A Beleza e A Tristeza
A Beleza e A Tristeza
A Beleza e A Tristeza
***
PREFÁCIO
Oki estava de pé no alto de uma colina, o olhar perdido no clarão púrpura do sol
poente. Estivera sentado à sua escrivaninha trabalhando desde a uma e meia da
tarde, e saíra assim que terminara de escrever o capítulo de um folhetim que
publicava num jornal vespertino. Sua casa ficava nas colinas ao norte de
Kamakura. A oeste, o céu esplendia mais e mais. Seu tom púrpura era tão
intenso que Oki chegou a se perguntar se não estava velado pela névoa ou por
leves nuvens. Esse esplendor violáceo parecia-lhe insólito. Nele havia vários
tons que iam do claro ao escuro e se mesclavam como se um largo pincel tivesse
deslizado sobre uma folha de papel-arroz umedecido.
A doçura desse céu fazia pressentir a chegada iminente da primavera. Via-se
num canto uma mancha rosada, sem dúvida onde o sol iria se pôr.
Oki lembrou-se de que no primeiro dia do ano, no trem que o trazia de volta
de Kyoto, os trilhos brilhavam com um fulgor rubro refletindo os raios do sol
poente.
Via-os brilhar ao longe. De um lado havia o mar. Quando, numa curva, os
trilhos desapareceram na sombra das montanhas, o clarão vermelho extinguiu-se.
O trem entrou numa garganta e, de repente, a noite caiu. Mas o reflexo rubro dos
trilhos recordara a Oki os poucos momentos passados em companhia de Otoko.
Apesar de ela ter se feito acompanhar por sua jovem aluna Sakami Keiko e de
até mesmo ter convidado duas gueixas para evitar encontrar-se a sós com ele,
Oki sentia, mesmo assim, e talvez justamente por causa das precauções com que
ela se cercara, que representava ainda alguma coisa para Otoko. Enquanto
caminhavam pela Quarta Avenida, retornando do santuário de Gion, alguns
bêbados no meio da multidão tinham se aproximado e feito gestos de tocar o alto
penteado das gueixas. Tal comportamento não era comum em Kyoto. Oki
caminhou ao lado das duas mulheres para protegê-las. Otoko e sua aluna
seguiam alguns passos atrás.
No primeiro dia do ano, quando se preparava para subir no trem e se
perguntava, com alguma ansiedade, se Otoko viria ou não à estação, Oki avistou
Sakami Keiko.
- Feliz Ano-Novo! A srta. Ueno fazia questão de lhe acompanhar, mas, como
todos os anos, hoje ela tem visitas a fazer e, à tarde, algumas pessoas virão à
nossa casa para vê-la. Assim, eu vim em seu lugar.
- Ah! É muito gentil de sua parte… - respondeu Oki.
A beleza da jovem atraía os olhares dos raros viajantes nesse primeiro dia do
ano.
- É a segunda vez que a incomodo… a primeira, quando você foi me buscar
no hotel, e agora na estação.
- Isso não me incomoda absolutamente.
Keiko usava o mesmo quimono da véspera: de cetim azul com pássaros
pintados entre flocos de neve. A cor das aves alegrava o conjunto, mas, para uma
jovem da idade de Keiko, era uma roupa discreta demais e um pouco triste para
um dia de festa.
- Que lindo quimono! Foi pintado pela srta. Ueno? - perguntou Oki.
- Não. Fui eu que pintei, mas o resultado não é o que eu esperava… -
respondeu Keiko, enrubescendo levemente. O tom um pouco triste do quimono
ressaltava ainda mais o rosto encantador da jovem. Havia também algo de
juvenil na combinação das cores, nas várias formas dos pássaros e até nos flocos
de neve, que pareciam dançar.
Keiko entregou a Oki, da parte de Otoko, um pacote de guloseimas e
legumes conservados na salmoura, que eram uma especialidade de Kyoto.
- Assim, o senhor terá o que comer no transcorrer da viagem.
Durante os poucos minutos que o trem esperou na estação antes de partir,
Keiko manteve-se perto da janela. Vendo assim emoldurado o busto da jovem,
Oki pensou que sua beleza estava realmente no apogeu. Ele não conhecera
Otoko na flor de sua beleza. Ela tinha dezessete anos quando eles se separaram,
e ontem, ao revê-la, já estava com quarenta. Ainda era cedo quando Oki abriu,
no meio da tarde, o pacote de Otoko. Era um sortimento de comidas típicas de
Ano-Novo, além de bolinhos de arroz cuidadosamente modelados e que lhe
pareciam traduzir os sentimentos de uma mulher. Sem dúvida alguma, a própria
Otoko os tinha preparado em intenção daquele que, há muitos anos, destruíra sua
juventude. Ao mastigar pequenos bocados de arroz, Oki podia sentir em sua
língua e entre seus dentes o sabor do perdão de Otoko.
Não, não era seu perdão, mas antes de tudo seu amor, um amor ainda bem
vivo em seu coração. Tudo o que Oki sabia de Otoko, desde que ela passara a
viver em Kyoto com sua mãe, era que tinha conseguido construir, por si mesma,
um nome como pintora. Talvez tivesse tido outras aventuras e vivido outros
amores. Oki estava convencido, entretanto, de que o sentimento que ela tinha por
ele era ainda um desesperado amor de adolescente. Depois de Otoko existiram
outras mulheres na vida de Oki. Mas ele estava certo de nunca ter amado
nenhuma delas com um amor tão doloroso.
"Este arroz é delicioso", pensou Oki, "talvez venha do Kansai…" Ele comia
as pequenas bolas de arroz uma atrás da outra. Estavam temperadas e salgadas
na medida exata.
Aos dezessete anos, cerca de dois meses depois de seu parto prematuro e sua
tentativa de suicídio, Otoko foi internada num hospital psiquiátrico e trancada
num quarto com barras de ferro na janela. Oki soube da notícia pela mãe de
Otoko, mas não foi autorizado a visitá-la.
- O senhor poderá vê-la do corredor, mas eu acharia melhor que não fosse…
- disse-lhe a mãe de Otoko. - Preferiria que o senhor não visse o estado em que
ela se encontra hoje. E, se o reconhecer, ela ficará perturbada.
- A senhora acha que ela me reconheceria?
- Certamente. Pois não é por sua causa que ela se encontra nesse estado?
Oki não respondeu.
- Mas parece que ela não perdeu a razão. O médico me tranqüilizou dizendo
que não a prenderá aqui por muito tempo. A pobre menina repete sempre este
gesto. - Com estas palavras, a mãe de Otoko fez o gesto de abraçar e ninar uma
criança. - Ela quer seu bebê. Pobre menina!
Três meses mais tarde, Otoko deixou o hospital. Sua mãe foi visitar Oki e lhe
disse: - Sr. Oki, sei que o senhor tem mulher e filhos e Otoko certamente não
ignorava isso quando o conheceu. Talvez o senhor pense que eu estou louca de,
na minha idade e conhecendo sua situação, vir aqui lhe pedir semelhante coisa,
mas… - A mãe de Otoko tremia.
- O senhor não poderia se casar com minha filha? - Com lágrimas nos olhos,
ela mantinha a cabeça baixa e os dentes fortemente cerrados.
- Já pensei nisso - respondeu dolorosamente Oki. Como era de esperar,
tinham surgido brigas por causa de Otoko entre Oki e sua mulher, Fumiko, que,
naquela época, tinha 24 anos. - Já sonhei com isso não sei quantas vezes.
- O senhor é livre para não prestar atenção às minhas palavras e acreditar
que, como minha filha, estou com o espírito perturbado. Nunca mais vou lhe
pedir isso.
Não estou dizendo para casar agora com Otoko. Ela pode esperar dois, três,
cinco ou até mesmo sete anos. Ela é uma mulher que sabe esperar. E só tem
dezessete anos…
Ouvindo-a, Oki concluiu que fora de sua mãe que Otoko herdara o
temperamento impetuoso.
Não se passara nem um ano quando a mãe de Otoko vendeu sua casa de
Tóquio e partiu para se instalar em Kyoto com a filha. Otoko entrou num colégio
para moças em Kyoto, onde perdeu um ano. Quando deixou o colégio,
matriculou-se numa escola de arte.
Mais de vinte anos depois, tinham escutado juntos o sino do monastério de
Chion, na véspera do Ano-Novo, e ela mandava lhe entregar uma pequena
refeição para ele comer no trem. Todas as comidas que Otoko fizera em sua
intenção pertenciam à mais pura tradição de Kyoto, pensava Oki, enquanto
levava à boca os pedaços presos entre os palitos. No hotel Miyako, no café-da-
manhã, tinham-lhe servido formalmente uma tigela de zoni, mas o verdadeiro
sabor das comidas de Ano-Novo se encontrava nesta refeição fria. Em sua casa
de Kamakura, os pratos servidos por ocasião do Ano-Novo não tinham mais
nada de japonês e faziam lembrar aquelas fotografias coloridas que se vêem nas
revistas femininas.
Como havia dito sua aluna, Otoko, sendo pintora, tinha diversas visitas a
fazer, mas assim mesmo poderia ter reservado dez ou quinze minutos para
acompanhar Oki à estação. Foi certamente para evitá-lo, como havia feito
naquela noite, no hotel, que ela enviara a jovem aluna à estação. Entretanto, na
véspera, na presença de Keiko e das duas gueixas, Oki não pudera se permitir
nenhuma alusão ao seu passado com Otoko, mas, ainda assim, havia sentido uma
espécie de corrente entre ambos.
Acontecia o mesmo agora com esse lanche. Quando o trem principiou a se
pôr em movimento, Oki bateu com a palma da mão na face interna da janela,
mas, temendo que Keiko não o escutasse, abaixou o vidro cerca de dois
centímetros e lhe disse: - Mais uma vez, obrigado por tudo. Você deve ir a
Tóquio de vez em quando, não, já que sua família é de lá? Venha me visitar,
então. Você encontrará o endereço facilmente, a cidade não é grande, é só
perguntar o caminho ao sair da estação de Kamakura. E mande uma ou duas
daquelas telas abstratas que a srta. Ueno chamou de obras de um cérebro
doentio.
- Fiquei tão embaraçada quando a srta. Ueno disse aquilo… - Por um
segundo uma cintilação estranha luziu no olhar de Keiko.
- Mas, a srta. Ueno não disse também que inveja suas telas?
A parada do trem fora breve e a conversa entre eles igualmente curta.
Oki já escrevera alguns romances com toques fantásticos, mas até o
momento nunca tinha escrito romances abstratos. Como as palavras de que ele se
servia diferiam daquelas que são empregadas na linguagem cotidiana, tinha se
falado, a respeito de algumas de suas obras, de abstração ou simbolismo; já em
sua mocidade, Oki, que não demonstrava nem gosto nem talento para essas
tendências literárias, tinha se esforçado para eliminá-las de seus escritos. Ele
amara a poesia simbolista francesa, o shin-kokin-shu7 e os haikai8 e, desde muito
jovem, aprendera a empregar termos abstratos ou simbólicos, a fim de se
expressar de uma maneira concreta e realista. Ele pensava que, aprofundando
esta qualidade de expressão, acabaria por atingir o simbolismo e a abstração.
Entretanto, que relação havia, por exemplo, entre a Otoko de seu romance e a
verdadeira Otoko? Era difícil dizer.
De todos os livros de Oki, aquele que permanecera mais tempo em voga e
que ainda hoje gozava de grande prestígio do público era o romance onde
relatava seu amor por Otoko, quando ela tinha dezesseis ou dezessete anos. Ao
ser publicado, esse livro certamente prejudicou Otoko, chamando a atenção
sobre ela, o que, sem dúvida, constituiu um obstáculo para um eventual
casamento. Ainda assim, por que, depois de mais de vinte anos, a personagem
baseada em Otoko continuava a seduzir tantos leitores? Sem dúvida seria mais
correto dizer que era Otoko, tal como ela aparecia no romance de Oki, que
seduzia os leitores, e não a adolescente que lhe serviu de modelo. O romance não
era a verdadeira história de Otoko, mas simplesmente alguma coisa que Oki
havia escrito. O ficcionista que ele era acrescentara algo de sua imaginação, e
sua fantasia havia, evidentemente, idealizado a personagem. Mas, pondo isso de
lado, qual era a verdadeira Otoko - aquela que Oki havia descrito ou aquela que
a própria Otoko poderia ter criado ao narrar ela mesma sua história?
Ainda assim, a jovem adolescente de seu romance era realmente Otoko. Sem
esse caso de amor o livro não teria existido. E era, sem dúvida, por causa de
Otoko que esse romance continuava a ser lido, vinte anos depois de escrito. Se
não tivesse conhecido Otoko, Oki jamais teria vivido esse amor. Ele não saberia
dizer se o fato de ter encontrado a jovem e tê-la amado, quando tinha 31 anos,
fora um infortúnio ou uma felicidade, mas o certo é que esse encontro lhe
proporcionara, como escritor, um início promissor.
Oki intitulara seu romance de Uma garota de dezesseis anos. Era um título
comum e pouco original, mas, vinte anos atrás, as pessoas se chocavam com a
idéia de uma estudante de dezesseis anos possuir um amante, dar à luz um bebê
prematuro e em seguida perder a razão por algum tempo. Oki, por sua vez, não
via nisso nada de extraordinário.
Naturalmente, ele não escrevera esse livro com o intuito de escandalizar as
pessoas, nem tampouco considerava Otoko uma personagem bizarra. Assim
como o título de seu romance sugeria, o autor fora banal ao descrever Otoko
como uma adolescente pura e apaixonada. Ele tinha tentado retratar seu rosto,
sua silhueta, seus gestos.
Em síntese, ele tinha posto nesse romance toda a exuberância desse amor de
juventude e era sem dúvida por esse motivo que o livro fazia tanto sucesso. Uma
história que narrava o amor trágico de uma adolescente e de um homem ainda
jovem, porém casado e pai de família. Oki se empenhara em ressaltar apenas a
beleza desse amor e se negara a discutir seu aspecto moral.
Na época em que se viam secretamente, Otoko uma vez surpreendeu Oki, ao
dizer-lhe: - Você é o tipo de homem que se pergunta constantemente o que os
outros pensam de você. Deveria ser um pouco mais corajoso.
- E eu que pensava ser alguém sem escrúpulos. Agora não sou mais?
- Não, não se trata de nós. Você deveria ser mais você mesmo em todas as
coisas.
Oki, sem saber o que responder, refletira sobre si mesmo. Depois de todos
esses anos, ele não pudera esquecer as palavras de Otoko. Pensou que, por tê-lo
amado, essa criança de dezesseis anos pudera ler assim seu caráter e sua vida.
Durante muito tempo, Oki fora indulgente consigo mesmo, mas depois que se
separara de Otoko, todas as vezes que começava a dar importância às opiniões
dos outros, recordava-se de suas palavras.
Oki deixara de acariciar Otoko. Pensando que fosse por causa do que tinha
dito, ela apoiou a cabeça na curva do seu braço e, sem uma palavra, começou a
morder-lhe a carne na altura do cotovelo. Mordia cada vez mais forte. Oki,
suportando a dor, não tentou se desvencilhar. Podia sentir no braço as lágrimas
de Otoko.
- Você está me machucando! - disse afinal, agarrando-a pelos cabelos e
empurrando-a. Em seu braço, os dentes de Otoko tinham deixado uma marca
onde o sangue aflorava.
Otoko lambeu o ferimento.
- Morda-me, você também - ela pediu. Oki observou-lhe o braço, era
realmente o braço de uma criança, e o acariciou desde a ponta dos dedos até o
ombro. Beijou-lhe o ombro e Otoko enrodilhou-se de prazer.
Não foi porque Otoko lhe dissera "você deveria ser mais você mesmo em
todas as coisas" que Oki escrevera Uma garota de dezesseis anos, mas se
lembrara muito dessas palavras enquanto escrevia. O romance foi publicado dois
anos depois da separação. Otoko estava em Kyoto com sua mãe. Ela resolvera
deixar Tóquio certamente por não ter obtido uma resposta da parte de Oki
quando lhe pediu que se casasse com sua filha. Sem dúvida, não conseguira
suportar mais a amargura e a tristeza que compartilhava com a filha. O que
ambas podiam ter pensado, ao ler em Kyoto esse romance do qual Otoko era a
heroína, esse livro que tornara Oki célebre e cujos leitores eram cada vez mais
numerosos?
Ninguém procurou descobrir a identidade daquela que tinha servido de
modelo para o livro. Somente quando Oki tinha passado dos cinqüenta anos e já
firmara sua fama de escritor começaram a vasculhar seu passado e a identificar
Otoko como a protagonista de Uma garota de dezesseis anos. A mãe de Otoko já
havia morrido. A aproximação ganhou ainda mais evidência por Otoko ter-se
tornado uma artista célebre. Algumas revistas chegaram a publicar sua foto com
a legenda: "A heroína de Uma garota de dezesseis anos". Oki calculou que, se
Otoko se recusara a ser fotografada como a personagem do livro, ela não podia
se furtar a isso enquanto pintora. Naturalmente, ela não revelara aos jornais seus
sentimentos a esse respeito. E, mesmo quando o romance apareceu, Oki não teve
nenhuma notícia de Otoko, nem de sua mãe.
Como era de esperar, foi em sua própria casa que os aborrecimentos
começaram. Antes de seu casamento, a mulher de Oki, Fumiko, trabalhava como
datilografa numa agência de notícias. Dessa forma, Oki deixava à sua jovem
esposa a incumbência de bater seus manuscritos à máquina. Era uma espécie de
jogo entre recém-casados, um tipo de divertimento amoroso, mas não se tratava
apenas disso. _Quando seu trabalho apareceu pela primeira vez numa revista,
Oki ficou admirado com a diferença de efeito entre o manuscrito redigido à pena
e os pequenos caracteres impressos. E quando tinha adquirido maior experiência
como escritor, ele adivinhava naturalmente, diante de seu manuscrito, o efeito
que produziriam os caracteres impressos. Não que ele pensasse nesse efeito ao
escrever; na verdade essa nunca fora sua preocupação, mas a distância entre o
manuscrito e a página impressa havia desaparecido. Aprendera a escrever em
função da página impressa, e não do manuscrito. Até mesmo os trechos que, em
sua caligrafia, pareciam insignificantes e sem grande interesse adquiriam outra
dimensão quando impressos. Não queria isso dizer que tinha aprendido seu
ofício? Ele costumava dizer aos jovens escritores: "Mande imprimir alguma
coisa que você tenha escrito. É totalmente diferente de um manuscrito, você
ficará surpreso com o quanto isso pode lhe ensinar".
Os livros eram publicados em caracteres miúdos. Mas Oki também
experimentara a surpresa inversa: por exemplo, ele tinha lido sempre a Lenda de
Genji9 em edições de bolso com letras miúdas, mas, quando o leu certa vez
numa edição gravada em madeira, teve um impacto totalmente diverso.
Imaginou o que deveriam ter sentido aqueles que leram essa obra no Período
Heian10 , numa soberba versão em Kana11 . Além disso, a Lenda de Genji, que é
hoje um clássico com mil anos de idade, era, no Período Heian, um romance
moderno. Os estudos sobre esse romance poderiam prosseguir à vontade, porém
ninguém mais nos dias de hoje poderia ler a Lenda de Genji como uma obra
moderna. Também o prazer que se experimentava ao lê-la na antiga edição
gravada em madeira era maior do que aquele que se sentia com a leitura de uma
versão impressa. E a mesma coisa acontecia com a poesia do Período Heian. Oki
tentara ler as obras de Saikaku12 num fac-símile datado da Era Genroku13 . Não
agira dessa forma por amor ao passado, mas por necessidade de chegar o mais
próximo possível da realidade da obra. Porém, seria levar o refinamento ao
extremo ler, hoje em dia, em versão manuscrita, romances que eram feitos para
ser impressos, e não para ser decifrados na fastidiosa grafia de seu autor.
Na ocasião de seu casamento com Fumiko, não havia mais um fosso entre os
manuscritos de Oki e sua versão impressa, e, sendo Fumiko datilógrafa, Oki
confiava-lhe o trabalho de copiá-los à máquina. Os textos, datilografados numa
máquina de escrever japonesa, aproximavam-se muito mais de uma página
impressa do que os manuscritos.
Oki também sabia que os manuscritos dos escritores ocidentais eram ou
diretamente redigidos à máquina ou datilografados depois. Seus romances
datilografados, porém, sem dúvida porque não estava acostumado com isso,
pareciam-lhe mais insípidos e mais frios do que em sua versão manuscrita ou
impressa. Assim, via os defeitos mais claramente e era-lhe mais fácil proceder à
correção. Criara assim o hábito de entregar todos os seus manuscritos a Fumiko.
Mas poderia agir da mesma maneira com o manuscrito de Uma garota de
dezesseis anos? Deixando que sua mulher o copiasse, ele a faria sofrer e a
humilharia. Seria crueldade de sua parte. Quando conheceu Otoko, sua mulher
tinha 22 anos e seu filho acabara de nascer. Naturalmente, ela desconfiou da
relação de seu marido com Otoko, e, às vezes, à noite, perambulava com seu
bebê sem destino, ao longo da via férrea. Um dia, depois de uma ausência de
duas horas, Oki encontrou-a apoiada contra a velha ameixeira do jardim,
recusando-se a entrar em casa. Ao sair para procurá-la, ele ouvira seus soluços
junto ao portão do jardim.
- Que diabo está fazendo aí? O bebê vai apanhar frio! Era em meados de
março e a temperatura ainda era baixa.
O bebê apanhou frio e foi hospitalizado com início de pneumonia. Fumiko
permaneceu no hospital para cuidar dele.
- Seria melhor para você se ele morresse. Assim seria mais fácil me deixar -
dissera Fumiko a Oki. Até mesmo nessa ocasião, Oki se aproveitara da ausência
de sua mulher para rever Otoko. O bebê foi salvo.
No ano seguinte, quando Otoko teve seu parto prematuro, Fumiko ficou
sabendo ao abrir uma carta da mãe dela, vinda do hospital. Que uma jovem de
dezessete anos tivesse um filho não era em si nada de extraordinário, mas era
algo que Fumiko nunca tinha imaginado, nem mesmo em sonho. Enfurecida ao
pensar em tudo o que seu marido fizera àquela jovem, Fumiko cobriu-o de
injúrias e depois mordeu a língua até sangrar. Quando Oki viu o sangue escorrer
dos lábios de sua mulher, tentou abrir-lhe a boca à força, com a mão. Fumiko
começou a sufocar, foi tomada por náuseas e acabou perdendo as forças. Oki
tirou a mão. Seus dedos traziam a marca dos dentes de sua mulher e pingavam
sangue. Ao vê-los, Fumiko acalmou-se um pouco, lavou a mão de Oki, passou-
lhe um remédio e pôs uma atadura.
Fumiko também sabia que Otoko abandonara Oki e que fora morar em
Kyoto com sua mãe. Sua partida se deu antes de Oki terminar Uma garota de
dezesseis anos. Deixar sua mulher copiar o manuscrito seria remexer na ferida
com um punhal, voltando a provocar sua dor e seu ciúme. Porém, mantendo-a à
distância, Oki tinha a sensação de lhe esconder alguma coisa. Não sabendo o que
fazer, acabou por dar o manuscrito a Fumiko. Ele queria, antes de mais nada,
confessar-lhe tudo. E antes mesmo de datilografá-lo, Fumiko leu o manuscrito
do começo ao fim.
- Eu devia ter deixado você partir. Não sei por que não o fiz - disse Fumiko,
empalidecendo. - Todos os que lerem estas páginas terão simpatia por Otoko.
- Não queria escrever sobre você.
- Sei que não posso me comparar à sua mulher ideal.
- Não é isso que eu quis dizer.
- Eu estava louca de ciúme.
- Otoko partiu. E é com você que vou viver por muitos, muitos anos. Além
disso, muito do que pus neste livro é pura ficção de escritor e não se parece em
nada com a verdadeira Otoko. Por exemplo, eu não tenho idéia do que aconteceu
quando ela esteve internada.
- Essa ficção nasce de seu amor por ela.
- Eu não poderia ter escrito este livro se não a tivesse amado - disse Oki de
maneira explícita. - Você vai datilografá-lo para mim? Me custa muito pedir
isso…
- Vou. Afinal de contas, uma máquina de escrever é apenas um instrumento.
Serei, eu também, apenas um instrumento.
Mas, apesar do que dissera, Fumiko não podia se comportar como uma
máquina. Ela parecia errar freqüentemente, e Oki ouviu muitas vezes o ruído de
folhas de papel sendo rasgadas. Quando ela interrompia o trabalho para
descansar, Oki ouvia-a soluçando baixinho. Como a casa era pequena e a
máquina de escrever se encontrava num canto da exígua ala de quatro tatamis14 e
pegada ao modesto quarto de seis tatamis que lhe servia de lugar de trabalho,
Oki estava muito consciente da presença de sua mulher. Era-lhe difícil
permanecer sentado tranqüilamente à sua escrivaninha.
Fumiko, no entanto, não fez nenhum comentário a respeito de Uma garota de
dezesseis anos. Talvez pensasse que como instrumento não deveria falar. O
romance tinha cerca de 350 páginas e mesmo para uma datilógrafa experiente
eram necessários muitos dias para terminar de copiá-lo. Fumiko estava pálida e
tinha o rosto encovado.
Muitas vezes ficava sentada, o olhar perdido no vazio, de repente
recomeçava a bater a máquina com fúria. Uma noite, antes do jantar, vomitou
um líquido amarelado e desabou. Oki aproximou-se dela para esfregar-lhe as
costas.
- Água, água, por favor - pediu Fumiko, sem fôlego. As lágrimas brotavam
nos cantos de seus olhos avermelhados.
- Eu fiz mal. Não devia ter pedido a você que copiasse este romance - disse
Oki. - Mas o fato de manter você afastada de tudo isso… Mesmo se uma tal
dissimulação não fosse suficiente para causar a ruína de seu casamento, ela
também teria deixado, por muito tempo, uma ferida aberta.
- Ao contrário. Apesar de ser uma experiência terrível, estou contente que
você tenha me confiado - disse Fumiko, tentando esboçar um pálido sorriso. - É
a primeira vez que copio um romance tão longo e isso me deixa esgotada.
- Quanto mais longo o romance, mais longa sua tortura. Talvez seja esse o
destino da mulher de um escritor.
- Graças ao seu romance, pude compreender melhor Otoko. Apesar de todo o
mal que isso me fez, senti que esse encontro foi bom para você.
- Eu não lhe disse que a idealizei?
- Sei disso. Na realidade não existem jovens como ela. No entanto, gostaria
que você tivesse falado mais de mim; mesmo se tivesse me descrito como uma
horrível megera devorada pelo ciúme, eu não lhe quereria mal.
Oki custou a responder: - Você nunca foi assim.
- Você nunca soube o que havia em meu coração.
- Eu não queria contar todos os nossos segredos.
- É mentira. Você estava tão envolvido com sua pequena Otoko que só queria
escrever sobre ela. Talvez pensasse que, falando de mim, mancharia sua beleza e
aviltaria sua obra. Mas um romance tem de ser necessariamente uma coisa bela?
O simples fato de não ter mencionado os ciúmes terríveis de sua mulher
havia provocado uma nova crise de ciúme nela. Oki, porém, não se omitira
totalmente. Ao contrário, seu próprio laconismo não lhe dera assim mais força?
Fumiko, no entanto, parecia frustrada por ele não ter entrado em detalhes. Oki
não conseguia compreender o estado de espírito de sua mulher. Teria se sentido
negligenciada, desdenhada em benefício de Otoko? Mas, como o romance estava
centrado em sua trágica relação com a jovem, era inevitável que o papel
atribuído a Fumiko fosse menor que o de Otoko. Além disso, Oki tinha
acrescentado muitos detalhes que até o momento escondera de sua mulher.
Isso era o que o preocupava mais: no entanto, ela parecia magoada
principalmente pelo pouco espaço dedicado a ela no livro.
- Eu não queria me servir de seus ciúmes no meu romance, isso é tudo! -
disse Oki.
- É porque você não consegue falar de alguém por quem não sente amor… e
nem mesmo ódio. Enquanto copio seu manuscrito, não paro de me perguntar por
que não o deixei ir embora.
- Vai começar a falar bobagens novamente.
- Estou falando sério. Foi um crime da minha parte não tê-lo deixado partir.
Vou sentir remorsos até o fim da minha vida.
- O que é que está dizendo? - disse Oki, agarrando Fumiko pelos ombros e
sacudindo-a com força. Ela estremeceu da cabeça aos pés e, outra vez, vomitou
um líquido amarelado. Oki a largou.
- Não é nada. Acho… acho que estou grávida.
- Como?
Oki estremeceu. Fumiko cobriu o rosto com as mãos e pôs-se a soluçar.
- Você precisa tomar mais cuidado agora. E vai parar de copiar esse
manuscrito.
- Não, quero continuar. Deixe-me copiar, por favor. Está quase acabado e,
além disso, são só meus dedos que trabalham.
Fumiko recusou-se a ouvir Oki. Pouco depois de ter terminado de copiar o
manuscrito, ela abortou. Mais que o esforço físico, parecia ter sido o conteúdo
do manuscrito que lhe causara um verdadeiro choque. Ela permaneceu alguns
dias na cama. Seus cabelos, que eram macios, espessos e caíam em tranças,
pareciam mais finos do que antes. A pele de seu rosto, sem sangue e sem pintura,
parecia aveludada. Apenas os lábios estavam levemente cobertos de batom. Por
ser tão jovem, Fumiko se recuperou bastante bem de seu aborto.
Oki guardou o texto datilografado num arquivo. Não o rasgou, não o
queimou, mas também não o releu. Considerando o parto prematuro de Otoko e
o aborto de Fumiko, não havia nestas páginas alguma coisa de funesto? Durante
algum tempo Oki e Fumiko evitaram tocar no assunto. Fumiko foi a primeira a
traze-lo à tona.
- Por que não o publica? Tem medo de me magoar? Esse tipo de coisa é
inevitável quando uma mulher é casada com um escritor, e se você tem medo de
ferir alguém, esse alguém é Otoko, ao que parece.
Durante a convalescença, a pele de Fumiko tinha recuperado a beleza e o
brilho. Era esse o milagre da juventude? O desejo que sentia por seu marido
também se aguçara.
Na época em que foi publicado Uma garota de dezesseis anos, Fumiko se
encontrava novamente grávida.
O romance foi elogiado pela crítica. Além do mais, foi apreciado por um
grande número de leitores. A dor e o ciúme não tinham abandonado Fumiko,
mas, sem deixar que gestos ou palavras traíssem sua amargura, ela se alegrava
com o sucesso do marido. Foi esse romance - considerado a obra da juventude
mais representativa de Oki - que alcançou a maior vendagem entre todos os seus
livros. Esse sucesso permitiu a Oki e à sua família melhorar de vida, melhora
que se traduziu para Fumiko em roupas e jóias, além de dinheiro para cobrir as
despesas escolares de seu filho e sua filha. Teria Fumiko se esquecido de que
tudo aquilo se devia a uma jovem adolescente e à relação que seu marido tivera
com ela? Consideraria esse dinheiro uma renda normal de seu marido? Será que,
pelo menos a seus olhos, a aventura entre Oki e Otoko não se revestia mais de
um caráter trágico?
Oki não tinha nada contra esse estado de coisas, mas se surpreendia às vezes
a pensar que Otoko, que servira de modelo para sua personagem, nada recebera
em troca.
Nem ela nem sua mãe expressaram uma palavra de reprovação sequer a seu
respeito. Diversamente de um pintor ou escultor realista, Oki, enquanto escritor,
podia penetrar nos pensamentos de Otoko, modelar seus traços como quisesse,
dar livre curso à sua imaginação e fantasiar e idealizar a jovem, sem que, no
entanto, ela deixasse de ser ela mesma. Oki tinha permitido que seu amor se
expressasse com todo o seu ímpeto e toda a sua juventude, e não se preocupara
um instante com a inconveniência que isso representaria para Otoko, nem com
as dificuldades que poderia trazer para uma jovem solteira. Fora isso, sem
dúvida, que seduzira seus leitores, mas podia também se tornar um obstáculo ao
casamento de Otoko. O romance lhe trouxera fama e dinheiro. Fumiko parecia
ter esquecido seus ciúmes, e a ferida talvez estivesse cicatrizada. Não havia
também uma diferença entre a criança prematura de Otoko e o aborto de
Fumiko? Fumiko continuava a ser sua mulher. Depois de uma convalescença
normal, sem complicações, ela dera à luz uma menina. Os meses e os anos
passavam, e a única pessoa que não mudava era a jovem heroína das páginas de
seu romance.
De um ponto de vista pessoal e mesquinho, e embora isso constituísse uma
das debilidades do livro, Oki preferira não insistir muito nos ciúmes ferozes de
sua mulher.
Era isso, sem dúvida, que tornava a leitura da obra tão agradável, e a heroína
tão benquista.
Ainda hoje, mais de vinte anos depois, as pessoas continuavam a citar Uma
garota de dezesseis anos como sua melhor obra. Mas Oki, como escritor, achava
esse julgamento angustiante e se sentia deprimido. No entanto, pesando bem as
coisas, não havia nesse livro todo o frescor da juventude? Os protestos do autor
não conseguiam dobrar a preferência do público, tampouco uma reputação já
consolidada. A obra passara a ter vida própria, sem vínculo nenhum com seu
autor. Mas Oki, às vezes, se perguntava: "O que acontecera à jovem Otoko?". A
única coisa que sabia é que mudara com a mãe para Kyoto. Sem dúvida era essa
vida contínua do romance que o levava a se indagar sobre o destino de Otoko.
Somente nos últimos anos Otoko se tornara um nome conhecido na pintura.
Até então, ele permanecera sem nenhuma notícia sobre ela. Oki imaginava que
Otoko, como todo mundo, se casara e levava uma vida normal: era isso, ao
menos, o que esperava. Contudo, não acreditava que Otoko tivesse
temperamento para se contentar com uma existência comum. Às vezes, ele se
perguntava se isso não queria dizer que o amor que sentira por ela ainda não
estava totalmente morto.
E, por essa razão, seu choque foi imenso quando soube que Otoko se tornara
pintora.
Oki ignorava os sofrimentos pelos quais Otoko havia passado, as
dificuldades que havia superado até chegar àquele ponto, mas a notícia de seu
sucesso lhe causou uma viva alegria. Quando viu, por acaso, uma de suas obras
numa galeria, Oki vibrou de emoção. A exposição não era unicamente de Otoko,
apenas uma pintura sua, em seda, representando uma peônia, estava exposta
entre as obras de vários artistas. Na parte superior do quadro, Otoko pintara uma
única peônia vermelha. A flor era vista inteiramente de frente, maior do que o
normal, com poucas folhas e, isolado, um único botão branco despontava na
haste. Oki reconheceu, nessa flor deliberadamente aumentada, o orgulho de
Otoko, assim como toda a sua nobreza. Comprou o quadro imediatamente, mas
como tinha o carimbo e a assinatura de Otoko preferiu não levá-lo para casa e o
doou ao clube de escritores do qual era membro. Assim, pendurada a uma boa
altura na parede do clube, a pintura causou-lhe uma impressão um pouco
diferente da que produzira na galeria repleta de pessoas. Algo de fantástico
emanava dessa enorme peônia vermelha, o seu interior parecia irradiar uma
profunda solidão. Foi na mesma época que Oki viu, numa revista feminina, uma
fotografia de Otoko em seu estúdio.
Havia muitos anos ele desejava ir a Kyoto para escutar os sinos de fim de
ano, mas foi essa pintura que lhe deu ensejo de ouvi-los em companhia de
Otoko.
Em Yamanouchi, ao norte de Kamakura, uma estrada corria entre as colinas
repletas de árvores em flor. Logo, ao longo dessa estrada, as flores anunciariam a
chegada da primavera. Oki costumava passear nas Colinas do Sul e era de cima
de uma delas que ele agora contemplava o crepúsculo.
O sol poente perdeu em breve seu tom púrpura e se transformou num azul
frio e sombrio, manchado de cinza. Como se a primavera, recém-chegada,
cedesse novamente seu lugar ao inverno. O sol, que em alguns lugares dava à
bruma uma coloração rosada, caíra.
O frio chegou rapidamente. Oki desceu até o vale e voltou para casa, nas
Colinas do Norte.
- Uma jovem chamada Sakami veio de Kyoto - anunciou-lhe Fumiko. - Ela
trouxe dois quadros e uns doces.
- E já foi embora?
- Taichiro a acompanhou até a estação. Talvez estejam procurando por você.
- Ah, sim?
- Ela é de uma beleza assustadora. Quem é? - indagou Fumiko, os olhos fixos
em Oki como para ler a resposta em seu rosto. Oki se esforçou em parecer à
vontade, mas a intuição feminina de Fumiko deve ter-lhe feito adivinhar que a
jovem tinha alguma ligação com Ueno Otoko.
- Onde estão as telas? - perguntou Oki.
- No seu escritório. Ainda estão embrulhadas, não mexi nelas.
Sakami Keiko parecia ter mantido a promessa feita a Oki na estação de
Kyoto e ter vindo visitá-lo com algumas de suas obras. Oki foi logo ao seu
escritório e abriu o pacote. As duas telas estavam emolduradas de maneira
simples. Uma se chamava Ameixeira, mas não tinha tronco nem galhos; apenas
uma flor, tão grande como a cabeça de uma criança, estava representada. Além
disso, essa única flor tinha tanto pétalas vermelhas como brancas. Cada uma das
pétalas vermelhas fora pintada com uma estranha combinação de tons claros e
escuros de vermelho.
Essa flor imensa não estava particularmente distorcida, tampouco dava a
impressão de ser apenas decorativa. Uma espécie de vida misteriosa palpitava ali
dentro e ela parecia realmente se mover. Talvez isso se devesse ao fundo que
Oki, a princípio, tomara por um amontoado de espessos fragmentos de gelo, mas
que em seguida reconhecera como uma cadeia de montanhas nevadas. Nessa
pintura, que não queria ser um reflexo da realidade, somente as montanhas
recobertas de neve podiam criar um efeito de tamanha vastidão. Mas,
evidentemente, as montanhas verdadeiras não eram tão recortadas, nem tão
pontiagudas, nem se encolhiam assim em suas bases; esse era o estilo abstrato
próprio de Keiko. Mais do que montanhas nevadas ou fragmentos de gelo, não
era essa a paisagem interior da pintora? Mesmo que se admitisse ver ali uma
cadeia de montanhas, não havia nela a brancura fria da neve. Uma espécie de
música nascia do encontro entre a neve glacial e sua cor ardente. A neve não era
de um branco uniforme, diversas cores se compunham numa canção, lembrando
as variações de branco e vermelho das pétalas da flor da ameixeira. Quer fosse
considerada fria ou não, essa pintura não deixava de revelar a juventude e o
estado de espírito da artista. Sem dúvida Keiko a tinha pintado para Oki, para
estar de acordo com a estação. Pelo menos, a flor da ameixeira era reconhecível.
Enquanto contemplava a pintura, Oki pôs-se a pensar na velha ameixeira de
seu jardim. Apesar das deformidades e da má formação da árvore, Oki jamais
questionara as vagas noções de botânica de seu jardineiro. A velha árvore dava
flores brancas e vermelhas. O jardineiro não havia feito nenhum enxerto e as
flores vermelhas e brancas brotavam no mesmo galho. Mas nem todos os galhos
da árvore eram assim; nuns só nasciam flores brancas, noutros, apenas flores
vermelhas. No entanto, quase sempre as flores vermelhas se misturavam às
brancas e floriam cada ano em galhos diferentes. Oki amava essa velha
ameixeira cujos botões começariam a desabrochar em breve.
Keiko, sem a menor dúvida, tinha simbolizado essa estranha ameixeira por
apenas uma de suas flores. Otoko devia ter lhe falado dessa árvore. Apesar de
nunca ter ido à casa de Oki, que já era casado com Fumiko, ela sabia de sua
existência. Lembrara-se da árvore e, por sua vez, contara à sua aluna.
Teria Otoko feito alguma alusão a seu trágico amor de outrora ao evocar essa
ameixeira?
- É de Otoko…?
- Como? -voltou-se Oki. Absorto na contemplação da tela, ele não percebera
a presença de sua mulher.
- É um quadro de Otoko?
- É claro que não! Ela nunca faria algo tão jovem. Foi pintado pela moça que
esteve aqui há pouco. Você pode ver que está assinado "Keiko"!
- Que pintura estranha! - observou Fumiko com voz dura.
- Estranha, realmente! - respondeu Oki, esforçando-se para falar com doçura.
- Os jovens pintores de hoje, mesmo no estilo japonês…
- É isso que chamam de "arte abstrata"?
- Bem, talvez não se possa realmente falar de arte abstrata…
- O outro quadro é ainda mais estranho. Não saberia dizer se é um peixe ou
uma nuvem, com todas essas cores espalhadas de qualquer jeito! - disse Fumiko,
sentando-se atrás de Oki.
- Hum! Não tem muito a ver com um peixe ou uma nuvem. Talvez não seja
nem um nem outro.
- Nesse caso, o que é que isso pode representar?
- Você pode achar que é um peixe ou uma nuvem, isso não tem nenhuma
importância.
Pousou o olhar na pintura. Aproximou-se da parede contra a qual a tela
estava apoiada e examinou o dorso do quadro.
- Não tem título.
Nenhuma forma podia ser identificada nessa tela e as cores empregadas eram
ainda mais violentas e variadas do que na Ameixeira. Fora sem dúvida por causa
da multiplicidade de linhas horizontais que Fumiko supôs reconhecer ali um
peixe ou uma nuvem. À primeira vista, parecia não haver harmonia alguma entre
as cores. Todavia, uma estranha paixão emanava dessa obra executada no estilo
tradicional japonês. Naturalmente, nada ali era acidental. O fato de não ter título
deixava o campo aberto a todas as interpretações. Podia ser que a subjetividade
da artista, que parecia se dissimular na obra, ali estivesse, ao contrário, revelada.
Oki tentava descobrir o coração da pintura quando sua mulher lhe perguntou: -
Essa moça, afinal, o que ela é de Otoko?
- Uma aluna que vive com ela - respondeu Oki.
- Mesmo? Você me deixa rasgar essas telas ou pô-las no fogo?
- Pare de dizer bobagens! Por que essa raiva…?
- Ela pôs todo o seu coração nestas pinturas! Tudo aí fala de Otoko! Não são
coisas para se ter em casa.
Espantado por esse súbito acesso de ciúme, Oki perguntou calmamente: - Por
que você diz que tudo aí fala de Otoko?
- Então você não está vendo?
- Mas isso é fruto da sua imaginação. Você está começando a ver fantasmas!
Porém, ao mesmo tempo em que falava, uma pequena chama acendeu-se em
seu coração e pôs-se a brilhar com intensidade.
Era claro que a Ameixeira expressava o amor que Otoko sentia por Oki.
Quanto à tela sem título, ela dizia sem dúvida a mesma coisa. Nessa última,
Keiko empregara pigmentos minerais, sobre os quais aplicara várias camadas de
cor, desde o centro da composição até a parte inferior, à esquerda. Oki acreditou
enxergar a alma dessa tela nesse espaço estranho e claro que parecia formar uma
janela. Podia ver até o sinal de que o amor de Otoko continuava vivo.
- Afinal, não é obra de Otoko, mas de sua aluna - disse ele.
Fumiko parecia suspeitar que Oki se encontrara com Otoko em sua ida a
Kyoto. Mas ela nada tinha dito no momento, talvez porque o dia em que seu
marido retornara fosse também um dia de festa.
- O que quer que seja, eu detesto estas telas! - disse Fumiko, as pálpebras
frementes de raiva. - Elas não ficarão aqui!
- Quer você goste ou não, elas pertencem a quem as pintou. Mesmo que a
pintora em questão seja apenas uma menina, como pode pensar em destruí-las
assim, a seu bel-prazer?
E, antes de tudo, você tem certeza de que elas nos foram oferecidas, ou a
jovem veio simplesmente para mostrá-las?
Fumiko ficou silenciosa por um instante.
- Foi Taichiro quem a recebeu na entrada… Depois ele a conduziu até a
estação e já faz um bom tempo que ele saiu.
Essa demora também atormentava Fumiko? A estação era perto da casa e
havia trens a cada quarto de hora.
- Agora é a vez de Taichiro ser seduzido. Uma jovem tão bela e de uma
beleza quase maligna.
Oki juntou as duas pinturas e começou a embrulhá-las lentamente.
- Chega de falar em sedução! Não gosto disso. Se essa moça é tão bonita,
suponho que estas obras são apenas um reflexo, um narcisismo de jovem
adolescente…
- Não. Elas são, sem a menor dúvida, o reflexo de Otoko.
- Então, talvez essa jovem e Otoko se amem.
- Lésbicas? - Fumiko foi pega de surpresa. - Você acha que elas são lésbicas?
- Não sei de nada, mas isso não me admiraria. Elas vivem juntas num velho
mosteiro de Kyoto e as duas têm um temperamento passional.
Fumiko ficou realmente perturbada com a idéia de duas mulheres serem
lésbicas. Durante um instante, permaneceu em silêncio.
- O que quer que seja, penso que estas telas exprimem o amor que Otoko
ainda tem por você. - O tom de Fumiko se suavizara. Oki sentiu vergonha de ter
falado em homossexualidade para se livrar do assunto.
- Talvez estejamos errados os dois. Nós olhamos estas pinturas com idéias
preconcebidas…
- Mas por que pintar coisas tão absurdas?
- Ora! Uma pintura, seja ela realista ou não, revela os sentimentos e os
pensamentos íntimos do artista.
Por covardia, Oki evitou continuar a discussão com sua mulher.
Talvez a primeira impressão de Fumiko diante das telas de Keiko tivesse
sido, contra toda a expectativa, exata. E talvez Oki também tivesse acertado ao
falar em lesbianismo.
Fumiko deixou o escritório. Oki esperou a volta de seu filho Taichiro.
Taichiro era professor de literatura japonesa numa universidade particular.
Nos dias em que não dava aula, ia até a sala de estudos da universidade ou fazia
pesquisas em casa. No início, ele quisera estudar literatura moderna, isto é, a
literatura do Período Meiji, mas, seu pai tendo se oposto, ele se especializou em
literatura do Período Kamakura15 e do Período Muromachi16. Ele tinha o mérito,
raro num especialista de literatura japonesa, de poder ler inglês, francês e
alemão. Era um rapaz muito dotado, calmo, mas que parecia um pouco
melancólico. Era o contrário de sua irmã mais nova, Kumiko, alegre e
inconseqüente, com seus conhecimentos superficiais em matéria de costura,
jóias, tricô ou arranjos florais. Quando Kumiko o convidava para patinar ou
jogar tênis, Taichiro sempre lhe respondia atravessado, e sua irmã acabara por
considerá-lo um excêntrico. Taichiro não freqüentava as amigas de Kumiko.
Quando convidava seus alunos para vir em casa, não se dignava a apresentá-los.
Ela, apesar de não ter um temperamento agastado, ficava amuada diante da
acolhida calorosa que sua mãe reservava aos alunos de Taichiro.
- Quando seu irmão recebe seus alunos, só temos de lhes servir chá. Mas
você, você remexe toda a geladeira, os armários e quando sente vontade telefona
para encomendar sushis ou Deus sabe o quê, você faz um alvoroço incrível… -
dizia sua mãe.
- Mas meu irmão só recebe seus alunos - replicava Kumiko, rindo.
Kumiko se casara, mas Taichiro, que ainda não era financeiramente
independente, não pensava em casamento.
Oki começava a se inquietar com a demora do filho. Olhou pela janela do
escritório. A terra formava uma pequena colina no lugar onde, durante a guerra,
tinha sido cavado um abrigo antiaéreo, hoje recoberto por ervas daninhas. No
meio das ervas daninhas, despontava uma profusão de flores azuis. As ervas
daninhas eram tão discretas que se tornavam quase imperceptíveis. As flores
também eram bem pequenas, mas de um azul profundo e brilhante. Excetuando
as daphnes, essas flores azuis eram as primeiras a desabrochar no jardim de Oki
e as que mais tempo permaneciam abertas. Elas talvez não anunciassem a
primavera, mas floriam tão perto da janela de seu escritório que Oki, às vezes,
sentia vontade de descer para colher uma dessas humildes flores e segurá-la na
mão para estudá-la atentamente. Mas ele nunca o fizera, e isso contribuía para
aumentar o amor que tinha por essas flores azuis.
Mais tarde, nessa moita de ervas, foi a vez de florescerem as margaridas
amarelas. Elas também tinham vida longa. Mesmo agora, na luz de fim de tarde,
Oki podia distinguir o amarelo das margaridinhas e o azul ultramarino das outras
florzinhas. Por um longo momento, permaneceu a contemplá-las.
Taichiro ainda não voltara.
***
A FESTA DA LUA CHEIA
Otoko decidira levar Keiko ao templo do monte Kurama para assistir à festa da
Lua cheia. A comemoração acontecia sempre no mês de maio, mas numa data
que não coincidia com a do antigo calendário lunar. Na noite anterior à festa, a
Lua ergueu-se no céu límpido acima das Colinas do Leste. Otoko, que a
observava da varanda, disse a Keiko: - Acho que a Lua estará linda amanhã!
Durante a festa, os participantes deveriam beber uma taça de saque com a Lua
cheia refletida, e seria frustrante se o céu estivesse encoberto e a Lua, ausente.
Keiko veio até a varanda e pôs a mão docemente nas costas de Otoko.
- A Lua de maio - disse Otoko.
Keiko não disse nada, mas, depois de alguns segundos em silêncio,
perguntou: - E se fôssemos dar um passeio de carro nas Colinas do Leste? Ou
então em Otsu, para vermos o reflexo da Lua no lago Biwa?
- A Lua no lago Biwa? Não há nada de extraordinário nesse espetáculo!
- Será mais bonito ver a imagem da Lua numa taça de saque do que num
grande lago? - retomou Keiko, sentando-se aos pés de Otoko. - Veja! Que cor
engraçada tem o jardim esta noite!
- É mesmo! - Otoko mirou o jardim. - Keiko, você quer me trazer uma
almofada e apagar a luz da casa?…
Da varanda, só o jardim interno era visível, pois o prédio principal do
monastério obstruía a visão. Era um jardim oval e desarmônico. Metade estava
banhada pela Lua, de modo que as pedras que formavam os caminhos ganhavam
colorações diferentes conforme estivessem na luz ou na sombra. Desabrochando
na escuridão, uma azaléia branca parecia flutuar. O sicômoro vermelho, ao lado
da varanda, tinha as folhas novas enegrecidas pela noite. Na primavera, as
pessoas freqüentemente confundiam seus brotos brilhantes com flores e se
perguntavam que espécie de árvore era aquela. O jardim também tinha uma
espessa cobertura de musgo.
- E se eu fizesse um chá? O primeiro chá da estação? - propôs Keiko.
Otoko continuava a mirar aquele jardim insignificante, como se não estivesse
habituada a olhá-lo assim nas diferentes horas do dia e da noite. Mantinha-se ali,
a cabeça levemente baixa, os olhos fixos na metade do jardim iluminada pela
Lua, com o ar de estar imersa em algum pensamento. Keiko retornou à varanda e
começou a servir o chá: - Li em algum lugar que a moça que serviu de modelo
para O beijo, de Rodin, ainda está viva e deve ter uns oitenta anos. Difícil
imaginar, se pensarmos na escultura, não?
- Acha mesmo? Você diz isso porque é jovem! Acredita que é preciso morrer
na flor da idade só porque um artista imortalizou a sua juventude em alguma
obra-prima?
É um erro exigir tanto dos nossos modelos!
A rapidez da réplica de Otoko se devia ao fato de as palavras de Keiko lhe
recordarem o romance de Oki. Otoko, no entanto, aos quarenta anos, ainda era
bela. Keiko, sem se dar conta, prosseguiu: - Lendo isso, tive a idéia de lhe pedir
para fazer o meu retrato enquanto ainda sou jovem.
- Farei com prazer, se for capaz. Mas por que você mesma não faz um auto-
retrato?
- Eu…? Não ficaria muito parecido. Além disso, o retrato correria o risco de
revelar tudo o que há de mau em mim e eu acabaria detestando esse quadro. Ou
então, se eu me pintar de um modo realista, as pessoas certamente acharão que
tenho um conceito muito elevado de mim mesma.
- Quer dizer que gostaria de um retrato realista? Isto me surpreende. E,
depois, você ainda é jovem e vai mudar.
- Quero que seja você a pintar o meu retrato.
- Com prazer, se for capaz - tornou Otoko.
- Será que você não me ama mais ou está com medo de mim? - perguntou
Keiko com voz mordaz. - Um homem ficaria deslumbrado em me pintar. E
mesmo me pintar nua…
Otoko pareceu não se inquietar com as palavras de Keiko.
- Já que você me pede, tentarei.
- Fico tão feliz com isso!
- Mas não vou pintar você nua. Quando uma mulher pinta outra mulher nua,
o resultado, a meu ver, nunca é muito brilhante. Ainda mais no estilo da pintura
tradicional que é o meu.
- Se eu fizer o meu auto-retrato, darei um jeito para que nós duas estejamos
juntas - disse Keiko num tom insinuante.
- Eu me pergunto que tipo de quadro sairia.
A jovem tomou um ar de mistério e riu abafado: - Farei uma obra abstrata e
ninguém saberá… Não se perturbe.
- Não estou nem um pouco perturbada - respondeu Otoko, bebendo um gole
de chá perfumado.
Era o primeiro chá da estação e fora oferecido a Otoko quando ela estava em
Uji, fazendo alguns desenhos da região. Ela não desenhara nenhuma das jovens
colhedoras de chá. Limitara-se a representar em toda a superfície da tela as
ondulações suaves dos arbustos sobrepostos. Otoko voltara várias vezes a Uji e
fizera inúmeros desenhos, observando os jogos de luz e sombra nas moitas de
chá. Keiko sempre a acompanhava.
Um dia Keiko lhe perguntara: - Isso que você está fazendo não é arte
abstrata?
- Se você o tivesse pintado, sim. Embora seja até um sinal de atrevimento de
minha parte, estou tentando apenas harmonizar o verde dos brotos recém-
nascidos com o das folhas velhas, assim como as ondulações suaves das moitas e
as variações de cor.
Em seu estúdio, rodeada por numerosos desenhos, Otoko fez um primeiro
esboço de paisagem.
No entanto, não fora apenas o interesse pelas ondulações verdes e seus
diversos matizes, assim como as linhas sinuosas das moitas, que levara Otoko a
pintar as plantações de chá de Uji. Depois de ter se separado de Oki, ela partira
para Kyoto com sua mãe, e retornara a Tóquio várias vezes, mas não conseguia
tirar da lembrança as plantações de chá dos arredores de Shizuoka vistas da
janela do trem. Às vezes, ela as via em pleno dia, às vezes, durante a noite.
Nessa época, ela era apenas uma estudante e não sonhava sequer em se tornar
pintora. Mas a visão dessas plantações de chá reavivava ainda a dor que ela
experimentara ao ter-se separado de Oki. Ela não saberia dizer por que essas
modestas plantações tocavam o seu coração quando, nesta linha de Tokaido,
ofereciam-se ao seu olhar montanhas, lagos, o mar, e às vezes até mesmo nuvens
em tons delicados. Teria o verde morno dos arbustos ou a melancolia das
sombras noturnas espraiadas sobre os sulcos do campo despertado sua dor? As
encostas onde crescia o chá eram baixas e pareciam feitas pelo homem, com suas
valas fundamente sombreadas; as moitas macias faziam pensar num verde
rebanho de ternos carneirinhos.
Talvez a tristeza que Otoko experimentava já antes de sair de Tóquio se
tornasse mais aguda quando o trem alcançava Shizuoka.
Quando viu as plantações de chá de Uji, a tristeza apoderou-se de Otoko
novamente e ela voltou ao vale de Yuyan para fazer alguns esboços. Mesmo
Keiko parecia não ter notado sua tristeza. Mas as plantações de Uji, na
primavera, não tinham a melancolia daquelas que ela vira da janela do trem, ao
longo da estrada de Tokaido; o verde-claro das folhas recém-nascidas era
brilhante demais.
Embora houvesse lido Uma garota de dezesseis anos e, durante as longas
conversas na cama, Otoko não lhe ocultasse nada a respeito de sua relação com
Oki, Keiko parecia não ter percebido nesses esboços feitos em Uji um traço do
antigo amor de Otoko.
Ela apreciava a maneira quase abstrata com que Otoko tratara as moitas de
chá com linhas brandas e ondulantes, mas se surpreendia com o fato de aqueles
croquis se afastarem tanto da realidade. Quanto a Otoko, ela própria achava
graça nesses esboços.
- Você vai pintar o quadro todo verde, não é? - perguntou Keiko.
- Claro. Estou pintando as plantações de chá na época da colheita…
Harmonia e variações do verde!
- Eu me pergunto se não deveria usar um vermelho ou um violeta. Não me
importo se não ficar mais parecido com uma plantação de chá.
O desenho de Keiko estava pendurado na parede do estúdio ao lado do de
Otoko.
- Que chá delicioso, este. Keiko, você não quer preparar mais… no estilo
"abstrato"? - disse Otoko, rindo.
- No estilo abstrato…? Tão amargo que lhe seja impossível beber?
- É isso que você chama de abstrato? - Otoko ouviu o riso da jovem no outro
quarto. - Keiko, quando você foi a Tóquio, há alguns dias, você parou em
Kamakura, não?
- A voz de Otoko endurecera ligeiramente.
- Parei.
- Por quê?
- Na estação de Kyoto, o sr. Oki pediu para ver meus quadros. - Otoko não
respondeu.
Com a voz fria e pausada, Keiko continuou: - Otoko, gostaria de vingá-la.
- Vingar-me? - Otoko confundiu-se diante das palavras inesperadas da
jovem. - Vingar… a mim?
- Exatamente.
- Venha aqui, Keiko, sente-se. Falemos um pouco disso tudo bebendo este
chá abstrato.
Keiko calou-se e se ajoelhou. Seus joelhos roçavam os de Otoko. Ela se
serviu de uma xícara de chá.
- Deus, como está amargo! - disse, franzindo as sobrancelhas. - Vou fazer
outro.
- Não importa - Otoko falou, retendo-a. - Por que diabo está falando em
vingança?
- Você sabe muito bem por quê.
- Nunca pensei em algo assim. Não guardo nenhum rancor.
- Porque você ainda o ama. Porque não vai deixar de amá-lo, enquanto
viver… - Keiko falava com a voz estrangulada. - Eu quero vingá-la.
- Mas por quê?
- Não tenho o direito de sentir ciúme?
- Então é isso? - Otoko pôs a mão sobre o ombro tenso e trêmulo da jovem.
- É a verdade. Eu não consigo lhe explicar. Mas é odioso!
- Que criança impetuosa! - disse Otoko com doçura. - O que você entende
por vingança? O que pensa fazer?
Keiko, a cabeça baixa, não se mexia. A luz da Lua iluminava um trecho
ainda maior do jardim.
- Por que você foi a Kamakura? Sem ao menos falar comigo…
- Eu queria ver a família do homem que a fez tão infeliz.
- E você a viu?
- Só vi seu filho, Taichiro. Sem dúvida é o retrato de seu pai quando jovem.
Parece que ele estuda literatura das eras Kamakura e Muromachi. Ele foi muito
gentil comigo, me levou para visitar os monastérios, o Enkaku-ji e o Kencho-ji e
ainda me levou até Enoshima.
- Para você, que foi criada em Tóquio, tudo isso não devia ser novidade.
- Não era, mas eu tinha visitado todos esses lugares muito rapidamente.
Enoshima mudou bastante. E me diverti ouvindo a história que se conta sobre o
Enkiri-ji17 …
- É essa sua vingança? Seduzir esse menino ou se deixar seduzir por ele? -
disse Otoko, retirando a mão do ombro de Keiko. - Nesse caso, caberia a mim
sentir ciúme.
- Você, com ciúme? Eu ficaria tão feliz! - Keiko passou os braços ao redor do
pescoço de Otoko e se pendurou nela. - Está vendo como posso ser má e
diabólica com qualquer outra pessoa, menos com você?
- No entanto, você levou para lá dois de seus quadros preferidos.
- Mesmo uma menina má como eu gosta de causar uma boa impressão.
Taichiro escreveu-me para dizer que eles estão pendurados em seu escritório.
- Verdade? - disse Otoko calmamente. - E é essa a sua maneira de me vingar?
Esse é o começo de sua vingança?
- É.
- Taichiro era apenas uma criança, não sabia o que se passava entre seu pai e
mim. O que realmente me magoou foi saber do nascimento de sua irmã, pouco
tempo depois de terme separado de Oki. Hoje, quando penso nisso, tenho certeza
de que foi assim que eu me senti. Acho que ela já deve ter se casado.
- Nesse caso, por que não destruir seu casamento?
- Que está dizendo, Keiko! Que arrogância em brincar assim com uma coisa
dessas. Isso só lhe trará desgraças! Não se trata de um jogo nem de uma farsa!
- Não me deixe, Otoko, é só o que lhe peço. É a única coisa de que tenho
medo. Como poderia pintar sem você ao meu lado? Não conseguiria nem pintar
nem viver…
- Então, pare de dizer besteiras!
- Eu ainda me pergunto se você não poderia ter estragado o casamento do sr.
Oki.
- Mas eu era apenas uma menina… e eles tinham um filho…
- Eu, eu teria feito isso!
- Você não sabe como uma família pode ser forte.
- Mais forte do que a arte?
- Bem… - Otoko inclinou o rosto no qual transparecia uma leve tristeza. -
Naquele tempo eu não sonhava com arte.
- Otoko! - Keiko virou para sua amiga e apertou-lhe delicadamente o punho.
- Por que você mandou que eu fosse buscar o sr. Oki no hotel Miyako e me pediu
que o acompanhasse à estação?
- Porque você é jovem e bonita! E eu tenho orgulho de você!
- Detesto quando você me esconde alguma coisa. Eu a observei muito bem
com meus olhos ciumentos…
- Verdade? - Otoko fitou os olhos da jovem, que cintilavam à luz da Lua. -
Eu não estava lhe escondendo nada. Quando Oki e eu nos separamos, eu tinha
mais ou menos dezessete anos. Hoje, sou uma mulher madura que começa a
engordar na cintura. A verdade é que eu não tinha muita vontade de revê-lo.
Tinha medo que ele ficasse decepcionado.
- Decepcionado? Ele, decepcionado? É você quem deveria estar! Você é a
mulher que eu mais respeito no mundo e é a mim que o sr. Oki decepcionou.
Desde que vim morar com você, acho todos os rapazes enfadonhos e pensei que
o sr. Oki pudesse ser realmente alguém interessante. Que decepção quando o vi!
Eu o tinha imaginado muito melhor através das suas recordações!
- Você não pode julgá-lo por um encontro tão breve.
- É claro que posso.
- Como assim?
- Eu não teria dificuldade em seduzir o sr. Oki ou seu filho…
- Keiko, isso é horroroso! - Otoko empalidecera. - Essa arrogância não lhe
trará nada de bom!
- Não estou tão certa disso - replicou Keiko, sem se perturbar.
- Isso não vai lhe trazer nada de bom - repetiu Otoko. - Quem você acha que
é? Uma mulher fatal? Você é jovem e bonita, mas isso não…
- Se sou o que você chama de mulher fatal, imagino que a maioria das
mulheres também o seja.
- De fato. Então foi com essa intenção que você levou dois dos seus quadros
preferidos ao sr. Oki?
- Não. Não preciso das minhas pinturas para seduzi-lo.
Otoko parecia aterrada.
- É que, sendo sua aluna, eu simplesmente queria que ele visse meus
melhores trabalhos.
- Eu lhe agradeço. Mas você me disse que só havia trocado umas poucas
palavras com ele na estação. Por que, então, os quadros?
- Eu tinha lhe prometido e estava curiosa para saber qual seria sua reação e
que comentários ele faria. Além disso, precisava de um pretexto para ver sua
família.
- E ele não estava em casa?
- Não. Imagino que ele deva ter visto as telas na volta. Provavelmente não
entendeu nada.
- Você está sendo injusta.
- Mesmo como escritor, ele nunca escreveu nada melhor do que Uma garota
de dezesseis anos.
- Não é verdade. Esse romance é o seu preferido porque eu sou a heroína e
ele me idealizou. E, depois, os jovens gostam de livros que falam da juventude.
Suponho que os romances que ele escreveu em seguida lhe pareceram difíceis ou
cansativos.
- No entanto, se o sr. Oki morresse hoje, esse seria o único livro pelo qual ele
seria lembrado, não?
- Pare de falar assim! - disse Otoko com voz furiosa. Tirou seu punho dos
dedos de Keiko e afastou seus joelhos dos dela.
- Você continua ainda tão ligada a ele! - A voz de Keiko também endurecera.
- Mesmo quando eu lhe falo de vingança…
- Não é que eu esteja ligada.
- O que é então… amor?
- Talvez.
Abruptamente, Otoko ergueu-se e foi para dentro. Keiko não se levantou,
permaneceu na varanda semi-iluminada pela Lua, o rosto escondido entre as
mãos.
- Otoko, você sabe que eu vivo inteiramente por você! - disse com voz
trêmula. - Mas alguém como o sr. Oki…
- Desculpe-me, Keiko. Eu tinha apenas dezesseis anos quando tudo isso
aconteceu.
- Eu vou vingar você.
- Mesmo a sua vingança não conseguiria acabar com o meu amor.
Keiko, retorcida sobre si mesma, soluçava na varanda.
O rosto ainda entre as mãos.
- Faça o meu retrato, Otoko… Antes que eu me torne essa mulher fatal de
que você fala… Por favor. Posarei nua para você.
- Está bem. Eu o farei com amor.
- Isso me deixa tão feliz, Otoko.
Otoko guardara inúmeros esboços da criança prematura que havia posto no
mundo. Ela os conservava secretamente e nem mesmo a Keiko os mostrara. Os
anos tinham se passado, mas Otoko continuava a alimentar o projeto de utilizá-
los numa obra que teria como título: A ascensão de uma criança. Naturalmente,
ela tinha folheado nos álbuns de pintura ocidental as reproduções de querubins
ou do Cristo criança, mas suas caras rechonchudas e saudáveis eram
inconciliáveis com sua tristeza. Ela vira algumas pinturas antigas célebres
representando Kobo Daishi18 jovem que a tinham comovido pela graça e
sensibilidade inteiramente japonesas, mas, nessas obras, Kobo Daishi não era
realmente uma criança e nunca ascendia ao céu. Otoko não desejava representar
exatamente a ascensão da criança ao céu; procurava somente sugeri-la. Mas
terminaria ela essa pintura algum dia?
Agora que Keiko lhe pedira para fazer seu retrato, Otoko lembrou-se desses
desenhos que havia anos não via. Por que não pintar a jovem tal como os artistas
haviam representado o santo homem quando jovem? Seria um retrato
perfeitamente clássico de Virgem. Além disso, dessas pinturas de inspiração
religiosa que são os retratos dos Santos Monges do Budismo emanava uma
espécie de encanto inefável.
- Vou fazer seu retrato, Keiko, e já tenho uma idéia. Farei uma obra de
inspiração budista. Então, de agora em diante, tome bastante cuidado com as
suas maneiras! - disse Otoko.
- Uma obra de inspiração budista? - Keiko, um tanto desconcertada,
aprumou-se. - Não tenho certeza se a idéia me agrada.
- Então, deixe que eu faço. Algumas dessas obras são absolutamente lindas.
Eu poderia chamá-la de "Abstração para uma jovem pintora"! Seria divertido,
não?
- Você está zombando de mim?
- Eu estou falando sério. Vou começar assim que tiver acabado as plantações
de chá. - Otoko lançou um olhar pelo estúdio. Seus croquis e os de Keiko
estavam contra a parede. Logo acima estava pendurado um retrato que ela fizera
de sua mãe. Seu olhar se deteve.
Sua mãe ali estava, linda e jovem, talvez mais jovem ainda do que ela. Otoko
tinha trinta anos quando o pintou. Teria ela própria se representado nesse
quadro? Ou teria sua mãe simplesmente surgido linda e jovem sob os pincéis da
filha?
Keiko, vendo-a pela primeira vez, exclamara: - É o seu auto-retrato, não? É
lindo! - Otoko não lhe disse que se tratava de sua mãe e se perguntava se todo
mundo via nessa obra um auto-retrato.
Otoko se parecia com sua mãe. Seria por tê-la amado demais ou chorado
tanto a sua morte que a sua semelhança transparecia a tal ponto nesse retrato? A
princípio, Otoko fizera vários desenhos a partir de uma fotografia da mãe, mas
nenhum deles a emocionara. Então, ela decidiu ignorar a foto e lá apareceu sua
mãe sentada à sua frente. Parecia viva, não tinha nada de fantasmagórico.
Apressadamente, Otoko fez inúmeros croquis, o coração transbordando de
emoção, mas, muitas vezes, seus olhos se enchiam de lágrimas e era necessário
interromper. Ela compreendeu, então, que o que estava a ponto de pintar era
muito mais um auto-retrato do que o retrato de sua mãe.
E era esse quadro que estava no momento pendurado na parede, sobre os
desenhos das plantações de chá. Otoko tinha queimado todos os estudos
preliminares e conservado somente essa última versão, embora se parecesse
muito com um auto-retrato. Todas as vezes que olhava esse quadro, uma
imperceptível tristeza insinuava-se em seus olhos. Otoko e o retrato de sua mãe
pareciam respirar juntos. Quanto tempo lhe fora preciso para dar vida à essa
obra?
Até o momento, Otoko nunca pintara outros retratos além desse. Havia se
contentado em esboçar algumas silhuetas humanas em suas paisagens. Mas, esta
noite, pressionada por Keiko, essa vontade lhe voltara repentinamente. Ela nunca
imaginava que A ascensão de uma criança, que desejava pintar havia tanto
tempo, pudesse vir a ser um retrato. Mas não esquecera seu antigo desejo e é por
isso que se lembrara de Kobo Daishi jovem e imaginara representar Keiko sob
os traços clássicos de uma Virgem.
Ela fizera o retrato de sua mãe e desejava fazer o da filha que perdera. Não
deveria também fazer o de Keiko? Não eram os três seres que ela havia amado
do mesmo modo, embora fossem tão diferentes uns dos outros?
- Otoko - Keiko a chamou. - Você está olhando o retrato de sua mãe e se
perguntando como pode me pintar, não é verdade? Está pensando que não é
capaz de sentir tão intenso amor por mim. - A jovem aproximou-se e sentou ao
lado de Otoko.
- Tola! Não estou mais satisfeita com este retrato hoje em dia. Já fiz alguns
progressos desde então, mas, mesmo assim, gosto muito dele, apesar dos
defeitos. Eu pus muito de mim mesma enquanto o pintava.
- O meu retrato não precisa ser tão doloroso assim. Faça-o de uma só vez,
como quiser.
- De modo algum - respondeu Otoko com o espírito distante. Admirando o
retrato de sua mãe, uma onda de recordações a envolvera.
De repente, Keiko tendo-a chamado de novo, Otoko se pusera a sonhar com
as pinturas de Kobo Daishi na juventude. Em muitas dessas obras, o artista havia
representado o santo com os traços de uma bela menina ou uma adolescente
deslumbrante, no estilo cheio de graça e elegância característico da arte de
inspiração budista, da qual não está ausente uma certa sensualidade. De algum
modo essas pinturas expressavam o amor homossexual dos monastérios
medievais - onde as mulheres não eram admitidas - e o desejo dos monges por
belos rapazes que podiam ser confundidos com lindas jovens. Teria sido esse o
motivo pelo qual, logo que aceitara fazer o retrato de Keiko, a imagem de Kobo
Daishi se apresentara ao espírito de Otoko? Os cabelos do jovem Kobo Daishi
não diferiam em nada do penteado à Joana d'Arc das moças de hoje.
Mas ninguém mais, hoje em dia, com exceção talvez dos atores de teatro Nô,
se vestia com tão suntuosos quimonos ou hakama19 cheios de brocados; tais
vestimentas pareciam fora de moda para uma moça moderna como Keiko. Otoko
lembrou-se dos retratos que o pintor Kishida Ryusei20 fizera de sua filha Reiko.
Eram tanto pinturas a óleo como aquarelas delicadas, minuciosamente
executadas, semelhantes a obras religiosas e nas quais a influência de Dürer era
visível. Um desses retratos impressionara Otoko mais do que os outros: tratava-
se de um esboço em tons claros, sobre meia folha de papel chinês e que
representava Reiko sentada ereta, o busto nu e os quadris envoltos numa tanga
vermelha. Não era certamente uma das melhores obras de Ryusei, e Otoko se
perguntava por que ele fizera esse retrato de sua filha num estilo tão tipicamente
japonês, se já pintara obras semelhantes empregando técnicas ocidentais.
Então, por que não pintar Keiko nua, tal como ela lhe sugerira? Algumas
pinturas budistas insinuavam até mesmo as curvas dos seios femininos.
Entretanto, se se inspirasse no retrato de Kobo Daishi para pintar Keiko, como
faria o penteado da jovem? Otoko vira a célebre tela de Kobayashi Kokei21
intitulada A cabeleira: tratava-se de uma obra de grande pureza, mas ela não
conseguira imaginar Keiko penteada daquele modo. Depois de muito pensar,
Otoko confessou para si mesma que pintar sua aluna era uma tarefa acima de
suas forças.
- Keiko, e se nós fôssemos dormir?
- Já? Quando a Lua está tão bonita? - Keiko virou-se para o relógio. - São só
cinco para as dez.
- Estou um pouco cansada. Podemos conversar na cama.
- Está bem.
Keiko preparou as camas rapidamente enquanto Otoko tirava a maquiagem.
Quando ela terminou, Keiko ocupou seu lugar diante do espelho e começou, por
sua vez, a limpar o rosto. Inclinando o pescoço longo e delgado, ela examinou
seu rosto no espelho.
- Otoko, meus traços não são os de uma pintura budista.
- Pouco importa, o que conta é se o artista tem uma alma religiosa.
Keiko retirou as presilhas do cabelo e sacudiu a cabeça.
- Você está desfazendo seu cabelo?
- Sim. - Enquanto ela escovava as longas madeixas, Otoko a observava de
sua cama.
- Por que o está desfazendo agora à noite?
- Estão começando a ficar sujos. Eu deveria tê-los lavado. - Keiko agarrou
uma mecha de cabelo e a cheirou.
- Otoko, que idade você tinha quando seu pai morreu?
- Doze anos. Você sabe muito bem. Por que me faz sempre a mesma
pergunta?
Keiko não respondeu. Fechou os shoji, puxou o fusuma22 que separava o
quarto de dormir do estúdio e deitou-se ao lado de Otoko. As camas eram
encostadas uma na outra.
Durante várias noites, elas tinham ido dormir sem fechar as portas de
madeira do lado de fora. Os shoji que davam para o jardim luziam debilmente à
luz da Lua.
A mãe de Otoko morrera de câncer no pulmão sem revelar à filha que ela
tinha uma irmã consanguínea. Ainda hoje Otoko a ignorava.
Seu pai trabalhara no comércio de seda. Muitas pessoas compareceram ao
seu enterro. Haviam se inclinado diante do caixão e queimado incenso de acordo
com a tradição, mas a mãe de Otoko percebera entre os presentes uma jovem de
sangue eurasiático. Quando a moça ofereceu incensos e se inclinou diante da
família do defunto, ela notou seus olhos cheios de lágrimas. A mãe de Otoko
teve um choque. Ela, com um sinal de cabeça, chamou o secretário de seu
marido, que se mantinha um pouco à parte, e sussurrou-lhe ao ouvido: - Está
vendo aquela jovem mestiça ali no canto? Gostaria de saber seu nome e seu
endereço.
Mais tarde, o secretário informou-a de que a jovem em questão tinha uma
avó canadense que se casara com um japonês, que ela mesma tinha
nacionalidade japonesa, havia estudado na América e trabalhava como
intérprete. Ela morava numa pequena casa em Azabu.
- Suponho que ela não tem filhos.
- Parece que tem uma menina!
- Você a viu?
- Não, é o que dizem as pessoas do bairro.
A mãe de Otoko estava convencida de que seu marido era o pai da criança.
Ela conhecia várias maneiras de se ter certeza, mas esperou que a jovem se
manifestasse.
Ela nunca o fez. Cerca de seis meses mais tarde, o secretário do seu marido
contou-lhe que a jovem se casara, levando a criança para o novo lar. As
insinuações do homem deram-lhe a certeza de que essa mulher havia sido
amante de seu marido. Com o tempo, o ciúme e a indignação cederam. Começou
a sonhar em adotar a criança.
Agora que sua mãe havia se casado, a menina iria crescer sem saber quem
fora seu verdadeiro pai. A mãe de Otoko sentiu como se tivesse perdido qualquer
coisa preciosa e não apenas por ser Otoko sua única filha. Mas era-lhe
certamente impossível revelar à filha, com a idade de doze anos, que seu pai
tinha uma amante e com ela uma filha ilegítima. Quando sua mãe morreu, Otoko
já tinha atingido a idade de saber a verdade, mas mesmo em sua agonia e em seu
delírio sua mãe não lhe disse uma palavra.
Assim, Otoko ignorava a existência dessa meia-irmã. Hoje, ela
provavelmente já estava casada e com filhos. Mas, para Otoko, era como se não
existisse…
- Otoko! Otoko! - Keiko estava sentada na cama, sacudindo-a para que
acordasse. - Teve um pesadelo? Você parecia sofrer…
Otoko respirava com dificuldade. Apoiada sobre um cotovelo, Keiko
debruçou-se sobre ela e massageou-lhe suavemente o peito.
- Quando tive este pesadelo, você estava me observando? - indagou Otoko.
- Sim. Por pouco tempo…
- Você é realmente impossível! Eu sonhei.
- Que tipo de sonho?
- Sonhei com uma pessoa verde. -A voz de Otoko turvou-se novamente.
- Alguém vestido de verde? - perguntou Keiko.
- Não. Não eram as suas roupas que eram verdes, mas todo o seu corpo, os
seus braços e as suas pernas.
- Então, era Fudo?23 .
- Não ria de mim. Ela não tinha a cara assustadora de Fudo. Era uma pessoa
verde que flutuava levemente em volta da minha cama.
- Uma mulher?
Otoko não respondeu.
- Este é um sonho bom, Otoko, tenho certeza. - Keiko pôs a palma da mão
sobre os olhos abertos de Otoko e os fechou. Depois, com a outra mão, pegou
um dedo de Otoko, colocou-o em sua boca e o mordeu.
- Você está me machucando - disse Otoko, arregalando os olhos.
- Otoko, você disse que faria o meu retrato, não é? Então, eu me tornei verde
como as plantações de chá de Uji, eis tudo - disse a jovem, tentando dar uma
interpretação ao sonho.
- Você acha? Você estava dançando ao meu redor enquanto eu dormia? É
assustador!
Keiko escorregou a mão do rosto de Otoko para seu peito e deixou escapar
um riso abafado e um pouco histérico: - Mas, é seu sonho…
No dia seguinte, elas subiram o monte Kurama, aonde chegaram no começo
da noite. Os participantes já estavam reunidos no saguão do templo. Depois
desse longo dia de maio, a noite tombava sobre os picos vizinhos e as altas copas
das árvores.
Acima das Colinas do Leste, além de Kyoto, a Lua cheia surgia. Fogueiras
tinham sido acesas diante do prédio principal do monastério. Os monges
avançaram e, em resposta ao monge celebrante vestido com uma túnica
escarlate, puseram-se a entoar em coro a leitura dos sutras com um
acompanhamento de harmônio: "Dê-nos uma força gloriosa, uma força nova…".
Cada participante segurava na mão uma vela acesa à guisa de oferenda.
Diante do saguão principal fora colocada uma enorme taça de prata de saque,
cheia de água, na qual a Lua cheia se refletia. Um pouco dessa água era
derramada nas mãos em concha dos participantes, que, um após o outro, se
aproximavam e a bebiam. Otoko e Keiko fizeram o mesmo.
- Otoko, quando tivermos voltado para casa, tenho certeza de que você vai
encontrar as pegadas verdes de Fudo no seu quarto! - disse Keiko, exaltada com
a atmosfera da festa.
***
UM CÉU CHUVOSO
Em Kyoto, ainda hoje, são muitos os monastérios com jardins de pedra. Os mais
célebres são os de Saiho-ji25, do Pavilhão de Prata, do Ryoan-ji26 , do Daitoku-ji,
do Myôshinji.
Mas o mais famoso de todos é aquele de Ryoan-ji, do qual se diz, não sem
razão, que encarna a essência da estética zen. Nenhum outro jardim de pedras
pode se comparar às suas célebres ordenações de rochas.
Otoko conhecia bem todos esses jardins. Este ano, no fim da estação de
chuvas, ela foi ao Saiho-ji com a intenção de fazer alguns desenhos. Não que ela
se julgasse capaz de pintar o seu jardim de pedras; desejava apenas absorver um
pouco de sua força.
Não era esse um dos mais antigos e poderosos jardins de pedra? Otoko
realmente não desejava pintá-lo. Que contraste faziam os arranjos de pedras atrás
do monastério com a doçura do chão recoberto de musgos mais abaixo! Não
fossem as idas e vindas dos visitantes, Otoko adoraria sentar-se ali em
contemplação. Se ela abriu seu caderno de desenhos, foi sem dúvida para não
despertar suspeitas nos passantes que a viam observando ora num canto, ora
noutro.
O Saiho-ji foi restaurado em 1339 pelo bonzo Muso Kokushi27, que reergueu
o prédio principal e escavou um lago onde construiu uma ilhota. Diz-se que ele
costumava conduzir os visitantes até um pavilhão no alto da colina, de onde se
podia apreciar o panorama de Kyoto.
Todas essas construções foram caindo em ruínas e o jardim, arrasado por
inundações, também tivera de ser restaurado inúmeras vezes. O jardim atual
estava disposto ao longo de um caminho margeado por lanternas de pedra que
conduzia ao antigo pavilhão sobre a colina. Lá estavam, representados na
paisagem seca, um riacho e uma cascata, que, provavelmente pela natureza do
material de que eram feitos, quase não haviam se transformado com o passar do
tempo.
Mais tarde, o filho mais novo de Sen Rikyu28, Shoan, ali se refugiara. Essas
referências históricas, porém, não tinham nenhum interesse para Otoko, que
viera ao Saiho-ji apenas para contemplar e desenhar as paisagens de pedras.
Keiko seguia-a como uma sombra.
- Otoko, todas as paisagens de pedras são abstratas, não? - disse Keiko certa
vez. - Em pintura, há um pouco dessa mesma força no quadro que Cézanne
pintou das rochas de L'Estaque.
- Você o viu? É claro que ali era uma paisagem real, talvez não penhascos
imensos, mas blocos maciços de pedras ao longo da margem…
- Otoko, se você pintar este jardim, seu quadro será abstrato. Eu não teria a
força de representar estas pedras nem de modo realista.
- Talvez. De minha parte, também não me sinto com coragem bastante…
- E se eu tentasse só um esboço grosseiro?
- Sem dúvida, será o melhor. Sua pintura das plantações de chá ficou muito
interessante, cheia de vigor. Você também a levou para a casa do sr. Oki, não?
- É verdade. A essa altura, sua mulher já deve tê-la rasgado e feito em
pedacinhos… Passei a noite com ele num hotel em Enoshima. Ele me pareceu
bastante depravado, mas, quando gritei seu nome, ele se acalmou num instante…
Ele ainda a ama e sente remorsos. Foi o suficiente para despertar meu ciúme…
- Mas que diabo está pensando em fazer?
- Quero destruir essa família. Para vingá-la.
- Me vingar…?
- Não agüento mais. Você ainda está apaixonada por ele. Apesar de tudo o
que ele a fez passar, você o ama. Como as mulheres são burras! É isso que não
consigo suportar!
- Calou-se. - É por isso que sou ciumenta.
- É mesmo?
- Sou.
- É por ciúme que você passou a noite com ele nesse hotel de Enoshima? Se
ainda o amo, não seria eu quem deveria estar com ciúme?
- Mas você está!
Otoko não respondeu.
- Eu gostaria tanto que você estivesse com ciúme!
O pincel com que Keiko desenhava passou a se mover com mais rapidez.
- Não consegui pegar no sono lá no hotel. O sr. Oki, esse dormiu com ar
satisfeito! Tenho horror dos homens de cinqüenta anos…
Confusa, Otoko começou a se perguntar se eles teriam dormido numa grande
cama de casal ou em camas de solteiro, lado a lado; mas não teria coragem de
perguntar a Keiko.
- Ele dormia profundamente. Era uma sensação deliciosa saber que eu podia
estrangulá-lo logo ali…
- Você é uma pessoa perigosa!
- Foi apenas um pensamento. Mas tão agradável que não consegui pegar no
sono.
- E você diz que fez tudo isso por mim? - A mão de Otoko, que fazia alguns
esboços do jardim de pedras, tremeu levemente. - Não posso acreditar.
- É claro que foi por você que fiz tudo isso.
O comportamento equivocado da jovem começava a assustar Otoko.
- Keiko, eu lhe peço, não volte mais àquela casa. Ninguém sabe o que pode
acontecer.
- Quando você estava no hospital, Otoko, nunca pensou em matá-lo?
- Nunca. Talvez eu estivesse com o espírito perturbado, mas matar alguém…
- Você não sentia ódio dele? Você o amava demais para isso?
- E, além do mais, havia o bebê…
- O bebê? - Keiko hesitou. - Quem sabe eu poderia ter um com ele?
- O quê?
- E aí o levaria à ruína.
Atônita, Otoko fitou a jovem. Como podiam, desse pescoço longo e
delicado, desse perfil maravilhoso, brotar palavras tão monstruosas?
- Certamente, se quisesse, poderia ter uma criança dele - disse Otoko,
dominando-se. - Mas você sabe o que isso significa? Se você tiver um bebê, não
ficarei mais com você. E verá que, quando for mãe, não vai falar mais como
agora. Tudo mudará em você.
- Não mudarei jamais.
O que havia realmente se passado no hotel de Enoshima? Otoko se
perguntou se os argumentos de Keiko não escondiam alguma outra coisa. O que
ela tentava afinal dissimular por trás de expressões tão violentas como ciúme ou
vingança?
Otoko fechou os olhos e refletiu: poderia ela, ainda hoje, sentir ciúme de
Oki? As pedras do jardim permaneciam como uma sombra no fundo de seus
olhos.
- Otoko, Otoko! - Keiko passou a mão em torno de seu ombro. - Está tudo
bem? Você ficou tão pálida de repente. - E beliscou-a com força debaixo do
braço.
- Dói! - Otoko cambaleou e caiu sobre um joelho. Keiko ajudou-a a se
erguer.
- Otoko, você é tudo para mim. Tudo.
Sem dizer um palavra, Otoko enxugou o suor frio em sua testa.
- Se você continuar assim, Keiko, será muito infeliz. Terrivelmente infeliz
pelo resto de sua vida…
- Não tenho medo da infelicidade.
- Diz isso porque é jovem e bonita…
- Enquanto puder estar com você, serei feliz.
- Fico contente, mas, no fim das contas, eu sou uma mulher.
- Odeio os homens… - replicou Keiko num tom cortante.
- Não adianta - disse Otoko tristemente. - Mesmo os nossos gostos em
matéria de pintura são muito diferentes. Se ficarmos muito tempo juntas…
- Eu detestaria ter um professor que pintasse como eu…
- Há muitas coisas que você detesta - disse Otoko, reencontrando um pouco a
sua calma. - Quer me mostrar seu caderno de desenhos?
- Sim.
- O que é isso?
- Não seja ruim. Não vê que é o jardim de pedras? Olhe bem… Fiz uma
coisa de que não me julgava capaz!
Enquanto o estudava, Otoko empalideceu outra vez.
À primeira vista, não se compreendia o que representava esse desenho a
nanquim, mas era possível sentir ali a vibração de uma vida misteriosa. Até o
momento, Keiko nunca fizera algo parecido.
- Então aconteceu mesmo alguma coisa importante em Enoshima. - Otoko
tremia.
- Eu não chamaria de importante.
- Você nunca fez um desenho como esse antes.
- Otoko, se quer saber, ele não é nem capaz de dar um beijo demorado.
Otoko ficou calada.
- Será que todos os homens são assim? Foi a minha primeira experiência
com um homem, você sabe.
Hesitante quanto a que sentido dar a essa "primeira experiência", Otoko
continuou a examinar o desenho de Keiko.
- Como eu gostaria de ser uma das pedras desse jardim! - disse ela afinal.
Nesse jardim do monge Muso, sobre o qual séculos haviam se escoado, as
pedras revelavam tamanho ar de antigüidade e tinham adquirido uma patina tal
que se podia perguntar se fora a natureza ou a mão do homem que as dispusera
desse modo. Mas ao considerar suas formas rígidas e angulosas, que pesavam
sobre Otoko quase como uma força espiritual, não restava dúvida de que se
tratava ali de obra humana.
- Keiko, e se nós voltássemos para casa? Essas pedras estão começando a me
dar medo.
- Está bem.
- Não estou conseguindo sentar aqui e meditar. Vamos embora - disse Otoko,
pisando em falso ao se levantar. - Eu sabia que não chegaria a pintá-las. São
abstratas demais, mas acho que você conseguiu captar alguma coisa nesse
esboço que fez.
- Otoko - Keiko segurou-lhe o braço. - E se brincássemos de golfinhos em
casa?
- Brincar de golfinhos? O que é que você está querendo dizer?
Keiko riu um riso travesso e avançou para um bosque de bambus, à sua
esquerda, parecido ao que se via em algumas fotografias do jardim do templo.
Otoko parecia mais exausta que triste enquanto caminhava na beira do
bosque de bambus.
- Otoko! - Keiko chamou-a e bateu-lhe de leve no ombro. - Será que essas
pedras vão fazê-la perder a cabeça?
- Não, mas eu adoraria passar aqui dias inteiros a contemplá-las, sem pincéis
nem cadernos de desenho…
O rosto de Keiko, como de costume, explodia de vitalidade: - E, no entanto,
são apenas pedras, não? Talvez você veja aí uma espécie de força que se irradia,
assim como certa beleza no musgo que as recobre, mas pedras são pedras…
Keiko prosseguiu: - Eu me lembro de um haikai de Yamaguchi Seishi em
que se fala de olhar o mar da manhã à noite, dia após dia, daí retornar a Kyoto e
compreender o que um jardim de pedras realmente significa.
- O mar e um jardim de pedras? Se se pensa no oceano, os imensos rochedos,
os penhascos, então os arranjos de pedras são só obra do homem… Seja o que
for, não me sinto capaz de pintá-los.
- Otoko, é uma composição abstrata criada pelo homem. Tenho a impressão
de que eu poderia pintar estas pedras à minha maneira, utilizando as cores que
quisesse…
Após uma pausa, Keiko perguntou: - De quando são estes jardins?
- Não sei bem, mas creio que eles não existiam antes do Período Muromachi.
- E essas pedras e essas rochas, que idade terão?
- Não tenho a menor idéia.
- Você gostaria de pintar um quadro que durasse mais tempo do que essas
pedras?
- Nunca aspirei a uma coisa dessas. - Otoko parecia inquieta. - Mas você não
acha que durante todos esses séculos as árvores deste monastério, assim como as
do jardim da Vila Imperial de Katsura29, cresceram, envelheceram, sofreram
tempestades e são hoje bem diferentes do que eram no passado? As paisagens de
pedra, essas sem dúvida permaneceram as mesmas.
- Otoko, prefiro que as coisas mudem e desapareçam. A esta altura, a esposa
do sr. Oki já deve ter feito em pedaços a minha pintura das plantações de chá.
Por causa dessa noite em Enoshima… - disse Keiko.
- No entanto, era uma pintura muito interessante!
- Acha?
- Keiko, você tem a intenção de levar todas as suas melhores obras para o sr.
Oki?
- Sim, até que eu complete minha vingança.
- Já lhe disse não sei quantas vezes que não quero mais ouvir falar de
vingança!
- Eu entendo. O que não posso entender bem é esta raiva, esta obstinação
bem feminina que sinto em mim. Este ciúme também…
- Este ciúme… - repetiu Otoko com a voz baixa e trêmula, agarrando os
dedos de Keiko.
- Otoko, no fundo do seu coração, você ainda ama o sr. Oki. E ele também a
ama secretamente. Compreendi isso naquela noite em que ouvimos os sinos.
Otoko não respondeu.
- Eu me pergunto se no próprio ódio que uma mulher sente não há também
um pouco de amor.
- Keiko, como você pode dizer uma coisa dessas, ainda mais num lugar
como este?
- Talvez porque eu seja muito jovem. Quando vejo essas pedras, imagino os
homens que as dispuseram antigamente nesta ordem. No entanto, ainda não
consigo ler seus corações. Foram necessários séculos para que as pedras
adquirissem essa pátina, mas eu me pergunto: que aspecto elas teriam quando
novas?
- Acho que ficaria desapontada.
- Se eu fosse pintá-las, empregaria as formas e as cores que me agradassem e
mostraria essas pedras como se elas tivessem acabado de ser dispostas assim.
- Talvez você chegue a pintá-las.
- Otoko, este jardim de pedras vai durar muito mais tempo do que você e eu.
- Certamente. Contudo, ele não durará eternamente… - A essas palavras,
Otoko estremeceu repentinamente.
- Pouco me importa que minhas pinturas tenham vida breve ou sejam
destruídas imediatamente… desde que eu esteja ao seu lado…
- Você diz isso porque é jovem…
- Quase chego a gostar que a esposa de Oki destrua meu quadro. Aí eu
saberia que foi a violência de sua emoção que a levou a agir assim. - Keiko fez
uma pausa. - Minhas pinturas não merecem mesmo ser levadas a sério.
- Você não deveria dizer isso.
- Não possuo dom algum e não faço questão de deixar nenhuma de minhas
obras para a posteridade. Tudo o que desejo é ficar com você. Eu estava feliz só
em cuidar de você, me encarregar das tarefas domésticas… Daí você quis dar as
minhas primeiras lições de pintura… Otoko estava perplexa.
- É isto o que você pensa, Keiko?
- É o que sinto no mais fundo do meu coração…
- Mas, Keiko, estou convencida do seu talento. Você já chegou a pintar
coisas surpreendentes!
- Como desenhos de criança? Quando pequena, eles eram sempre
pendurados na sala de aula!
- O que você faz é muito mais original do que aquilo que eu faço. Algumas
vezes, chego até a sentir inveja de você. Por isso, pare de dizer bobagens!
- Está bem - Keiko concordou de bom humor. - Enquanto eu puder ficar ao
seu lado, darei o melhor de mim. Otoko, e se falássemos de outra coisa?
- Você compreendeu bem?
- Sim - Keiko aquiesceu novamente. - Se você não me abandonar…
- Como poderia? - retrucou Otoko. - No entanto…
- No entanto o quê?
- Uma mulher deve se casar, ter filhos…
- Ah, quanto a isso… - Keiko riu abertamente - …é muito pouco para mim!
- Tudo isso é culpa minha. Perdoe-me. - Otoko afastou-se cabisbaixa e
arrancou a folha de uma árvore. Durante algum tempo, caminhou em silêncio.
- Otoko, as mulheres são criaturas das quais se deve ter pena. Um rapaz não
se apaixonaria jamais por uma mulher de sessenta anos, enquanto uma
adolescente pode ficar verdadeiramente apaixonada por um homem de cinqüenta
ou sessenta anos, sem estar agindo por interesse… Não acha, Otoko?
Otoko não soube o que responder a essas palavras inesperadas.
- Realmente, um homem como o sr. Oki é um caso sem esperança. Ele me
toma por uma prostituta!
Otoko empalideceu.
- E isso não é tudo. No momento crítico, eu gritei seu nome, sem querer. E
ele foi incapaz de continuar! De fato, é como se, por sua causa, ele tivesse me
insultado.
Otoko tornou-se ainda mais pálida. Seus joelhos fraquejaram.
- Em Enoshima? - indagou finalmente.
- Sim.
Otoko foi incapaz de protestar. O táxi as deixara em casa.
- Talvez tenha sido isso que me salvou… - Keiko não conseguiu impedir que
o rubor lhe subisse às faces. - Otoko, e se eu tivesse esta criança por você?
Num ímpeto, Otoko esbofeteou a jovem. As lágrimas brotaram em seus
olhos.
- Ah, é bom! - disse Keiko. - Bata de novo, Otoko!
Otoko tremia.
- Bata de novo - repetiu Keiko.
- Keiko, pare com isso! - Otoko balbuciou.
- Não seria meu bebê. Quero que seja seu. Eu o carregaria e, depois, o daria
de presente a você. Por você eu roubaria esse bebê do sr. Oki…
De novo, Otoko a esbofeteou violentamente. Keiko começou a soluçar.
- Otoko, por mais que você ame o sr. Oki, não pode mais ter um filho dele.
Não pode mais! Para mim, é possível. Seria um pouco como se você tivesse
colocado essa criança no mundo…
- Keiko! - Otoko foi até a varanda e, descalça, deu um pontapé numa gaiola
cheia de pirilampos, fazendo-a rolar para o jardim.
Nesse instante, os pirilampos emitiram um brilho fosco. O céu desse longo
dia de verão começava a se encobrir e uma névoa quase imperceptível pairava
sobre o jardim.
Porém ainda era claro como de dia. Parecia quase impossível que os
pirilampos tivessem espalhado esse brilho esbranquiçado; talvez Otoko tivesse
sonhado. Ela permaneceu de pé, as pernas tensas a olhar fixamente a gaiola de
pirilampos revirada sobre a relva.
Keiko parou de soluçar. Retendo a respiração, estudou Otoko
silenciosamente. Ela não tentara se esquivar da bofetada. Ajoelhada na esteira do
chão, apoiava-se sobre a mão direita, permanecendo nessa posição sem fazer um
gesto. Por um instante, foi como se a rigidez de Otoko tivesse se transmitido ao
corpo da jovem.
- Ah, srta. Ueno! A senhora já chegou? - disse Omiyo. - Eu lhe preparei um
banho.
- Ah, obrigada. - A voz de Otoko custou a sair. Ela sentia, sob o obi, seu
quimono encharcado de suor colando-se desagradavelmente em seu corpo. Seu
peito estava igualmente coberto de suor frio. - Não está tão quente e, no entanto,
este tempo é terrível! Essa umidade… Pelo jeito, a estação das chuvas ainda não
terminou.
Ou então está de volta - Otoko prosseguia, sem fitar Omiyo. - Obrigada pelo
banho!
Omiyo trabalhava como empregada no monastério e também prestava alguns
serviços a Otoko. Ela arrumava a casa, lavava as roupas, as louças, punha a
cozinha em ordem e, às vezes, preparava as refeições. Embora Otoko gostasse de
cozinhar e o fizesse até muito bem, estava por demais absorvida em sua pintura,
e cuidar da cozinha tornara-se para ela uma tarefa entediante. Keiko, ao contrário
das aparências, era bastante bem-dotada para preparar algumas delicadas
especialidades de Kyoto, mas não se podia contar com ela. Dessa maneira, as
duas mulheres normalmente se contentavam, no almoço e no jantar, com os
pratos simples de Omiyo.
Omiyo, que devia estar com 53 ou 54 anos, trabalhava havia seis no
monastério e não permanecia nunca ociosa. Como duas outras mulheres viviam
no monastério - a mãe e a jovem esposa do mestre -, Omiyo podia consagrar
muito de seu tempo a Otoko. Ela era uma mulher de baixa estatura, com punhos
e tornozelos tão inchados que pareciam estar amarrados com cordas.
Corpulenta e de rosto radiante, Omiyo observou a gaiola de pirilampos sobre
a relva.
- A senhorita vai deixar os pirilampos assim no sereno? - indagou ela,
pisando nas pedras e aproximando-se da gaiola revirada no chão. Abaixou-se e a
endireitou, mas não a tirou dali, como se achasse que seu lugar fosse ali no
jardim.
Otoko desaparecera no banheiro, e Omiyo encontrou-se frente a frente com
Keiko. Os olhos úmidos da jovem tinham um brilho penetrante. Omiyo abaixou
a cabeça. Parecia ter-se passado alguma coisa, pois, apesar da palidez de seu
rosto, uma das faces de Keiko estava totalmente vermelha.
- O que há, senhorita? - perguntou Omiyo, sem querer.
Keiko não respondeu e levantou-se, a expressão dos olhos inalterada. Ouviu
o ruído da água no banheiro. Otoko devia ter aberto a água fria para temperar o
banho.
A banheira já devia ter transbordado e, no entanto, a água continuava a
correr.
Keiko aproximou-se do espelho na parede do estúdio, tirou de sua bolsa um
estojo com o qual retocou a maquiagem e, em seguida, penteou os cabelos com
um pequeno pente de prata. No quarto de vestir, diante do banheiro, havia um
espelho de corpo inteiro e uma penteadeira.
Keiko hesitou em entrar nesse quarto em que Otoko se despira. Pegou o
primeiro quimono que encontrou na gaveta de cima de um armário, mudou as
roupas de baixo e vestiu o quimono, enfiando as longas mangas de baixo por
entre as outras mangas, tentando acertar a gola. Seus gestos, porém, eram
desajeitados.
Nesse momento o nome de Otoko brotou em seus lábios. Abaixando a
cabeça, Keiko enxergou Otoko nos motivos impressos sobre as mangas e na
parte inferior de seu quimono.
Fora Otoko que os criara para ela. As flores de verão ali representadas eram
tão audaciosamente abstratas que mal se podia acreditar que fosse ela quem as
tivesse desenhado. Pareciam ipoméias, mas eram na verdade flores imaginárias
com um colorido cheio de matizes, conforme a moda reinante. Do conjunto
emanava uma impressão de frescor e jovialidade. Otoko desenhara essas flores
na época em que ela e Keiko eram inseparáveis.
- Srta. Sakami, vai sair? - perguntou Omiyo do quarto ao lado.
- Por que está me olhando assim? - tornou Keiko, sem se voltar. - Venha
aqui.
Keiko notara que Omiyo examinava, com ar desconfiado, os seus esforços
para ajustar as golas e dar um nó na cintura.
- Vai sair? - repetiu Omiyo.
- Não, não vou.
Suspendendo a beirada de seu quimono com a mão direita e levando o seu
obi por sobre o braço esquerdo, Keiko se encaminhou para o quarto de vestir
logo em frente ao banheiro.
- Omiyo, eu me esqueci dos talai30. Traga-me um outro par, sim? - ela disse
bruscamente.
Ouvindo os passos de Keiko, Otoko pensou que esta viesse ao seu encontro
no banheiro e chamou-a: - Keiko, a água está uma delícia!
Mas Keiko se demorava diante do espelho, amarrando a fita ao redor da
cintura. Apertou-a tanto que esta quase penetrou em sua carne.
Omiyo trouxe os tabi e, sem dizer uma palavra, os depôs aos pés de Keiko.
Em seguida, saiu.
- Venha logo! - gritou Otoko novamente.
Sentada na banheira com água até o peito, Otoko observava a porta de
madeira, esperando que Keiko entrasse a qualquer instante. Mas Keiko não a
abriu. Nenhum som atravessava a porta, nem mesmo o rumor de roupas sendo
despidas.
Uma dúvida apoderou-se de Otoko: e se Keiko relutasse em tomar banho
com ela? Sentindo-se, de súbito, oprimida, Otoko agarrou-se à borda da banheira
e saiu da água.
Será que Keiko não queria mais se mostrar nua à sua frente, depois daquela
noite em Enoshima?
Já haviam se passado mais de duas semanas desde que Keiko voltara de
Tóquio. Ela aproveitara sua estada na capital para visitar Oki e ele a levara a
Enoshima. Depois de seu regresso a Kyoto, Keiko se banhara muitas vezes com
Otoko e ficara nua diante dela sem demonstrar nenhum constrangimento. No
entanto, fora somente hoje que, diante da paisagem de pedras do Saiho-ji, ela
confessara bruscamente à sua amiga ter passado a noite com Oki, em Enoshima.
Para Otoko, essa confissão era ainda mais extraordinária e incompreensível.
Com o passar dos anos, Otoko aprendera a conhecer, dia após dia, a espécie
de moça que era Keiko, por quem se sentira atraída e fascinada. Otoko,
certamente, tinha alguma responsabilidade no comportamento ambíguo da
jovem e, embora não houvesse nenhuma dúvida de que ela havia, de alguma
maneira, atiçado o fogo, não podia se considerar a única responsável.
Enquanto esperava no banheiro, gotas frias de suor escorriam de sua testa.
- Keiko, você não vem? - perguntou.
- Não.
- Não vai tomar banho?
- Não.
- Mas você deve estar toda suada…
- Não estou. - Depois de uma pausa, Keiko continuou: - Otoko, estou
arrependida. Peço que me perdoe… - Sua voz soava límpida.
- Que me perdoe… - Otoko ecoou as palavras da jovem. - Fui eu que me
equivoquei. Eu é que devo pedir desculpas.
Keiko não disse nada.
- O que está fazendo aí de pé?
- Dando o nó no meu obi.
- Como? Seu obi…? - Desconfiada, Otoko enxugou-se rapidamente e abriu a
porta de madeira. Keiko estava deslumbrante em seu quimono.
- Vai sair?
- Vou.
- Aonde vai?
- Não sei - respondeu Keiko. Seus olhos, normalmente tão brilhantes,
estavam enevoados pela tristeza.
Como se envergonhada com sua própria nudez, Otoko cobriu-se com um
leve quimono de algodão.
- Vou com você.
- Está bem.
- Isso a aborrece?
- Claro que não, Otoko - respondeu Keiko, voltando-lhe as costas. Seu perfil
refletia-se na penteadeira. - Estou esperando por você.
- Está bem. Não vou demorar. Pode me deixar passar um instante? - Ela
passou por Keiko e sentou-se diante da penteadeira. Seus olhares se encontraram
no espelho.
- Que tal irmos a Kiyamachi? No Ofusa… Telefone. Se não houver uma
mesa no terraço, então que nos reservem uma pequena salinha no primeiro andar
ou não importa onde, desde que tenhamos a vista do rio… Se isso não for
possível, iremos a outro lugar.
- Muito bem - concordou Keiko. - Otoko, você quer um copo de água com
gelo?
- Estou com cara de estar sentindo tanto calor?
- Está.
- Não se preocupe, não vou atirar um pedaço de gelo em seu rosto… - disse
Otoko, derramando algumas gotas de loção na palma da mão esquerda.
Ao beber o copo de água, Otoko sentiu o líquido cair fresco em seu
estômago.
Para telefonar, era necessário ir até o prédio principal do monastério. Quando
Keiko retornou, Otoko ainda se vestia apressadamente.
- Poderemos ter uma mesa no terraço, desde que cheguemos antes das oito e
meia.
- Antes das oito e meia? - resmungou Otoko. - Está bem. Se nos apressarmos
um pouco, conseguiremos jantar tranqüilamente. - Puxando para perto de si os
dois espelhos laterais da penteadeira, Otoko se examinou. - Meus cabelos ficam
bem assim, não? - Keiko concordou. Em seguida aproximou-se de Otoko e
ajustou suavemente as pregas da costura nas costas de seu quimono.
***
O LÓTUS ENTRE AS CHAMAS
Nas Cenas Ilustres da Capital, há um trecho que é com freqüência citado e evoca
a frescura das noites nas margens do rio Kamo: Os terraços das casas de prazer, a
leste e a oeste, dominam as margens do rio, e suas luzes se refletem como
estrelas na água enquanto as pessoas festejam, instaladas em cadeiras baixas. As
toucas roxas dos atores de Kabuki flutuam na brisa do rio - intimidados pelo
brilho do luar, esses lindos jovens se abanam com tal graça que ninguém pensa
em desviar deles o olhar. As cortesãs estão no auge de sua beleza, mais delicadas
do que as rosas da China, e, enquanto passeiam de lá para cá, delas emana um
perfume de orquídeas e de almíscar…
Então aparecem os contadores de histórias cômicas e os mímicos: Havia
macacos que interpretavam farsas, cachorros que lutavam entre si, cavalos de
circo, malabaristas que equilibravam travesseiros e ainda outros que se
balançavam sobre as cordas. Ouviam-se os gritos de um vendedor ambulante, os
ruídos de água vindo das lojas de tokoroten31 , o tinir dos copos como um brinde
à brisa da noite. Estranhos pássaros da China e do Japão, animais selvagens
vindos do fundo das montanhas ficavam expostos a todos os olhares, enquanto
gente de todas as condições se reunia para beber e festejar nas margens do rio…
Em 1690, o poeta Basho32 também esteve nesses lugares e escreveu: É do
pôr-do-sol até o último brilho da Lua ao amanhecer, instalado nas margens do rio
comendo e bebendo saque, que se deve gozar o frescor da noite de verão. As
mulheres atam seus obi de modo majestoso, os homens vestem seus haori (Peça
ampla e bem curta que se usa por cima do quimono. (N. do T.)), monges e
anciães misturam-se à multidão e mesmo os jovens aprendizes tanoeiros e
ferreiros cantam a plenos pulmões. Uma verdadeira cena da capital!
Brisa do rio Nos ombros leve quimono Frescor de verão Nas margens do rio
há toda espécie de curiosidades, pequenos teatros iluminados por lanternas de
papel, lâmpadas a óleo e fogueirinhas que brilham como de dia.
No fim da Era Meiji33 o leito do rio foi alargado, e no princípio da Era
Taisho34, os primeiros trens em direção de Osaka começaram a correr na
margem oriental do rio Kamo.
Hoje, somente os terraços de Kami-Kiyamachi, de Pontocho ou de Shimo-
Kiyamachi perpetuavam, aos olhos de Otoko, a lembrança das cenas que ali
haviam se desenrolado antigamente e que os livros evocavam: As toucas roxas
dos atores do Kabuki flutuam na brisa do rio - intimidados pelo brilho do luar,
esses lindos jovens se abanam com tal graça que…
A imagem desses jovens atores ao luar, suas silhuetas deslumbrantes
mesclando-se à multidão, retornava com freqüência ao espírito de Otoko.
Quando viu Keiko pela primeira vez, Otoko achou que havia uma certa
semelhança entre a jovem e esses belos atores de Kabuki.
Ainda agora, sentada no terraço da casa de chá de Ofusa, Otoko lembrou-se
desses tempos antigos. Provavelmente tais atores de Kabuki deviam ser mais
femininos e graciosos do que aquela Keiko, com ar de menino, com que se
deparara no seu primeiro encontro. Uma vez mais, Otoko se deu conta de que
fora graças a ela que Keiko se tornara finalmente a moça deslumbrante que era
hoje.
- Keiko, lembra-se do dia em que você veio pela primeira vez à minha casa?
- perguntou ela.
- Não vamos mais falar disso, Otoko.
- Pensei estar vendo um fantasma!
Keiko pegou a mão de Otoko, levou o dedo mindinho à boca, mordeu-o e
fitou furtivamente a amiga. Daí murmurou: - Era uma noite de primavera e uma
leve bruma azulada pairava sobre o jardim… Você parecia flutuar na bruma…
Eram as próprias palavras de Otoko. Ela lhe revelara que, por causa da
bruma que envolvia o jardim, pensara ter visto um fantasma. Keiko não
esquecera essas palavras e agora, por sua vez, as repetia.
Inúmeras vezes as duas já haviam se lembrado dessas frases. Keiko sabia
perfeitamente que elas atormentavam Otoko, faziam-na recriminar o apego que
existia entre ambas, e, no entanto, isto só reforçava o fascínio que esse apego
produzia sobre ela.
Na casa de chá vizinha, nos quatro cantos do terraço, haviam sido montadas
lanternas de papel. Uma gueixa e duas maiko faziam companhia a um cliente
corpulento e já calvo, apesar de não ser tão idoso. O homem olhava o rio e
concordava, distante, com a conversa das duas jovens maiko. Estaria à espera de
um amigo ou do cair da noite? As lanternas haviam sido acesas ainda cedo, o céu
estava claro e elas pareciam inúteis.
O terraço vizinho era tão próximo daquele onde estavam Otoko e Keiko que
lhes bastaria esticar o braço para poderem tocá-lo. Os terraços que dominavam o
rio tinham sido construídos como grandes sacadas salientes, sem teto e sem
cortinas a separá-los uns dos outros. As duas amigas podiam ver não só o que se
passava ao lado delas, mas também abaixo. Essa sucessão de terraços acentuava
a sensação de frescor à beira do rio.
Sem a mínima preocupação de estar sendo vista pelos clientes, Keiko
mordeu ferozmente o dedo mínimo de Otoko. A dor percorreu-lhe o corpo, mas
ela não retirou o dedo, nem disse nada. A língua de Keiko brincou com a ponta
do dedinho. Daí Keiko o tirou de sua boca e disse: - Não está nem um pouco
salgado. É porque você tomou banho…
O vasto panorama que abarcava o rio Kamo e as Colinas do Leste do outro
lado da cidade apaziguou a cólera de Otoko. À medida que se acalmava,
começou a pensar que talvez fosse culpa sua Keiko ter passado a noite nesse
hotel de Enoshima com Oki.
Keiko tinha acabado de concluir seus estudos secundários quando se
apresentara em casa de Otoko. Afirmara, então, ter visto seus quadros numa
exposição em Tóquio e sua fotografia numa revista e se sentira imediatamente
enamorada.
Nesse ano, uma das obras de Otoko obtivera um prêmio numa exposição em
Kyoto e fizera, em parte devido ao tema, um grande sucesso junto ao público.
Otoko se inspirara numa fotografia de 1877 da famosa cortesã de Gion,
Okayo, para pintar duas jovens maiko jogando ken35 . Era uma foto trucada,
mostrando uma imagem dupla de Okayo. As duas moças estavam vestidas de
modo idêntico. Uma delas, os dedos das mãos bem separados, estava quase de
frente, enquanto a outra, os punhos cerrados, era vista de perfil. Otoko achara
interessante a posição das mãos, a postura contrastante dos corpos e a expressão
dos rostos. A jovem maiko da direita tinha o polegar exageradamente separado
do indicador e os outros dedos dobrados para trás. Otoko gostara também da
roupa de Okayo, estampada à moda antiga (embora fosse impossível distinguir
suas cores, pois a foto era em branco-e-preto). As duas jovens estavam sentadas
uma de cada lado de um braseiro de madeira quadrado, em cima do qual se
pendurava uma chaleira de ferro. Havia também uma garrafa de saque, mas
Otoko, julgando esses objetos vulgares e supérfluos, os omitira de sua
composição.
O quadro de Otoko representava a mesma cortesã, desdobrada e jogando
ken. Ela procurara criar a impressão singular de que as duas maiko eram na
realidade uma só e mesma pessoa ou, ainda, que não eram nem uma nem duas.
Era esse também o efeito almejado na velha fotografia trucada. Para evitar que
sua pintura resultasse insignificante, Otoko havia trabalhado profundamente a
expressão dos rostos. As roupas que, na foto, pareciam muito volumosas,
constituíram na verdade uma ajuda preciosa, fazendo sobressair vivamente as
quatro mãos. Otoko não tinha reproduzido a foto de maneira realista; no entanto,
muitas pessoas em Kyoto devem ter reconhecido, logo à primeira vista, que se
tratava de uma obra inspirada na fotografia de uma famosa cortesã dos princípios
da Era Meiji.
Um marchand de Tóquio, que se interessava por pintura de cortesãs, veio
visitar Otoko e propôs exibir algumas de suas obras de menor tamanho em
Tóquio. Foi nessa época que Keiko viu as telas de Otoko, de quem ela nunca
ouvira falar até então.
Foi sem dúvida por causa da repercussão da pintura das duas jovens maiko
que uma revista havia se interessado por Otoko. Ou talvez isso se devesse
também à beleza da jovem artista. Um fotógrafo e um jornalista dessa revista
levaram-na por toda parte em Kyoto e fotografaram-na sem parar. Na verdade,
fora Otoko que os conduzira aos lugares aonde gostava de ir. Assim, um artigo
que cobria três grandes páginas lhe foi consagrado. Havia uma reprodução da
pintura das cortesãs e uma foto de Otoko em primeiro plano, mas quase todas as
ilustrações eram cenas de Kyoto, às quais a presença de Otoko dava um sentido
especial. Talvez os jornalistas tivessem escolhido ser guiados por uma artista que
vivia em Kyoto para assim fotografar lugares originais e fora dos itinerários
conhecidos. Otoko sentiu-se levemente magoada ao descobrir que fora assim
manipulada e que as três páginas que lhe haviam sido consagradas eram, na
realidade, fotos de paisagens de Kyoto desconhecidas do grande público.
Keiko, que jamais estivera em Kyoto e ignorava que tinha sob os olhos os
encantos secretos da velha capital, viu somente a beleza de Otoko, e essa beleza
a fascinara.
E foi desse modo que Keiko, envolta em bruma azulada, apareceu a Otoko
suplicando-lhe que a recebesse em sua casa e lhe ensinasse pintura. O fervor de
seu pedido surpreendeu Otoko. Então, palpitante de desejo, Keiko lançou
bruscamente os braços ao seu redor e Otoko sentiu-se enlaçada por uma jovem
feiticeira.
- Seu pais estão de acordo, pelo menos? Se eles não estiverem, não posso lhe
dar uma resposta - disse Otoko.
- Meus pais estão mortos. Eu decido sozinha a minha vida - respondeu
Keiko.
De novo, Otoko voltou-lhe um olhar cheio de suspeitas.
- Você não tem um tio ou uma tia, irmãos ou irmãs…?
- Sou um peso para o meu irmão mais velho e sua mulher. E agora, depois
que tiveram um bebê, eu os incomodo mais ainda.
- Por causa do bebê?
- É claro que gosto dele, mas eles não apreciam meu jeito de niná-lo.
Alguns dias depois de Keiko estar instalada em sua casa, Otoko recebeu uma
carta de seu irmão. Ele lhe pedia que recebesse a moça em sua casa, apesar de
ela ter uma conduta muitas vezes irresponsável, fazer apenas o que sua cabeça
mandasse e não ser capaz nem mesmo de se tornar uma boa empregada
doméstica. Enviava também suas roupas e objetos pessoais. Ao vê-los, Otoko
teve a impressão de que Keiko vinha de uma família abastada.
Pouco tempo depois, Otoko compreendeu que devia haver realmente algo de
incomum no modo como Keiko tratava o bebê e que tanto desagradava a seu
irmão e a sua jovem cunhada. Fazia mais ou menos uma semana que Keiko vivia
na casa de Otoko. Ela insistira para que Otoko a penteasse da maneira que mais
lhe agradasse. Enquanto alisava seus cabelos, Otoko, sem querer, puxou uma
mecha com força.
- Puxe mais forte, srta. Ueno… - pediu-lhe Keiko. - Puxe bastante até que eu
pareça estar suspensa pelos cabelos…
Otoko tirou a mão. Keiko voltou-se para ela e pressionou seus lábios e dentes
nas costas de sua mão. Depois disse.
- Que idade tinha quando deu seu primeiro beijo, srta. Ueno?
- Que pergunta mais absurda!…
- Pois eu, eu tinha quatro anos. Lembro-me muito bem. Era um tio afastado,
do lado de minha mãe. Devia ter, na época, uns trinta anos e eu gostava muito
dele. Certa vez, ele estava sentado sozinho na sala de visitas, eu me aproximei
devagarinho e dei-lhe um beijo. Ele ficou tão espantado que limpou os lábios
com a mão.
Nesse terraço suspenso sobre o rio Kamo, Otoko se lembrara da história
desse beijo infantil. Essa boca que, aos quatro anos, tinha beijado um homem,
era agora sua, e um instante atrás cerrara entre os lábios seu dedo mínimo.
- Otoko, lembra-se daquela chuva de primavera, na primeira vez que você
me levou ao monte Arashi?
- Claro que sim, Keiko.
- E da velhinha que vendia macarrão…?
Dois ou três dias após a chegada de Keiko, Otoko a levara a visitar o
Pavilhão de Ouro, o Ryoan-ji, e por fim o monte Arashi. Haviam entrado num
pequeno restaurante, à beira do rio, não longe da ponte de Togetsu, onde serviam
macarrão. A dona do restaurante queixara-se da chuva.
- Eu adoro a chuva. É uma linda chuva de primavera - respondeu Otoko.
- Oh, muito obrigada, senhora - replicou a mulher polidamente, fazendo uma
discreta reverência.
Keiko voltou-se para Otoko e perguntou baixinho: - É pelo tempo que ela
está lhe agradecendo?
- Como? - A resposta da velha mulher parecera natural a Otoko e ela nem
sequer lhe prestara muita atenção. - Sim, acho que sim. Pelo tempo…
- Que interessante! Gosto da idéia de se agradecer a alguém por causa do
tempo - continuou Keiko. - É assim que se faz em Kyoto?
- Quem sabe, pode ser…
De fato, podia se interpretar desta forma a resposta da velha mulher. Sem
dúvida era um indício de polidez para com as duas mulheres que tinham ido
passear no monte Arashi sob a chuva. Contudo, não fora a polidez que levara
Otoko a responder que a chuva não a incomodava em nada. Ela via realmente
um certo encanto nessa chuva de primavera caindo sobre o monte Arashi, e a
velha mulher lhe agradecera por isso. Parecia ter falado em nome do tempo ou
em nome do monte Arashi sob a chuva. Era um comportamento natural de
alguém que possuía um restaurante nesse local, mas Keiko o achara curioso.
- Uma delícia, não? Estou gostando muito deste lugar - disse Keiko. Fora o
chofer do táxi que lhes indicara. Por causa da chuva, Otoko havia alugado um
táxi para acompanhá-las durante a tarde.
Embora fosse a época das cerejeiras em flor, havia bem poucos visitantes no
monte Arashi, sem dúvida devido à chuva. E essa era também uma das razões
por que Otoko dissera "adorar a chuva", que velava o contorno das montanhas
além do rio e tornava-os mais suaves e mais belos. Quando Otoko e Keiko
saíram do restaurante e se dirigiram para o táxi que as esperava, não precisaram
sequer abrir seus guarda-chuvas, pois chovia tão levemente que elas mal
perceberam que suas roupas estavam se molhando. Assim que caíam na
superfície do rio, as gotas de chuva desapareciam sem deixar o menor sinal. Na
montanha, as flores das cerejeiras mesclavam-se ao verde tenro dos novos brotos
e, nas árvores, as cores vivas dos botões eram atenuadas pela chuva.
Além do monte Arashi, o Templo dos Musgos e o Ryoanji também se
revestiam de um certo encanto sob a chuva da primavera. No jardim do Templo
dos Musgos uma camélia vermelha caíra sobre a relva úmida e brilhante, repleta
de florzinhas brancas. A camélia tinha sua corola voltada para o alto como se
tivesse florescido sobre o musgo. E, no jardim do Ryoan-ji, as pedras
respingadas de chuva faiscavam cada uma a seu modo.
- Quando se usa um vaso de cerâmica de Iga na cerimônia do chá, ele é
umedecido antes. E o efeito que se tem é o mesmo destas pedras - disse Otoko.
Keiko, porém, nunca vira vasos de cerâmica de Iga e não sentiu nenhuma
emoção particular diante do faiscar das pedras.
Mas, quando Otoko lhe apontou e ela, por sua vez, prestou atenção, Keiko
ficou maravilhada com as gotas de chuva penduradas nos pinheiros ao longo do
caminho que conduzia ao interior do monastério. Em todos os galhos das
árvores, na extremidade de cada uma de suas agulhas, uma gotinha de chuva
brilhava. As agulhas dos pinheiros pareciam caules sobre os quais
desabrochavam flores de orvalho. Quase imperceptíveis, essas flores eram a
delicada floração da chuva de primavera. Os sicômoros, cujos botões ainda não
tinham se aberto de todo, estavam igualmente constelados de gotas de chuva.
As gotinhas de chuva suspensas nas agulhas dos pinheiros não eram um
fenômeno raro e podiam ser vistas por toda parte, mas, para Keiko, esse era um
espetáculo novo que lhe pareceu pertencer só a Kyoto. Essas gotas de chuva
dependuradas nas agulhas dos pinheiros e a cortesia da dona do restaurante de
macarrão foram suas primeiras impressões de Kyoto. Ela não somente descobria
a cidade, mas a descobria em companhia de Otoko.
- Eu me pergunto como estará a mulher do restaurante - disse Keiko. - Nós
nunca mais voltamos ao monte Arashi.
- É verdade. Para mim, é no inverno que o monte Arashi fica mais bonito…
Quando as piscinas de água do rio tomam essa cor tão fria, tão profunda… Aí
voltaremos lá.
- Então teremos que esperar o inverno?
- Ele chegará daqui a pouco.
- De jeito nenhum! Não estamos sequer em pleno verão, e sem falar no
outono que ainda virá.
Otoko riu.
- Podemos ir quando quisermos! Amanhã mesmo…
- Isso, vamos lá amanhã! Vou dizer para a dona do restaurante que gosto do
monte Arashi no verão e ela, provavelmente, vai me agradecer. Em nome do
verão!
- E em nome do monte Arashi!
Keiko mirou o rio.
- Otoko, no inverno não haverá mais esses casais que passeiam assim nas
margens do rio.
De fato, havia um grande número de jovens passeando, não na beira do rio,
mas sobre os dois molhes construídos entre os rios Misosogi e Kamo, e entre
este último e o canal do leste. A maioria deles era de namorados, e raros eram os
casais que estavam acompanhados por crianças. Jovens namorados caminhavam
enlaçados uns aos outros ou sentavam-se lado a lado à beira da água. Tornavam-
se mais numerosos à medida que caía a noite.
- Faz muito frio aqui no inverno - disse Otoko.
- Eu me pergunto se durará mesmo até o inverno.
- O quê?
- O amor deles… É claro que, daqui até lá, muitos destes namorados não
terão mais vontade de se ver.
- Então, é nisso que você está pensando? - perguntou Otoko.
Keiko assentiu.
- Por que você precisa ficar pensando nessas coisas? - continuou Otoko. -
Você ainda tem muito tempo…
- Porque não sou tão boba quanto você, que depois de vinte anos continua a
amar o homem que estragou sua vida!
Otoko permaneceu calada.
- Otoko, você ainda não compreendeu que o sr. Oki a abandonou?
- Pare de me falar nesse tom! - Como ela se virou, Keiko esticou a mão para
arrumar uma mecha solta sobre a nuca de sua amiga.
- Otoko, por que você não me abandona?
- Como?
- Sou a única criatura no mundo que você pode abandonar. Faça isso, me
abandone…
- Eu me pergunto: do que é que você está querendo falar? - Otoko parecia se
esquivar à questão, mas seus olhos estavam cravados nos da jovem. Em seguida,
alisou com a mão os fios de cabelo que Keiko acabara de arrumar.
- Quero falar da maneira como o sr. Oki a abandonou - começou Keiko com
obstinação, olhando Otoko diretamente nos olhos. - Mas parece que você nunca
quis admitir isso…
- Abandonar, ser abandonada… não gosto dessas palavras!
- É melhor ser precisa. - Havia um brilho estranho nos olhos de Keiko. -
Como você definiria os fatos?
- Nós nos separamos.
- Mas é mentira! Ainda agora, ele está em você como você está nele…
- Aonde você quer chegar, Keiko? Não compreendo.
- Otoko, hoje pensei que você ia me abandonar.
- Mas há pouco, lá em casa, não reconheci que estava errada? Não me
desculpei?
- Fui eu que me desculpei.
Fora pensando numa reconciliação que Otoko a trouxera para jantar em
Kiyamachi, mas poderiam ambas ainda se reconciliar? Keiko não tinha o
temperamento para se contentar com um amor tranqüilo; ela desafiava Otoko,
discutia com ela ou então ficava amuada. Otoko tinha se sentido ferida quando
ela lhe confessara ter passado a noite em Enoshima com Oki. Keiko, que lhe era
tão afeiçoada, agora se insurgia contra ela. Keiko dissera que queria se vingar de
Oki por sua causa, mas a Otoko parecia que era dela que ela queria se vingar.
Além do mais, sentia-se ao mesmo tempo desesperada e horrorizada ao pensar
que Oki não hesitara em seduzir sua aluna, quando lhe teria sido tão fácil fazê-lo
com outras mulheres.
- Otoko, você não vai me abandonar? - perguntou Keiko de novo.
- Se você faz tanta questão, eu o farei! E isso ainda seria o melhor que
poderia lhe acontecer.
- Chega! Detesto que você fale assim comigo! - Keiko sacudiu a cabeça. - Eu
não estava pensando em mim quando dizia isso. Enquanto eu estiver ao seu
lado…
- Seria melhor para você que nós nos separássemos. - Otoko se esforçava
para falar calmamente.
- Já está tão distante de mim, em seu coração?
- Claro que não!
- Que bom! Eu estava tão infeliz pensando que você pudesse me abandonar.
- Mas essa idéia foi sua.
- Minha…? Você pensou que eu a deixaria?
Otoko não disse nada.
- Não a deixarei nunca! - disse Keiko com ímpeto.
Agarrou a mão de Otoko e, novamente, mordeu-lhe o dedo mínimo.
- Você me machuca! - Otoko recuou e puxou o dedo. - Você me machuca,
ora!
- Se a mordo, é porque quero machucá-la!
Chegou o jantar. Enquanto a garçonete acomodava os pratos, Keiko, de
maneira pouco educada, virou-se de lado e ficou contemplando um punhado de
luzes sobre o monte Hiei. Otoko trocou algumas palavras com a garçonete,
mantendo uma das mãos sobre a outra. Ela temia que as marcas dos dentes de
Keiko fossem visíveis.
Quando a garçonete se afastou, Keiko, com a ajuda de seus hashi,
desprendeu um pedaço de enguia de sua sopa e o levou à boca. Depois, de
cabeça baixa, disse: - Contudo, Otoko, você deveria me abandonar.
- Você é teimosa, hein?
- Sou o tipo de moça que é abandonada por seu amante. Você me acha
teimosa, Otoko?
Otoko não respondeu. Um sentimento de culpa, já muitas vezes
experimentado e que parecia trespassá-la como uma agulha, apoderou-se dela,
enquanto se perguntava se as mulheres se mostravam mais teimosas entre si do
que com os homens. Seu dedo mínimo, que Keiko mordera, não doía mais,
porém ela tinha a impressão de que uma agulha lhe fora fincada. Teria sido ela
que ensinara à jovem a fazê-la sofrer assim?
Um dia, pouco tempo depois de se instalar em casa de Otoko, Keiko, que
estava fritando algo na cozinha, correu para perto da amiga.
- Otoko, o óleo espirrou…
- Você se queimou?
- Está ardendo! - disse Keiko, mostrando-lhe a mão. A ponta de um de seus
dedos estava vermelha. Otoko tomou-lhe a mão.
- Não parece grave! - disse ela, levando rapidamente o dedo da jovem à boca.
Surpresa pelo contato de sua língua com o dedo, Otoko o retirou imediatamente.
Keiko, por sua vez, o levou à boca.
- Otoko, devo lambê-lo?
- Keiko, e a fritura?
- É verdade! Nem me lembrava! - disse a jovem, correndo para a cozinha.
Uma noite - quando teria sido isso? - Otoko passeara seus lábios levemente
sobre as pálpebras fechadas da jovem, mordiscando e fazendo cócegas em suas
orelhas até que ela acabou por gemer e se contrair sob as carícias. A reação de
Keiko incitara Otoko a continuar.
Enquanto isso, Otoko lembrou-se de que há muito, muito tempo atrás, Oki
brincara com ela dessa mesma maneira. Sem dúvida por causa de sua pouca
idade, ele não tinha a menor pressa em beijá-la na boca e, enquanto beijava sua
testa, suas pálpebras e suas faces, Otoko não oferecia resistência e se
tranqüilizava. Keiko era dois ou três anos mais velha do que Otoko o era naquela
época e ambas eram do mesmo sexo, mas a jovem reagia às carícias ainda com
mais força e rapidez do que Otoko o fizera.
Otoko, no entanto, sentia-se culpada em repetir com Keiko as carícias de
Oki, mas, ao mesmo tempo, este pensamento a fazia estremecer com um novo
vigor.
- Não faça isso! Por favor! - tinha pedido Keiko, encolhendo-se contra ela, os
seios nus roçando os de sua amiga. - Não temos o mesmo corpo?
Otoko recuara bruscamente.
Keiko agarrou-se a ela com mais firmeza.
- É verdade, não é? Nós temos o mesmo corpo, Otoko!
Otoko havia se perguntado se a jovem era virgem. As explosões verbais de
Keiko, às quais ela ainda não estava habituada, apanhavam-na sempre
desprevenida.
- Nós somos diferentes - murmurou Otoko, enquanto a mão de Keiko
buscava seus seios. Não havia nenhuma timidez nesse gesto, apenas uma certa
falta de habilidade nos dedos e na palma da mão.
- Não faça isso! - disse Otoko, segurando a mão de Keiko.
- Otoko, você está sendo desleal! - Os dedos de Keiko se endureceram.
Vinte anos antes, enquanto Oki acariciava seus seios, Otoko tinha lhe dito: -
Não faça isso, por favor! - Em Uma garota de dezesseis anos, Oki havia
empregado essas mesmas palavras. Otoko, certamente, não as esquecera, mas, ao
lê-las assim no romance, pareceu-lhe que elas tinham adquirido vida própria.
Eis que agora, Keiko, por sua vez, dizia a mesma coisa. Seria por ter lido
Uma garota de dezesseis anos? Ou seriam essas as palavras que qualquer
mocinha pronunciaria na mesma situação?
Havia também no romance uma descrição dos pequenos seios de Otoko. Oki
escrevera que, ao acariciá-los, experimentava uma felicidade rara, tal qual uma
bênção celestial.
Como Otoko não tinha jamais amamentado uma criança, seus mamilos
mantinham ainda sua coloração intensa. Vinte anos depois, esta cor não havia
mudado. Mas, perto dos 33 ou 34 anos, seus seios começaram a encolher.
No banho, Keiko certamente não deixara de notar os seios miúdos de sua
amiga e se certificara disso mais tarde, tocando-os. Otoko se indagava se algum
dia ela faria algum comentário a respeito, mas Keiko nada dissera. Tampouco
disse alguma coisa quando os seios de Otoko, em resposta às suas carícias,
tornaram-se mais túmidos.
Apesar de Otoko considerar seu silêncio como uma vitória, a atitude da
jovem não deixava de ser estranha.
Às vezes, Otoko via na dilatação de seus seios alguma coisa de mórbido e
perverso, às vezes se envergonhava deles, mas acima de tudo ela se espantava
com o modo como seu corpo, quase aos quarenta anos, estava se transformando.
Naturalmente, essas transformações eram diferentes daquelas que experimentara
quando, aos dezesseis anos, se encontrou grávida.
Desde que se separara de Oki, vinte anos antes, homem algum havia
acariciado seus seios. Nesse meio-tempo, sua juventude e as chances de um
casamento se perderam.
E foi a mão de uma mulher - Keiko - que os acariciou novamente.
Depois de ter se instalado em Kyoto com sua mãe, Otoko tivera muitas
oportunidades de amar e se casar, mas não as levara em consideração. Assim que
percebia que um homem estava apaixonado por ela, a memória de Oki se
impunha com mais força ainda ao seu espírito. Mais do que uma recordação, era
uma realidade. Ao se separar de Oki, Otoko pensara em jamais se casar. Na sua
dor e desorientação, ela não conseguia sequer pensar no dia seguinte, quanto
mais num casamento longínquo. Mas a idéia de não se casar se enraizara em sua
mente e com o tempo tornara-se uma decisão irrevogável.
Naturalmente, sua mãe teria desejado que ela se casasse. Ela viera para
Kyoto com o intuito de afastar a filha de Oki e de ajudá-la a reencontrar sua
calma, e não com a intenção de lá se estabelecer definitivamente.
Cuidando em poupar Otoko, sua mãe a observava. Quando Otoko fez vinte
anos, ela lhe falou pela primeira vez em casamento. Foi no mosteiro Nembutsu
de Adashino, no fundo da planície de Saga, na noite da Cerimônia das Mil
Luzes.
Inumeráveis, gastos e de pequeno porte, os monumentos funerários dos
"Mortos por quem ninguém chora" enfileiravam-se, e diante deles brilhavam as
"Mil Luzes" postas lá a título de oferenda. A mãe de Otoko tinha os olhos cheios
de lágrimas. As tênues luzes brilhando na escuridão aumentavam ainda mais o
sentimento de tristeza que emanava das estelas funerárias. Otoko permanecia
calada, apesar de ter notado as lágrimas nos olhos de sua mãe.
Era já noite quando voltaram por um caminho através dos campos.
- Deus, como é triste! - comentou sua mãe. - Você não se sente triste, Otoko?
- Por duas vezes ela utilizara a palavra triste, mas cada vez parecia ter um
sentido diferente. Ela se pôs então a falar de uma proposta de casamento que um
amigo de Tóquio trouxera a seu conhecimento.
- Sinto muito, mamãe, mas não posso me casar - disse Otoko.
- Não conheço mulher que não se case!
- Mas existe.
- Se você não se casar, nós duas faremos parte dos "Mortos por quem
ninguém chora".
- Não sei o que você quer dizer.
- São os defuntos que não têm família que possa rezar para o descanso de
suas almas.
- Isso eu sei. Mas o que você quer dizer com isso? - Ela se calou por um
instante. - Você quer falar sobre depois da morte?
- Não apenas. Mesmo estando viva, uma mulher sem marido e sem filhos é
semelhante a esses defuntos. Imagine se eu não tivesse você! Você ainda é
jovem, mas… - Ela hesitou um pouco. - Você pinta com freqüência o rosto de
seu filho, não é? Você pretende continuar assim por muito tempo… ?
Otoko não respondeu.
Sua mãe lhe disse tudo o que sabia a respeito da proposta de casamento.
Tratava-se do empregado de um banco.
- Se quiser encontrá-lo, poderemos ir a Tóquio.
- O que você pensa que vejo à minha frente enquanto a escuto? - perguntou
Otoko.
- Você está vendo alguma coisa? O que é?
- Barras de ferro. Vejo barras de ferro nas janelas daquele hospital
psiquiátrico!
Sua mãe, sem ar, calou-se.
Mais tarde, e quando sua mãe ainda era viva, Otoko recebeu outras duas ou
três propostas de casamento.
- Para que continuar a pensar no sr. Oki? - dizia sua mãe, tentando persuadi-
la a se casar. Era mais um apelo do que um alerta. - Ele jamais vai saber disso e
não há nada que você possa fazer por ele. Esperar assim em vão por esse homem
é esperar pelo passado. Nem o tempo nem as águas jamais correm para trás.
- Não estou esperando nada, nem ninguém - respondera Otoko.
- Você não faz outra coisa senão lembrar… Você não pode esquecê-lo…?
- Não, não é isso.
- Tem certeza? Você era tão jovem e tão ingênua ainda quando o sr. Oki a
seduziu, e é por isso, sem dúvida, que a ferida foi tão profunda e a cicatriz custa
tanto a desaparecer. Eu o odiei por ter-se mostrado tão cruel com uma criança
como você!
Otoko não esquecera as palavras de sua mãe. Ela se perguntava se fora por
causa de sua pouca idade e de sua inocência que pudera viver tal amor. Talvez
isso explicasse sua paixão cega, insaciável. Quando, tomada de espasmos,
mordia o ombro de Oki, ela nem percebia que o sangue brotava.
Depois da separação e da mudança para Kyoto, Otoko ficara fora de si ao ler
em Uma garota de dezesseis anos que, cada vez que ia encontrá-la, Oki pensava
longamente na maneira como faria amor com ela, e que geralmente agia do
modo como havia planejado. Ela ficara estupefata ao saber que, ante essa
perspectiva, o coração de Oki estremecia de contentamento. Era impossível para
a jovem submissa e inexperiente que era Otoko imaginar que um homem
pudesse, de antemão, prever a ordem que iria seguir e os procedimentos que teria
com sua amante. Ela aceitava o que quer que fosse, fazia o que quer que ele
pedisse. Sua própria juventude a impedia de se espantar com qualquer coisa. Oki
a descrevera como uma garota extraordinária, uma mulher entre todas as
mulheres. Graças a ela, não só escrevera, mas experimentara todas as formas de
amor.
Ao ler essa passagem, Otoko ardeu de humilhação. No entanto, ela ainda
mantinha viva a lembrança de seus abraços, que não conseguia banir da
memória. Seu corpo se enrijecera e começara a tremer. Em seguida, à medida
que a calma voltava, uma sensação de alegria e de plenitude se apossou de todo
o seu ser. Seu amor passado tornava a viver.
No caminho sombrio, quando voltava da Cerimônia das Mil Luzes de
Adashino, não foram somente as barras de ferro de seu quarto de doente que
apareceram à sua frente.
Ela também se viu entre os braços de Oki. Se ele não tivesse aludido a isso
em seu romance, é provável que, depois de todos esses longos anos, Otoko
mesma acabasse esquecendo essa visão de Oki abraçando seu corpo.
Otoko ficara lívida de raiva, de ciúme e de desespero quando Keiko lhe
precisara que, em Enoshima, Oki se mostrara "incapaz de prosseguir", depois de
ela ter gritado "Otoko! Otoko!". Mas pareceu-lhe que Oki, ele também, devia
ter-se lembrado dela nesse instante precioso. Mesmo se não pensara nela
conscientemente, não teria a imagem de Otoko cruzado rapidamente seu
espírito?
À medida que os meses, e depois os anos, transcorriam, a visão de seus
abraços havia se purificado progressivamente na memória de Otoko,
transcendendo do físico ao espiritual. Hoje em dia, Otoko não era mais inocente
e Oki muito menos. Porém, a seus olhos, seus abraços de antigamente eram
completamente castos. Essa memória - sonho ou realidade - era uma visão
sagrada e sublimada de seu amor.
Quando se lembrou dos gestos que Oki lhe ensinara e do procedimento
instintivamente igual que tivera com Keiko, Otoko receou que essa visão sagrada
fosse conspurcada ou destruída, porém ela permaneceu imaculada em seu
espírito.
Keiko tinha o costume de, mesmo na presença de Otoko, untar suas pernas,
braços e axilas com um creme para depilação. Naturalmente, nos primeiros
tempos de sua mudança para a casa de Otoko, ela o fazia às escondidas. Se
Otoko a interrogava a respeito de um odor estranho no banheiro (O que você está
fazendo? Este cheiro estranho, o que é?), Keiko não respondia. Otoko não estava
familiarizada com os cremes de depilar, não tendo tido nunca necessidade de
usá-los. Sua pele não era recoberta nem pela mais fina penugem.
A primeira vez que surpreendeu Keiko untando de creme sua perna esticada,
Otoko franziu a testa com espanto.
- Que cheiro horrível! O que é isso?
Depois, ao ver os pêlos junto com o creme, Otoko cobriu seus olhos com as
mãos.
- Mas é repugnante! Pare! Isso me deixa arrepiada! - Otoko realmente
tremia. - Que asco! Por que tem de fazer uma coisa dessas?
- Mas, Otoko, todas as mulheres fazem!
Otoko calou-se.
- Você não sentiria ainda mais asco se tocasse uma pele toda cheia de pêlos?
Otoko continuou calada.
- Sou uma mulher, afinal de contas…
Era para que Otoko achasse sua pele macia ao toque que Keiko se depilava.
Apesar de sua amiga ser uma mulher, era por causa dela que a jovem queria ter
uma pele sedosa. Otoko sentiu-se duplamente angustiada, pelo asco que
experimentara vendo a jovem se depilar e pela paixão que esta revelava com sua
limpeza. Muito tempo depois de Keiko ter ido se banhar para retirar o resto do
creme, Otoko ainda acreditava sentir o cheiro horrível em suas narinas.
Quando Keiko voltou para perto de Otoko, ela ergueu o quimono, esticou a
perna e disse: - Toque e sinta, Otoko. Minha pele está macia agora. Otoko lançou
um breve olhar para a perna inteiramente branca, mas não a tocou. Keiko, com a
mão direita, acariciou a perna.
- Otoko, por que esse ar preocupado? - disse ela, fitando Otoko como se algo
não estivesse bem. Otoko evitou seu olhar.
- Keiko, de hoje em diante não se depile mais na minha frente.
- Não quero esconder nada de você. Não tenho segredos para com você.
- Mas qual a vantagem em me mostrar uma coisa que me dá asco?
- Você vai se acostumar. É a mesma coisa que cortar as unhas do pé.
- Também é falta de educação cortar as unhas ou lixá-las em frente de outras
pessoas. Quando você corta as unhas, elas pulam… Dê um jeito de fazer um
anteparo com as mãos.
- Está bem - concordou Keiko.
Entretanto, se depois disso Keiko não se depilou mais ostensivamente em
presença de Otoko, também não fez nada para se subtrair a seus olhos. Otoko, ao
contrário do que Keiko pensava, jamais se habituou a esse espetáculo. O creme
não cheirava mais tão mal quanto antes, talvez por ter sido melhorado, talvez por
Keiko ter trocado de marca, mas o espetáculo da jovem se depilando a deixava
sempre arrepiada. Ela não conseguia suportar a visão dos pêlos das pernas e das
axilas soltando-se à medida que Keiko retirava o creme. Ela preferia sair do
quarto. No entanto, do fundo de sua repugnância, uma chama surgia e
desvanecia-se, daí surgia novamente. Tão pequena e tão longínqua era essa
chama que Otoko mal podia vê-la com os olhos do espírito, mas era tão pura e
tão tranqüila que dificilmente se acreditaria haver ali a sombra de algum desejo.
Essa chama, em sua tranqüilidade e pureza, fazia com que Otoko se recordasse
de Oki e da jovem que ela havia sido vinte anos antes. A idéia de um contato
entre mulheres e a sensação da pele de Keiko sobre sua própria pele estavam na
origem do asco que Otoko experimentava vendo a jovem se depilar; ela fora
tomada por náuseas antes mesmo de poder pensar numa explicação. Mas a
imagem de Oki sobrepujou singularmente essa sensação de asco.
Quando fazia amor com Oki, Otoko jamais pensara na fina penugem que
tinha em suas axilas, como também não se preocupava em saber se Oki, como
homem, era pouco ou muito peludo. Tinha ela perdido o senso da realidade?
Hoje em dia ela estava muito à vontade com Keiko, atingira uma maturidade da
qual não estava ausente um certo vício. Surpreendera-se ao descobrir, graças a
Keiko, que após todos esses anos de solidão longe de Oki, ela havia assim
mesmo amadurecido enquanto mulher. Otoko temia que, se amasse não Keiko,
mas um outro homem, a visão sagrada e zelosamente guardada no fundo do seu
coração - a visão de seu amor por Oki - fosse bruscamente destruída.
Otoko falhara em sua tentativa de suicídio, depois da separação de Oki, mas
sempre desejara morrer jovem. Gostaria de ter morrido nas dores do parto, antes
de seu malogrado suicídio e antes que seu próprio bebê morresse; assim ela teria
escapado das barras de ferro do hospital psiquiátrico. Esse desejo secreto, com o
passar dos meses e dos anos, acabara purgando o ferimento que Oki lhe infligira.
- Você é maravilhosa demais para mim. Nosso amor é um prodígio; nunca
imaginei que um ser humano pudesse viver um amor desses. Vale a pena morrer
por tanta felicidade!
Ainda hoje, Otoko não esquecera as doces palavras de Oki. Frases desse
gênero eram bastante numerosas em seu livro e os diálogos pareciam não ter
mais vínculos nem com Oki nem com Otoko; haviam adquirido vida própria.
Talvez os amantes de outros tempos não existissem mais; porém, em sua tristeza,
Otoko tinha ao menos o nostálgico consolo de ver seu amor imortalizado numa
obra de arte. Otoko possuía uma navalha que pertencera à sua mãe. Embora não
tivesse realmente necessidade, Otoko, instigada pelas lembranças, a utilizava às
vezes para raspar a fina penugem de sua nuca, ou a linha dos cabelos em sua
testa.
Um dia, ao ver Keiko começando a passar o creme de depilação, Otoko
agarrou a navalha na gaveta da penteadeira e disse bruscamente: - Keiko, deixe
que eu raspe você.
À vista da navalha, Keiko perdeu a calma e fugiu gritando: - Não, Otoko!
Isso não! Eu tenho medo! - Otoko lançou-se em sua perseguição.
- Não se assuste! Não há perigo! Vamos!
Uma vez agarrada, Keiko deixou-se levar, com relutância, de volta à
penteadeira. Mas quando Otoko havia recoberto seu braço de espuma e
começado a aplicar-lhe a navalha, percebeu com espanto que os dedos de Keiko
tremiam ligeiramente.
- Não tenha medo, não há nenhum perigo se ficar com o braço quieto. Pare
de tremer…
Os temores e a própria ansiedade de Keiko excitaram Otoko. Era uma
tentação. Seu corpo se retesou como se uma força nova se derramasse sobre seus
ombros.
- Já que você tem medo, não passarei a navalha debaixo dos braços. Mas a
rosto… - disse Otoko.
- Espere um pouco. Dê-me tempo de respirar - respondeu Keiko, retendo o
fôlego.
Otoko raspou a jovem acima das sobrancelhas e sob o lábio inferior. Quando
ela começou a raspar a fina penugem de sua testa, Keiko ficou com os olhos
fechados. O rosto levemente voltado para o alto, ela descansou a cabeça na mão
de Otoko, que lhe sustinha a nuca.
O pescoço longo e delgado da jovem atraiu o olhar de Otoko. Era frágil,
gracioso e delicado, com algo de inocente que não se assemelhava a Keiko e que
transbordava de juventude.
Otoko interrompeu seu gesto. A jovem abriu os olhos.
- O que foi, Otoko?
Otoko pensara repentinamente que Keiko morreria se ela afundasse a
navalha nesse pescoço encantador. Um instante seria suficiente para atingi-la
naquilo que tinha de mais belo.
Mesmo não sendo tão bonito como o de Keiko, Otoko também tinha um
lindo pescoço de jovem. Um dia em que Oki enlaçara seu pescoço com os
braços, ela lhe dissera: - Você está me machucando… Assim vai me matar! - Oki
então apertara ainda mais o seu abraço e Otoko sentira-se sufocar.
Enquanto olhava o pescoço de Keiko, essa sensação de asfixia voltou-lhe à
memória e Otoko sentiu a cabeça girar.
Foi a única vez em que raspou a jovem. Daí em diante, Keiko se recusou e
Otoko não insistiu mais. Quando abria a gaveta da penteadeira para pegar um
pente ou alguma outra coisa, seu olhar caía sobre a navalha. Ela se recordava
então de seus fugidios pensamentos assassinos. Se tivesse matado Keiko, não
poderia continuar a viver.
Suas veleidades de homicídio tornaram-se uma espécie de fantasma familiar.
Teria ela perdido uma vez mais a ocasião de morrer?
Otoko compreendeu que no seu desejo fugaz de matar se escondia seu velho
amor por Oki. Naquela época, Keiko ainda não tinha encontrado Oki. Ela ainda
não tinha se imiscuído entre eles.
Desde que soubera que a jovem passara a noite em Enoshima, com Oki, um
fogo estranho consumia Otoko. Entretanto, no meio dessas chamas que a
atormentavam, ela via florir um lótus branco. Seu amor por Oki era uma flor
imaginária que nem Keiko nem nada no mundo poderia jamais profanar.
Com a imagem do lótus branco em sua mente, Otoko voltou o olhar para as
luzes das casas de chá de Kiyamachi que se refletiam no rio Misosogi. Ela as
contemplou durante um breve momento. Depois seus olhos se dirigiram para a
cadeia sombria das Colinas do Leste, além de Gion.
As colinas davam uma impressão de tranqüilidade, mas a Otoko pareceu que
as trevas que as envolviam deslizavam insidiosamente para dentro de si. Os
faróis dos carros indo e vindo na margem oposta, os casais que passeavam à
beira d'água, as casas de chá margeando o rio com suas luzes e seus clientes,
tudo isso Otoko via sem verdadeiramente ver, à medida que a obscuridade das
Colinas do Leste penetrava ainda mais em seu espírito.
- Vou pintar logo A ascensão de uma criança. Tenho que fazê-lo já, senão
nunca mais o farei. A idéia que faço hoje dessa pintura já está se tornando algo
diferente da minha primeira intenção, está perdendo todo o amor e a tristeza… -
murmurou Otoko para si mesma. Essa emoção súbita devia-se à visão do lótus
entre as chamas.
Otoko chegou a pensar, no transbordamento de seu coração puro, que Keiko
e o lótus fossem uma coisa só. Por que o lótus branco florescia entre as chamas?
Por que ele não fenecia?
- Keiko - disse. - Está novamente de bom humor?
- Se você estiver, não tenho mais motivo para ficar zangada! - respondeu
Keiko com encanto.
- Diga-me, até hoje, qual é a coisa que mais a fez sofrer?
- Eu também me pergunto - disse Keiko simplesmente. - Já sofri tantas vezes
que não saberia dizer. Vou tentar me lembrar e aí lhe direi. Mas minhas mágoas
são breves.
- Breves?
- Sim.
Otoko fitou-a duramente e disse com a voz tão calma quanto possível: - Há
uma coisa que eu queria lhe pedir hoje à noite. Gostaria que você não fosse
nunca mais a Kamakura.
- Você está dizendo isso por causa do sr. Oki ou de seu filho?
A resposta inesperada da jovem confundiu Otoko.
- Por ambos.
- Se fui vê-los, foi só para vingá-la!
- Ainda com essa mesma história! Você é realmente impossível!
O rosto de Otoko se alterou. Ela fechou rapidamente os olhos, como para
esconder lágrimas invisíveis.
- Otoko, como você é medrosa!…
Com essas palavras, a jovem se levantou, aproximou-se de Otoko, pôs as
duas mãos em seus ombros e lhe acariciou as orelhas. E, enquanto Otoko
permanecia em silêncio, o murmúrio do rio alcançou os ouvidos de Keiko.
***
MECHAS DE CABELO
- Querido! - Fumiko chamou Oki da cozinha. - Sabe que uma grande ratazana
nos honra com sua presença? Está escondida debaixo do fogão!
- Está falando sério?
- E acho que seus filhotes a acompanham.
- É mesmo?
- Venha ver… Olhe só este pequeno ratinho mostrando a ponta do seu lindo
nariz…
- Hum!
- E ele me fita com seus belos olhos negros e brilhantes.
Oki não disse nada. O forte aroma da sopa de missô36 pairava na sala onde
ele lia o jornal da manhã.
- E há uma goteira na cozinha! Está ouvindo?
Já estava chovendo quando Oki se levantara, mas agora tornara-se um
aguaceiro. O vento, que sacudia os pinheirais e os bosques de bambu no alto das
colinas, soprava em direção ao leste e a chuva açoitava obliquamente os arbustos
e as plantas.
- Não ouço nada, com todo esse vento e essa chuva lá fora…
- Então venha dar uma olhada!
- Hum!
- Essas gotas de chuva que se espatifam contra o telhado, se retorcem entre
as frestas e caem sobre as tábuas do forro com certeza devem sofrer. Não
parecem lágrimas escorrendo?
- Assim vai acabar me fazendo chorar também!
- Vamos armar a ratoeira esta noite. Ela deve estar numa das prateleiras do
armário. Eu não alcanço, você poderia pegá-la para mim?
- Você tem certeza de que quer apanhar Mamãe Ratazana e seus filhotes
numa ratoeira? - respondeu docemente Oki, sem levantar os olhos de seu jornal.
- E o que faremos com a goteira? - perguntou Fumiko.
- É grave? Não é só porque chove torrencialmente? Amanhã subirei no teto
para ver o que é.
- É perigoso para alguém de sua idade… Posso pedir a Taichiro para subir.
- O que está querendo dizer com "alguém da sua idade"?
- Nas fábricas, nos bancos, nos jornais, as pessoas não se aposentam aos 55
anos?
- Gosto de ouvir você falar assim. E se eu também deixasse de trabalhar?
- Quando quiser…
- Com quantos anos um escritor pode se aposentar?
- Não antes de morrer.
- O que você quer dizer?
- Desculpe-me. - Fumiko pediu desculpas e acrescentou com sua voz
habitual: - Só queria dizer que você tem muitos anos pela frente para escrever.
- Eis aí uma dolorosa perspectiva, ainda mais com uma mulher de sua
espécie… É como se um demônio se agarrasse às minhas costas brandindo uma
barra de ferro em brasa!
- Que belo mentiroso você é! Quando é que eu o aborreci?
- Você pode ser venenosa, você sabe!
- Venenosa…?
- Exatamente. Quando sente ciúme, por exemplo.
- O ciúme é o fardo de todas as mulheres. Já não aprendi à minha própria
custa e há tanto tempo que é um remédio amargo e perigoso, um veneno, em
suma?
Oki não disse nada.
- Uma faca de dois gumes…
- Para ferir seu parceiro e ferir-se a si mesma… Ou matar-se juntamente com
seu amante?
- Seja o que for que você ainda possa me fazer, não tenho mais força, hoje,
para me divorciar ou me suicidar.
- Depois de certa idade, os divórcios são desagradáveis, mas não sei de nada
mais triste do que dois velhos amantes que se matam. As pessoas idosas que
lêem notícias desse tipo nos jornais devem sentir uma angústia ainda maior do
que a dos jovens.
- Você diz isso porque lhe aconteceu uma vez de meditar longamente sobre
isso. Faz bastante tempo, você ainda era jovem…
Oki ficou em silêncio.
- No entanto, você não transmitiu à sua jovem amiga seu doloroso desejo de
morrer com ela. Não teria sido preferível avisá-la? Ela se suicidou, mas como
poderia desconfiar que você também gostaria de morrer? Não é triste?
- Ela não se suicidou.
- Ela tentou. É a mesma coisa.
Fumiko recomeçara a falar de Otoko. Oki ouviu o óleo espirrando na
frigideira onde Fumiko iria preparar carne de porco com couve.
- A sopa de missô vai passar do ponto - advertiu Oki.
- Já sei, já sei. Há vinte anos você me repreende por causa dessa sopa! Até
mandou trazer diferentes variedades de missô de várias regiões… Gostaria de ter
feito de sua mulher uma especialista na arte de preparar o missô!
- Você sabe como se escreve o nome dessa sopa em caracteres chineses?
- Para mim, basta saber em hiragana37 .
- Repete-se três vezes o caractere "honorável".
- É mesmo?
- Antigamente, já devia ser um prato de primeira importância para que se
escrevesse seu nome por meio do mesmo caractere repetido três vezes. E além
disso é um prato muito difícil de ser preparado corretamente.
- Seu "honorável" missô talvez não esteja com um gosto muito bom esta
manhã. Eu não o preparei com tanto respeito.
Fumiko, às vezes, chegava a irritar Oki dirigindo-se a ele de maneira
excessivamente obsequiosa, como já acontecera nesse mesmo dia quando
mencionara o episódio da ratazana e o da goteira no teto. Oki, não sendo
originário da capital, não empregava corretamente as expressões de polidez
freqüentes na fala de Tóquio. Entretanto, não era sempre que ele prestava
atenção às observações de sua mulher, que fora educada em Tóquio, e suas
discussões resultavam em intermináveis querelas verbais, nas quais Oki afirmava
que a fala de Tóquio não passava de um vulgar dialeto provinciano e não
provinha de uma longa tradição. Nas regiões de Kyoto e de Osaka, dizia Oki, as
pessoas, qualquer que seja o assunto de que estejam tratando, têm o costume de
empregar termos honoríficos, ao passo que os habitantes de Tóquio se expressam
com menos cortesia. No dialeto de Kyoto e de Osaka, as pessoas recorrem às
expressões de polidez para falar de peixes ou legumes, de montanhas ou rios, de
casas ou ruas e até mesmo para designar o Sol e a Lua, os demais corpos
celestes, o tempo.
- Nesse caso seria melhor você conversar com Taichiro. É ele o especialista
no assunto - continuou Fumiko, abandonando a disputa.
- O que é que ele sabe sobre isso? Talvez seja um especialista em literatura
japonesa, mas não é um lingüista. Ele jamais pesquisou o uso dos termos
honoríficos.
Veja só a maneira confusa e quase indecente com que ele ou seus colegas se
expressam; chega a ferir os ouvidos! Seus ensaios e artigos não são nem mesmo
escritos num japonês correto!
Na verdade, Oki não só não gostava de consultar seu filho ou ouvir seus
conselhos, como achava repugnante fazê-lo. Ele preferia perguntar à sua mulher.
Mas, como Fumiko era de Tóquio, ela ficava freqüentemente desnorteada com
as questões que seu marido colocava a respeito dos termos honoríficos e seu uso.
- Eu deveria observar a Taichiro que, no passado, os eruditos japoneses
tinham sólidos conhecimentos de chinês e escreviam num estilo irrepreensível…
- As pessoas não falam mais assim. Todos os dias nascem neologismos que,
como esses ratinhos sobre os quais falamos agora mesmo, roem com a maior
sem-cerimônia as coisas importantes. O mundo está mudando num ritmo
vertiginoso…
- Mas eles têm vida breve, esses neologismos, e, mesmo quando sobrevivem,
são datados, como os romances que escrevemos. É raro que eles durem mais de
cinco anos.
- Afinal, não é suficiente que as palavras da moda sobrevivam apenas até o
dia seguinte? - Sempre falando, Fumiko trouxe à sala a bandeja do café-da-
manhã. Aí, sem que seus traços se alterassem em nada, disse: - Eu também fiz
bem em sobreviver, apesar de todos esses anos em que você pensava em se
matar junto com aquela jovem.
- Não há aposentadoria para mulheres casadas? Que pena!!
- No entanto, há o divórcio… Eu teria gostado de, ao menos uma vez na
minha vida, saber qual a sensação de ser divorciada.
- Ainda há tempo.
- A vontade já passou. Você conhece o ditado: "É quando já estamos carecas
que nos arrependemos de não termos aproveitado a ocasião".
- Seus cabelos ainda estão bem negros, sem um único fio branco.
- Mas os seus já estão ralos. Será que você deixou passar a ocasião?
- No meu caso, isso se deve aos esforços que tive que fazer para evitarmos
um divórcio, ao meu sacrifício, em suma. E para que você não tenha mais
ciúme…
- Vai me deixar zangada, você sabe!
Oki e Fumiko, prosseguindo naquela troca de palavras inúteis, puseram-se,
como todos os dias, a tomar o café-da-manhã. Fumiko, por sua vez, parecia mais
bem-humorada do que o normal, embora não fosse fácil ler seus pensamentos.
Naquela manhã, ela sem dúvida evocara Otoko, mas não se detivera a ressuscitar
o passado.
A chuva ameaçadora tinha perdido sua violência e parecia querer se acalmar.
Os vãos nas nuvens, contudo, ainda não deixavam passar os raios de sol.
- Taichiro ainda dorme? Vá acordá-lo - disse Oki.
- Vou correndo - concordou Fumiko. - Mas acho difícil que ele se levante.
Vai me pedir para deixá-lo dormir, pois está de férias.
- Ele não vai a Kyoto, hoje?
- Ele pode jantar em casa e depois ir ao aeroporto. O que ele vai fazer em
Kyoto com esse calor?
- Faria bem em lhe perguntar. Parece que lhe veio bruscamente a vontade de
rever o túmulo de Sanjonishi Sanetaka, no fundo das montanhas, próximo ao
monastério Nisonin.
Creio que ele pensa em fazer pesquisas sobre a crônica de Sanetaka com
vista a uma tese… Você sabe quem foi Sanetaka?
- Um nobre da corte, não?
- Isso todo mundo sabe! Durante as revoltas da Era Onin38, sob o xogum
Ashikaga39 Yoshimasa, ele se elevou à posição de ministro do Interior. Foi
íntimo do poeta Sogi e um desses nobres da corte que se esforçaram para
proteger as artes e as letras naquele tempo conturbado. Ele deixou um diário
volumoso, a Crônica de Sanetaka. Sem dúvida, foi uma personagem muito
interessante. Taichiro quer fazer pesquisas sobre a Cultura de Higashiyama40 ,
tomando como base o diário de Sanetaka.
- Veja só! E onde fica o monastério Nisonin?
- Ao pé do monte Ogura…
- Mas onde fica o monte Ogura…? Você não me levou lá uma vez?
- Sim, há muito tempo. É um lugar cheio de recordações poéticas. Diversos
lugares, não distantes dali, evocam a lenda de Fujiwara Sadaie41.
- Ah! É na região de Saga, não é? Agora me lembro.
- Taichiro recolheu toda espécie de anedotas, de pequenos detalhes
insignificantes que, segundo ele, dariam matéria para se escrever um romance.
Ele os considera documentos sem interesse, histórias inteiramente forjadas.
Imagino que ele já se considera um sábio quando me assegura que, com todas
essas anedotas, tenho matéria para escrever um romance!
Fumiko, sem revelar o fundo de seus pensamentos, limitou-se a aquiescer,
enquanto seus lábios esboçavam um leve sorriso.
- Então vá acordar o sábio do seu filho - disse Oki, erguendo-se da mesa. - Já
ouviu falar de um filho que fica na cama enquanto seu pai vai trabalhar?
- Estou indo!
Quando se viu sozinho em seu escritório, Oki se pôs novamente a pensar,
desta vez sem rir, nas palavras trocadas há pouco com Fumiko em tom de piada
acerca da "aposentadoria dos escritores". Ele permaneceu sentado à mesa, o
queixo apoiado nas mãos. Ouviu alguém gargarejar no banheiro, em seguida
Taichiro entrou, ainda enxugando o rosto com uma toalha.
- Já está um pouco tarde, não? - disse Oki em tom de reprovação.
- Eu não estava dormindo; fiquei na cama meditando um pouco.
- Meditando…?
- Pai, o senhor sabe que exumaram o túmulo da princesa Kazunomiya? -
perguntou Taichiro.
- Violaram sua sepultura?
- Pode-se dizer isso… - admitiu calmamente Taichiro.
- Foram feitas escavações. Freqüentemente escavam-se velhos túmulos para
realizar pesquisas científicas, não?
- No entanto, se se trata da princesa Kazunomiya, seu túmulo não é tão
antigo. Na verdade, quando ela morreu…?
- Em 1877 - respondeu Taichiro, sem a menor hesitação.
- Em 1877…? Então não faz nem um século?
- Isso mesmo. E, no entanto, apenas seus ossos foram encontrados.
Oki franziu as sobrancelhas.
- Parece que seu travesseiro, suas roupas e todos os objetos enterrados junto
com ela tornaram-se pó. Só sobraram os ossos.
- É desumano violar assim uma sepultura…
- Ela estava deitada numa pose graciosa e inocente, como uma criança que,
cansada de brincar, tivesse adormecido.
- Está falando do esqueleto…?
- Sim. Encontraram também uma mecha de cabelo atrás do crânio, o que leva
a pensar que se tratava de uma jovem casada, de alta classe e que morreu cedo.
- Era com esses ossos que você estava sonhando?
- Era, mas não só. Eles mesmos quase não incitam à fantasia, entretanto
havia neles alguma coisa de belo, de misterioso, de frágil.
- O que você quer dizer…? - Oki não se deixava levar pelo entusiasmo do
filho e não compartilhava sua maneira de ver as coisas. Ele achava indecente
terem violado a sepultura de uma trágica princesa imperial morta aos trinta anos
e exumado o seu esqueleto.
- O que quero dizer… Na verdade, trata-se de uma coisa que você jamais
teria imaginado - disse Taichiro. - Mas, por que não chamar mamãe e contar a
ela também?
Oki fitou o filho, que permanecia à sua frente com a toalha na mão, e
aprovou com um leve sinal de cabeça.
Taichiro conversava em voz alta com a mãe quando retornou ao escritório de
Oki. Estava pondo Fumiko a par da história.
Oki tirou da estante de livros do corredor um volume do Grande dicionário
da história do Japão e abriu-o na página que tratava da princesa Kazunomiya.
Acendeu um cigarro.
Taichiro tinha na mão alguma coisa parecida com um pequeno boletim.
- É o relatório das escavações? - perguntou Oki.
- Não, é o boletim do museu. Um certo Kamahara escreveu um artigo
intitulado "A beleza desaparece?", no qual se refere ao mistério que circunda a
princesa Kazunomiya.
É possível que no relatório das escavações não haja menção a isso. - Taichiro
faz uma pausa, depois começou a ler o artigo.
- Uma placa de vidro, de tamanho ligeiramente superior a um cartão de
visitas, foi descoberta entre os braços do esqueleto da princesa Kazunomiya. Ao
que parece, o único objeto que pôde ser encontrado no interior do túmulo. Os
arqueólogos que haviam exumado os túmulos dos xoguns Tokugawa42 no
monastério Zozo-ji em Shiba exploraram igualmente o da princesa
Kazunomiya… O perito encarregado de examinar as tinturas e os tecidos pensou
que essa placa de vidro pudesse ser ou um espelho de bolso ou um "clichê
úmido". Ele a envolveu num papel e levou-a ao museu.
- Esse "clichê úmido" é uma fotografia sobre o vidro? - perguntou Fumiko.
- Sim. Basta passar uma camada de emulsão sobre a placa de vidro e a foto
se revela enquanto a placa ainda está molhada… Exatamente como essas fotos
antigas.
- Ah, sim! Já vi algumas.
- A placa de vidro parecia transparente, mas quando o perito retornou ao
museu e a examinou contra a luz, sob diversos ângulos, ele percebeu a silhueta
de um homem…
Era então uma fotografia! A silhueta era a de um homem jovem vestido com
uma roupa de cerimônia de mangas longas, e penteado à eboshi43. A fotografia
estava bastante descolorida, naturalmente…
- Era a foto do xogum Iemochi44 ? - perguntou Oki, já cativado pelo relato de
Taichiro.
- Sim, muito provavelmente. A princesa Kazunomiya morrera abraçada à
foto de seu esposo, que a precedera na morte. Essa também foi a opinião do
perito que esperava ir no dia seguinte ao Instituto de Pesquisa para a Proteção
dos Bens Culturais para ver se não seria possível, de uma maneira ou de outra,
tornar essa fotografia mais nítida. Mas, no dia seguinte, quando ele a examinou à
luz, viu que a imagem havia desaparecido totalmente. No espaço de uma noite, a
fotografia já não passava de uma placa de vidro transparente.
- Como assim? - perguntou Fumiko, voltando-se para Taichiro com espanto.
- Porque, depois de todos esses anos debaixo da terra, ela foi repentinamente
exposta ao ar e à luz - respondeu Oki.
- Foi exatamente isso que ocorreu. O perito tem uma testemunha para
confirmar que ele não foi vítima de uma ilusão e que se tratava realmente de
uma fotografia.
Ele mostrou a placa de vidro a um guarda que se encontrava no local e este
afirmou ter visto igualmente a silhueta de um jovem nobre impressa na placa.
- Puxa!
- "A história verídica de uma efêmera existência." Foi assim que o perito
definiu sua descoberta. - Taichiro calou-se por um momento. - Mas o perito
também era um homem de letras e, em vez de interromper seu artigo por aí, deu
livre curso à sua imaginação. Vocês já ouviram falar que o príncipe
Arisugawanomiya era profundamente apaixonado pela princesa Kazunomiya,
não? O perito se pergunta se a fotografia que a princesa apertava contra o corpo
não seria a de seu amante em vez de ser a do xogum Iemochi, seu esposo. Ao
sentir a morte se aproximar, não teria ela ordenado em segredo às suas damas de
companhia que a enterrassem junto com a fotografia de seu amante? Não seria
esse um gesto apropriado a essa trágica princesa? Esta é a opinião do perito.
- Hum! Tudo isso é pura fantasia! A fotografia de um amante que, mal tendo
visto a luz do dia, desaparece no espaço de uma noite, isso daria um belo
romance!
- O perito, no seu artigo, afirma que essa fotografia deveria ter sido enterrada
para sempre. Era sem dúvida o desejo da princesa que a forma humana sobre a
placa de vidro desaparecesse no espaço de uma noite.
- É bem possível.
- Um escritor poderia dar vida novamente a essa beleza que se desvaneceu
assim em um instante, sublimá-la e torná-la uma obra de arte. É assim, em todo
caso, que termina o artigo. Isso não lhe parece tentador, pai?
- Mas seria eu capaz? - questionou Oki. - Talvez eu pudesse escrever um
conto começando com a cena das escavações… Mas o artigo desse especialista
não é suficiente?
- Você acha? - Taichiro não parecia convencido. - Eu o li na cama esta manhã
e nas minhas divagações tive vontade de lhe falar a respeito. Você deveria dar
uma olhada agora mesmo. - Ele colocou o boletim sobre a escrivaninha de seu
pai.
- Vou examiná-lo.
Como Taichiro se levantava para sair, Fumiko perguntou: - O que é que
fizeram com o esqueleto da princesa? Eles não o levaram para uma universidade
ou um museu a fim de continuarem suas pesquisas? Isso seria monstruoso!
Espero que eles o tenham enterrado como antes!
- Sobre isso o artigo não fala! Não sei de mais nada, mas creio que
provavelmente foi isso que eles fizeram - respondeu Taichiro.
- No entanto, a fotografia que a princesa segurava em seus braços
desapareceu. Ela deve se sentir bem só.
- É verdade, eu não tinha pensado nisso - disse Taichiro. - Pai, você
terminaria seu conto com uma constatação desse gênero?
- Isso seria cair no sentimentalismo!
Taichiro deixou o escritório sem acrescentar mais nada. Fumiko, por sua vez,
fez menção de sair: - Talvez você queira trabalhar.
- Não. Depois de uma história dessas, preciso andar um pouco. - Oki se
levantou: - Parece que o tempo melhorou.
- Ainda há algumas nuvens, mas depois dessa chuva diluviana o ar deve estar
fresco e agradável - disse Fumiko. - Na saída, dê uma olhada na goteira da
cozinha.
- Você se preocupa em saber se a princesa Kazunomiya não se sentirá muito
só no seu túmulo e, um minuto depois, pede para que eu examine essa goteira!
- Seus tamancos estavam no armário de sapatos, perto da porta de serviço da
cozinha. - Fumiko disse, colocando-os aos pés do seu marido: - Você acha
normal que Taichiro tenha nos contado essa história de túmulo e esteja
preparando uma visita a um outro em Kyoto?
- O que você quer dizer? - Oki estava surpreso. - O que vê de anormal nisso?
Realmente você pula de um assunto para outro!
- De modo algum! Estou pensando nisso desde que ele começou a nos contar
a história da princesa Kazunomiya.
- Mas o túmulo de Sanetaka é muito mais antigo! Data da Era Muromachi…
- Taichiro vai a Kyoto para reencontrar essa moça.
Oki ficou novamente confuso. Fumiko se agachara para apanhar os tamancos
de seu marido, mas no momento em que ele ia calçá-los, ela se ergueu. Seu rosto
ficou bem próximo de Oki, fitando-o por longo tempo.
- Essa moça tem uma beleza diabólica… Você não acha que ela tem alguma
coisa demoníaca?
Oki, que nada revelara a Fumiko sobre a noite passada com Keiko em
Enoshima, não soube o que responder.
- Tenho um mau pressentimento - disse Fumiko, seus olhos sempre fixos nos
de Oki. - Neste verão ainda não tivemos nenhuma tempestade com trovões.
- Aí está você de novo começando a saltar de uma coisa para outra.
- Esta noite, se houver uma tempestade como a de agora, um raio pode muito
bem atingir o avião.
- Que besteira!… Nunca ouvi falar de um avião ter sido derrubado por um
raio no Japão!
Assim que saiu de casa para escapar de sua mulher, Oki se pôs a olhar o céu.
O violento aguaceiro de há pouco não afastara as nuvens carregadas de chuva. O
céu estava baixo.
A umidade, opressiva. Mas, mesmo se o céu encoberto se abrisse, Oki não se
sentiria aliviado. A idéia de seu filho dirigindo-se a Kyoto para encontrar-se com
Keiko o abatia. É claro que ele não podia ter certeza de que fosse esse seu
objetivo, mas desde que Fumiko lhe comunicara, inopinadamente, suas dúvidas,
isso lhe parecera bastante provável.
Ao deixar seu escritório para passear, Oki pensara em ir a um desses velhos
monastérios tão numerosos em Kamakura, mas a singular observação de sua
mulher o fez renunciar a esse projeto. A perspectiva dos túmulos que ele não
deixaria de ver já não lhe agradava. Em vez disso, escalou uma pequena colina
repleta de árvores, próxima à sua casa. O ar estava impregnado do perfume da
terra e das árvores depois da chuva. E, à medida que desaparecia inteiramente
detrás das folhagens, a lembrança do corpo de Keiko se avivou em seu espírito.
O que ele viu em primeiro lugar, e de modo bastante nítido, foram os seios
da jovem. Os mamilos eram rosados, de um rosa quase transparente. Algumas
japonesas, apesar de pertencerem à raça dita amarela, têm uma pele mais clara,
mais brilhante e ainda mais delicada do que muitas mulheres ocidentais. O rosa
dos seus mamilos possui então um tom indescritível que não se encontra em
nenhuma outra parte. Keiko não tinha uma pele assim tão clara, mas os bicos
róseos de seus seios pareciam frescos e levemente umedecidos, fazendo pensar
em botões de flor que haviam desabrochado contra o seu peito cor de trigo
maduro. Nenhuma pinta e nenhuma ruga pequenina enfeiavam sua pele e cada
seio era de tamanho perfeito.
Mas não fora somente por causa de sua beleza que Oki se lembrara dos seios
de Keiko. Se, em Enoshima, a jovem consentiu em deixá-lo acariciar seu seio
direito, ela lhe negou que fizesse o mesmo com o esquerdo. Quando Oki tentou
tocá-lo, Keiko o escondeu com força atrás da palma de sua mão e, quando ele
agarrou sua mão para afastá-la, ela se contorceu como que prestes a saltar da
cama.
- Não, por favor. Não faça isso… O seio esquerdo não…
- Por quê? - Surpreso, Oki suspendeu seu gesto. - O que é que ele tem de
errado?
- A ponta não sai…
- A ponta não sai? - Oki ficou confuso com as palavras da jovem.
- E horrível! Eu o odeio! - A respiração de Keiko continuava desordenada.
Por um momento, Oki não conseguiu compreender o sentido dessas palavras.
O que é que "não saía" no seio esquerdo de Keiko? O que era "horrível"? A
ponta do mamilo era afundada ou seria deformada? Será que Keiko se inquietava
considerando isso uma enfermidade? Ou ele deveria perceber ali o pudor de uma
adolescente que não suportava dois mamilos de tamanhos desiguais? Ele se
lembrou de que, quando a tomara nos braços para estendê-la na cama, Keiko se
enrodilhara sobre si mesma, pressionando violentamente o seio esquerdo na
cavidade do seu cotovelo. Mas tanto antes como depois dessa cena, Oki
observara seus dois seios. Naturalmente, ele não os olhara com intenção de
descobrir qualquer coisa de anormal, mas é óbvio que a menor deformação no
seio esquerdo da jovem ter-lhe-ia chamado a atenção.
Na verdade, nem mesmo quando arrancara à força a mão de Keiko, ele
notara algo de anormal no seu mamilo esquerdo. Examinando-o mais de perto,
pareceu-lhe apenas um pouco menor que o mamilo direito. Numa mulher, essa
leve diferença não apresentava nada de extraordinário. Como explicar então a
ansiedade de Keiko em escondê-lo?
O mistério que a jovem fazia, assim como sua recusa, aumentou ainda mais o
desejo de Oki de acariciar esse seio. Ele insistiu.
- Há alguma pessoa em especial que você deixe tocá-lo?
- Não. Não há ninguém - disse Keiko, sacudindo a cabeça. Os olhos grandes
bem abertos, ela encarou Oki fixamente. Se bem que o rosto de Keiko estivesse
afastado demais para que ele pudesse ter certeza, pareceu-lhe que seus olhos
estavam marejados de lágrimas e que uma certa tristeza ali pairava. Certamente
não era o olhar de uma mulher acariciada por um homem. Embora Keiko tivesse
fechado os olhos e se resignado a deixar Oki acariciar seu seio esquerdo, ela
parecia ausente. Se não havia rugas de dor ou desgosto vincando seu semblante,
seu rosto, todavia, empalidecera. Oki notou isso e afrouxou seu abraço, mas o
corpo de Keiko começou então a ondular e a se torcer como se alguém lhe
fizesse cócegas. As mãos de Oki tornaram-se mais insistentes.
Seria possível que o seio esquerdo da jovem estivesse ainda intacto enquanto
o direito já tivesse perdido sua inocência? Oki percebeu que as sensações de
Keiko variavam conforme ele acariciava o seio esquerdo ou o seio direito. Não
conseguia compreender por que Keiko dissera "é horrível!", referindo-se a esse
seio esquerdo. Essa era uma observação bastante ousada para uma jovem que se
entregava a ele pela primeira vez. Mas quem sabe fosse mais apropriado
enxergar aí o artifício de uma jovem particularmente astuciosa? Em presença de
uma mulher cujas sensações variam conforme se acaricie um ou outro de seus
seios, qualquer homem se sentiria seduzido e estimulado. Mesmo que ela tivesse
nascido assim e não houvesse nada a fazer a respeito, a própria anomalia apenas
excitaria ainda mais um homem. Oki jamais encontrara uma mulher cujos seios
tivessem sensibilidades tão diversas.
É claro que cada mulher difere das outras quanto à maneira como prefere ser
acariciada. Não seria este também o caso de Keiko, embora sua reação tivesse
sido excessiva?
De maneira geral, as preferências de uma mulher são na verdade as de seu
amante e não passam do resultado dos hábitos e manias dele. Assim, o mamilo
esquerdo de Keiko, privado de toda a sensibilidade, representava um alvo
particularmente sedutor para Oki. Essa diferença de sensibilidade entre os dois
seios de Keiko devia-se, sem dúvida, a um amante inexperiente. Se era esse
efetivamente o caso, o seio esquerdo da jovem permanecia ainda virgem. Esse
pensamento não deixava de excitar Oki.
Mas levaria algum tempo para tornar esse seio sensível, e Oki não estava
seguro de rever Keiko no futuro.
Todavia, ele se mostrara estúpido obstinando-se em fitar o mamilo esquerdo
da jovem, quando lhe fazia amor pela primeira vez. Renunciando a seu projeto,
ele buscou os lugares onde a jovem gostava de ser acariciada. E os encontrou. E
então, quando começou a se comportar com mais ousadia, ele a ouviu gritar o
nome "Otoko!". Ele recuou bruscamente e Keiko o empurrou para longe. Em
seguida afastou-se dele, levantou-se retificando sua postura e, diante da
penteadeira, pôs em ordem os cabelos desfeitos. Oki não tivera força de olhar em
sua direção.
À medida que a chuva caía com mais violência, um sentimento de solidão
tomou conta de Oki. A solidão parecia ir e vir a seu bel-prazer. Keiko retornou
ao seu lado.
- Sr. Oki, não quer passar o braço em volta do meu pescoço e dormir? - disse
ela carinhosamente, examinando seu rosto.
Sem dizer uma palavra, Oki passou o braço esquerdo em volta do pescoço da
jovem. Recordações de Otoko afloravam sem cessar ao seu espírito. No entanto,
fora Keiko que se aproximara dele. Alguns instantes depois, Oki rompeu o
silêncio.
- Estou sentindo seu perfume.
- Meu perfume…
- Um perfume de mulher.
- E mesmo? É por causa do calor e da umidade… Perdoe-me!
- Não, o calor e a umidade não têm nada a ver com isso. É um delicioso
perfume de mulher…
O perfume que Oki respirava era aquele que se desprendia naturalmente da
pele de uma mulher abraçada a seu amante. Todas as mulheres exalam esse
perfume, até mesmo as adolescentes. Ele tinha não só um efeito estimulante
sobre um homem como também o tranqüilizava e satisfazia. Ele não traía
também, de alguma forma, o desejo da mulher?
Sem confessar abertamente o que se passava em seu pensamento, Oki
pousou a cabeça sobre o peito de Keiko para que ela compreendesse que ele
gostava do odor que se desprendia de seu corpo. Fechou docemente os olhos e lá
ficou, envolto no perfume da moça, No bosque, quando a memória de Keiko nua
se impôs com força a seu espírito, foi ainda a imagem dos seios da jovem a
última a desaparecer de sua visão. Na verdade, ela não desapareceu, mas se
manteve diante dele com todo o seu frescor e toda a sua pureza.
- Não devo deixar que Taichiro se encontre com ela! - irrompeu Oki
categoricamente. - Não devo deixá-lo!
Agarrou com todas as forças um arbusto a seu lado.
- Mas o que é que posso fazer? - Sacudiu o tronco do arbusto. As gotas de
chuva que ainda estavam suspensas nas folhas respingaram em sua cabeça. O
chão estava tão úmido que as extremidades de suas meias ficaram molhadas. Oki
lançou um olhar às folhas verdes que o rodeavam por todos os lados. Esse verde
que o envolvia o oprimiu subitamente.
Para impedir que seu filho se encontrasse com Keiko em Kyoto, Oki só via
uma solução: contar-lhe que havia passado a noite com ela em Enoshima. Senão,
talvez pudesse enviar um telegrama a Otoko ou mesmo a Keiko. Oki apressou-se
em voltar para casa.
- Onde está Taichiro…? - perguntou a Fumiko.
- Foi para Tóquio.
- Para Tóquio? Já? Mas seu avião só vai partir à noite! Acha que ele voltará
para casa antes de partir?
- Não. Como seu avião parte de Haneda, isso o obrigaria a fazer um desvio.
Oki ficou calado.
- Ele me disse que estava saindo cedo para passar na universidade antes de
seu vôo. Queria pegar alguns documentos na sala de pesquisa…
- Será mesmo?
- Mas o que é? Você não está se sentindo bem?
Oki evitou o olhar de Fumiko e entrou no escritório. Ele não falara a Taichiro
nem enviara o telegrama a Otoko ou a Keiko.
Taichiro tomou o avião das sete horas para Kyoto. Keiko o esperava no
aeroporto de Itami.
- Estou confuso… - Taichiro saudou a moça com embaraço. - Não imaginava
que você viria me esperar no aeroporto.
- Você não me agradece?
- Obrigado. Não devia ter-se incomodado.
Keiko notou o olhar vivo do rapaz e baixou delicadamente os olhos.
- Você veio de Kyoto? - perguntou Taichiro ainda pouco à vontade.
- Sim - respondeu Keiko com voz calma. - É lá que eu moro, não? De onde
mais poderia ter vindo senão de Kyoto?
- É verdade! - Taichiro riu e seu olhar deparou com o obi da jovem.
- Você é tão deslumbrante! Custo a crer que veio até o aeroporto para me
encontrar.
- Você está falando do meu quimono…?
- Sim, do seu quimono, do seu obi e de… - Dos seus cabelos, de seu rosto,
Taichiro gostaria de acrescentar.
- No verão, sinto menos calor se uso um quimono apropriado e se meu obi
está amarrado de modo correto. Não gosto de roupas frouxas quando faz calor.
O quimono e o obi de Keiko pareciam muito novos.
- E também prefiro as cores discretas, no verão. Como este obi, está vendo?
Keiko caminhava quase colada a Taichiro enquanto ele se dirigia lentamente
para a ala das bagagens. Ela disse: - Este obi, fui eu mesma que o pintei.
Taichiro voltou-se para ver: - Na sua opinião, o que é que isso representa? -
perguntou Keiko.
- Vejamos… Água? A correnteza de um rio?
- É um arco-íris. Um arco-íris sem cores… Somente linhas ondulantes mais
ou menos sombrias conforme o nanquim. Ninguém consegue compreender do
que se trata e, no entanto, meu corpo está envolto num arco-íris de verão. Um
arco-íris que se ergue acima das montanhas, no crepúsculo. - Keiko deu uma
volta e exibiu a Taichiro as costas do seu obi de seda. Sobre o grande laço
bufante via-se uma cadeia de montanhas e a nuance alaranjada e delicadamente
esfumada de um céu crepuscular.
- A frente e as costas não combinam. Foi uma moça extravagante que pintou
este obi, por isso ele é bizarro - prosseguiu Keiko, as costas voltadas para
Taichiro, que não conseguia despregar os olhos da combinação entre o tom
alaranjado e a cor da pele do delgado pescoço de Keiko, que salientava ainda
mais seus negros cabelos erguidos.
Um serviço de táxi comandado pela companhia aérea estava à disposição dos
passageiros com destino a Kyoto. Quatro passageiros lançaram-se
precipitadamente no primeiro táxi e, enquanto Taichiro hesitava quanto à
conduta a seguir, um segundo carro chegou e Keiko e ele puderam entrar
sozinhos. Assim que o táxi deixou o aeroporto, como se o pensamento lhe
tivesse ocorrido subitamente, Taichiro disse: - Você certamente não teve tempo
de jantar, vindo me apanhar numa hora dessas!
- Você continua a me tratar como a uma estranha! Eu nem sequer tive
vontade de almoçar. Comerei alguma coisa com você quando estivermos em
Kyoto. - Em seguida Keiko acrescentou como num murmúrio: - Você sabe, eu o
observei quando descia do avião. Você foi o sétimo a sair.
- O sétimo…?
- Sim, o sétimo - repetiu Keiko de maneira bem clara. - Você fitava a ponta
dos seus sapatos quando estava descendo do avião. Nenhuma vez você olhou na
minha direção.
Se você imagina que alguém o está esperando, não é normal que o procure
com os olhos…? Mas você andava com a cabeça baixa, o ar ausente. Senti tanta
vergonha de ter vindo esperá-lo que tive vontade de me esconder!
- Não imaginava que você viria ao aeroporto de Itami.
- Nesse caso, por que me mandou uma carta anunciando a hora da chegada
de seu avião?
- Suponho que era para lhe dar a prova de que eu viria mesmo a Kyoto.
- Sua carta era tão sumária quanto um telegrama! Nada além da hora da
chegada do avião! Eu me perguntei se você não estava querendo me pôr à prova
e saber se eu viria ou não esperá-lo em Itami. De qualquer modo, eu vim.
- Pôr você à prova… Se tivesse sido essa a minha intenção, eu não a teria
buscado com os olhos entre a multidão ao descer do avião?
- Na sua carta, você não dizia o nome do seu hotel em Kyoto. Se eu não
viesse ao aeroporto, como faríamos para nos encontrar?
- Para falar a verdade… - balbuciou Taichiro -, eu só quis informá-la da
minha vinda a Kyoto.
- Não gosto disso!… Não entendo o que você tem em mente!
- De qualquer forma, tinha intenção de lhe telefonar.
- E se não telefonasse, retornaria a Kamakura do mesmo jeito como saiu de
lá? Você queria simplesmente que eu soubesse que você estava aqui? Enviando
essa carta, você estava querendo zombar de mim, me humilhar, estando em
Kyoto e não se dignando a me ver…?
- Não, se eu lhe enviei essa carta era para me dar coragem de reencontrar
você.
- Coragem de me reencontrar…? - Em sua surpresa, a voz de Keiko não
passava de um doce murmúrio. - Posso me alegrar ou devo, ao contrário, me
entristecer?
Taichiro se calou.
- Inútil me responder. Quanto a mim, estou feliz de ter vindo. Mas não é
preciso coragem para se encontrar com uma moça como eu… Às vezes, me
acontece de ter uma terrível vontade de morrer. Você pode me bater, me pisotear,
não se incomode!
- O que a leva a dizer uma coisa dessas tão repentinamente?
- Não é assim tão repentinamente! Esse é o tipo de moça que sou! Preciso de
alguém capaz de destruir meu orgulho!
- Receio que não seja da minha natureza ferir o orgulho de ninguém.
- É essa realmente a impressão que você me dá, mas isso não pode continuar
assim… Vamos, jogue-me a seus pés com todas as suas forças!
- Por que está dizendo essas coisas?
- Não sei… - Com a mão, Keiko cobriu levemente seus cabelos para protegê-
los do vento que entrava pela janela do táxi. - Talvez porque eu esteja infeliz…
Agora mesmo, quando desceu do avião, você tinha um ar tão melancólico, a
cabeça baixa, enquanto se dirigia à sala de espera. Tinha alguma razão para estar
triste? Eu vim buscá-lo, eu o esperei, mas era como se eu não existisse para
você!
De fato, fora pensando em Keiko que Taichiro se dirigira à sala de espera.
Mas ele não podia confessar-lhe isso.
- Mesmo esse pensamento me deixa infeliz. Porque sou egoísta… O que
devo fazer para que você tome consciência da minha existência?
- Penso em você sem parar. - A voz de Taichiro se endurecera. - Neste
momento mesmo, por exemplo…
- Neste momento mesmo… - murmurou Keiko. - Neste momento mesmo, é
em mim que você está pensando. É estranho estar assim a seu lado. É tão
estranho que acho que vou me calar e ouvir você falar…
O táxi ultrapassou as novas usinas de Ibaraki e de Takatsuki. Das colinas de
Yamazaki surgiu diante deles, violentamente iluminada, a destilaria de uísque
Suntory.
- O avião não balançou muito? - perguntou Keiko. - Tivemos um aguaceiro
violento durante a tarde em Kyoto. Fiquei preocupada com você.
- Não, mas houve um momento em que pensei que iríamos bater. Olhando
pela janela, pensei que o avião fosse se chocar contra as montanhas escuras que
barravam a passagem.
A mão de Keiko procurou a do rapaz.
- Mas aquilo que eu tomara por montanhas eram, na realidade, nuvens
negras! - disse Taichiro. Sua mão permanecia imóvel sob a de Keiko. Durante
algum tempo a mão da moça também não se mexeu.
O táxi entrou em Kyoto. Virou para o leste, em direção à Quinta Avenida.
Nenhum sopro de vento agitava os ramos dos salgueiros, mas o aguaceiro
parecia ter trazido um pouco de frescor. Longe, do outro lado das fileiras de
chorões que margeavam as ruas largas mergulhadas na obscuridade, estavam as
Colinas do Leste. A linha das colinas não se destacava contra o céu baixo e
encoberto. No entanto, aqui, no lado oeste da cidade, Taichiro já podia sentir a
atmosfera de Kyoto.
O táxi dirigiu-se para Horikawa e os deixou na rua Oike, diante dos
escritórios da Japan Air Lines.
Taichiro reservara um quarto no hotel Kyoto.
- Vou deixar minha bagagem no hotel. Vamos a pé, fica a dois passos daqui -
disse ele.
- Não, não! - Keiko sacudiu a cabeça. Subiu novamente no táxi que os
esperava e insistiu para que Taichiro fizesse o mesmo.
- Leve-nos a Kiyamachi. Fica logo acima da Terceira Avenida - disse ela ao
motorista.
- No caminho, pare um momento no hotel Kyoto - pediu Taichiro. Mas
Keiko cortou-lhe a palavra: - Não é necessário parar no hotel. Leve-nos
diretamente a Kiyamachi, por favor.
Taichiro ficou surpreso ao ver que o táxi entrou numa viela estreita e os
deixou na entrada de uma pequena casa de chá de Kiyamachi. Foram conduzidos
a um pequeno aposento que dava para o rio Kamo.
- Que linda vista! - Taichiro não conseguia despregar os olhos do rio. -
Keiko, como você conhece este lugar?
- Minha professora tem o costume de vir aqui.
- Sua professora? Quer dizer, a srta. Ueno? - Taichiro voltou-se para ela.
- Sim, a srta. Ueno. - Com essas palavras, Keiko se levantou e deixou a sala.
"Será que ela foi pedir o jantar?", perguntou-se Taichiro. Cinco minutos depois,
a moça estava de volta. Ela se sentou e disse: - Se você não se incomoda,
gostaria que você ficasse aqui. Acabo de telefonar para o hotel cancelando sua
reserva.
- Como? - Taichiro fitou a moça, estupefato. Keiko baixou os olhos
docilmente.
- Perdoe-me. Queria que você se hospedasse em algum lugar que conheço.
Taichiro não soube o que responder.
- Por favor, fique aqui. Você só estará em Kyoto por dois ou três dias, não é?
- Sim.
Keiko ergueu os olhos. Suas lindas sobrancelhas, suas linhas regulares que
nenhum lápis retocara davam a seus olhos sombrios e intensos um ar de
inocência. Elas pareciam ligeiramente mais claras do que seus cílios. Keiko
passara apenas uma leve camada de batom pálido sobre os lábios
maravilhosamente desenhados e cuja forma era incrivelmente perfeita. Ela não
parecia estar usando nem base nem ruge nas faces.
- Basta! Por que está me olhando assim? - disse Keiko, piscando os olhos.
- Seus cílios são tão longos…
- Não são postiços! Puxe-os e verá!
- Para ser bem franco, tenho mesmo vontade de pegá-los com os dedos e
puxá-los!
- Então faça isso, eu não me incomodo… - Keiko fechou os olhos e
aproximou seu rosto. - Talvez eles pareçam tão longos porque são curvos.
Keiko esperava, o rosto imóvel, mas Taichiro não ousou agarrar os cílios
com os dedos.
- Abra os olhos. Olhe um pouco mais para o alto e abra bem os olhos. -
Keiko fez o que Taichiro pedia.
- Você quer que eu olhe diretamente nos seus olhos, Taichiro…?
Uma moça trouxe saque, cerveja e aperitivos.
- Prefere saque ou cerveja? - indagou Keiko, aprumando-se. - Eu mesma não
bebo.
Os shoji que davam para o terraço estavam cerrados e, embora eles não
pudessem ver o que se passava, parecia que alguns clientes estavam bêbados.
Gueixas e maiko haviam se juntado a eles e todo esse pequeno grupo falava em
voz alta quando, das margens do rio, se fez ouvir o som da pequena guitarra de
braço longo com a qual os músicos ambulantes se acompanham.
Instantaneamente todos se calaram.
- Quais são seus planos para amanhã? - indagou Keiko.
- A princípio, gostaria de visitar um túmulo na montanha, perto do
monastério Nisonin. É um belo túmulo, a sepultura da família Sanjonishi.
- Um túmulo…? Poderíamos visitá-lo juntos. Amanhã, eu gostaria que você
me levasse para um passeio de lancha no lago Biwa. Mas também podemos ir
num outro dia! - disse Keiko, enquanto olhava em direção ao ventilador.
- De lancha? - Taichiro parecia hesitante. - Nunca subi numa lancha, não
saberia guiá-la.
- Eu sei.
- Você sabe nadar, Keiko…?
- No caso de a lancha virar? - disse Keiko, fitando Taichiro. - Você me
ajudaria. Você me ajudaria, não? Eu me agarraria a você.
- Isso é que não! Se você se agarrasse a mim, eu não poderia socorrê-la.
- Mas, então, o que é que eu deveria fazer?
- Eu teria que mantê-la na superfície, segurando-a em meus braços, por
trás… - disse Taichiro, desviando os olhos como se alguma coisa o houvesse
perturbado. Ele se imaginava na água, segurando essa magnífica jovem em seus
braços. Se ele não a apertasse com muita força, as suas duas vidas estariam em
perigo.
- Pouco me importa se a lancha virar! - disse Keiko.
- Não sei se conseguiria salvá-la.
- O que aconteceria, então, se você não conseguisse?
- Quer parar com essa conversa? Esse passeio de lancha me preocupa, é
melhor desistir.
- Claro que não! Nós não vamos naufragar, não há com que se preocupar. Só
em pensar nesse passeio fico tão contente! - Keiko encheu de cerveja o copo de
Taichiro.
- Você não prefere vestir um quimono leve?
- Não, estou bem assim.
Num canto do aposento, um quimono de homem e um quimono de mulher
estavam colocados um sobre o outro. Taichiro evitou olhá-los assim. O que
significava a presença dessa roupa feminina neste quarto reservado por Keiko?
O aposento não dava para um quarto anexo. Taichiro não se sentia com
coragem para se despir diante de Keiko e vestir o quimono.
A moça trouxe a refeição, sem dizer uma palavra e sem lançar um olhar na
direção de Keiko, que também permaneceu calada.
Começaram a distinguir o som de um shamisen45 vindo de um terraço à beira
do rio. Ouviam, sobre os terraços da casa de chá em que se encontravam, as
conversas no dialeto de Osaka, bem como os ruídos dos fregueses embriagados.
O acompanhamento da guitarra e as canções sentimentais dos músicos
ambulantes perdiam-se ao longe.
Da mesinha baixa, no centro do quarto, não conseguiam ver o rio Kamo.
- Ele sabe que você está em Kyoto? - perguntou Keiko.
- Você está falando de meu pai? Sim, ele está a par - respondeu Taichiro. -
Mas ele jamais poderia imaginar que você viria me esperar em Itami e que estou
agora em sua companhia.
- Que prazer isso me dá, saber que você veio me encontrar assim, sem dizer
nada a seus pais…
- Mas não estou tentando esconder nada de meu pai… - balbuciou Taichiro. -
Dou essa impressão?
- Sim, sem dúvida.
- E você, Keiko? A sua srta. Ueno…?
- Eu não lhe disse uma palavra. Mas me pergunto se seu pai e a srta. Ueno
não têm algum pressentimento e não desconfiam um pouco que nós dois estamos
aqui. De resto, isso não me desagradaria…
- Eu não creio. A srta. Ueno não sabe nada a nosso respeito. Keiko, você lhe
disse alguma coisa?
- Eu lhe contei que você me levou para conhecer a cidade quando fui à sua
casa, em Kamakura. E quando lhe disse que o amava, ela empalideceu. -
Taichiro permaneceu calado.
- Você acha que ela pode ficar indiferente quando se trata do filho daquele
que ela amou e que a tornou tão infeliz? Ela não me escondeu o quanto o
nascimento de sua irmã, pouco tempo depois de seu pai tê-la deixado, a
transtornou. - Os olhos negros de Keiko cintilaram e um leve rubor subiu-lhe às
faces.
Taichiro não sabia o que dizer.
- No momento, a srta. Ueno trabalha numa obra que tem como título A
ascensão de uma criança. É uma pintura no gênero dos retratos de Kobo Daishi
menino e que representa um bebê sentado sobre o cálice de uma flor de lótus. A
srta. Ueno me confiou que se tratava de fato de sua filha que nasceu prematura e
morreu antes mesmo de poder se sentar. - Keiko se interrompeu um instante. - Se
essa criança tivesse vivido, ela seria sua meia-irmã e seria mais velha do que sua
irmã caçula.
- Por que está me contando tudo isso?
- Quero vingar a srta. Ueno, eis o motivo.
- Vingá-la de meu pai?
- E me vingar de seu pai… e de você!
Taichiro manejava os talheres com dificuldade e massacrava a truta grelhada
ao sal, disposta à sua frente. Keiko puxou para si o prato de Taichiro e, com
destreza, retirou as espinhas do peixe.
- Seu pai lhe disse alguma coisa a meu respeito?
- Não, nada de especial… Nunca falei sobre você com ele.
- E por quê?
A esta pergunta de Keiko, o rosto de Taichiro cobriu-se de sombras. Pareceu-
lhe que uma mão fria e viscosa lhe tocava o peito.
- Nunca falo de mulheres com meu pai - conseguiu articular.
- De mulheres…? Você disse claramente… de mulheres? - Um sorriso
encantador pairava nos lábios de Keiko.
- Como você espera se vingar de mim, Keiko…? - perguntou Taichiro, a voz
seca.
- Como eu concebo a minha vingança? Mas, se eu lhe dissesse, não haveria
mais vingança… Talvez eu me vingue apaixonando-me por você… - Seus olhos
adquiriram uma expressão distante, como se ela mirasse a estrada que beirava a
margem oposta do rio. - Isso não lhe parece engraçado?
- De jeito nenhum. Então, sua vingança consistiria em se apaixonar por
mim…?
Keiko aquiesceu docilmente, como se se sentisse aliviada.
- É o ciúme feminino! - ela murmurou.
- Ciúme…? Ciúme por quê?…
- Porque ainda hoje a srta. Ueno continua a amar seu pai… porque ela não
sente nenhum rancor por ele, depois de ele tê-la maltratado como fez…
- Keiko, então você ama a srta. Ueno a este ponto?
- Sim. A ponto de querer morrer por ela…
- Não está em meu poder reparar o mal que meu pai fez no passado. Acha
que minha presença a seu lado esta noite tem qualquer vínculo com o passado
comum de meu pai e da srta. Ueno? Na verdade, receio que não seja esse o caso.
- Mas é evidente. Se eu não vivesse com a srta. Ueno, ignoraria até mesmo
sua existência neste mundo. Nós nunca nos encontraríamos…
- Não gosto do seu jeito de pensar. Você, uma moça tão jovem, está sendo
vítima dos fantasmas do passado ao pensar assim. Será essa a razão por que o
seu pescoço é tão fino e, por isso, tão belo…?
- Um pescoço muito fino significa que nunca se amou um homem… Pelo
menos, é o que diz a srta. Ueno. Assim mesmo, eu detestaria ter um pescoço
largo!
Taichiro resistiu à tentação de agarrar o magnífico pescoço da moça.
- Isso é o murmúrio de um fantasma. Você está sendo vítima de uma
bruxaria, Keiko.
- Não. Vítima de meu amor!
- A srta. Ueno ignora tudo a meu respeito, não é?
- Quando retornei de Kamakura, disse-lhe que na minha opinião você devia
ser o retrato de seu pai quando tinha sua idade.
- Isso é ridículo!… - Taichiro se enfureceu. - Não pareço nem um pouco com
meu pai!
- Isso o deixa zangado? Você não quer se parecer com ele, não é?
- Desde que nos encontramos no aeroporto, você não parou de mentir, Keiko.
Você está mentindo a fim de me esconder o fundo do seu pensamento.
- Eu não lhe menti.
- Nesse caso, talvez seja essa a maneira habitual de você se expressar.
- O que você está dizendo é odioso!
- Não foi você que me autorizou a pisar em você?
- Acha que essa é a única maneira de me fazer dizer a verdade? Não menti
para você. Você simplesmente se recusa a me compreender! Não é você que está
dissimulando o fundo de seu pensamento? É por isso que estou infeliz!
- Você está mesmo infeliz?
- Sim. Estou. Ou talvez não, nem sei mais.
- E eu não sei o que estou fazendo aqui com você!
- Você não está aqui porque me ama?
- Sim, mas…
- Mas…?
Taichiro não respondeu.
- Mas o quê? O que está querendo dizer? - Keiko agarrou a mão de Taichiro
entre as suas duas palmas e a sacudiu.
- Você não tocou em quase nada, Keiko - disse Taichiro.
De fato, ela havia comido apenas dois ou três pedaços de dourado cru.
- A noiva também não come na festa de seu casamento!
- Olha só o tipo de coisa que você diz!
- Não foi você o primeiro que começou a falar em comida?
***
ARDORES DO VERÃO
Otoko era o tipo de pessoa que costumava perder peso durante o verão.
Em Tóquio, quando ainda era menina, ela não se inquietava com essa perda
de peso e quase não a percebia. Só se deu conta disso lá pelos 22 ou 23 anos,
quando já havia se mudado para Kyoto. Fora sua mãe que a alertara sobre o fato.
- Você também emagrece no verão, não é? Herdou isso de mim - disse-lhe
ela. - Nós temos os mesmo pontos fracos. Eu achava que você tinha um
temperamento muito vigoroso, mas, fisicamente, você é bem minha filha. Não
há o que discutir.
- Não tenho um temperamento vigoroso!
- Você tem um temperamento violento.
- De jeito nenhum!
Sem dúvida, a mãe de Otoko, ao falar em "temperamento vigoroso" ou
"violento", pensava no relacionamento de sua filha com Oki. Mas não seria mais
correto discernir aí o ardor de uma jovem a quem o amor fizera perder a cabeça?
Elas haviam se mudado para Kyoto a fim de que Otoko esquecesse a sua dor,
e sua mãe, por precaução, preferiria que nem uma nem outra jamais mencionasse
o nome de Oki. Mas naquela cidade estranha onde não conheciam ninguém e
onde ninguém, além delas mesmas, podia consolar seus dois corações magoados,
elas não conseguiam deixar de notar que Oki estava sempre presente em seus
pensamentos. Para sua mãe, Otoko era como um espelho onde se refletia a
imagem de Oki, e Otoko via sua mãe como um segundo espelho refletindo a
mesma imagem. E por sua vez os dois espelhos lhes devolviam as suas imagens
recíprocas.
Um dia, escrevendo uma carta, Otoko abriu o dicionário e seu olhar caiu
sobre o caractere chinês que significa "pensar". Enquanto lia os outros sentidos
desse caractere, que também pode significar "pensar muito em alguém", "não
conseguir esquecer" ou ainda "estar triste", ela sentiu seu coração se comprimir.
Não lhe era nem mais possível consultar um dicionário; até mesmo ali ela
reencontrava Oki. Inúmeras palavras levavam-na a pensar nele. Para Otoko,
relacionar tudo o que via e tudo o que ouvia a Oki era nada menos do que estar
viva. Se ainda possuía alguma consciência de seu corpo, era certamente porque
Oki o havia abraçado e amado.
Otoko compreendia perfeitamente que sua mãe desejasse vê-la esquecer Oki.
Era o único desejo dessa mulher solitária, sem outros filhos. Mas Otoko, ela
mesma, não desejava esquecer. Não que ela não pudesse, mas porque não queria.
Ela parecia se agarrar à memória que guardava de Oki, como se viver sem ela
lhe fosse impossível.
Se, aos dezessete anos, ela pudera deixar a clínica psiquiátrica e seu quarto
com grades de ferro na janela, não fora de forma alguma porque sua paixão por
Oki tivesse esmorecido, mas porque lhe parecia que esse sentimento tinha se
enraizado nela de uma vez por todas.
Um dia em que Oki fazia amor com ela, Otoko havia gemido de dor e lhe
suplicara que parasse. Oki relaxou o abraço e ela abriu os olhos. Suas pupilas
escuras brilhavam em meio a uma neblina de lágrimas.
- Não estou vendo seu rosto, meu menino. Está tão borrado como se
estivesse debaixo d'água. - Mesmo numa hora dessas, ela chamava Oki de "meu
menino".
- Sabe, se algum dia você morrer, não vou poder continuar vivendo. É
verdade, não poderei mais. - Lágrimas brilharam nos cantos de seus olhos. Não
eram lágrimas de tristeza que os inundavam, e sim de alívio.
- Mas, se você morrer, não haverá mais ninguém para se lembrar de mim -
disse Oki.
- Se o homem que amo morrer, não suportarei continuar viva me lembrando
dele. Não suportarei. Prefiro morrer. Você não me impediria, não é? - Otoko
afundou o rosto no pescoço de Oki e sacudiu a cabeça.
Oki ficou em silêncio por algum tempo, pensando que aquilo não passava de
bobagens de uma menina enamorada, depois disse: - Se alguém apontasse o
revólver para mim ou me ameaçasse com uma faca, suponho que você não
hesitaria em se colocar à frente para me proteger.
- É claro que não. Ficaria contente em dar minha vida por você…
- Não é nisso que estava pensando. Se eu me encontrasse subitamente em
perigo, você me defenderia imediatamente, sem sequer pensar? Você viria em
meu socorro sem a menor hesitação?
Otoko aquiesceu.
- Sim…
- Nenhum homem faria isso por mim. Somente uma menininha como você
me protegeria, pondo sua vida em perigo!
- Não sou uma menininha! Não sou uma menininha! - repetiu Otoko.
- O que é que já não é mais tão pequenino em você…? - disse Oki, buscando
os seios da moça.
Oki pensava na criança que Otoko estava esperando. Se ele próprio viesse a
morrer subitamente, o que aconteceria com essa criança e sua mãe? Mas disso
Otoko só soube mais tarde, lendo Uma garota de dezesseis anos.
Quando sua mãe observara que ela emagrecia durante o verão, não quisera
ela, desse modo, insinuar que não era mais a lembrança de Oki que fazia sua
filha perder peso?
Otoko, apesar de sua constituição delicada, seus ombros caídos e sua
ossatura delgada, nunca estivera gravemente doente. É claro que, após o parto
prematuro, a separação de Oki, o malogrado suicídio, a internação numa clínica
psiquiátrica, ela emagrecera muito e se tornara fraca - seus olhos adquiriram um
brilho de uma intensidade anormal. Entretanto, seu corpo se recuperara bem
antes de seu coração. Dado o próprio vigor de seu corpo jovem, Otoko quase
chegava a considerar deslocada a dor indizível que seu coração continuava a
experimentar. Ninguém perceberia sua tristeza se não houvesse, nos momentos
em que ela pensava em Oki, tamanha melancolia em seus olhos. Mas essa
sombra de melancolia que se entrevia em seu olhar, e que não era sequer o
desejo de ser amada, fazia com que parecesse ainda mais bela aos olhos dos
outros.
Desde criança Otoko sabia que sua mãe perdia peso no verão. Gentilmente
ela lhe enxugava as costas e o peito encharcados de suor, compreendendo que a
magreza da mãe, embora ela nada falasse, devia-se ao fato de ela não suportar o
calor. Mas Otoko, sem dúvida por ser ainda tão jovem, não chegara a notar que
apresentava a mesma disposição de sua mãe, senão quando ela lhe chamara a
atenção para o fato. Otoko, mesmo antes dos vinte anos, já devia ter tendência a
perder peso quando o verão era demasiado quente.
A partir dos 25 anos, ela não usava mais nada além do quimono; desse modo
sua magreza se tornava menos visível do que se vestisse saia ou calça. Mesmo
assim sua magreza era bastante evidente em algumas partes do corpo. A Otoko,
essa perda de peso recordava sua mãe, morta já há algum tempo, de quem
herdara essa particularidade.
Com o passar dos anos, Otoko parecia emagrecer ainda mais e suportar
menos ainda as altas temperaturas do verão.
- Que remédio eu poderia tomar para resistir melhor ao calor? Vejo muitos
anúncios nos jornais, mas há algum em especial que você me recomendaria? -
perguntou um dia à sua mãe.
- Todos esses remédios são mais ou menos eficazes - ela respondeu de
maneira evasiva. Permaneceu calada por um instante e prosseguiu num tom
diferente: - Otoko, o melhor remédio para uma mulher é o casamento.
Otoko não respondeu.
- O homem é o remédio que dá vida às mulheres. Todas as mulheres deviam
tomar esse remédio!
- Mesmo se for um veneno…?
- Mesmo assim. Você, Otoko, tomou um veneno sem saber, e ainda hoje não
tem consciência disso. No entanto, existe um antídoto. Às vezes, é preciso um
segundo veneno para curar o primeiro. Mesmo que o remédio seja amargo, feche
os olhos e engula-o sem pensar. Pode ser que lhe dê enjôo ou então que não
consiga fazê-lo descer pela garganta…
A mãe de Otoko morreu sem que a filha tomasse o remédio que ela lhe havia
prescrito. Foi sem dúvida alguma sua maior tristeza. Otoko, como havia dito sua
mãe, nunca considerara Oki um veneno. Mesmo em seu quarto de doente com
grades na janela, ela não experimentara nem uma vez o sentimento de raiva ou
de ressentimento para com ele. Seu amor apenas a fizera perder a cabeça. O
veneno que havia ingerido na esperança de se matar fora, num átimo,
cuidadosamente retirado de seu corpo, sem que dele restasse o menor vestígio.
De seu corpo também haviam se retirado Oki e a criança que ela tivera com ele,
mas as cicatrizes deixadas por eles teriam mais cedo ou mais tarde de
desaparecer também. Mas o amor de Otoko por Oki não apenas não se havia
dissipado como nada perdera de sua intensidade.
Passara o tempo. Todavia, não passava ele de modo diferente para cada um,
seguindo atalhos diversos? Como um rio, o tempo para o homem às vezes se
escoa rapidamente, às vezes segue ritmos mais lentos. Acontecia também de
nem sequer se escoar, mas permanecer ali a se estagnar. Se o tempo cósmico se
escoa à mesma velocidade para todos os homens, o tempo humano, este varia
conforme cada um. O tempo se escoa de modo semelhante para todos os seres
humanos, mas cada homem se move dentro dele de acordo com um ritmo que
lhe é próprio.
Otoko não tinha mais dezessete anos, mas quarenta. No entanto, como Oki
estivesse sempre presente em seu coração, ela às vezes se perguntava se o tempo,
para ela, não cessara de se escoar e se estagnara. Ou talvez a lembrança de Oki
tivesse se escoado no mesmo ritmo que ela, tal uma flor que fosse levada pela
correnteza de um rio. Otoko, entretanto, ignorava de que maneira o tempo havia
se escoado para Oki. Embora ele não tivesse se esquecido dela, a vida dele
certamente não teria transcorrido seguindo o mesmo ritmo que a dela. O tempo
não se escoa do mesmo modo jamais, nem mesmo para dois amantes; essa é uma
sorte da qual ninguém saberia escapar.
Hoje, como em todas as manhãs, ao despertar, Otoko, com a ponta dos
dedos, massageou levemente a testa e com as mãos acariciou a nuca e as axilas.
Sua pele estava úmida. Pareceu-lhe que a umidade que emanava de sua pele
havia se transmitido ao quimono que usava para dormir e que trocava
diariamente.
Keiko gostava não só desse odor de suor que se desprendia de Otoko como
também da leve umidade que deixava sua pele ainda mais sedosa. Às vezes
sentia vontade de arrancar todas as roupas que cobriam sua amiga. Otoko, por
sua vez, não suportava o cheiro de suor.
Na noite passada, entretanto, Keiko havia voltado para casa depois da meia-
noite e meia e se sentara, pouco à vontade, evitando o olhar de Otoko.
Otoko estava estirada na cama, protegendo-se, com um leque, da luz que caía
do teto. Ela observava os quatro ou cinco esboços pendurados na parede,
representando rostos de criança. Parecia absorvida em sua contemplação e
lançou apenas um rápido olhar para Keiko, dizendo-lhe: - Você está aí? Já é bem
tarde.
Na clínica, Otoko não fora autorizada a ver o bebê prematuro que havia dado
à luz. Tinham-lhe dito apenas que seus cabelos eram negros como carvão.
Quando quisera saber mais e interrogara sua mãe a respeito, ela lhe respondera: -
Era um belo bebê. Parecia-se com você.
Otoko compreendera que sua mãe dizia aquilo para consolá-la. Ela jamais
vira recém-nascidos. Nesses últimos anos, tivera sob os olhos algumas
fotografias de crianças que tinham acabado de nascer e as achara horríveis.
Havia também a fotografia de um bebê ainda ligado à sua mãe pelo cordão
umbilical, e isso parecera a Otoko algo particularmente repugnante.
Assim, Otoko não tinha idéia alguma do rosto e da silhueta que tivera seu
bebê. Ela simplesmente fazia uma certa imagem dele em seu coração. Ela sabia
muito bem que não seria o rosto de sua filhinha morta que ela pintaria em A
ascensão de uma criança e ela não pretendia, de qualquer modo, fazer uma obra
realista. Desejava tão-somente expressar nessa pintura sua dor e sua aflição por
ter perdido a criança. Esse desejo a perseguira durante tantos anos que acabou
por se transformar numa espécie de símbolo do qual sua nostalgia se nutria e
para o qual se voltavam seus pensamentos quando estava triste. Essa obra
também deveria simbolizar sua existência até este dia, assim como toda a tristeza
de seu amor por Oki.
Porém, apesar de todos os seus esforços, Otoko não conseguira retratar um
rosto de criança que correspondesse a todas essas exigências. O Cristo criança
nos braços da Virgem Maria ou os querubins que havia visto tinham, no seu
entender, rostos com traços demasiadamente acentuados, expressões de adultos
falsamente impregnadas de santidade. Otoko não desejava pintar um rosto com
traços tão nítidos e tão marcados, mas um rosto indizivelmente feérico, cuja
alma aureolada não pertencesse nem a este nem ao outro mundo e do qual
emanasse uma impressão de paz e doçura, mas que evocasse, ao mesmo tempo,
uma tristeza infinita. Otoko, porém, não desejava fazer uma obra abstrata.
Se o tratamento do rosto tivesse de responder a tais requisitos, de que
maneira Otoko retrataria o corpo murcho de um bebê prematuro? Como pintar o
fundo e os detalhes secundários? De novo, Otoko folheou álbuns com
reproduções de quadros de Odilon Redon e Chagall. Mas as suaves quimeras
com que sonhava Chagall eram por demais estrangeiras à sua alma asiática para
que ela pudesse se inspirar nelas de uma forma ou de outra.
Uma vez mais, foram as antigas pinturas, tão tipicamente japonesas,
representando Kobo Daishi criança que lhe vieram ao espírito. Esses retratos
tinham sua origem numa lenda sobre a vida do santo homem, segundo a qual
Kobo Daishi criança se vira em sonhos sentado sobre uma flor de lótus de oito
pétalas, conversando com o Buda.
Nessas pinturas de estilo convencional, Kobo Daishi mantinha-se sentado
sobre o cálice de uma flor de lótus, o busto bem ereto. Nas pinturas mais antigas,
ele tinha uma expressão distante e severa, mas seus traços se suavizavam e se
tornavam mais encantadores nas obras mais recentes, a ponto de às vezes se
poder confundir a face do santo homem menino com a de uma graciosa menina.
Otoko se perguntou se não fora porque já pensava, no fundo de si mesma, em
A ascensão de uma criança que ela imaginara representar Keiko sob os traços
clássicos de uma Virgem quando, na noite anterior à festa da Lua cheia, a jovem
lhe pedira para fazer seu retrato. Mas, algum tempo depois, uma dúvida brotou
em seu íntimo.
Não era fatal reconhecer na atração que ela experimentava pelos retratos de
Kobo Daishi criança a expressão de um certo narcisismo? Também ela não
desejava que se fizesse seu retrato? Nos traços do santo homem menino, como
nos de uma Virgem, não era uma imagem santificada de si mesma que ela estava
procurando? Essa dúvida a trespassava como uma espada que, contra sua
vontade, ela tivesse afundado no peito com as próprias mãos. Ela não se
esforçou em aprofundar a espada ainda mais em sua carne e acabou por retirá-la.
Mas a espada deixou uma cicatriz que a fazia sofrer de tempos em tempos.
É claro que Otoko não pensava em copiar servilmente as pinturas de Kobo
Daishi menino para fazer o retrato de sua filhinha morta ou o de Keiko.
Entretanto, ela não conseguia afastá-las de sua mente. Os próprios nomes que
havia escolhido para dar a essas obras, A ascensão de uma criança e Retrato de
uma Virgem, eram reveladores nesse sentido; nessas obras, Otoko desejava
purificar, e até mesmo santificar, o amor que sentia por seu bebê e por Keiko.
Ela estava um tanto embaraçada em dar o nome de Retrato de uma Virgem à sua
pintura de Keiko e chegara a provocar a jovem fingindo chamar essa obra de
Abstração para uma jovem pintora, embora ela não pretendesse, de modo algum,
pintar uma obra abstrata. Ela desejava fazer um retrato de inspiração religiosa e
transbordante de amor.
A primeira vez que viera à sua casa, Keiko tomara o retrato que Otoko havia
feito de sua mãe por um sublime auto-retrato. Depois disso, cada vez que seu
olhar pousava sobre o quadro pendurado na parede, Otoko se recordava do
equívoco da jovem e sobretudo de suas palavras. Fora o afeto que Otoko sentia
por sua mãe que a levara a representá-la em plena juventude e no auge de sua
beleza, mas essa escolha não traía igualmente uma certa dose de narcisismo?
Talvez Otoko, acreditando pintar sua mãe, e apesar da grande semelhança entre
as duas, estivesse na verdade fazendo seu auto-retrato.
Uma natureza-morta ou uma paisagem, é desnecessário dizer, são ocasiões
para um pintor expressar seus sentimentos e seu mundo interior. A doçura e a
tristeza indulgente que se manifestavam no retrato que Otoko fizera de sua mãe
não teriam deixado de se manifestar também num eventual auto-retrato de
Otoko. Mas era sobretudo das representações de Kobo Daishi menino que
emanava essa impressão de indulgência. A pintura japonesa clássica conta com
um número impressionante de estupendas obras de inspiração budista, assim
como de magníficos retratos de mulheres. Se Otoko não conseguia afastar de sua
mente as pinturas do santo homem criança era devido à sua graça, bem como à
suavidade à qual se somava um certo sentimento de piedade. Otoko, embora não
fosse uma seguidora de Kobo Daishi, não podia deixar de admirá-las. A própria
doçura desses retratos não fazia senão aumentar sua dor.
Otoko continuava a amar Oki, seu bebê e sua mãe, mas poderia esse amor
permanecer imutável desde o tempo em que haviam sido uma realidade tangível
para ela? Seria possível que o amor que tinha por esses três seres houvesse se
transformado em amor-próprio? Otoko, naturalmente, não estava consciente
dessa transformação. A dúvida havia se insinuado em seu íntimo sem que, no
entanto, ela julgasse necessário averiguar. A morte a havia separado de sua filha
e de sua mãe, a vida a havia separado definitivamente de Oki; no entanto, ainda
hoje, os três viviam dentro dela. Mas, na verdade, era ela que vivia e, com isso,
dava-lhes vida. A imagem que guardava de Oki não era algo estagnado, mas
fluía no mesmo ritmo de sua vida. Hoje, o amor que Otoko tinha por si mesma
conferia às suas recordações uma coloração diversa e as transformava. Jamais
lhe ocorrera até então que as recordações fossem semelhantes a fantasmas e
espectros esfomeados. Sem dúvida era normal que uma mulher, separada de seu
amante aos dezessete anos e tendo vivido até o momento sem amar outro homem
e sem se desposar, encontrasse prazer nas tristes recordações do amor perdido e
que esse próprio prazer acabasse por se revestir de um certo narcisismo.
Não fora também por narcisismo que Otoko havia se afeiçoado à sua pupila
Keiko, apesar de serem ambas do mesmo sexo? Se não fosse esse o caso, Otoko
jamais teria tido a idéia de representar a jovem com os traços de uma virgem, ou,
então, sentada, como o Kobo Daishi, sobre o cálice de uma flor de lótus,
enquanto ela mesma lhe implorava que a pintasse nua. Não estava Otoko
procurando dessa maneira criar uma imagem purificada de si mesma? A menina
de dezesseis anos que amara Oki continuava dentro dela e, ao que parecia, não
cresceria nunca. Otoko, entretanto, ignorava tudo isso e parecia se recusar a
tomar consciência.
Geralmente, após as noites úmidas de Kyoto, Otoko, que era extremamente
sensível à higiene e não tolerava o odor de suor que parecia impregnar suas
roupas, levantava-se da cama imediatamente. Naquela manhã, porém, ela
permaneceu um instante com a cabeça repousada no travesseiro e os olhos
voltados para os esboços de rostos de criança fixados na parede, e que ela
contemplara longamente na véspera. Não obstante seu bebê tivesse vivido sobre
a terra um breve instante, ela queria pintá-lo de algum modo com os traços
espirituais de uma criança que não tivesse nascido nem vivido no mundo dos
homens; por isso esses esboços haviam-lhe causado tantas dificuldades.
De costas para Otoko, Keiko ainda dormia profundamente. Uma leve manta
de linho, que deslizara deixando seu peito descoberto, a envolvia. Ela estava
deitada de lado, as pernas cuidadosamente encolhidas uma sobre a outra e
cobertas até os tornozelos pela manta. Como Keiko se vestia freqüentemente
com quimono, os dedos longos e finos de seus pés não tinham sido comprimidos
em sapatos de salto alto. Eram tão finos, tão alongados e tão diferentes dos seus
que Otoko preferia desviar os olhos.
Mas quando os tomava na mão, ainda sem olhá-los, tinha a impressão de que
eles não pertenciam a uma mulher de sua geração e experimentava, ao tocá-los,
uma sensação tão agradável quanto estranha, como se os dedos do pé de Keiko
não pertencessem a um ser humano.
Ondas de perfume desprendiam-se de Keiko. Era um perfume por demais
embriagador para uma moça da sua idade. Otoko não ignorava que Keiko
costumava usá-lo em ocasiões raras, e espantou-se de que ela estivesse tão
perfumada na véspera.
Quando Keiko chegou em casa depois da meia-noite, não ocorreu a Otoko
perguntar-lhe de onde vinha. Estava naquele momento inteiramente absorvida na
contemplação dos seus esboços de rostos de criança fixados na parede.
Keiko se deitara rapidamente, sem sequer tomar banho, e adormecera quase
de imediato. Mas talvez Otoko tivesse julgado que Keiko estivesse adormecida
porque ela mesma, Otoko, em pouco tempo caíra no sono.
Uma vez de pé, Otoko contornou a cama de Keiko, olhou de relance o rosto
adormecido da jovem e foi abrir as persianas de madeira. Keiko costumava
acordar sempre de bom humor e, nas manhãs em que Otoko se punha de pé antes
dela, pulava da cama para ajudá-la assim que a ouvia abrir as janelas. Mas esta
manhã Keiko sentou-se na cama e ficou a observar a amiga. Quando Otoko já
havia aberto as janelas, afastado os shoji e voltado para o quarto, Keiko disse: -
Desculpe. Não consegui pegar no sono antes das três da manhã… - Levantou-se
e começou a arrumar as roupas de cama de Otoko.
- O calor não deixou você dormir?
- Talvez…
- Não guarde de novo o quimono que usei. Quero lavá-lo.
Com o quimono no braço, Otoko dirigiu-se para o chuveiro. Keiko, por sua
vez, foi até a pia e escovou os dentes às pressas.
- Keiko, você também não quer tomar banho?
- Sim.
- Ontem à noite, parece que você se deitou sem sequer remover seu perfume.
- É mesmo?
- Tenho certeza! - Otoko notou o ar desligado da jovem. - Keiko, onde você
esteve ontem à noite?
Não houve resposta.
- Tome um banho. Você se sentirá melhor.
- Sim, mais tarde.
- Mais tarde? - Otoko a observou.
Quando Otoko saiu do banheiro, Keiko tinha aberto uma das gavetas da
cômoda e estava escolhendo um quimono.
- Vai sair? - indagou Otoko num tom ríspido.
- Vou.
- Tem encontro com alguém?
- Sim.
- Com quem?
- Com Taichiro.
Na hora, Otoko não compreendeu.
- O Taichiro do sr. Oki - acrescentou Keiko, sem a menor hesitação, mas
evitando deliberadamente empregar a palavra "filho".
Otoko não soube o que dizer.
- Ele chegou ontem e fui esperá-lo no aeroporto de Itami. Hoje prometi que o
levaria para conhecer a cidade, a menos que seja ele que me leve a conhecê-la…
Eu não lhe escondo nada, Otoko! A primeira coisa que faremos será ir ao
monastério Nisonin. Há um túmulo na montanha que Taichiro deseja visitar.
- Um túmulo…? Na montanha…? - repetiu Otoko, sem sequer compreender
o que dizia.
- Sim. Segundo ele é o túmulo de um nobre da corte que viveu no século XV.
- Ah!
Keiko despiu o quimono e voltou as costas nuas para Otoko.
- Pensando bem, acho que vou usar mangas compridas sob o quimono.
Parece que ainda fará calor hoje, mas seria inconveniente deixar de usá-lo…
Sem dizer uma palavra, Otoko observou a jovem se vestir.
- Agora, só falta dar o laço no obi… -As mãos atrás das costas, Keiko puxou
o nó com todas as suas forças.
Otoko a observava enquanto ela se maquiava levemente. O espelho devolveu
à jovem a imagem de sua amiga.
- Otoko, não me olhe desse jeito!
Otoko voltou a si e tentou atenuar a expressão severa de seu rosto, mas seus
traços continuaram tensos.
Keiko virou-se para um dos espelhos laterais da penteadeira e, com as pontas
dos dedos, ajeitou uma mecha de cabelos logo acima de sua orelha tão
delicadamente desenhada.
Foi como se, com esse gesto, ela desse o último toque à sua maquiagem. Em
seguida, fez menção de se levantar, mas mudou de idéia e pegou um frasco de
perfume.
- Mas o perfume que você usou ontem à noite ainda nem se dissipou - disse
Otoko, franzindo o cenho.
- Não tem importância.
- Keiko, acho que você está muito irritada. - Otoko fez uma pausa. - Por que
esse encontro?
- Ele me escreveu avisando a hora da chegada de seu avião em Kyoto.
Otoko não respondeu.
Keiko ergueu-se, dobrou apressadamente vários quimonos que havia tirado e
os meteu dentro da cômoda.
- Dobre-os com um pouco mais de cuidado, por favor! - pediu Otoko.
- Está bem.
- Você vai precisar dobrá-los de novo.
- Está bom assim. - Keiko nem sequer se voltou para olhar a cômoda.
- Venha cá, Keiko! - chamou Otoko com voz severa.
Keiko sentou-se diante da amiga e fitou-a diretamente nos olhos. Otoko
desviou o olhar, daí indagou de repente: - Vai sair sem nem tomar o café?
- Vou. Jantei tarde ontem à noite.
- Ontem à noite…!
- É.
- Keiko - recomeçou Otoko -, por que se encontrar com esse rapaz?
- Não sei.
- E você faz questão?
- Sim.
- Então foi você quem quis esse encontro, não foi? Embora os modos de
Keiko não deixassem a menor dúvida nesse sentido, Otoko quisera ainda assim
se certificar.
- Por que isso?
Keiko não respondeu.
- Você tem necessariamente que vê-lo? - Otoko abaixou os olhos. - Preferiria
que você desistisse. Não vá, Keiko!
- Por que não? Isso não tem nada a ver com você, tem?
- É claro que tem!
- Mas, Otoko, você nem sequer o conhece!
- Depois do que se passou em Enoshima, você ainda consegue se encontrar
com esse rapaz?
Otoko reprovava que Keiko, depois de ter passado uma noite em Enoshima
com o pai, agora se encontrasse com o filho como se nada tivesse acontecido.
Mas ela não ousou pronunciar o nome de Oki nem o de Taichiro.
- O sr. Oki é seu antigo amante, mas você nunca conheceu Taichiro e você
não tem nada a ver com ele. Ele é o filho do sr. Oki, só isso - disse Keiko. - Não
é seu filho, Otoko…
Essas palavras feriram Otoko. Trouxeram-lhe à memória o fato de que,
pouco tempo depois da morte de seu bebê, a esposa de Oki dera à luz uma
menina.
- Keiko, você quer seduzir esse rapaz, não é?
- Foi ele que me escreveu anunciando a hora da chegada de seu avião.
- Vocês já são tão íntimos a ponto de esperá-lo no aeroporto e depois
passearem juntos por Kyoto?
- Otoko, não gosto da palavra "íntimos"…
- O que gostaria que eu dissesse? Que você está se "envolvendo" com ele? -
Com as costas da mão, Otoko enxugou o suor gelado que marejava de sua testa
pálida. - Você é monstruosa, Keiko!
Um brilho estranho perpassou os olhos da jovem.
- Otoko, eu odeio os homens!…
- Fique aqui, Keiko! Fique! Se for encontrá-lo, não volte nunca mais para
esta casa!
- Otoko!
Os olhos de Keiko pareciam molhados.
- O que você vai fazer com Taichiro? - As mãos de Otoko tremiam em cima
de seus joelhos. Pela primeira vez, ela pronunciara o nome do rapaz.
Keiko se ergueu.
- Estou indo, Otoko.
- Fique, por favor.
- Otoko, bata em mim! Bata como fez no dia em que fomos ao Templo dos
Musgos!
Otoko não se moveu.
Keiko permaneceu imóvel por um instante, em seguida lançou-se correndo
para fora.
Otoko percebeu então que seu corpo estava encharcado de suor. Continuou
sem se mover, os olhos fixos nas folhas dos bambus no jardim, cintilantes ao sol
da manhã.
Finalmente levantou-se e foi para o banheiro. Devia ter aberto a torneira com
muita força, pois o ruído da água a fez estremecer. Ela a fechou apressadamente,
de modo que desse passagem a apenas um tênue fio de água, e começou a se
banhar. Acalmou-se um pouco, embora continuasse a sentir um peso opaco em
sua cabeça. Passou uma toalha úmida na testa e na nuca.
De volta ao quarto, Otoko sentou-se diante do retrato de sua mãe e dos
esboços de criança. Uma sensação de náusea em relação a si mesma a invadiu. A
raiz desse desgosto estava em sua vida em comum com Keiko, e ele se estendia a
toda a sua existência e fazia dela um ser miserável e desprovido de forças. Por
que vivera até esse dia, por que ainda estava viva?
Otoko teve de repente vontade de chamar sua mãe. Lembrou-se então do
Retrato da velha mãe do artista de Nakamura Tsune46. Fora a última obra desse
pintor antes que ele precedesse sua mãe na morte. O fato de esse retrato de sua
velha mãe ser a última obra do pintor era uma das razões por que Otoko se sentia
tão comovida diante dela. Ela não tivera sob os olhos senão uma reprodução e,
embora fosse difícil julgar sem ter visto o original, esta simples reprodução a
comovera profundamente.
O jovem Nakamura Tsune fizera retratos poderosos e sensuais da mulher que
amava. Empregava bastante vermelho e dizia-se que fora influenciado por
Renoir. Sua obra mais célebre e mais conhecida, o Retrato de Eroshenko,
expressava de maneira quase religiosa, utilizando tons quentes e harmoniosos,
toda a nobreza e melancolia do poeta cego. Sua última obra, o Retrato da velha
mãe do artista, fora, todavia, executada com grande sobriedade, empregando
tonalidades frias e escuras. Via-se uma velha mulher descarnada e macilenta,
sentada de perfil numa cadeira e, atrás dela, à guisa de fundo, uma parede semi-
revestida de lambris. Nessa parede, à altura de seu rosto, fora escavado um nicho
onde havia sido colocada uma jarra de água e, do outro lado da velha mulher, um
termômetro. Otoko ignorava se ele não fora acrescentado pelo artista para efeito
de composição, mas esse termômetro, assim como o rosário que pendia de suas
mãos delicadamente pousadas sobre os joelhos, a tinha impressionado
vivamente. Eles simbolizavam de alguma forma os sentimentos do artista, que
iria preceder sua velha mãe na morte. Talvez fosse esse o sentido desse retrato.
Otoko tirou do armário um álbum com reproduções das obras de Nakamura
Tsune e comparou o Retrato da velha mãe do artista com o retrato que fizera de
sua mãe. Ela, por sua vez, optara por representar sua mãe jovem, apesar de ela já
ter morrido. Além disso, este não fora de modo algum seu último quadro. A
sombra da morte não pairava sobre esse retrato. Não havia nenhum ponto em
comum entre essa obra tipicamente japonesa e o retrato da Nakamura Tsune, que
fora influenciado pela pintura ocidental. No entanto, diante dessa reprodução,
Otoko se deu conta do sentimentalismo que se desprendia do retrato de sua mãe.
Fechou os olhos. Com todas as suas forças, manteve as pálpebras cerradas.
Sentiu como se todo o seu sangue fugisse de seu corpo.
Fora movida por um sentimento de amor para com sua mãe que Otoko
pintara seu retrato. Ela não podia representá-la senão em plena juventude e em
todo o seu esplendor.
Que falta de profundidade e que afetação havia nesse retrato em comparação
com o fervor que emanava da obra de Nakamura Tsune pintada à beira da morte!
Mas a toda a vida de Otoko não faltara, precisamente, profundidade?
Otoko não fizera esse retrato enquanto sua mãe estava viva. Depois de sua
morte, ela se inspirara em uma de suas fotografias. Mas pintara sua mãe ainda
mais bela e mais jovem do que na própria foto. Sabendo o quanto se parecia com
a mãe, aconteceu-lhe de, ao pintar, observar seu próprio rosto no espelho.
Portanto, não era nada surpreendente que uma certa suavidade emanasse desse
retrato; mas, ao mesmo tempo, não era possível detectar nele uma ausência de
alma e de profundidade?
Otoko lembrou-se de que sua mãe nunca mais consentira em ser fotografada
depois que haviam se mudado para Kyoto. Quando do artigo consagrado a
Otoko, um fotógrafo de Tóquio quisera tirar uma foto das duas juntas, mas sua
mãe se recusara. Pela primeira vez Otoko compreendeu que fora a dor que levara
sua mãe a agir dessa maneira.
Ela vivia com sua filha em Kyoto como uma mulher à margem da sociedade
e havia mesmo cortado os laços com seus amigos mais íntimos de Tóquio. Otoko
se sentia igualmente rejeitada, mas na época tinha apenas dezessete anos e sua
solidão e isolamento eram de uma natureza diversa dos que experimentava sua
mãe. Ela também era diferente de sua mãe no que dizia respeito a continuar a
amar Oki, embora seu amor por ele não fizesse mais do que torturá-la.
Comparando assim o retrato que Nakamura Tsune fizera de sua mãe e o que
ela própria pintara, Otoko se perguntou se não deveria fazer um segundo retrato
da mãe.
Keiko fora se encontrar com Taichiro. Para Otoko, era como um abandono.
Tinha a impressão de que nunca mais poderia se ver livre da angústia que nesse
momento a invadia.
Esta manhã, Keiko não pronunciara a palavra "vingança", como fazia
normalmente. Dissera que odiava os homens, mas isso não era algo que devesse
ser levado em consideração.
Ela se traíra ao utilizar como pretexto para não tomar café um jantar tarde da
noite. O que Keiko pretendia fazer ao filho de Oki? O que iria acontecer com
elas e o que iria acontecer com Otoko, que depois de 24 anos ainda vivia
prisioneira de seu amor por Oki? Otoko sentiu que não poderia permanecer
sentada sem fazer nada.
Já que não conseguira impedir Keiko de sair, não lhe restava mais nada senão
correr atrás dela e encontrar Taichiro para alertá-lo. Mas Keiko não dissera onde
Taichiro havia se hospedado e nem onde se encontrariam.
***
O LAGO
CALIGRAFIAS DA AUSÊNCIA