torna a mulher através do casamento, é o marido que decide como
se comporta, como se veste, quais joias usa, quais músicas pode escu-
tar. Laura apenas cumpre as ações comandadas por seu senhor: “- Eu
não poderia ter escolhido melhor, você é perfeita” (MASTRETTA, 2001,
p.116). De acordo com Beauvoir (2016, p.189): “a mulher, casando, recebe
como feudo uma parcela do mundo; (...) mas ela torna-se vassala dele.
Economicamente ele é o chefe da comunidade; portanto, é ele quem a
encarna aos olhos da sociedade”.
Nesse sentido, a relação entre Laura e seu marido suscita várias re-
flexões em relação às figuras feminina e masculina socialmente, sendo,
por essa razão o conto escolhido para a proposta didática desenvolvida
mais adiante no capítulo 3, Literatura e ensino.
O vigésimo quarto conto de Mulheres de olhos grandes, apresenta
a amizade de Tia Pilar e Tia Marta, através de um reencontro entre as
duas mulheres após muitos anos distantes. Nesse reencontro, é possível
perceber dois perfis distintos de mulheres que, embora distintos pos-
suem algo em comum: a força em serem sujeitas ativas de suas vidas.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 49


Tia Pilar, foi casada, foi mãe, mas se livrou de dois maridos e transfor-
mou sua cozinha em uma empresa para conseguir cuidar dos filhos, e
Tia Marta, conseguiu ser o que sempre desejou: cantora. Teve fama e
muitos amores. Na narrativa, após conversar com Marta, Pilar lhe diz:
“- Você não imagina o bem que me faz. Tinha medo que você me atur-
disse com a alegria do poder e da glória. Já pensou como teria sido cha-
to?” (MASTRETTA, 2001, p. 122), possibilitando que o leitor reflita sobre
a competitividade instaurada culturalmente entre as mulheres, que as
leva a não gostarem uma das outras e, até mesmo, deixarem de ter ami-
zade umas com as outras.
Tia Mônica era uma mulher inquieta, se matinha sempre ocupada
com as funções de casa, com os sobrinhos e com o marido, fazia de tudo
para tentar não dar lugar às fantasias que lhe perturbavam, não dar lu-
gar ao desejo de se sentir livre, de levar uma vida menos monótona, de
conhecer o mundo e viver outros amores. Mas nada adiantava, todas as
noites, ao se deitar, todas essas fantasias atormentavam-na e, assim,
“dormia com a tentação entre os olhos” (MASTRETTA, 2001, p. 136). Por
esse viés, percebe-se que através de Tia Mônica, o conto promove a re-
flexão da anulação feminina no casamento. Já explicava Beauvoir (2016,
p. 190) que enquanto o homem é aquele que trabalha e retorna ao lar
à noite, a mulher é quem mantém a ordem da casa, “assegura o ritmo
igual dos dias e a permanência do lar cujas portas conserva fechadas;
não lhe dão nenhuma possibilidade de influir no futuro nem no Univer-
so; ela só se ultrapassa para a coletividade por intermédio do esposo”.
Tia Elvira rendeu muitas preocupações aos pais por ser uma mu-
lher cheia de opiniões, gostar de estudar e não ter os modos considera-
dos bons pela sociedade poblana, por esses motivos não se casara: “não
cabia às mulheres falar de assuntos que não fossem domésticos, e quan-
to menos falassem, melhor” (MASTRETTA, 2001, p.162). Seu pai era um
homem de negócios, ele acreditava nisso, embora só fizesse maus negó-
cios.
Certo dia, ao passear sozinha à tarde, Elvira é sequestrada, porém,
como sempre fora uma mulher muito inteligente, conseguiu enganar

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 50


seu sequestrador e retornou a casa. Tempos depois seu pai faleceu e em
homenagem a ele Elvira se tornou uma mulher de negócios, dedicada
e com mais habilidade que o pai, conseguiu sucesso em tudo o que fez,
tornando-se, portanto, a detentora das rédeas de sua vida, uma mulher
independente e com um destino muito maior do que qualquer homem
poblano poderia ter lhe dado em casamento:

Começou convencendo metade dos construtores do Estado de que seus


tijolos eram os melhores e acabou dona de uma verdadeira mina de sal,
dois dos primeiros cinco aviões que cruzaram os céus mexicanos, três
dos primeiros 20 arranha-céus e quatro hotéis no balneário de Acapulco
(MASTRETTA, 2001, p. 176).

Tia Concha teve a pena de se casar com um homem diferente da


maioria dos homens da época, seu marido não gostava de trabalhar e
quando o fazia se metia em negócio que só lhes rendia prejuízos: “não
tinha nenhuma aptidão para ganhar dinheiro, e a ideia de que cabe ao
homem sustentar a família, tão comum nos anos 30, não regia sua exis-
tência” (MASTRETTA, 2001, p. 192). Era ela quem o sustentava e aos fi-
lhos. Nessa perspectiva, diferente da maioria das mulheres de sua época
e de sua comunidade, era o marido quem dependia de Concha, e não o
contrário. O que faz de Concha uma mulher forte e independente. Ape-
sar das adversidades e dos prejuízos causados pelo marido que mais lhe
parecia um filho, Concha fez sua vida com sucesso:

Àquela altura, a pensão da tia Concha já era um sucesso e lhe proporcionara


as economias com que abriu um restaurante que depois lhe deixou tempo
para negociar com imóveis e até lhe deu a oportunidade de comprar um
terreno em Polanco e outro em Acapulco (MASTRETTA, 2001, p. 194).

O último conto da obra de Mastretta se mostra como o enlace de


todas as histórias das diversas tias mexicanas. A filha de Tia Jose, uma
menina com “olhos grandes como duas luas” (MASTRETTA, 2001, p. 195),
tinha nascido há três semanas quando foi acometida por uma doença
que quase a levou à morte. Tia Jose já havia tentado de tudo para salvar
sua filha quando decidiu contar-lhe as histórias de suas antepassadas.
Depois de dias contando incansavelmente as histórias de suas tias, Jose

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 51


viu sua filha se fortalecer e se recuperar: “ela era a única a saber que
ciência nenhuma fora capaz de fazer tanto quanto a que está escondi-
da nos ásperos e sutis achados de outras mulheres de olhos grandes”
(MASTRETTA, 2001, p. 197).
Assim, através da revelação do entrelaçamento das histórias, é
possível retirar a reflexão acerca da importância de tornar conhecidas
histórias de mulheres fortes, de seus feitos, pois essas têm o poder de
transmitir coragem a outras mulheres, coragem para tornarem-se do-
nas de suas vidas, donas de si, de desfazerem as amarras que as opri-
mem a partir da percepção de que não estão sozinhas, ou seja, a impor-
tância da sororidade para a emancipação feminina.
Por conseguinte, muito além do entretenimento ofertado pela lei-
tura de Mulheres de olhos grandes, destaca-se na obra o comprometi-
mento da escrita da narrativa com o projeto político feminista, visto
que apresenta histórias nas quais as “tias” retratadas representam di-
versas identidades de sujeitos femininos que subvertem cada uma a seu
modo, mesmo sem levantar bandeiras feministas, as amarras da cultura
patriarcal que as cerca, rompendo com os estereótipos tradicionais im-
postos à mulher.
Percebe-se que a ruptura dos padrões sociais em torno do feminino
na obra se dá em dois eixos: um desconstruindo a concepção de amor
tradicional e da posição da mulher na relações amorosas, como pode ser
percebido através da maioria das personagens femininas, como as tias
Leonor, Valeria, Fernanda, Mercedes, Clemencia, Fatima, Magdalena e
Rebeca, que mesmo mantendo seus casamentos, não deixam de satisfa-
zer seus desejos mais íntimos, e fazendo o leitor ver figuras femininas
em situações que para homens são vistas de forma mais naturalizada
perante a sociedade, e que geralmente estigmatizam essas mulheres.
E outro que quebra o estereótipo de fragilização do gênero feminino, e
ressalta a esperteza, a astúcia, a força e a independência feminina, apre-
sentado a partir da leitura dos contos das tias Elena, Cristina, Chila, Na-
talia, Elvira e Concha. E em quase todos os contos da obra, percebe-se,
ainda, a denúncia em relação aos abusos sofridos pelas mulheres e que
se dá de forma mais explícita no conto de tia Laura Guzmán.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 52


Faz-se importante, também, visto que se busca nesta pesquisa rea-
lizar uma abordagem feminista da obra, refletirmos sobre a importância
do narrador. Zinani (2011) assevera que “o narrador é responsável pelo
ponto de vista em uma narrativa, isso equivale à configuração da pers-
pectiva que irá orientar a modalidade de leitura” (ZINANI, 2011, p. 8),
por conseguinte, a obra é capaz de influir no horizonte de expectativas
do leitor orientando-o a realizar uma leitura na perspectiva feminina, à
medida que possibilita seu contato com questões da realidade feminina
narradas sob uma ótica gendrada, isto é, não revestidas de estereótipos,
tabus e discriminações.
Em linhas gerais, pensando na posição do leitor, a obra se consti-
tui como uma grande ferramenta para a expansão de seu horizonte, ao
passo que, independentemente de seu sexo, seja ele feminino ou mascu-
lino, é apresentado ao universo da mulher, sendo possível além de refle-
tir sobre as concepções do feminino veiculadas na sociedade, observar
os preconceitos e limites impostos à figura feminina socialmente como
consequência de uma cultura patriarcal.

Considerações finais

Defendemos, então, que, sendo a escrita e a leitura um ato perpas-


sado tanto pelas experiências mundivivenciais do indivíduo quanto pelo
conjunto de ideologias, normas e fatos sociais do contexto em que está
inserido, e tendo os indivíduos ocupado espaços e posições diferentes
nas mais diversas esferas sociais em razão de seu gênero, uma literatu-
ra gendrada, tanto no contexto da escrita quanto no âmbito da leitura,
apresentará especificidades. Considerando que o gênero feminino por
tempos teve o acesso ao universo das letras negado, assim como em
outras áreas sociais, se faz importante que se estude, se leia essas pro-
duções a fim de garantir seu espaço, além disso, vale salientar que sua
leitura pode servir como uma importante ferramenta na desconstrução

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 53


de ideologias que visam à dominação e à repressão feminina e na cons-
trução de sujeitos aptos a transformar as práticas sociais.
Se tratando de uma pesquisa que se preocupa com o trabalho com
a leitura em sala de aula, propusemos uma investigação que promoves-
se interfaces entre os Estudos de Gênero, a Estética da Recepção e o
Ensino, com o intuito de levantar subsídios teóricos relevantes acerca
dos processos de leitura e ensino-aprendizagem e estudos de gênero.
Com isso, observamos que o ensino de literatura deve receber maior
relevância e sua preparação deve se dar de forma mais cautelosa, visto
que este pode funcionar como um recurso importante na construção de
indivíduos em formação no contexto escolar e em suas práticas exter-
nas a sala de aula.

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 54


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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 55


Felicidade Clandestina:
literatura e relações de poder

Jackson José Pagani


Marco Antonio Hruschka Teles

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-3

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 56


Introdução

A obra de Clarice Lispector possui uma vasta fortuna crítica. Mui-


tos estudiosos dedicaram anos de pesquisa tentando compreendê-la,
sem, no entanto, esgotá-la. Em 1995, foi lançado Clarice: uma vida que
se conta, de Nádia Battella Gotlib, considerado um dos maiores estudos
biográficos sobre a escritora ucraniana radicada no Brasil. Entrelaçan-
do vida e obra, Gotlib alterna informações de ordem biográfica e dados
de leitura crítica de modo a resgatar o passado da escritora sem deixar
de enaltecer a sua linguagem e o seu poder narrativo.
A autora de Perto do coração selvagem, seu livro de estreia, foi con-
siderada uma mulher misteriosa e, por vezes, chamada de feiticeira. No
intuito de tentar defini-la,

A escritora francesa Hélène Cixous declarou que Clarice Lispector era o


que Kafka teria sido se fosse mulher, ou ‘se Rilke fosse uma judia brasileira
na Ucrânia. Se Rimbaud fosse mãe, se tivesse chegado aos cinquenta. Se
Heidegger deixasse de ser alemão.” [...] ‘Clarice’, escreveu o poeta Carlos
Drummond de Andrade quando ela morreu, ‘veio de um mistério, partiu
para outro’ (MOSER, 2011, p. 13).

Clarice era uma estrangeira não por ter nascido na Ucrânia, pois
fora criada desde pequena no Brasil, mas porque ela mesma não se com-
preendia, como afirmara mais de uma vez. Esposa de diplomata, Cla-
rice teve a oportunidade de viajar muito. Em sua viagem para o Egito,
encarara a Esfinge, afirmando que não a decifrara, mas que também
não havia sido decifrada por ela. De fato, ninguém foi capaz de obter
uma completa compreensão tanto de sua pessoa quanto de sua obra.
Por isso, estudá-la é sempre um desafio e novos olhares podem ser ino-
vadores. Mulher de múltiplas facetas, Clarice já foi descrita de inúmeras
maneiras. Segundo Moser (2011, p. 18),

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 57


Eis por que Clarice Lispector já foi descrita como quase tudo: nativa
e estrangeira, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e
adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de
sua experiência íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo
mundo, venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo
um espelho da própria alma. Como ela disse, ’eu sou vós mesmos’.

Suas primeiras publicações impactaram a crítica da época. Alguns


ficaram surpresos com tamanha novidade surgindo em meio a uma li-
teratura fortemente marcada pelo regionalismo na década de 30. A es-
crita da jovem Clarice fugia ao romance do tipo linear, com enredo, per-
sonagens, espaço e tempo definidos.
Das principais leituras referentes à obra de Clarice, destacam-se
a de Antonio Candido, escrita no começo da década de 1940. Em seu
artigo intitulado No raiar de Clarice Lispector, declara ter ficado choca-
do diante da novidade que a autora causou quando de suas primeiras
publicações, notadamente a partir de sua leitura de Perto do coração sel-
vagem, ressaltando sobretudo o seu compromisso com a linguagem em
detrimento da realidade empírica. Para Candido (1970, p. 127), Clarice
conseguiu fazer da ficção um “instrumento real do espírito, capaz de
nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da men-
te”. Deixando de lado as possíveis influências estrangeiras, classificou-a
como “performance da melhor qualidade” dentro da literatura brasileira.
Em contrapartida, Álvaro Lins (1963) a comparou com James Joyce e
Virginia Woolf, devido à estranheza de seu texto. Aproximação que tam-
bém faz Benedito Nunes (1995), segundo o qual

o que liga o romance de Clarice Lispector a esses autores é menos uma


técnica ou um procedimento particular do que os processos comuns –
o monólogo interior, a digressão, a fragmentação dos episódios – , que
sintonizam com o modo de apreensão artística da realidade individual
enquanto corrente de estados ou de vivências (NUNES, 1995, p. 13).

Abatida com a crítica de Lins, Clarice escreveu-lhe afirmando que


não conhecia nem Joyce, nem Woolf, nem Proust, quando fizera o seu
primeiro livro. De todo modo, o título de Perto do coração selvagem pa-
rece ter sido retirado de uma passagem de Um retrato do artista quando

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 58


jovem, “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração
da vida” (JOYCE apud LISPECTOR, 1998, p. 7 ), trecho escolhido como
epígrafe do primeiro romance de Clarice. Ainda segundo Nunes (1995,
p. 14), Perto do coração selvagem inaugurava um novo caminho na lite-
ratura brasileira “na medida em que incorporou a mimese centrada na
consciência individual como modo de apreensão artística da realidade”.
Roberto Schwarz (1965) caracterizou o texto clariciano como “narrativa
de estrutura complexa”. Já Costa Lima (1970) a identifica como “autora
de romance introspectivo”.
Para este trabalho, foi escolhido o conto Felicidade clandestina. O
objetivo é fazer uma análise levando em consideração as relações de po-
der e de que modo possuir (ou ler) um livro pode reforçar ou desestrutu-
rar os pilares do status quo. Trata-se de uma pesquisa de cunho biblio-
gráfico, para a qual lançamos mão do aparato teórico de autores como
Terry Eagleton (1997) e Roland Barthes (1977).

Literatura e status quo

Ao refletirmos sobre as mais diversas possibilidades de leitura em


nossa sociedade, deparamo-nos com uma dúvida: por que será que nem
todas as pessoas possuem acesso a todo tipo de conhecimento literário?
Parece que essa indagação contém uma resposta um tanto lógica. Se
partirmos de uma breve análise social, veremos que o acesso à leitura
em nossa sociedade está relacionado a um status quo, ou seja, parece
que a leitura, desde muito tempo até a modernidade, está diretamente
ligada a uma questão de poder. Talvez esse seja um dos fatores que fa-
zem com que a leitura literária não se integre em algumas parcelas da
sociedade, pois não há interesse por parte daqueles que mantêm as re-
lações de poder em promover uma emancipação de grupos socialmente
marginalizados. Para Eagleton, “a obra literária enriquece e transforma
continuamente o simples significado dicionarizado, produzindo novas
significações através do choque e da condensação de seus vários ‘ní-
veis’” (1997, p. 153).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 59


Contudo, há a construção de um distanciamento entre pessoas, fa-
zendo com que alguns sejam considerados a elite intelectual, enquanto
outros, alienados, permanecem distantes de conseguir perceber a leitu-
ra como algo que possibilite a consciência individual, social e existen-
cial, tanto do eu como do outro.
Acreditando na potencialidade de construção de significados que
um texto literário nos oferece, entendemos que “numa história sempre
há um leitor, e esse leitor é um ingrediente fundamental não só do pro-
cesso de contar uma história, como também da própria história” (ECO,
1994, p. 7). Dessa forma, é evidente notar que o leitor é um elemento
primordial na construção dos sentidos do texto literário.
De acordo com Eagleton (1997), citando Bakhtin, a literatura deve
ser entendida não apenas em termos de seus efeitos estéticos, mas tam-
bém a partir de elementos éticos, sociais, psicológicos que possam sur-
gir. Por isso, afirmamos a importância da leitura como possibilidade de
levar o ser humano à construção de sua própria essência e, concomitan-
temente, agir e reagir de maneira autêntica em um mundo que constan-
temente o força a seguir padrões e convenções sociais.
Compreendemos que a leitura possui uma capacidade transforma-
dora, pois o ato de ler constantemente nos permite perceber um mundo
novo. Como afirma Eagleton (1997, p. 188) “os textos literários são ‘pro-
dutores de códigos’ e ‘transgressores de códigos’, bem como ‘confirma-
dores de códigos’: eles podem nos ensinar novas maneiras de ler, e não
apenas reforçar as já existentes”.
Em uma reflexão platônica (2006), estar envolvido no mundo de
leituras é ir além do mundo das aparências, é um convite para sairmos
da caverna das manipulações e alienações impostas em uma sociedade
de consumo exacerbado.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 60


Ler ou não ler, eis a questão: uma interpretação do conto
Felicidade clandestina

É possível dizer que o fetiche caracteriza uma adoração do indi-


víduo por um objeto. É um desejo incontido por algo ou alguém. Em
Felicidade clandestina, o objeto livro contém uma significação plural.
Uma interpretação possível nos permite afirmar que o livro, enquanto
produto, pode potencializar o status daquele que o detém, pois, em nos-
sa sociedade, muitas vezes, possui-lo pode ser associado a um sinal de
intelectualidade, consecutivamente de poder: “possuía o que qualquer
criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”
(LISPECTOR, 2016, p. 393). A possibilidade de ter o livro ao alcance das
mãos e de viver num ambiente onde a literatura era uma realidade faz
com que a filha do dono da livraria, uma das personagens principais do
conto, usufruísse de um status diferente do das amigas.
Ao refletirmos sobre o significado do termo clandestino, presente
no título do conto, que pode ser interpretado como algo feito às escon-
didas, de modo oculto ou, ainda, ilegal ou ilícito, percebemos que o aces-
so à literatura e à prática de leitura não é uma experiência oportunizada
a todos – é como se fosse algo clandestino -, mas sim a poucos, aqueles
que se encontram em um nível social onde o contato com o conheci-
mento torna-se acessível.
Essa relação de poder é expressada dentro da narrativa, pois no-
tamos que as personagens são alicerçadas através da oposição entre
dominante e dominado, e que essa situação se estabelece por meio do
livro, objeto detentor do conhecimento. Para Barthes,

o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio


social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas
modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes,
nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos
impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder
todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade
daquele que o recebe (1977, p. 10).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 61


O estudioso francês considera que, desde sempre, o poder se ins-
creve na linguagem e em sua expressão oral, a língua. É por meio da
comunicação, da conversa e da manipulação da verdade que o jogo de
poder se instaura entre as personagens do conto. Assim, a menina que
postulava a leitura, em sua ânsia pelo acesso às informações que lhe tra-
riam outros conhecimentos e, consequentemente, romperiam as bar-
reiras da “clandestinidade”, expressa toda a sua indignação, tendo em
vista que

eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a


implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para
ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa
(LISPECTOR, 2016, p. 393).

Entendemos que os produtos e manifestações culturais não devam


ser destinados apenas a alguns, mas sim a todos. Por outro lado, confor-
me o conto nos apresenta, o acesso aos bens culturais está destinado a
um grupo restrito de indivíduos, o que fortalece ainda mais a relação de
dominante versus dominado:

era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-
me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria
(LISPECTOR, 1998, p. 393-394 – grifos nossos).

Nessa linha de análise, o conhecimento de algo novo propiciado pe-


las leituras nos leva a um processo de reconstrução e consciência da
nossa identidade, pois ela age dentro do leitor, levantando hipóteses,
gerando dúvidas e propiciando reflexões importantes para o autoco-
nhecimento. Como afirma Eagleton,

a literatura pode parecer que está descrevendo o mundo, e por vezes


realmente o descreve, mas sua função real é desempenhativa: ela usa a
linguagem dentro de certas convenções a fim de provocar certos efeitos
em um leitor. Ela realiza alguma coisa dentro do leitor: é linguagem
enquanto um tipo de prática material em si mesma, e discurso enquanto
ação social (EAGLETON, 1997, p. 178 – grifos do autor).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 62


Notamos que a menina, além do fetiche em possuir o livro, acre-
ditava que através de sua leitura seria conduzida a experimentar um
mundo novo. Conforme o próprio conto apresenta, todas as vezes em
que ela sofria uma ilusão em poder ter o acesso ao livro, voltava para
casa extremamente feliz, pois vivenciava a possibilidade de, no dia se-
guinte, conseguir o livro:

Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança
da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me
levavam e me traziam (LISPECTOR, 2016, p. 394).

Podemos interpretar isso como uma característica de ubiquidade,


ou seja, no mesmo momento em que ficava triste, logo se extasiava com
a probabilidade de ter o livro no dia seguinte. O sentimento oscilava
dentro da menina. Ora feliz e esperançosa, ora desiludida e humilhada.
Após ir até a casa da amiga para pegar o livro emprestado, é submetida
a um jogo de poder por parte da filha do livreiro, pois ela era a detentora
do livro e fingia tê-lo emprestado a outra pessoa, manipulando a colega
que sonhava com poder ter acesso àquela história. O sonho era tão for-
te que, mesmo sendo enganada, agarrava-se à chance do empréstimo:
“Guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes
seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me espera-
va, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez” (LIS-
PECTOR, 2016, p. 394). O livro trazia a esperança do contato com uma
realidade extraordinária, na qual ela poderia expandir seu intelecto e
rever o mundo e a si própria sob as lentes da literatura. Como afirmou
Barthes (1977, p. 17), “a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir
essa distância que a literatura nos importa”.
Contudo, a filha do livreiro havia projetado uma vingança bem ela-
borada. Ela não se parecia fisicamente com as amigas: “ela era gorda,
baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados
[...] nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de
cabelos livres” (LISPECTOR, 2016, p. 393). Se, por um lado, era vítima de
uma sociedade que padronizara conceitos de beleza e estética que não

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 63


correspondiam com as suas características físicas, por outro, decidira
“reequilibrar” as coisas, de modo frio e vingativo, manipulando o seu
livro, elevando-a a um patamar social que a distinguia das demais:

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de


livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta
de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta
calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do
“dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo. E assim
continou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido,
enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a
advinhar que ela me escolhera para eu sofrer (LISPECTOR, 2016, p. 394).

A rotina de ir até a casa da filha do dono de livraria, pedir o livro


emprestado e receber uma desculpa como resposta passou a incomodar
tanto a amante de literatura que marcas físicas de desgaste começaram
a aparecer: “e eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se ca-
vando sob os meus olhos espantados” (LISPECTOR, 2016, p. 395). O con-
to não precisa quanto tempo se passou desde que a vingança começara.
O jogo de poder abriu uma fresta no tempo e a duração do sofrimento
não pôde ser calculada.
Um dia, a esposa do dono de livraria, mãe da garota manipuladora,
desconfiou de algo e pediu explicação às duas meninas. O seu papel é
muito importante dentro da trama do conto, pois é ela quem desvenda a
trapaça, descobre a mentira e revela o que, de fato, estava acontecendo:

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde
e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando
a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de
palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o
fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu
daqui de casa e você nem quis ler! (LISPECTOR, 2016, p. 395).

A descoberta de uma filha perversa horrorizou a mãe. Após recom-


por-se, ela disse à menina, esgotada de tanto esperar, que poderia fi-
car com o livro quanto tempo quisesse. Uma sensação de completude

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 64


tomou conta dela, pois acreditava que poder ficar com o livro quanto
tempo quisesse valia mais do que ter o livro:

eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não


disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí
andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas
mãos, compromindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar
em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração
pensativo (LISPECTOR, 2016, p. 395-396).

Com o livro em mãos, um misto de paz e excitação tomou o seu ser.


Agora ela poderia ler. Conquistara o seu direito àquela obra, que a le-
varia por uma viagem de saber e sabores, vocábulos com a mesma raíz,
em latim, assim como nos explica Barthes. Segundo ele, “é esse gosto
das palavras que faz o saber profundo, fecundo” (BARTHES, 1977, p. 20).
Contudo, chegando em casa, a menina saboreava a expectativa da
pré-leitura. Por um tempo indeterminado, o livro estava em sua posse.
Era uma conquista incalculável, após um longo período de tortura. A ga-
rota, como num jogo de sedução com o livro, criara uma dinâmica para
potencializar o seu prazer em lê-lo:

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o ler. Horas depois abri-o, li algumas linhas
maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais
indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro,
achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades
para aquela coisa clandestina que era a felicidade (LISPECTOR, 2016, p.
396).

Levando em consideração as concepções de Mukarovsky, nas quais


existe uma diferenciação entre “‘artifício material”, que é o livro físico, a
pintura ou a escultura em si, e o ‘objeto artístico’, que só existe na inter-
pretação humana desse fato físico” (EAGLETON, 1997, p. 151), o sentido
do texto, a literatura transformadora, só se concretiza quando do ato de
leitura. Em outras palavras, a função do leitor é de suma importância
para que a literatura exista. É preciso que o leitor abra o livro, interprete
os signos, mescle sua bagagem histórico-social com o texto que compõe
a obra para que a literatura surja como um fenômeno artístico.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 65


Compreendemos que a menina, ao mesmo tempo que nutria um
sentimento em relação à possibilidade de conhecer novas histórias, de
lançar-se em aventuras dentro do universo da literatura, também man-
tinha um desejo para com o objeto livro, um fetiche pela mercadoria
que lhe daria a sensação de possuir algo, uma vez que, de acordo com a
descrição no final do conto, a relação existente era a de um consumidor
com o seu produto adquirido, ou, ainda, de cunho sexual: “às vezes sen-
tava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo,
em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com o seu amante” (LISPECTOR, 2016, p. 396).
Dessa forma, constatamos a pluralidade semântica e a riqueza de
sentidos da escrita lispectoriana, uma vez que um leque de possibilida-
des se abre quando da leitura de seus textos.

Considerações finais

Sabemos que a nossa sociedade estereotipa padrões de beleza e


que tudo que se diferencia disso acaba sofrendo preconceitos diversos.
Como uma criança pode lidar com esse tipo de situação, na qual ami-
gos e amigas lançam sobre ela um olhar de julgo, fazendo com que ela
se sinta menos importante e não pertencente ao grupo? Em Felicidade
clandestina, a filha do dono de livraria, sentindo-se menosprezada, re-
solveu se vingar. Por ter acesso a um bem material considerado sinô-
nimo de intelectualidade e de poder, o livro, ela decidiu brincar com a
expectativa de uma colega que desejava muito lê-lo.
A partir da análise do conto, percebemos que o acesso à literatura e
ao livro está diretamente ligado às relações de poder em nossa socieda-
de. Apenas uma parcela da população garante uma promoção à leitura
literária e, em Felicidade clandestina, o livro possui significação dupla:
pode ser uma porta de entrada para a emancipação do leitor, que pode
encontrar nela um saber e um sabor; ou um fetiche, passando a ser um
objeto de adoração, justamente por permanecer distante da realidade
da maioria. Para que a literatura surja como um fenômeno artístico e

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 66


transformador, é preciso que o leitor aproprie-se do texto, reinterprete-
-o e reconstrua os seus significados. Em outros termos, apenas possuir
o livro está mais ligado à construção de uma identidade social do que a
uma evolução no nível intelectual.
Concluímos, ainda, que a manutenção das estruturas de poder
mantêm-se vinculadas ao uso da língua e da linguagem, capaz de criar e
fixar padrões, estereótipos e verdades que discriminam os mais despro-
vidos de status social para que a elite permaneça usufruindo do poder.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. Trad. e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Edito-
ra Cultrix, 1977.
CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 1970.
COSTA LIMA, Luís. Clarice Lispector. In: A literatura no Brasil; Modernismo. 2.ed. Rio
de Janeiro: Sul-Americana, 1970, v.5.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 6ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1994.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 7.ed. rev. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2013.
LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca; ensaios e estudos (1940-1960). Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 1963.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Org. Benjamin Moser. 1a ed. Rio de Janeiro:
Rocco, 2016.
MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Co-
sac Naify, 2011.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. 2. ed. São
Paulo: Editora Ática, 1995.
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado; ensaios críticos. Rio de Janeiro: Civili-
zação Brasileira, 1965.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 67


Os discursos literários como ferramenta
social: uma análise de recortes harry
potterianos de J.K. Rowling

José Lucas do Nascimento Barbosa


Rosilda Maria Araújo Silva dos Santos

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-4

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 68


Introdução

As palavras assumem um papel central na vida humana, uma vez


que estão presentes em discursos externo e interno. São elas as res-
ponsáveis, como argumenta Volóchinov (2017, p.100), pela existência da
consciência humana, a qual “foi capaz de se desenvolver apenas graças
a um material flexível e expresso por meio do corpo. A palavra foi justa-
mente esse material”.
Dessa forma, escritores renomados da literatura, Cecília Meireles,
por exemplo, enaltecem a grande potencialidade das palavras, ou como
ela bem diz: essa “estranha potência” em que “todo o sentido da vida
principia à vossa porta” (MEIRELES, 2002, p. 132). Uma potência que
também pode ser sentida nas interações sociais, uma vez que os interlo-
cutores realizam a conversa simultaneamente, criando “efeitos de sen-
tidos, realizando o discurso” (PÊCHEUX, 2014).
Discurso esse que vai além daquilo que é falado ou escrito, pois não
surge de um nada. Mesmo a espécie humana pensando que surgem de
si, os discursos são sempre fruto de outros discursos já ditos (COURTI-
NE E MARANDIN, 2016), ou seja, o dito só é possível, porque já foi pen-
sado, ideologizado, verbalizado antes. O que se faz agora, mesmo que
inconscientemente, é constituído pelo já dito, oportunizando ao falante
trazer (camuflado em seu discurso) ideologias passadas, consideradas
extremistas, porém, de uma tal forma que se faça conveniente, convin-
cente para o seu interactante.
Assim, ao analisar sequências discursivas da saga de Harry Potter
da J.K. Rowling, pode-se perceber que a escritora consegue incentivar
leitores a mergulhar numa história em que os discursos se desenvolvem
ora no mundo literal, ora no mundo fictício, uma vez que retrata situa-
ções da vida real, conflitos interpessoais e ideologizados, configurando-
-se, dessa forma, reflexos das relações do mundo dito normal. Nesse caso,
baseia-se na ideia de que a literatura vem recheada de ideologia, a qual
pode servir como reflexão crítica sobre o mundo, promovendo caminhos
para ressignificar a existência, isto é, atribuindo-lhe novos sentidos.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 69


Por esta razão, acredita-se que há discursos na saga Harry Potter,
que contribuem para a formação humana, crítica e social, proporcio-
nando ao leitor reflexão sobre questões sociais. Logo, este estudo inten-
ciona socializar resultados de uma análise de recortes de discursos de
personagens dessa criação artística-literária, evidenciando o propósito
comunicativo das produções de sentido, implícitas ou explícitas, cria-
das por seus objetos simbólicos ideológicos. Isso tem como ponto de
partida a ideia de que o dito e o não-dito em discursos harry potteriano
podem promover reflexão sobre o mundo e ressignificação de valores e
como hipótese que há personagens que deixam sua ideologia implícita
e/ou explícita.
Para amparar teoricamente a discussão, baseou-se em referencial
com Pêcheux (2014), Análise do Discurso francesa, e Volóchinov (2017),
mostrando especificidades da estruturação discursiva; Bakhtin (2017),
mostrando o papel da heterodiscursividade na literatura; Soares (2004,
ao abordar sobre letramento; e Cosson (2006b), discutindo diretrizes
que envolvem letramento literário. Como procedimento metodológico,
adotou-se a pesquisa bibliográfica de caráter qualitativo e, tendo em
vista que a história de Harry Potter não se conclui em apenas um livro,
mas é constituída por oito volumes, foram analisadas nove sequências
discursivas, ou seja, nove recortes discursivos de cinco dos livros12 que
compõem a saga Harry Potter, a qual se mostrou espaço de luta de vozes
sociais, onde visões de mundo extremistas, segregadoras e preconcei-
tuosas são percebidas em ações e em discursos de personagens como,
por exemplo, a separação de grupos sociais na história, baseada no tipo
de sangue que possuem (Sangue-Puro e Sangue-Ruim) e obteve-se como
resultado a confirmação da hipótese levantada, além de outras respos-
tas da problemática levantada, contribuindo para o desenvolvimento
dos estudos discursivos e literários.
Portanto, há relevância em analisar as narrativas ideológicas na
literatura, pois ela forma o homem interdimensionalmente não só tra-

12 H.P.P.F - Harry Potter e a pedra filosofal; H.P.C.S - Harry Potter e a câmara secreta; H.P.P.A - Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban; H.P.R.M - Harry Potter e as relíquias da morte e H.P.C.C - Harry Potter and the cursed
child.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 70


zendo expressões da alma e seus sentimentos, mas também apontan-
do as fragilidades de um grupo social independente de sua época. Para
tanto, este texto está organizado da seguinte forma: nesta introdução,
registram-se breves considerações sobre o tema com o propósito de
só contextualizar; na fundamentação teórica, serão explanados alguns
pontos, inicialmente haverá uma breve reflexão sobre a noção de língua,
linguagem, discurso e ideologia para que se perceba como a espécie hu-
mana se posiciona no mundo através das palavras/discursos, depois se
explanará sobre a necessidade do letramento literário e literatura como
lugar de fala, de (re)existência e de ressignificação para que se perceba o
papel formador do caráter humano que a literatura pode garantir, isto é,
uma visão de mundo mais crítica e reflexiva, em seguida, serão expostos
alguns fragmentos discursivos da obra Harry Potteriana com análise e
discussão para comprovar as hipóteses sinalizadas, e por fim, as consi-
derações finais que retomam alguns aspectos importantes no que diz
respeito a heterodiscursividade e o dito e o não-dito, além de apontar as
conclusões a que se chegou sobre o tema.

Língua, linguagem e discurso: uma discussão reflexiva

Quando se fala sobre língua, geralmente se tem a ideia de “idioma”,


o qual a espécie humana utiliza, seja língua portuguesa, seja inglesa,
etc., contudo, Ferdinand de Saussure esclarece que existem certas re-
gras gramaticais que são adquiridas e estão contidas na mente dos indi-
víduos, formulando, assim, o seu conceito de língua (SAUSSURE, 2012).
Não diferente, Chomsky (2018), ao discorrer sobre a independên-
cia da gramática, define língua ao mostrar que as sentenças têm (em
tamanho) um fim, são finitas, e que essa mesma finitude é presente nos
elementos que as compõem, tais como: os fonemas, etc., todavia, essas
sentenças fazem parte de um conjunto e mesmo apresentando uma
finitude de elementos, a possibilidade de sempre criar novas senten-
ças é possível, ou seja, é infinita. Todas as línguas se comportam assim
(CHOMSKY, 2018).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 71


Tanto Saussure quanto Chomsky e seu inovadorismo linguístico
parecem não trazer para seus conceitos as influências sociais que afe-
tam a língua, ou seja, elevam-na a uma espécie de abstracionismo em
que o social só pode ser visto no que Saussure chama de fala e Chomsky,
desempenho.
Diante disso, pode-se conceituar língua como essa realidade que
todos os seres humanos têm, a qual possui seu sistema de regras inter-
nas, mas que por ser presente a todos de igual modo, ela é apenas uma
base sob a qual a criatividade discursiva, processos discursivos, vão se
desenvolver (PÊCHEUX, 2014).
Pode-se até pensar que se língua é essa base, então a linguagem se-
ria algo maior que a abarque, contudo, defini-la como algo maior, como
qualquer forma de comunicação já passou a ser considerada uma atitude
informal de se lidar com esse objeto de estudo, uma forma mais comu-
mente aceita (CUNHA, COSTA E MARTELOTTA, 2015). – o que não é
motivo para desvalorização do conceito, uma vez que se consegue per-
ceber linguagem em todas as instâncias da atividade humana.
Se Saussure (2012, p. 41) definiu linguagem como sendo “multifor-
me e heteróclita”, querendo mostrar que não só existe uma forma para
ela, mas variedades de formas que diferem umas das outras, isto é, uma
realidade multifacetada, afinal, a comunicação não acontece única e
simplesmente de um modo, então é válido afirmar que linguagem é uma
necessidade vital de fazer-se significar, de fazer-se entender, gerando
sempre uma variedade de sentidos mediante as necessidades de comu-
nicação (na dinâmica discursiva), cujas formas e meios de sua produção
são diversos e estão em constante mudança, inovação, por isso:

A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É


precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro
campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for
seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a
artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas (BAKHTIN, 2018,
p. 209).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 72


Nessa concepção, a linguagem é vista como interacional (na qual as
intenções, os contextos histórico-ideológicos e extralinguísticos estão
presentes) e dialógica. Isso é bastante visível, quando se analisa a saga
Harry Potter, na qual a linguagem é vista claramente como interacio-
nista, apresentando contextos históricos e ideológicos.
Em se tratando de discurso, convém frisar que um falante na es-
pontaneidade da vida cotidiana, não se preocupa em usar a língua pen-
sando nela como um sistema de regras, ou seja, realizando sempre um
monitoramento linguístico (puramente gramatical). Seu objetivo é co-
municar, externalizar seu enunciado, pois para ele a forma da língua é
algo flexível, passível de mudanças em cada momento de uma interação
dialógica (VOLÓCHINOV, 2017).
Assim, falando sobre a sintaxe discursiva, o linguista José Luiz
Fiorin explicita de forma concisa e objetiva os conceitos propostos por
Benveniste, pioneiro das pesquisas sobre enunciação: a partir do conhe-
cimento internalizado da língua, o sujeito produz seus atos de falas in-
dividuais, ou seja, a enunciação é uma instância de mediação entre a
língua e a fala (FIORIN, 2014).
Tendo em vista que instância é um conjunto de categorias linguís-
ticas, a enunciação instaura um eu no ato de dizer, ou seja, mesmo quan-
do um indivíduo fala a palavra eu, existe por trás um eu que fala esse eu,
que dirige sua fala para um tu – são esses os participantes (actantes)
do momento da enunciação e essa ação acontece sempre num espaço
e num tempo que têm a incumbência de organizar a ação enunciativa
(FIORIN, 2014).
Foucault (2014, pp. 8-9) explana sobre isso, ao registrar que há uma
espécie de controle na realização de enunciados, ou melhor, de discur-
sos, pois se sabe “que não se tem o direito de falar tudo” nem que (em
qualquer situação) pode-se falar de qualquer coisa, visto que “em toda
sociedade a produção de discurso é ao mesmo tempo controlada, sele-
cionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimen-
tos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 73


Então, como definir discurso? Brandão (2014, p. 33) mostra que,
para Foucault, é uma espécie de “família de enunciados pertencentes a
uma mesma formação discursiva”. A título de exemplo, o discurso reli-
gioso, o partidário, o familiar, etc. são todas essas famílias, as quais têm,
cada uma, seus enunciados, fazendo com que o sujeito desses discursos
seja não o ser no sentido físico, individual, mas sim um sujeito multipli-
cado.
Em outras palavras, pode-se dizer que no discurso, os interlocuto-
res não almejam apenas o envio de mensagens. Nessas relações dialó-
gicas, eles elaboram e reelaboram aquilo que querem dizer, ou fazer-se
entender mediante ao dito do outro no momento de sua realização. As
respostas que quebram (ou não) as expectativas pré-estabelecidas oca-
sionam efeitos de sentidos, como se fosse um produto que se obtém do
choque entres os ditos dos interlocutores – isso é discurso (PECHEUX,
2014).

Ideologia: um olhar sobre Marx, Althusser e Ricoeur

Em A Língua Inatingível, Pêcheux e Gadet (2015) comentam:

Ao que nos consta, a reflexão sobre ideologias teve seu início com a
problemática francesa do começo dos anos 60 acerca do estruturalismo
filosófico, que em grande parte foi organizada em torno da questão de
leitura (interpretação) de discursos ideológicos. Essa problemática,
à época girando em torno de Levi-Strauss, Foucault, Barthes, Lacan,
Althusser e outros, não tomou somente a forma de um programa de
pesquisa: foi também um dispositivo polêmico voltado para as ideias
dominantes então (PÊCHEUX E GADET, 2015, p. 93).

O conceito de ideologia sempre foi confuso e controverso. Há de-


finições positivas e negativas sobre o assunto. Ela já foi tida como a ci-
ência que procurava analisar a faculdade de pensar ou até como uma
espécie de ciência positiva que vem do espírito, a qual opunha outras
ciências como a metafísica, a teologia e a psicologia, por possuir um ri-
gor científico que era proposto como método (BRANDÃO, 2014).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 74


No entanto, outras pessoas tiveram uma visão diferente sobre o
tema. O primeiro foi Napoleão, que intitulava os ideólogos franceses de
irrealistas e perigosos para o poder, pelo fato deles não possuírem co-
nhecimento dos problemas concretos. Já outros foram Marx e Engels,
que além de terem criticado os filósofos alemães por não buscarem a re-
lação da filosofia alemã com a realidade do país, usaram como base para
suas formulações os dados da realidade (os indivíduos reais e suas con-
dições materiais de existência), dividindo, assim, a sociedade em duas
classes: a dominada e dominante (BRANDÃO, 2014).
Em Harry Potter (e isso é explanado na análise de corpus) é vista
essa divisão social: a tentativa de impor a ideologia de uma classe do-
minante sobre a outra, isto é, com sua ideologia preconceituosa e extre-
mista. Para Brandão (2014, p. 23), não diferente do pensamento de Marx
e Engels, Althusser propôs que a classe dominante “gera mecanismos
de perpetuação ou de reprodução das condições materiais ideológicas e
políticas de exploração”, e ela ainda distingue esses mecanismos:

Aparelhos Repressores – ARE – (compreendendo o governo, a


administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões etc.) e
Aparelhos Ideológicos – AIE – (compreendendo instituições tais como:
a religião, a escola, a família, o direito, a política, o sindicato, a cultura,
a informação), intervém ou pela repressão ou pela ideologia, tentando
forçar a classe dominada a submeter-se às relações e condições de
exploração (BRANDÃO, 2014, p. 23).

Na segunda parte do estudo de Althusser, a ideologia perpassa três


hipóteses: a primeira – ela está na instância do imaginário. A espécie
humana age criando formas (representações) que simbolizam sua rela-
ção com sua realidade, mas de forma abstrata. A segunda – fugindo do
idealismo e abstracionismos, a ideologia ganha existência através dos
atos de um indivíduo, ou seja, se materializa. E, por fim, a terceira – são
as ideologias que moldam indivíduos em sujeitos, isto é, são interpela-
dos (BRANDÃO 2014).
Já Ricoeur faz uma interpretação sobre a ideologia que perpassa
três instâncias: a função geral da ideologia, função de dominação e fun-
ção de deformação. Num todo, essas três formas podem ser concebidas

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 75


em dois polos – um lado (ligado ao marxismo) restringe a ideologia,
ocasionando a existência de um discurso dominante que legitimiza o
poder que uma classe ou grupo social tem, enquanto que o outro lado
amplia a visão de ideologia, definindo-a como a forma em que um grupo
social enxerga o mundo devido a situações históricas, portanto, a ideia
de um discurso como sendo o único ideológico é desmistificada já que
todos os discursos são ideológicos nesse sentido. (BRANDÃO, 2014).
Diante disso, é de extrema relevância entender como a ciência das
ideologias e a filosofia da linguagem enxergam as palavras em relação
ao que é denominado signo ideológico – as coisas da realidade social
podem se tornar algo ideológico não porque conservam sua natureza
originária (já que são parte da realidade), mas sim por sua capacidade
de representar algo novo, de apontar para outro sentido que está fora
dele –força de representatividade sígnica, pois onde quer que um signo
se encontre, a ideologia está presente (VOLÓCHINOV, 2017).
Volóchinov segue seu trabalho realizando críticas à filosofia ide-
alista, pois ela estabelece a consciência como o lugar da ideologia e a
compreensão como sendo também interna ao indivíduo, a qual teria sua
realização através de uma carcaça, um veículo que lhe é exterior– o sig-
no. Diante disso, ele diz:

O que o idealismo e o psicologismo ignoram é que a própria compreensão


pode ser realizada apenas em algum material sígnico (por exemplo, no
discurso interior). Eles desconsideram que um signo se opõe a outro
signo e que a própria consciência pode se realizar e se tornar um fato
efetivo apenas encarnada em um material sígnico. Porque a compreensão
de um signo ocorre na relação deste com outros signos já conhecidos;
em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também
com signos... uma consciência só passa a existir como tal na medida em
que é preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto
apenas no processo de interação social (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95).

A crítica aqui recai em afirmar que a criação ideológica é um fenô-


meno da consciência individual da espécie humana, no sentido de que o
ser humano é capaz, por si só, ser a origem dessa criação em que a inte-
ração não faz parte do processo e que a consciência (a sua consciência)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 76


é vista como acima da existência, chegando ao ponto de influenciá-la.
Contudo, sabe-se agora que a consciência ganha vida a partir da inte-
ração social e sua forma é realizada através de um material sígnico que
é palavra. Portanto, é a palavra que se mostra como signo ideológico
(graças à interação social), se mostrando presente na realização da com-
preensão e da consciência (VOLÓCHINOV, 2017).

A literatura como lugar de fala, de (re) existência,


de (res) significação de valores

Pensar em um mundo onde a literatura nunca tivesse existido, se-


gundo Puchner (2019), resultaria dessa ausência uma consequência bas-
tante significativa: a espécie humana não teria o mesmo pensamento
para aquilo que – hoje com a literatura – é habitualmente aceito como
sentido de história, ideias filosóficas, políticas, ou seja, essas ideias/sen-
tidos não haveria existido.
Diante disso, é possível afirmar que a literatura está presente na
vida não somente como algo que representa a realidade ou como uma
espécie de entretenimento, mas como formadora e transformadora de
civilizações, uma vez que ela segue o processo contínuo do desenvolvi-
mento humano e de suas ideias. A título de exemplificação disso, apon-
ta-se a bíblia, a ilíada e outras obras literárias com seu poder de influ-
ência:

Se tornam códigos-fonte para culturas inteiras, contando aos povos de


onde eles vieram e como deveriam levar suas vidas...os reis promoviam
esses textos porque percebiam que uma história poderia justificar
conquistas e proporcionar coesão cultural. Textos fundamentais primeiro
floresceram em bem poucos lugares, mas à medida que sua influência se
disseminava e surgiam novos textos, o mundo se assemelhava cada vez
mais a um mapa organizado pela literatura – pelos textos fundamentais
que dominavam determinada região (PUCHNER, 2019, p. 16).

Nesses textos fundamentais que guiam civilizações, entre outros


romances literários levantados por Puchner, existem os personagens

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 77


como elemento constitutivo da narrativa. Contudo, além de serem vis-
tos unicamente no sentido de elementos fictícios, esses personagens,
ou melhor, os seres mostrados nos textos literários representam vozes
de sujeitos (pessoas) na sociedade, ou seja, ou seja, sua linguagem dis-
cursiva é usada no discurso literário como voz de cidadãos em relação
ao mundo (BAKHTIN, 2015).
Logo, a literatura além de servir como fonte de orientação para ci-
vilizações, pode ser usada como lugar de fala, de vozes sociais, uma vez
que a espécie humana é interpretada como uma espécie social, não de
forma semelhante, mas heterogênea. Cada ser, em cada estrato social,
com suas singularidades/lutas sociais, na literatura, é representado
através de sua linguagem – no grande embate de discursos, na luta com
as palavras.
Assim, o pensador russo Bakhtin (2017) não se distancia de puchner
ao apontar que a literatura está intrinsecamente ligada à sociedade,
mas vai além ao dizer que não se pode estudar literatura somente em
sua dita atualidade ou desvinculada de uma época e sua cultura, isto é, o
fechamento de uma obra literária no seu momento de criação, fazendo
somente referência a um fato histórico de sua época de criação (como o
feudalismo por exemplo) não se sustentaria nos séculos seguintes uma
vez que o próprio fato histórico deixasse de existir. Assim, interpretar
uma obra somente nessas condições de produção de sua atualidade não
garantiria um aprofundamento de sentidos – por isso a necessidade da
obra literária dialogar com a sua atualidade, com o passado e com as
épocas futuras.
Consequentemente, a literatura se apresenta agora como palco de
embate de vozes, as quais apontam suas formas de pensar o mundo,
seus universos ideológicos que surgem e ressurgem no universo literá-
rio, garantindo o eterno diálogo com o tempo, pois nada no mundo está
inteiramente acabado – como diz Bakhtin (2017) – e vozes (discursos)
do passado ressurgem nos discursos do presente não só para se poder
refletir sobre o tempo de outrora, mas para a reflexão de como poderá
ser o tempo futuro.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 78


Essa garantia de reflexão, que a literatura proporciona ao repre-
sentar os discursos sociais através das vozes de personagens, é prova
de que esse retorno discursivo é também uma forma da espécie humana
mostrar seu lugar de (re) existência e as vicissitudes desse lugar, visto
que existir é um ato social, logo, o texto literário representa esse espaço
da sociedade – além disso, essa garantia também permite estabelecer o
lugar de resistência, visto que a possibilidade de refletir sobre discursos
passados para se entender o presente e pensar sobre o futuro possibilita
que grupos menores, marginalizados possam resistir e garantir sua voz
através do diálogo na literatura.
Desse diálogo, outras culturas podem rever aspectos da sociedade
antes não percebidos ou não tão explanados e assim garantir um olhar
mais humano, pois:

colocamos para a cultura do outro novas questões que ela mesma não se
colocava; nela procuramos respostas a essas questões, e a cultura do outro
nos responde, revelando-nos seus novos aspectos, novas profundezas do
sentido. Sem levantar nossas questões não podemos compreender nada
do outro, do alheio, ou de modo criativo (é claro, desde que se trate de
questões sérias, autênticas). Nesse encontro dialógico de duas culturas,
elas não se fundem nem se confundem; cada uma mantém a sua unidade
e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem mutuamente
(BAKHTIN, 2017, p. 19).

Levando todo esse cenário em consideração: a inseparabilidade da


literatura com a sociedade, a possibilidade de diálogo que estabelece
através dos tempos com outras culturas e formas de pensar e a caracte-
rística de formadora e transformadora de civilizações, entende-se que
a literatura é colocada no status de algo essencial à vida; contudo, essa
essencialidade é questionada por Michèle Petit (2019) ao se perguntar
se o papel da literatura é algo como utilidade social ou uma espécie de
exigência vital.
A conclusão da autora é que a cobrança pela leitura vinda da parte
de profissionais e pais – transformando a literatura em uma obrigação
moralizante – traz efeitos perversos, uma vez que afirmações de que ‘jo-
vens não leem ou que deveriam parar seus jogos e séries para se dedicar

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 79


a leitura’ faz com que eles se sintam controlados, vendo a leitura como
“uma tarefa ingrata à qual seria necessário submeter-se para satisfazer
os adultos” (PETIT, 2919, p. 41 e 42).
Em contrapartida, nem tudo é visto de forma negativa. Michèle Pe-
tit vai também investigar os leitores e entender para que serve a litera-
tura para eles. O que ela constata é que para além de algo que apresente
uma função escolar/profissional, a literatura é sentida, também, como
uma necessidade vital, pois, ao dar sentido às suas identidades,

Ler talvez sirva antes de tudo para elaborar um sentido, dar forma a sua
experiência, ou a seu lado escuro, sua verdade interior, secreta; para criar
uma margem de manobra, ser um pouco mais sujeito de sua história; por
vezes, para consertar algo que se quebrou na relação com essa história
ou na relação com o outro; para abrir um caminho até os territórios do
devaneio, sem os quais não existe pensamento nem criatividade (PETIT,
2919, p. 43).

Portanto, a literatura se apresenta como um lugar de formação e


construção da espécie humana, onde as relações/interações sociais são
compartilhadas não só em sua dita atualidade, mas no diálogo com o
passado e as gerações futuras a fim de se obter desse diálogo não só a
ressignificação de sentidos e/ou ideias vividas, mas também a constru-
ção de um olhar mais humano da parte dos seu interactantes, garan-
tindo a humanidade, através da literatura, um lugar de (re)existência e
espaço de vozes sociais.

Letramento literário: uma discussão necessária

Parafraseando Souza e Cosson (2011), a leitura é uma das com-


petências mais valorizadas pela sociedade, erradicar o analfabetismo
é imperativo e esta concepção parte do entendimento que a leitura é
imprescindível, por causa do grafocentrismo, ou seja, “tudo que somos,
fazemos e compartilhamos passa necessariamente pela escrita”, pois
mesmo nas situações em que se ler um texto, há oralização da escrita.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 80


Nesse sentido, é importante enxergar a relevância da prática do le-
tramento como proposta de ensino e aprendizagem da leitura e escrita,
principalmente quando se apoia na concepção de linguagem como um
ato social, uma vez que se transforma nas interações sociais, até porque
o letramento é uma prática social: “letramento é o que as pessoas fazem
com as habilidades de leitura e escrita, em um contexto específico, e
como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e
práticas sociais” (SOARES, 2004, p. 72).
Frisa-se, então, que para se formar alunos leitores e produtores
proficientes aptos para compreender e produzir textos com proprieda-
de, precisa-se trabalhar em sala de aula numa perspectiva de letramen-
to, distanciando-se de práticas engessadas, que o aluno apenas repete
informações, de forma robotizada, decodificando, ou melhor, decifrando
código, sem sequer entender o que escreve ou oraliza.
Nessa circunstância, acredita-se que uma das formas de envolver o
discente em uma cultura letrada, apto a compreender o contexto social
em que está inserido é por meio do letramento literário. Sabe-se que há
diversos tipos de letramentos, mas este estudo tem como foco o literá-
rio, pois ampara-se no entendimento que este tipo de letramento pode
formar leitores críticos, preparados para lerem contextos histórico, so-
cial e cultural por meio da literatura, isto significa que não se trata de se
trabalhar com fragmentos de textos totalmente descontextualizados,
é necessário mergulhar o estudante em um mundo literário a fim de
fazê-lo viajar e refletir sobre o autor, cada momento e cada temática
abordada no texto.
De acordo com Souza e Cosson (2011) o letramento literário é um
tipo de letramento singular, porque tem uma relação diferenciada com
a escrita. Os autores esclarecem que a literatura desempenha um lugar
específico em relação à linguagem, porque torna “...o mundo compreen-
sível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores,
sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006b, p. 17).
Enfim, entende-se que trabalhar com leitura numa perspectiva de
letramento literário, propicia uma maneira extraordinária de se per-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 81


ceber no mundo, por isso defende-se que a escola é um dos principais
agentes que pode facilitar a construção do conhecimento formando lei-
tor crítico-reflexivo, distanciando o aluno de uma prática mecanizada.

O dito e o não-dito na literatura: um olhar sobre recortes


discursivos harry potterianos de J.K Rowling

A pesquisa se caracteriza por uma abordagem qualitativa-descri-


tiva que “tem como objetivo primordial a descrição das características
de determinada população ou fenômeno, ou, então, o estabelecimento
de relações entre variáveis.” (GIL, 2002, p. 42), ou seja, são expostos e
interpretados alguns fenômenos, sequências discursivas da saga Har-
ry Potter. Contudo, Cabe salientar, ainda segundo Gil (2002, p. 42), que
“há, porém, pesquisas que, embora definidas como descritivas com base
em seus objetivos, acabam servindo mais para proporcionar uma nova
visão do problema, o que as aproxima das pesquisas exploratórias.” –
possivelmente é o caso da saga Harry Potter, pois por ser uma obra li-
terária que envolve termos como magia e bruxaria, criou-se uma visão
inadequada sobre essa narrativa literária (como sendo prejudicial para
formação dos leitores).
Por isso este estudo centrou-se em sequências discursivas da saga
de livros Harry Potter, a qual foi escrita pela autora J. K. Rowling, nas-
cida em Yate, na Inglaterra, com estudos clássicos na Universidade de
Exeter. Sua obra Harry Potter conta a história do garoto Harry (cujos
pais foram assassinados) que vive com seus tios adotivos e o seu primo,
com os quais possui uma convivência não agradável. Após descobrir ser
bruxo, Harry vai para a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde
faz novas amizades e, também, descobre verdades sobre seus pais – que
foram assassinados por um bruxo das trevas que almeja poder abso-
luto ao ponto de controlar o Universo mágico. Eventualmente, Harry

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 82


confronta o vilão da saga e seus seguidores, mas não sozinho, ele tem a
ajuda de seus amigos.
Os discursos a seguir não se referem ao ato de falar publicamente,
mas a posicionamentos ideológicos, ou seja, os personagens (tios) trans-
parecem sua opinião ideológica sobre o personagem principal da saga
Harry Potter, não só nas ações, como também nas sequências discursi-
vas:

Durante anos, tia Petúnia e tio Válter tinham alimentado esperanças de


que, se oprimissem Harry o máximo possível, seriam capazes de acabar
com a magia que houvesse nele [...] O máximo que podiam fazer, porém,
era trancar os livros de feitiços, a varinha, o caldeirão e a vassoura de
Harry no início das férias de verão e proibir que o menino falasse com os
vizinhos (H.P.P.A., 2015g, p. 8).

Referência a um suposto presidiário que fugiu da prisão:

– Quando é que eles vão aprender – exclamou tio Válter, batendo na mesa
com o punho grande e arroxeado – que a forca é a única solução para
gente assim? – É verdade – concordou tia Petúnia, que ainda procurava
ver alguma coisa por entre a trepadeira do vizinho. (H.P.P.A., 2015g, p. 18).

Esses são posicionamentos que mostram o caráter familiar com


o qual a criança Harry convive. Desde o início, já são estabelecidas re-
gras de convivência que o garoto deve seguir como “não faça perguntas”
(H.P.P.F., 2015c, p.20) ou quando, no segundo livro (H.P.C.S., 2015, p.20),
após um incidente com as visitas que estavam na casa discutindo ne-
gócios, tio Valter explode com Harry, dizendo que irá prendê-lo e o faz
pondo grades nas janelas e uma portinhola para passar a comida pela
porta, ou seja, uma prisão domiciliar.
Noutra ocasião, Harry está respondendo às perguntas da irmã do
tio Valter no terceiro livro da saga, e o garoto promete se comportar
para conseguir viajar com seus colegas da escola, porém, a irmã do tio
Valter faz declarações de como deve ser o tratamento disciplinar para
com o menino Harry, visto que, para ela, ele é uma pessoa rebelde e me-
recedoras de castigos:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 83


– Eu não aceito essa conversa fiada de não bater em gente que merece.
Uma boa surra de vara resolve noventa e nove casos em cem. Você já
apanhou muitas vezes?
– Ah, já – respondeu Harry –, um monte de vezes. Tia Guida apertou os
olhos.
– Não gosto do seu tom, moleque. Se você consegue falar das surras
que leva com esse tom displicente, obviamente não estão lhe batendo
com a força que deviam. Petúnia, se eu fosse você escreveria à escola.
Deixaria claro que os tios aprovavam o uso de força extrema no caso
desse moleque (H.P.P.A., 2015g, p. 23).

De acordo com Orlandi (2015, p. 29) existe uma “memória discur-


siva” (interdiscurso), isto é, todo um conjunto de dizeres sobre determi-
nado assunto que já foi dito no decorrer da história por algum indivíduo
em algum lugar específico – o já-dito – e é todo esse conjunto de “senti-
dos já ditos por alguém, em algum lugar, em outros momentos” que são
resgatados (mesmo que inconscientemente) para formulação de novos
dizeres, o que é dito ‘agora’ (intradiscurso).
Assim sendo, A naturalidade e a forma que os personagens da saga
Harry Potter, os parentes do menino, têm em construir seus discursos
(o dito na narrativa) só revelam posições extremistas e preconceituosas,
as quais podem ser relacionadas a discursos extraliterários que aconte-
ceram em épocas passadas (o já-dito/implícito/o não-dito) e até mesmo
nos dias presentes
Diante desse cenário, é possível afirmar que as sequências discursi-
vas acima acontecem no mundo humano da história, todavia, no univer-
so mágico criado por JK. Rowling, a divisão social é feita basicamente
por causa do tipo de sangue enquanto estrato social, no qual o indivíduo
se encontra: Sangue-Puro (pessoas de família bruxa), Mestiços (bruxo
cujo um dos parentes não é bruxo), Nascido-Trouxa (bruxos com pais
não-bruxos), Aborto (bruxos que nascem sem magia) e Trouxas (pesso-
as não bruxas). Dessa distinção, é que se podem perceber as relações
ideológicas, pois segundo Michel Pêcheux (2014b, p. 82) “todo processo
discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes”, o embate de
ideologias se acha presente no discurso.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 84


Assim, em HPCS, quando Hermione, amiga de Harry, sofre bullying
na escola por parte de Malfoy ao dizer: “Ninguém pediu sua opinião,
sua sujeitinha de sangue ruim” (H.P.C.S., 2015, p. 88), percebe-se nessa
fala um posicionamento ideológico de cunho segregador, não que te-
nha sido criado do nada pelo personagem Malfoy, pelo contrário, essa
fala preconceituosa surge de práticas antigas e enraizadas nesse uni-
verso mágico: “Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que
se acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas
chamam de sangue puro” (H.P.C.S., 2015, p. 90).
A voz da personagem Malfoy, no romance, não está simplesmente
transmitida na superfície romanesca, como se a autora só reproduzisse
sua fala sem objetivar algo a mais. Nele, essa voz revela seu lugar de fala,
aspira a uma significação social (mesmo sendo uma posição negativa,
segregadora), uma vez que ela serve para explicitar o ponto de vista da
personagem sobre o mundo e mostrar que não só ele, mas outros na
história vivem e agem dentro de seus universos ideológicos. Dessa for-
ma, a leitura dessas vozes permite não só perceber a existência de vozes
sociais, mas também a reflexão sobre elas.
A fala sangue ruim que dialoga com práticas já vivenciadas desse
mesmo universo mágico só deixa claro que a relação com o interdiscur-
so mostrado por Pêcheux é evidente e característica de uma formação
discursiva. A título de exemplificação , basta analisar os discursos de
personagens no sétimo livro: “– Se quer a minha opinião, os traidores
do sangue são tão nocivos quanto os sangues ruins. Bom-dia, Runcorn.
– Bom-dia, Ministro” (H.P.R.M., 2015d, p. 186).
Essa sequência discursiva do sétimo livro sobre traidores do san-
gue, o dito discursivo, revela o já-dito de toda a narrativa (o preconcei-
to com aqueles considerados não puros). No plano ideológico, há aqui
lugares de fala em jogo, mesmo que de forma explícita ou não: a voz
daqueles que são perseguidos e estão em luta por sua aceitação (consi-
derados sangues ruins); a voz daqueles que se juntam aos perseguidos
(considerados traidores do sangue) e a voz daqueles que almejam uma
hegemonia racial e preconceituosa (considerados sangue-puros).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 85


Dessa estratificação social, desse diálogo de vozes sociais ou, como
diria Bakhtin (2015) heterodiscursividade, a ressignificação de sentidos
está presente, uma vez que o grupo marginalizado na narrativa harry
potteriana luta por seu espaço na sociedade, querendo dar uma nova
significação à sua existência, não mais aceitando o sentido de sangue-
-ruim – não porque se viam assim, mas porque a voz dos outros (san-
gues puros) impunham à sua existência esse sentido preconceituoso e
segregador, por isso a necessidade da literatura ser, também, espaço de
re(existência) e ressignificação.
Paralelo a isso, no oitavo livro, Harry Potter and the Cursed Child13,
H.P.C.C. [1], J.K. Rowling traz o que seria desse universo fantasioso se o
Voldemort, o vilão da saga, conseguisse a vitória e a implementação de
sua ideologia como a dominante – Um mundo em que a escola de magia
e bruxaria de Hogwarts mantinha os considerados sangue-ruins presos
nas masmorras da instituição de onde se podiam ouvir seus gritos. Um
lugar onde havia campos de concentração que estavam cheios bruxos
considerados sangue-ruins, os quais eram torturados e queimados vi-
vos, enquanto os não-bruxos sofriam pequenos atentados por parte dos
bruxos (H.P.C.C., 2016), ou seja, um mundo cuja ideologia suprema era
extremista ao ponto de escravizar e perseguir os que não eram conside-
rados semelhantes.
Por fim, ao se analisar essas sequências discursivas, é possível afir-
mar que a saga Harry Potter apresenta vozes sociais (heterodiscursivi-
dade) nas interações de seus personagens. Vozes que representam tanto
um lugar de (re)existência, como também lugar de ressignificação, pos-
sibilitando não só pensar como a interação dessas vozes representam
os embates ideológicos e suas consequências para a vida humana, mas
garantindo um novo olhar sobre essas ideologias – ao estabelecer o di-
álogo com o passado, o presente e com o futuro.

13 Foi utilizada a versão em inglês do oitavo livro para consulta: ROWLING, J. K.; THORNE, Jack;
TIFFANY, John. Harry Potter and the Cursed Child: Parts One and Two. Scholastic, 2016.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 86


Considerações finais

A análise de recortes discursivos da saga de livros Harry Potter evi-


dencia a heterodiscursividade presente na narrativa literária, uma vez
que as vozes das personagens, além de serem elementos constitutivos
da criação artística, sinalizam visões de mundo, ou seja, inclinações ide-
ológicas na estrutura social arquitetada pela autora.
Mediante a análise de corpus, percebeu-se que as hipóteses de que
há personagens que deixam sua ideologia implícita e/ou explícita, a qual
pode servir para reflexão crítica sobre o mundo, promovendo caminhos
para ressignificar a existência, atribuindo a ela novos sentidos, foi com-
provada.
Dessas vozes das personagens, as relações entre o que é dito e ou
não-dito, isto é, como os discursos são construídos na dinâmica da in-
teração, podem ser constatadas na medida em que as personagens não
criam seus enunciados do zero, no sentido de que foram criações origi-
nais suas, mas que são discursos que existem graças a outros discursos
do passado dentro da história Harry Potteriana. Desse modo, o já-dito
retorna nas vozes desses personagens, sinalizando os lugares de falas
sociais e os embates ideológicos.
Tendo em vista a possibilidade desse retorno discursivo, as per-
sonagens, ou melhor, os grupos sociais presentes na saga literária em
foco, podem evidenciar seus lugares de fala (como os grupos a favor da
supremacia daqueles considerados possuidores de sangue puro) ou res-
significar sentidos/valores (como os grupos perseguidos, preconceitu-
osamente chamados de sangue-ruim, os quais buscam serem respeita-
dos e aceitos, ou seja, buscam ressignificar sua existência)
Assim sendo, a leitura não somente da obra literária Harry pot-
teriana, mas também de outras criações artísticas, nas quais a hetero-
discursividade está presente e que as vozes das personagens são vistas
como vozes sociais, pode garantir uma reflexão sobre a existência de
ideologias presente na estrutura social, possibilitando uma reflexão so-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 87


bre que valores essa ideologias representam, que lugares de fala são evi-
denciados (e outros não) e, por último, como pensar a ressignificação da
existência, uma vez que a narrativa literária pode exercer o diálogo com
os tempos passados para se compreender o que acontece no presente
a fim de melhorar o futuro - por isso a necessidade de um letramento
literário.
Por fim, é importante ressaltar que este trabalho não intenciona
esgotar, nem restringir o estudo da literatura e da análise discursiva, na
realidade, os recortes dessa saga de livros foram instrumentos de análi-
se exclusiva de reprodução de discursos ideológicos, porém, propõe-se,
como visto acima, não só mais um olhar, entre outros, sobre esta obra,
mas que outras obras literárias sejam objetos de ensino/análises a fim
de ocasionar reflexão, mudança de comportamento e impulsionar uma
formação humana mais sensível, solidária e igualitária.

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 90


Projeto literatura e diversidade sexual:
letramento e diversidade

Roberto Muniz Dias

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-5

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 91


Introdução

O Projeto intitulado Literatura e Diversidade sexual foi financiado


com os recursos da Bolsa de Fomento à Literatura da Fundação Biblio-
teca Nacional e Ministério da Cultura, em 2016, para circulação de obras
de autores brasileiros. Este projeto realizou atividades relacionadas às
discussões sobre a identidade de gênero no âmbito escolar, utilizan-
do a literatura LGBT como viés metodológico e operacional. Alunos do
ensino médio participaram de palestras e oficinas nas quais questões
relativas a gênero, bullying e LGBTfobia foram trabalhados por ativida-
des prática de letramento: dialógica, lúdica e crítica. A relevância deste
projeto se justifica pela importância do papel da escola na formação da
criticidade do mundo e da prática social que cercam os alunos em seus
letramentos. Segundo a professora LOURO (1997), a escola é um espaço
de abrigamento das diferenças. Portanto, debater as relações de gênero
por meio da literatura (letramento literário), trazendo a discussão da
representatividade de personagens LGBTQIA+ e permitindo a reflexão
sobre as problemáticas acima citadas, é reforçar o papel social da escola
e seu fim democrático. Para tanto, o projeto visa a ampliar a discussão
sobre do papel social do letramento COSSON (2009) performado pelos
educadores sobre suas ações no cotidiano da escola, bem como da esti-
mulação e reflexão por meio da leitura da literatura casuística.

Considerações iniciais

De acordo com o III Retratos de Leitura no Brasil, as regiões do


Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentam grandes déficits de leitura
entre os jovens em fase de alfabetização. O intuito deste projeto foi de
levar, por meio de oficinas literárias, palestras e discussões temáticas
sobre sexualidade e gênero, a estas populações carentes de cultura e in-
formação, além destes temas propostos, noções de cidadania e direitos
humanos. A literatura específica levada para estes alunos promovia a

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 92


discussão destas questões, viabilizadas por meio da leitura, discussão e
compreensão dos papéissociais. Empoderados do conhecimento crítico,
de independência e autonomia, estes alunos reforçam a percepção de
inclusão social, tornando-se mais atuantes e cônscios de seus papéis na-
comunidade. Desta forma, a noção de pertencimento fortalece e permi-
tiu a estesindivíduos consciência crítica de seus direitos e valores como
ser participante.
A importância deste projeto residiu na promoção do debate sobre
assuntos acerca da diversidade sexual, com o intuito de trazer à tona
questões sobre inclusão social, respeito à diversidade sexual e questões
sobre gênero por meio de oficinas de leitura e escrita, envolvendo tam-
bém encenação de peça de autoria do escritor citado anteriormente.
Devido à experiência literária do escritor com obras de pesquisa e fic-
ção, palestras, feiras e eventos relacionados à temática LGBT e a função
desempenhada junto à Coordenação de Direitos da Diversidade no go-
verno do Distrito federal, foi confeccionada uma cartilha de orientação
sobre as atividades do projeto que consiste: apresentação do projeto,
discussão acerca de gênero, Literatura LGBT, oficinas de escrita e leitu-
ra dramática.
Portanto, o objetivo deste projeto era de fomentar a leitura, pro-
movendo a reflexão dentre os alunos do E nsinoMédio de escolas públi-
cas das regiões metropolitanas das cidades de: Norte (Belém e Manaus);
Nordeste (Fortaleza e Teresina) e Centro-oeste (Brasília e Goiânia).
As discussões e reflexões trazidas e construídas nesse projeto tive-
ram suporte, inicialmente nas metodologias de pesquisa bibliográfica
e documental. E, num segundo momento, foi empreendida a pesquisa
de caráter autobiográfico. A escolha do material bibliográfico percorreu
alguns dos diversos teóricos que discutem a temática de educação e di-
versidade LGBT. Na pesquisa autobiográfica, descreveu-se uma prática
pedagógica, por meio das oficinas e produções escritas, desenvolvidas
em sala de aula pelos/com os alunos do Ensino Médio de algumas esco-
las das cidades elencadas acima.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 93


Considerando as ideias de Abrahão (2006), as narrativas autobio-
gráficas podem ser entendidas em seu tríplice aspecto: como fenômeno
– o ato de narrar-se; como método de investigação – recolha e constru-
ção de fontes para pesquisa e, ainda, como processo de autoformação e
de intervenção – reflexão sobre as dimensões da formação, no que con-
cerne à construção identitária de professores e formadores. Partindo-se
desta perspectiva, compartilharam-se saberes e produziram-se conhe-
cimentos sobre a pedagogia utilizada (professores, gestores) e sobre os
próprios alunos que figuraram neste processo de ensino- aprendiza-
gem, bem como para os objetivos dos assuntos aqui mencionados que
foram tratados na sala de aula.
O aporte teórico para o presente projeto baseou-se nas contribui-
ções teóricas de Louro (1997; 2012),Butler (2003), Teixeira (2016), Cos-
son (2016), Bettelheim (2007) entre outras fontes como revistas, sites
de conteúdo educacional que trabalham com as questões relativas ao
letramento e estudo de gênero e diversidade sexual.
Num primeiro momento a metodologia utilizada se centralizou
na aula expositiva sobre assuntos relacionados à diversidade sexual,
orientação de gênero, linguagem inclusiva, letramento literário cen-
trado em textos de literatura LGBT, leis e bullying.
Num segundo momento, houve a leitura, análise e compreensão
de obras literárias específicas de autoria do proponente do projeto.
Por meio de técnicas de leitura e interpretação de temas (sequências
didáticas), enredos e personagens, foram estudados suas estruturas
específicas de construção de ideologias, personalidades, meio social
e interpessoalidade, fazendo paralelo às situações específicas e que
fossem protagonizadas por pessoas comuns, pelo público-alvo deste
projeto ou de histórias vivenciadas por outrem. As obras escolhidas
pelo proponente/autor fazem parte de sua bibliografia escolhida para
este projeto e que foram anexadas ao projeto inserido na plataforma
do SalicWeb.
Num terceiro momento, no caso das oficinas, foram trabalhadas as
tirinhas com temáticas LGBT, que foram criadas especificamente para

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 94


este projeto. Tais tirinhas são exercícios de provocações do pensamento
crítico trabalhados nos encontros anteriores durante a aula expositiva
e as leituras. As peças produzidas foram lidas de forma espontânea pe-
los alunos que se prontificaram a dramatizá-las. Segundo Cosson:

de qualquer maneira, a dramatização de um texto, seja ele um texto


propriamente teatral ou um texto que será transformado em teatral, é
um momento de grande interação dos alunos com o texto e entre eles
mesmos, além do impacto sobre audiência. Talvez por esta característica
de sociabilidade, a dramatização nem sempre é focada pelo aspecto da
leitura, antes pelos valores da disciplina, concentração e autoexpressão,
sobretudo como um recurso contra a timidez e baixa autoestima
(COSSON, 2020, p. 110).

Os alunos assumiram os papéisdas personagens, interagindo entre


eles, construindo a ação sob os estímulos das oficinas, senso comum,
construções pessoais acerca da sexualidade; estereótipos e situações e
experiências de vida. As oficinas trabalhavam a sensibilidade adquirida
para a construção dos textos. Atividades como inversão de gêneros ou
orientações sexuais eram sugeridas como proposta de criação de reda-
ções, ora narrativas ora descritivas nas quais os alunos exercitavam a
criatividade. Imediatamente, facultava-se aos participantes, manifesta-
ção de experiências relacionadas à discussão para promover o debate
sobre assuntos que foram suscitados nas obras específicas, bem como
na aula expositiva. Para conclusão das atividades, dividiu-se a turma de
alunos em grupos de três, mediante algumas rápidas instruções sobre
o texto teatral, eles encenaram o texto da peça incluído nas obras tra-
balhadas.
De posse de todas estas informações, experiências e debates pro-
movidos foi compilado esse material para futura produção de material
bibliográfico: a produção de um livro como produto final.
Foram utilizadas todas as tecnologias possíveis que possam aju-
dar na viabilização dos trabalhos, como livros, projetores, laptops,
internet, quadros, slides e cartazes. Bem como das estruturas que
escolas, bibliotecas ou universidades poderiam disponibilizar para
concretização das tarefas acima mencionadas.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 95


A motivação deste projeto foi a possibilidade de trazer a discussão
os assuntos ligados às questõesde gênero utilizando o letramento lite-
rário com base em textos de ficção e teatro que protagonizassem perso-
nagens LGBTQIA+ como viés para o ensejo do debate sobre diversidade
sexual e de gênero. O desafio inicial era aliar as duas categorias de dis-
cursos para que se viabilizasse o debate e a reflexão dos termos propos-
tos e aqueles que porventurase tornassem imbricados com o tema.
O primeiro slide da apresentação deste projeto contempla os ín-
dices de violência homofóbica no Brasil. Dados colhidos pela Secreta-
ria dos Direitos Humanos da Presidência da República. Este relatório
consistia na provocação inicial aos alunos para que adentrássemos em
temas tão sensíveis à nossarealidade, tanto na sala de aula, bem como
fora dela.

Fig. 1 - Dados da homofobia

Fonte: Relatório sobre a violência homofóbica no Brasil-Secretaria Nacional de


Direitos Humanos.

A intenção desta abordagem era de sensibilizar os alunospara a im-


portância do assunto, trazendo dados oficiais desta realidade LGBTfó-
bica que coloca o Brasil no topo dos países que mais assassinam a sua
população LGBT. Este é o ponto de partida para a discussão casuística.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 96


E a escola é o ponto de partida para que as definições dos papéissociais
sejam seguidas, reproduzindo uma forma padrão de comportamento,
sedimentada em conceitos, discursos, currículos, ações e ideias em
dissonância com a dinamicidade da nossa sociedade. Segundo Louro
(2013, p. 43), “Nós, educadoras e educadores, geralmente nos sentimos
pouco à vontade quando somos confrontados com as ideias de proviso-
riedade, precariedade e incerteza – tão recorrentes nos discursos con-
temporâneos”. Ou seja, o professor (observe o uso do gênero masculino
para representar o universo de professores), encerra-se no seu mun-
dode referências e escolhas engessadas por um conformismo e inércia
diante das mudanças sócioculturais.
A discussão se inicia com um processo simples de análise dos da-
dos apresentados no relatório. A constatação é feita de forma imediata,
resumindo como se dá o processo de violência homofóbica por conta
do preconceito existente na sociedade que não suporta o peso da dife-
rença, ao ponto de eliminá-la. Mas, como relatado anteriormente, esta
primeira apresentação constitui apenas umelemento provocativo, para
chamar a atenção deste alunado para o assunto. Tese perfeita para se
encontrar, ou pelo menos encontrar, os indícios desta violência de gê-
nero e orientação sexual. Desta forma, os alunos levam a temática para
a prática social de suas experiênciasdentro e fora da escola, tendo como
resultado imediato a discussão da violência de gênero como parte inte-
grante do componente crítico-social suscitado pelas explanações e re-
gistrosoficiais.
Ainda segundo Louro (2013), embora exista uma noção singular
de gênero e sexualidades, a escola permanece neste panóptico lugar de
manter uma estrutura centralizadora, legitimando uma masculinidade
e uma feminilidade na conformação dos gêneros. Ela ainda prossegue
na esteira deste entendimento, e sugere que o papel dos educadores
seria de desestabilizar estas “verdades únicas”, revelando os interesses
políticos de uma hegemonia comportamental. Neste sentido, é impor-
tante identificar pequenos, mas relevantes aspectos desta valorização
de estereótipos; e a provável primeira manifestação destas verdades,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 97


parte das armadilhas providas pela nossa linguagem. Fato constatado
nas discussões na sala de aula em que os alunos comprovavam entre
si a representação dos estereótipos em suas falas e atitudes; textos e
discursos nos quais o machismo e o sexismo é demonstrado sistemati-
camente, operado pelo senso comum.
A linguagem funciona como primeiro elemento transformador
da capacidade do indivíduo de se relacionar, interpelando, discutindo,
dialogando. No entanto, pode ser um instrumento de conquista e su-
pressão de singularidades. Na escola não poderia ser diferente, vez que
os currículos, as normas, as formas de avaliar, o material didático re-
produzem as ideologias hegemônicas no que diz respeito aos compor-
tamentos padronizados. Invariavelmente, ainda por uma questão de a
nossa própria Língua Portuguesa flexionar os adjetivos e substantivos
no masculino, refletindo uma verdadeira exclusão dos gêneros e privi-
legiando o sexismo linguístico. Os resultados obtidos neste momento
são latentes, vez que alguns alunos observaram nos seus próprios li-
vros didáticos a escolha da flexão do masculino plural para as senten-
ças onde os gêneros são tratados; não somente quanto à gramática,
mas em todas as outras disciplinas.

Fig. 2- Linguagem inclusiva.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 98


Neste momento, da apresentação do slide acima, os alunos são
confrontados com a própria realidade da sala de aula. São instigados
a observar o uso dos exemplos e da própria linguagem assumida pe-
los Não foi à toa que se preferiu a utilização do uso do “@”, como ele-
mento neutralizador da marca do gênero neste artigo. Esta neutraliza-
ção também é demonstrada aos alunos para que tenham contato com
esta linguagem inclusiva, que não marca os gêneros e contempla uma
acessibilidade maior e sentimento de pertença. Para Guacira Louro, “a
linguagem institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pelo
ocultamento do feminino, e sim, também, pelas diferentes adjetivações
que são atribuídas aos gêneros” (1999, p. 67). O objetivo foi promover
este trabalho de conscientização do poder da linguagem em detrimento
das singularidades de indivíduos, plenamente trabalhada pelas tirinhas
usadas neste projeto que ilustram a escolha do masculino como forma
de manutenção e perpetuação de um poder patriarcal, marcadamente
machista e misógino.

Fig. 3 - Tirinhas alusivas.

Fonte: Revista Katita.

As relações são performadas por meio da repetição dos padrões


estabelecidos nesta constância de binarização do que é ser homem e do
que é ser mulher; quais os estigmas de ser um ou outro; quais a possibi-
lidades e interditos e obviamente, o que é aceitável ou não. Nesta pers-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 99


pectiva, facilmente os alunos vão entendendo que o mundo e a prática
que os cercam é mediada pelas linguagens utilizadas neste processo
de interrelação pessoal. Momento emque eles próprios relatam suas ex-
periências com a questão vocabular, especialmente nas aulas de portu-
guês; nos cumprimentos direcionados ao grupo (Bom dia meninos, bom
dia a todos). A percepção é nítida, também, quando se promove uma
reversão nestes cumprimentos, fato que os meninos não aceitam serem
tomados por um todo feminino.

A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma


o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. Informa o
‘lugar’ dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Através
dos seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles/as que
deverão ser modelos e permite, também, que os sujeitos se reconheçam
(ou não) nesses modelos [...] É indispensável questionar não apenas o
que ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/
as alunos/as dão ao que aprendem. Atrevidamente é preciso, também,
problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui,
até mesmo aquelas teorias consideradas‘críticas’). Temos de estar
atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o
sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela frequentemente carrega e
institui. (LOURO, 1997, pp. 58;64).

A escola torna-se, então, este lugar de afirmação das diferenças,


não porque elas devam existir, mas devido à qualidade própria da sua
existência de abrigamento das diferenças; e como elemento fomen-
tador dessasdiferenças por meio da perpetuação de valores, precon-
ceitos, ideologias hegemônicas do comportamento, a resistência à
diferença deve ser diariamente combatida. A diferença surge como
elemento dinamitador dessesbinarismos, das polarizações comporta-
mentais do que é ser masculino e ser feminino. Alcançamos então, a
ligeira compreensão da existência de masculinidades, feminilidades,
as expressões de sexualidades e expressões diversas de gêneros.
Guacira Louro faz um chamamento para que os docentes sejam de-
safiados (e deixar-se desafiar) pela emergência deste novo, que instiga
deste profissional sensibilidade para ouvir, ver e sentir as múltiplas for-
mas de arranjo destes sujeitos. Segundo ela, “o olhar precisa esquadri-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 100


nhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se nas pessoas,
nos seus gestos, suas roupas; é preciso perceber os sons, as falas, as
sinetas e os silêncios’’ (LOURO,1997, p. 59).
Um dos livros discutidos durante as oficinas deste projeto foi o
trabalho de conclusão do curso de letras, intitulado: O príncipe, o mo-
cinho ou o herói podem ser gays. Neste livro, em que a capa da segunda
edição ganhou o busto de um homem simulando a clássica forma com
a qual Clark Kent abria sua camisa para transformar-se em super-ho-
mem. A análise semiótica é de suma importância, vez que trabalha os
estereótipos construídos pelo imaginário deste super-herói, embora
sua orientação sexual esteja sempre questionada, como se fosse im-
possível a existência de um herói homoafetivo.
Por esta razão, a temática é trazida para este campo ontológico,
para iniciar a discussão sobre a análise do discurso que sempre tratou
dos estereótipos necessários para a construção dos papeis sociais de
gênero. Segundo Bettelheim,

contos de fadas fornecem percepções profundas que sustentaram a


humanidade nas longas vicissitudes de sua existência, uma herança
que não é revelada às crianças sobe nenhuma outra forma tão simples,
direta, e acessível (2007, p. 37).

Isto reflete que esta literatura sempre foi uma forma de reprodu-
ção e perpetuação dessesvalores que preconizam valores absolutos de
uma heteronormatividade e hierarquização sexistas de um machismo.
Representam a memória discursiva dos sujeitos que estão inscritos no
conjunto social.
Durante as intervenções com os alunos, atemática do conto de fa-
das é trazida aos alunos que são instados a contarem as histórias, cada
um ao seu tipo de narração, repetem as mesmas situações. No entanto,
são questionados a repensar o papel das personagens, principalmente as
personagens femininas que se mostram indefesas e delicadas. Por outro
lado, os personagens masculinos são os provedores da redenção e salva-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 101


ção destas meninas indefesas. Obviamente, esta provocação serve para
que eles reflitam sobre o discurso por trás da ideologiaexistentenos-
contos.Para Cleudmar Fernandes, “os aspectos ideológicos e políticos,
no discurso, apresentam-se semanticamente relevantes, pois refletem
na interação entre os sujeitos, o lugar histórico social onde o discurso é
produzido”. E os meninos tomam consciência disso, quando analisamos,
segundo as análises de Bruno Bettelheim, os aspectos psicológicos das
personagens do conto João e o pé de feijão. Quando colocados em con-
tato com a abordagem desta psicologia por detrás das simbologias, que
revelam a vaca sem leite como a mãe que desmama o filho, e este sendo
instado a se transformar no homem da casa para trazer proventos para
a família miserável, os alunos começam a refletir sobre os papeis que
são permeados pelos valores adotados na sociedade.

Mas, abatendo o pé de feijão, João não se liberta apenas de uma imagem


do pai como ogro destrutivo e devorador; também abandona sua crença
no poder mágico do falo como meio para conseguir todas as coisas boas
da vida. Cortando o pé de feijão, João abjura as soluções mágicas e torna-
se ‘verdadeiramente um homem’. (BETTELHEIM, 2007.p. 229)

Talvez seja mais difícil lidarcom estas informações porque não há


uma direta associação entre o ogro e o pai, e o pé de feijão e o falo, fato
que deixaos alunos reflexivos sobre as novas imagens que são produzi-
das com a reinterpretação.
Além dos contos de fadas reanalisados, há um momento para se
pensar na produção contemporânea deste gênero literário, no qual as
personagens ganham novos discursos inclusivos e representatividade
positiva em relação a temas e personagens. Neste momento são cita-
dos livros infantis que abordam a temática LGBT, tais como Tango and
Tango makes three, King and King e do escritor piauiense Flávio Brebis,
Tuda, que protagoniza uma personagem infantil com uma orientação
transexual.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 102


O livro ‘Tuda: uma história de identidade’ demonstra por meio de suas
ilustrações e de uma forma bastante poética e simbólica, conceitos
básicos de identidade de gênero, direitos humanos, a importância dos
direitos e respeito às diferenças, conteúdos estes que, na maioria das
vezes, são pouco trabalhados em sala de aula. Nesse contexto, a escola deve
se constituir como um espaço democrático, procurando desempenhar
sua função social principal de proporcionar momentos de debates e
discussões acerca de questões sociais e permitir o desenvolvimento da
criticidade no indivíduo (NOGUEIRA, 2016).

A ideia é permitir que a literatura fosse um caminho para a discus-


são de temas outros que visibilizassem as problemáticas de nossa so-
ciedade, não somente promovendo o debate sobre a homossexualidade,
mas a violência de gênero que é reforçada pelo machismo e sexismo na
linguagem, no comportamento e até mesmo na pedagogia de professo-
res e educadores. A intenção deste diálogo com os alunos visa criar sen-
so crítico em relação aos assuntos mais urgentes no que diz respeito à
diversidadesexual e a dignidade destas pessoas, garantindo um espaço
para a compreensão de direitos, anseios e necessidades que são ineren-
tes a toda e qualquer subjetividade.
As oficinas serviram para por em prática as ideias trabalhadas na
palestra introdutória, com base nas atividades sugeridas na cartilha
preparada especificamentepara este projeto. A partir deste momento
os alunos(a)s já haviam ampliado o horizonte de expectativas (BORDI-
NI; AGUIAR, 1993), reproduzindo com suas palavras e impressões as
realidades trabalhadas nos textos e com o suporte da cartilha, eram
instados a escrever pequenos textos.
A cartilha consiste num programa de orientação sobre o projeto
em si e as atividades a serem desenvolvidas durante os três dias de
encontros. Seu sumário se subdivide em: I PARTE (1.Apresentação do
projeto, 2.Apresentação das obras escolhidas, 3.Desconstruindo o gê-
nero, 4.Literatura e Diversidade: 4.1 O que é Literatura?, 4.2 Literatura
homoafetiva; 5. Roda de Conversa: 5.1. Literatura infantil de temática
homoafetiva; II PARTE (6.Oficina de escrita, 7.Leituras dramáticas, 8.
Glossário, 9. Referências Bibliográficas)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 103


Fig. 4 - Ilustrações da cartilha.

Fonte: Cartilha do projeto Literatura e diversidade sexual.

Instados a produzir textos mediante provocações das tirinhas su-


geridas, diversos temas eram abordados, como: preconceito de gênero
e orientação sexual, bullying, LGBTfobia entre outros. Os alunos eram
estimulados a escrever sobre esta experiência nova de entender o Ou-
tro, apontando dificuldades, medos, superações, direitos, interditos, li-
berdades e questões relacionadas à cidadania.
Dividida em várias atividades, as oficinas permitiam que eles ex-
pusessem seus pensamentos adquiridos, suas experiências próprias e
análises conjunturais da sociedade em que vivemos. Ora eles deveriam
escrever textos em que tematizassem suas próprias vidas, sentimentos
e experiências, numa tentativa de resgate de valores internos e da auto-
estima; ora eles trabalhavam a possibilidade de se imaginarem na outri-
dade da experiência, neste momento, deveriam “fazer de conta” que per-
formariam outros identidades, fato que realmente as colocariam neste
exercício ontológico de ver o outro e todas as suas dificuldades.
Ao término desta atividade deveriam relatar, espontaneamente,
suas produções, dividindo com os outros alunos a experiência de como
se viam e como viam o Outro. Aspectos da subjetividade e individuali-
dade foram trabalhados com o objetivo de discutir os temas tratados,
identificando deficiências e potencialidades, tanto em si, como nestes

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 104


Outros. Estas práticas foram construídas e elaboradas com inspiração
nas atividades encontradas no livro: Educação e sexualidade: Identida-
des, família, diversidade sexual, prazeres, desejos, preconceitos, homo-
fobia, organizado por Paula Regina Costa Ribeiro, editora da FURG, em
2008.
A finalização do projeto foi promovida com a atividade de leitura
dramática da peça Uma cama quebrada, por meio de pequenos esque-
tes, trabalhando a questão dos novos arranjos dos afetos, refletindo as
novas exigências da LDBEN, lei 9394/96, que preconiza a utilização das
artes como música, dança e teatro como forma de incentivar o desen-
volvimento pessoal do indivíduo e a preservação da cultura nacional.

Considerações finais

A trajetória do projeto revelou duas realidades: como os alunos es-


tão sedentos do conhecimento das diferenças e como estas diferenças
se equiparam diante de tantas distâncias geográficas. Por outro lado, o
letramento literário com foco na diversidade sexual e de gênero ainda
é tabu como temática dentro da sala de aula. Corolário disso, é a falta
de representação positiva em relação à construção ontológica destas
subjetividades diferentes e que não são retratadas no cotidiano destes
alunos(a)s. Estas constatações refletem a necessidade da leitura como
forma de letramento social, como instrumento de criação de umconhe-
cimento e criticidade em relação aos temas, bem como da velocidade da
dinamicidade das mudanças das estruturas sociais no que diz respei-
to aos papeis sociais desempenhados por esta população jovem. Ao se
estabelecer normas legais e comportamentais os regramentos sociais
criam estes espaços de resistências aos modelos estabelecidos, então a
escola se torna este pequeno microcosmo panóptico. E, portanto, tam-
bém, o espaço para as diversas performatividadese subjetividades.
Neste diapasão, o objetivo do projeto foi alcançado, permitindo que

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 105


os alunos entrassem em contato, por meio de um letramento diferen-
ciado e direcionado. Diante dostextos que lidavam com esta outridade
de perfomações de gênero e de orientações sexuais, com o intuito de
sensibilizá-los quantos as problemáticas do bullying, da violência de gê-
nero, do preconceito linguístico e social pelos quais os indivíduos com
características não hegemônicas passam no dia a dia. Vale relembrar
a postura de uma menina travesti de 14 anos, estudante da escola pú-
blicade ensino médio de Manaus, que estava na idade própria e dentro
da sala de aula.Não se tornou, ainda, estatística de evasão escolar ou de
violência transfóbica. Fato que revelou a importância deste projeto não
apenas na sua imediata destinação como instrumento de informação,
mas, principalmente, como elemento de constatação da real necessida-
de de se acolher aquelas que estariam existencialmente fora de nosso
convívio, e acima de tudo de representatividade positiva de sua subjeti-
vidade.

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 107


Escrita feminina afro-brasileira e a memória
negra em Úrsula, de Maria Firmina dos Reis:
uma leitura em função do letramento
literário

Marcos Antônio Fernandes dos Santos

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-6

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 108


Introdução

Ao ser humano, as diversas manifestações artísticas sempre foram


indispensáveis como ponto de encontro às suas aspirações, estilo de
vida e representação de sua condição social, como forma de denúncia
ou de abstração da realidade. Contudo, as artes não necessariamente
estão obrigadas a representarem ou apresentarem funções que venham
a defini-las como subordinadas a uma finalidade externa, que não em si
mesmas. Comumente o artista toma para si a expressão artística que
mais se adeque ou que apresente uma linguagem capaz de dar forma a
sentimentos, sensações e ideologias, a conteúdos intrínsecos ao espíri-
to.
A literatura vem sendo, desde os primórdios, uma das principais
formas que o homem encontrou de manifestar, por meio do uso da pala-
vra, sua experiência no mundo, acrescida a um estilo próprio de contar
sua condição ou de criar expressões que valorizem o poder da palavra. A
esse estilo próprio coube a distinção entre todo e qualquer fazer escrito
e aquele que se diferencia como representação artística. O artista da
palavra pode dar vazão a uma escrita que reproduza sua criação ou suas
vivências mais íntimas ou mesmo coletivas.
Ao longo dos tempos, a literatura sempre teve íntimas relações
com os acontecimentos da humanidade, dessa forma, literatura e his-
tória são aspectos indissociáveis, muito embora tenha havido tempos
em que a exclusão de determinados tipos sociais foi responsável pelo
silenciamento da voz e da memória - fatores relacionados ao percurso
histórico-social da humanidade - refletindo nos modos de (re)produção
da arte literária.
Alguns acontecimentos históricos, como por exemplo a escravidão,
foram temas frequentemente relatados na escrita literária em âmbito
mundial e especialmente em obras da Literatura Brasileira. Tais obras
assumem, de certa forma, um compromisso para com o tempo em que
foram produzidas e com a defesa dos tipos humanos marginalizados, con-
tando sua trajetória de lutas e as várias adversidades pelas quais passaram
em razão de sua condição, advinda do preconceito enraizado na sociedade.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 109


A literatura nos ajuda a construir nossa identidade. Nos textos literários,
de certo modo, entramos em contato com a nossa história, o que nos
dá a chance de compreender melhor nosso tempo, nossa trajetória
[...] Como leitores, interagimos com o que lemos. Somos tocados pelas
experiências de leituras que, muitas vezes, evocam nossas vivências
pessoais e nos ajudam a refletir sobre nossa identidade e também a
construí-la (ABAURRE; ABAURRE; PONTARA, 2016, p. 15).

Em diversas composições artísticas, autores, poetas, músicos e


pensadores escreveram sobre a triste história do povo africano no
Brasil. Para tanto, buscam inspirações nas raízes da literatura africa-
na, especialmente as de língua portuguesa, onde encontram o passado
cultural de um povo que tanto lutou e luta até hoje, pela conquista de
dignidade. Mesmo em composições artísticas atuais, como é o caso da
letra da música negro rei, de composição de Barbosa, Barreti e Bernar-
des (2006); é perceptível os relatos da dura realidade vivida pelo povo
africano, desde o seu “sequestro” do continente natal ao dia a dia nos
engenhos e senzalas:

Ayê
Ayê mãe África
Seus filhos vieram de longe
Só pra sofrer
[..]
Prende a tristeza meu erê
Sei que essa dor te faz sofrer
[..]
O sol que queima a face
Aquece o desejo mais que otin
O sal escorre no corpo
E a dor da chibata é só cicatriz
Quem é que sabe como será o seu amanhã
Qualquer remanso é o descanso pro amor de Nanã
Esquece a dor axogun
Faz uma prece a Olorun

Na força de Ogun (BARBOSA; BARRETI; BERNARDES, 2006).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 110


Assim como na letra da canção acima referida, algumas obras lite-
rárias se ativeram a retratar a realidade vivenciada pelos povos afrodes-
cendentes, mesmo em séculos passados e distantes dos dias recentes.
Tais escritos foram frutos de uma percepção sensível e preocupada com
tratamento desumano dado a seus semelhantes. Os autores que se em-
penharam em registrar tais acontecimentos, utilizaram-se de sua afini-
dade com as palavras para dar voz àqueles que por sua condição social
não podiam falar por si.
Os primeiros romances abolicionistas brasileiros surgiram no sé-
culo XIX, onde alguns escritores brasileiros, chamando atenção aqui
para Maria Firmina dos Reis, foram contemporâneos a essa realidade,
considerada pela sociedade como aceitável e dentro da normalidade,
mas que, no entanto, os mesmos se rebelaram contra a sociedade da
época, pois já conseguiam pensar e visualizar à frente de seu tempo,
trazendo à tona a questão.
Este texto situa-se no escopo da literatura maranhense oitocentis-
ta, com enfoque na obra Úrsula, de Maria Firmina, considerada a pri-
meira romancista brasileira, tendo sido de suma importância para o
desenvolvimento de uma preocupação com a causa abolicionista, uma
vez que a escritora também escreveu outras obras dentro da mesma te-
mática, denunciando essa realidade. Firmina foi professora, colaborou
com vários jornais e com o desenvolvimento da imprensa local e fundou
a escola mista, uma das primeiras escolas de ensino gratuito do país.
A partir de seus escritos a autora foi capaz de apresentar a seus
leitores, dos mais diferentes tempos, a história e a memória de um ma-
ranhão escravagista, de um país que aos poucos caminhava rumo ao
desenvolvimento, mas que infelizmente os principais envolvidos nesse
processo eram explorados, sobrevivendo em condições de miséria, sub-
-humana. Maria Firmina, através de seus personagens, construiu uma
memória capaz de romper com as barreiras do tempo e do espaço. A
obra literária é, assim, uma construção histórica, onde a literatura tam-
bém se configura como fonte de registro da trajetória humana, mesmo
que atribuída a ela doses de ficção.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 111


Assim, ao tratar sobre o passado escravagista, atribuir voz ao ne-
gro marginalizado, e se posicionar contra a escravidão, Firmina propor-
ciona aos seus leitores uma experiência sobre a vida do outro que por
muito tempo foi invisibilizado, negado e que ainda hoje, em muitos ca-
sos, seus descendentes (os negros) sofrem os reflexos dessa história que
deixou muitos estereótipos sociais, bem como desigualdades. A leitura
de Úrsula e o ecoar das vozes dos personagens da narrativa são capazes
de promover o letramento literário, de maneira que através da expe-
riência estética, o leitor é capaz de se apropriar do texto, tornando-o
significativo e, modificado por este, poderá transformar suas práticas
sociais.
Com esta proposta, objetivou-se analisar o romance Úrsula, de Ma-
ria Firmina dos Reis, em prol do letramento literário, a partir da escrita
de uma mulher negra e das vozes que ecoam de seus personagens mar-
ginais. Além da escrita de Firmina, será enfatizada a importância da voz
de sua personagem Preta Susana.

Maria Firmina, Romantismo, Úrsula e o Cânone Literário

Maria Firmina dos Reis foi uma escritora maranhense, nasceu em


11 de março de 1822, em São Luís - MA. Nascida fora do casamento, afro-
descendente e vivendo num contexto de uma sociedade excludente, a
escritora durante grande parte de sua vida foi segregada da sociedade
ludovicense, sendo, na infância, obrigada a mudar-se da cidade e viver
com sua tia, o que foi crucial para sua formação, segundo Mott (1988).
Em Guimarães -MA, no ano de 1847, a escritora é aprovada em concur-
so público para o magistério primário e anos mais tarde, no início da
década de 1880, funda a primeira escola mista de educação gratuita do
Maranhão, uma das primeiras instituições escolares acessível ao públi-
co geral, no Brasil.
Mas o que haveria de contar uma mulher negra, maranhense e des-
favorecida socialmente, que viveu no século XIX? Firmina viu a escravi-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 112


dão de perto, apesar de não ter sido escravizada. Como escritora, poetisa
e romancista que foi, mesmo sendo mulher, em meio a uma sociedade
machista, a mesma conseguiu, com maestria, sobressair-se em meio às
adversidades e a todo um conjunto de fatores, que por sua condição so-
cial, contribuíram para que ela fosse apenas mais uma mulher dona de
casa, submissa ao marido e pobre, intelectualmente falando.
Contudo, foi justamente com sua dedicação aos estudos e a forma-
ção intelectual, que Firmina dos Reis rompeu com os padrões e o futuro
que seria esperado para si. A educação foi indispensável para a solidifi-
cação da identidade da mulher como ser social. Foi por meio através da
escrita que Firmina deixou seu legado. Foi a primeira mulher escritora
em um país patriarcal, a primeira a abordar a questão da escravidão em
um romance de escrita feminina, mesmo não tendo assinado seu nome
como autora. Tais informações já são suficientes para que sejamos ca-
pazes de reconhecer a importância de Maria Firmina para as Letras na-
cionais, embora a mesma por muito tempo tenha sido desconhecida e
não faça parte do seleto grupo que constitui o cânone literário nacional.
Segundo Duarte,

Maria Firmina dos Reis, foi a primeira mulher, afrodescendente,


nordestina e de origem humilde, a relatar no romance Úrsula (1859),
através de um discurso crítico e denunciativo, tornando públicas as
condições a que estavam submetidos o negro e a mulher na sociedade
brasileira (DUARTE, 2004, p.203).

De fato, a autora esteve acompanhada de um grande e reconhecido


grupo de escritores que produziram no contexto do século XIX no Ma-
ranhão. Em um clima de intensa produção intelectual e literária, o Ro-
mantismo, tendência literária que se desenvolvia no período, trouxe à
literatura brasileira em geral, e à maranhense em particular, uma feição
nacionalista. Inaugurado em 1836, com a publicação de Suspiros poéti-
cos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, foi em 1846 que esse movi-
mento literário alcançou a sua expressão máxima, com a publicação de
Primeiros Cantos, do maranhense Gonçalves Dias (MORAES, 1977).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 113


Em meio a grandes nomes de escritores masculinos, mesmo tendo
escrito obras de qualidade literária inegáveis, Firmina dos Reis teve seu
nome camuflado. Uma das grandes razões para que isso tenha aconteci-
do é o simples fato de ter sido mulher e penetrar nesse universo intelec-
tual que era “por direito” reservado aos homens. Dessa forma, a prática
de atividades intelectuais como a escrita, tendo em vista a sociedade da
época, constitui uma transgressão aos limites, que esbarra em interes-
ses de homens poderosos. Para Silva:

Maria Firmina dos Reis construiu uma voz dissonante na literatura


do século XIX, principalmente por ser uma mulher escritora, em um
período no qual a escrita pública era quase exclusivamente masculina; é
voz dissonante também por ser mulata, autodidata, e por escrever sobre
os escravos de uma perspectiva completamente diferente de outros
literatos (SILVA, 2010, p. 17).

Mesmo à margem, a escrita é sua arma mais poderosa. No prólogo


de Úrsula, a escritora em decorrência de sua posição social, reconhece
sua obra como “Mesquinha e humilde”:

Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e
mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação
dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem
com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais,
e pouco lida o seu cabedal intelectual é quase nulo (REIS, 2017, p. 1).

Ainda sobre o livro Úrsula, mesmo sabendo do “indiferentismo gla-


cial de uns” e do “riso mofador de outros”, Firmina desafia: “ainda assim
o dou a lume” (2017, p. 1). Por essa e outras razões a poetisa nunca foi
reconhecida, nem teve suas obras aclamadas a ponto de constituírem o
conjunto de obras consagradas das letras brasileiras, como ela mesma
reconhecia, e por isso, não tinha a intenção de se igualar aos “homens
ilustrados”. Não é à toa que o livro passou cerca de cem anos no esque-
cimento, até ser descoberto e reconhecido como uma raridade literária
que apresentava valioso interesse histórico.
O romance foi encontrado numa biblioteca de livros usados, no Rio
de Janeiro, em 1962, por Horácio de Almeida, que depois de análises,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 114


chegou à conclusão de que a autoria da obra seria de Maria Firmina,
tendo identificado o pseudônimo da romancista maranhense. A roman-
cista maranhense desconstruiu como ninguém, a história literária et-
nocêntrica e masculina padrão vigente até então. Muitos escritores se
encontram às margens dos cânones, mesmo diante da qualidade de suas
obras, o que por si só, já constitui grande motivo para reconhecimento.
A inclusão de novas obras nesse grupo não acarretaria no esque-
cimento dos canônicos, mas num enriquecimento ao conjunto da lite-
ratura global ou de um país, visto ainda, a sincronicidade da literatura
e a diversidade de leitores. Eliot (2010, p. 68) destaca que a grandeza da
literatura não pode ser determinada exclusivamente por padrões literá-
rios, embora devamos lembrar-nos de que o fato de tratar-se ou não de
literatura, só pode ser determinado por padrões literários.

O Romance Úrsula, a preta Susana e a Construção de suas


memórias em prol do letramento literário

Antes de iniciarmos as discussões sobre as peculiaridades presen-


tes na construção da voz e da memória da personagem preta Susana,
entendemos ser necessário traçar um breve resumo do enredo da obra,
para situar o leitor diante do conteúdo explorado.
O romance retrata a história de um amor surgido em meio a di-
vergências sociais entre dois apaixonados, a bela e simples Úrsula e o
bacharel Tancredo. Ela, vinda de família simples e humilde, que respira-
va os ares da escravidão, ele, nobre e educado para cuidar dos negócios
da família e casar com uma moça à sua altura. Os dois jovens vivem um
amor impossível, desde que se conhecem, até o final trágico de suas his-
tórias.
Porém, é importante destacar que o tratamento conferido aos de-
mais personagens negros, mulheres e a temática da escravidão, presen-
te em toda a obra, revela uma preocupação bem maior em relação àque-
las que vinham sendo frequentes no romantismo, como por exemplo,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 115


o esforço de construção de uma identidade nacional, o idealismo exa-
gerado e, principalmente, a própria história de amor acaba deixando,
até certo ponto, de ser o principal aspecto abordado na obra, que acaba
sendo porta voz contra as atrocidades da escravidão.

A memória de preta Susana

Preta Susana era uma escrava “liberta” que morava e cuidava da


casa de Luíza B, mãe de Úrsula. No entanto, o que parece ser apenas
uma personagem figurante, tem toda uma história por trás de sua che-
gada até a casa da protagonista, uma trajetória que é marcada por dor,
angústia e sofrimento, e que é narrada a partir de certo ponto do capí-
tulo homônimo, pela própria Susana.
Logo no início do capítulo, Susana, em diálogo com Túlio, perso-
nagem também negro, conversam sobre a dor da separação e a ideia
de liberdade trazida por ela. Túlio, que morava na mesma casa que ela,
partirá com seu amigo Tancredo (amor de Úrsula), entretanto, Susana
tenta convencê-lo sobre a falsa ideia de liberdade, para a qual ele acredi-
ta estar rumando. Em tom de respeito, tratando-a por mãe, Túlio afirma
estar trocando escravidão por por ampla liberdade, ao rumar junto ao
amigo.
Nisso, a preta o questiona “Tu! Tu, livre? Ah, não me iludas!” (REIS,
2017, p. 70). Com este questionamento, seguido de uma exclamação, é
perceptível que mesmo já estando liberta, Susana ainda não seja julgada
livre, e por isso, carrega um enorme peso em seu coração, o que lhe cau-
sa dor e angústia. As lembranças são difíceis e associadas a elas estão
esses sentimentos que inquietam a mulher. Para Araújo e Santos (2007,
p. 96) “a memória não obedece apenas à razão [...] ela também está rela-
cionada a sentimentos profundos, como amor, ódio, humilhação, dor e
ressentimento, que surgem independentemente das nossas vontades”.
Exposto por um narrador que fala em 3° pessoa, este nos relata
que as últimas palavras de Susana (“Tu! Tu, livre? Ah, não me iludas!”)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 116


despertaram no coração da velha escrava uma recordação dolorosa. A
partir daí, a preta começa a descrever ao amigo Túlio toda a sua traje-
tória de infelicidades, agora narrando: “E esse país de minhas afeições,
e esse esposo querido, e essa filha tão extremamente amada, ah, Túlio!
Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh, tudo, tudo até a própria
liberdade!” (REIS, 2017, p. 71).
A fala da personagem preta Susana nos sugere que sua vida, que
ainda será relatada por ela em pormenores, foi marcada por aconteci-
mentos dolorosos e que o relato dos mesmos, a faz acreditar que nunca
será concedida a seus semelhantes, a condição de liberdade. A escrita li-
terária em questão, apesar de ficcional, está intimamente ligada às me-
mórias da personagem que não consegue, mesmo com todos os esfor-
ços, através de palavras, representar a situação vivida por ela. Portanto,
através da escrita de Firmina e da fala de sua personagem, os leitores
são apresentados a um passado escravocrata de maus tratos a pessoa
negra, de desumanidade e de ausência total de direitos humanos, direi-
tos mínimos à dignidade e ao bem estar de uma pessoa.
Um dos maiores diferenciais de Maria Firmina foi o lugar que ela
deu às suas personagens, que possuem voz própria e não precisam ser
representadas por ninguém. Para Duarte (2004, p. 203), Úrsula é “uma
obra que dar voz a mulher (escritora) e tematiza o negro a partir de uma
perspectiva interna – o próprio negro narra sua história cheia de so-
frimentos, sonhos e fé”. Assim, através da preta Susana, a escritora nos
mostra a percepção sobre a escravidão a partir da voz e da memória de
uma mulher negra, que foi arrancada de sua terra, sendo a ela negado
de viver e ser feliz ao lado da família. A narração de suas memórias de-
nuncia as atrocidades cometidas contra seres humanos de pele negra,
incluindo as mazelas pelas quais passaram nas viagens em porões de
navios da África até o Brasil. Esses relatos também demonstram o dese-
jo da personagem e a intenção da autora em construir um país livre da
escravidão.
Ao iniciar a recordação de suas memórias ao negro Túlio, este ques-
tiona se realmente existe a necessidade de tal rememoração, quando

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 117


Susana retruca: — Não matam, meu filho. Se matassem, há muito que
morrera, pois vivem comigo todas as horas. (REIS, 2017, p. 71). A preta
reconhece que as memórias fazem parte de si e que está tão impregna-
da delas, que mesmo trazendo sofrimento, é preciso relembrá-las e só a
morte seria capaz de apagá-las. Ela, então, continua contando sobre seu
cativeiro ao jovem Túlio:

Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o amendoim


eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a
natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã
risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso
enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha
tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar.
Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência
semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha
mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah, nunca mais devia eu vê-la. (REIS,
2017, p. 71).

No fragmento acima é notável que as memórias de Susana nos pos-


sibilitam construir o cenário e as diversas características que o consti-
tuem, como o ambiente, o clima e a cultura de sua terra natal, informan-
do-nos, inclusive, os produtos mais cultivados naquela terra fecunda.
Através das metáforas percebemos a grandeza da natureza, do dia e
das horas antecedentes à chegada do triste futuro da negra. Contudo,
ela mesma nos alerta, com dificuldade em relembrar, de que pressentia
com tristeza e dor no coração, a aproximação da tragédia que mais tar-
de se anunciara.
No romance de Maria Firmina, os leitores são apresentados, atra-
vés da ficção, a questões históricas e sociais do século XIX no Brasil.
Dessa forma, a literatura contribui com o leitor para além da formação
literária, e isso acontece, diante da leitura do romance, pela aproxima-
ção da literatura com a história, entre outros fatores. Para Bella Jozef:
“História e ficção partem de um mesmo tronco, são ramos da mesma
árvore [...] Ambas são formas de linguagem. Os fatos, na verdade, não
falam por si. Só adquirem significado depois de selecionados e interpre-
tados, provocando uma desfamiliarização do cotidiano” (JOZEF, 2005,
p. 35).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 118


Analisando os dois trechos abaixo, encontramos o auge do esforço
da personagem preta Susana em rememorar o episódio mais traumáti-
co de sua vida.

E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma


prisioneira — era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de
minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das
minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer,
julguei morrer, mas não me foi possível... A sorte me reservava ainda
longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo
me ficava — pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus, o que se
passou no fundo da minha alma, só vós o pudestes avaliar! (REIS, 2017,
pp. 71-72).

Através da forma como a personagem se expressa, podemos iden-


tificar sofrimento e agonia em seus relatos, a dificuldade em reviver
através da lembrança os acontecimentos do passado, que ainda no pre-
sente os afligia. Nenhum ser humano é capaz de avaliar tamanha dor,
só Deus, que tudo vê e tudo sente, poderia compreender tamanha afli-
ção. Palavras também não são suficientes, nem abarcam toda essa carga
emocional. A linguagem não dá conta do testemunho da personagem.

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de


cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis
tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida
passamos nessa sepultura, até que abordamos às praias brasileiras.
Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e,
para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais
ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados
da Europa: davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez,
a comida má e ainda mais porca; vimos morrer ao nosso lado muitos
companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que
criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim, e que não lhes doa
a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! (REIS, 2017,
p. 72).

Maria Firmina ao dar vida e voz às suas personagens, principal-


mente por serem representativas de classes oprimidas, utiliza-se de um
discurso que denuncia as mazelas da escravidão, onde o próprio negro
fala de sua condição e dos maus tratos sofridos por ações de outros se-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 119


res humanos. Como vemos na passagem acima, a condição e a natureza
humana são colocadas em cheque, sendo questionadas através do rela-
to da negra Susana, que mostra, através da memória, o negro tratado
como animal ou objeto de propriedade de um semelhante. Isso provoca
um estranhamento por parte do sujeito que fala e até mesmo por aquele
que lê, uma vez que normalmente atitudes de tal natureza não deveriam
fazer parte da índole humana.
Antônio Cândido, em Vários escritos (2004), discorre sobre “direitos
humanos e literatura”, e afirma que a leitura literária humaniza, que a
literatura é, na verdade, “uma necessidade universal que deve ser satis-
feita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma
aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do
caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar
nossa humanidade” (CANDIDO, 2004, p.186). Portanto, ler literatura é
indispensável ao homem e à formação humana, pois consiste numa prá-
tica que nos proporciona autoconhecimento, conhecimento de mundo e
alarga nossa concepção de humanidade. E, nesse sentido, Correa (2013)
afirma que o letramento literário aponta para os

[...] usos sociais da leitura literária, principalmente, mas também desse


tipo de escrita. O letramento literário pressupõe a formação de leitores
capazes de escolher autonomamente os livros literários que desejam ler,
que transitem conscientemente pela literatura e até mesmo por outras
formas de manifestações artístico-culturais intrinsecamente ligadas à
literatura [...] (CORREA, 2013, p. 3).

O letramento literário promovido pela leitura de Úrsula aponta


para o conhecimento da história dos africanos que é, ao mesmo tem-
po, também, a nossa própria história. Revela ainda, a construções dos
discursos negros através da memória e, mais especificamente, por via
artística, onde a escrita literária edifica, por meio da palavra, a experiên-
cia do outro, que se converter em experiência estética para o leitor. Re-
tornando ao romance, finalizando a narrativa de sua história enquanto
prisioneira que presenciou todos os horrores possíveis, Susana encerra
confessando a Túlio que sofreu “com resignação todos os tratos que se

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 120


dava a seus irmãos... também os sofri, como eles, e muitas vezes com a
mais cruel injustiça. (REIS, 2017, p.73). Diante disso, para ela não há dúvi-
das, as marcas ficaram e “a dor que tenho no coração, só a morte poderá
apagar!” (REIS, 2017, p.73).

Considerações finais

As práticas de letramento são entendidas como atividades em que


os indivíduos desenvolvem habilidades específicas a partir de uma fun-
ção social da leitura ou mesmo da escrita. No caso do letramento literá-
rio, essas práticas dizem respeito ao modo como os indivíduos se apro-
priam da literatura, que de alguma forma deve refletir em suas vidas e
no convívio social. A leitura literária, por si só, consiste num exercício
completo, cognitivo e capaz de envolver o leitor através das tramas, das
personagens e dos espaços em que elas estão inseridas. Além do mais,
essas produções estão situadas para além do tempo, mas é preciso reco-
nhecer que o contexto histórico-social de seu surgimento exerce muita
influência sobre elas, que podem ser também, além de fruição estética,
fonte de conhecimento.
Maria Firmina dos Reis foi uma mulher à frente de seu tempo e que
rompeu muitos paradigmas, principalmente por ser mulher e se em-
penhar no exercício da escrita, numa época em que a mulher não tinha
esse direito, pois era submissa ao homem. Assim, sua leitura evidencia
aos leitores e os faz refletir sobre a necessidade de ser revolucionário, de
ser sensível aos problemas de seu tempo e de ser empático. Mesmo que
de forma despretensiosa, acabamos por identificar em Úrsula, aquilo
que deve ser inerente ao ser humano, a capacidade de sentir e de sermos
tocados, o que a melhor literatura é tão hábil em realizar. Ao lermos o
romance, partilhamos da experiência de vida do outro marginalizado,
que por muito tempo foi silenciado e precisou viver nas senzalas, em
porões ou mesmo nas esquinas de ruas das cidades.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 121


Uma escritora negra falando sobre a escravidão, a partir da pers-
pectiva abolicionista em pleno o século XIX, auge do escravismo no Bra-
sil, é a renovação da esperança em dias melhores e a atualização neces-
sária aos moldes literários vigentes na época. É também o prenúncio da
conquista de espaço que muitos tipos humanos não tinham e vieram
a conquistar com o passar dos tempos. Portanto, a leitura da obra de
Maria Firmina dos Reis é necessária ao homem e à humanidade, porque
a partir da perspectiva da mulher negra, de uma voz dissonante, o mal-
-estar que a escravidão deixou pode se transformar numa semente de
esperança plantada em cada um de nós através da literatura.

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 123


O destino trágico de personagens femininas
na literatura brasileira contemporânea

Ana Paula Gonçalves de Oliveira

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-7

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 124


Introdução

Mostrar um inferno não significa, está claro, dizer-nos algo sobre como
retirar as pessoas do inferno, como amainar as chamas do inferno. Contudo,
parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência
de quanto sofrimento causado pela crueldade humana existe no mundo que
partilhamos com os outros.
- Susan Sontag.

Em diversos períodos da literatura brasileira uma questão se mos-


trou pertinente: personagens femininas de diferentes épocas, classes
sociais, modos de vida, e em diversos enredos e narrativas, têm, como
fator em comum, trajetórias marcadas por diferentes tipos de sofri-
mento e violência. Suicídio, abuso sexual, feminício, depressão, loucura,
solidão, entre outras tragédias que estão constantemente associadas
aos percursos de vida de personagens femininas. A partir dessa cons-
tatação, despertou-se em mim um incômodo. O que faz personagens
tão diversas terem destinos trágicos nas suas histórias? A partir dessa
inquietação, abriram-se os caminhos desse trabalho.
As obras que me instigaram para essa problemática foram: Lavou-
ra Arcaica (1989) de Raduan Nassar, a qual narra em primeira pessoa
a história de André, que tem um envolvimento incestuoso com a irmã
Ana, que é brutalmente assassinada pelo pai na frente de toda a família.
E S. Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, em que Paulo Honório conta
sua história de vida e casamento com Madalena, personagem que pa-
dece de depressão por causa da vida conjugal infeliz com o marido ciu-
mento e opressor, e acaba se suicidando. Apesar de haver uma diferença
de 55 anos entre a publicação dessas obras, e espaços e temáticas bem
distintas, algumas semelhanças foram pertinentes: ambas são escritas
por homens; têm como tema central as histórias de seus protagonistas
masculinos e tem como elo o fim trágico das personagens femininas.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 125


Dessa maneira, para fins de investigação, e para observar como
essas conjecturas de tragédias se apresentam na literatura contempo-
rânea de autoria feminina, em que as protagonistas mulheres fossem
centrais, optou-se por focar a análise e o aprofundamento dos estudos
desse artigo em Sinfonia em branco (2013), de Adriana Lisboa. A escolha
justifica-se por se tratar de uma obra que tem como temática central a
história de um trauma de estupro incestuoso, mas principalmente por
ter um grande número de histórias coadjuvantes em que personagens
femininas têm elementos trágicos como marcadores de suas histórias.
O que é o destino trágico de personagens femininas e como eles
surgem dentro dessas narrativas? Como são narradas essas tragédias?
São essas algumas das interrogações que norteiam o eixo de interesse
desse artigo, que se propõe a delinear, de forma breve, conceituações
sobre tragédia, e as significações do trágico dentro do contexto de nar-
rativas contemporâneas brasileiras. A fim de analisar a construção e os
significados que ancoram o destino trágico das personagens coadju-
vantes, presentes na obra Sinfonia em Branco, a partir do apontamento
de suas histórias e desfechos na narrativa.

Tragédia, trágico e destino

Ao longo dos séculos, a palavra tragédia, que se originou do grego


tragōidía14, foi sendo associada a alguns contextos, dada as suas diferen-
tes acepções. Em seu sentido mais recorrente, a palavra está associada
ao gênero dramático, que tem seu surgimento no teatro da Grécia an-
tiga. Aristóteles em A poética escreve um tratado filosófico que trata de
formas de mímesis, ou seja, representação de uma ação, entre as quais a
tragédia. Aristóteles afirma que:

14 do grego tragōidía: “à letra, canto do bode, isto é, canto religioso com que se acompanhava o sacrifício dum
bode nas festas de Baco; daí canto ou drama heróico; particularmente, tragédia; narrativa dramática e pomposa;
acontecimento trágico, isto é, acontecimento infeliz e muito falado; acto de representar uma tragédia”. Etimologia
segundo o Dicionário de Etimologia do Português de José Pedro Machado. In: Ciberdúvidas da Língua Portuguesa.
Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/tragedia/8484 [Acesso em 07/09/2020].

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 126


É, pois, a tragédia imitação de uma acção de caráter elevado, completa e
de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de
ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que
se efetua] não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o
terror e a piedade, tem por efeito a purificação (catarse) dessas emoções
(ARISTÓTELES, VI, 1449b, p. 24).

Nas tragédias gregas, os heróis sempre estão lidando com dilemas


derivados de paixões humanas, cometem ou são acometidos por erros
e caminham rumo a um destino implacável que irá lhes gerar algum
sofrimento.
Em uma síntese temporal, observa-se que o trágico presente nas
obras antigas passa por transmutações e tem seu significado reconfi-
gurado nas reflexões filosóficas e no romantismo alemão. Transitando
também pelos estudos da psicanálise do século XIX, as tragédias gregas
foram elementos fundamentais para desenvolvimentos teóricos da psi-
canálise, que revisitou os mitos da tragédia grega para elaborar teorias
acerca dos desejos, das pulsões, do trágico e da fatalidade do destino
humano, pois na modernidade o trágico se torna categoria filosófica.
Ao propor a diferenciação entre os termos tragédia e trágico, Glenn
Most aponta que é necessária uma “separação fundamental entre a “tra-
gédia” como um gênero que compreende um conjunto de textos espe-
cíficos e o “trágico” como uma descrição de certos tipos de experiência
ou de traços básicos da existência humana.”(MOST, 2001, p.24). O autor
alerta para o fato de que existem diferenças evidentes entre o uso anti-
go e o moderno do termo trágico. Na perspectiva moderna, Most apon-
ta que o entendimento do termo se faz em duas instâncias: na filosófi-
ca, em que o trágico é uma “categoria metafísica desenvolvida a fim de
descrever a condição humana. Ela é desenvolvida, acima de tudo, para
designar uma importante lição sobre o nosso mundo (“sabedoria trági-
ca”) [...]”.(MOST, 2001, p.24) E na instância coloquial, em que o trágico é
generalizado metaforicamente e se refere a acontecimentos excessiva-
mente tristes, em que o autor aponta:

[...] envolvem uma perda irreparável (a perda de algo que não pode
ser completamente restaurado é trágica) de um indivíduo único [...];

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 127


tendem particularmente envolver morte (um acidente de trânsito
no qual ninguém morre não é trágico), e especialmente a morte de
um ser humano ou o que for considerado seu equivalente (o imenso e
irremediável sofrimento mental ou físico de um ser humano ou a perda
total da família ou da reputação ou de propriedade[...]); entretanto, não
qualquer tipo de morte, mas apenas tipos particulares, excluindo a
morte natural [...] particularmente a morte inesperada, desnecessária e
prematura (MOST, 2001, p. 22)

Desse modo, apesar das diferentes perspectivas entre o uso colo-


quial e o uso filosófico do termo trágico, é necessário observar também
suas similaridades para a modernidade. É inegável que as obras gregas
são fundadoras de vários aspectos artísticos que permeiam o mundo
ocidental contemporâneo, mas é necessário observar que a tradição
grega não foi um legado intencionalmente deixado para o mundo con-
temporâneo, foi o mundo contemporâneo que elegeu e deu seu próprio
significado a esse legado. E o que interessa nesse estudo não é aprofun-
dar esta análise no gênero tragédia, mas sim pensar em uma possível
leitura de elementos oriundos dela que compuseram as conceituações
modernas do trágico, e como esses elementos se inscrevem na litera-
tura brasileira contemporânea, em especial em Sinfonia em branco. Pois
como Most alega:

O termo não é estético mas antropológico ou metafísico: ele não define


um gênero literário mas a essência da condição humana, em sua estrutura
imutável ou como se manifesta em circunstâncias excepcionais,
catastróficas (MOST, 2001, p. 24).

Sob o mesmo ponto de vista, pensando no trágico como uma mani-


festação da condição humana em circunstâncias específicas, em Trágico:
experiência e conceito, Ubaldo Puppi revela que o trágico está intrinseca-
mente ligado a componentes externos, pelas vias de ordens contextuais,
institucionais e pela própria realidade histórica, como afirma:

O trágico, portanto, é o sinal natural de uma grave anomalia no corpo


social. Assim como o sofrimento e o mal-estar físicos são o sinal algésico
de alerta para o desvelamento da disfunção que ameaça a saúde e a
integridade física, assim também o trágico, na ordem da experiência
vivida, é a denúncia tácita das formas históricas violentas; denúncia com
vistas a uma tomada de consciência coletiva. (PUPPI, 1981, p. 49).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 128


É também como um fenômeno que denuncia a violência do corpo
social que o trágico pode ser encarado, pois, em Sinfonia em branco, o
trágico que acomete a vida das personagens tem, de forma latente, di-
ferentes tipos de violência contra a mulher como fator em comum. A
estas mulheres são designadas diferentes formas do trágico, da fatali-
dade, da infelicidade ou quaisquer outros sinônimos que representem
marcas negativas excepcionais em suas trajetórias, nas quais não há
outras possibilidades de rota, pois a violência de gênero é o que rege os
seus destinos.
Susana Funck, em “O que é uma mulher?”, aponta que quando se fala
de mulher e literatura é necessário observar que: “O termo aqui funcio-
na como uma marca de diferença, implicando uma relação que qualifica
ou restringe a literatura, e indicando um recorte específico que deter-
mina um posicionamento político.” (FUNCK, 2011, p. 71). Dentro desse
cenário, ela argumenta que existem duas “mulheres”: a que é corpori-
ficada e fora da literatura, sendo possível identificar como a autora; e
a mulher que é discursivamente imaginada e se encontra dentro da li-
teratura, podendo ser a personagem/narradora. Se a primeira mulher,
a autora, está sempre envolta em uma intencionalidade atrelada a seu
contexto histórico-social e intelectual, a segunda, fruto desse contexto,
é porta-voz de uma significação que lhe foi dada (conscientemente ou
não), sendo um repertório de possibilidades, visto que “Se somos as his-
tórias que nos contam – tanto no sentido de que elas nos representam
quanto no de que são contadas para nós – então as narrativas podem se
tornar uma fonte de identificação” (FUNCK, 2011, p. 72). Em vista disso,
ao refletirmos acerca das personagens femininas, é essencial pensar e
questionar como esse gênero é encarado e arquitetado dentro das nar-
rativas. Se nas tragédias gregas o destino do herói trágico era definido
por suas próprias ações em decorrência de alguma falha moral, em Sin-
fonia em branco o fator trágico da violência que está inscrito e define o
destino das personagens femininas, pode ser percebido pelo conceito de
“corpo como situação”. De acordo com Moi (1999, p. 110) conforme citado
por Funck (Moi apud FUNCK 2011, p .71) “E então a questão se torna o

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 129


que o sexo faz a nós como seres humanos localizados em um corpo. A
resposta é que o corpo está sempre em uma situação e que serve a uma
situação também.”15. Como aponta Moi, se as mulheres carregam em si
corpos que o mundo assume como femininos esses corpos lhes acarre-
tam “um número de experiências com as quais não teríamos que lidar
caso nossos corpos fossem tomados como masculinos.”(1999, p. 110-111)
Portanto o corpo visto como feminino dentro da narrativa de Lisboa é
um fator indissociável ao trágico.

Das protagonistas as coadjuvantes: a violência

Em Violência, gênero e poder: múltiplas faces, Lourdes Maria Bandei-


ra faz uma análise da violência na modernidade, que se constitui, segun-
do a autora como:

[...] uma força social que estrutura as relações interpessoais, ações


coletivas, e relações sociais de modo geral, sobretudo no contexto
da análise das situações da violência contra a mulher e de gênero. As
manifestações da violência presentes nas relações interpessoais e de
gênero são estruturantes, seja pelo fato de normatizar, modelar e regular
as relações interpessoais entre homens e mulheres em nossa sociedade,
seja pela forma indistinguível de poder que assume, seja pela dimensão
quantitativa que apresentam (BANDEIRA. 2017, p. 20-21).

Essa violência estruturante tem representado dimensões quanti-


tativas exorbitantes, e os dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, mostram números importantes, como o de que, a
cada oito minutos, uma mulher é estuprada, e 57,9% das vítimas tinham
no máximo 13 anos de idade. E o crescimento de 7% na taxa dos crimes
de feminicídios no último ano.16

15 Trecho de uma entrevista de Toril Moi à Revista Estudos Feministas, publicada em 2007, citado porSusana
Funck em ``Oque é uma mulher?’’.
16 Dados retirados do artigo “Brasil parece muito mais um abatedouro de mulheres do que uma nação”, de Djamila
Ribeiro. Disponível em : https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2020/10/o-brasil-e-um-pais-ou-
um-abatedouro-de-mulheres.shtml. [Acesso em 24/10/2020].

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 130


Sinfonia em branco é dominada por um tema central que é a multi-
plicidade de violências sofridas pelas personagens femininas que com-
põem a obra, e isso se revela a partir da narração dos aspectos contex-
tuais, e principalmente, dos danos que as violências exercem. E é por
se tratar de uma temática tão urgente à contemporaneidade, e às de-
mandas sociais femininas do século XXI, que é inegável que existe uma
demanda por espaço de voz, onde a sinfonia das vozes que experienciam
violências possam ter recinto. E a ficção pode abrigar o eco dessas vozes.
As manifestações da violência estruturante são muito bem detectáveis
dentro do ambiente ficcional. Propõe-se, então, mapear as situações
violentas presentes na vida das personagens, e mostrar seus resultados
devastadores.
A violência presente na composição de Sinfonia em Branco está fo-
cada na vida das irmãs, Clarice e Maria Inês. No estilo romance de for-
mação, mas em uma prosa não-linear, em que vão se apresentando os
labirintos da memória, é narrado desde o casamento dos pais, Otacília
e Afonso Olímpo, passando pelo nascimento, a infância, a adolescência
e indo até a vida adulta das irmãs. Mas um recorte importante divide
suas vidas em: “Aquele momento da vida de Clarice chamava-se antes de
tudo. Ela não poderia adivinhar. Nem nos seus piores pesadelos.” (LIS-
BOA, 2013, p. 270), sendo o “antes” quando a vida dela ainda “pulsava
expectativas sinceras”, e o “depois” tudo que se desencadeia após um
episódio de violência sexual. A tragédia central da narrativa é a de Cla-
rice, que aos 13 anos é estuprada pelo pai, e de Maria Inês, a irmã mais
nova que tem a inocência roubada ao presenciar, clandestinamente, o
estupro da irmã.
O/a leitor/a é, por meio de um narrador onisciente em terceira pes-
soa, conduzido a acompanhar, em uma narrativa delicada e minuciosa,
os longos anos, acontecimentos e reverberações que sucedem esse epi-
sódio brutal, e suas trajetórias de vida, que são entrelaçadas por outras
personagens de histórias múltiplas. Então, acontecimentos trágicos e
violentos na vida das personagens coadjuvantes vão revelando-se signi-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 131


ficativos. Seguindo essa perspectiva de romance de formação,17 pode-se
seguir também a trilha das tragédias de formação. Pois as tragédias que
circundam a vida das personagens coadjuvantes estão presentes de for-
ma tão abundante, que o recorte pode ser feito também por etapas de
formação, da infância à velhice.
A primeira tragédia da formação é a da amiga de infância de Cla-
rice, Lina, que é descrita como uma garota: “negra e bonita, ignorante
da própria adolescência e dos olhares que arrancava dos homens. [...]
Lina ia à escola, mas estava atrasada, ainda mal sabia ler.” (LISBOA, 2013,
p.88). Lina foi até a casa de Clarice ajudar na preparação de um jantar de
despedida para a amiga, que iria para o Rio de Janeiro. Clarice, alguns
dias antes, fez uma escultura de argila para Lina, e “[...] tentava finalizá-
-la sob a luz de uma vela, em seu quarto, e foi assim que acabou intitu-
lando-a, Morte. Sem saber que era um presságio.” (LISBOA, 2013, p.88)
Nenhuma das duas poderia imaginar, mas ao caminhar de volta para
casa naquela noite, Lina ia em direção a uma tragédia atroz:

O homem saiu do mato, de trás de uma moita de ciprestes. [...] Lina


não gritou porque o primeiro gesto dele, rápido e calculado foi tapar-
lhe a boca com uma mão forte demais, exageradamente forte. Ninguém
precisava de tanta força assim para tapar a boca de Lina, para impedi-la
de gritar, para subjugá-la. [...]Ninguém imaginava quem era o homem.
Alguém de fora. Pegara o corpo de Lina sem seu consentimento e usara
dele como se fosse um prato de comida. Depois jogara fora. Sem hálito,
sem vida (LISBOA, 2013, p.101-102).

A garota Lina foi violentamente estuprada e assassinada por um


homem desconhecido. Mas mesmo sendo a vítima de um crime tão
cruel, não lhe poupam dos comentários culpabilizadora, mesmo morta,
pois na manhã seguinte os moradores cochichavam: “Eu sempre ima-
ginei que uma desgraça dessas ia acabar acontecendo com essa meni-

17 Em Narrativas de formação contemporânea: uma questão de gênero, Cíntia Schwantes afirma que
o gênero Bildungsroman (romance de formação) tem como principal característica “narrativizar o
processo de formação de um/a protagonista”. Ela aponta para os impactos que o meio social, em que
um romance de formação é escrito e recebido, exercem sobre sua escritura, refletindo diretamente
nas diferenças entre um Bildungsroman com um protagonista masculino e um Bildungsroman
feminino, pois a marca do gênero consiste em uma alternância entre possibilidades de reflexão e
ação.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 132


na. Ela não era boa do juízo. Meio retardada. Talvez ela tenha provocado
isso, não repararam como andava vestida? Meio assanhadinha. Meio
sem vergonha.” (LISBOA, 2013, P.102. grifo da autora).
A segunda tragédia coadjuvante é contada como tragédia da Fa-
zenda dos Ipês. Uma fazenda que se localizava próxima à casa das pro-
tagonistas. Essa história, que era um assunto proibido na casa das me-
ninas, é contada à surdina por Maria Inês para seu primo João Miguel.

[...]dizem que o dono ficou maluco porque apanhou a mulher com outro,
você sabe como é. Ele foi até a cozinha, pegou um facão. Parece que
estava bêbado, não sei se alguém faria uma coisa dessas se não tivesse
bêbado. Talvez fosse maluco. Pegou o facão e matou a mulher, sua própria
mulher! Já imaginou? Com dezessete facadas. O amante dela conseguiu
fugir, chamou a polícia, o homem foi preso. [...] a minguada população
de Jabuticabais enfureceu-se, levantou-se como uma onda, invadiu
a delegacia e linchou o assassino no meio da rua, com paus e pedras
e depois fogo. A filha dele, a criança amargurada que herdou aquelas
terras, teve que amadurecer antes do tempo como uma fruta na estufa.
Chamava-se Lindaflor, a pequena e brava Lindaflor, que nas redondezas
era evocada como mito (LISBOA, 2013, pp. 24-25).

A mulher não nomeada é vítima do crime de feminicídio. Esse ma-


rido que cometeu esse delito, em uma tentativa de posse e controle
sobre o corpo de sua esposa, personifica essa modalidade de violência
contra a mulher, que segundo Bandeira, refere-se “[...] ao feminicídio
íntimo que ocorre no contexto das relações interpessoais íntimas, cuja
centralidade faz da destruição do corpo seu alvo principal.” (2017, p.23,
grifo da autora). Essa tentativa de destruição do corpo fica evidente-
mente expressa na brutalidade da execução. Mas esse desastre não se
limitou a esse casal, mas reverberou também na vida de sua filha, Linda-
flor. A única sobrevivente, que após ter presenciado tamanha catástrofe
não teve outro caminho senão o de uma vida adulta conturbada afogada
nas drogas. Esse destino é revelado ao leitor e à leitora no capítulo inti-
tulado O fio de Ariadne, em que anos mais tarde Clarice a encontra mo-
rando em Friburgo. Apesar de terem mais ou menos a mesma idade, fica
claro que Lindaflor está mais envelhecida fisicamente pois ela é descrita
como “acabada”, e apresenta à Clarice seu mundo, o mundo da maconha,
dos alucinógenos, da cocaína e do uso abusivo do álcool.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 133


Em tom mais brando, o abandono afetivo é a terceira tragédia co-
adjuvante relatada, pois as irmãs, ao irem morar no Rio de Janeiro, cada
uma em um tempo, se instalam na casa da tia-avó solteirona da cidade
grande. Mas por trás desta doce tia receptiva, generosa e que ensina
receita de biscoitos casadinhos, reside uma história de abandono amo-
roso e espera. Berenice, na década de vinte, havia tido um grande amor,
um músico pianista, chamado Juan Carlos, um argentino radicalizado
no Brasil, que namorou durante dois anos e meio e tornou-se noiva. Mas
em dado momento, se descobre que:

Em dezembro do ano seguinte, quando ela acabava de tricotar para ele


um pulôver branco, Juan Carlos precisou ir a Buenos Aires. Tratar de uns
assuntos pessoais. Calculava que iria demorar um mês, no máximo dois.
Demorou trinta anos e deixou Berenice atônita com seu anel de noivado
no dedo e aquela insólita sensação de um incêndio oco na garganta.
Ela sempre achava que Juan Carlos estava prestes a chegar, e assim
ultrapassou irremediavelmente a idade correta de se casar, e quando o
reencontrou, em 1956, no centro da cidade, ele era apenas um turista alto
e grisalho e estava acompanhado pela bonita filha argentina que nem
falava o português. Berenice já havia se tornado tia-avó (LISBOA, 2013,
pp. 176-177).

A vida da jovem noiva Berenice se transformou em uma longa e


aflitiva espera de trinta anos, imobilizada pelo abandono afetivo de um
homem, que trinta anos mais tarde, se transformaria em apenas um
estrangeiro que ela encontrou de modo casual na praia. Seu destino foi
petrificado por uma promessa de amor e casamento, e sua rota de vida
fadada à espera, enquanto sua juventude escorria entre os dedos que
um dia abrigaram o anel de noivado. À Berenice restou o título de tia-a-
vó que tinha uma: “voz educada por décadas de conversação com cães,
gatos, canários e outros bichos domésticos.” (LISBOA, 2013, p. 152)
Ainda na perspectiva do abandono afetivo, outra história coadju-
vante relatada e que está associada ao sofrimento psíquico é a da, não
nomeada, mãe de João Miguel. Que é descrita como uma mulher que so-
fre de uma grave depressão, e que o marido pratica abandono a ela e ao
filho, pois “Viajava muito, o pai dele. Até a Europa, até sua Itália natal. De
avião. Com a amante. Enquanto a esposa terminava de se gastar numa

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 134


clinica para doentes mentais.” (LISBOA, 2013, p. 26) A vida dela parece
tão infeliz, que anos mais tarde, quando foi anunciada sua morte, o que
se ouviu foi “[...]coitadinha, agora vai descansar.”(LISBOA, 2013, p. 132).
Sendo o sofrimento psíquico mais uma forma de violência explanada.
Um desastre da natureza também é uma forma de infortúnio que
alcança uma personagem. Uma cozinheira não nomeada é vítima de um
trágico desastre. “Um dia, a cozinheira que contava histórias de terror
estava cortando lenha com um machado e uma lasca grande de madeira
atingiu seu olho e furou-o e ela ficou cega e parou de trabalhar.” (LIS-
BOA, 2013, p.180)
Em “A personagem do romance” Antonio Candido, ao pensar sobre
as afinidades e diferenças entre os seres vivos e os entes da ficção, afir-
ma:

[...]a personagem é, basicamente, uma composição verbal, uma síntese


de palavras, sugerindo certo tipo de realidade. Portanto, está sujeita,
antes de mais nada, às leis de composição das palavras, à sua expansão
em imagens, à sua articulação em sistemas expressivos coerentes,
que permitem estabelecer uma estrutura novelística. O entrosamento
nesta é condição fundamental na configuração da personagem, porque
a verdade de sua fisionomia e do seu modo-de-ser é fruto, menos da
descrição, e mesmo da análise de seu ser isolado, que da concatenação
de sua existência no contexto. (CANDIDO, 2009 p. 78).

A concatenação da existência dessas personagens em um mesmo


contexto de trágico, expresso de formas diversas, é um dos pontos cen-
trais da narrativa. Verifica-se, portanto, que nem mesmo as persona-
gens femininas mais singelas dentro da narrativa escapam do trágico
em seus destinos. E essas tragédias, em sua maioria, se estabelecem
como frutos de violências que estão estruturadas na cultura patriarcal.
Retomando o que Puppi afirma, não se pode dissociar o trágico de
sua realidade histórica, pois “o trágico, na ordem da experiência vivida,
é a denúncia tácita das formas históricas violentas; denúncia com vis-
tas a uma tomada de consciência coletiva.” (PUPPI, 1981, p. 49). Se uma
realidade social pode estar refletida nas entrelinhas da ficção, é notório
que a literatura tem a possibilidade de se posicionar como instrumento

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 135


de reprodução de violências ou como instrumento de denúncia. E mui-
tas vezes o papel do narrador é primordial nesse quesito. Se os silêncios
são os pilares que sustentam na narrativa o incômodo que embrulhava
o estômago das protagonistas, pois, “Seus pais lhes haviam ensinado o
silêncio e o segredo. Determinadas realidades não eram dizíveis. Nem
mesmo pensáveis.” (LISBOA, 2013. p. 151), o narrador, em contraponto,
vai revelando passo a passo essas outras histórias paralelas que pare-
cem triviais, mas que vão se revelando um lastro condutor que as une.
O narrador nessa obra tem duas funções: a de contar as histórias,
que tem como elos as tragédias em seus destinos; e a de se posicionar
frente a elas. A postura do narrador, ao relatar as violências, não é feita
se associando a elas, mas apontando a infelicidade em elas existirem.
O protagonismo narrativo não é dado aos agressores, o enfoque é dado
às vítimas, ao contexto ao qual estão inseridas e aos danos enfrentados
por elas.
Essa postura da narrativa de Adriana Lisboa se assemelha ao que
Jaime Ginzburg, em O narrador na literatura brasileira contemporânea,
aponta como uma tendência em que alguns escritores contemporâneos
têm tomado, ao se afastarem de:

[...]uma tradição brasileira, no interior da qual é necessária uma


presença (como personagem ou narrador) que corresponde, no todo ou
em parte, aos valores da cultura patriarcal. Esse modelo prioriza homens
brancos, de classe média ou alta, adeptos de uma religião legitimada
socialmente, heterossexuais, adultos e aptos a dar ordens e sustentar
regras (GINZBURG, 2012, p. 200).

Ginzburg afirma que, ao desafiarem essa tradição, é uma forma


de desrecalque histórico, na qual se atribui voz a sujeitos ignorados ou
silenciados. Dessa maneira, se o narrador tem papel valioso na chave
interpretativa de uma obra, seu posicionamento e a forma como ele se
porta frente às temáticas pode ser encarado também como um posicio-
namento político.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 136


Considerações finais

O destino trágico de personagens femininas pode ser então visto


como a perda de algo que não pode ser completamente restaurado. E
dentro dessa obra analisada pôde-se observar que o sofrimento mental
e físico das personagens se faz imenso e irremediável, já que tantas ve-
zes o destino dessas personagens é: a morte, o adoecimento psíquico, o
abandono, e os danos físicos.
Ao lidar com essas temáticas socialmente complexas, como é
o abuso sexual e diversas formas de violência contra as mulheres, de
modo tão minucioso e assertivo, Lisboa demonstra, em suas obras, es-
tar ligada a um movimento de escritoras e escritores contemporâneos
que estão comprometidos em produzir literatura que abre caminho as
vozes silenciadas. E que reconhece e amplia a consciência acerca do so-
frimento causado pela crueldade humana, possibilitando, por meio da
denúncia do trágico, a tomada de consciência coletiva.
Portanto, em uma primeira leitura, é, infelizmente, possível que a
tragicidade dos destinos das personagens femininas, especialmente das
coadjuvantes, passem de modo desatento, ou não despertem sobressal-
to, de tão intrínsecas à nossa realidade. Entretanto, se a confluência en-
tre as demandas do real e as ficcionais tantas vezes evidenciam essa
cultura violenta, tão típica à vida das mulheres e tão constante no mun-
do real, é necessário estar atento, para que a produção literária não seja
espaço de banalização dessa realidade.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. 4ª Ed. Imprensa nacional/


Casa da moeda. 1994.
BANDEIRA, Lourdes Maria. Violência, gênero e poder: múltiplas faces. In: Mulheres
e violências: interseccionalidades. Brasília:Technopolitik, 2017.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 137


CANDIDO, Antonio. “A personagem do romance”. In: Candido et al. A personagem de
ficção. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva. 2009
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ro: Jorge Zahar Editor, 2001.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3a Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PUPPI, Ubaldo. O trágico: experiência e conceito. Trans/Form/ Ação. Universida-
de Estadual Paulista. Departamento de Filosofia, v.4,p.41-50,1981. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/11449/28183>. São Paulo, 1981.
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SCHWANTES, Cíntia. Narrativas de formação contemporânea: uma questão de gê-
nero. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 30. Brasília, julho-dezembro
de 2007, pp. 53-62.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 138


A Literatura de Cordel como resistência:
um olhar sobre os anos finais do ensino
fundamental

Mikaelly Keila Pereira da Silva

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-8

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 139


Introdução

A literatura de cordel é uma manifestação artística de resistência.


Procura se manter viva, atualizada e dinâmica para ser capaz de expres-
sar realidades que são próprias do meio em que está inserida. Assim, ao
pensar em resistência, é importante compreender que a literatura já é
uma maneira de resistência, logo os cordéis também são.
Considerando o que foi exposto, o objetivo dessa análise é verificar
a presença da literatura de cordel nos Livros Didáticos de Língua Por-
tuguesa do nível Fundamental-Anos Finai; também procura evidenciar
como é o direcionamento do trabalho docente com essas obras.
Para realizar a presente análise, foi selecionada a coleção de livros
de Língua Portuguesa do 6° ao 9° ano do Ensino Fundamental do PNLD-
2020. As obras que foram selecionadas são utilizadas em escolas públi-
cas do município de Serra Talhada.
A escolha pelo tema deu-se ao fato de considerar a importância
da literatura de cordel para a formação cidadã dos alunos, também por
possibilitar o acesso à produção de obras literárias que são produzidas,
o meio da qual fazem parte, já que expressam em suas temáticas reali-
dades que eles vivenciam, ou seja, aproximam os alunos da arte literá-
ria. A escolha pelos Livros Didáticos se fez importante por possibilitar
um adentrar da literatura no Fundamental-Anos Finais.
Para uma melhor compreensão, a pesquisa está dividida em três
partes: na primeira, há uma discussão sobre o livro didático de Língua
Portuguesa; na segunda etapa, tem-se uma análise acerca do ensino de
literatura e também da literatura de cordel. E, na terceira parte, há os
resultados que foram obtidos com a pesquisa
A literatura é um elemento fundamental para o processo de ensi-
no-aprendizagem e para a formação humana, incluir a diversidade lite-
rária por meio dos cordéis é possibilitar um contato com o cultural, com
o que é próximo, ou seja, é aproximar a obra literária do aluno.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 140


Ao pensar em produção literária de cordel também é considerar re-
sistência, ela é resistência por permanecer viva e produzido narrativas
que são pertencentes a todos.

Livro didático de Língua Portuguesa e a


Literatura de Cordel

Compreendendo a importância do Livro Didático no processo de


formação leitora dos alunos e por ser o material de análise para a pre-
sente pesquisa se faz de fundamental importância analisar e discuti-lo,
dessa maneira o objetivo dessa primeira etapa é o referido material.
Nos últimos anos, e principalmente com os avanços tecnológicos,
os recursos para auxiliar o professor no processo de ensino-aprendi-
zagem se multiplicaram, oferendo diversas opções para que o docente
faça uso em suas aulas, possibilitando também um processo de ensino
mais significativo. Mas é importante ressaltar que com todos os avan-
ços e possibilidade em materiais didáticos o livro ainda ocupa, em com-
paração com os outros materiais, um lugar próprio e privilegiado.
O percurso do Livro Didático (LD) na escolarização brasileira não
é recente estando presente em diferentes momentos históricos da edu-
cação brasileira, mas o grande salto e também significativo é em 1985
com o Programa Nacional do Livro e do Material Didático, conhecido
pela sigla PNLD, esse programa traz mudanças importantes, tais como:
a escolha que é realizada por cada instituição de ensino, ou seja, cada
professor pode escolher o livro que considera mais elaborado para atin-
gir seus objetivos de ensino.
Esse material didático é um dos principais recursos utilizados no
processo de ensino-aprendizagem, em alguns casos o único, por essa ra-
zão ele ocupa um lugar de destaque entre os outros recursos didáticos:

[...] De forma que, ainda hoje, cabe ao LD um papel bastante relevante de


apresentar, para professores e aprendizes, o mundo da escrita e a sua
forma peculiar de construir conhecimentos socialmente legitimados

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 141


e valorizados. E é por isso que, mesmo em realidades culturais
materialmente desenvolvidas, o LD ainda ocupa o centro da cena, no que
diz respeito a recursos didáticos. (RANGEL, 2006, p. 13).

Por ser um material didático de destaque e por estar presente em


diversas práticas docente que compreende diferentes realidades cultu-
rais se faz fundamental que se tenha em cada nova edição um aprimora-
mento, buscando torná-lo mais completo e diversificado, pois só assim
poderá contribuir para a formação humana e profissional dos alunos.
Quando se pensa em Livro Didático algumas questões se fazem
pertinentes e entre elas destaca-se o processo de escolha.
A escolha do Livro Didático é um processo que está além de aspec-
tos didáticos para o processo de ensino-aprendizagem, envolve também
questões financeiras, assim como pontuado por Ota (2009):

O adjetivo ‘didático’ faz do livro um objeto peculiar, imprimindo-lhe


um caráter comercial, mercadológico, que faz dele um bem consumível,
um produto descartável que, para fomentar o mercado, precisa fazer
constantes revisões das edições, tornando desatualizadas as publicações
anteriores. [...] (OTA, 2009, p.216).

Por essa razão, há sempre uma procura em aprimorar esse recurso


didático, imagens, textos completos, linguagem de fácil compreensão,
ambientes de interação virtual entre outros aspectos que são utilizados
pelas editoras para aproximar-se das características que os professores
esperam encontrar, e assim se manter no mercado e nas salas de aulas
por meio das escolhas realizadas pelos professores.
A escolha do Livro Didático é um momento de fundamental impor-
tância para a prática docente, por ser possível selecionar o material que
se acredita ser o mais completo e que irá tornar o processo de ensino-
aprendizagem mais significativo, dessa forma é necessária a presença
de formação continuada e de comunicações sobre quais critérios utili-
zar para escolher o livro didático mais amplo, melhor organizado e que
possibilitará um apoio na prática do docente.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 142


Ensino de Literatura nos anos finais do Ensino Fundamental

Após compreender o percurso e conhecer o Livro Didático esta eta-


pa é direcionada a presença das obras literárias e, consequentemente, o
trabalho docente que as envolve no processo de ensino durante as dife-
rentes etapas, nesta segunda etapa, serão abordadas algumas questões
referentes ao ensino de literatura, ou seja, ao adentrar do letramento
literário nas salas de aulas.
Primeiro é importante considerar a pontuação feita pelo docu-
mento que direciona o processo de ensino-aprendizagem atualmente
no país, neste caso, a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017).
É exposta, no referido documento, a necessidade de possibilitar aos es-
tudantes o contato com diferentes manifestações da arte, de maneira
especial a arte literária, pois:

[...] Está em jogo a continuidade da formação do leitor literário, com


especial destaque para o desenvolvimento da fruição, de modo a
evidenciar a condição estética desse tipo de leitura e de escrita. Para
que a função utilitária da literatura – e da arte em geral – possa dar
lugar à sua dimensão humanizadora, transformadora e mobilizadora, é
preciso supor – e, portanto, garantir a formação de – um leitor-fruidor,
ou seja, de um sujeito que seja capaz de se implicar na leitura dos textos,
de “desvendar” suas múltiplas camadas de sentido, de responder às suas
demandas e de firmar pactos de leitura. (BRASIL, 2017. p. 138).

Como consta no documento, é necessário que se tenha uma conti-


nuidade na formação literária desses alunos. Entende-se por continu-
ação da formação leitora o processo contínuo de leituras diversas que
aluno terá contato nos Anos Finais até o termino da Educação Básica.
Tal formação precisa ser iniciada na Educação Infantil ,com narrativas
que explorem a imaginação e contribuam para a formação da identida-
de, aspecto relevante para esta etapa do desenvolvimento humano.
Torna-se necessário analisar como essa formação literária que foi
iniciada na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do fundamental é dire-
cionada nos anos Finais.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 143


É neste momento que o diálogo entre ensino de literatura e livro
didático são associados, o livro didático pode ser considerado como o
material de leitura que circula de maneira significativa na escola (ZIL-
BERMAN, 1991, p. 112), em diferentes níveis de ensino. Assim, a obra li-
terária e sua leitura ficam limitadas ao espaço que lhe é destinado e
“[...] Neste, a literatura faz sua entrada de modo distante: é texto, parte
de um todo mais completo, empregado com a finalidade de se alcançar
certa aprendizagem. (ZILBERMAN, 1991, p. 112).”
Dessa maneira, a obra literária presente nos Livros Didáticos é, em
diversas situações, direcionada a outros propósitos do conhecimento
e não ao processo de letramento literário e, consequentemente, a não
formação leitora dos alunos. Acerca disso, Martins (2006) pontua que
na sala de aula:

A literatura passa por um processo que se caracteriza por escolarização,


ou seja, se adapta ao pequeno espaço do livro didático que é destinado a
ela, prioriza a historiografia e não as obras, mas o livro didático também
pode ser um aliado no ensino da literatura, tudo depende da formação do
professor e de sua habilidade para transformar o livro didático em aliado
na motivação dos alunos com a sala de aula e não em apenas um único
recurso que, utilizado à exaustão, pode as aulas cansativas [...]. É preciso,
pois, diversificar as atividades e os recursos didáticos utilizados, para
atrair o aluno ao estudo da literatura. (MARTINS,2006, p. 95).

É de fundamental importância que para que se tenha um proces-


so de ensino-aprendizagem significativo e uma formação leitora, assim
como para que o letramento literário aconteça, que o professor procure
ir além do livro didático. É preciso fazer uso da própria obra e não ape-
nas dos fragmento das obras que são apresentadas no livro. É importan-
te também que as instituições de educação forneçam material literário,
neste caso, os próprios livros, e bibliotecas escolares que possibilitem
um trabalho mais completo do letramento literário. Ao possuir contato
com a obra e realizar a leitura as discussões com a turma e dos alunos
entre si serão significativas, pois ampliarão a visão de mundo e de si
próprios . A leitura literária possibilita reescritas de vida.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 144


A Literatura de Cordel no Sertão de Pernambuco

Para compreender a importante presença da Literatura de Cor-


del nos Livros Didáticos de Língua Portuguesa utilizados no município
de Serra Talhada, faz-se necessário conhecer e analisar essa produção
literária. Por essa razão, este tópico é destinado à Literatura de Cordel.
A produção literária dos cordéis não é uma tradição recente, ela
veio nos navios portugueses e encontrou no Nordeste brasileiro um
meio favorável para seu desenvolvimento. Por ser pertencentes a todos
e falando de situações comuns do cotidiano, mas muito ricas em narra-
tivas e personagens, a literatura que chegou cedo no território brasilei-
ro se tornou uma Literatura Popular.

O Nordeste do Brasil se mostra claramente como uma área geográfica e


cultural particularmente fértil para o nascimento e o desenvolvimento
da literatura de cordel, não somente pelo fato de ser uma das regiões
de mais antiga colonização, mas também porque aqui o encontro e a
miscigenação entre o português e o escravo africano se realizaram de
maneira estável e contínua, enquanto as características da organização
social, baseada no latifúndio e na sociedade patriarcal, favoreciam a
perpetuação das tradições e a fixação de um cenário substancialmente
imóvel de aspectos culturais destinados a permanecer. (PELOSO, 2019,
p. 18).

A Literatura de Cordel é conhecida por seu caráter popular, ou seja,


uma produção literária que pertence ao povo, nasce do povo, fala do
povo e volta para o povo. É também por possuir esse caráter popular e
de simplicidade que a produção literária dos cordéis ainda é conside-
rada, em comparação com outras obras literárias, como uma produção
literária menor ou com menos valor, uma das razões que torna ainda
mais necessária sua presença e participação no processo de formação
leitora.
Os cordéis podem ser encontrados nas feiras populares, presentes
em diversas cidades do Estado de Pernambuco e de outros estados, ex-
postas em cordinhas:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 145


Os folhetos nordestinos dão continuidade à tradição dos pliegos sueltos
espanhóis e das folhas volantes portuguesas, que começaram a percorrer
a península ibérica do final do século XV e tiveram o seu período de maior
difusão nos dois séculos seguintes, contribuindo para vulgarizar novelas
de cavalaria, canções e baladas populares, romances, vidas de santos,
adágios populares e fórmulas religiosas [...] (PELOSO, 2019, p. 30).

Para continuar com a tradição, a Literatura de Cordel tem buscado


ser (re)conhecida e valorizada, uma das razõe pelas quais podemos con-
siderá-la como forma de resistência. É possível encontrar na produção
de cordéis temas diversos, voltados especialmente para o meio no qual
o sertanejo se encontra, pois ela é popular, do povo e para o povo.
Nesta terceira e última etapa da pressente análise será discutido o
método utilizado para as informações encontradas nos livros escolhi-
dos e os resultados.

Método

Para desenvolver a presente análise foi realizado um levantamento


nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental-Anos
Finais. Em seguid,a realizou-se uma análise para verificar se eles apre-
sentavam ou não o trabalho com a literatura de cordel. Considerando
os objetivos da pesquisa, trata-se de uma metodologia qualitativa.

Resultados

Após fazer uma análise em cada Livro Didático utilizado nas esco-
las estaduais que oferecem o nível Fundamental-Anos Finais no muni-
cípio de Serra Talhada, foi possível obter a seguinte tabela:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 146


Quadro 1: Livros Didáticos e Literatura de Cordel

Livro Didático de Língua Portuguesa Ano. Capítulo no livro


Geração Alpha Unidade 7 ° ano. Cap. 2
Tecendo Linguagens 8°ano. Cap.3
Singular e Plural 7° ano. Cap. 3
Se Liga na Língua Não apresenta. Não apresenta.
Fonte: A autora

Quadro 2: Livros Didáticos utilizados nas Escolas Estaduais do Município de Serra


Talhada

Fonte: A autora.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 147


Fig. 1: Capa do Livro Didático de Língua Portuguesa e exemplo de Cordel presente
no Livro Didático de Língua Portuguesa: Singular e Plural

Foi possível compreender que três dos quatro livros didáticos ana-
lisados apresentam, em uma das suas unidades didáticas, a literatura de
cordel. Cada material direciona como trabalhar com o tema.
Os textos literários de cordéis também sofrem alteração, ou seja,
cada material os apresenta em sua seção obras com temas que conside-
ram de maior relevância. Foi possível verificar, também, que as obras en-
contradas foram produzidas por nomes conhecidos, como, por exemplo:
Patativa do Assaré, J. Borges, Firmino Teixeira do Amaral, entre outros.
Assim, cada livro faz uso de autores que são conhecidos por apresentar
uma produção com temas diversificados.
Nos livros que apresentam o trabalho com os cordéis são direcio-
nadas algumas atividades a serem desenvolvidas após a leitura, e em
um dos livros, há uma seção destinada para a produção de cordéis, per-
mitindo, assim, uma maior aprendizagem sobre o assunto.
O trabalho com a produção de tais narrativas proporciona uma
aproximação dessa manifestação literária com os alunos e as discussões
que se seguirão serão significativas para o processo de letramento lite-
rário como também para a apropriação da própria cultura, da tradição
cultural que fazem parte.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 148


Considerações finais

A literatura é fundamental para a formação leitora dos alunos, e os


Livros Didáticos, considerando seu espaço nas aulas, é um dos respon-
sáveis por esse ensino. Assim, é importante proporcionar espaços de
debate e leitura do texto literário.
A literatura de cordel é de fundamental importância para a forma-
ção dos alunos. Por fazer arte da tradição cultural brasileira, apresenta
diversidades temáticas e estéticas e possui um acervo que precisa ser
preservado e conhecido.
Além dessas razões, a importância da literatura de cordel na sala
de aulas e nos Livros Didáticos de Língua Portuguesa se torna essen-
cial, pois conhecê-la é compreender e valorizar a produção literária que
está próxima do povo. Ela é resistência, apresenta características de um
povo forte que retira do seu meio a maior inspiração para compor, resis-
tência por se manter durante tantas décadas viva, inspiradora e acres-
centando a sua importância para a cultura.

Referências

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 149


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RANGEL, Egon de Oliveira. A Escolha do Livro Didático de Português. Belo Horizonte:
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ZILBERMAN, Regina. A Literatura e o Ensino de Literatura. São Paulo: Contexto, 1988

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 150


(Res)significando as literaturas e as
identidades da mulher indígena na
literatura de Sol Ceh Moo

Rogério Back
Lucas Evangelista Saraiva Araújo
Sônia Cristina Poltronieri Mendonça

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-9

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 151


Palavras iniciais

Na literatura indígena contemporânea, duas são as linhas a depen-


der da sua fonte de ação. Enquanto na primeira delas a criação literária
pauta-se em questões de verossimilhança étnicas, como as narrativas
originárias, costumes e tradições ancestrais, a segunda é mais ampla,
englobando temas mais universais e problemáticas sociais, indígenas e
não-indígenas, como o papel da mulher na sociedade, a violência, dro-
gas, entre tantas outras nuances (HERNÁNDEZ DE LA CRUZ, 2015).
Trazendo um olhar contra/de/colonial (SANTOS, 2015; QUIJANO,
2005)18 e levando em conta o indígena historicamente estereotipado e
homogêneo (MUNDURUKU, 2003), pretendemos articular uma refle-
xão literária com vistas à (res)significação das identidades indígenas
por meio da obra de Sol Ceh Moo. Che Moo, escritora mexicana Maya
Yacuteca, em 2019 se tornou a primeira mulher a ganhar o Premio de Li-
teraturas Indígenas de América (PLIA), maior prêmio literário em línguas
originárias, o que evidencia a relevância de sua produção. Contudo, sua
obra ecoa, dentre outras questões, temáticas menos tradicionais, como
a denúncia ao alcoolismo e a valorização das religiões cristãs, para citar
apenas dois exemplos. Por outro lado, observamos em toda a sua pro-
dução, uma narrativa que versa sobre os modos de viver indígena na
atualidade. Neste sentido, sua literatura pode contribuir para um novo
olhar aos povos originários, pois dialoga tanto com a tradição de seu
povo, quanto contesta algumas das problemáticas por eles vivenciadas.
Assim sendo, evocamos a três contos do livro Jats’ts’illoolilo’ob Xi-
balbaj (Jardines de Xibalbaj) (CEH MOO, 2010) para observar como uma
mesma autora, embebida pela sua ancestralidade indígena e por suas
próprias vivências, fomenta que as identidades ameríndias podem ser
(res)significadas por meio de uma literatura que é plural. Neste recorri-

18 Quilombola, Antônio Bispo dos Santos cunha o termo contra-colonialidade para se referir a “todos os
processos de resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra colonizadores, os símbolos, as
significações e os modos de vida praticados nesses territórios” (SANTOS, 2015, p. 48). Se alinhando, Quijano
(2005), por meio do movimento decolonial, disserta sobre a colonialidade do saber, em que saberes produzidos
por determinados grupos sociais tidos como marginalizados são hierarquizados e inferiorizados ante aqueles
produzidos pelos grupos dominantes. Assim, entendemos que priorizar a episteme produzida por indígenas,
africanos e afro-brasileiros é uma possibilidade de assumir uma postura contra/de/colonial, evocando, desta
forma, o protagonismo epistêmico destes grupos historicamente invisibilizados e inviabilizados.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 152


do, tentaremos criar inteligibilidade acerca do fio condutor dos contos
selecionados, apontando as suas múltiplas temáticas abordadas e como
todas estas narrativas podem contribuir para a (re)construção de uma
identidade plural dos povos originários.
Destarte, por ser uma obra escrita por uma mulher indígena, des-
tacamos o papel da mulher indígena na contemporaneidade por meio
da escrita literária de Ceh Moo. Além disso, visamos, por meio deste
exercício, apontar como as etno-histórias19 são heterogêneas e, desta
forma, devem ser lidas/consumidas de acordo com suas especificidades.
Para este exercício, optamos por não perfazer um recorte teórico
mais além daquele que trata da literatura indígena. Assim como nos
aponta Graúna (2013), as literaturas indígenas são diferencialistas, pois
não se enquadram em modelos pré-estabelecidos e por abraçarem tra-
ços de resistência e de dias melhores. Desta maneira, entendemos que
trazer uma teoria ocidental para tentar explicar as etno-histórias é,
talvez, negar que essas narrativas possam ser descritas/apresentadas
dentro de suas idiossincrasias. À vista disso, nosso propósito é traçar
um caminho em que apresentamos, ainda que de forma sintética, algu-
mas das características das literaturas originárias e de suas funções.
Nesta esteira, trazemos fragmentos dos contos selecionados da escri-
tora mexicana em diálogo com o que dissertam algumas escritoras e
escritores indígenas sobre as suas literaturas. Fazendo isto, evocamos
o protagonismo ameríndio, demonstrando, também, a autossuficiência
epistemológica dos povos originários.

Literatura indígena

Começamos esta seção com uma pergunta da escritora Graça


Graúna (2020, s/p), do povo Potiguara:

19 Termo utilizado por Baniwa (2019) para se referir às narrativas orais e ancestrais dos povos indígenas.
Desta forma, por entendermos que as literaturas, são também, oralizadas, neste estudo, trataremos literaturas
indígenas e etno-histórias como sinônimas, assim como literaturas nativas.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 153


O que é ser índio(a) hoje? Qual a visão da cultura e da história indígena
na mídia, na poesia, na prosa e nos livros didáticos? Como distinguir
as especificidades da literatura indígena em meio ao processo de
transculturação e reconhecer a existência dessa literatura, em meio a
tantos ‘apagamentos’?

Neste texto, não objetivamos problematizar o que é ser indígena na


contemporaneidade, mas favorecer uma reflexão que nos leve a conce-
ber pessoas indígenas em suas identidades plurais, que permeiam dife-
rentes espaços sociais e são possuidores de múltiplos comportamentos
e modos de ser e pensar. Entendemos, também, que a leitura literária
propicia novos horizontes, se tornando um vasto caminho de possibili-
dades para que as identidades possam ser (res)significadas.
Voltando à Graúna (2020), complementa a autora:

Identidades, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, deslocamento,


transculturação, mito, história, diáspora e outras palavras andantes
configuram alguns termos possíveis para designar, a priori, a existência
da literatura indígena contemporânea no Brasil. Gerando a sua própria
teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede que se
leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita
relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de
outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla
cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura
estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura Nacional
(GRAÚNA, 2020, s/p).

Neste trecho, Graúna (2020) cita uma literatura indígena brasilei-


ra. Contudo, estendemos estas características apontadas pela autora às
manifestações literárias de todos os povos originários, que partilham
de semelhanças, como a memória ancestral, por exemplo, embora sejam
povos idiossincráticos.
Do mesmo modo que não intencionamos, neste momento, tensio-
nar o que é ser indígena na contemporaneidade, não pretendemos sis-
tematizar e normatizar as literaturas indígenas, uma vez que entende-
mos que toda e qualquer teorização é reducionista ante a complexidade
e grandiosidade das especificidades das etno-histórias. Pelo contrário,
objetivamos criar inteligibilidade acerca delas, descrevendo como as

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 154


próprias autoras e autores dissertam sobre suas produções. Ou seja,
proporcionar que conheçamos, ainda que de forma muito sintética, al-
gumas de suas funções e características. Afinal, se nos permitem ob-
servar, a literatura indígena é, necessariamente, uma literatura escrita,
falada, produzida, performada, etc. por pessoas indígenas, necessaria-
mente.
A partir da próxima seção, traremos algumas teorizações étnicas,
que somadas a obra de Sol Ceh Moo (2010), acreditamos estar contri-
buindo para um novo olhar aos povos originários e suas literaturas.

Jats’ts’illoolilo’ob Xibalbaj (Jardines de Xibalbaj)

Para Kaká Werá (2017), do povo Tapuia, a literatura indígena é, tam-


bém, um ato político de resistência. Em suas palavras:

Para nós, a literatura indígena é uma maneira de usar a arte, a caneta,


como uma estratégia de luta política. É uma ferramenta de luta. E
por que uma luta política? Porque, à medida que a gente chega na
sociedade e a sociedade nos reconhece como fazedores de cultura, como
portadores de saberes ancestrais e intelectuais, ela vai reconhecendo
também que existe uma cidadania indígena. E que dentro da cidadania
existem determinados direitos constitucionais que não ferem, que não
desagregam a sociedade, seja indígena ou não-indígena. Ao contrário,
que dão legitimidade, suporte e fortalecem em questões que hoje são
cruciais para a sociedade humana como um todo (WERÁ, 2017, p. 29,
grifo do autor).

Ou seja, por meio dela (da literatura indígena), escritoras e escrito-


res poderão reivindicar seus direitos, apontar o assujeitamento da pes-
soa indígena, narrar suas belezas e problemáticas sociais. Nesta esteira
apontada por Werá (2017), está o direito à preservação cultural e a falar
as próprias línguas maternas. Assim, a escrita literária em língua origi-
nária se converte, também, em uma ferramenta de resistência.
Criado em 2013, o Premio de Literaturas Indígenas de América (PLIA)
tem incentivado a escrita literária em língua indígena, tudo isso para
que seja valorizado e salvaguardado o direito dos indígenas a se expres-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 155


sarem artisticamente em suas próprias línguas nativas. Segundo o re-
gimento do Prêmio, a literatura escrita em língua originária enriquece
a diversidade linguística, favorece a educação intercultural e contribui
para difundir as tradições ancestrais que são parte no legado histórico
dos povos. Assim, “por ello es importante consolidar e incrementar acciones
destinadas a preservar las lenguas autóctonas y contrarrestar la pérdida de
riqueza cultural de nuestras naciones” (PLIA, 2021).
Desde a sua criação, foi somente em 2019 que uma mulher veio a
ganhar a PLIA, sendo ela a mexicana Sol Ceh Moo, do povo Maya Yacu-
teco, por meio da obra Sa’atal maan (Pasos perdidos). Além de mestre em
Direitos Humanos e licenciada em Educação e Direito, Ceh Moo leva
anos com sua arte poética, e sua obra tem sido traduzida em diversas
línguas, como o japonês, grego, inglês, etc.
Grande parte de suas publicações é bilíngue: escritas primeira-
mente na língua maya yacuteca e posteriormente na espanhola. Um
dado curioso é que a mesma escritora é quem traduz seus textos, tudo
isso para que se preserve os sentidos pretendidos originalmente. Para
Ceh Moo, escrever em língua espanhola é mostrar à sociedade local a
beleza e as lutas do seu povo.
Outra de suas obras mais relevantes é o livro Jats’ts’illoolilo’ob Xi-
balbaj (Jardines de Xibalbaj). Datada de 2010, este livro foi escrito para
o Patrimônio Cultural do Instituto de Cultura de Yacutan, no México.
Desta maneira, seu acesso é livre e autorizada a reprodução desde que
citada a fonte. Seu título “Jardins de Xibalbaj”, em livre tradução, remete
ao local sagrado de mesmo nome da cultura Maya narrada no livro Po-
pol Vuh, livro documental da cultura Maya.
Xibalbaj, para os Mayas, é o mundo do subterrâneo, governado por
12 deuses mitológicos que, segundo se narra, são malignos e pregam
trapaças e favorecem a morte daqueles que adentram este espaço. Em
uma espécie de jardim (muitas das vezes em forma de labirinto), esses
deuses propunham desafios impossíveis de serem concluídos para hu-
milhar, causar dor e óbito.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 156


Neste sentido, os seis contos de Jats’ts’illoolilo’ob Xibalbaj (Jardines
de Xibalbaj), embora possuírem enredos distinto, possuem um fio con-
dutor: a temática da morte, da trapaça, de castigos e burlas. Abaixo, in-
serimos a capa do livro.

Fig.1 : Capa do livro Jats’ts’illoolilo’ob Xibalbaj

Fonte: divulgação (2010).

No intuito de relatar como uma mesma obra pode abarcar distin-


tas temáticas, escritas de variadas maneiras e que podem proporcionar
a (res)significação das identidades indígenas e de suas produções lite-
rárias, elegemos a três contos do livro: uma que voltada às narrativas
ancestrais e a cosmovisão do povo Maya Yacuteco; outra que denuncia
a interculturalidade e as mazelas do colonialismo e, por fim, uma ou-
tra que amplia o olhar sobre a mulher indígena na contemporaneidade.
Pelo fato das sociedades ainda não valorizarem as línguas indígenas e
pela razão que infelizmente não possuímos a capacidade de leitura em
língua maya, nos valeremos da versão em espanhol destes contos.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 157


Chan Sak Peepeno’ob (Maripositas blancas)

Comumente, ao falarmos de literatura indígena, automaticamente


nos remetemos às narrativas ancestrais que descrevem os modos de
ser e pensar dos povos originários. Essas histórias, além de explicar as
origens das coisas, é um reflexo da cosmovisão de cada povo. Assim,
ainda que no imaginário popular as etno-histórias são caracterizadas
“apenas” como mitos e lendas, estas literaturas precisam ser valoriza-
das justamente por abarcar elementos pertinentes e relevantes aos po-
vos indígenas.
Dito isto, para Graúna (2012, p. 275), a literatura indígena se carac-
teriza por narrar esses diversos modos de viver, sendo considerada “um
instrumento de paz a fim de cantarmos a esperança de que dias melho-
res virão para os povos indígenas no Brasil e em outras partes do mun-
do” (GRAÚNA, 2012, p. 275). Sobre narrar costumes, aponta Munduruku
(2012) que essa prática é um ato que se ativa pela memória ancestral.
Para o autor,

A memória é um vínculo com o passado sem abrir mão do que se vive


no presente. É ela quem nos coloca em conexão profunda com o que
nossos povos chamam de tradição. Fique claro, no entanto, que Tradição
não é algo estanque, mas dinâmico, capaz de obrigar-nos a ser criativos
e a oferecermos respostas adequadas para situações presentes. Ela,
a memória, é quem comanda a resistência, pois nos lembra que não
temos o direito de desistir, caso contrário não estaremos fazendo jus ao
sacrifício de nossos primeiros pais (MUNDURUKU, 2012, p. 18).

Ou seja, é por meio da memória que valores são (re)produzidos e


compartilhados. Nesta esteira, a oralidade desempenha importante pa-
pel. Nos assevera o mesmo autor (MUNDURUKU, 2012, p. 21):

A literatura passou a ser um instrumento de atualização da Memória


que sempre utilizou a oralidade como equipamento preferencial para
a transmissão dos saberes tradicionais. Na compreensão que temos
desenvolvido, este instrumento engloba muito mais que o texto escrito
abrangendo as diversas manifestações culturais como a dança, o canto,
o grafismo, as preces e as narrativas tradicionais.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 158


Pelo excerto, Munduruku (2012) nos apresenta um outro olhar para
o objeto literário. Conforme vimos, para conhecer a literatura indígena
dentro de suas especificidades é preciso ampliar a já ampla concepção
de literatura, destoando-a, inclusive, do texto escrito. Neste sentido, a
escrita e o uso de tecnologias são maneiras de potencializar esses sabe-
res e de atualização da cultura.
Dito isso, para ilustrar como as etno-histórias evocam memória
(MUNDURUKU, 2012) e narram as belezas dos modos de ser originários
(GRAÚNA, 2012), recorremos ao conto Chan Sak Peepeno’ob (Maripositas
blancas) (CEH MOO, 2010). Abaixo, transcrevemos como a autora inicia
este conto:

(1)
¿Has visto las maripositas blancas que en los días finales de octubre
invaden los campos y sin restricción alguna entran a las casas de los
poblados por las ventanas y puertas abiertas? ¿Las has observado?
Cuentan que esas maripositas blancas, que las personas mayores llaman
pe’epenitos, son los espíritus, o sea, el alma (que en maya llamamos
pixan) de las personas que ya murieron y regresan de los lugares
desconocidos para los hombres; lugares ignotos, incomprendidos, pero
que indudablemente existen (CEH MOO, 2010, p. 61).

Antes de analisarmos este fragmento, cabe uma pequena síntese


de toda a narrativa. Certo dia, enquanto almoçavam, um bando de ma-
riposas brancas, comuns naqueles tempos de outubro, adentrou a casa
de Mila e Dom Maximino. De repente, uma delas adentra em uma das
fossas nasais de Mila, causando irritação à esposa. No dia seguinte, en-
quanto voltava da milpa, o marido encontra a mulher morta em sua rede
de dormir. Ao retirarem a defunta de sua acomodação, uma mariposa
branca sai de sua boca, deixando todos boquiabertos. Para Maximino
não restava dúvida: aquela mariposa branca era a alma de sua pura e
inocente esposa. Desde o ocorrido, o viúvo vivia a chorar e lamentar a
sua perda irreparável. Contudo, certo dia, outro bando de mariposas
adentra sua casa e uma delas se aproxima e fica largos minutos pousada
em sua mão. Neste momento, o coração de Dom Maximino se encheu de
alegria, pois sabia que aquela era a sua esposa que veio para conformar-
-lhe e fazer-lhe companhia.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 159


Dessa síntese do conto e do fragmento apresentado, destacamos
dois pontos principais: um que narra os modos de viver e outro as cren-
ças do povo Maya Yacuteco. Acerca dos modos de viver, começamos pela
palavra milpa. Este vocábulo deriva da língua náhualt, também conheci-
da como asteca mexicano, e é a junção de milli (parte semeada) com pan
(acima da parte semeada). Ou seja, milpa nada mais é que uma técnica
de cultivo da lavoura praticada pelos povos originários que consiste em
aproveitar o terreno plantado, cultivando juntamente com o milho, ou-
tras hortaliças para que o solo não fique empobrecido. Essa prática, que
é uma tradição de diversos povos, está presente em muitas das obras de
Ceh Moo. Assim, o fato de Dom Maximino estar voltando da lavoura “se
ufanaba en el trabajo para que comiera su marido cuando viniera de la mil-
pa” (CEH MOO, 2010, p. 61), demonstra uma das maneiras do povo Maya
angariar fundos e prover suas famílias.
Além disso, na mesma citação anterior podemos perceber que Mila
se dedicava às tarefas do lar e que estava a cozinhar para que seu esposo
tivesse o que comer quando voltasse do seu labor. Essa é uma das múl-
tiplas identidades que as mulheres indígenas ocupam: a de guardiãs do
lar. Ancestralmente, a muitos povos originários as atividades da casa
eram (e continuam sendo), uma responsabilidade feminina. O verbo ufa-
nar, conjugado na frase como ufanaba, dão pistas que essa é uma ativi-
dade a qual Mila desfrutava com prazer, uma vez que ufanar, em acordo
com o Dicionário da língua espanhola da Real Academia Española, é sinô-
nimo de gabar-se, gozar de prazer. Assim, neste conto, a identidade da
mulher indígena Maya Yacuteca é associada a dona e governanta do lar,
não no sentido depreciativo e essencialista, mas de uma função exercida
com muito orgulho e respeito.
Já sobre o segundo ponto observado, ou seja, das crenças do povo
Maya Yacuteco, frisamos o fragmento “Cuentan que esas maripositas
blancas, que las personas mayores llaman pe’epenitos, son los espíritus”
(CEH MOO, 2010, p. 2010). Primeiramente, percebemos a memória e
tradição apontadas por Munduruku (2012), uma vez que nos é dito que
os mais velhos afirmam que mariposas brancas são espíritos. Observa-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 160


mos, neste sentido, a sabedoria ancestral e o papel da oralidade para o
reforço das narrativas originárias, já que a história das mariposas bran-
cas foi e continua a ser repassada por meio da memória e da oralidade.
Um dado importante é o fato do conto iniciar com uma pergunta:
“¿Has visto las maripositas blancas que en los días finales de octubre in-
vaden los campos y sin restricción alguna entran a las casas de los pobla-
dos por las ventanas y puertas abiertas? ¿Las has observado?” (CEH MOO,
2010, p. 61). Esse questionamento inicial nos remete à (re)contação de
história, em que o mediador, neste caso um narrador onipresente, am-
bienta a narrativa perguntando ao público a que ponto ele conhece a
história que está a (re)contar. Essa prática, na grande maioria das vezes,
é um ato proferido pelos mais velhos e conhecedores dessas narrati-
vas. Dessa maneira, o respeito aos ensinamentos advindos dos anciãos
e anciãs é também um dos modos de ser tradicionais de muitos povos
indígenas e o conto de Ceh Moo (2010) só vem a reforçar essa realidade.
Não somente para Ceh Moo, como para muitos povos e pessoas in-
dígenas, histórias como as da mariposa branca não são mitos e lendas,
mas narrativas ancestrais. Desta maneira, por acreditarem e vivencia-
rem, estas histórias fazem parte da cosmovisão de cada povo. Assim, o
exercício é de valorização e respeito. No caso em específico, o respeito
pela tradição das narrativas ancestrais pode ser observada em vários
momentos, como no excerto em que Dom Maximino crê que a mariposa
que pousou em sua mão é, na verdade, sua mulher: “–¡Qué bueno que
llegaste, mujer! –le saluda mientras le cuenta los pormenores de su vida sin
ella” (CEH MOO, 2010, p. 62).
Ante o exposto, observamos que este conto de Marisol Ceh Moo
(2010) é uma literatura indígena que ilustra a valorização das tradições
ancestrais dos povos indígenas, bem como demonstra modos de ser, vi-
ver e pensar do povo Maya Yacuteco. Assim, em uma tentativa de esque-
matização desse processo, chegamos ao seguinte esquema:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 161


Fig. 2: Esquema da relação ancestralidade e etno-histórias

Fonte: elaboração própria.

Conforme esquema apresentado, ponderamos que as literaturas


de autoria indígena são frutos da memória – coletiva e individual –,
memória esta que é mantida por meio da oralidade e é pautada em uma
ancestralidade comum de cada povo. Assim, essas produções literárias,
embora possuam a subjetividade de cada autor, engloba, também, as-
pectos da cosmovisão étnica que é plural.

¡Jaylo’ chan che’! (Judas y el palo mulato)

Continuando com o papel da memória na construção das literatu-


ras indígenas, chegamos ao segundo conto de Ceh Moo (2010). Assim
como fizemos anteriormente, introduzimos a introdução da narrativa.

(2)
El cheechen negro tiene un alma llena de orgullo. Es árbol de frondoso
follaje y raíces fuertes que lo hacen vigoroso hasta la última rama.
Conocedor de sus atributos físicos se ha tornado narcisista a más no
poder. Su frívola actitud resulta desagradable, no solamente a sus
congéneres, sino también a los habitantes del tupido bosque tropical
de donde es natural. Sin embargo, a pesar de su hermosura, el árbol de
marras no da beneficio alguno o, sin eufemismo, no sirve para nada. Aún
la deliciosa sombra que producen sus carnosas y verdes hojas no seducen
al descanso a los miembros de la fauna del monte; hasta los labriegos que

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 162


recorren los caminos huyen de su nefasta presencia. Todos saben que el
cheechen está maldito. Su resina produce ampollas en la piel y quien ose
sentarse bajo la sombra de su follaje no saldrá indemne de molestosa
urticaria en todo el cuerpo. Incluso el rocío mañanero que cae de sus
hojas es comparable con la resina del tronco. Ser alcanzado por su llanto
es causa de quemaduras y dolorosas ampollas (CEH MOO, 2010, p. 27).

Este fragmento inicial do conto nos convida a conhecer as origens


ancestrais da árvore conhecida pelos Mayas Yacutecos como cheechen.
Ou seja, uma árvore que, embora possuidora de estrondosa beleza e lin-
das folhagens, não serve de fruto nem de sombra, pois carrega consigo
uma maldição, além de ser muito tóxica, o que a torna uma planta soli-
tária. Ao nos aprofundar na leitura, percebemos o quanto esta obra de
Ceh Moo é dotada de mesclas culturais muito fortes.
Em resumo, o conto narra a maldição que a árvore conhecida como
cheechen carrega. Naqueles tempos, andava por toda a aldeia o Filho de
Deus20, curando e fazendo milagres por onde passava: “Así andaba ese
Hijo de Dios: haciendo el bien a cuanto hombre encontrara en el camino,
27 nuestros dioses también sienten celos por tantas atenciones a ti” (CEH
MOO, 2010, p. 27). As benfeitorias do Filho de Deus começaram a se es-
palhar e os deuses3 Mayas começaram a sentir ira, pois estavam sendo
esquecidos: “nuestros dioses también sienten celos por tantas atenciones a
ti” (CEH MOO, 2010, p. 27). Por vingança, os deuses decidiram matar ao
Filho de Deus que, avisado desse castigo, foge às matas com seus discí-
pulos e sua mãe para tentar salvar-se do seu destino trágico.
Todos acreditavam que ninguém iria encontrá-los na selva, que era
robusta, truncada e muito fechada, em forma de labirinto. Contudo, um
dos discípulos, Judas, estava amedrontado com a ideia de ser persegui-
do: “La aflicción se convirtió en envidia y la envidia se transformó en odio
que consumía su espíritu. Así, un día Judas decidió separarse del camino y
buscar a los perseguidores” (CEH MOO, 2010, p. 28). Por fim, traindo aos
seus e tentando salvar-se, Judas decide entregar o paradeiro do Filho de
Deus, que acaba morto. Nisso, Judas, arrependido do que fizera, resolve

20 Utilizamos Deus em caixa alta e deuses em letras minúsculas em conformidade com a eleição feita pela
autora: “Hijo de Dios” e “dioses”.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 163


suicidar-se. Para isso, planeja enforcar-se em alguma árvore, contudo,
esta teria de ser a árvore certa. Porém, nenhuma árvore queria man-
char sua vida com um acontecimento tão trágico: “Durante mucho tiem-
po anduvo Judas buscando el árbol que le sirviera para ahorcarse, pero no
lo encontraba: todos tenían un destino marcado” (CEH MOO, 2010, p. 29).
Por fim, Judas encontra uma linda e elegante árvore e nela resolve se
enforcar. Ao perceber o que havia acontecido, a árvore percebe a maldi-
ção que carregaria pelo resto de sua vida: “Cuando el cuerpo sin vida de
Judas empezaba a descarnarse colgado en una de sus ramas, el árbol cayó
en la cuenta de su maldición. Ahora era completamente venenoso. Así cayó
la maldición en el cheechen negro” (CEH MOO, 2010, p. 29).
Esta narrativa, ainda que explique as origens ancestrais de uma ár-
vore, gira em torno do contato intercultural e, por meio dele, perfaz uma
denúncia à colonização. Para Danner, Dorrico e Danner (2020, p. 69), a
literatura indígena deve ser trabalhada/consumida sob uma “perspec-
tiva anticolonial de resistência, luta e reelaboração do que se é, em crí-
tica e enquadramento da sociedade envolvente” (DANNER; DORRICO;
DANNER, 2020, p. 69). Ou seja, ainda que “aparentemente” as etno-his-
tórias abarquem elementos de outras culturas, não devemos esquecer
a violência histórica sofrida por povos e pessoas indígenas. São popula-
ções que foram dizimadas e/ou que tiveram ceifados seus modos de ser
graças às imposições linguísticas, epistêmicas, culturais e religiosas do
colonizador.
Por mais que o texto de Ceh Moo narre uma passagem bíblica do
cristianismo, ou seja, a morte de Cristo, não podemos esquecer das fe-
ridas que permanecem vivas nos corpos indígenas, historicamente ca-
tequizados. Além de introduzir alguns elementos da cosmovisão de seu
povo (origem das árvores venenosas), Ceh Moo denuncia a imposição
religiosa: “nuestros dioses también sienten celos por tantas atenciones a
ti” (CEH MOO, 2010, p. 27). Somente por esta frase podemos inferir a
denúncia proferida pela autora: nossos deuses estão bravos pois estão
sendo trocados e esquecidos pelos seus.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 164


Cabe aclarar que não intencionamos nos aprofundar nas análises
deste conto, mas demonstrar que as literaturas indígenas abarcam,
também, denúncias do real, neste caso, nas sequelas do colonialismo e
da catequização. Desta maneira, observa Librandi-Rocha (2014) que não
devemos conceber as etno-histórias como meramente obras ficcionais,
pois carregam consigo traços do real, sobretudo passagens violentas e
traumatizantes do real. Assim, é preciso lê-las (as obras de autoria indí-
gena) considerando as lutas e denúncias proferidas por indígenas, por
meio de uma leitura de empatia e de alteridade .

Jun túul aj kalan (Chaperón de alcurnia)

Ainda sobre o contato intercultural, Hernández de la Cruz (2015)


nos aponta que a literatura indígena abarca temáticas muito além das
tradições ancestrais. Além disso, essas temáticas podem ser frutos tan-
to do contato entre culturas, quanto emergir de dentro da própria et-
nicidade. Neste sentido, podemos falar da não essencialização das iden-
tidades ameríndias, uma vez que cada povo e cada pessoa possui a sua
subjetividade de pensamento e modos de agir ante as diversas situações
sociais. De acordo com Woodward (2000), o essencialismo das identida-
des diz respeito a ideia de “essência”, ou seja, características que podem
ser físicas, psicológicas, comportamentais, materiais, etc., que “norma-
tizam” e são “comuns” aos membros de determinado grupo social. Nes-
te sentido, “a identidade é vista como fixa e imutável” (WOODWARD,
2000, p. 12).
Sobre a construção de uma identidade homogênea das mulhe-
res indígenas escritoras, aponta Sol Ceh Moo:

(3)
Nunca me ha gustado ser mediocre o limitada, siempre he estado en
búsqueda de ser un ejemplo y ser grande en lo que hago, soy consciente
de que la literatura primero fue gráfica, todo contado con imágenes
y grafías jeroglíficas y la oralidad, pero aclaro, yo no soy trasmisor de
historias de los antepasados, yo soy creadora de obras literarias desde

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 165


mi propio idioma materno, mi cosmovisión y con mi forma fresca de ver
mi cultura, también con la consciencia de que no sólo existimos nosotros
en este mundo, sino muchas culturas , por ello he buscado un lugar en
el mundo para dar a conocer mi pueblo, mi madre, su cosmovisión y
existencia. (CEH MOO, 2019, s/p).

Nesta fala de Ceh Moo (2019), observamos a ideia de uma identidade


plural. Enquanto escritora e mulher indígena, a autora evoca a cosmovi-
são e a ancestralidade do povo Maya Yacuteco em sua escrita literária.
Por outro lado, ela mesmo nos diz “não sou transmissora de histórias
dos meus antepassados, mas criadora de obras literárias desde minha
língua, minha cosmovisão e minha maneira de ver minha própria cul-
tura” (CEH MOO, 2019, s/p, tradução nossa). Ou seja, suas produções
abarcam traços de verossimilhança étnica, trazidos, porém, desde a sua
própria subjetividade criativa.
Dito isso, para ilustrar uma outra identidade da mulher indígena
Maya Yacuteca por meio da obra de Ceh Moo, valemo-nos do conto Jun
túul aj kalan (Chaperón de alcurnia). Novamente, trazemos uma pequena
síntese da obra para iniciarmos as discussões.
Muitas pessoas habitavam aquela aldeia, sendo Inocenta Cuxín a
única mulher no raio de quilômetros. Seu esposo, um comerciante de
madeiras, lhe abandonava com muita frequência, uma vez que vivia de
região em região em prol de sua labor. Inocenta, que ficava sozinha nos
períodos de ausência de seu esposo, buscava uma forma diferente de
acabar com a solidão: recebendo visitas íntimas de diversos homens que
saíam para caçar. Desconfiado, o marido pede a seu compadre, que é
mestiço21, que vigiasse a sua mulher enquanto estivesse fora. Inocenta,
que de inocente só tinha o nome, percebe que estava sendo vigiada e
passa a provocar o seu vigilante com jogos sexuais. Para que possa rece-
ber as suas frequentes visitas, Inocenta propõe alguns desafios a seu vi-
gia para que ele não narrasse a seu esposo a sua luxúria. Contudo, estes
desafios eram impossíveis de se conseguir, como por exemplo, trazer
em poucos minutos uma quantidade enorme de água do poço dentro de

21 Termo utilizado pela autora para se referir a pessoas com mescla cultural/identitária. Ou seja,
frutos da relação entre indígenas e não indígenas.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 166


um cesto de vime, propositalmente furado por Inocenta para que o de-
safio não fosse concluído. Após o insucesso, o compadre se vira e deixa
de vigiar a Cuxín, que continuou a satisfazer seus desejos carnais rece-
bendo visitas constantes dos caçadores da região.
Neste conto destacamos dois pontos de discussão que se entrecru-
zam: o protagonismo feminino e a construção de uma identidade não
essencializada da mulher indígena. Ainda que neste conto a persona da
mulher indígena esteja relacionada à guardiã e detentora das tarefas
do lar, não percebemos destaque nas tarefas domésticas, mas nos dese-
jos íntimos da personagem. Pelo contrário, encontramos a uma mulher
empoderada, com desejos carnais, provocadora e conhecedora da fra-
queza dos homens, como podemos observar no seguinte fragmento: “–
Ven. Acuéstate en mi hamaca – convidábalo con voz melosa y movimientos
de invitación con los dedos de su mano derecha–. ¡Ven, diablito, ven! Total
que tu compadre ni se va a enterar” (CEH MOO, 2010, p. 21).
Ademais, a construção da personagem Inocenta se relaciona di-
retamente com o título do livro: Jats’ts’illoolilo’ob Xibalbaj (Jardines de
Xibalbaj) (CEH MOO, 2010). Os deuses de Xibalbaj, segundo as histórias
ancestrais do povo Maya narradas em Popoh Vu, propunham variados
desafios recheados de burlas e trapaças para que os candidatos não con-
seguissem êxito e vitórias. Da mesma forma, Inocenta propunha tarefas
impossíveis de serem concluídas, tudo para que suas vontades fossem
atendidas, conforme vemos no seguinte excerto:

(4)
Al amanecer, el Diablo, emocionado y contento, pidió su primera prueba.
– ¿Qué es lo que tengo que hacer? –preguntó con curiosidad.
La mujer sonrió y fingió arrancarse un cabello de la cabeza, que le alcanzó
inmediatamente.
–Quiero que hagas lacio este cabello rizado –le dijo retadoramente
mientras blandía una maléfica y enigmática sonrisa (CEH MOO, 2010,
p. 22).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 167


Nesta tarefa, o compadre deveria alisar o cabelo de Inocenta e, caso
conseguisse, ela deixaria de receber suas visitas íntimas. Contudo, de
maneira tinhosa (“fingió arrancarse un cabello de la cabeza”), entregou
uma mecha de cabelo preparada com métodos artificiais que impedem
o seu alisamento por completo. Aqui encontramos uma vez mais a cons-
trução de uma identidade não essencializada, já que comumente não
encontramos em obras literárias de autoria indígena uma personagem
feminina com características mais além das guardiãs do lar e conhece-
doras das tarefas domésticas e da cozinha.
Percebemos, neste conto, que apenas a personagem feminina pos-
sui nome: Inocenta. Seu esposo sempre é descrito como “esposo/mari-
do/hombre”; o vigia de “compadre/mestizo” ou de nomes satânicos, como
“Mefistófeles/Lucifer/Diablo/Satanás”, no sentido que ele estava a ser o
causador de que a mulher não recebesse mais visitas íntimas enquanto
seu esposo está fora de casa e, por fim, os amantes de Inocenta são des-
critos apenas como “cazadores”. Podemos entender, neste sentido, que
se trata do protagonismo feminino tanto na construção de uma perso-
nagem poderosa e articuladora de variadas artimanhas, quanto no fato
de que essa não nomeação dos personagens masculinos pode eviden-
ciar a mulher como sendo a forte e o homem o submisso. De todas for-
mas, o núcleo de toda a narrativa gira em torno de Inocenta, seu íntimo
e formas de agir e pensar.
Ante o exposto, podemos dizer que mais que evocar o protago-
nismo da mulher indígena, Sol Ceh Moo, por meio da sua escrita literá-
ria, propõe o empoderamento feminino. A personagem é construída de
maneira a mostrar os desejos, a inteligência e a subjetividade da mulher
indígena. Assim sendo, evidenciamos uma vez mais a construção de
uma identidade não essencializada e heterogênea da personagem femi-
nina nas etno-histórias da escritora mexicana.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 168


Por uma Literatura Indígena diferencialista

Ao longo deste texto, intencionamos, por meio da obra de Sol Ceh


Moo (2010), trazer um panorama geral da literatura indígena, suas fun-
ções e características. Contudo, aponta Graça Graúna (2013), que as
etno-histórias são diferencialistas, não se enquadrando em maneiras
postas de ler, tampouco em modelos impostos que visam encaixá-las
dentro de modelos ocidentais.
Nosso intuito foi mostrar como uma mesma obra abarca diferentes
temáticas, algumas mais tradicionais e outras de denúncia, caracteri-
zando-se como um ato político de resistência. Com isto, acreditamos
estar contribuindo para uma (res)significação destas produções artís-
ticos-literárias, uma vez que o imaginário popular tende a conceber o
indígena enquanto selvagem e sem cultura e suas histórias reduzidas a
mitos e lendas, conforme nos assevera Munduruku (2012).
Do mesmo modo que as literaturas indígenas são plurais, tanto em
suas estéticas quanto suas temáticas, as identidades indígenas também
o são. Desta forma, outra de nossas iniciativas foi favorecer que a iden-
tidade da mulher indígena, Maya Yacuteca, neste caso, deixe se der con-
cebida de forma essencialista, passando a plural como todas as outras
identidades sociais e culturais.
Por fim, mais que discutir/problematizar algumas das questões
indígenas, como suas lutas e modos de ser, esperamos que este texto
favoreça o hábito da leitura de obras como de Sol Ceh Moo (2010), bem
como de outras autoras e autores indígenas. O exercício é, portanto,
de aproximação e uma leitura literária dentro das especificidades das
etno-histórias.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 169


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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 171


Repensando a sala de aula:
Solano Trindade, o rap, o resgate da
identidade afrodescendente e a poesia
como arma libertadora

Vera Horn

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-10

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 172


— Senhores! basta a desgraça
De não ter pátria nem lar.
(Castro Alves)

“...Stamos em pleno mar...”


Estamos em plena angústia!
(Oswaldo de Camargo)

a minha poesia
é som
é sã
é-sou
é soul
(Cuti)

Quando se fala em ensino de língua-literatura, em particular, no


modo no ensino de Português e do Português como Língua Estrangeira
(PLE), que obras compõem um “cânone” escolar ou acadêmico? Em que
medida o “cânone” escolar se repete na escolha de textos num curso de
português como língua estrangeira? Que textos acompanham a prática
da sala de aula ou as práticas extra-escolares relacionadas ao ensino da
língua? Como o “cânone” se relaciona com os autores brasileiros indí-
genas, afrodescendentes e imigrantes de variadas gerações (italianos,
japoneses, alemães, entre outros) e com a diáspora?
Não raro, a literatura serviu de apoio a discursos nacionais, como
na Itália, ao contribuir para a consolidação de uma identidade nacio-
nal, operando, portanto, como colante no processo de unificação, ou na
Inglaterra, onde se tornou instrumento de conquista e cumpriu a fun-
ção de forjar nos administradores coloniais britânicos uma identidade
nacional (CARBONIERI;JESUS, 2013, p. 123-124). O mesmo ocorreu no
Brasil, se pensarmos no Romantismo, inserido no momento eufórico de
uma independência recente, ou no Modernismo da antropofagia e no
desejo de ambos de estabelecer uma certa autonomia literária em re-
lação à Europa e exercer o direito de pensar diverso. No entanto, num

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 173


contexto unificador, os discursos outros correm o risco de se tornarem
esmaecidos, invisíveis e, por fim, esquecidos ou mesmo negados.
Frequentemente, o texto literário é um adendo do ensino da gra-
mática e não estabelece vínculos com a cultura em que é inserido, nem
com a formação do cidadão. Por vezes, é considerado isoladamente em
relação ao ensino da língua. Desta forma, ao ser divorciada da língua e
vinculada a um “exercício” ou a uma exemplificação de fatos gramati-
cais, a literatura perde, também, a sua característica de arte.
As diferenças, em tal contexto, não são contempladas ou o são, em
mínima parte. A literatura, entendida como um direito, como a definiu
Antonio Candido, e veículo das mais variadas histórias, preencheria
esse espaço (seria, portanto, o verdadeiro colante), tornando visíveis os
discursos das mais variadas vozes que compõem a nação e não só quan-
to à leitura individual de textos, entendidos numa acepção ampla, mas
também na organização de redes de leitura (como por exemplo, clubes
do livro, saraus, encontros com o autor, apresentações etc). O desenvol-
vimento de redes de leitura configura-se como prática democrática e
não só promove a prática da leitura e o exercício da crítica como tam-
bém o conhecimento da alteridade.
Segundo Carlos Alberto Torres, sala de aula e globalização estão in-
terligados no mundo contemporâneo. Para Torres, o professor precisa
colaborar no processo de tradução não só do conhecimento, mas tam-
bém de identidades e culturas. Para lidar com a diversidade, o estudioso
sugere “fortalecer o diálogo, ajudando a estabelecer regras de confronto
e negociação, tentando mostrar como a vida democrática pode acomo-
dar uma diversidade de interesses, identidades e ideologias”. O objeti-
vo, para ele, “é a criação de uma consciência coletiva intercultural que
promova o convívio entre as diferenças e seja capaz de combater duas
coisas que fazem muita falta ao mundo de hoje”, ou seja, o déficit moral
e o déficit de solidariedade (TORRES, 2008). Daí a necessidade, segundo
Canclini, de tratarmos ao mesmo tempo da globalização e da intercul-
turalidade (CANCLINI, 2007 apud SOUZA, 2016, p. 97).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 174


Ainda segundo Torres, em outro texto, o desafio para pais, educa-
dores, políticos e estudantes é pensarem de forma crítica sobre “a mi-
ríade de práticas de exclusão que continuam a informar o processo de
escolarização, trazendo, assim, para primeiro plano, as questões do po-
der e da dominação, de classe, raça e gênero” (TORRES, 2002, p. 290).
Estabelecer um diálogo com a diversidade significa, ao mesmo tempo,
dialogar com as questões de poder e dominação que se perpetuam na
escolha de determinados conteúdos ou programas. Carbonieri, discor-
rendo sobre o ensino de literaturas de língua inglesa nas universidades
brasileiras, questiona o fato de as produções de grupos ditos marginali-
zados não terem a mesma visibilidade quando da escolha de conteúdos
programáticos nos referidos cursos:

as produções de grupos marginalizados, mesmo dentro da Inglaterra


e dos Estados Unidos, têm recebido atenção equivalente às obras de
autores do sexo masculino, brancos e de elite? Será que somos capazes
de superar a colonização cultural que parece perdurar mesmo após o fim
do período do estabelecimento de colônias pelas potências europeias?
(CARBONIERI apud JESUS;CARBONIERI,2016, p. 128).

Será que, no que se refere ao estudo da língua portuguesa, somos


capazes de superar os efeitos da colonização (e do sistema escravagista)
que ainda perduram? O rap Abolição falsa, de Preta rara, revela a invisi-
bilidade de figuras negras de destaque na história brasileira nos currí-
culos escolares e, pelo contrário, o enfoque no “que é de fora”:

Na escola não aprendi


Aprendi na escola da vida
Estudei me informando atrás de sabedoria
Nossa cultura esquecida
Apagada e queimada
Na escola nunca ouvi
Falar de Dandara
Somos obrigados aprender o que é de fora
Europa Oriente, essa cultura não é nossa
(PRETA RARA, Abolição falsa)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 175


Antoine Compagnon, na sua Aula Magna inaugural dos cursos de
literatura do Collège de France, em 2006, e que se tornou livro (Litera-
tura para quê?, na tradução brasileira), observa que, no fim do século XX,

a literatura e o seu ensino foram acusados de dissimular os antagonismos


que atravessam a sociedade, por exemplo, pretendendo que uma estreita
seleção da literatura nacional – o famoso cânone branco, macho e morto
– fosse a expressão da humanidade universal (COMPAGNON, 2009, p.
71).

Mas, continua o autor, a filosofia moral contemporânea restituiu


emoção e empatia à leitura: “o texto literário me fala de mim e dos ou-
tros (...) quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por
seu destino; suas felicidades e seu sofrimento são momentaneamente
os meus” (COMPAGNON, 2009, p. 49). E assim essa literatura que des-
concerta, desnorteia, desorienta, no dizer de Compagnon, cria um eu
autônomo, capaz de ir na direção do outro; ela nos leva a uma experi-
ência preciosa e indispensável com a alteridade, “nos torna sensíveis ao
fato de que os outros são muito diferentes de nós e que seus valores se
distanciam dos nossos” (COMPAGNON, 2009, p. 47).
A literatura possibilita a percepção da diversidade e vai de encon-
tro ao discurso unificador e homogeneizador de linguagens e culturas.
Conforme nos assevera Souza (2016),

neste viés de análise, a literatura ‘desenhará’ personagens,


acontecimentos, situações nas quais as especificidades de variados
grupos humanos, suas maneiras de ser, agir, viver possam ser
representadas e principalmente, entendidas como relacionais (...)
propiciar variadas experiências sobre grupos sociais de perfis diversos
quanto a gênero, culturas, etnias, épocas, gerações entre outros
(SOUZA, 2016, pp. 99-100).

Neste sentido, é de fundamental importância a inclusão de textos


através do quais se vejam representados os povos que fazem parte da
formação e que compõem a sociedade brasileira sem distinção, como
negros, indígenas, mulheres, imigrantes, moradores das periferias e das
zonas rurais. O rap Sub-raça, de Câmbio negro, sublinha a importância
da representação ativa:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 176


O valor da própria cor/Não se aprende em faculdades ou colégios/E
ser negro nunca foi um defeito/Será sempre um privilégio/Privilégio
de pertencer a uma raça/Que com o próprio sangue construiu o Brasil
(CÂMBIO NEGRO, Sub-raça).

O propósito é que não se vejam apenas representadas, mas sobre-


tudo, que falem com sua própria voz, em primeira pessoa, em lugar do
apagamento, invisibilidade ou dasub-representação.
De acordo com a definição de letramento como “conjunto de prá-
ticas de leituras sociais diversas que abarcam tanto várias expressões
de oralidade quanto as da escrita focalizadas em sociedades diversas e
expressas também de múltiplas linguagens” (SOUZA, 2016, p. 103), os
textos literários indicados para leitura devem passar pela compreensão
de que a comunidade nacional é heterogênea, o que compreende textos
de autoria e procedência diversas, textos que tenham voz ativa em rela-
ção a suas histórias e culturas.
Para esta concepção integradora, apresentamos como proposta o
letramento diaspórico, expansão do letramento literário que focará, por-
tanto, a produção literária das comunidades diaspóricas, a sua memó-
ria, herança ou ancestralidade. No Brasil, são múltiplas as comunidades
diaspóricas a serem consideradas: africanas de procedências diversas,
italiana, alemã, japonesa, polonesa, russa, portuguesa, espanhola, síria,
libanesa, hebraica, pomerana, povos originários, entre outras. O letra-
mento diaspórico parte da ideia de resgatar as comunidades diaspóri-
cas, promovendo a sua inclusão. Dessa forma, estaremos desenvolvendo
também a consciência crítica do aluno, levando-o ao conhecimento e à
reflexão sobre a presença e inserção das comunidades diaspóricas na
sociedade, o que lhe permitirá, também, refletir sobre sua própria situ-
ação/condição.
A seleção de textos que privilegia um único segmento social refor-
ça a ideia de que aquele é o único sistema, levando ao confinamento de
outros meios de expressão em um gueto (MATTOS; VALÉRIO, 2011). Da
mesma forma, podemos afirmar que a seleção de textos que reproduz

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 177


simplesmente um “cânone” escolar reforça a invisibilidade e asub-repre-
sentação da diferença e reforça a ideia de uma comunidade homogênea.
Nesse processo, torna-se relevante a terceira vantagem apontada por
Bradford (1968) em relação à contribuição da literatura para o estudo
de uma língua adicional, isto é, o texto literário permite que os alunos
entendam as sociedades onde aquela língua é falada, facultando-lhes in-
clusive uma compreensão mais aprofundada da utilização da língua .
Também de fundamental importância para a questão do letramen-
to diaspórico é a possibilidade apontada por Lazar, segundo a qual o
texto literário cria um contexto propício à compreensão de como um
sujeito de determinada sociedade se sente ou se comporta. Em suas pa-
lavrasm,“at the same tmhime, literature does seem to provide a way of
contextualising how a member of a particular society might behave or
react in a specific situation” (LAZAR, 1993, p. 17). É ainda Lazar que apon-
ta para o enriquecimento derivado da experiência com textos literários
de outras culturas, o que levará também a uma maior consciência: “ex-
posing students to literature from other cultures is an enriching and
exciting way of increasing their awareness of different values, beliefs,
social structures and so on” (cit, 1993, 62).
Partindo do pressuposto de Torres de que sala de aula e globali-
zação estão interligados no mundo contemporâneo, a prática de letra-
mento em cursos de língua materna ou estrangeira vai além da deco-
dificaçãolinguística ou das práticas explicitadas anteriormente, como a
utilização do texto literário com o fim único da exemplificação grama-
tical, fazendo com que a literatura deixe de ser arte literária para ser-
vir apenas a propósitos didáticos. O propósito do trabalho com o texto
literário não é, portanto, apenas o entendimento e o conhecimento de
estruturas linguísticas por meio do texto literário e a capacitação para a
leitura, mas inclui a formação de leitores críticos e questionadores atra-
vés do letramento, tendo-se em vista que “o letramento literário é uma
prática social” (COSSON, 2006, 23) e formadora, como também “[...] nos
fornece, como nenhum outro tipo de linguagem faz, os instrumentos
necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito
linguagem” (idem, p. 30).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 178


Não se trata de uma proposta excludente, mas ao contrário, propõe
uma inclusão. A seleção de textos para o letramento literário pode se-
guir as mais variadas direções, desde o cânone às preferências pessoais
do professor aos ditames dos programas das próprias escolas/univer-
sidades e do mercado editorial. A questão é complexa e como afirma
Cosson (2006), os critérios de seleção não atuam de maneira isolada uns
dos outros. Até pouco tempo atrás, aponta o estudioso, a questão era
relativamente fácil de ser resolvida, pois o professor precisava apenas
seguir o cânone. Mas essa adequação deixa de ser um “mantra” a partir
do momento em que o cânone passa a ser questionado nas universida-
des, inicialmente pela crítica feminista e depois por outras correntes te-
órico-críticas, que questionam a representatividade das obras selecio-
nadas e denunciam preconceitos de gênero, classe e etnia, entre outros
aspectos. Ainda segundo o autor, o cânone traz preconceitos, mas não
podemos deixar de dialogar com a herança cultural representada por
ele, mesmo que seja para recusá-la, reformá-la ou ampliá-la. Tais crité-
rios podem e devem ser democráticos e contemplar a diversidade cul-
tural e os valores da comunidade de leitores (COSSON, 2016, pp.33-34).
Daí a importância de resgatar, inclusive, as vozes diaspóricas da
nação. O letramento diaspórico apresenta um espaço que vai além da
ideia de comunidade homogênea e das desigualdades, resgatando vozes
silentes ou não raro silenciadas, mas que fazem parte do tecido da na-
ção, tendo-a construído (“E con l’industria dei nostri italiani, Abbiam for-
mato paesi e città”, como recita La Merica, do imigrante Angelo Giusti22). O
panorama que nos apresenta Torres requer um sujeito preparado para a
diversidade e não apenas para uma ideia hipotética de comunidade una,
representada por aquilo que Compagnon chamou de “o famoso cânone
branco, macho e morto” (COMPAGNON, 2009, p. 49). Ainda segundo o
autor, a literatura percorre regiões da experiência que os outros discur-

22 “e com o engenho de nossos italianos, construímos vilarejos e cidades”. “La Merica”, mais conhecida como
“Merica Merica”, fala de uma “Merica” (o Brasil) de grandes espaços (“l’è lunga e l’è larga”), rodeada de montes
e planícies, que os imigrantes italianos povoaram, construindo vilarejos e cidades. Faz parte de Poemas de um
imigrante italiano, de Angelo Giusti e deste texto aparecem, nas regiões mais tradicionais da imigração italiana,
variações ou acréscimos. Tornou-se o hino da imigração italiana no Rio Grande do Sul e tema dos 130 anos da
imigração italiana em Santa Catarina. O poema original encontra-se em GIUSTI, 1976, p. 65.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 179


sos negligenciam, mas que a ficção reconhece em seus detalhes” (COM-
PAGNON, 2009, p.64). Essa negligência leva a escritora Chimamanda N.
Adichie a afirmar em uma Ted talk que “histórias podem destruir a dig-
nidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa digni-
dade perdida”(ADICHIE, 2009). O letramento diaspórico contribui para
reparar essa falta/ausência e dialogar com a literatura diaspórica em
cursos de língua portuguesa.
Para este artigo, o foco é a diáspora africana no Brasil. No capítulo
“Toma lá dá cá: o sistema escravocrata e a naturalização da violência”,
Lilia Schwarcz se refere à diáspora africana no Brasil como “imigração
compulsória” (p. 86); “êxodo forçado” (p. 87); “comércio escravagista,
modalidade de mercado que levou ao banimento e exílio de milhões de
pessoas” (p. 88); “o mais opressivo dos modelos migratórios“ (p. 88); “di-
áspora africana na América” (p. 89); “exigia (...) trabalhadores de todo
alienados de sua origem, liberdade e produção” (p. 91), sublinhando des-
ta forma tanto o fato de ser um processo imigratório que gerou uma
numerosa diáspora quanto o fato de ser forçado. Essa perspectiva passa
muitas vezes despercebida nas diversas representações históricas ou
literárias da permanência africana no Brasil. Tal processo imigratório
levou Vieira a afirmar que “quem diz açúcar diz Brasil e quem diz Brasil
diz Angola” (idem, p. 89 apud SCHWARCZ E STARLING, 2015) pela asso-
ciação entre Brasil e Angola e o contingente de angolanos transportado
para o Brasil.
Para Cuti “a sagra afro-brasileira é repleta de dor, mas também de
heroísmos e mistérios” (1998, p. 202). Os textos que seguem, como pe-
quena seleção sobre a diáspora africana no Brasil, destacam a dor e os
heroísmos através da poesia, ou melhor, da negroesia23 de Solano Trin-
dade e do rap brasileiro, como contraponto.

23 Negroesia é o título de um livro de poemas de Cuti, neologismo composto pelos vocábulos negro e poesia.
O poeta e crítico explica assim a sua escolha: “Esse neologismo tem, como os neologismos em geral, uma
carga semântica variável. Esse termo abriga a ideia de uma heresia a partir de uma poesia que estaria em
contraposição à ideologia racista predominante no Brasil, uma poesia muito pouco valorizada ainda, mas que
tem perspectivas muito promissoras, pois ela traz vários aspectos do país que não foram ainda incluídos na
literatura. Falo da poesia, mas também podemos estender esta interpretação para a prosa; então seria uma
literatura que tem este propósito de traduzir a ideia de uma coletividade negra e brasileira, uma coletividade
negro-brasileira. Também este neologismo abriga a ideia do desejo de uma coletividade de se assumir como
negra no Brasil. Isso com muito orgulho pelas suas raízes, pela sua luta histórica nos quilombos e fora deles, e,
também, pela herança cultural africana. (Hess, Renate. Se o Papai Noel/ não trouxer boneca preta/ neste Natal /
meta-lhe o pé no saco! O escritor brasileiro Cuti em entrevista a Renate Hess)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 180


O rap

Não existe uma única forma de ler e nem mesmo uma única tipo-
logia de textos e, nesse sentido, o rap brasileiro também é uma fonte
original de leitura da história e da cultura negra e que reivindica a ne-
cessidade de uma voz ativa: “Chega de festejar a desvantagem/E permi-
tir que desgatem a nossa imagem/Descendente negro atual meu nome
é brown/Não sou complexado e tal/Apenas racional/É a verdade mais
pura/Postura definitiva/A juventude negra/Agora tem voz ativa” (RA-
CIONAIS MC’S, Voz ativa).
O estilo musical rap (rythm and poetry) é aqui apresentado mais
como “poetry” do que “rythm” e vem a ser o contraponto da poesia de
Solano Trindade, marcada pela oralidade, a reelaboração da identidade
afro-descendente como forma de resistência, canto de protesto, de luta
e liberdade. Nos últimos anos o rap tem adquirido maior importância
através da voz de Emicida, Criolo, Djonga, Racionais MC’s, Mano Brown,
Mv Bill e outros como Preta-Rara, Rashid, Kamau, GOG, Posse Monte
Zulu, Câmbio negro, Slim Rimografia, RZO.
Segundo Magro, “o movimento Hip hop, especialmente o ritmo mu-
sical Rap, tornou-se para os jovens da periferia urbana um meio fecundo
para mobilização e conscientização” (MAGRO, 2002 apud MACHADO;
PRADO, 2010, p. 52). Esse movimento ativo inclui também a organização
nas chamadas Posses, que constituem um meio de agregação entre os
vários integrantes de uma região e ampliar a atuação dos componentes
do Hip Hop, entre rappers, DJ’s, grafiteiros e breakers. Segundo Heloísa
Buarque de Holanda, no Brasil o Hip Hop se diferencia de outros países
por agregar a literatura “como forma de aquisição e produção de conhe-
cimento” (2008, p. 7 apud MACHADO; PRADO, 2010, p. 52). Para ilustrar
essa teoria, ela cita o trabalho conjunto de Ferréz e Mano Brown, os
saraus da Cooperifa, organizados por Sérgio Vaz, e o movimento Favela
Toma Conta, que articula literatura e Hip Hop, fundado por Alessandro
Buzo (MACHADO; PRADO, 2010, p. 52).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 181


O rap é originário do canto falado da África ocidental e, por esse
motivo, também se identifica com o canto de Solano Trindade, voltado
para a oralidade. Além disso, as letras “são denúncias de exclusão social
e cultural, violência policial e discriminação racial” (SILVA, 1999 apud
MAGRO, 2002, p. 71 e MACHADO E PRADO, 2010, p. 53).
O rap é ainda “uma expressão artística que dá voz ao povo negro,
além de se constituir como instrumento de luta e identidade” (FER-
NANDES et al., 2019, p. 6). Esta é a proposta do rap Tambor, de Kamau:
“Fortaleço como posso, faço mais que entreter/Entre ter identidade,
perder dignidade, vou pela/liberdade de ser/O que sou, onde for, pra
honrar, quem lutou/Derramou sangue e suor pra resgatar o valor/E a
luta não acabou, infelizmente, ainda tem ideia/errada pra bater de fren-
te (KAMAU, Tambor).
Esta luta e o fato de existir uma “ideia/ errada pra bater de frente”
unem o rap à poesia de Solano Trindade.

Solano Trindade

Poeta fundamental para a literatura negro-brasileira, Francisco


Solano Trindade nasceu em 1908 em Recife-PE e, além de poeta, foi pin-
tor, dramaturgo, produtor, cineasta, ativista cultural e político. Estreou
em literatura em 1936 com Poemas negros. Em 1944, já no Rio de Janei-
ro, lança Poemas d’uma vida simples. Participou de diversos movimentos
em prol da consciência negra e fundou ele mesmo a Frente Negra Per-
nambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira em 1936, com o poeta
Ascenso Ferreira, o pintor Barros e o escritor José Vicente Lima, e o
Teatro popularbrasileiro (depois do TEN de Abdias Nascimento, 1944),
em 1950, na Baixada Fluminense. Com o teatro, apresentou, a convite,
espetáculos na República Tcheca e na Polônia. Em 1958 publica Seis tem-
pos de poesia, e em 1961 Cantares ao meu povo, agora residente em Embu.
Enquanto morador de Embu, contribuiu para mudar o feitio da cidade,
que passou a se chamar Embu das Artes, e foi o fundador da famosa fei-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 182


ra. Em relação à poesia, Solano Trindade, declarou no poema Estética:

Não disciplinarei as minhas emoções estéticas/deixá-las-ei à vontade/


como o meu desejo de viver... É grande o espaço/embora se criem limites...
Basta somente/que eu sofra a disciplina da vida/ mas a estética/deve ser
sempre liberta (TRINDADE, 1988, p. 23).

No teatro, foi o primeiro a encenar Orfeu, de Vinícius de Morais, em


1956, e no cinema co-produziu Magia Verde, premiado em Cannes com
menção honrosa em 1954, e foi ator de seis filmes, entre os quais A hora e
a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos (1965). Em 1975, seu poema
Tem gente com fome foi musicado pelo grupo Secos e molhados, mas
sofreu consura e só em 1979 foi lançado com a voz de Ney Matogrosso.
Faleceu no Rio de Janeiro em 1974.
No poema Civilização branca, Solano Trindade denuncia a exclusão
do negro na sociedade e a violência recebida em função da cor da pele.
A escolha do verbo lincharam indica essa violência. Trata-se, como sabe-
mos, de um problema atual que não é restrito às fronteiras nacionais:

CIVILIZAÇÃO BRANCA
Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme
(TRINDADE, 2011, 144).

A discriminação e a desigualdade, como também a persegui-


ção policial têm sido retratadas em diversos raps como Estereótipo, de
Rashid: “Porque somos todos alvos, somos todos alvos aqui/ Pela roupa
que eu visto, a quebrada que eu moro/ E a cor que eu sou, o tira me para”
(Rashid, Estereótipo)”. Em Boa esperança, Emicida relata que esta é uma
bomba prestes a estourar:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 183


Aí, nessa equação chata, polícia mata, plow!
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
(EMICIDA, Boa esperança)

Preta rara também reconta a civilização branca de Solano e a vio-


lência policial que tem como mira o povo negro, alvo de um genocídio:

Branco correndo tá atrasado


Preto correndo tá armado
E é tiro da policia para todos os lados
Genocídio cresce no meu povo negro
Porque temos que morrer
Só porque somos pretos
Polícia racista, raça do diabo
Estão nas ruas correndo
Pra todos os lado
Com sangue no olho, em desespero
Pego o negro estudante e fala que é suspeito
(PRETA RARA, Abolição falsa)

Superar a invisibilidade significa resgatar a experiência histórica


do ser negro. Para Solano Trindade, a poesia é uma arma contra a in-
visibilidade, bem como contra a marginalização e a opressão. O poeta
conclama para o reconhecimento da história da população afrodescen-
dente, convidando o povo para que se junte a ele:

NAVIO NEGREIRO
Lá vem o navio negreiro
Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 184


Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...

Lá vem o navio negreiro


Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...

Lá vem o navio negreiro


Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...
(TRINDADE, 2011, 152)

Nos versos ondejantes que simulam o movimento dos navios no


mar deste poema que remete imediatamente a Castro Alves, o poeta
convida todos para olharem para a história da população afrodescen-
dente, caracterizada pela poesia, pela resistência e pela inteligência,
mas sem esquecer a dor da “carga humana” (a palavra escolhida é dura)
e a “melancolia”. Ele vai ao passado do navio negreiro que simboliza a
opressão e a violência para trazer ao presente o convite à redescoberta,
ao redimensionamento da diáspora africana, o mais opressivo dos mo-
delos migratórios, segundo Schwarcz (2015, 88).
O poema guarda muitas semelhanças, quanto à abordagem do
tema, com o rap de mesmo nome de Slim Rimografia, incluindo-se a
ideia de sofrimento da “carga humana” (“fomos tratados como nada,
trazidos como bicho/fomos mão de obra barata”), associada à revitali-
zação e ressignificação da identidade negra, através da “inteligência” e
da “poesia” (“somos arte, somos cultura”), bem como o convite de Sola-
no Trindade para “olhar”, que no rap se traduz como a herança cultu-
ral (“Tem um pouco de navio negreiro na viola, no pandeiro/no cordel/
na igreja, no terreiro/na cumbuca de mungunzá/na música e na poesia/

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 185


no futebol e no carnaval/no azeite de dendê, no acarajé/na minha e na
sua história” SLIM RIMOGRAFIA, Navio negreiro). Mas o navio negreiro
também é a miséria, a violência, a opressão, a luta e a resistência (“Nos
que lutaram e morreram pra não viver de joelho”), o apagamento e a
invisibilidade (“bisavós cuja voz foi silenciada”). Os ícones que marcam
a história da população africana e afro-descendente são atualizados: o
“porão é chiqueiro de camburão”, os chicotes e açoites são cacetete e
oitão; “senzala virou presídio, quilombo é favela” (idem).
O navio negreiro é um símbolo que foi associado ao camburão em
outros raps, como Boa Esperança, de Emicida: “E os camburão o que
são? Negreiros a retraficar”, e “Todo camburão tem um pouco de navio
negreiro”, de O Rappa. O quilombo é hoje a favela em Abolição falsa, de
Preta rara: “Quilombos formados/ Hoje codinome favela”. É no mesmo
rap que Preta rara chama a atenção para os novos navios negreiros:

Olha lá, olha lá


Mais um navio negreiro
Mais mão de obra de graça
Pros canavieiros
Será que a história da época
Era a mesma de hoje.

A violência da captura e do desenraizamento (e desaculturação) se


repetem ainda hoje no cotidiano da população negra, como percebemos
também no poema anterior. Não se trata de apagar a história, mas de
repensá-la a partir de um outro olhar (“vamos minha gente olhar”). É
um convite que se repete em Canta América:

CANTA AMÉRICA
Não o canto de mentira e falsidade
que a ilusão ariana
cantou para o mundo
na conquista do ouro
nem o canto da supremacia dos derramadores de sangue

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 186


das utópicas novas ordens
de napoleônicas conquistas
mas o canto da liberdade dos povos
e do direito do trabalhador…
(TRINDADE, 2014, 82).

O poeta pede que a América cante a história de outro ponto de


vista, e não a que a supremacia consagrou. Junta-se, à voz da liberdade
dos povos, a voz oprimida dos trabalhadores subjugados.
A resistência e o convite para resgatar e redescobrir a história
com outro olhar se associam, na poesia de Solano Trindade, com a to-
mada de consciência do próprio valor e da afirmação orgulhosa da ne-
gritude:“Poeta e negro sou”. O rap Sou negrão, de Posse Mente Zulu,
reafirma a consciência do próprio valor: “Futuro, presente, passado, re-
almente jogados/Fizemos a história, perdemos a memória/Temos nosso
valor, temos nosso valor”, destacando diversas personalidades negras
que fizeram história, tanto homens quanto mulheres. Essa questão se
torna mais evidente em Sou negro:

SOU NEGRO
Sou Negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs.
Contaram-me que meus avós
Vieram de Loanda
Como mercadoria de baixo preço
Plantaram cana pro senhor do engenho novo
E fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 187


escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso.
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação.
(TRINDADE, 2011, 162-163)

Nesse poema, Solano Trindade recupera o valor da oralidade tão


característico de sua poesia e da própria cultura africana: “contaram-
-me”, sem perder de vista a herança africana: “vieram de Loanda”. Não
se trata de uma história unicamente individual, mas de um povo lutador
e herdeiro do batismo dos tambores. Como afirma Cuti, “Eu sou” é ex-
pressão que atravessa inúmeros poemas negros. Ela reflere o empenho
do afro-brasileiro para reduzir a distância de si próprio e reconstruir a
visibilidade individual e coletiva” (1998, 209). Sou negrão, de Posse Men-
te Zulu, aponta para o valor do povo negro que fez a história e a sua
invisibilidade: “Futuro, presente, passado, realmente jogados/Fizemos
a história, perdemos a memória/Temos nosso valor, temos nosso valor”
(POSSE MENTE ZULU, Sou negrão).
É a mesma dinâmica do rap Negra sim, de Preta rara, que conside-
ra ainda a questão da mulher negra no panorama brasileiro:

Não tenha vergonha do que você é


Se eu não tive orgulho, não estaria de pé
Sou mais uma mulher Negra que relata
Sou muito mais do que uma simples mulata
(PRETA RARA, Negra sim)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 188


Solano Trindade não deixa de ressaltar a “carga humana” do poema
Navio negreiro ao destacar que “vieram de Loanda/como mercadoria de
baixo preço,” como também a contribuição para a riqueza do senhor de
engenho: “Plantaram cana pro senhor do engenho novo”. O poema des-
taca ainda a herança africana na cultura, simbolizada pelo maracatu, o
ativismo, a resistência e a luta daqueles que eram escravizados, tanto
homens como mulheres. O que fica de sua passagem pela história não é
o trabalho escravo, mas o samba, o batuque e o desejo de liberdade. Este
ponto é de cabal importância ao não associar a figura do negro unica-
mente ao trabalho escravizado, como geralmente ocorre. Pelo contrá-
rio, o poeta rejeita essa ideia, unindo-se, assim, à voz do rap, que assim
se pronuncia:

Não existe igualdade pra quem tem que


Correr atrás de quase 400 anos de prejuízo
Cê num sabe o que é isso, já antecipo
E nem ser seguido na loja pelo segurança
Que é do seu bairro e acha que conhece seu tipo
(...)
Esse estereótipo é baseado em séculos de história controversa
(RASHID, Estereótipo)

Em Orgulho, o poeta retoma o passado da escravidão (e a sua vio-


lência), não renegando a origem, que lhe permite conhecer seu lugar no
presente:

ORGULHO
Sou filho de escravo
Tronco
senzala
chicote
gritos
choros
gemidos
Sou filho de escravo
(TRINDADE, 1981, 43 apud BERND, 1988, 91-92)

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 189


A carta à mãe África, de GOG, passa mesma reconstrução históri-
ca, celebrando as origens africanas ao mesmo tempo em que reconhece
o doloroso passado da escravidão e sua perversa herança no presente:

As trancas, as correntes, a prisão do corpo outrora...


Evoluíram para a prisão da mente agora
Ser preto é moda, concorda? Mas só no visual
Continua caso raro ascensão social
Tudo igual, só que de maneira diferente
A trapaça mudou de cara, segue impunemente
As senzalas são as anti-salas das delegacias
(GOG, Carta à mãe África).

Criolo também canta a desigualdade e a exclusão no presente de


um povo guerreiro que lutou pela liberdade:

No pós liberdade
O negro foi marginalizado
Teve a alma aprisionada
Com as algemas da desigualdade
Hoje refugiado em favelas
Onde a vida tem suas mazelas
Combate a miséria, o preconceito e a adversidade
A igualdade e o respeito
Mais do que anseios
Também são necessidades.
(CRIOLO, Povo guerreiro)

Como em Solano Trindade, o rap celebra a luta e a resistência da


população negra, que não cede aos seus algozes de ontem e de hoje:

É por instinto que levanto o sangue Banto-Nagô...


E em meio ao bombardeio
Reconheço quem sou e vou...

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 190


Mesmo ferido, ao fronte, ao combate
E em meio à fumaça, sigo sem nenhum disfarce
Pois minha face delata ao mundo o que quero
(GOG, Carta à mãe África)

A consciência da origem permite conhecer seu lugar no presente e


ressignificar a história:

São mais de quinhentos anos


Criamos nossos laços, reescrevemos sonhos
Mãe! Sou fruto do seu sangue, das suas entranhas
O sistema me marcou, mas não me arrebanha
O predador errou quando pensou que o amor estanca
Amo e sou amado no exílio por uma mãe branca.
(GOG, Carta à mãe África)

A consciência do lugar histórico do negro na sociedade é, como vi-


mos, um tema fundador tanto na poesia de Solano Trindade quanto nas
letras de diversos raps. Da mesma forma, ambos rejeitam a figura do
negro condescendente com o preconceito, com a violência e que não
compartilha dos mesmos ideais de luta e liberdade.

NEGROS
Negros que escravizam
e vendem negros na África
não são meus irmãos.
Negros senhores na América
a serviço do capital
não são meus irmãos.
Negros opressores,
em qualquer parte do mundo,
não são meus irmãos.
Só os negros oprimidos,
escravizados,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 191


em luta por liberdade,
são meus irmãos.
Para estes, tenho um poema
grande como o Nilo.
(TRINDADE, 2011, 153)

Neste poema, são os próprios negros que escravizam e vendem,


algo que era associado nos poemas anteriores a um outro não-negro;
aqui ele também se identifica na figura do opressor. Os navios negreiros
que traziam “carga humana” e o senhor do engenho novo (“Negros que
escravizam/e vendem negros na África”) são agora transformados no
capitalista que explora os próprios irmãos. Seus irmãos são os escravi-
zados, oprimidos, em luta pela liberdade. Não é diferente a posição dOs
Racionais Mc’s em Voz ativa:

Dizem que os negros são todos iguais


Você concorda...
Se acomoda então, não se incomoda em ver
Mesmo sabendo que é foda
Prefere não se envolver
Finge não ser você
E eu pergunto por quê?
(...)
Mas eu lamento que
Irmãos convivam com isso naturalmente
(RACIONAIS MC’S, Voz ativa)

Ambos desconstroem, portanto, o estereótipo maniqueísta que se-


gue a equação negro bom = branco ruim ao apontar as contradições
daquele que o poeta recusa em ter como irmãos. O que Cuti afirma em
relação à poesia abolicionista de Castro Alves pode ser associado à poe-
sia de Solano Trindade (e ao rap): “a afro-descendência encontrou (...) um
dos instrumentos para a redescoberta de si mesma, para o seu posicio-
namento na História, reescrevendo-a” (1998, p. 205). O canto de Solano

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 192


Trindade reescreve a história, fazendo-se intérprete da diaspóra africa-
na, para quem reclama visibilidade, representatividade e afirmação. Seu
canto é o grito de uma raça, expresso no poema Canto dos Palmares:

Porque o meu canto


É o grito de uma raça
Em plena luta pela liberdade!
(TRINDADE, 2011, 137)

A liberdade reclamada por Solano Trindade (e pelo rap, como con-


traponto), é também a liberdade de manifestar-se e ter representativi-
dade, algo que se estende à sala de aula. Será que, como afirmamos no
início, conseguimos superar os frutos do colonialismo e do sistema es-
cravagista que perduram ainda hoje? Essa necessidade passa pela revi-
são do conceito de superioridade em literatura, que adota o “cânone” de
determinado ceto hegemônico, geralmente o “branco, macho e morto”
de que fala Compagnon (cit., 49). Como afirma Carbonieri,

É preciso combater o conceito de superioridade em literatura/cultura


baseada em grupos hegemônicos; “é preciso combater qualquer visão
eurocêntrica, elitista, preconceituosa” (CARBONIERI E JESUS, 2016, p.
129)

A partir do momento em que o “leitor não nasce feito e o que sim-


ples fato de saber ler não transforma o indivíduo em leitor maduro”,
como afirma Cosson (2006, p. 35), é preciso dar ao aluno a possibilidade
de se tornar e amadurecer como leitor inclusive na sala de aula de lín-
gua portuguesa, pois língua e literatura não estão dissociadas e como
afirma Cosson, “o discurso literário articula a pluralidade da língua e
da cultura (idem, p. 35). Este leitor em formação pode encontrar em seu
percurso escolar e/ou universitário grande variedade de textos (escritos
ou orais, como na definição de Souza, cit), de acordo com os recortes
adotados por suas instituições e professores.
Na escolha de um recorte, muitas são as variáveis que podem in-
tervir, desde o chamado cânone à intervenção direta de editoras ou as

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 193


facilidades do mercado; como afirma Cosson, por vezes a angústia do
que indicar leva à adoção de obras referenciadas pelo mercado, pelo
prestígio do autor ou pela “seriedade” da editora (COSSON, 2006, p.35).
Outras vezes, repetem-se as obras tradicionalmente adotadas por ou-
tros professores ou instituições por comodidade ou mesmo pela dificul-
dade de construir um recorte próprio. Essas são apenas algumas variá-
veis que podem intervir na seleção de textos; o cânone é uma delas, mas
há uma dinamicidade nesse processo, e pode haver uma combinação de
variáveis. Como afirma Michèle Petit, “mais do que guerrearem entre si,
estes universos se imbricavam” (2009, p. 48). Além disso, como lembram
Burton e Hamilton, não só “there are different literacies”, como também
“some literacies are more dominant, visible and influential than others”
(BURTON e HAMILTON in BURTON et al., 2005, pp. 10; 12).
De que forma, pois, como dissemos no início, o cânone se relaciona
com os autores brasileiros indígenas, afrodescendentes e imigrantes de
variadas gerações (italianos, japoneses, alemães, entre outros) e com a
diáspora? Neste sentido, é emblemático o convite de Solano Trindade
em Navio negreiro: “Vamos minha gente olhar”. O poeta nos convida a
olhar para a história, reavaliando-a, para além do sistema escravagista
simbolizado no navio negreiro carregado de “carga humana” e das suas
repercussões no presente (tão bem ilustradas pelo rap) e, ao mesmo
tempo, olhar para a herança cultural da população afro-descendente,
que ele chama de “poesia” e “inteligência” – a literatura, inclusive. O
convite de Solano Trindade também se articula ao combate de um olhar
parcial e preconceituoso (o perigo de uma única história), por vezes re-
dutor ou elitista, não só em relação ao indivíduo ou ao povo, mas tam-
bém em relação à sua herança cultural. “Vamos minha gente olhar” é
um convite para refletir sobre a supremacia e alargar o olhar em outras
direções, que aqui propomos como a produção literária das diásporas. A
representatividade imbuída no convite e nos versos de Solano Trindade
é a base do letramento diaspórico.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 194


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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 196


Seu cabelo rosa não é problema para mim;
o seu azul tampouco me é, por que hão de
ser para os outros? Identidade e diferença
na narrativa juvenil Dois garotos se beijando
(2015), de David Levithan

Yuri Pereira de Amorim


Silvana Augusta Barbosa Carrijo

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-11

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 197


Introdução

A literatura é uma expressão artística de grande relevância para


formação e construção de sujeitos mais críticos, questionadores e em-
páticos. O texto literário, ao manejar recursos estilísticos (MARTINS,
2000) da língua (figuras de linguagem, passagens poéticas, ambiguida-
des, entre diversos outros artifícios), é capaz de ponderar sobre temas
existenciais imprescindíveis à espécie humana, assuntos que não são
passíveis de lição e para os quais cabe não uma, mas múltiplas verdades
(AZEVEDO, 2005). Uma das temáticas contempladas pela linguagem li-
terária compete ao campo da identidade e diferença.
Desse modo, objetivamos, neste trabalho24, recorte de uma pesqui-
sa de Mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Es-
tudos da Linguagem (PPGEL) – Universidade Federal de Catalão, refle-
tir sobre a marcação da diferença na narrativa potencialmente voltada
ao público juvenil Dois garotos se beijando (2015), de David Levithan. De
maneira mais específica, intencionamos dissertar sobre o modo como
a orientação sexual (parte da identidade dos personagens) de Avery e
Ryan é fixada na esfera da exclusão e da marginalização em algumas
partes do romance de Levithan (2015). Pretendemos, ainda, evidenciar,
de modo tangencial, alguns artifícios estilísticos (MARTINS, 2000) lan-
çados pelo autor ao longo da narrativa para fornecer literariedade ao
enredo.
Dois garotos se beijando (2015) é um romance juvenil escrito por Da-
vid Levithan. O livro foi publicado inicialmente em 2013 nos Estados
Unidos sob o título Two boys kissing, pela editora Alfred A. Knopf Books
for Young. No Brasil, a obra foi introduzida no mercado literário em
2015, pela editora Galera Record, e foi traduzida por Regiane Winarksi.
O enredo, constituído de quatro tramas paralelas de jovens lidando com
questões voltadas ao corpo e às suas sexualidades, é narrado por tios

24 Pesquisa realizada com fomento (bolsa de Mestrado) CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 198


fantasmas dos garotos que protagonizam a história. Os narradores, que
se reconhecem enquanto homossexuais, foram mortos no final do sécu-
lo XX, vítimas da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e da
intolerância que, segundo seus testemunhos, era mais latente em seus
tempos. No caso deste corpus, faremos o recorte de uma narrativa do
livro literário para melhor analisarmos questões referentes à marcação
da diferença no enredo. Selecionamos a história de Avery e Ryan, dois
adolescentes que se conhecem em um baile que ocorreu em Kindling,
cidade de Ryan. Avery é de Marigold, uma cidade a 65 quilômetros de
distância de Kindling. Ryan possui o cabelo azul e Avery o cabelo tingido
de rosa. A partir do contato inicial estabelecido entre eles, principia-
do na festa, os dois flertam e começam a se encontrar. Avery teme que
Ryan se afaste após a descoberta de sua transexualidade, porém, quan-
do o garoto de cabelo azul toma conhecimento da informação, ele não se
importa e continua interessado no rapaz com o cabelo pintado de rosa.
Para o desenvolvimento do estudo, empregamos a metodologia
descritivo-qualitativa de caráter interpretativo (THOMAS; NELSON,
1996), isto é, no primeiro momento, realizamos a leitura da obra lite-
rária; em seguida, efetivamos o recorte de uma narrativa do romance
de David Levithan (2015) para melhor analisar os fragmentos que pa-
tenteiam discussões direcionadas à esfera da identidade e diferença;
posteriormente, procedemos à seleção e revisão de material bibliográ-
fico referente ao campo da literatura e da identidade e diferença; por
último, empreendemos as análises, seguindo uma linha interpretativa,
quer dizer, exteriorizando o olhar dos pesquisadores sobre os excertos
coletados.
No que concerne à escolha do tema, as justificativas se amparam
nos seguintes aspectos: 1) para trazer à tona a capacidade texto literá-
rio potencialmente destinado ao público jovem em dialogar com temas
fraturantes sem pender para o universo didático-moralizante; 2) para
viabilizar discussões a respeito da sexualidade e da identidade pelo âm-
bito do reconhecimento, do respeito mútuo e do desejo natural; 3) para
evidenciar que, ainda na atualidade, identidades que fogem ao padrão

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 199


hegemônico regularmente são marginalizadas e excluídas pela cultura
dominante; 4) pela afinidade dos pesquisadores enquanto leitores com o
romance e com as temáticas apresentadas no decorrer da obra literária;
5) pela pertinência social e política de se trabalhar obras com temáticas
LGBTQs+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers e mais) com
as novas gerações, afinal, sexualidades que fogem ao padrão estipulado
como correto historicamente (neste caso, a heterossexualidade) ainda
são vítimas das mais diversas violências e ataques.
Sob esse entendimento, o presente trabalho encontra-se organi-
zado da seguinte maneira: no primeiro momento, contemplaremos o
debate referente à constituição da identidade e da diferença na instân-
cia coletiva. Antes de nos aprofundarmos na discussão, discorreremos
brevemente sobre as concepções de identidade explicitadas por Stuart
Hall (2019) em um de seus trabalhos; posteriormente, introduziremos
as análises do estudo, com o objetivo de evidenciar como a orientação
sexual de Avery e Ryan é fixada no campo da diferença e da intolerância
em algumas partes da obra de David Levithan, Dois garotos se beijando
(2015).

Adentrando no território da identidade e diferença

Na sociedade ocidental, assuntos voltados ao campo da identidade


e da diferença têm reunido olhares teórico-críticos de diversas áreas
do conhecimento (tais como da Psicologia, da Sociologia, entre outras)
e por parte de numerosos estudiosos, que na tentativa de compreen-
derem questões relacionadas ao tema, empenham-se em explorar essa
ciência tão vasta e abrangente.
Partindo dessa percepção, objetivamos, neste texto, refletir sobre a
marcação da diferença na narrativa Dois garotos se beijando (2015). Mais
especificamente, intencionamos ponderar sobre a forma como a orien-
tação sexual (parte da identidade) de Avery e Ryan é fixada no âmbito da
exclusão e da marginalização em algumas partes do romance de David
Levithan (2015).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 200


Stuart Hall (2019), refletindo sobre a identidade, elabora um per-
curso histórico explicitando três concepções distintas de identidade,
nomeando-às “sujeito do Iluminismo”, “sujeito sociológico” e “sujeito
pós-moderno”. Para o teórico:

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa


humana como indivíduo totalmente centrado, unificado [...], cujo “centro”
consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando
o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo
da existência do indivíduo. [...] A noção de sujeito sociológico refletia
a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que
esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas
era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que
mediavam para o sujeito os valores, os sentidos e os símbolos –a cultura –
dos mundos que ele/ela habitava. [...] O sujeito, previamente vivido como
tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado;
[...] Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como
não tendo uma identidade fixa, essencial e permanente (HALL, 2019, p.
10-11).

Na esteira dessa percepção, a identidade foi considerada algo fixo e


imutável por um longo período, como denotado por Hall (2019) ao expli-
car as características do sujeito do Iluminismo. Seguindo essa linha de
raciocínio, o indivíduo conservava-se o mesmo durante toda a sua vida,
isto é, ele “nascia de determinada maneira, daquele modo seria até que
partisse dessa existência” (PAULA, 2016, p. 41). Contudo, ao longo dos
anos, o conceito começou a enfrentar alguns colapsos, e a identidade,
que até então era presumida como sendo estável e sólida, atravessou
desconstruções e deslocamentos.
Nessa perspectiva, ao pensar a identidade, é preciso compreen-
der que ela é “[...] uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga,
mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas”
(HALL, 2014, p. 104), ou seja, ao contemplar o assunto, é fundamental
assimilar que a concepção de identidade vivenciou transformações no
decurso da história, não podendo mais ser determinada como foi ou-
trora (como era apresentada pelo sujeito do Iluminismo e pelo sujeito
sociológico, por exemplo), todavia, é por intermédio dessas designações

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 201


antecedentes que diversos pesquisadores têm verificado o caráter con-
tínuo “[...] de mudança e transformação” (HALL, 2014, p. 108) da identi-
dade do indivíduo moderno.
Nesse sentido, a identidade do sujeito contemporâneo se destaca
“por ser algo da ordem da abertura, da mobilidade, da adequação cons-
tante” (PAULA, 2016, p. 43), em outros termos, a discussão que tem sido
levantada a respeito da identidade na modernidade aponta para o seu
caráter fluído, constante e fragmentado. Para além desse entendimen-
to, faz-se relevante destacar que os indivíduos assumem diferentes po-
sições identitárias no decorrer da vida, a depender das circunstâncias.
Esses múltiplos cruzamentos identitários nem sempre são coerentes,
pelo contrário, às vezes são tão contraditórios que se empurram em di-
reções opostas, “de tal modo que nossas identificações estão sendo con-
tinuamente deslocadas (HALL, 2019, p. 12). Nessa perspectiva, Kathryn
Woodward (2014, p. 31) explica que “diferentes contextos sociais fazem
com que nos envolvamos em diferentes significados sociais”, ou seja,
diferentes ocasiões requerem diferentes posições identitárias por parte
de uma mesma pessoa, logo as identidades são exteriorizadas e dispos-
tas uma(s) em relação a outra(s)
Outro ponto importante a ser realçado ao abordar a questão da
identidade moderna concerne no fato de que ela e a diferença “estão em
uma relação de estreita dependência” (SILVA, 2014, p. 74), isto é, identi-
dade e diferença são inseparáveis (SILVA, 2004) e os sujeitos só se afir-
mam como sendo pertencentes a determinados grupos, classes, entre
outros, por viverem em uma sociedade heterogênea, com múltiplas ca-
tegorias de identidades e identificações. Assim, determinadas pessoas
só se reconhecem e se definem como sendo heterossexuais, por exem-
plo, por existirem outras sexualidades, tais como a homossexualidade, a
bissexualidade, a assexualidade, entre outras.
Em harmonia com esse discurso, torna-se proveitoso ir em direção
à ideia de Woodward (2014, p. 40) quando ela pontua que “a identida-
de [...] não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença’’
(grifos da autora). Portanto, identidade e diferença não são conceitos

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 202


díspares, pelo contrário, eles coexistem em uma relação de estreita de-
pendência (SILVA, 2014). Para além dessa concepção, é necessário com-
preender que a diferença é marcada, ao menos em parte, por meio de
sistemas classificatórios (WOODWARD, 2014), isto é, via sistemas sim-
bólicos (língua e linguagem, por exemplo) e mediante formas de exclu-
são social (sucedidas por intermédio de relações de poder e processos
de subjetivação). Percorrendo essa vertente de entendimento:

[...] não é possível ignorar que no processo de atribuição de identidades


(e, ao mesmo tempo, de atribuição de diferenças) está em ação um jogo de
poder. As identidades, constituídas no contexto da cultura, produzem-se
em meio a disputas, supõem classificações, ordenamentos, hierarquias;
elas estão sempre implicadas num processo de diferenciação (LOURO,
2000, p. 62-63).

Dessa maneira, as identidades (e as diferenças) são fabricadas na


instância coletiva por meio de disputas, relações de poder e sistemas
classificatórios. Em outras palavras, para que as identidades (e também
as diferenças) sejam instituídas no contexto cultural, há confrontos,
o que significa que elas não são “[...] simplesmente definidas; elas são
impostas” (SILVA, 2014, p. 81). Logo, “afirmar a identidade significa de-
marcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o
que fica fora” (SILVA, 2014, p. 82), ou seja, no jogo das identidades e das
diferenças, há vetores de força que se empenham para incluir alguns e
excluir outros. Silva (2020), no exemplar Documentos de identidade: uma
introdução às teorias do currículo, elucida que:

São as relações de poder que fazem com que a ‘diferença’ adquira um


sinal, que o ‘diferente’ seja avaliado negativamente relativamente ‘ao
não diferente’. Inversamente, se há sinal, se um dos termos da diferença
é avaliado positivamente (o ‘não diferente’) e o outro, negativamente (o
‘diferente’), é porque há poder (SILVA, 2020, p.87).

Nessa ótica de compreensão, as relações de poder é que atribuem


significados às identidades e às diferenças, quer dizer, o poder normali-
za algumas identidades, atribuindo características positivas a elas, con-
sequentemente, as diferenças recebem um sinal negativo. Silva (2014)
acentua que:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 203


A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se
manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa
eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro
em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas
(SILVA, 2014, p. 84).

Desse modo, quando o poder opera na intenção de normalizar al-


gumas identidades, ele está buscando a concessão de atributos positi-
vos a elas. Como consequência, as outras identidades (marcadas como
diferentes) passam a ser avaliadas pelo viés da exclusão e da marginali-
zação. Louro (2018) assinala que:

Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete


ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão, e
essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada. Serão
os ‘outros’ sujeitos sociais que se tornarão ‘marcados’, que se definirão
e serão denominados a partir dessa referência. Desta forma, a mulher é
representada como ‘o segundo sexo’, e gays e lésbicas são descritos como
desviantes da norma heterossexual (LOURO, 2018, p. 18).

Dessa maneira, enquanto essa identidade passa a ser apreciada


pela ótica da normalização, dispondo de direitos e privilégios, as mulhe-
res e os homossexuais (e LGBTQs+ em geral) passam a ser representa-
dos como transgressores, isto é, são marcados como diferentes, como
consequência, são impelidos à margem do campo social, frequentemen-
te sem direitos e sem reconhecimento. Além disso, são esses indivíduos,
denominados como desviantes, que necessitam de manifestar as suas
identidades, como intercorre, por exemplo, com os homossexuais, que
frequentemente carecem de revelar suas sexualidades aos familiares e
aos amigos.
Em se tratando dos sujeitos definidos como excêntricos, Louro
(2020) elucida que por não se ajustarem e nem obedecerem às normas
regulatórias de gênero e sexualidade, eles passam a ser vistos e conside-
rados como transgressores, como resultado, são desvalorizados e desa-
creditados. A autora explicita também que “[...] uma série de estratégias
e técnicas poderá ser acionada para recuperá-los; buscando curá-los,
por serem doentes, ou salvá-los, por estarem em pecado [...]” (LOURO,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 204


2020, p. 81). O intuito de tentar “curar” e “salvar” esses corpos aponta
para a tentativa de manter a norma (a heterossexual) instaurada na so-
ciedade, isto é, de manter a normalização estabelecida pelo poder. Louro
(2020) prossegue seu estudo indicando que:

A forma ‘normal’ de viver os gêneros aponta para a constituição da forma


‘normal’ de família, a qual, por sua vez, se sustenta sobre a reprodução
sexual e, consequentemente, sobre a heterossexualidade. É evidente
o caráter político dessa premissa, na qual não há lugar para aqueles
homens e mulheres que, de algum modo, perturbem a ordem ou dela
escapem. Os custos cobrados desses sujeitos são altos. São-lhes impostos
custos morais, políticos, materiais, sociais, econômicos, mesmo que hoje
a desobediência e o desvio dessa ordem sejam mais visíveis e até mesmo
mais “suportados” do que em outros momentos. Custos que vão além do
seu não-reconhecimento cultural (LOURO, 2020, p. 81).

Portanto, as identidades que vão de encontro à norma estipulada


como legítima socialmente, não só lidam, recorrentemente, com a mar-
ginalização e com a exclusão, como precisam enfrentar a escassez de
direitos. Assim, quando os sujeitos homossexuais (e LGBTQs+ em geral)
reconhecem sua sexualidade e a vivenciam, eles não são simplesmente
marcados como diferentes, mais do que isso, eles sofrem perdas mate-
riais, sociais, morais, entre outras (LOURO, 2013).
Destarte, as identidades e as diferenças são significadas e marcadas
por meio de discursos que atribuem verdades a elas. Nessa perspectiva,
tendo em vista que as identidades são “[...] produzidas no e pelo discur-
so, é preciso compreendê-las como produtos de lugares históricos e de
instituições” (NAVARRO, 2007, p. 143), ou seja, as identidades (e as dife-
renças) são construídas, historicamente, por meio de manifestações lin-
guísticas e processos de subjetivação, no entanto, elas (as identidades,
as diferenças) “[...] são tão indeterminadas e instáveis quanto a lingua-
gem da qual dependem” (SILVA, 2014, p. 80). Por essa razão, é essencial
desconstruir discursos que naturalizam a intolerância e o preconceito
contra aqueles que estão às margens.
Tendo refletido sobre a constituição da identidade e da diferença
no âmbito coletivo, introduziremos as análises do nosso corpus sele-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 205


cionado, com o objetivo de explanar o modo como a orientação sexual
dos personagens (parte da identidade dos personagens) Ryan e Avery é
alicerçada no espaço da exclusão e da discriminação em determinadas
partes da narrativa Dois garotos se beijando (2015).
Ryan e Avery são dois adolescentes homossexuais que se conhecem
em um baile gay na cidade de Kindling. Ryan possui o cabelo tingido
de azul-turquesa, “[...] espetado como a superfície de um mar agitado”
(LEVITHAN, 2015, p. 15) e Avery possui o cabelo pintado de rosa, “[...]
da cor de um Cadillac da Mary Kay” (LEVITHAN, 2015, p. 15). Ryan é de
Kindling e Avery é de Marigold, uma cidade a 65 quilômetros de dis-
tância de Kindling. Os dois se tornam amigos no baile mencionado e a
partir desse contato inicial, a história deles começa a ser tecida. Um dia
após a festa em Kindling, os dois garotos decidem se reencontrar. Para
isso, Avery se desloca de Marigold até a cidade onde ocorreu o baile na
última noite. Ao chegar na região e encontrar a casa de Ryan, os dois se
locomovem para o rio, próximo à residência de Caitlin, tia do rapaz de
cabelo azul. Os dois estacionam o carro no quintal da mulher e pegam a
canoa (após terem o desejo concedido por ela) emprestada. Em seguida,
eles caminham em direção ao rio e remam o barco pela água até encon-
trarem um local confortável.
Ao chegarem a um trecho tranquilo e raso do rio, eles principiam
um encontro, e nesse momento, os leitores podem conhecer a subjetivi-
dade dos personagens: Ryan mora com a mãe em Kindling desde o seu
nascimento. Aos três anos de idade, o pai do adolescente foi embora,
deixando o filho e a esposa sozinhos. Aos cinco anos de idade, a mãe de
Ryan conheceu Don, o padrasto do garoto. Don e a mãe de Ryan tiveram
duas filhas, Dina e Sharon, as meias-irmãs do rapaz. Com relação à ho-
mossexualidade do garoto, ele a reconheceu durante o ensino médio e
teve o apoio incondicional de sua tia Caitlin. No que diz respeito a Avery,
ele é um garoto transexual que recebeu o apoio dos pais desde a infân-
cia. Morou em diversas cidades, pois a família sempre esteve em bus-
ca dos melhores médicos para o tratamento do adolescente. Avery, em
busca de uma nova vida, dirigiu, por diversas vezes, vários quilômetros,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 206


“[...] não para dançar e nem para beber, mas para tomar os hormônios
que colocariam seu corpo na direção certa” (LEVITHAN, 2015, p. 19)25. Ao
final do encontro, os dois garotos se beijam e assim, o fio da narrativa
dos dois rapazes se entrelaça.
Um dia após o encontro ocorrido no rio, Avery e Ryan resolvem se
ver novamente. Mais uma vez, o garoto de cabelo rosa atravessa a cida-
de de Marigold para ir ao encontro do adolescente de cabelo azul, em
Kindling. Ao estarem juntos novamente, Ryan sugere que Avery conhe-
ça os amigos dele. Ele aceita, porém, propõe que antes os dois fiquem a
sós por um tempo. Ryan concorda e, então, solicita que Avery dirija até o
Mr. Footer’s, um minigolfe antigo da cidade. Ao chegarem no local, aban-
donado, os dois começam a jogar uma espécie de minigolfe imaginário,
isto é, eles começam a criar pistas e bolas de minigolfe em seus pen-
samentos, descrevendo-as na medida em que avançam pelo ambiente.
Eles ficam tão absortos no mundo que criaram que não percebem as ri-
sadas e os passos de adolescentes chegando ao local. Quando as garga-
lhadas ficam altas demais, Ryan e Avery não conseguem mais ignorar a
presença de quatro rapazes se aproximando. E é nessa parte do enredo
que os leitores podem vislumbrar o início da marginalização e intole-
rância vivenciada pelos protagonistas em razão de suas sexualidades:

São quatro. Avery não faz ideia de quem são, e nem nós, mas, como nós,
Avery tem ideia de onde isso vai dar. São os olhares de desprezo, o gingado
no caminhar, o desdém quase aleatório nas gargalhadas. É um tipo
particular de babaca, encontrado facilmente em garotos adolescentes
que andam em grupos.
— E aí, Ryan? — provoca um deles. — Quem é seu namorado?
Ryan solta a mão de Avery.
— O que você quer, Skylar? — pergunta ele.
— Vimos um carro lá fora. O que vocês estão tramando?
Avery vê agora que Skylar e um dos outros caras estão segurando tacos
de golfe. Skylar o vê olhando e sorri. Em seguida, vê uma garrafa no chão
e gira o taco, derrubando a garrafa na direção de Ryan e Avery. Ryan não
se encolhe, mas Avery, sim (LEVITHAN, 2015, p. 181, grifo do autor).

25 É importante salientar que, quando os narradores destacam que Avery viajou diversas vezes
para “tomar hormônios que colocariam seu corpo na direção certa”, o garoto estava em busca de
direcionar o seu corpo, de modo que ele formasse parte de sua identidade de gênero.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 207


Aqui, o leitor tem acesso aos primeiros indícios de perseguição e
preconceito sofrido por Avery e Ryan. A maneira como os quatro rapa-
zes se comportam em relação aos dois garotos, rindo de maneira des-
denhosa e olhando para o casal com desprezo, indica que eles não só
reconhecem o domínio que possuem sobre os dois adolescentes (por es-
tarem em maior número), como sinaliza a intolerância que eles aparen-
tam possuir em referência aos sujeitos homossexuais. Quando Skylar
questiona a Ryan quem é o namorado dele (Ryan e Skylar parecem se co-
nhecer de outros locais, pois ambos sabem o nome um do outro), a fonte
da escrita é alterada para itálico, o que revela (em nossa interpretação)
que a manifestação linguística é desempenhada pelo personagem de
modo depreciativo e insultuoso. Nesse sentido, ao indagar Ryan, Skylar
não está fazendo uma pergunta inocente, pelo contrário, ela é carrega-
da de injúria. Eribon (2008, p. 73) explica que não é incomum que o su-
jeito homossexual seja colocado “[...] numa situação de inferioridade, já
que pode ser objeto dos discursos dos outros, que brincam com ele e se
aproveitam dos privilégios que lhes é dado [...]”. Assim sendo, a expres-
são empregada por Skylar contém a intenção de ferir o casal e de estig-
matizá-los, ao mesmo tempo que ele busca se aproveitar dos privilégios
que a sua orientação heterossexual fornece.
Além do mais, quando Skylar observa Avery examinando o taco
de golfe em suas mãos, ele utiliza o objeto para atingir uma garrafa no
chão, que ao entrar em atrito com o taco, cai na direção dos dois prota-
gonistas, ocasionando uma reação de medo no garoto de cabelo cor de
rosa. Essa atitude denota outra tentativa por parte de Skylar de ratificar
o domínio sobre os corpos de Avery e Ryan, isto é, o personagem não se
contenta em praticar violência verbal. Mais do que isso, ele empreende
violência psicológica contra o casal.
À proporção que a narrativa avança, a discriminação e a violência
contra Ryan e Avery também progridem. Skylar e os três rapazes ficam
cada vez mais radiantes e destemidos ao intimidar o casal de cabelos
coloridos. O medo de Avery e a determinação de Skylar se ampliam a
cada segundo e os sentimentos dos dois rapazes parecem entrar em

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 208


uma guerra particular, batalha travada na intenção de examinar qual
sensação poderá sair vitoriosa:

[...] Skylar mira em outra garrafa, e desta vez ela se quebra com o impacto
e espalha vidro para todo lado. Os outros garotos acham isso hilário.
Avery consegue perceber que está se recolhendo, entrando em modo de
sobrevivência.
— Que porra vocês querem? — pergunta Ryan com desprezo.
— Tão valente! — debocha Skylar.
Ele joga o taco de golfe na cara de Ryan.
Ou, pelo menos, ele faz parecer que vai jogar o taco de golfe na cara de
Ryan. No último momento, ele o segura. Mas só depois que Ryan levantou
o braço e se encolheu para o golpe que não acontece (LEVITHAN, 2015,
p. 182).

Neste excerto, a violência praticada por Skylar e os amigos contra


Avery e Ryan fica nítida, isto é, os primeiros vestígios de perseguição
são transfigurados em um processo explícito de opressão psicológica.
Os antagonistas, conscientes de seus privilégios, utilizam sua superio-
ridade com o propósito de fixar a sexualidade dos dois protagonistas na
esfera da diferença. Quando Skylar mira o taco em uma nova garrafa,
que se quebra ao entrar em contato com o utensílio de golfe, sua finali-
dade, além de fornecer entretenimento aos colegas, é a de exercer poder
sobre os corpos de Avery e Ryan. Ele é o tipo de pessoa que “[...] exerce
o máximo de poder que consegue em qualquer situação que possa do-
minar” (LEVITHAN, 2015, p. 181), logo, para alcançar o domínio e a sobe-
rania sobre os corpos alheios, ele não hesita em depreciar e machucar
aqueles que estão em situação de desvantagem (seja de número, seja de
direitos). Assim, quando ele quebra a garrafa e, logo em seguida, conduz
o taco na direção do rosto de Ryan, simulando que irá acertá-lo, seu ego
e valentia se expandem, consequentemente, alguns leitores compreen-
dem que a determinação de Skylar em ferir Avery e Ryan venceu essa
batalha, ainda que ela não tenha chegado ao final.
É relevante destacar também, antes de prosseguirmos com as aná-
lises, que o fragmento estimula uma conexão entre leitor e obra, ou seja,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 209


alguns leitores, ao fazerem a leitura do trecho apresentado, podem criar
uma espécie de empatia por Avery e Ryan. Sentimentos como o medo e
a humilhação são inerentes ao ser humano, logo, quando o casal tran-
sita por essas sensações, o leitor pode se sentir representado (afinal, é
provável que ele tenha sentido medo e vergonha em algum instante da
vida), como resultado, ele pode se compadecer pela dor alheia e torcer
para que os dois adolescentes se livrem dessas angústias e dos quatro
rapazes.
Ao prosseguir com a leitura do romance, o leitor não só constata,
por intermédio dos narradores, que Ryan e Skylar se conhecem de ou-
tros tempos (ambos faziam parte de um time de Liga Infantil), como
observa a discriminação contra a orientação sexual dos dois protago-
nistas se intensificando e sendo reforçada mediante diversos tipos de
violência:

— Nós interrompemos a pegação de vocês? — diz Skylar com nojo


calculado. — Perdemos o show? — Ele está perto agora, perto demais.
Pega o taco de golfe e o usa para empurrar Avery na direção de Ryan. —
Não deixem que a gente atrapalhe. Vamos ver o que vocês sabem fazer.

Avery sente os olhos dos caras nele e não faz ideia do que eles veem.

— Vamos lá! — grita um dos caras. — Façam (LEVITHAN, 2015, p. 184)!

Esse trecho assevera a intolerância que Skylar e os colegas pos-


suem em relação à sexualidade de Ryan e Avery. Se nos fragmentos an-
teriores a incerteza circundava a mente de alguns leitores, neste excer-
to, a dúvida de que os antagonistas deslegitimam a homossexualidade
dos dois adolescentes é sanada. Ao ajustar o tom de voz para depreciar
o relacionamento dos dois garotos, Skylar não apenas se esforça para
continuar estigmatizando Ryan e Avery, marcando-os como diferentes,
como persiste em reafirmar a sua força e poder (nesta circunstância em
específico) sobre os corpos dos dois rapazes que estão em condição de
inferioridade. Além disso, Skylar (e seu grupo de amigos), não satisfei-
to com a perseguição psicológica e verbal em direção aos dois garotos,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 210


principia uma violência física contra Avery, utilizando o seu taco de gol-
fe para empurrá-lo no rumo de Ryan. Assim, a atitude do personagem
é mais uma forma de desqualificar a homoafetividade do casal, isto é,
quando Skylar empurra Avery na direção de Ryan, seu objetivo está para
além de exibir o domínio sobre a situação e sobre os personagens de
cabelos tingidos, seu propósito é o de fixar a homossexualidade deles na
esfera do entretenimento e do cômico, evidente, por exemplo, quando
ele questiona se atrapalhou o espetáculo dos protagonistas.
Ainda sobre a passagem apresentada, é possível discorrer sobre
uma economia de recursos narrativos utilizados por parte do autor, que
escrevendo pouco, diz muito. Os narradores, ao destacarem o sentimen-
to de nojo calculado por trás do questionamento de Skylar, expõem a re-
pulsa que o antagonista possui em relação a Avery e Ryan, isto é, Skylar,
ao fazer uma pergunta carregada de nojo na voz, está permitindo aos
leitores a assimilação de que ele possui aversão pelo casal (mais especi-
ficamente, pelas suas sexualidades). Assim, a emoção, transmitida por
meio de uma indagação, é tão poderosa que corta como uma faca, que
fere como um tapa. Outra marca de violência simbólica disseminada em
poucas palavras – carregadas de sentidos e passíveis de interpretação -
diz respeito ao instante em que Skylar, após empurrar Avery na direção
de Ryan com o taco, insiste para que eles (os dois protagonistas) mos-
trem “o que sabem fazer”. A escolha lexical do antagonista fornece a lei-
tura de que ele trata Avery e Ryan como dois animais excêntricos, quer
dizer, ele aborda (e constrange) os personagens como se eles estivessem
em um zoológico, prontos para entreterem o público com suas especifi-
cidades. A ideia de espetáculo é comprovada quando Skylar questiona se
ele e os amigos “perderam o show” dos personagens principais. Nesse
momento, a orientação sexual dos personagens é tratada como uma di-
ferença bizarra, como um possível show a ser oferecido a quem assiste.
Portanto, a violência (desta vez implícita) é novamente praticada contra
Avery e Ryan e a homossexualidade deles não é apenas estigmatizada,
mas tratada como algo de outro mundo, como se eles estivessem em um
circo, sendo forçados a surpreenderem o público com seus corpos.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 211


Dando continuidade ao enredo, após empurrar Avery na direção de
Ryan com o taco de golfe, Skylar e os colegas procedem a perseguição
contra os rapazes de cabelos coloridos lançando insultos na direção de-
les (as ofensas não são identificadas pelo leitor). Para além disso, Skylar
começa a provocar Ryan, fazendo sons de beijo enquanto o cutuca com
o utensílio de golfe. Ryan, com raiva, agarra o taco e tenta puxá-lo das
mãos de Skylar, contudo, o antagonista surpreende o personagem prin-
cipal e empurra o objeto, ao invés de segurá-lo com mais força. Como
consequência, Ryan cai no chão. Em seguida, enquanto o personagem
se levanta, Avery enuncia que gostaria de ir embora:

[...] — Quero ir embora — diz Avery.

Que os garotos botem a culpa nele. Que ele seja o fraco, se isso for tirá-
los dali.

— Tudo bem — diz Ryan. Ele fala para Avery, mas não tira os olhos de
Skylar. — Foi ótimo ver vocês, garotos.

— É, bicha, foi ótimo te ver também — responde Skylar.

Ryan e Avery começam a se afastar. Os garotos respondem derrubando


mais latas e garrafas na direção deles. Ryan não sai correndo. Só segue
andando, e Avery acompanha o passo dele. Vidro e alumínio os acertam,
voam ao redor deles. Os garotos estão gritando de alegria. Eles seguem os
dois por uma distância curta, mas finalmente, no sexto buraco, desistem.
Ryan despreza a sensação de gratidão que sente por isso (LEVITHAN,
2015, p. 185).

Neste fragmento, é possível observar Avery abrindo mão de seu


orgulho para evitar que a situação fique pior, quer dizer, na intenção
de impedir que a violência contra ele e Ryan seja intensificada, o per-
sonagem prefere ser classificado como fraco e covarde a continuar no
mesmo local que os antagonistas. Logo, no intento de se resguardar e de
proteger o garoto de cabelo azul, ele retira sua armadura revestida de
honra e concede a vitória a Skylar e aos três rapazes. Passamani (2009),
escritor do exemplar O arco-íris (des)coberto, explicita que “muitas vezes
é estratégico manejar a homossexualidade como uma identidade discre-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 212


ta, não a negando, mas em algum momento, encobrindo-a para driblar
a homofobia” (p. 110, grifos do autor). Portanto, quando Avery manifesta
sua vontade de ir embora, sua finalidade é a de driblar a violência contra
ele e Ryan, de modo que a circunstância não fique pior, isto é, para im-
pedir que os empurrões, as violências psicológicas e as ofensas verbais
sejam moldadas em agressões mais violentas e/ou morte, Avery opta
por suportar a intolerância contra sua orientação sexual, não negando
sua sexualidade, mas a manejando para sobreviver.
Outro ponto interessante do excerto apresentado diz respeito ao
instante em que Skylar responde Ryan, dizendo: “é, bicha, foi ótimo te
ver também” (LEVITHAN, 2015, p. 185, grifo nosso). A escolha lexical do
antagonista ratifica a intolerância que ele possui em relação à sexua-
lidade de Avery e Ryan. Ao utilizar um termo pejorativo para tratar os
homossexuais, Skylar direciona uma ofensa aos personagens principais
no intuito de “[...] garantir e reforçar a norma heterossexual, barrando
o acesso àquilo que é estigmatizado pela linguagem” (ERIBON, 2008,
p. 83), isto é, o propósito do garoto, ao lançar a injúria, é o de ressaltar
a norma heterossexual marcando a homossexualidade como diferente.
Portanto, para legitimar a norma estabelecida como legítima historica-
mente, a heterossexualidade, Skylar faz manejo de um ato performati-
vo (denominar, de forma desdenhosa, o sujeito homossexual de “bicha”)
que, conforme aponta Butler (2020), não é uma ação isolada/singular,
pelo contrário, “[...] é a reiteração de uma norma ou de um conjunto de
normas, e na medida em que adquire a condição de ato no presente, ela
oculta ou dissimula as convenções das quais é uma repetição” (BUTLER,
2020, p. 34).
É preciso explicitar, ainda, que, ao empregar um vocábulo desde-
nhoso para se referir aos gays, Skylar não está apenas estigmatizando
a homossexualidade por meio da linguagem, ele está propiciando que
outros sujeitos aprendam sobre essa sexualidade pelo viés da intolerân-
cia. Portanto, seu discurso, ao passo que busca reiterar a norma instau-
rada socialmente, comprova que “identidade e diferença estão em uma
relação de estreita dependência” (SILVA, 2014, p. 74), afinal, ao inserir a

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 213


homossexualidade na esfera da diferença, Skylar está implicitamente se
identificando com a heterossexualidade (a sexualidade vista e represen-
tada pelo ângulo da normalidade e da norma).
Ainda refletindo acerca da passagem supracitada, faz-se necessá-
rio ponderar sobre a partida de Avery e Ryan. No momento em que os
dois começam a se afastar, Skylar e os três rapazes começam a atingi-los
com vidros e alumínios, enquanto gritam de alegria. A sensação de van-
glória que perpassa o íntimo dos antagonistas é uma forma de apontar
que “quem tem o poder de representar26 tem o poder de definir e deter-
minar a identidade” (SILVA, 2014, p. 91), ou seja, as identidades são atri-
buídas e representadas via relações de poder e enquanto algumas são
caracterizadas (por meio da linguagem e mediante processos de hierar-
quização) como a norma, outras são representadas como excêntricas
e diferentes. Nesse sentido, como os quatro rapazes detêm o domínio
sobre a situação, eles utilizam seus privilégios para inferiorizar a ho-
mossexualidade dos garotos de cabelos tingidos. Deste modo, quando
Skylar e os companheiros utilizam seus privilégios para estigmatizar a
orientação sexual de Avery e Ryan, eles não estão apenas estabelecendo
distinções entre quem fica dentro e quem fica fora (SILVA, 2014), mais
do que isso, a atitude violenta dos garotos corrobora a relação de depen-
dência existente entre identidade e diferença, isto é, constata que para
eles (os antagonistas) se identificarem com a norma heterossexual, eles
precisam excluir a homossexualidade.
Ainda sobre a partida de Avery e Ryan, faz-se pertinente refletir-
mos sobre a sensação de gratidão desprezada pelo adolescente de cabe-
lo azul. Se por um lado, Skylar e os três amigos gritam de alegria após
violentarem os personagens principais, por outro, há Ryan afastando o
sentimento de gratidão que sente por ter escapado do perigo. Em nossa
interpretação, o adolescente despreza a emoção, pois gostaria que ela
emergisse em outros contextos que não o da discriminação. Para ele,
a nosso ver, gratidão deveria despontar quando os sujeitos estivessem

26 Para Silva (2014, p. 91) “é por meio da representação que [...] a identidade e a diferença passam a
existir. Representar significa [...] dizer: ‘essa é a identidade’, ‘a identidade é isso’”.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 214


dispostos a reconhecer as múltiplas categorias de identidades e identi-
ficações pelo olhar do respeito; gratidão para Ryan deveria estar asso-
ciada a ser quem se é sem medo; gratidão para o garoto de cabelo azul
deveria surgir quando ele pudesse beijar um rapaz com o cabelo tingido
de rosa sem correr o risco de apanhar ou morrer.
Caminhando para o final da trama, após escaparem do perigo e
dos quatro rapazes, os dois personagens principais vão ao encontro dos
amigos de Ryan. Enquanto Avery dirige até o local em que se encontram
os adolescentes, o garoto de cabelo azul, sem ser capaz de afastar os
últimos acontecimentos de sua mente, planeja uma vingança. O senti-
mento é manifestado a Avery e aos amigos de Ryan quando todos estão
juntos. Todos concordam que a atitude de Skylar e dos colegas foi estú-
pida e condenável, no entanto, nenhum deles consente com a desforra.
Alguns instantes depois, os dois protagonistas decidem ir embora e en-
quanto eles caminham até o automóvel, Ryan questiona a Avery se ele
gostaria de ir a algum lugar específico. Como Avery não emite nenhuma
resposta, o adolescente de cabelo azul solicita que ele volte ao Mr. Foo-
ter’s, o minigolfe abandonado. O rapaz de cabelo rosa pensa em recusar,
“mas acaba concordando silenciosamente quando Ryan o manda virar
para a esquerda, virar para a direita” (LEVITHAN, 2015, p. 197).
Minutos depois, eles chegam ao lugar onde sofreram humilhações
e discriminações, entretanto, a picape de Skylar não está mais situada
no ambiente. Ryan enuncia que sabe onde os antagonistas podem estar,
todavia, Avery exterioriza seus sentimentos, dizendo ao menino de ca-
belo azul que ele está estragando tudo, que precisa tomar uma decisão:
se vingar ou tentar recuperar o dia que eles estavam tendo juntos, antes
de toda a desgraça. Ryan toma consciência de seu comportamento e
pede desculpas a Avery. Em sequência, pergunta, mais uma vez, onde ele
desejaria ir. O garoto de cabelo rosa diz que gostaria de pegar o barco de
Caitlin novamente e voltar para o rio. Assim, apesar de todos os confli-
tos vivenciados pelos dois garotos, o enredo deles é concluído de manei-
ra poética: “alegremente, alegremente, um garoto de cabelo azul e um
garoto de cabelo rosa remam em um rio tranquilo, ao som da serenata

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 215


composta pela conversa deles mesmos. Esse agora é o lugar deles. Eles
voltarão muitas vezes” (LEVITHAN, 2015, p. 214). A beleza poética conti-
da neste excerto transforma as palavras em um verdadeiro artefato de
humanização, que, conforme aponta Candido (2004, p 180), são aqueles
traços “[...] que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo”, entre outros.
Ainda sobre a temática da humanização, é preciso compreender que:

[...] as palavras organizadas são mais do que a presença de um código:


elas comunicam sempre alguma coisa, que nos toca porque obedece a
certa ordem. Quando recebemos o impacto de uma produção literária,
oral ou escrita, ele é devido à fusão inextricável da mensagem com a sua
organização. [...] Em palavras usuais: o conteúdo só atua por causa da
forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar
devido à coerência mental que pressupõe e que sugere (CANDIDO, 2004,
p. 178).

Portanto, o trecho apresentado há pouco, retirado do romance Dois


garotos se beijando (2015), ao passo que evidencia a potencialidade da
obra, denota o cuidado do autor em criar um enredo no qual forma e
conteúdo trabalham em conjunto. Em outros termos, Levithan (2015)
parece brincar com as palavras, transformando fragmentos habitu-
ais em uma poderosa arma de humanização. Sob esse entendimento,
pode-se dizer que a metáfora (MARTINS, 2000) da serenata composta
pelas vozes de Avery e Ryan opera como a canção de um pássaro para
alguns leitores, afinal, aqueles que se sensibilizaram com a dor do casal
no momento em que eles tiveram suas sexualidades fixadas no âmbito
da exclusão, podem, com a leitura do excerto supracitado, desfrutar da
alegria vivenciada pelos dois adolescentes de cabelos coloridos.
Outro recurso digno de nota concerne à sensibilidade e perspicácia
do escritor em conduzir os sentimentos dos personagens de acordo com
as circunstâncias em que eles se encontram. Quando Avery e Ryan foram
confrontados e perseguidos devido às suas sexualidades, os leitores fo-
ram capazes de presenciar o sofrimento e os sentimentos (medo, raiva,
vingança) que atravessavam o íntimo dos protagonistas. No momento
em que eles encontraram um lugar seguro e só deles, a homoafetividade
do casal pode ser apreciada pelo ângulo do amor, do reconhecimento e

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 216


da felicidade. Como consequência, desenrolou-se um redirecionamento
de emoções, isto é, o que antes era uma maré de trevas se tornou uma
enchente de boas sensações. Portanto, os sentimentos dos adolescen-
tes estão indubitavelmente conectados às suas identidades e quando
eles sentem alegria (alegria em dobro), é por conseguirem desempenhar
seus desejos e seus afetos sem medo. Nesse sentido, quando os narra-
dores manifestam que o rio agora “é o lugar deles” e que “eles voltarão
muitas vezes”, a sensação de plenitude é instaurada. É como se eles, en-
fim, tivessem encontrado um lugar onde a maldade não pudesse entrar,
onde a identidade (ao menos a orientação sexual, parte da identidade
dos personagens) pudesse ser vivenciada e admirada.

Concluindo os trabalhos: sexo dos anjos não se discute, nem


a cor dos cabelos que o outro quer ter

Tomando como base as análises apresentadas ao longo deste ca-


pítulo foi possível constatar a maneira como a orientação sexual (parte
da identidade dos personagens) de Avery e Ryan é alicerçada no âm-
bito da diferença, da intolerância e da exclusão em algumas partes do
romance Dois garotos se beijando (2015), de David Levithan. Por inter-
médio das investigações, constatamos, ainda, que a obra de Levithan
(2015) se afasta de uma concepção didático-moralizante, afinal, o autor
trata de temáticas fraturantes (o preconceito, a violência contra os ho-
mossexuais, entre outros assuntos tabus) por meio de uma perspectiva
estilística (passagens poéticas, metáforas, entre outras características),
favorecendo, assim, que o sujeito leitor vivencie momentos catárticos
e de humanização (CANDIDO, 2004). Para além dos resultados supra-
mencionados, o texto aqui desenvolvido patenteia a importância de se
criar discussões voltadas ao campo da sexualidade e da identidade, que
não a heterossexual, pelo viés do respeito, do reconhecimento e do dese-
jo natural, afinal, sexualidades e identidades que fogem ao padrão hege-
mônico ainda são vítimas das mais diversas violências (simbólica, física,
verbal e/ou psicológica).
Sob esse entendimento, o presente capítulo é uma tentativa, por

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 217


parte da crítica especializada, de dar a conhecer ao público interessado
uma narrativa voltada ao subsistema literário juvenil que trata de te-
mas caros à condição humana pelo ângulo da plurissignificação, da hu-
manização e também da identificação. Enredos como o constituído por
David Levithan (2015) e leituras humanizadas como a apresentada no
decurso deste estudo são imprescindíveis para a formação de leitores e
sujeitos empáticos, que respeitam a realidade e as vivências do outrem.
Tais trabalhos e narrativas auxiliam na desconstrução de discursos que,
historicamente, foram naturalizados e, como resultado, podem contri-
buir positivamente para que, aos poucos, diversos garotos, fictícios ou
não, continuem se beijando e amando, sem culpa e sem medo, e que te-
nham, simbolicamente, a cor do cabelo que quiserem.

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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 218


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letramento literário de (re)existência: práticas e debates 219


Letramento literário:
a formação do leitor literário a partir da
quebra de velhas práticas

Dirlenvalder do Nascimento Loyolla


Júlio Luís Assunção Vasconcelos

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-12

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 220


Introdução

Devemos nos perguntar para que ensinamos literatura nas escolas.


Nesse sentido, Todorov (2009, p. 22) diz que “a literatura não nasce no
vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhan-
do com eles numerosas características; não é por acaso que, ao longo da
história, suas fronteiras foram constantes”. Dessa forma, e comparti-
lhando o pensamento do autor, o papel da literatura em nosso ensino e
na nossa sociedade se faz cada dia,mais importante. Para tanto, é neces-
sário compreender que ela dá nitidez às visões embaçadas pela névoa
da ignorância, combate às desigualdades, dando mais sonoridade à voz
dos oprimidos.
Baseados nas premissas expostas acima, estabelecemos como ob-
jetivo geral para esta pesquisa analisar a aplicaçã oficinas de leitura lite-
rária elaboradas e realizadas com os alunos do ensino fundamental II; a
proposta visava proporcionar a descoberta pelo prazer de ler utilizando
o espaço escolar como ambiente dinamizador da prática da leitura lite-
rária e como lugar de encontro do leitor e obra, tendo o professor como
mediador dessa prática de leitura e o aluno como principal sujeito do
processo de formação crítica. Sendo assim, desenvolvemos oficinas que
proporcionaram o contato com os textos literários de maneira descon-
traída, sem cobranças com as quais os alunos estão habituados a lidar
no dia a dia de uma aula de língua portuguesa e ainda com textos que,
sobretudo, levam o aluno a pensar sua condição humana e a do outro
dentro da sociedade.
Propusemos, como objetivo específico, desenvolver atividades que
proporcionassem o contato com narrativas orais e escritas, estimulan-
do a prática da leitura de textos literários e a formação do leitor de li-
teratura, para que este incorporasse e reconhecesse a leitura literária
como um bem e uma importante aliada na compreensão do mundo que
o cerca. O que intentamos com tal objetivo específico foi dar ao aluno
certa independência em suas formulações crítico-interpretativas, ou
seja, levá-lo a formular suas próprias opiniões a partir de seus próprios
critérios.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 221


Como metodologia para esta pesquisa, seguimos a abordagem da
pequisa-ação, que, segundo Tripp (2005), grosso modo, “é uma forma
de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para
informar à ação que se decide tomar para melhorar a prática” (TRIPP,
2005, p. 447). Sendo assim, buscamos trazer mudança a contextos espe-
cíficos da atuação docente, mais precisamente nas atividades de letra-
mento e leitura literários. Optou-se por esse modelo de pesquisa, pois
ele permite a investigação das próprias práticas e também melhorá-las
nesse processo. Sendo assim, a metodologia utilizada se pautou na ela-
boração de oficinas e atividades, tendo como foco principal a leitura li-
terária e os textos literários.
As oficinas e atividades foram realizadas no ambiente da sala de
aula, e fora dela, como pátio e outras dependências. As atividades fo-
ram norteadas pela experimentação de práticas de ensino da leitura,
bem como a aplicação e criação de estratégias para dinamizar as au-
las de Língua Portuguesa e ressaltar sua importância como veículo de
transformação da prática do ensino da leitura na escola, assim como a
formação do cidadão crítico-reflexivo, e também uma contraposição ao
modelo tradicional do fazer docente onde as atividades são direciona-
dos e acontecem no interior das salas, privando o aluno da liberdade de
expressar-se.
Com base nos objetivos propostos, desenvolvemos essas ativida-
des com o intuito de despertar o aluno para o prazer de ler, pois o que
presenciamos, no processo ensino-aprendizagem, é a prática de leitura
sendo usada apenas com o objetivo de decodificação de signos linguís-
ticos, meros treinos com a insípida finalidade de mensurar as capaci-
dades de (de)codificação dos signos linguísticos, identificar elementos
gramaticais ou apenas constatar a mera assimilação da nomenclatu-
ra gramatical através de exercícios cartesianos em sua maioria. Assim,
dentro dessa premissa, compartilhamos do seguinte pensamento:

A atividade árida e tortuosa de decifração de palavras que é chamada de


leitura em sala de aula, não tem nada a ver com a atividade prazerosa
descrita por Bellenger. E de fato, não é leitura, por mais que esteja
legitimada pela tradição escolar (KLEIMAN, 2013, p. 22).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 222


Para a autora, a escola e a tradição escolar, no ato de didatizar a
leitura, acabam tornando-a desprazerosa, apenas pretexto de uma ta-
refa para o aluno no meio de tantas que ele já tem, uma leitura que não
se efetiva como prazer, e que, segundo a autora, “não é leitura”, pois a
criança sente-se na obrigação de executar tal tarefa e a encara como
mais uma atividade escolar. Tal procedimento, dessa forma, tornaria a
leitura um desprazer e isso limitaria toda a sua vida escolar e social,
chegando até a impedir o aluno de se tornar um leitor proficiente. Essa
visão do processo de ensino-aprendizagem nos leva a concluir que a es-
cola não liberta, mas, pelo contrário, aprisiona ideias, práticas que mui-
to contribuíram para a formação de nossos alunos.
Em suma, o que desejamos ao término deste trabalho nada mais foi
do que dar certa autonomia para que o aluno pudesse pensar por si e de-
monstrar que é possível desenvolver todas essas competências a partir
do momento que nos desprendermos de concepções de ensino tradicio-
nalistas e que não mais acompanham a dinâmica e rápida evolução dos
suportes pelos quais o conhecimento nos chega, muito embora, muitos
profissionais insistem em não os reconhecer.

Percurso teórico

Apresentamos, nesta seção, concepções e estudos de autores im-


portantes acerca da literatura e do uso dos textos literários nas escolas.
Optamos por dividir reflexões, conceitos e representações relativos à
definição de literatura, de seu ensino e de leitura literária em três par-
tes: o que é literatura? – composta por acepções do termo durante o
tempo, seguida de uma delimitação de objeto; em seguida, o tópico en-
sino de literatura e suas implicações na formação do indivíduo, onde
evidenciaremos questões sobre o ensino de literatura na escola; e, por
fim, o tópico leitura de literatura na escola, no qual falaremos sobre as
habilidades que nosso aluno deve ter para se desenvolver em tal ativida-
de e como se dá a leitura literária no espaço escolar.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 223


O que é literatura?

O que é a literatura? O termo é fortemente polissêmico e nos reme-


te a uma infinidade de conceitos complexos e muitas vezes ambíguos,
contudo, o que podemos dizer de forma simplificada é que a literatura
pertence ao campo das artes (arte verbal), pois o seu meio de expressão
é a palavra e que a sua definição está comumente associada à ideia de
estética/valor estético.
Iniciaremos nossa caminhada pela constituição de seu étimo, que
nos remonta ao latim litteratura (“escrita”, “gramática”, “ciência”), que,
por sua vez, deriva de littera (“letra”), isto é, percebemos com essas duas
nomenclaturas uma limitação do termo literatura ao se referirem ape-
nas às manifestações escritas, o que, de forma “ingênua”, leva-nos a con-
cluir que a palavra “literatura” designa, então, todas as manifestações
da cultura do letrado, isto é, a erudição, uma vez que historicamente
apenas as classes elitistas e nobres escreviam, enquanto as subalter-
nas não tinham acesso a tais saberes. Dessa forma, a expressão “ter” ou
“dominar” a literatura era uma expressão que designava aqueles que
eram possuidores de um saber adquirido, consequentemente, através
da soma de muitas leituras, assim sinônimo de instrução.
É indubitável que, ao se discutir o conceito de literatura como ma-
nifestação artística, não venhamos naturalmente a associá-la a uma for-
ma de imitação do mundo à nossa volta, uma maneira de reproduzir ou
recriar a realidade através da palavra. Historicamente falando, Platão e
Aristóteles foram os primeiros a associar o conceito de arte com imita-
ção. Platão, por sua vez, define a literatura como uma imitação afastada
da realidade. Já para Aristóteles a literatura é mimesis, a arte que imita
pela palavra27. Assim, ao considerarmos que a literatura é imitação, reco-
nhecemos que ela imita a vida, que consiste nas múltiplas experiências
dos seres humanos, em suas vivências, sejam elas de qualquer natureza,
boas, ruins, depravadas, recatadas, sagradas e profanas. Portanto, a li-
teratura, segundo essa acepção, reinterpreta e recria constantemente a
vida.

27 Modos de imitação, numa definição mais sutil do termo.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 224


Para Todorov (1978, p. 15-16),

[...] a arte é uma imitação diferente segundo o material que utiliza; e a


literatura é imitação pela linguagem, tal como a pintura é imitação pela
imagem”, para concluir mais adiante: “a literatura é uma ficção: eis a sua
primeira definição estrutural (TODOROV, 1978, pp. 15-16).

Isto é, ficção, entretanto, há de se frisar que tal concepção apenas


se limita a uma definição estrutural do texto escrito. Logo, temos uma
definição clara do objeto da literatura. Outros conceitos relacionam o
estudo da literatura com os aspectos históricos de uma dada época ou
civilização ou então se preocupam com o estudo de grandes livros que
se destacam pela sua forma ou expressão literárias, ou ainda ao con-
junto de obras reconhecidas como literatura pelos grandes críticos e
teóricos (cânone28). Enfim existe, sem dúvida, uma polissemia vasta em
torno de sua definição.
Para esta pesquisa, adotaremos um conceito mais moderno de lite-
ratura. Continuaremos considerando que a mesma é a arte da palavra,
mas também levaremos em consideração sua dimensão sociocultural,
pois entendemos que o contato com a literatura devese dar como um
instrumento de intervenção social e como tal ser capaz de modificar a
realidade de quem a utiliza.
Sabemos que é tarefa do professor de língua portuguesa ter clareza
quanto ao conceito de literatura que adotará em suas aulas e sabemos
que, em sua maioria, esses mediadores apenas tratam a literatura como
uma mera análise histórica de uma dada época, o que nos faz entender
que muitos ainda praticam o ensinar literatura nos moldes estrutura-
listas, objetivando apenas o conhecimento cartesiano e histórico dos
períodos e características literárias ou como pretexto para o trabalho
linguístico, prática esta ainda muito utilizada nos dias de hoje, deixan-
do, assim, em escanteio, a literatura e sua função formadora e humani-
zadora.

28 Cânone ou cânon é um termo que deriva da palavra grega κανόνας, que designa uma vara utilizada
como instrumento de medida e que normalmente se caracteriza como um conjunto de regras (ou,
frequentemente, como um conjunto de modelos) sobre um determinado assunto. Está em geral
ligado ao mundo das artes e da arquitetura (BECHARA, 2001, p. 378).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 225


O que é ensinar literatura na escola?

Como ponto inicial, partiremos da concepção de literatura, ensi-


nada por muitos profissionais, a qual preconiza que a literatura é a arte
da palavra. Dessa forma, assim como a língua que ela utiliza para se
concretizar, é um instrumento de comunicação e de interação social,
cumprindo um importante papel de registrar e transmitir os conheci-
mentos e a cultura das sociedades pelas eras. Sendo assim, quando o
professor se centra no ensino de literatura pautado apenas na análise
dos períodos históricos, evidenciando características das várias épocas
da evolução da humanidade, leva seus alunos a desconsiderar, muitas
vezes, o viés da reflexão e formação do pensamento. Nesta concepção,
seu ensino sempre esteve voltado para abordar apenas o registro dos
acontecimentos e evolução do pensamento, isto é, as mudanças de con-
cepções filosóficas pelas quais o pensamento humano passou. Esta for-
ma de ensinar literatura data do século XIX, como bem relata Compag-
non (1999):

A literatura (fronteira entre o literário e o não literário) varia


consideravelmente segundo as épocas e culturas. Separada e extraída
das belas-letras, a literatura ocidental, na acepção moderna, aparece no
século XIX, com o declínio do tradicional sistema de gêneros poéticos,
perpetuado desde Aristóteles (COMPAGNON, 1999, p. 32).

Dessa forma, o ensino de literatura, baseado nessa concepção, aca-


ba por concentrar seus esforços em periodizações e assimilações can-
sativas de características dos estilos literários que marcaram várias
épocas na história, transformando a leitura literária em uma ativida-
de cansativa de enumeração e análises de características de textos dos
mais variados períodos e épocas.
Assim, o que se deseja é um ensino de literatura que privilegie a
reflexão e a formação de alunos reflexivos, capazes de interagir com sua
cultura e, para isso, temos que considerar não somente os aspectos es-
colares, mas também os extraescolares, como as condições culturais de
cada região, de cada contexto.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 226


Nota-se, dessa forma, que a função formadora da literatura se per-
de dentro dessa didatização e dessa pedagogização mal feitas, de um
turbilhão de outras funções que quase nada têm a ver com o real ensino
de literatura, o qual tem como princípio fundamental a percepção da
realidade e sua refutação, seja ela qual for, como bem nos diz Soares
(2006):

Não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, não só a literatura


infantil e juvenil, ao se tornar ‘saber escolar’, se escolarize, e não se pode
atribuir, em tese, [...] conotação pejorativa a essa escolarização, inevitável
e necessária; não se pode criticá-la ou negá-la, por que isso significaria
negar a própria escola [...]. O que se pode criticar, o que se deve negar não
é a escolarização da literatura, que se traduz em inadequada, a errônea, a
imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua deturpação,
falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma
didatização mal compreendida que, ao transformar o literário em escolar,
desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o (SOARES, 2006, p. 21).

Dentro desta perspectiva colocada por Soares (2006), faz-se ne-


cessário um trabalho diferenciado, baseado em uma metodologia mais
atrativa e que desperte no aluno o desejo pela leitura literária, um traba-
lho que evidencie não somente a obra literária, mas também os valores
socioculturais nela impregnados, isto é, os valores embutidos na obra,
valores estes que podem ser selecionados, refletidos, transformados e
até mesmo rejeitados, uma vez que estes revelam muito sobre o sujeito
produtor da obra literária, e não somente sobre ele, mas sobre quem
consome tal manifestação artística.

Letramento literário

De acordo com Zappone (2013), quando se fala em letramento literá-


rio no seio da agência escolar, estamos falando de um conjunto de proce-
dimentos muito particulares ao objetivo do ensino de leitura e literatura,
eleitos e reconhecidos pela sociedade e pela crítica canônica, que visam
apenas as análises referentes ao reconhecimento de gênero, de estilo, de
informações sobre o autor, contextos e sobre elementos da narrativa.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 227


Nesse sentido, o letramento no modelo autônomo29 desprivilegia a
reflexão e desconsidera que todas as comunidades e grupos sociais pos-
suem especificidades que devam ser levadas em consideração no ato de
leitura de textos literários, pois tornar uma manifestação literária ge-
neralizante é, antes de tudo, negar a cultura particular dos indivíduos,
suas acepções e principalmente reforçar que existem culturas que são
mais valorizadas em detrimento de outras menos prestigiadas.
Sendo assim, e com base no exposto acima, é-nos permitido con-
ceber o letramento literário numa perspectiva bem mais ampla e dire-
cionada, percebendo que existe um letramento literário escolar formal,
voltado para normas e convenções, e outro, o letramento literário social,
que no dizer de Zappone (2013):

O conceito de letramento literário aplicado ao ensino de literatura


amplia a perspectiva de como a leitura de literatura deve ser encarada,
pois permite compreender que há um letramento literário escolar
formal, regido por normas e convenções de leitura e há outro letramento
literário, o social. As práticas de letramento literário, nesse sentido,
seriam incalculáveis ao estender o fenômeno do letramento literário
para além dos bancos escolares (ZAPPONE, 2013, p. 187).

O processo de letramento literário nas escolas deve ser sempre tra-


tado como algo fundamental, seja através de propostas direcionadas pe-
las secretarias de educação, seja através de propostas desenvolvidas por
nós, professores, as quais devem ser mais minuciosas ainda, no sentido
de especificar o tipo de ensino que queremos para nossos alunos, pois
estamos diretamente em contato com eles e, por isso, sabemos melhor
do que ninguém quais as suas necessidades.
Apesar de não existir a disciplina específica de Literatura no ensi-
no fundamental, ela é praticada por meio da leitura e essa, por sua vez,
está presente em todas as aulas, independentemente da disciplina. Para
Cosson (2016):

29 O letramento autônomo é o modelo mais presente nas escolas de ensino fundamental no Brasil,
pois a formação de nossos alunos ainda se encontra muito distante de uma integração mais efetiva
com a cultura e a sociedade, isto é, a variedade de experiências que existem na sociedade e que não
fazem parte dos ensinamentos escolares.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 228


A prática da literatura, seja pela leitura, seja pela escritura, consiste
exatamente em uma exploração das potencialidades da linguagem, da
palavra e da escrita [...] é no exercício da leitura e da escrita dos textos
literários que se desvela a arbitrariedade das regras impostas pelos
discursos padronizados da sociedade letrada e se constrói um modelo
próprio de se fazer dono da linguagem que, sendo minha, é também de
todos (COSSON, 2016, p. 16).

A leitura e a escrita são práticas indissociáveis, sendo assim, não


se deve priorizar esta ou aquela. Nesse sentido, a literatura possui uma
função maior de tornar o mundo compreensível, transformando sua
materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensa-
mente humanas. Por isso, segundo Cosson (2016), a literatura necessita
manter um lugar especial nas escolas.
Mesmo não sendo a escola unívoca para o desenvolvimento da lei-
tura e do gosto pela leitura, ela tem uma parcela importantíssima nesse
processo, já que o aluno passa grande parte de sua vida frequentando-a.
Contudo, na prática, as atividades que a escola desenvolve para aprimo-
rar as capacidades de leitura limitam-se aos exercícios de memorização
e interpretação, como afirma Zappone (2015):

Na escola, a leitura literária serve, principalmente, para o atendimento de


tarefas escolares solicitadas pelo professor (preencher fichas de leitura,
fazer resumos da história, fazer provas de leitura, etc.). Entretanto as
práticas de leitura e mesmo de produção de textos literários podem estar
ligadas a outros objetivos como o prazer, o conhecimento, a aquisição de
um status de leitor diante de um grupo [...] (ZAPPONE, 2015, n.p.).

O ideal é que o prazer na leitura seja concomitante ao compromis-


so com o saber. E, para que isso aconteça, na concepção de Cosson (2016,
p. 23), “é fundamental que se coloque como centro das práticas literárias
na escola a leitura efetiva dos textos, e não informações das disciplinas
que ajudam a construir essas leituras, tais como a crítica, a teoria ou a
história literária”.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 229


Intervenção e análise dos dados

Na primeira etapa de trabalho com textos literários, não usamos


textos escritos; optamos pelo trabalho com contação de histórias, como
uma maneira mais sutil de atrair os alunos para o trabalho na oficina
literária. Essa primeira etapa da oficina recebeu o nome de “Contando
histórias e aproximando curiosos”, pois segundo Zumthor (2007):

A recepção vai se fazer pela audição acompanhada da vista, uma e outra


tendo por objetivo o discurso assim performatizado: é com efeito, próprio
da situação oral, que transmissão e recepção aí continuam um ato único
de participação, co-presença, essa gerando o prazer (ZUMTHOR , 2007,
p. 65).

Optamos por iniciar as atividades de leitura com práticas na orali-


dade, pois observamos, até então, um trabalho repetitivo na contramão
do desenvolvimento crítico. Entendemos que o ensinar a ser crítico deve
pressupor atividades que fujam das situações corriqueiras e repetitivas
às quais os alunos estão habituados e, sobretudo, que fujam da mera
investigação linguística. Em vez disso, a criticidade deve brotar a par-
tir do estímulo de atividades que levem os alunos a dizerem, de forma
espontânea, o que pensam. Com esse intuito geral, optamos por iniciar
nossas atividades pela oralidade, deixando os alunos bastante à vontade
para que pudessem despertar para o mundo da literatura.
Entendemos que não podemos mais fingir que nada mudou no en-
sino de leitura e consequentemente de língua portuguesa. Dessa manei-
ra, concordamos com as colocações de Coscarelli (2013, p. 20), quando
afirma que “Não dá mais para a escola continuar com velhas práticas de
apenas mandar ler e somente responder a perguntas de localização de
informação, acreditando que isso é aula de leitura”.
Para ativar os conhecimentos ou aquecimento para a contação de
histórias, houve um breve suspense seguido de uma conversa sobre coi-
sas sobrenaturais ou entidades fantásticas da região, o que significa que

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 230


a cultura tem como característica conservar e transmitir uma herança
cultural de saberes, hábitos, valores e ideias, portanto, conhecimento
(FARIAS, 2006).
Esse momento inicial de atividade deixa bem claro que o trabalho
com leitura literária, que vem sendo desenvolvido na educação básica,
muito deixa a desejar no sentido da interação com os alunos, o que evi-
dencia que é preciso ouvir e conversar com as crianças sobre o que se
leu,, que no dizer de Abramovich (1989),

é preciso saber se se gostou ou não do que foi contado, se se concordou


ou não com o que foi contado... É perceber que ficou super-envolvido,
querendo ler de novo mil vezes (apenas algumas partes, um capítulo
especial, o livro todinho...) ou saber que detestou e não quer nenhuma
aproximação com aquela história tão chata, tão boba ou tão sem graça... É
formar opinião própria, é ir formulando os próprios critérios, é começar
a amar um autor, um gênero, uma ideia, um assunto e, daí, ir seguindo
essa trilha e ir encontrando outros novos volumes... (que talvez façam o
amor pelo autor redobrar, ou provoquem uma decepção... isso tudo faz
parte da vida!) (ABRAMOVICH, 1989, p. 143-144).

No sentido de alimentar a imaginação dos alunos, foi distribuída


uma série de imagens ilustrativas do “Acauã”, como elemento motiva-
dor no sentido de despertar ainda mais a curiosidade e prender a aten-
ção para a narrativa a ser contada. Foi dito também que se tratava de
um conto de muito suspense e que poderia causar muito medo em to-
dos eles. Entendemos, neste contexto, que, para que o aluno se interesse
por algo na escola, ela e todas as suas atividades têm que ser, também,
interessantes. A esse respeito, os autores Turchi e Tieztmann (2006),
afirmam que:

Na medida em que a escola, na figura do professor, comece a resgatar a


dimensão lúdica e prazerosa da leitura, através de diferentes modalidades
e da diversidade dos gêneros e dos suportes multimídias de leitura – a
criação ou dinamização de bibliotecas e sala de leituras nas escolas –
ela estará incorporando, enfim, a leitura como prática social (TURCHI;
TIEZTMANN, 2006, p. 85).

O próximo passo foi iniciar a contação da narrativa. Assim, o me-


diador começou a narrativa de uma história cujo objetivo era atrair a

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 231


atenção dos alunos e instaurar o silêncio na sala para que as próximas
atividades relacionadas a este momento tivessem êxito. Este primeiro
momento em que o aluno é ativado a participar de atividades relaciona-
das ao letramento literário tem recebido muitos nomes como “Estímu-
lo”, “Intervenção”, “Mediação”, “Familiarização” ou “Animação”, pois são
termos associados à leitura no âmbito escolar (COLOMER, 2007).
Segundo Girotto e Souza, (2010, p. 50), um leitor eficiente jamais
mergulha numa obra “do começo ao fim, sem antes saber o que quer
do texto (apreender algo, recolher alguma informação, pesquisar algum
tópico para o dever escolar, entre outras finalidades)”. Entretanto, o en-
sino de leitura, nas aulas de língua portuguesa, do ensino fundamen-
tal, ainda segue na contramão do que é colocado pelos autores, pois os
textos, quando são utilizados, são lançados aos alunos como granadas
prestes a explodir, sendo trabalhados sem o menor aviso prévio e sem
qualquer acréscimo de informação que possa ajudar o aluno a compre-
ender melhor suas ideias.
Nesse momento, percebemos que todos os alunos ficaram muito
atentos, acompanhando o desenrolar da narrativa. Dessa forma, o sujei-
to-leitor foi criando em sua mente as imagens e,por isso, a interação foi
surpreendente, pois ele foi convidado a vivenciar, a imaginar e relacio-
nar, com outras narrativas ouvidas em momentos distintos de sua vida,
proporcionando maior desenvolvimento cognitivo, utilizando, ele mes-
mo, estratégias metacognitivas de aprendizagem, pois nossa atuação,
neste momento, foi baseada no entendimento de que cada pessoa tem
um modo particular de abstração de informações.
Esta primeira etapa teve a duração de 150 minutos, o equivalente
a três aulas de 50 minutos cada uma. O tempo estimado era de apenas
duas aulas, mas, em função da euforia da turma durante as socializações
de experiências, esse tempo se estendeu por mais uma aula, totalizando
três aulas destinadas à execução desta primeira atividade.
No segundo dia de atividades, pudemos notar, logo na chegada à
sala de aula, a inquietação e a euforia dos alunos, fazendo inúmeras per-
guntas com o intuito de saber qual seria a atividade da qual participa-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 232


riam durante as aulas de língua portuguesa daquele dia. Na segunda
etapa da oficina de leitura literária, nossos objetivos eram:
a) familiarizar os leitores em formação com a obra impressa (li-
vros), fazê-los tocar, abri-los e, dessa forma, familiarizá-los também com
o maior número de gêneros escritos;
b) familiarizá-los com a troca de suporte, neste caso, teríamos o
livro impresso. Não tivemos a oportunidade de apresentar outros su-
portes para nossos alunos, pois a escola carece desses recursos, e nós,
também, não tivemos meio de proporcionar aos alunos tais recursos
(referimo-nos a suportes digitais), pois a escola, além de não contar com
conexão de internet, também não conta com computadores disponíveis
para tais atividades. Outro meio tecnológico, que apesar de existir na
escola, tratava-se do projetor digital, mas infelizmente não foi possível
de ser disponibilizado para esta atividade, logo contávamos somente
com o livro impresso;
c) proporcionar ao aluno a oportunidade de escolha do que quer ler
diante da variedade de textos de gêneros e temáticas variados.
Para viabilizar os objetivos enumerados acima, a primeira ação
consistiu em deixar os livros “acessíveis”30 aos alunos. Para tanto, or-
ganizamos o espaço da sala de aula de maneira com que as mesas e ca-
deiras estivessem dispostas em círculo ou semicírculo. Após essa etapa
de organização do espaço onde se realizaria a atividade, espalhamos os
exemplares pelo centro da sala. Para esta atividade, utilizamos uma va-
riedade de gêneros, dentre os quais poemas, contos, romances, piadas,
mitos, lendas, historinhas infantis, histórias em quadrinhos e crônicas,
entre outros. Após a disposição dos livros no centro da sala de aula, pe-
dimos aos alunos que se levantassem e fossem em direção aos livros
para tocá-los, senti-los, abri-los e ler qualquer coisa deles, fazer um re-
conhecimento das obras que estavam à sua disposição e coletar infor-
mações que julgassem importantes para (re)conhecimento dos livros.

30 Quando afirmamosdeixar os livros acessíveis aos alunos, com relação à palavra acessível nos
referimosao princípio do qual diz Dalvi (2013), no sentido de aproximar a obra do aluno, fazer com
que ela esteja disponível em todos os lugares da escola, mas também torná-la compreensível a ele.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 233


Sobre o primeiro contato com as obras literárias, é importante levar
em consideração alguns fatores que permitem com que a criança reúna
informações sobre o texto a ser lido. Neste sentido, é tarefa do media-
dor orientá-la, mostrar como achar as pistas para compreensão, antes,
durante e depois da leitura. Essa compreensão consiste na observação
de todos os aspectos do livro. Para tanto, os alunos foram direcionados
a tocar nos livros, observar texturas das capas. Ao abri-los, verificar tipo
de papel, títulos, subtítulos, tipo de letra, tamanho, cor e peso.
Durante a leitura, verificar as palavras difíceis, verificar se eles es-
tão entendendo o assunto lido e, em seguida, escolher um exemplar em
definitivo para ler. Todo aspecto que possa gerar qualquer informação
sobre o texto, sobre seu gênero e seu tipo é importante. O mediador
deve ficar atento para eventuais perguntas que irão surgir e, imediata-
mente, se possível, pois sabemos que é um momento eufórico, esclare-
cer as dúvidas de maneira precisa. Em outras palavras, neste trabalho
de pesquisa, não estamos voltados apenas à leitura, mas também con-
cebemos o leitor como indivíduo ativo e participativo do processo de
leitura, pois, como afirma Coscarelli (2013, p. 16), “começa-se a entender
que ler passa, sim, pela decodificação, mas que essa é apenas uma das
ações do leitor num processo que envolve ações de compreender, avaliar
e criticar”, o que no ensino tradicional é ignorado, pois o aluno/leitor é
tratado como uma folha de papel em branco que deve ser preenchida
com os conhecimentos escolares. Devemos, assim, trabalhar a leitura
para formar leitores e não “ledores”.
Feita a primeira leitura do texto, solicitamos que os alunos lessem
seus respectivos textos. Nesta etapa da atividade de leitura, notamos
que muitos alunos demonstraram certa resistência ao ler em voz alta.
Neste caso, muitas podem ser as causas dessa resistência a exteriorizar
o ato de ler. Segundo Kleiman (2013),

As práticas desmotivadoras, perversas até, pelas consequências nefastas


que trazem, provêm basicamente de concepções erradas sobre o texto
e a leitura e, portanto, da linguagem. Elas são práticas sustentadas por
um entendimento limitado e incoerente do que seja ensinar português,
entendimento este tradicionalmente legitimado tanto dentro como fora
da escola (KLEIMAN, 2013, p. 23).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 234


O que Kleiman (2013) nos mostra nada mais é que o ensino equi-
vocado de leitura pode levar o aluno de um leitor em potencial para um
não leitor, através de atividades tradicionalistas que têm como objetivo
apenas o saber cognitivo, deixando os aspectos sociais da leitura literá-
ria31 de lado.
O terceiro dia de oficina teve como denominação “Eu, a Literatura e
o Outro”, pois tínhamos como objetivo, além do ensino do gênero textu-
al, também, evidenciar discussões que pudessem levar os alunos a uma
reflexão sobre si e sobre o outro dentro da sociedade. Como os alunos já
estavam de posse do texto escolhido no dia anterior, optamos por exibir,
como introdução das atividades, um curta-metragem de 6:57 minutos
sobre o texto escolhido. Tratava-se de uma adaptação32 baseada no tex-
to original de Fernando Sabino. Em seguida, fizemos a leitura em grupo
e, na sequência, o momento de extrema importância para todo trabalho
em educação, momento em que o profissional ouve o aluno, busca nas
palavras dele a constatação de que houve aprendizagem, o que muitos
profissionais da educação não realizam. Nossa intervenção busca saber
o que o aluno pensa e não apenas a repetição do ensino que está posto.
Neste sentido, o ato de ouvir as palavras do aluno deve ser primado du-
rante as aulas de leitura e todas as outras, pois ele é o sujeito principal
do processo de ensinar e aprender e é sobre ele que devemos nos debru-
çar para executar melhor nossas tarefas enquanto docentes.
Após ouvi-los, cada um, perguntamos a todos se havia algum tre-
cho que mais chamou atenção durante a leitura ou alguma imagem do
curta-metragem. Dos trechos mencionados, escolhemos alguns e ano-
tamos no quadro para registrar e, em seguida, iniciar a discussão, assim
como uma reflexão mais aprofundada sobre os trechos citados. Para
efeito de organização didática dos questionamentos, selecionamos ape-
nas os trechos da crônica e do curta-metragem que faziam referência

31 Diz respeito à identificação do leitor e de seu universo de vivências representados na obra literária. É através
dessa função que o indivíduo encontra a possibilidade de reconhecimento da realidade que o cerca quando
transposta para o mundo ficcional.
32 A Última Crônica é umfilme de Jorge Monclair, adaptado de um conto de Fernando Sabino, com André
Gonçalves, Roberta Rodrigues, André Ramiro e MarcelloGonçalves. Realização: AIC - Academia Internacional de
Cinema e TV e Luz da Arte Produções.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 235


à família de negros no botequim e as que faziam referência à pobreza.
Sendo assim, o trecho selecionado para ser anotado no quadro foi o se-
gundo parágrafo da crônica
A partir desse trecho, surgiram inúmeras falas dos alunos referen-
tes ao preconceito e às condições de pobreza pelas quais algumas famí-
lias passam. Os alunos também fizeram referência ao aniversário com
apenas uma fatia de bolo, destacaram em suas falas a característica da
humildade, detalhe este percebido pelos alunos através das descrições
que o autor fez da cena, o que mostra que os mesmos estavam atentos
aos detalhes do texto escrito.
Ao final dos comentários e das discussões que surgiram a partir do
curta-metragem e da leitura da crônica, ficou decidido, juntamente com
os alunos, que a temática da próxima atividade de leitura literária seria
sobre o preconceito e a pobreza. Nestes termos, foi dito aos alunos que
o próximo texto para leitura seria o “Quarto de despejo”, de autoria da
escritora Carolina Maria de Jesus. Foi sugerido, ainda, aos alunos, uma
breve pesquisa na internet sobre a autora e sua obra, pois o conhecimen-
to do autor ajudaria muito durante a leitura e entendimento do texto.
No quarto dia de nossas atividades sobre leitura literária, logo nos
corredores da escola, fomos abordados por um grupo de alunos ansio-
sos por compartilhar suas leituras a respeito do texto “Quarto de des-
pejo” e, ao adentrarmos em sala de aula, logo chegaram as perguntas,
carregadas de euforia, sobre o texto. Percebemos, então, que as ativida-
des estavam tendo o efeito desejado e já poderíamos ver nitidamente o
retorno com relação à leitura como parte da vida dos alunos.
Percebemos que a literatura proporcionou a eles não só um mo-
mento de descontração, mas, sobretudo, um momento de expressão em
que puderam sentir-se relaxados para dizer o que pensavam sem o peso
de serem avaliados. Isso provocou com que se sentissem mais à vonta-
de para participar e aboliu qualquer sentimento de culpa ou punição que
cultivavam anteriormente quando se tratava de atividades de leitura. De
fato, houve avanço no sentido de desinibir os alunos para as atividades
propostas, tal como podemos perceber nas palavras de Colomer (2007):

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 236


A comunicação literária se produz desde o início e o que progride é a
capacidade de construir um sentido através dos caminhos assinalados.
Isto sustenta a ideia educativa de que a formação leitora deve se dirigir
desde o começo ao diálogo entre o indivíduo e a cultura, ao uso da
literatura para comparar-se a si mesmo com esse horizonte de vozes,
e não para saber analisar a construção do artifício como um objeto
em si mesmo, tal como assinalamos antes. O trabalho escolar sobre as
obras deve orientar-se, pois, para a descoberta do seu sentido global, a
estrutura simbólica onde o leitor pode projetar-se. A literatura oferece
então a ocasião de exercitar-se nessa experiência e aumenta a capacidade
de entender o mundo. Tal recompensa é o que justifica o esforço de ler
(COLOMER, 2007, p. 62).

Por conta do sentimento de euforia despertado nos alunos, resol-


vemos chamar esta etapa de desenvolvimento da leitura literária de “Af-
faire com a Literatura”, pois o sentimento de intimidade com a leitura
literária estava crescendo em nossos alunos. Como fora combinado no
dia anterior sobre o tema das atividades que iríamos discutir sobre pre-
conceito e pobreza e que o texto a ser lido seria o “Quarto de despejo”,
da autora Carolina Maria de Jesus, para esta atividade elencamos como
objetivos instaurar a pesquisa como um dos elementos fundamentais
na busca de informações que ajudem o aluno a desvendar os sentidos do
texto e auxiliar nas atividades de leitura e leitura literária. Em relação
a este aspecto, em particular, o que observamos, na realidade de sala de
aula, é que o aluno não pratica esse tipo de atividade de pesquisa pré-lei-
tura, o que vemos é o contrário, quando o aluno é levado, simplesmente,
a ler sem qualquer ativação ou agregação de informações sobre o texto
a ser lido, o que torna o processo de leitura desmotivante.
Com o objetivo de alcançar esses resultados mais motivantes, re-
velamos com antecedência qual texto e autor leríamos no dia seguinte,
para que os alunos tivessem a oportunidade de pesquisar sobre eles.
Outro objetivo também elencado para esta atividade foi tornar a leitura
literária um desafio para o aluno, um hábito, de maneira que a atividade
de leitura se estendesse para outros momentos de seu dia, de sua vida.
Ainda com o intuito de diversificar e fornecer subsídios para que o
aluno tivesse um número maior de informações e pudesse visualizar a
obra em diferentes suportes, também fornecemos dois documentários

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 237


em vídeo de curta duração: o primeiro um depoimento da filha de Caro-
lina, Vera Eunice de Jesus Lima, em que conta um pouco sobre sua mãe,
e, o segundo, um curta dirigido por Jeferson De, que apresenta também,
além de trechos do livro encenados pela atriz Zezé Motta, no papel de
Carolina de Jesus, informações sobre a autora de quarto de despejo.
Contamos ainda com a versão em HQ, a qual também foi disponi-
bilizada para leitura nos grupos. Após a leitura dos textos, fizemos um
círculo e cedemos o espaço a quem se interessasse por compartilhar
suas impressões e fazer seus comentários. Um detalhe importante para
levarmos em consideração foi o fato de os alunos terem feito pesquisas
sobre o texto, uma vez que o mesmo foi revelado no dia anterior. Muitos
alunos tinham perguntas sobre os relatos de Carolina, as quais foram
anotadas no quadro, pois, em seguida, teríamos uma roda de conversa
por meio da qual discutiríamos sobre a temática do texto e pontos rela-
cionados às perguntas dos alunos.
Nesta etapa da oficina, percebemos já alguma autonomia dos alu-
nos em buscar as respostas para as perguntas que foram feitas e anota-
das no quadro. Dessa maneira, a liberdade de expressão proporcionada
aos alunos fez com que levassem suas interpretações mais adiante, tor-
nando-as bem mais especializadas. Essa atividade visava fazer com que
os alunos percebessem que, muitas vezes, uma pesquisa prévia sobre o
tema ou sobre o autor facilita a leitura que virá depois e até a pós-lei-
tura. Nesse sentido, todas as perguntas foram respondidas e as lacunas
desapareceram, o que nos leva a afirmar que, quando os efeitos e a com-
preensão da leitura são alcançados, os leitores gostam de conhecer as
interpretações que outros leitores fizeram (COLOMER, 2007).
Como forma de obter uma resposta concreta dos alunos de ma-
neira avaliativa e com o intuito de expor para a comunidade escolar os
resultados obtidos nas atividades que compuseram a oficina ministra-
da, propomos aos alunos a construção de várias atividades que seriam
expostas no pátio da escola, dentre as quais: confecção de poemas sobre
as temáticas abordadas; uma roda de discussão (esta atividade consis-
tiu em uma conversa mediada pelos alunos do 7º ano sobre os temas

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 238


discutidos na oficina); e dramatizações, feitas pelos mesmos grupos de
leitura anteriormente estipulados sobre alguns trechos do livro quarto
de despejo.
A conclusão da oficina literária se deu por meio da exposição dos
trabalhos dos alunos durante um evento que aconteceu em um sábado
letivo e contou com a participação de todos os alunos da escola. As pro-
duções feitas pelos alunos foram expostas em murais e varais literários.
Outros professores da escola também participaram do evento, presti-
giando-o.

Considerações finais

Levando em consideração nossa vivência em sala de aula, traba-


lhando no ensino de língua portuguesa no ensino fundamental II, per-
cebemos que existe, sim, um descaso para com a leitura literária, fato
este que nos causa um sentimento de preocupação, pois sabemos que
tais alunos, em sua maioria, vêm de comunidades carentes, do seio das
periferias e que seu contato com os livros se dá, em grande parte, ape-
nas na escola e, assim, a leitura pouco faz parte de sua rotina. E, em se
tratando de leitura literária, não percebemos que ela seja presente na
vida destes alunos.
Sendo assim, esta proposta de ensino, sempre estará pautada em
metodologias que visem à leitura como algo prazeroso, estimulante e
eficaz para o leitor, tendo a colaborar com o desenvolvimento das habili-
dades necessárias à formação de jovens leitores, muitas vezes distantes
da leitura e alheios à sua importância para vida.
Diante disso, nesta pesquisa, buscamos apresentar atividades di-
ferenciadas e direcionadas ao ensino de leitura-fruição. Contamos que
as atividades elaboradas com atrativos específicos com o objetivo de
despertar o interesse do aluno em ler a obra, motivaram a vontade do
aluno se manifestar, o desejo de saber mais sobre o assunto tratado e a

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 239


oportunidade de usar a imaginação para criar e explorar este universo
da literatura e do letramento literário.
Nossos alunos são resistentes à leitura; são indivíduos que desde
muito cedo se decepcionaram com as práticas de leitura às quais foram
submetidos e, direcioná-los para uma leitura eficaz, prazerosa e que
acrescente conhecimento em suas vidas, torna-se um desafio na car-
reira de qualquer docente. Provocá-los para que eles sintam vontade de
trabalhar com o texto e, finalmente, levá-los a reconhecer o texto como
parte de nós se torna um trabalho que exige muito dos profissionais da
educação.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione,


1989.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5.
ed. São Paulo: Editora Nacional, 1976.
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução de Laura Taddei Brandini.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
COLOMER, Teresa. Introdução à literatura infantil e juvenil atual. Tradução de Laura
Sandroni. São Paulo: Global, 2007.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016.
FERRAREZI Jr. Celso & CARVALHO, Robson Santos de. De alunos a leitores: o ensino
da leitura na educação básica. São Paulo: Parábola Editorial, 2017.
KLEIMAN, A. B. Introdução: O que é letramento? Modelos de letramento e as práti-
cas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A. B. (org.). Os significados do letramen-
to. São Paulo: Mercado de Letras, 2004.
KLEIMAN, A. B. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 1992.
KLEIMAN, A. B. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 15. ed. Campinas: Pon-
tes, 2013.
LOCATELLI, Solange Wagner. Tópicos de metacognição: para aprender e ensinar me-
lhor. 1ª edição, Curitiba: Appris, 2014.
SOARES, Magda. As condições sociais da leitura: uma reflexão em contraponto. In:

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 240


ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Teodoro da. Leitura: perspectivas interdisci-
plinares. São Paulo: Ática, 1998.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. Porto Alegre: Artmed: 1998.
SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo: Presença, 1988.
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança,
hip-hop. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.
SOUZA, R. J.; COSSON, R. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula.
Objetos educacionais do acervo digital da Unesp, 2011. Disponível em: https://acervodi-
gital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d16t08.pdf. Acesso em: 23 fev. 2019.
TERRA, Ernani. Leitura do texto Literário. São Paulo: Contexto, 2014.TRIPP, David.
Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31,
n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/
en_a09v31n3.pdf. Acesso em: 13 nov. 2018.
TURCHI, Maria Zaíra; SILVA, Vera Maria Tietzmann (Orgs.). Leitor formado, leitor
em formação: leitura literária em questão. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2006.ZIL-
BERMAN, Regina. A leitura e o ensino da Literatura. Curitiba: InterSaberes, 2012.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 241


Posfácio

Por que falar das literaturas


de reexistência?

Marcel Alvaro de Amorim

https://doi.org/10.52788/9786589932161.1-13

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 242


Escrever um posfácio para este livro configurou-se como uma tare-
fa bem-vinda e prazerosa: é fácil falar sobre uma obra instigante e que
aborda um tema tão caro a minha área de pesquisa e deveras importante
no cenário atual dos Estudos da Linguagem e da Literatura. Além disso,
tive a felicidade de dialogar com dois dos organizadores desta coletânea
– Rogério Back e Lucas Evangelista Magalhães Araújo – em um curso
sobre “Ensino de Literaturas e Letramentos Literários” que ministrei
no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Apli-
cada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual abordávamos,
dentre outras temáticas, a necessidade de pensarmos as literaturas de
reexistência nas salas de aula da Educação Básica desse espaço social,
histórico, cultural e geográfico a que chamamos de Brasil. Mas por que
é urgente falarmos das literaturas de reexistência?
Antes de tentar esboçar um rascunho de resposta para essa per-
gunta, ressalto que tenho entendido literaturas de reexistência, em di-
álogo com o amigo e professor Tiago Cavalcante da Silva, do Colégio
Pedro II no Rio de Janeiro, e a partir da pesquisa fundadora de Ana Lucia
Silva Souza (2011) sobre os letramentos de reexistência, como práticas
“artística[s] de linguagem que permite[m] aos sujeitos historicamente
violentados e discriminados – como negros/as, pobres, homossexuais,
indígenas, mulheres – a possibilidade de agência e ressignificação es-
tético-políticas de suas identidades” (AMORIM & SILVA, 2019, p. 173).
Com efeito, compreendo essa literatura como um poderoso espaço de
reexistência estético-literária, discursiva e identitária, que se manifesta
nas mais diversas dimensões que constroem o tecido literário.
Acredito firmemente que essas literaturas, que historicamente fo-
ram – e continuam, em grande medida, a ser – sufocadas pelo cânone
– especialmente, pelo cânone escolar, que apagou, por exemplo, vozes
femininas que produziam no século XIX, como as de Chiquinha Gon-
zaga, Julia Lopes de Almeida, Corina Coaracy, Maria Firmino dos Reis,
dentre outras – podem se constituir como poderosos espaços de deslo-
camentos, desestabilizações e desaprendizagens de ideias cristalizadas
“que fizeram e ainda fazem muitos corpos tombarem a margem do que

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 243


poderiam ser” (AMORIM & SILVA, 2019, p. 177). No entanto, apesar de
hoje vermos ampliada a circulação de autores e autoras como Concei-
ção Evaristo, Geovane Martins, Jeferson Tenório e Jarid Arraes, que têm
friccionado os limites do campo literário ao serem publicados e publica-
das por editoras de ampla circulação nacional, com reconhecimento por
parte do público e da crítica, outras vozes, como as de Eliane Potigua-
ra, Adriana Kairus, Ana Paula Azevedo, Jacqueline Obá etc., ainda lutam
pela conquista de espaços de reexistência, seja no mercado editorial,
seja nas salas de aula da Educação Básica brasileira.
E é isto que este livro faz ao trazer a temática das literaturas de
reexistência para discussão: abrir um espaço de luta e visibilidade a ser
tomado por uma literatura que pode permitir que autores e autoras pe-
riférico-marginais – como denominados pelo atual documento que re-
gula a construção de currículos de ensino de literaturas nacionalmente,
a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – reconstruam e valorizem
suas identidades, nas suas mais diferentes formas de ser, sentir e pen-
sar. Letramentos literários de (re)existência: práticas e debates faz isso ao
trazer capítulos de diferentes pesquisadores e pesquisadoras que abor-
dam questões como gênero e literatura, literatura e relações de poder,
literatura de cordel e escola, literatura afro-brasileira e escrita femi-
nina, literatura e periferia, literatura e diversidade sexual, literaturas
dos povos originários, dentre outras. Todos esses capítulos me parecem
construir um quadro amplo sobre como, aos poucos – bem aos poucos...
– as literaturas de reexistência têm conquistado um – ainda que ínfimo
– espaço nas discussões acadêmicas, se fazendo perceber não apenas
por suas afiliações autorais-identitárias, mas principalmente por sua
potência estético-discursiva.
Por fim, como sinalizei, vale lembrar que a própria BNCC, apesar
de pouco contribuir para o ensino de literaturas por se basear princi-
palmente em ideias não plenamente definidas como as de fruição e lei-
tor-fruidor (cf. AMORIM & SOUTO, 2020), abre brechas para se pensar
essas literaturas em sala de aula – como alguns dos capítulos desta co-
letânea fazem – ao trazer, em uma de suas habilidades para a aborda-

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 244


gem da Língua Portuguesa no Ensino Médio, a necessidade do trabalho
com “a dimensão política e social de textos da literatura marginal e da
periferia...” (BRASIL, 2018, p. 527). Desse modo, é possível vislumbrar um
trabalho com as literaturas nas escolas para além do dito cânone e das
produções literárias de homens brancos, heterossexuais e da classe mé-
dia brasileira, entendendo a sala de aula, como sinaliza Szundy (2019,
p. 230), como “um espaço de desconstrução de hegemonias”, especial-
mente “em um país cuja escravidão negra foi a mais violenta, com uma
necropolítica de vidas negras, femininas, trangêneras, transexuais etc.
recorrente, segundo estatisticas oficiais de vários órgãos governamen-
tais”.

Marcel Alvaro de Amorim


Docente do Programa Profissional de Pós-Graduação em Educação Profissional
e Tecnológica do Instituto Federal do Rio de Janeiro e do Programa Interdisci-
plinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.

Referências

AMORIM, M. A. de.; SILVA, T. C. da. O ensino de literaturas na BNCC: discursos e (re)


existências possíveis. In: AMORIM, M. A. de; GERHARDT, A. F. L. M. (orgs.) A BNCC e
o ensino de línguas e literaturas. Campinas: Pontes Editores, 2019. p. 153-179.
AMORIM, M. A. de; SOUTO, V. A. G. A ressignificação da leitura literária e do leitor-
-fruidor na BNCC: uma abordagem dialógica. Bakhtiniana, São Paulo, 15 (4): 98-121,
out./dez. 2020.
SOUZA, A. L. S. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança: hip-hop.
São Paulo: Párabola Editorial, 2011.
SZUNDY, P. T. C. A Base Nacional Comum Curricular e a lógica neoliberal: que
línguas(gens) são (des)legitimadas? In: AMORIM, M. A. de; GERHARDT, A. F. L. M.
(orgs.) A BNCC e o ensino de línguas e literaturas. Campinas: Pontes Editores, 2019.
p. 121-151.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 245


Sobre os organizadores

Sônia Cristina Poltronieri Mendonça. Doutora em Letras pela Uni-


-versidade Estadual do Oeste do Paraná. Licenciada em Letras: Língua
espanhola e literaturas em língua espanhola, Universidade Federal de
Santa Catarina.

Lucas Evangelista Saraiva Araújo. Mestrando do Programa de


Pós-Graduação em Letras, Estudos Literários, da Universidade Federal
do Pi-auí. Licenciado em Letras: Língua portuguesa e língua inglesa e
literatura em ambas as línguas.

Rogério Back. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Le-


-tras, Estudos Linguísticos, da Universidade Federal do Paraná, bolsista
Capes/Proex. Licenciado em Letras: Língua espanhola e literaturas em
língua espanhola, Universidade Federal de Santa Catarina.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 246


Sobre as autoras e autores

Ana Paula Gonçalves de Oliveira. Graduada em Letras portuguesas


pela Univer-sidade de Brasília, sendo os estudos literários a maior área
de interesse. [email protected]

Claudiana Nogueira de Alencar. Professora do Programa de Pós-


Graduação em Linguística Aplicada (PosLA) e do Mestrado Acadêmico
Intercampi em Educação e En-sino (MAIE) da Universidade Estadual
do Ceará. Possui licenciatura em Letras pela Universidade Estadual
do Ceará, mestrado e doutorado em Linguística pela Unicamp e pós-
doutorado em Semântica/Pragmática também pela Unicamp. E-mail:
[email protected].

Dirlenvalder do Nascimento Loyolla. Doutor em Literatura e


Práticas Sociais pe-la Universidade de Brasília (UNB), Mestre em
Estudos Literários pela Universidade Fe-deral de Minas Gerais (UFMG)
e Bacharel em Estudos Literários pela Universidade Fe-deral de Ouro
Preto (UFOP). Atualmente, é professor da Universidade Federal do Sul e
Sudeste do Pará (UNIFESSPA).

Jackson José Pagani. Possui graduação em Filosofia pela


Universidade Estadual de Maringá, Pedagogia pela Faculdade de Paraíso
do Norte – FAPAN e Letras pela Facul-dade Educacional da Lapa.
Atualmente é Orientador Pedagógico do Colégio SESI-Maringá e Tutor
Externo da Sociedade Educacional Leonardo da Vinci - UNIASSELVI.
Especialista em Psicopedagogia Institucional, Educação de Jovens
e Adultos - EJA, Educação Especial, Mestre em Estudos Literários
pela Universidade Estadual de Ma-ringá e Doutorando pela mesma
Universidade.

José Lucas do Nascimento Barbosa. Graduado em Letras pela


FAESC-Faculdade da Escada, professor de Língua Inglesa do CCAA
– Centro de Cultura Anglo-americana e ex-intercambista do PGM –
Programa Ganhe o Mundo.

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 247


Julia Danielle dos Santos. Licenciada em Letras – Português,
Espanhol e respec-tivas literaturas – pela Universidade Estadual do
Oeste do Paraná. Tem investigações e interesse nas seguintes áreas:
Literatura Comparada, Crítica Literária Feminista e Estudos de Gênero.

Júlio Luís Assunção Vasconcelos. Possui Mestrado profissional em


Linguagem e letramentos pela Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará (UNIFESSPA) e Gra-duação em Licenciatura plena em Letras
pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, é coordenador
de Língua Portuguesa no município de Tucuruí/PA.

Marco Antonio Hruschka Teles. Doutorando em Letras pela


Universidade Esta-dual de Maringá (UEM). Possui Mestrado em Letras
- Estudos Literários (UEM, 2017), com a seguinte dissertação defendida:
“A via-crucis do ser-para-a-morte em A paixão segundo G.H., de Clarice
Lispector”. É graduado em Letras Português/Francês, licenci-atura plena,
pela mesma instituição. Atualmente é professor de Língua Francesa
tendo trabalhado em diversas instituições, dentre elas a Universidade
Estadual de Maringá. É autor dos livros “Tentação” (Poemas - 2010) e
“No que você está pensando?” (Pensa-mentos - 2014).

Marcos Antônio Fernandes dos Santos. Possui graduação em


Letras Língua Por-tuguesa, com Habilitação em Língua Portuguesa
e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do
Maranhão (2014). É Doutorando em Letras (Estudos Li-terários), pela
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, membro do grupo de
pes-quisa Literatura e Vida (GPLV), e tem mestrado em Letras (Teoria
Literária), pela Uni-versidade Estadual do Maranhão (2020). Especialista
em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, pelo Instituto
de Ensino Superior Franciscano (2015) e também Especialista em
Estudos Linguísticos e Literários, pela UESPI (2019). É bolsista CAPES
e tem experiência como professor substituto na Universidade Estadual
do Maranhão, curso de Letras, tendo ministrado disciplinas como
Teoria Literária, Literatura Brasi-leira, Tendencias Contemporaneas,
Literatura Maranhense e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
(http://lattes.cnpq.br/8554669470968252).

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 248


Mikaelly Keila Pereira da Silva. Pós-graduanda em Linguística
Aplicada e Ensino de Línguas pela Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS). Mestranda em nível Especial em “Estudos de
Linguagens” da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Graduada
em Licenciatura Plena em Letras(Português/Inglês), pela Universidade
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Serra
Talhada (UAST)- 2019.

Odair José Silva dos Santos. Doutor em Leitura e Linguagens


junto ao pro-grama de Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS),
estudando as interfaces entre Léxico, Semântica e Cognição. Tem
investigações e interesse nas seguintes áreas: Lin-guística Cognitiva
(com ênfase em Metonímia Conceitual e nas relações entre Léxico,
Semântica e Cognição), Lexicologia, Processos de Leitura e Educação
(com ênfase em êxito e permanência).

Roberto Muniz Dias. Professor, romancista, dramaturgo, mestre


em Literatura pela UNB (Universidade de Brasília) e doutorando em
literatura pela UFPI. Formado em Letras Português/Inglês e Direito pela
UESPI (Universidade Estadual do Piauí). Re-cebeu os prêmios 16º Prêmio
Cidadania em Respeito à Diversidade de 2016; 3º Prêmio educando para
o respeito à diversidade sexual e Prêmio beijo livre direitos humanos
2017, todos na área de Educação. Recentemente, foi premiado com o
troféu Os melho-res do teatro Piauiense(2019) pela peça Dorothy.

Rosilda Maria Araújo Silva dos Santos. Professora da FAESC-


Faculdade da Escada, doutoranda em Ciências da Linguagem na
UNICAP-Universidade Católica de Pernambuco.

Silvana Augusta Barbosa Carrijo. Professora Associada III da


Universidade Federal de Catalão. Realizou Estágio de Doutorado em
Paris-FR e de Pós-Doutorado em Santiago de Compostela-ES. Integra o
GT Leitura e Literatura Infantil e Juvenil da ANPOLL, grupos de pesquisas
cadastrados no CNPq e grupo de pesquisa da USC – ES. Publicou livros,
capítulos de livros e artigos em periódicos nacionais e internacionais.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Estudos Literários,

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 249


literatura infantil e juvenil; imaginário, ficção, memória, literatura de
autoria feminina, gênero (gender).

Vanusa Benício Lopes. Doutora em Linguística Aplicada pela


Universidade Esta-dual do Ceará – UECE, com pesquisas em Letramento
Literário e Mediação de Leitu-ras. Possui mestrado em Linguística
Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará, li-cenciatura em Letras
pela FECLESC-UECE, especialização em Língua Portuguesa pela mesma
instituição. É professora efetiva da Educação Básica do município de Ocara
- CE e participa do PRAGMACULT - Grupo de Pesquisas em Pragmática
Cultural da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: vanusabenicio5@
gmail.com.

Vera Horn. Rio de Janeiro, 1965, graduou-se em Letras, português


-literaturas e português - italiano (Universidade Federal do Rio de Janeiro,
1988 e 1992), fez Mestrado na Universidade de São Paulo -USP, 2000),
Doutorado na Università di Pisa (2007) e Aperfeiçoamento na Università
Ca' Foscari Venezia (2008). Em abril de 2021, concluiu o Pós-doutorado
no programa de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras/UFRJ, no
qual desenvolveu o conceito de letramento diaspórico. Traduziu para o
português obras de Giacomo Leopardi, Tommaso Landolfi e Lorenzo Da
Ponte, entre outras. Publicou artigos e ensaios em revistas brasileiras,
americanas e europeias.

Yuri Pereira de Amorim. Mestre em Estudos da Linguagem


pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da
Universidade Federal de Catalão, com projeto de Mestrado na linha de
Literatura, Memória e Identidade. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Língua Portuguesa e Literatura infantil e juvenil, atuando
principalmente nos seguintes temas: literatura com temática LGBTQ+
(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers e mais), identidade
e diferença e luto simbólico. E-mail para contato: yuriamorim123@
hotmail.com

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 250


Índice remissivo

C
Cânone 8, 32, 33, 34, 113, 173, 176, 178, 179, 193, 194, 196, 225, 243, 245
Colonialidade 20, 152, 170

Cultura 20, 23, 24, 26, 27, 29, 31, 32, 34, 35, 36, 37, 52, 53, 75, 78, 79, 81,
88, 92, 105, 118, 135, 136, 137, 148, 149, 154, 155, 156, 159, 166, 169, 174, 175,
181, 185, 188, 189, 193, 200, 201, 203, 219, 224, 226, 228, 231, 237

D
Diáspora 12, 154, 173, 180, 185, 194

E
Ensino 4, 6, 10, 12, 29, 49, 54, 81, 88, 92, 94, 106, 111, 139, 140, 141, 142,
143, 144, 149, 173, 174, 175, 176, 196, 206, 221, 222, 223, 226, 227, 228, 230,
232, 234, 235, 239, 240, 241, 244, 245
Escola 16, 19, 22, 29, 75, 82, 83, 84, 85, 86, 92, 97, 98, 100, 103, 105, 106,
111, 112, 132, 144, 175, 196, 218, 222, 223, 226, 227, 229, 230, 231, 233, 234,
236, 238, 239, 240, 244
Escrita 7, 10, 11, 15, 19, 20, 22, 27, 28, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 52, 53,
58, 66, 80, 81, 82, 89, 93, 103, 109, 112, 113, 114, 117, 120, 121, 123, 141, 143,
153, 154, 155, 156, 159, 166, 168, 177, 208, 216, 224, 229, 244

G
Gênero 10, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 52, 53, 54, 55, 92, 93, 94, 96, 97, 99, 101,
102, 103, 104, 105, 106, 107, 126, 127, 128, 129, 130, 132, 137, 138, 175, 176,
179, 204, 207, 218, 219, 227, 231, 234, 235, 244

I
Identidades 6, 8, 11, 15, 20, 21, 52, 80, 104, 151, 152, 154, 157, 160, 165, 169,
174, 199, 202, 203, 204, 205, 214, 215, 217, 243, 244
Ideologia 9, 31, 36, 69, 70, 71, 74, 75, 76, 86, 87, 180
Inclusão 19, 29, 93, 115, 176, 177, 179

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 251


L
Leitores 9, 11, 13, 15, 23, 24, 25, 26, 29, 31, 69, 80, 81, 82, 110, 111, 112, 115,
117, 118, 120, 121, 178, 179, 200, 206, 207, 209, 210, 211, 216, 218, 233, 234,
238, 239, 240
Leitura 5, 8, 9, 10, 12, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28,
29, 31, 32, 40, 52, 53, 54, 55, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 74, 79, 80,
81, 85, 87, 90, 92, 93, 94, 95, 105, 106, 108, 112, 118, 120, 121, 122, 128, 137,
143, 144, 148, 149, 154, 157, 163, 165, 169, 174, 176, 177, 178, 181, 199, 210,
211, 216, 221, 222, 223, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235,
236, 237, 238, 239, 240, 241, 245
Letramento literário 4, 5, 10, 13, 15, 16, 27, 28, 70, 71, 81, 88, 92, 94, 96,
105, 106, 108, 112, 115, 120, 121, 122, 143, 144, 148, 177, 178, 179, 227, 228,
232, 240
Linguagem 19, 20, 21, 28, 34, 35, 39, 40, 57, 58, 62, 67, 71, 72, 73, 76, 78,
81, 90, 94, 98, 99, 100, 103, 109, 118, 119, 127, 142, 178, 198, 203, 205, 213,
214, 219, 225, 229, 234, 243
Língua portuguesa 12, 71, 110, 150, 175, 180, 193, 219, 221, 225, 230, 232,
233, 239

P
Professores 18, 22, 25, 94, 97, 103, 141, 142, 193, 194, 228, 239

R
reexistência 5, 8, 9, 13, 14, 15, 18, 19, 21, 22, 25, 27, 28, 29, 241, 242, 243,
244, 245

S
Sala de aula 6, 12, 54, 81, 90, 93, 94, 96, 98, 99, 103, 105, 106, 144, 172,
173, 174, 178, 193, 195, 222, 232, 233, 236, 237, 239, 241, 244, 245

V
Violência 10, 23, 25, 96, 97, 103, 106, 125, 129, 130, 131, 133, 135, 137, 152,
164, 180, 182, 183, 184, 185, 186, 189, 191, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 217

letramento literário de (re)existência: práticas e debates 252

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