ARTIGO - MORAN-2023 - Educar Crianças e Jovens para Um Bom Uso Do Digital

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Educar crianças e jovens para um bom uso do digital

José Moran
Professor, escritor e pesquisador de projetos educacionais inovadores
Autor do blog Educação Transformadora moran.eca.usp.br

Atualmente, vivemos em um mundo híbrido, fi-digital, com fronteiras mais tênues e crianças e jovens
cada vez mais conectados, também no Brasil. Em 2022, 92% de crianças e adolescentes entre 9 e 17
anos, cerca de 24 milhões, já eram usuários de internet no país, de acordo com a nova edição da TIC Kids
Online Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). 86% possuem perfis em redes sociais. Mais
da metade (56%) das crianças e adolescentes usam a internet sem limitação de tempo determinada
pelos responsáveis.1

Crianças e jovens (entre 11 e 17 anos) passam em média quatro horas por dia no celular, seu
companheiro constante, principalmente nas redes sociais, como o TikTok. Checam o celular em média
100 vezes por dia e recebem centenas de mensagens. O estudo foi conduzido pela Common Sense
Media em parceria com a University of Michigan C.S. Mott Children's Hospital.2

Essa interconexão entre o mundo físico e o digital tem impactos significativos nas vidas de todos,
influenciando a forma como nos comunicamos, trabalhamos, nos relacionamos, informamos,
aprendemos e nos divertimos.

A comunicação tornou-se instantânea e global, permitindo que as pessoas se conectem em tempo real,
independentemente da distância física. O trabalho ficou mais flexível, colaborativo. O entretenimento se
ampliou de forma inimaginável. As compras online cresceram exponencialmente, mas continuamos
valorizando a experiência presencial. O mesmo na educação: há um crescimento dos cursos online,
híbridos, formais e informais, muito mais flexíveis.

A rápida evolução da tecnologia trouxe benefícios significativos, mas também desafios substanciais no
que diz respeito ao desenvolvimento das gerações mais jovens. É extremamente importante que pais e
educadores encontrem caminhos realistas e saudáveis de educar crianças e jovens para que se
desenvolvam plena e equilibradamente em todas as dimensões, que hoje incluem também a digital com
todas as suas possibilidades e desafios.

Visões críticas e otimistas sobre o digital

Críticos, como Nicholas Carr e Sherry Turkle, acreditam que o digital representa uma ameaça existencial
para a humanidade. Eles argumentam que o digital está nos levando a um futuro de isolamento,
alienação e perda de controle sobre nossas próprias vidas.

Pensam também que o avanço da tecnologia digital está trazendo mudanças profundas e muitas vezes
negativas na sociedade. A automação levará à perda massiva de empregos, aumentando as
desigualdades econômicas. Além disso, destacam preocupações sobre privacidade, vigilância em massa,
vício em tecnologia, polarização social e ameaças à segurança cibernética. Há aumento da dependência

1
https://cetic.br/pesquisa/kids-online/
2
https://www.commonsensemedia.org/research/constant-companion-a-week-in-the-life-of-a-young-persons-
smartphone-use
das tecnologias digitais, da disseminação da desinformação e da invasão da privacidade como exemplos
dos perigos do digital.

Os críticos alertam para a possibilidade de um futuro distópico, onde as pessoas perdem o controle
sobre as máquinas, a inteligência artificial toma decisões prejudiciais e as relações humanas são
prejudicadas pela dependência excessiva da tecnologia.

Otimistas, como Marc Prensky e Dan Tapscott, por sua vez, argumentam que as inovações tecnológicas
trazem benefícios significativos, melhorando a eficiência, a comunicação, a educação e a qualidade de
vida em geral. Acreditam que a automação pode criar novas oportunidades de emprego, liberando as
pessoas de tarefas repetitivas para se concentrarem em trabalhos mais significativos e criativos.
Destacam como as tecnologias podem resolver problemas, conectar comunidades e impulsionar a
inovação. Há aumento do acesso à educação e à informação, incremento na participação cidadã e o
desenvolvimento de novas formas de arte e entretenimento como exemplos dos benefícios do digital.

Meu olhar parte de uma perspectiva mais realista, próxima do meio termo entre essas duas posições
extremas. O digital é um ambiente poderoso que pode ser usado para o bem e para o mal. O desafio é
utilizá-lo de forma responsável e ética, de modo a maximizar seus benefícios e minimizar seus riscos.

Benefícios e desafios do digital para crianças e jovens

Alguns benefícios

O digital proporciona um acesso rápido e amplo a uma vasta gama de informações, auxiliando no
aprendizado e na expansão do conhecimento. Plataformas digitais oferecem recursos educativos
interativos, jogos educacionais e aplicativos que tornam o aprendizado mais envolvente e dinâmico.

Crianças e jovens podem se conectar com colegas e amigos em qualquer parte do mundo, facilitando a
troca de experiências e perspectivas.

O uso de dispositivos digitais ajuda a desenvolver habilidades digitais essenciais, preparando as crianças
e jovens para os desafios do mundo moderno. As redes sociais oferecem um espaço crucial para a
expressão da identidade, interesses e criatividade dos adolescentes, contribuindo para o
desenvolvimento saudável de sua autoimagem.

Ferramentas digitais proporcionam um meio para crianças e jovens expressarem sua criatividade através
de criação de conteúdo, arte digital e produção multimídia.

Os jogos online são uma forma popular de entretenimento para crianças, jovens e adultos. Eles
oferecem uma variedade de recursos e experiências interativas e desafios que podem ser muito
atraentes e envolventes.

Recursos digitais podem oferecer suporte a crianças com necessidades especiais, facilitando a
personalização do aprendizado e promovendo a inclusão.

Alguns problemas

Os efeitos não são iguais para todos. Mas há um aumento no tempo de uso principalmente dos
celulares. Muitas crianças estão trocando o mundo real pelo virtual. Hoje os eletrônicos
como tablets e celulares são ofertados para a criança para que ela se distraia. É como uma “chupeta”
digital. Crianças que passam muito tempo em frente às telas podem ter menor tempo para desenvolver
habilidades motoras, linguísticas e cognitivas, como a leitura, brincadeiras ao ar livre e interações sociais
significativas.

Há estudos que apontam que o uso exagerado do digital por crianças e adolescentes pode afetar o
desenvolvimento do cérebro e a concentração. Celulares e outras telas são uma fonte inesgotável
de estímulos rápidos, que liberam dopamina de prazer e satisfação, e de alguma forma favorecem
padrões adictivos e um hábito de selecionar estímulos cada vez mais rápidos e gratificantes3.

Especialistas como David Greenfield, que estudam a internet, afirmam que o atrativo magnético das
redes sociais surge da maneira como o conteúdo atua em nossos impulsos e conexões neurológicas, de
modo que os consumidores acham difícil se afastar do fluxo constante de informações. Uma das tácticas
utilizadas pelos dispositivos é a do "reforço intermitente", que cria a expectativa de que o jovem pode
receber uma recompensa a qualquer momento e ela é imprevisível, assim como uma máquina caça-
níqueis e ao mesmo é personalizada, adaptada aos interesses e gostos de cada um.4

A pressão por respostas rápidas e a sobrecarga de informações podem levar a altos níveis de estresse e
dificuldades para desconectar. O uso excessivo do digital está frequentemente associado a um aumento
nos níveis de ansiedade em diversas situações. As redes sociais, por exemplo, promovem comparações
sociais que podem gerar sentimentos de inadequação, de autoestima, de validação constante, de
sobrevalorizar a realidade dos outros. Além disso, a exposição constante a informações online, muitas
vezes negativas, pode sobrecarregar os indivíduos, aumentando os níveis de estresse e ansiedade.

Crianças e jovens podem ser expostos a conteúdo inadequado, como violência, pornografia ou discurso
de ódio, o que pode prejudicar seu desenvolvimento emocional e psicológico. Podem ficar assustadas,
confusas ou traumatizadas. Em 2022, um canal de denúncia mantido pela SaferNet repassou ao
Ministério Público Federal mais de 100 mil denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil.

O aliciamento de crianças e adolescentes na internet é um fenômeno que se aproveita da vulnerabilidade


emocional e social desses sujeitos, que buscam na rede uma forma de expressão e interação com seus
pares. Muitas vezes, esses jovens não recebem a devida orientação e supervisão dos pais ou responsáveis
sobre os riscos e as consequências de expor suas informações pessoais, imagens e sentimentos a
desconhecidos. Os criminosos se infiltram em grupos, jogos e redes sociais que atraem o público
infantojuvenil e se passam por amigos, confidentes ou admiradores, com o objetivo de seduzir, manipular
e extorquir suas vítimas.”5

3
“Digital dementia in the internet generation: excessive screen time during brain development will increase the
risk of Alzheimer's disease and related dementias in adulthood. Laurie A. Manwell, Merelle Tadros, Tiana Marie
Ciccarelli, Roelof Eikelboom 27 Jan 2022-Journal of Integrative Neuroscience-Vol. 21 1, Iss: 1, pp 28 – 28. Disponível
em https://typeset.io/papers/digital-dementia-in-the-internet-generation-excessive-screen-3a8ek7a4

4
Clinical Considerations in Internet and Video Game Addiction Treatment. Disponível em
https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1056499321000869

5
SILVA, J. R. Aliciamento de crianças e adolescentes na internet: uma análise jurídica e social. São Paulo: Editora
Saraiva, 2023. P. 151.
O ambiente digital pode facilitar o cyberbullying, com crianças e jovens sendo alvos de assédio online, o
que pode ter impactos sérios em sua saúde mental. A exposição constante a padrões de beleza nas redes
sociais pode contribuir para a pressão estética e a comparação social, afetando a autoestima

Também pode levar à dependência, que pode prejudicar o desenvolvimento social, emocional e
acadêmico de crianças e jovens. A dependência aumenta o risco de depressão, ansiedade, fobias; de
obesidade, sedentarismo, problemas de visão, de concentração em outras atividades e de dificuldades
de relacionamento.6

Muitos jogos online adotam modelos freemium, são gratuitos, mas incentivam as compras oferecendo
vantagens (Itens que facilitam a progressão no jogo, roupas ou personagens personalizados...), que criam
desequilíbrios entre jogadores que pagam e os que não pagam, afetando a experiência de jogo. Os
custos associados às compras no jogo podem acumular-se rapidamente. A falta de consciência por parte
dos pais sobre a extensão dessas compras ou políticas de reembolso restritivas também contribuem para
que as crianças gastem mais do que o desejado.

Educar crianças e jovens para um bom uso do digital

Educar as crianças para um bom uso do ambiente digital é um esforço colaborativo entre pais,
educadores e sociedade em geral. A abordagem deve ser holística, abrangendo valores éticos, literacia
digital, supervisão ativa e integração responsável da tecnologia na educação.

Educar crianças sobre o uso saudável dos dispositivos tecnológicos, os impactos das redes sociais na
autoestima e o equilíbrio entre o mundo online e offline. Com essa consciência, eles poderão, com a
ajuda da tecnologia, criar grandes facilidades e avanços a seu favor.

Não existem receitas prontas nem modelos preestabelecidos para lidar com essa geração de nativos
digitais. Educar, tanto em casa como na escola, sempre será uma tarefa que exige paciência, persistência
e consistência, independente da geração. E que não pode ser igual para todos. Cada criança tem suas
peculiaridades. Por isso é importante evitar fazer comparações com as outras.

É essencial estabelecer uma comunicação aberta e honesta. As crianças devem sentir-se à vontade para
conversar sobre suas atividades online, fazer perguntas e buscar orientação sem medo de punição. Os
pais precisam saber negociar e estabelecer regras e limites para garantir o uso equilibrado e saudável
das telas. Isso inclui o tempo que elas podem passar usando dispositivos digitais, os tipos de conteúdo
que podem acessar e as pessoas com quem podem interagir online. A supervisão ativa é necessária,
especialmente para crianças mais jovens. Ferramentas de controle parental podem ajudar a monitorar o
tempo de tela, restringir o acesso a conteúdos inadequados e promover um ambiente digital mais
seguro. No entanto, a confiança mútua e a comunicação aberta são tão importantes quanto os controles
técnicos.

As crianças aprendem observando os adultos ao seu redor. Os pais precisam dar exemplo no uso da
tecnologia de forma responsável. Conversar com os filhos sobre a tecnologia, dos benefícios
(criatividade, conexão, aprendizagem) e dos perigos o uso excessivo, do cyberbullying, do vício em jogos

6
O que você precisa saber sobre dependência tecnológica e tem medo de perguntar
Nicolas de Oliveira Cardoso, Cristiane Flôres Bortoncello. Sinopsys, 2023.
e da exposição a conteúdo inapropriado. As crianças devem compreender a importância do respeito,
empatia e privacidade online, assim como o entendimento de que suas ações digitais têm impactos no
mundo real. Encontrar também momentos para aprender com os filhos. Encorajá-los que nos ensinem
as descobertas deles. Assim vão desenvolvendo sua autoconfiança, especialmente conforme vão
entrando na fase escolar.

Com crianças é importante criar oportunidades de brincar ao ar livre. Crianças precisam de movimento
para brincarem e viverem novas experiências. Priorizar atividades físicas, esportivas ou musicais. O
contato com as artes como a música estimula a criança desenvolver as habilidades cognitivas e auxilia na
sua forma de se comunicar com outras pessoas.

Presença física não é o mesmo que presença emocional. Estar disponível emocionalmente é o que
abastece não somente uma criança, mas qualquer ser humano. Ficar por perto somente de corpo
presente não conecta. O que conecta é estar por perto de corpo e alma, escutar com atenção, olhar nos
olhos, demonstrar desejo de estar por perto.

Além disso, os pais e educadores desempenham um papel crucial como modelos de comportamento. Ao
demonstrar o uso saudável e equilibrado da tecnologia, eles inspiram as crianças a seguirem um
exemplo positivo. Estabelecer limites de tempo, promover o diálogo aberto sobre experiências online e
participar ativamente do mundo digital das crianças são maneiras eficazes de orientá-las.

A literacia digital é outra dimensão fundamental na educação digital. Ensinar as crianças a pesquisar
informações, avaliar fontes, entender a segurança online e proteger sua privacidade são habilidades
essenciais. Ao promover uma mentalidade crítica em relação ao conteúdo digital, as crianças se tornam
mais capazes de distinguir entre informações confiáveis e potencialmente prejudiciais.

Integrar pais e escola na educação digital é importante para garantir que os alunos desenvolvam
habilidades digitais saudáveis e seguras. Ao incorporar ferramentas digitais no processo de aprendizado,
as crianças desenvolvem habilidades práticas, aprendem a resolver problemas e a utilizar criativamente
as tecnologias. Também é muito útil oferecer workshops e palestras educativas para os pais, abordando
temas como segurança online, controle parental e o impacto das redes sociais.

Para saber mais:

BORELLI, Alessandra. Crianças e adolescentes no mundo digital. Orientações essenciais para o uso
seguro e consciente das novas tecnologias. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2022.

OCDE – Santillana. Educación e infancia en el siglo XXI. Bienestar emocional en la era digital

TORRES, Eva. Era Digital: Como educar crianças e adolescentes no uso consciente do celular, internet e
redes sociais? eBook Kindle

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