Notas Da Xicara Maluca - N. D. Wilson

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Copyright @ 2013, de N. D.

Wilson
Publicado originalmente em inglês sob o título
Notes From The Tilt A Whirl
pela Thomas Nelson – uma divisão da HarperCollins Christian
Publishing,
Nashville, Tennessee, 37214, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA MONERGISMO
Centro Empresarial Parque Brasília, Sala 23 SE
Brasília, DF, Brasil – CEP 70.610-410
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2017

1000 exemplares

Tradução: Josaías Cardoso Ribeiro Júnior


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Rogério Portella
Capa: Josaías Cardoso Ribeiro Júnior
Projeto Gráfico e Ilustração: Barbara Lima Vasconcelos

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA
FONTE.
 
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida
Revista Atualizada, salvo indicação em contrário.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wilson, Nathan D.
Notas da xícara maluca: Maravilhe-se de olhos
bem abertos no mundo falado por Deus / Nathan D.
Wilson, tradução Josaías Cardoso Ribeiro Júnior —
Brasília, DF: Editora Monergismo, 2017.
Recurso eletrônico (ePub)
Título original: Notes From A Tilt A Whirl
ISBN ????
1. Criação. 2. Teologia. I. Título.
CDD 231.7
Para minhas irmãs
(que sempre enxergam)
Sumário
Prefácio à edição brasileira
Prefácio
Bem-Vindo
Ingressos, por favor
Personagens reais
Pedras falantes
Hiato de inverno: quebrando os dentes
Desvele o mundo
O Problema do Mal e a inexistência de
Shakespeare: um artigo de Hamlet, príncipe da
Dinamarca
Hiato de primavera: mentiras sobre borboletas
Sua mãe era um lagarto
O problema dos gatinhos: fofura e beleza
Hiato de verão: castelos de areia
Inferno: a conversa final
A história
Gratidão
Sobre o autor
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA
Há diversos tipos de genialidade. Um é o tipo de
gênio que nos desencoraja. Olhamos para sua
aptidão exorbitante e nos vemos incapazes,
pequenos, distantes. Nunca seremos como eles. Até
desanima tentar. Há outro tipo de gênio, entretanto.
O que nos faz querer ser melhores. O que nos
inspira. O que nos faz perceber um tanto
inadequados, mas nos faz aspirar ser cada vez
melhores. Nathan David Wilson é desses. Outro
genial escritor, David Foster Wallace, certa vez
escreveu ao falar sobre o genial tenista Roger
Federer: “Genialidade não é replicável. Inspiração,
entretanto, é contagiosa e multiforme”.
Pois bem. É desses. Ler Nathan Wilson me deixa
inspirado, contagiado. Muitos de nós fomos
inoculados contra a maravilha da vida. Aprendemos
a ver tudo em tons sérios, cinzentos, sóbrios.
Wilson, todavia, insiste em nos mostrar que este
não é um mundo sóbrio. É uma história
impressionante, multicolorida e mais biruta do que
supõe nossa vã filosofia.
Vivo recomendando este livro para todos,
mesmo quando ele não existia ainda em português.
Eu vivia empurrando a ideia de lê-lo mesmo com o
esforço e estranhamento de outra língua. “Mas
sobre o que é o livro?”, sempre me perguntam.
Difícil explicar. Costumo responder algo meio
nebuloso sobre ele versar a respeito de como ver a
vida, o universo e tudo mais, e a referência a
Douglas Adams mais confunde que ajuda. É um
livro que desafia nossa taxonomia literária. Wilson
é mais conhecido por sua (excelente) ficção, e este
livro (bem como sua sequência, Death by Living1)
mostra um pouco sobre como ele vê o mundo, para
que o possamos enxergar como ele. Uma leitura
para açucarar e tingir sua cosmovisão.
Pouco conhecido no Brasil, Wilson é um autor
principalmente de ficção de certo renome nos
Estados Unidos. Em português já temos uma de
suas séries de livros sendo publicados, a trilogia
dos “100 armários”. É uma linha de ficção divertida
e muito instigante, que lida com um mundo
fantástico e repleto de mistérios, mas ao mesmo
tempo amarrado a nosso mundo. Estou louco para
ler suas outras obras. Mal vejo a hora de que minha
filha, ainda pequena, comece a ler seu material.
Quem sabe uma boa editora não publica as outras
obras dele em português, como a série Ashtown
Burials [Enterros em Ashtown]?
Nathan é filho do pastor calvinista Douglas
Wilson, um exímio e imaginativo escritor que por
certo contribuiu bastante para formar seu coração e
mente. Ele escreve tão bem ou melhor que o pai.
Aliás, alguém já comparou o ainda jovem Nathan a
uma espécie de Gilbert K. Chesterton calvinista.
Claro que há um bom caminho ainda a percorrer
para a alcunha ser de fato justa, mas seu estilo e
capacidade de observação de maravilha e
deslumbramento com o ordinário se assemelha
muito à do velho escritor inglês. Douglas Wilson, o
pai, sugere que uma das razões do caráter instigante
da escrita de Nathan é sua capacidade de causar um
estranhamento:
O truque é dizer o que sabemos de modo reconhecível, mas
de forma um pouco diferente, de maneira que nos prenda a
atenção. É como o truque que costumávamos fazer em nós
mesmos quando crianças, quando ficávamos pendurados no
sofá da sala de cabeça para baixo e víamos as coisas todas
invertidas. Lá estavam as velhas coisas conhecidas, mas
invertidas por completo. Estávamos em casa, reconhecendo
tudo, mas ao mesmo tempo tudo era novo.2

As leituras de Nathan Wilson surtem o mesmo


efeito.
Nathan Wilson nasceu em 1978, o mesmo ano
que eu. Isso me assombra. Quão longe estou dos
feitos e da capacidade desse homem! Mas, em lugar
de isso me paralisar, consigo vislumbrar
possibilidades e seguir adiante. Amo lê-lo, pois ele
me faz ver o mundo de um jeito diferente, e me faz
querer crescer em meu deslumbre infantil.
Foram muitas as vezes que citei Wilson no
púlpito. Minhas ovelhas ouviram com paciência
longas citações deste livro imiscuídas em minhas
tentativas de explicar e aplicar o verbo divino. Ele
me ajuda a ver o mundo e as realidades redentoras
com olhos deslumbrados de criança. Percebendo
Jesus e o que ele faz pela ótica de uma criança
maravilhada e um tanto atordoada pelo incessante
girar de uma atração de um parque de diversões.
Aliás, o título do livro é difícil de traduzir. A
ideia do autor é tentar ver o mundo, mas de maneira
fragmentada e atordoante, como na ocasião em que
as pessoas se encontram em um desses brinquedos
de parque de diversões, que gira e gira, estica e
puxa, tonteia e deslumbra. Um movimento de
aparência aleatória, mas que no fundo mantém
padrões escondidos.
Minha filha ama ir ao pequeno parque de
diversões local. Ela conta quase 4 anos; por isso
suas opções de brinquedos são muito limitadas
quanto ao que poderia e gostaria de entrar. Eu sou
limitado em relação ao que minhas costas
aguentam. Mas há alguns brinquedos em que
nossas possibilidades se sobrepõem. Um deles é
uma pequena montanha-russa cujo trem é decorado
em formato de minhoca. Nós o chamamos
singelamente de minhoca-russa. A queda é de
meros 2 metros, mas para minha filha é como se
abrissem o chão e caíssemos até o núcleo terrestre.
Gostamos ainda da “xícara maluca”. Ela gosta mais
do que eu, que começo a ficar enjoado. Na semana
passada, pela primeira vez, ela foi ao trem
fantasma. Para mim, que já vi muita coisa de
assustar, nem deu muito medo. Mas para ela, foi
apavorante passear no “brinquedo do fantasminha”.
Para minha surpresa, ao final, ela deu gargalhadas e
pediu para ir de novo. O susto leva à risada. A vida
é essa mistura. Coisas que nos deixam enjoados e
que parecem movimentos aleatórios, mas há um
padrão por trás. Coisas que nos assustam e mesmo
no susto nos fazem rir. Coisas que nos fazem sentir
como se o chão se abrisse e fôssemos devorados. O
deslumbre e o espanto são parte do pacote. E no
meio disso tudo risadinhas, sorrisões, gritinhos e
mãos grudentas de algodão-doce dadas com
firmeza. Filha e pai partilhando do susto e deleite
da vida. Mamãe tirando foto.
Nathan Wilson, neste livro, vai segurar sua mão
e convidá-lo a brincar com ele no parque de
diversões da realidade. Você ficará um pouco
enjoado, em alguns momentos, mas passa. Em
outras horas o deslumbre tomará conta de você com
algo que considerava ordinário. Em outras, seu
desejo será mandar parar tudo — com lágrimas nos
olhos. Pode ser que, como em um trem-fantasma,
você leve alguns sustos. Haja o que houver, não
solte a mão dele, não deixe de ler até o fim.
Tentei ao longo dos últimos anos convencer
várias pessoas a ler este livro. Felizmente, agora
publicado em português, vou poder presentear todo
mundo e ficar cobrando a leitura. Por favor, leia-o.
O preço do ingresso nem se compara com a
abundância de diversão que você está para
começar.
— Emilio Garofalo Neto
Brasília, 20 de fevereiro de 2017
1 “Morrer de tanto viver”. Futuro lançamento da Editora
Monergismo.[N. do E.]
2 Writers to Read: Nine Names That Belong on Your Bookshelf.
Crossway. Kindle Edition.(Kindle Locations 2177-2180)
PREFÁCIO
Que possíveis desculpas eu poderia dar para este
livro?
O álcool não esteve diretamente envolvido. Não
tenho nenhuma doença mental (que eu saiba).
Nunca usei drogas. Mas, isso não é de todo
verdade. A primavera é uma droga para mim.
Como o Natal. Amor, poesia, vento, aromas, luzes,
crianças, formigas, besouros bem pequenos —
todos são drogas à sua maneira.
Não é minha culpa. Essas coisas me fizeram
escrever este livro. Essas coisas e algumas outras,
doces e azedas.
Aconteceu assim: filósofos de vários formatos,
tamanhos, sabores e eras se amontoaram no salão
da minha caveira e começaram a se acotovelar para
conseguir algum espaço. Poetas e pregadores se
apinharam com eles. John Donne disse algumas
coisas vivazes sobre Kant, e os antigos não
conseguiam parar de rir dos modernos. Para
completar, Gilbert Keith Chesterton (o escritor
católico fabulosamente grande) escutou alguém
zombando de Milton (não importa se os insultos
eram todos verdadeiros).
Perceba a erupção.
Para mim, este livro foi um evento. Ele rolou
sobre mim. Esforcei-me para lhe dar forma e
controlá-lo, para dar ritmo, amarrá-lo e ensiná-lo a
sentar e rolar. Fiz o melhor que pude. Às vezes, no
entanto, meu melhor é insuficiente e, em alguns
lugares, você perceberá essa coisa escalando a
mobília, lambendo meu rosto ou me arrastando
pelas ruas.
Eu gostei do passeio, embora tenha me deixado
suado e arfante. Sou grato aos pensadores e
escritores que desencadearam a briga. Agradeço a
Deus pelos olhos na minha cabeça e pelo furor do
mundo girante que esses olhos enxergam. O
mundo, moldado pelas palavras dele, jamais poderá
ser domado pelas minhas. Contudo, existe a alegria
a ser conquistada de tentar e fracassar. Meus cortes
e feridas sararão. Posso viver o bastante para tentar
de novo.
Aprendi com isso e me sinto mais leve — como
se tivesse perdido um pouco de peso mental. Eu
espero que isso seja bom.
Alguns comentários, advertências e uma
explicação ou duas:
Este livro não anda em linha reta. Não é uma
estrada de Wyoming. A Terra gira enquanto orbita
o Sol. Uma das “xícaras malucas” do parque de
diversões deixa as crianças nauseadas ao fazer um
movimento similar — rodopiando hermeticamente
em uma plataforma maior e também giratória
(subindo e descendo, às vezes, para completar o
cenário). Este livro é construído nesse padrão —
giros menores e giros maiores — e segue a Terra
pelas estações de uma rotação. Como a terra e as
“xícaras malucas”, você terminará no início.
Este livro tenta encontrar unidade na cacofonia.
O bombardeio de elementos (filosofia, poesia,
teologia, narrativa, ad nauseam) pode parecer
aleatório às vezes. Não é. A intenção é ser
sinfônico: instrumentos e vozes distintas partindo
da dissonância para a harmonia. O espectro
emocional (raiva, amor, felicidade, luto) pretende
ser tão amplo quanto o material tratado aqui. E
busca a mesma unidade.
Palavras: elas são mais que ferramentas usadas
na transferência de simples informação de mente
para mente. Do começo ao fim, eu tentei usá-las
como tinta, preenchendo uma tela em vez de papel.
Queria escrever para o corpo e os sentidos, como
para a mente. Consegui? É um objetivo
complicado, e talvez eu não devesse admitir que
mirei muito alto. Admitir pode tornar o fracasso
mais óbvio.
Há momentos em que minha escolha de palavras
pode parecer estranha para um livro “religioso”
tentando alcançar a audiência “religiosa”. Mas, não
se preocupe — jamais chego ao nível de choque e
surpresa alcançados por autores como o profeta
Ezequiel.
Ritmo: dado o movimento, o andamento e a
forma do livro, incluí hiatos, esporádicas paradas
sazonais para descanso, pelo caminho. Assim
ninguém vai lesionar os ligamentos.
Título: no século XIX, Dostoievsky, o gênio
russo, escreveu um romance curto intitulado Notas
do submundo. Meu título é em reconhecimento a
ele e à sua visão.
Sobre explicações demais no início do livro:
ocultar a arte é arte. Sim, eu sei. Alguns diriam que
estou arruinando a pouca arte existente no livro ao
incluir muitos comentários diretos a seu respeito.
Porém, não vejo maior perigo no prefácio que
entediar o leitor potencial folheando páginas em
uma livraria. Se há arte no livro, com certeza ela
sobreviverá apesar de algumas enfadonhas páginas
de abertura. (Quantas pessoas leem prefácios?) Se
não há arte, então nada foi arruinado.
Neste ponto, sinto a necessidade de admoestar
com piedade todos os leitores a apertar os cintos,
como é a lei. Mas eu me esqueci de incluir cintos
de segurança, e não sei onde deixei os termos de
responsabilidade.
Por último, antes de começar de verdade,
gostaria de agradecer aos fabricantes de Dramin.
Minha gratidão é real.
SOU VIAJANTE. Eu pareço importante? Ou pelo
menos significante? Não sou Kerouac. E não sou
um vendedor. Viajo como a pulga nas costas de um
cão. Viajo acidentalmente, um caubói bem pequeno
nascido sobre um touro. Viajo com o parque de
diversões. Aonde ele vai, eu vou. Seu povo é meu
povo, e sua terra é minha terra. Boa parte do meu
tempo é gasto na “xícara maluca” e às vezes nas
gaiolas dos esquilos. Eu não poderia parar de viajar
mesmo que tentasse, e não é por causa de algum
tipo de desejo de viajar, sangue cigano, necessidade
de experiências significativas ou o desejo de ver os
castelos da Europa.
Nasci no parque de diversões. Todo o meu viver,
dormir, brincar, crescer e vomitar se passa no
parque de diversões. Quando morrer, eu não fugirei
dele — não é o que gostaria de fazer. A morte é a
linha preta sobre minha cabeça a indicar a altura
mínima para brincar. Quando eu a alcançar, bem…
então poderei passar para as atrações assustadoras.
Apenas para ser claro: eu vivo em uma esfera
quase perfeita que se lança pelo espaço a cerca de
30 quilômetros por segundo. Velocidade Mach 86
para os pilotos. Evidentemente, essa minha esfera
também gira enquanto se move, assim, adicione
meio quilômetro por segundo às partes mais
gordas. E tudo isso está enfiado nesse gigante
furacão de estrelas. Sim, pode ser bizarro. Há um
mês, mais ou menos, minha esposa me pegou
deitado na grama, enfiando os dedos na terra,
tentando não sair voando. Mas, na maior parte do
tempo, consigo manter o equilíbrio apesar da
velocidade, e não preciso me agarrar em nada mais
que meus dedos dos pés.
Você vive aqui também. Isso significa que não
sou especial. Todos nascemos no parque, embora
alguns estejam em negação. Eles querem estar
acima de tudo, acima da desordem de risadas,
pessoas, luzes, animais e da sombria tristeza que
espreita nos cantos, sob os brinquedos e nos trailers
após o parque fechar. Assim, eles andam na roda-
gigante e, no alto, pensam que deixaram tudo para
trás. Ascenderam a um lugar onde podem levar as
coisas a sério. Onde podem ser levados a sério.
Deixe que eles tenham seu momento. Você e eu
podemos comer nossos enroladinhos de salsicha,
aguardar e rir. Salomão sorri conosco.
A roda vira. A terra gira e dá suas voltas. Todos
nós rodamos.
Que diabos é esse lugar? Apenas olhando ao
redor, posso dizer que o que quer que esteja
acontecendo, esferas são uma temática, além de
insetos. Nós estamos em uma esfera, girando em
torno de uma esfera ainda maior (que por acaso é
ardente o bastante para chamuscar meu rosto,
mesmo à distância) enquanto outras esferas de
vários tamanhos fazem a mesma coisa, e uma
pequena, poética e triste esfera menor com espinhas
gira em torno de nós, iluminando a noite, fazendo
os oceanos erguerem o peito e ofegar, e
aumentando os crimes violentos (sério!). E nossa
bola azul é povoada em sentido primário por
pequenas coisas com exoesqueletos, não importa
como você meça. Invertebrados ganham de nós em
número, peso e variedade, e nos mordem mais do
que os mordemos. Se você se encontra em uma
pequena e calma floresta caducifólia no verão, é
possível sentar-se e ouvir o ruído da trilha deles
entre os arbustos enquanto ácaros rastejam com
cuidado para dentro de sua cueca. Eu tenho um
amigo que recebeu uma restituição do governo por
fazer exatamente isso.
Se eu fosse um editor (o que não sou), e um
agente (não consideraria propostas sem um agente)
que propusesse um livro de fantasia que se passasse
neste mundo, então lhe diria em termos claros que
aceito apenas histórias importantes, histórias
realistas, histórias verossímeis em textura e
personalidade, e então o mandaria tentar a literatura
popular, talvez buscar um desses romances de
bolso vendidos em supermercados estilo Sabrina e
Reader’s Digest, mirar em uma audiência mais
suscetível a crer em algo tão forçado — audiência
com menos chances de ter curso superior. No
mundo de alta fantasia, as esferas seriam tão
perfeitamente alinhadas que, quando a lua passasse
na frente do sol, os dois teriam tamanho idêntico. E
quando a sombra da terra descesse sobre a face da
lua, também teria o tamanho perfeito para bronzear
o luar. Ah, até parece… Um pouco artificial, você
não acha? Esferas perfeitas? Umas saias de tule
rodadas? Poupe-me. Tenha algum respeito pela
minha inteligência.
O que é este lugar? Por que é este lugar? Quem o
aprovou? Os investidores estão felizes? Os
acionistas? Esse comportamento cósmico era
esperado? Eu deveria levar isso a sério? Como
poderia? Presenciei peixes-dourados fazendo bebês
e formigas executando pequenas lacraias. Vi uma
mosca dar cria enquanto sua cabeça era comida por
um louva-a-deus. E tive um golden retriever que se
comportava como um golden retriever.
Este não é um mundo sério. Uma vez um rato fez
cocô no meu sobrinho, provocado pelas ratoeiras na
sala de estar. Enganado pelos livros infantis, meu
sobrinho identificou o roedor ofensor como uma
ovelha. Morcegos existem de verdade. Lagartas se
tornam borboletas mesmo — não é apenas uma
mentira para crianças. Carvão esmagado se
transforma em diamante. Macieiras transformam
flores em maçãs usando ar e luz solar.
Eu já vi um bebê nascer. E, claro, sei como ele
foi feito. Mas não vou lhe contar. Você não
acreditaria.
Há várias teorias sobre como e por que tudo isso
aconteceu, tentativas de explicar o incrível número
de coisas a rastejar no mundo, as estrelas, o ciclo de
vida dos sapos, o comportamento social do peixe, o
significado do amor, a vida e um hambúrguer
realmente bom. Mas, para saber por que tudo isso
está aqui, um simples como é pré-requisito. Como
este lugar aconteceu? Eu vivo aqui, então não
deveria ser muito difícil descobrir.
Chame os suspeitos. Coloque-os em fila, faça-os
virar-se e esperar impassíveis enquanto
examinamos cada um. Mas, antes de fazer isso,
uma coisa deve ficar muito clara. Pode não haver
uma explicação crível com facilidade para tudo que
eu vi neste seu pequeno e alegre universo. A já
gasta “Navalha de Occam” não nos ajudará. Não
haverá uma explicação “mais simples”. O mundo
que combina galáxias, buracos negros, Jerry
Seinfeld, mais de 300 mil variedades de besouros,
Shakespeare, glândulas adrenais, boliche
profissional e os bizarros padrões reprodutivos das
vespas (além de equipes de câmeras da BBC para
documentá-los) impede explicações facilmente
palatáveis.
O observador imparcial não consideraria o
mundo plausível. “Ergo”, a causa deste mundo
inacreditável deve deixar estrias semelhantes na
imaginação.
Um passo à frente, por favor. Virem-se para a
esquerda.
Se fosse um índio apache, eu lhe contaria uma
história sobre o Criador esfregando os olhos como
se tivesse dormido um longo sono e despertado
para formar o mundo. Ele começou com os amigos.
Quando havia quatro deles, eles apertaram a mão; o
suor se misturou e caiu no formato de uma bola.
Eles a chutaram, e o vento ajudou a expandi-la até
que ela cresceu para tornar-se nosso mundo. Até
onde eu sei, eles ainda a estão chutando. Ter o
momento da criação a servir também como a
invenção do futebol representa o uso inteligente de
recursos.
Se eu fosse havaiano, a história seria sobre um
triângulo amoroso, fúria, desespero e a vingança de
um vulcão.
Meus pais nórdicos (tenho certeza que houve
algum) entendiam que o mundo era um lugar frio,
duro e depressivo. No começo, deveria existir um
gigante de gelo maligno, retalhado por Odin e seus
irmãos. Eles reciclaram a carne de seu corpo,
usando-a para criar o mundo.
Ou tente isto: No princípio, havia apenas um
ovo, posto no, sobre, ou pelo caos. Depois de
milhares de anos, ele foi chocado e dali saiu Pangu,
o criador. Pangu separou Yin de Yang, a terra dos
céus e, por fim, ele se deitou e seu corpo tornou-se
a criação, dividindo as coisas muito bem — o
cabelo virou as estrelas, a respiração virou o vento,
os olhos, o sol e a lua. Todos os seus parasitas
rastejaram para fora e se tornaram as pessoas. O
que, considerando a história da civilização, não é
muito difícil de acreditar.
Os babilônios colocariam Marduque no palco,
com muitos monstros sendo gerados e a
evisceração de sua deusa-mãe.
Há muito mais. Eu poderia me comportar,
tornando-me comedido em sentido acadêmico (sem
ter medo disso), e poderíamos caminhar por todas
essas histórias, expondo-as por completo com todas
as suas variações. Nós poderíamos entrar nas
versões africanas, maias e aborígenes australianas,
junto com dezenas de outras. Ou poderíamos ir
direto aos temas comuns, as coisas que conseguem
reaparecer de tempos em tempos — ordem versus
caos, uma derrocada violenta e a criação por meio
da reciclagem dos mortos, litros de sangue, deuses
em conflito, afeições erradas e sérios conflitos em
famílias de deuses. No entanto, mesmo esses temas
não chegam à raiz, a generalizada coceira humana
quando se trata da existência.
Primeiro, todas as culturas sentiram a
esmagadora pressão da própria existência e da
necessidade de explicá-la. Há um tipo de
nervosismo aparente nos mitos de cada povo, como
se eles não devessem estar ali e tivéssemos de
repassar a história antes da chegada das
autoridades.
“Desculpe-me… é que havia um gigante de
gelo”, explicamos.
“Quando Pangu morreu, a gente não tinha aonde
ir”, contamos ao policial.
“O senhor não gosta de futebol?”, perguntamos
ao juiz.
Segundo, não apenas sentimos a necessidade de
explicar e justificar a existência, mas também
parecemos entender que nossa explicação precisa
ser tão alienígena como nós mesmos, tão
impossível quanto a realidade. Não é hora para
cachorros comerem a lição de casa. Isso exige um
sério esforço imaginativo. Dragões bem-
apessoados, mundos e carcaças inflados pelo vento,
lobos a morrer, sangue cósmico, urina divina,
explosão de gás e o universo sempre em expansão
— escolha seu elenco e crie a sua mitologia.
Explique você mesmo. Justifique sua presença aqui,
a presença do mundo. Aliás, mais difícil: explique a
personalidade do mundo. Encontre uma coisa que
dê conta de tudo. Sente-se em torno da fogueira ou
no laboratório da faculdade, e conte sua história.
Compita com o coro de velhas estórias. Aliste seus
devotos e acólitos. Esculpa em si mesmo algo a
partir do barro, adicione algum detalhe anatômico
estranho e convença-se de que ele precisa de um
cesto de frutas ou de um bode, ou talvez o vulcão
precise de uma virgem, ou Zeus precise de uma
pastora (de novo). Ou consiga um diploma de
filosofia e suba na roda-gigante. Observe o parque
de diversões, coloque-se em segurança acima do
nosso louco mundo giratório, das montanhas, dos
cúmulos-nimbos parindo relâmpagos, do cheiro da
grama podada e do cedro recém-cortado. Esconda-
se atrás de palavras difíceis ou escute a primeira
gargalhada de um bebê e saiba que o mundo está
aqui, que você está nele, e que seus sabores são
profundos e sobrepostos, e suas luzes são
brilhantes. Reconheça que ele é real.
Bem-vindo ao parque de diversões. Desça da
roda-gigante. Saia das sombras e dos trailers
desequilibrados. Há uma história para contar, um
mundo de surpresas e questões a explorar, uma
personalidade continuamente sondada a ser
descoberta e entendida na realidade a nosso redor.
E há alguém por trás disso, respostas
desconfortáveis para comos, porquês e quês.
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram
feitas por meio dele.
Bem-vindo ao poema dele. À peça dele. Ao livro
dele. Ignore as cestas de frutas e as estátuas. Deixe
que as páginas toquem seus dedos.
ESTE É O MUNDO FALADO POR ELE.
INVERNO — o giro começa.
A neve é muito utilizada. Um floco de neve
sentimental, ostensivamente estruturado, talvez
tenha algum valor. Mas, Deus nunca parece capaz
de moderação ou de entender os conceitos básicos
por trás da oferta e da procura. Não raro, ele
desvaloriza seus produtos. Dê-me um floco, uma
sala gelada e uma lupa, e eu admirarei sua arte.
Entretanto, no momento, estou assentado à janela
em uma noite de Natal, observando o desperdício
invernal ao extremo. Quilômetros de nuvens,
nuvens maiores que estados, transformaram-se em
estrelas de cristal e agora passam em silêncio pela
minha janela para a morte. Bem, não tão em
silêncio. As estrelas caem rápido o bastante para
que, se você sair de casa, como eu acabei de fazer,
possa ouvir o sussurro das colisões e dos delicados
impactos congelados, cada uma das perfeições de
seis pontas reclamando ao pousar:
“Disseram que eu era especial. Há dois ‘zilhões’
e meio de nós nessa cerca e mais estão caindo.
Alguém aqui se importa com a superpopulação?
Quebra da bolsa? Fechem o céu. Pressionem uma
moratória”.
Mas, os sussurros da tempestade me parecem
mais contentes. Empolgados até:
“Sabia que eu era diferente do resto de vocês,
plebeus. Vejam como são ridículos e góticos com
esses braços finos e salientes. Eu sou única.
Neoclássica”.
Tente contar os flocos. Tente contá-los de
verdade. Voltarei para fora e farei uma breve
estimativa. Sejamos conservadores. Supondo que
estamos no meio de uma tempestade e ela conte
apenas 16 quilômetros para cada lado (Ha ha, diz o
homem do tempo), e supondo que a tempestade
seja pequena — com 30 metros de altura, e
deixando de lado o acúmulo pré-existente no solo, e
estimando de olho o conteúdo do frenético ar da
nevasca em escassos 300 flocos por metro cúbico,
então estamos para aproximadamente…
11.151.360.000.000 flocos no ar acima de uma
pequena porção do estado de Idaho em um
momento individual da noite de Natal do fim do
ano de 2007. Apenas essa tempestade, essa
pequenina fatia de inverno, pôde dividir 1700
flocos por pessoa no planeta. E o mais
impressionante: esse número ultrapassa a dívida
pública dos EUA em trilhões.
Eu olho a orgulhosa queda natalina pela janela.
Vocês flocos, importam-se com o que penso?
Escutem meus insultos. Vocês são completamente
desvalorizados — como estrelas, galáxias e
espécies de insetos. Apesar de toda a sua harmonia,
beleza e impossível simetria, vocês não valem um
mango. Ou um centavo. Se cada um de vocês me
rendesse um centavo, eu entraria na lista de mais
ricos da Forbes (em algum lugar abaixo dos
herdeiros do Walmart).
Todos nós sabemos que cada floco é diferente e
único porque todos fomos para a pré-escola. Cada
um é bonito etc. — também sabemos disso.
Todavia, como podemos valorizar essas coisas
quando o criador as joga por aí como se fossem
lixo? Na verdade, nunca vi alguém jogar tanto lixo
assim. Ele não percebe que as pessoas os
amaldiçoarão amanhã? Que elas removerão a neve
com uma pá, vão enchê-la de sal e transformá-la
em uma massa cinzenta com seus carros? Ele sabe
que minhas filhas vão rolar sobre a neve,
derretendo milhares de flocos com suas bochechas
coradas e dez milhares com a língua?
Cachorros vão urinar nela de manhã.
Provavelmente, eles estão começando a pensar
nisso neste momento.
Assim começa um novo ano, uma nova volta
solar.

Há muito os filósofos se maravilham com o


mundo. Mas, isso não é exatamente correto. Alguns
filósofos se maravilham. Muitos respondem ao
esmagador peso da realidade com um tom
categórico e verbosidade flácida. O restante apenas
choraminga sobre que mundo terrível, difícil e
impiedoso é este. O mundo magoou os sentimentos
deles e, então, eles contra-atacaram com
dissertações cheias de absurdos — chamando-o de
acidente, sem propósito, um derivado do caos,
chegando a ponto de, às vezes, negar sua
existência. No entanto, o mundo não se importa.
Ele tem a pele grossa, e todos os pensadores muito
importantes se tornaram parte dele.
Deveríamos nos importar com filósofos quando
o mundo claramente não liga? Deveríamos nos
incomodar de lembrar os nomes e as ideias de
homens que podem viver como não mais que uma
dor de cabeça para calouros universitários do
mundo todo?
Por que não desejaríamos? Damos nomes às
nossas doenças — interessantes ou não. Damos
nomes a escolas de arquitetura. Damos nome a
todos os romances, todas as peças, todas as
comidas e todos os brinquedos de um parque de
diversões. Esses homens se sentiram oprimidos por
nossa existência. Eles se esforçaram para justificar
e explicar (ou destruir) nossa presença no universo,
nossa comunicação, nossa ética, nosso
conhecimento. Eles sentiram a necessidade de jogar
Twister intelectual por séculos, e arruinaram muitas
coisas. Isso não os torna importantes o suficiente
para serem lembrados? Como a catapora, cada um
deles aconteceu apenas uma vez. Como a gripe
comum, eles se desenvolveram a partir de outras e
se modificaram. Se você cursou uma faculdade,
ouviu sobre eles. Se você vive no mundo ocidental,
joga segundo as regras deles.
Platão, o primeiro papa verdadeiro da filosofia
(perdão, Sócrates) defendeu um Mundo das Formas
acima da realidade — um plano transcendental de
essências perfeitas, puras e amáveis, onde nada fica
enlameado (incluindo a essência da lama). Nada de
futebol americano. Muitos cristãos hoje ainda
concebem o céu como uma espécie de realidade
platônica e, de alguma forma, conseguem esperar
por uma existência em um enevoado mundo
espiritual com harpas e pouca coisa para fazer.
Aristóteles denunciou as essências puras e
imaculadas de Platão e entulhou uma em cada
objeto particular do nosso próprio plano de
existência material. Minha cadeira não compartilha
mais da “cadeirice” platônica. Antes, é algo
habitado pela “cadeirice” pura e interior — e essa
pureza interna é compartilhada por todas as
cadeiras; isso as torna cadeiras. Minha dor nas
costas (quando você faz todo o caminho até a
essência dela) é pura, perfeita e ideal. Se isso soa
estúpido, não admita. Muy importante, sí? Apenas
balance a cabeça, tente parecer inteligente e um
pouco em conflito. Eles ainda lhe darão o diploma.
Platão não foi o único grego pré-cristão a
informar pressuposições e mentalidades cristãs.
Aristóteles foi quase canonizado por muitos
acadêmicos religiosos no decorrer dos séculos. A
teologia por trás da missa católica se sustenta em
Aristóteles. O exterior sem importância e acidental
do pão e do vinho permanece o mesmo; e a parte
perfeita, a essência escondida e substituída. O
material da superfície é irrelevante. Nesse nível
interior aristotélico, o pão ganha a essência da
carne e o vinho, a essência do sangue.
A mentalidade padrão por trás do conceito
evangélico de conversão pode tornar-se mais do
que um pouco grega também.
Pulando alguns séculos até o iluminismo
moderno, o francês Descartes passou por alguns
problemas para saber que ele existia. Assim, ele se
voltou para o pensamento positivo e aprendeu que
precisava apenas pensar que existia e, então, ele
existiria. Cogito, ergo sum. [Penso, logo existo.]
Diga isso o bastante, esteja disposto a ajudar os
outros em apuros, e tudo ficará bem. Penso, existo.
Eu penso que existo. Descartes cogitou-se (junto
com o resto do mundo) à existência. Por causa da
carta mental encontrada por ele na manga mental, o
mundo moderno foi construído. Seu fundamento?
A razão pode levar aonde você quiser.
Leibniz, meio que um escoteiro, pensava que
esse mundo deveria ser o melhor dos mundos
possíveis (pois o Deus perfeito não poderia criar
menos que isso). Fácil demais.
Voltaire zombou bem dele. Mais fácil ainda.
Immanuel Kant escreveu livros com palavras
como prolegômenos no título e achava que a
moralidade dependia (e era monitorada) das etéreas
leis da lógica.
Os astecas consideravam necessário arrancar o
coração de suas vítimas ainda vivas no topo de
zigurates se quisessem que o sol continuasse a
nascer.
A herpes zoster é uma erupção cutânea causada
pelo mesmo vírus que provoca a catapora.
Os americanos chamam o enroladinho de
salsicha de “porco no lençol”.
A “xícara maluca” é um dos poucos brinquedos
de parque que parece seguir um padrão de
movimento aleatório. Seus carros estão presos, sem
usar cabos, a uma plataforma giratória que se
inclina. Ela foi inventada na década de 1920. É
possível comprar a sua por menos de meio milhão
de dólares.
Heidegger era nazista. Você consegue pensar em
uma razão melhor para não lhe dar atenção?
Wittgenstein era um porco bebedor de cerveja
(de acordo com as autoridades do Monty Python).
Eu não acredito nisso. A “cervejice” o tornaria mais
legível.
Nietzsche — um fraco, mas vigorosamente
bigodudo, filho de pastor luterano — definiu o mal
(em O Anticristo) como “o que nasce da fraqueza”.
David Hume, o escocês, (conscientemente)
declarou Deus e o conhecimento impossíveis sem
qualquer senso visível de ironia.
Os existencialistas franceses, todos homens
sábios e exemplos de filósofos de todos os lugares,
mataram-se.
Dê-me sacerdotes. Dê-me homens com penas no
cabelo ou longos chapéus abobadados, mulheres
oráculos em cavernas, pitonisas, fumando erva e
lendo mãos. Uma cartomante cigana com uma
“tábua ouija” fajuta e um aquário como de bola de
cristal sabe mais sobre o mundo que muitos dos
grandes pensadores ocidentais. Sacerdotes
murmurantes a balançar vasilhas fedidas em suas
correntes e até curandeiros a conjurar maldições
com um marfim de elefante bem enterrado têm um
senso melhor sobre seu lugar no mundo. Eles
sabem que o universo transborda de mágica, vida,
charadas e ironias. Não ignoram que o mundo pode
devorá-los e nenhuma enciclopédia o impedirá.
Eu sou um hipócrita. Concedo isso de bom
grado. Li os filósofos (não todos, graças a Deus).
Fiz provas sobre os filósofos. Falarei sobre os
filósofos, mas preste atenção nos meus lábios. Eles
se enrolam quando eu falo. Espero ficar imaculado.
A cada quatro anos, assisto patinação artística, mas
estou longe de comprar um colante para mim.
Marx chamou a religião de ópio e, muitas vezes,
ela é. Mas, a filosofia é um anestésico, uma vacina
para afastar o deslumbramento.
Que é o mundo? Que tipo de lugar é este? O que
ele está fazendo? Por que ele está aqui? Como nós
sabemos? As perguntas são ótimas. Sofia é a deusa
da sabedoria. Filosofia — o amor fraternal à
sabedoria — é um passatempo perfeitamente limpo
para meninos e meninas. Mas, a filosofia
propriamente dita tornou-se um lugar para
esconder-se, um lugar para buscar a imortalidade
(por meio de publicações que nunca se esgotam)
sendo nebuloso o bastante para sempre haver
espaço para discussão — para dissertações futuras.
Um “hurra” para as perguntas! Nenhuma pessoa
razoável tem problemas com elas, quando em
moderação. Mas, alguém quer de fato as respostas?
A jornada é o destino? Por favor, não. Deixe-me
sair do seu ônibus na próxima esquina. Uma
resposta boa seria o fracasso? Se soubesse o sentido
da vida, você necessariamente gostaria dele?
Os alquimistas medievais tinham um alvo
tangível, e quando todos morreram envenenados
pelo chumbo, a posteridade percebeu o fracasso
deles. Os filósofos contemporâneos lutam para
evitar alvos tangíveis e chafurdam na sauna do
pensamento. Matricule-se com cartas de referência
boas o bastante, e você também consegue. Pague-os
dinheiro o bastante e eles libertarão o Nietzsche do
seu filho calouro.
Exceção: Sócrates teve seus momentos (embora
fosse difícil passar um sábado com ele). Sua maior
conquista em poucas palavras: “Só sei que nada
sei”. Todo o mundo ama um homem honesto. Mas,
isso não o impediu de falar. Pelo menos, se vamos
confiar em Platão.
O que é o mundo? Uma grande esfera giratória
úmida e habitada (comparada a muitos shoppings).
Que tipo de lugar é este? Do tipo redondo. Do tipo
giratório. Do tipo úmido. Do tipo habitado. Do tipo
que tem flamingos (reais e artificiais). Do tipo em
que a água no céu se transforma em cristais
esculpidos com beleza simétrica por artistas
incapazes de conter-se (nos quesitos design e
quantidade). O tipo de lugar com ácaros
minúsculos, de dentes poderosos, destinados a
comer minha pele morta ao cair nos carpetes. O
tipo com tubarões, sanguessugas de nariz e coisas
parasitárias escorregadias (com farpas) que entrarão
em você como um cateter urinário se você for
obrigado a fazer xixi em um rio da América do Sul.
O tipo com pessoas que matam, pessoas que amam
e pessoas que fazem as duas coisas. O tipo com
pessoas que pensam que a água do Ganges é boa
para elas, com pessoas que acham que comer o
coração de seus inimigos afastará a morte, e com
outras que pensam poder curar a falência de seu
cérebro se colherem bastantes células sem
especialização de jovens humanos.
O mundo é belo, mas terrivelmente esfacelado.
Paulo disse que ele geme, mas eu o amo mesmo em
seu gemido. Amo o palco redondo em que atuamos
as tragédias e comédias da história. Eu o amo com
todos os seus vilões, mentirosos mesquinhos e
hipócritas pomposos. Amo as formigas e a risada
de crianças com os olhos esbugalhados ao
encontrar a primeira borboleta. Eu o amo como ele
é, porque é uma história e não está parado em um
lugar. Ele está cheio de conflitos e trevas como
toda boa história. E, como toda boa história, haverá
um final. Amo o mundo como ele é porque amo o
que ele será.
Eu o amo porque ele gira e se inclina, porque ele
é estonteante, por causa do céu noturno e das
estrelas a rodopiar.
Mas, eu estou me adiantando muito. Deveríamos
ser mais… filosóficos.
Advertência: Se você acha que o mundo é plano,
não estou aqui para convencê-lo do contrário. Se
você acha que o mundo é um lixo sem sentido
oscilante no bueiro galáctico da realidade acidental,
não pretendo lidar com suas alegações
epistemológicas sempre tão sutis. Eu estou aqui
para pintar um quadro do mundo que enxergo.
Tenho um pincel desajeitado, e minha língua sai
pelo canto da boca. Eu até coloquei uma camisa ao
contrário como um sacerdote. Espero que eles não
se ofendam.
E, agora, vamos encontrar Sofia e amá-la um
pouquinho. Em sentido fraternal.
Se esperamos responder questões grandiosas
como: “Qual o sentido da existência?”, “O que
determina o bem e o mal?”, “Quem sou eu?” e
“Tudo bem estacionar em local proibido?”, então
devemos começar com algo um pouco mais básico,
algo que mesmo os cientistas deveriam conseguir
responder.
Do que é feito o mundo?
Já há uma série de respostas oferecidas flutuando
por aí. O mundo, de acordo com um bom grupo de
cavalheiros de togas laranjas, é uma ilusão. Do que
a ilusão é feita? Principalmente de sofrimento.
George Berkeley, um bispo do século XVIII,
apresentou uma resposta parecida. O mundo existe
na mente de Deus. Nós, isso e todas as coisas
mantemos nossa ontologia (ser) dentro da
imaginação divina. Berkeley negou por completo a
natureza material do universo. Nós somos
pensamentos. Nada além de pensamentos.
Samuel Johnson, depois de ouvir essa nova
filosofia, chutou com entusiasmo uma grande
pedra, ao dizer: “Eu refuto isso!”. Dedos doídos são
um argumento convincente.
E, claro, os antigos dividiram o mundo em
quatro elementos — terra, ar, fogo e água. Muito
bom, mas do que eles são feitos?
Eu poderia comprar um livro ilustrado com o
título Do que é feito o mundo?, mas não acho que
ele iria além de sólidos, líquidos e gases — nossa
revisão da antiga formulação (excluindo o fogo
como energia).
Nós construímos uma tabela periódica, rimos dos
antigos por serem muito simplistas e demos nome a
um monte de elementos. Os elementos deveriam
ser coisas elementares — coisas que não podem ser
mais divididas. Coisas como o ouro? Chumbo?
Sódio? Califórnio? Mas, essas coisas têm núcleos e
elétrons e outras coisinhas menores e mais
complicadas.
Alguns pensadores contemporâneos começaram
a falar sobre dimensões, sprays de espuma cósmica
e outros postulados incomensuráveis. Einstein nos
deu o espaço-tempo e um monte de ficção
científica ruim junto.
Os místicos atuais e mais inovadores dos
departamentos de física ao redor do mundo sabem a
resposta. Vá até um dos laboratórios, consiga um
crachá e junte-se a um animado guia turístico do
cosmo.
Do que o mundo é feito?
Bem, é simples. Muito do que você vê a seu
redor é formado por quarks up, quarks down e
léptons. Agora você sabe. (E se passasse mais
tempo na internet, eu não precisava lhe ensinar
essas coisas).
Nós podemos perguntar do que os quarks são
feitos? Eu posso procurar no Google? E quanto aos
léptons?
O guia animado continua: Quarks e léptons são
muito, muito pequenos e, ao se unirem em arranjos
diferentes, formam a realidade à nossa volta. Mas,
não podemos garanti-la nos limites mais remotos
do espaço distante.
Do que eles são feitos?
Os quatro tipos de ligação que impedem a
realidade de explodir como um ovo no micro-ondas
são os seguintes: forte, fraco, eletromagnético e
gravitacional.
Forte? Isso é tudo o que eles sabem? Não
precisamos de um nome mais impressionante ao
falar sobre a ligação da realidade fundamental?
Muito do que você vê é, na verdade, espaço
vazio, ou nada. O volume combinado das partículas
materiais mais básicas, formadoras de algo com
uma cadeira, é apenas uma pequena fração do
volume da própria cadeira em si que você vê
desdobrada no espaço à sua frente.
Legal. Do que quarks são feitos?
Você sabia que, certa vez, os cientistas pensavam
que a célula era feita de pudim de ameixa?
Sim, eu sabia. Parece razoável. Do que é feito
um lépton?
Recentemente, cientistas criaram a substância
mais negra do mundo. Ela absorve 99,9% de luz.
Do que são feitos os quarks?
O próximo tour enfocará a antimatéria. Começa
em 15 minutos. Por favor, visitem a loja de
lembranças. E não se esqueçam: alugamos o espaço
para festas.
Eu não tenho problema nenhum em acreditar na
existência de quarks. Disseram-me que são
partículas subatômicas formadoras de prótons e
nêutrons. Também soube que nunca se conseguiu
isolar um único quark apenas, e que eles não têm
componentes identificáveis. Isso significa que eles
são eles mesmos e não são feitos de nada além de si
mesmos. Pelo menos até que consigamos
microscópios melhores ou que nós americanos
aprendamos falar “elétron”. Mas, por que estamos
falando sobre isso?
Vamos repassar o que sabemos.
Eu tenho uma azeitona na minha mesa. É um
produto da Espanha. Ela cresceu em uma árvore.
Isso significa que a clorofila nas folhas da oliveira
absorveu a energia da luz solar e usou essa energia
para atacar o ar. O carbono do dióxido de carbono
foi colhido, o oxigênio foi liberado de volta aos
pulmões das crianças espanholas e o carbono foi
moldado como folhas, a casca da árvore e essa
azeitona. Como eu, a azeitona é feita de carbono.
Ela é feita de células, que são feitas de moléculas,
que são feitas de átomos, que são (como todos
agora sabemos) feitos de quarks e léptons, que
são…
As opções são limitadas, mas todas elas
apresentam um problema. Primeiro, talvez os
quarks sejam mesmo elementares. Do que eles são
feitos? De eles mesmos. Segundo, talvez eles
tenham componentes que não identificamos. Nesse
caso, do que esses novos componentes são feitos?
Outros componentes? Do que eles são feitos? Não é
possível o regresso infinito. O mundo não pode
estar sobre as costas de uma tartaruga roxa sobre as
costas de uma tartaruga roxa sobre as costas de uma
tartaruga roxa sobre as costas de uma tartaruga roxa
sobre as costas de uma tartaruga roxa… Não vai
ajudar mesmo que você fale em antitartarugas.
Aqui vai meu momento de assombro. A azeitona
que agora tenho na mão, junto com seu pimentão
amigavelmente picado, essa azeitona que agora
saboreio e como, essa antiga azeitona era, em
algum nível, feita a partir de algo que não foi…
feito de algo.
Há outra palavra para não algo. A palavra é nada.
Em algum ponto, essa é a resposta para a pergunta.
Do que é feito? Do que é feito?
De nada. E, ainda assim… existe.
Mas, Samuel Johnson ainda está certo e Berkeley
ainda está errado. A azeitona tinha massa, sabor,
aroma, textura e temperatura, e até um pequeno
fragmento de caroço que cortou minha gengiva. Ela
contava com uma quantia mensurável de energia
potencial. Sinto-me confortável ao dizer que a
azeitona não era uma ilusão. O mundo material
existe em toda a sua glória de dedinhos batendo na
quina. (Eu não vejo razão para vagar na longa e
solitária estrada da dúvida autossensorial. Esse
caminho não evita dificuldades e leva apenas a
salas de bate-papo, remédios, música atonal e
desgosto cósmico. É um suicídio lento e doloroso.
E, na minha opinião, brega.)
Nós chegamos até aqui usando apenas o bom
senso dado por nossas mães. Concordamos que a
matéria, que minha azeitona, não pode ser o topo de
uma torre material, uma infinita pirâmide invertida
que desce, desce para sempre, sem um primeiro
andar, sem fundamento e, em última análise, sem
solo? Se sim, então há três opções reais que nos
esperam. Traga-as; todas elas já foram chamadas de
Sofia antes. Permitamos que elas desfilem, e
vejamos qual se move com mais intuição, qual flui
mais.
Qual é a mais bonita e qual tem os melhores
quadris? Qual poderia ter parido um mundo como o
nosso?
Uma é a verdade e molda o mundo. Uma
chamaremos de verdade e ela moldará como vemos
o mundo. Seria bom que elas se sobrepusessem.
Sofia 1: A matéria é, na verdade, infinita. Onde
o regresso acaba, há algum elemento físico feito de
nada mais e… sempre teve existência.
Esse é o relato evolucionário ateísta. O universo
consiste apenas em tempo e acaso em ação sobre a
matéria. Em algum ponto, a matéria antiga explodiu
e agora estamos aqui.
Sofia 2: Algo imaterial é infinito, sempre teve
existência e, em algum ponto, criou o mundo
material.
Oh, eu gosto dessa. Tudo o que ela faz é mágico.
Sofia 3: Misture. Há alguma matéria no mundo
que sempre teve existência, e há algo imaterial que
sempre teve existência.
Na verdade, esse é o relato da criação de muitas
religiões teístas e politeístas. Um deus pega o caos
fluente, ou seus filhos, ou a própria coxa, ou algo
com existência anterior e o remodela como o
mundo à nossa volta. Os relatos da criação de
origem nórdica, grega, asteca e até islâmica
começam desse jeito.
Evidentemente, uma série de opções e histórias
se encaixam nessas categorias, em particular na
última. Povos e povos observam as estrelas e fazem
sua escolha, moldando a si mesmos e a suas
culturas ao fazê-lo. A escolha não é uma questão de
lógica, embora possamos fazê-la com lógica. Não
se pode “empoderar” a lógica ao nível de árbitro
transcendente aqui. Ela não pode sussurrar a
resposta em nosso ouvido. Qualquer conhecimento
nesse nível, nessa questão fundamental das origens
e da metafísica última, deve provir de outro lugar.
Bem-vindo ao mundo da fé.
Aqui está a minha garota, o meu quadro, meu
relato filosófico de uma azeitona. Eu observo as
coisas do mundo ao redor e me pergunto do que ele
é feito.
Palavras. Palavras mágicas. Palavras proferidas
no Infinito, palavras tão potentes, faladas por
Alguém tão potente que elas têm peso, massa e
sabor. Elas são reais. Encarnaram-se e habitaram
entre nós. Elas são nós. No relato cristão, o mundo
material veio à existência com o discurso, e esse
discurso foi ex nihilo — a partir do nada. Deus não
procurou algum tipo de “geleca” cósmica para
esculpir, ou outro deus para picotar e reciclar. Ele
cantou uma canção, compôs um poema, começou
um romance tão enorme que mesmo os russos
viram nanicos diante de suas páginas empilhadas.
Você é falado. Eu sou falado. Nós estamos em
um palco falado. Do tipo giratório. Do tipo
redondo. Do tipo úmido. O tipo de teatro com
besouros, risos, bebês, pó, neve e cedro recém-
cortado.
Você é feito de células. Eu sou feito de células.
Minhas células são feitas de moléculas. Minhas
moléculas são compostas por átomos. Meus átomos
são, em grande parte, espaço, mas as partes que não
são chamam-se quarks. Meus quarks ficam onde
estão por serem obedientes. Eles receberam a
ordem de uma Voz que não pode ser desobedecida.
Para Berkeley, os budistas e muitas variedades
de hinduísmo, o mundo é uma miragem, um truque
de ilusão. Ele pode parecer material, da forma que a
fumaça interage com os espelhos, mas não é. O
mundo é mágica de verdade. Escolha uma carta.
Chute uma pedra. Não há truques aqui. Não se
trata de um cenário, não há coelhos brancos
escondidos. A mágica é real e eu fico boquiaberto
no palco por causa disso. Eu sou real. Sou pesado.
Sou matéria. Corte-me e sangrarei. Mas, não sou
feito de nada e, se o Mágico, o Poeta, a Palavra, se
o Cantor parasse sua voz, eu simplesmente deixaria
de existir.
Está frio esta noite, e minha mente é muito
pequena para compreender o mundo — e estou
cansado de tentar. Eu poderia voltar lá fora e
observar as estrelas, aquelas pequenas,
bruxuleantes, imensas e esféricas tempestades de
fogos, contudo, mais nuvens apareceram seguindo
a nevasca que acabou de partir.
Amanhã, de acordo com o profeta do tempo,
essas nuvens se cristalizarão e virarão haicais de
seis pontas, haicais como nunca se viu antes, cada
um sutilmente diferente, cada um a capturar um
espírito diferente, uma beleza diferente. Cada um
inestimável, uma palavra divina.
Se eu fosse infinito, poderia ler e amar cada um
deles. Eu poderia lembrar a dança de cada floco
desde que o mundo nasceu.
Contudo, eu não sou infinito. E, assim, pego uma
pá para quando o haicai cair, um saco de sal para
afastar a tempestade sussurrante.
EU ESTOU EM UM CAIS COM MEU ROSTO NA DIREÇÃO
DA TEMPESTADE — o Pacífico no momento mais
furioso do inverno. Ondas banham o ponto feito
pelo homem, incansáveis, auxiliadas pelo vento.
Flechas de água golpeiam meu rosto, lançadas do
céu para baixo e do mar para cima. Elas têm o
mesmo ferrão, aliadas, mas a chuva é fresca e doce.
Os respingos salgam meus lábios.
Minha mulher passou mais tempo com o mar.
Este é o oceano dela. Ela está aconchegada atrás do
farol, chamando-me. Sou menos preocupado.
Talvez tolo. Ela conhece mais rostos agora entre os
mortos.
Esse é o significado da mortalidade? Sei assim
que meu corpo é do tipo que pode parar, que pode
alimentar caranguejos, que um dia será colocado
em uma caixa e lançado em um buraco? Tenho a
necessidade de ficar perto da borda, de sentir esse
pequeno risco, de sentir meu coração bater. Se não
fosse do tipo que morre, eu ficaria mais perto, sob o
golpe total de cada onda que quebra.
O oceano se espalha até o horizonte e, embora o
vento ruja e as ondas batam, elas nada são
comparadas com o que essa besta pode fazer. O
oceano está apenas brincando, lambendo os pés do
continente, com comichões para jogar pesado.
Há fósseis de conchas nas montanhas rochosas.
Ontem, a transmissão de energia elétrica foi
interrompida, graças a essa tempestade de inverno.
A água escalou penhascos e cruzou estradas. Eu
coloquei meus filhos no carro e, junto com centenas
de outros mortais, os levei para observar o mar
furioso, enjaulado por continentes.
Eles riram quando as portas abriram e, então,
saíram e gritaram. Eu lhes mostrei como ficar de
costas para o vento, como se apoiar contra ele, mas
a chuva mordia e aguilhoava, mesmo através da
minha calça jeans. De volta ao carro, eles riram de
novo.
Eu vi uma foto de um tsunami a avançar sobre
uma rua asiática. As pessoas corriam, pequeninas
diante da imponente água suja, mas não tão
pequenas a ponto de esconder seus rostos — rostos
sorrindo, rostos abertos em risadas.
A onda foi mortal. Os rostos descobriram outra
utilidade no pó.
“Volte!”, minha mulher grita. Eu me viro e olho
para ela. Ela ainda ri, gargalhando no abrigo do
farol.
“Tenho seguro de vida!”, grito. “Estou bem!”.
Ela faz uma careta.
Observo outra onda arranhar a pedra e estico
minha língua para provar sua morte.
Ela aguarda por mim. Eu me apresso agora, e
minha mão molhada encontra-se com a dela no
vento. Nosso beijo tem sabor de batata frita.
Estamos vivos. Estamos aqui, nessa parte de uma
história, ao lado do mar, rindo sob o céu
carrancudo.
Estamos com frio, mas não tão frios quanto os
mortos. Quantos quarks há por aí, salpicando na
tempestade? Quantas vogais há em um furacão?
Essa força molhada, tão enorme ao lado de nossos
pequenos braços, é apenas um pequeno canto do
mundo falado, um pequeno canto deste poema.
Ondas maiores giram no olho de Júpiter, mas quem
as vê? Estrelas e mundos giram em tempestades
solares. Essa tempestade não é nada, e eu sou
menos. Mas, para um artista infinito, um Criador
apaixonado por sua arte, não há canto sem
importância, não há imagem desperdiçada, não há
ponta solta no romance.
Esse oceano, pequeno no universo, está aqui
porque é belo. Essa palavra, essas palavras, que se
movem, batem e se reduzem contra o contraste dos
penhascos, elas são fortes e guturais, como o sabor
de anglo-saxão. Isso é poesia, mas não é delicada e
frágil, um plácido oceano por trás de um versículo
bíblico em um cartaz de autoajuda.
Essa poesia tem coragem. Ela é mais durona que
um rodeio. E, por isso, os penhascos estão repletos
de espectadores.

Ao observar pelas lentes da verdadeira criação ex


nihilo — um mundo falado — tudo se torna um
toque artístico. Cada rachadura no gesso, cada
aranha a viver no banheiro, me parece o cenário de
uma peça, a textura que um autor adicionou, uma
personagem vivendo nesse período, habitando o
mesmo parágrafo que eu.
Há cristãos no mundo que lamentam a ausência
de Deus falando, que clamam por uma
comunicação pessoal com o próprio Deus. Eles
querem deixas para suas falas. Desejam explicações
e orientações específicas do Artista.
E Deus, até onde sabem, ignora-os. Eles se
sentem negligenciados — porque não foram
convidados para papéis como Moisés, Elias,
Enoque ou Gideão.
Diga-me o que você quer que eu faça, Deus. Fale
comigo (na minha língua, por favor) e me diga se
eu deveria aceitar o emprego em Des Moines ou
ficar perto de minha mãe.
Então, por seu papel na história não incluir a
locução cósmica na língua deles, eles entram em
uma crise existencial. Começam a “duvidar”.
Que tipo de história você pensa que é essa? Eu
não tenho problemas com a mesquinhez do seu
dilema Des Moines. O mundo gira pelo espaço,
lançado por seu Criador. O sol arde, quente com
suas palavras e, ainda assim, ele ainda elabora cada
floco de neve sem atalhos digitais. Ele sabe que
você quer mudar para Des Moines, mas se sente
culpado. Ele escreveu a história. Ele elaborou sua
personagem. Ele lhe deu vida e uma trama só sua.
Mesmo as histórias das personagens mais simples,
do tipo sem efeitos especiais, montadas apenas por
um produtor solitário e estreladas por pessoas feias,
mesmo essas não estão abaixo dele. O infinito vai
até as alturas dos transcendentes épicos das estrelas
e até as profundezas do formigueiro onde uma leal
trabalhadora dedica a vida à labuta, desde o
primeiro dia após o estágio larval até seu nobre
final, morta por uma joaninha enquanto defendia a
vulnerável horda de afídeos da colônia.
A história da formiga pode ser mais dramática
que a sua, mas não é maior. E não se preocupe:
algum dia você encenará de maneira definitiva
também. Algum dia, mesmo em histórias lentas e
suburbanas, haverá uma cena de morte.
Entretanto, por que um cristão alegaria que Deus
parou de falar? Ele falou o mundo à existência? A
matéria existe à parte dele? Ela ainda está aqui?
Você ainda está aqui? Então, ele ainda está falando.
Saia da sua casa e observe o palco de hoje. Fale.
Deus responderá. Ele falará com você. Ele lhe deu
sentidos. Use-os. Ele desfilará sua arte. Ele lhe deu
uma cena, um cenário para o dia. Ele lhe dará
conflitos para superar, oportunidades para sua
personagem crescer ou fracassar.
Porém, não espere que ele fale em sua língua. E
não espere que ele fique em algum tópico que você
escolher. A atenção dele está em todos os lugares e
nenhuma história deveria ser fácil, como todo leitor
sabe.
Você está na sua varanda. Observe o céu azul.
Deus, vou conseguir fazer “a” venda hoje? Dá
para pagar um barco com a comissão.
Observe o esquilo, ele diz. Você o compreende?
Você sabe o que isso significa? O que ele lhe diz
sobre mim? Preste atenção em sua cauda curvada.
Você é o único a prestar atenção. Você e eu
estamos sozinhos na audiência, compartilhando a
cena. O que isso lhe lembra?
Eu preciso dessa venda.
Tem uma formiga no seu sapato. É uma formiga
das boas. Na primavera passada, ela virou o jogo na
“Grande guerra da rachadura da calçada da rua
Pinheiros”. Um dos avós dela viajou quase 800
metros com Lewis e Clark. Você sabe que hoje ela
morre? Que você é a morte dela?
Eu queria ter um carro novo. Hyundais não têm
graça.
Na época de Noé, havia uma criatura pequena,
menor do que se pode enxergar. Depois de uma
longa jornada e muitas dificuldades, hoje, os
descendentes dela estarão no seu escritório. Neste
momento, ela está em seus momentos finais no
botão de micro-ondas, desesperada para se
reproduzir antes do fim. O drama é incrível, na
verdade. A narrativa é intricada. Você não
acreditaria em todas as reviravoltas e guinadas que
aconteceram para ela estar ali.
Por que eu preciso trabalhar com o Daniel nessa?
Daniel é a pessoa mais chata do universo.
A criatura viverá. Amanhã você terá
conjuntivite.
Eu não conseguiria acreditar em um Deus que
faz os olhos coçarem. E as remelas no canal
lacrimal são um insulto a mais.
O apóstolo Paulo diz: Deus criou seus olhos. Ele
não pode torná-los vermelhos?
E quanto a Des Moines? Como um esquilo, uma
formiga e um embaixador da conjuntivite podem
me ajudar com meu problema?
Quem é você? Em que tipo de livro você se
encontra? Qual é o conflito? Se você lesse essa
história, vendo um narrador (realmente) onisciente
descrever sua pessoa, seus pensamentos mais
profundos, suas inseguranças e todos os seus
desejos, você teria algum problema em aconselhar
sua personagem? Seria muito difícil dizer quando a
personagem foi motivada por egoísmo ou orgulho?
Gostaria de ver essa história escrita? Gostaria de
ver a si mesmo como você realmente é, com
nenhum dos seus pensamentos ou impulsos
omitidos?
Talvez você não seja um pastor de jovens
lascivo, um conselheiro de abstinência hipócrita ou
um vizinho ladrão. Mas, você é algo. Um amigo
traiçoeiro? Um pai inseguro e abusivo? Um marido
infiel? Uma mulher ressentida? O quê? Percorra
seus pensamentos, cada um deles, não importa quão
pequeno, fugaz, horrível ou pornográfico. Projete-
os em uma tela para o público. Nós o
condenaríamos em um piscar de olhos — como
você poderia nos condenar. Um bom autor poderia
até trabalhar com o que é conhecido, as coisas que
você de fato deseja que os outros vejam. Você é um
murmurador birrento? Reclama do tempo? Você
sabe quanto trabalho eles tiveram com esse sistema
de tempo? Talvez haja ressentimento de qualquer
obstáculo, algo que torne seu dia mais longo ou
difícil. Você acha que não é valorizado. Com esse
jeito de pensar sobre todo o mundo à sua volta
(mãe, irmãos, colegas ou até a mulher), se sente
desvalorizado. Qual é exatamente o seu valor? O
planeta sentiria sua falta se você deixasse de
existir? A raça humana hesitaria?
Você está sempre no palco. Nós estamos sempre
em um romance, e mesmo quando nenhuma outra
personagem está por perto, a arte continua. A
audiência triúna assiste. Você recebeu um corpo.
De seus antepassados vieram seus pontos fortes e
suas fraquezas naturais. Sua história está toda
pronta. Você foi desenhado, descrito e colocado em
um palco como nenhum outro — o globo. E você
recebeu liberdade para atuar. Sua história já
começou. Ela começou quando um sortudo e ávido
espermatozoide subiu ao ponto mais alto do pódio e
ouviu o hino nacional. Uma batida de cauda mais
lenta e você seria outra pessoa. Você se chamaria
Teresa agora e não seria você. Teresa teria sido
melhor nessa coisa de vida. Teria sido mais bonita.
Boa no piano. Amada por todos os seus
conhecidos.
Ou não. Aparentemente, você foi digno de ser
trazido ao palco. Mas, por quê? Você é um
figurante na cena de outra pessoa? Está aqui por um
acaso? Um alívio cômico? A garota que tira a blusa
e inicia o filme de terror? Sua presença aqui é para
se apaixonar por acaso, receber uma bela vida e,
então, queimá-la toda no inferno por cinco curtos
minutos no motel A2? Você serve de lição para os
outros?
Todos nós estamos assistindo. Todos somos
assistidos.
Para alguns, isso pode parecer glamoroso. Toda a
ideia de estar em um romance, filme ou reality
show é muito atraente.
Nós sabemos que tipo de pessoa é essa.
Conseguimos perceber a superficialidade, a
frivolidade de seu egocentrismo. Mas, por algum
motivo, eles não conseguem. Por algum motivo,
nenhum de nós consegue quando estamos
concentrados em nos fazermos de idiotas. Escute
seu diálogo. Examine seus pensamentos. Fique
horrorizado. Agradeça por Deus amar personagens
e amar personagens em jornadas, personagens a
lutar com honestidade para crescer. Se outra pessoa
recitasse suas falas, você gostaria dela? Se outra
pessoa mantivesse a atitude igual à sua, ficaria
impressionado?
Eu amo a história. Amo estar na história porque
há besouros, minha mulher, meus filhos com olhos
esbugalhados, cócegas na barriga, o aroma da terra,
mãos que empolam, vespas, mariposas e vento
aromatizado. Amo assistir à história porque ela me
mostra quem sou e quão longe preciso ir. Porque
ela me nocauteia e espera para ver se vou me
levantar. Porque estamos sempre à beira do
penhasco e o perigo é real. As escolhas diante de
você nunca vão embora. Cena após cena são dadas,
e o fervilhante universo na audiência aguarda sua
reação, sua fala, espera para ver se você vai gritar
com a criança gordinha que derramou o leite ou se
você vai rir e beijá-la. Que tipo de pai você será na
história deles? A corcunda nas costas que sempre
as assombrará, aquele que lhes deu traumas para
superar? O que é muito ocupado? O beberrão? O
traidor?
Caminhe pelo penhasco. Observe-se caminhando
pelo penhasco. O oceano está sempre lá,
devorando.
O que sua personagem fará quando coisas
pequenas acontecem, quando seu carro o trai no
frio? Quando os canos congelam? Quando Deus
congela a calçada debaixo de seus pés de forma
deliberada? Quando o sol se põe com beleza
enquanto você alfineta sua mulher? Você ri das
piadas e ama o amável? É importante demais para
se divertir com sua finitude? Você não está ciente
de que evacua todos os dias? Quão sublime é você?
Uma vez, um amigo me contou como ele perdeu
as pontas dos dedos. Ele entalhou sua história com
cuidado. Acalentou-a — sangue na serragem,
surdez pelo choque, diálogos iniciais. Ele se
apresentou como um anti-herói completo, com
delírios, hilaridade sob o efeito de anestésico e
atração pela enfermeira.
Eu gargalhei. Ele gargalhou. Ele queria que eu
risse. Uma outra amiga que ouvia disparou contra
nós.
“Por que vocês estão rindo?”, ela perguntou.
“Isso é horrível.”
Eu e meu amigo olhamos um para o outro.
“Porque é engraçado”, eu disse.
Ele bufou e levantou a mão. “Foram só os meus
dedos.”
Meu cunhado perdeu as pontas dos dedos em um
cortador de grama. Elas foram reimplantadas. Pelo
menos, até que ele bateu uma na porta do carro e
ela se soltou. Ele jogou no lixo. Ele tinha
compromissos.

No cais, eu me viro para a última olhadela. A


tempestade está enchendo o píer de areia. A chuva
pinga em meu capuz e desce pelo nariz. Minhas
pernas ficam irritadas ao se mexer dentro do jeans
molhado.
O oceano se estatela. No horizonte, o céu
cinzento encontra o mar cinzento e os dois tornam-
se um, uma ininterrupta muralha de tempestade.
Mais perto, as ondas se levantam por trás do farol.
“Frio”, eu digo.
Frio, Deus diz. E molhado.
A cadência é agitada. Eu sou parte de uma fala,
uma palavra de uma coleção escolhida para este
dia, esta cena. Suas sílabas salgadas mordem
minhas bochechas e ele continua a falar:
As praias devem ser lavradas, ele diz. Os leitos
de algas marinhas cresceram demais. Os penhascos
precisam de novos buracos. Os ricos que moram no
penhasco precisam de novas goteiras. Os mares
estão pedindo para serem agitados. Os tubarões
precisam sentir-se pequenos. As focas e os
golfinhos estão rindo. Eles sempre estão. Você
poderia aprender com eles.
“Frio”, minha mulher diz. E nós voltamos.
NESTA MANHÃ, eu cuspi em uma árvore. Espero que
ela não tenha se importado. Queria cronometrar o
quanto demorava para meu cuspe congelar. No
entanto, fiquei distraído ao colocar o cinto de
segurança do meu filho. Quando terminei e olhei de
novo, a estrutura molecular havia se expandido e a
árvore tinha um pequeno brilho extra, uma pequena
cintilação no tronco. Minha arte. Minha expressão
pessoal.
Menos de dois minutos.
Resumo de teoria da arte destilado a partir de
Tolstoi (e outros): arte é a comunicação de uma
experiência ou sensação, real ou imaginada.
Frio é uma sensação. Ela já foi comunicada?
Essa onda de frio me agrada. O frio é do tipo que
sábios, sacerdotes e meteorologistas referem-se
como “congelante”. É necessário que a temperatura
esteja a zero grau para fazer gelo. Hoje todos os
graus sumiram. Eles tiraram folgas coletivas e
ficaram em casa usando moletom. Não posso
culpá-los. O retrovisor normalmente os conta-os
para mim. Zero.
Quando eles não estão por aí, as coisas ficam
intensas.
Meu filho espera em seu banco, mas há algo que
devo fazer primeiro. Algo pelo que tenho esperado.
Inalo com força pelo nariz e sinto o beliscão de
cristais de gelo se formando nas minhas narinas,
puxando seus pelos com discrição. Inalo com mais
força, puxando minhas narinas contra a estrutura
central do nariz. Aconteceu. Eu paro de respirar.
Minhas narinas se fecharam congeladas.
Eu ando em volta do carro saboreando a
sensação. Se alguém se oferecesse para apertar meu
nariz, o carteiro, por exemplo, recusaria de maneira
mais ou menos polida. Mas, quando o mundo faz
isso, quando uma mão intangível, mas gelada, faz a
oferta, não posso recusar.
Existir nesse poema é o maior dom que qualquer
criatura finita pode imaginar. Ser insignificante e
ainda ganhar uma fala, receber cenas minhas e só
minhas, cenas em que a audiência se limita ao
próprio Autor (cenas que eu muitas vezes estrago),
estar aqui com meu nariz congelado, ter sido
moldado com pelo menos tanto cuidado quanto um
floco de neve (embora eu seja mais difícil de
derreter), e ouvir, sentir, ver, provar e cheirar a
densa poesia de Deus, isso me basta.
Exalando, sinto o desgelo. Eu deveria estar
dirigindo. Estamos atrasados, e o jardim de infância
não espera por ninguém.

Para mim, é estranho que nos momentos frios,


com minhas bochechas rachadas e os dentes
ressecados, eu esteja mais perto do sol do que
estarei no calor de agosto. Tudo se explica com
refração e reflexo. Onde estou agora, no alto do
meu planeta nativo, estou inclinado distante do sol.
A distância entre nós é menor, mas estamos tendo
problemas de comunicação. A inconveniente
atmosfera armazena uma fatia do amor solar para si
e a redução na energia é o bastante para tornar
flocos de neve possíveis.
Eu tentei ponderar sobre a bizarrice de nossa
posição exata no espaço. Se conseguisse calcular
probabilidades dessa natureza (se alguém
conseguisse calcular probabilidades dessa
natureza), então gostaria de saber quais são as
chances de uma imensa esfera acabar girando em
torno de uma esfera flamejante ainda maior (sem
despencar nela, por enquanto), posicionada
exatamente na distância correta, de tal modo que as
temperaturas sejam frias o bastante para não nos
fazer contorcer como os pelos do pulso perto de
uma churrasqueira, e quentes o bastante para não
acabarmos como os mamutes surpreendidos com o
rápido crescimento das geleiras. (Imagine uma
geleira rápida o bastante para esgueirar-se e cobri-
lo de gelo enquanto você inocentemente mastigava
uma flor). E o menos provável: o eixo de nosso “lar
bola de boliche” está inclinado, pendendo o
bastante para que, de um lado da volta anual (pelo
menos onde vivo), estejamos tostados e acendendo
fogos de artifício e, no outro, toquemos sinos e
esquentemos chocolate. Quais são as chances?
Alguém sabe? Algum apostador de Las Vegas
estaria disposto a me dizer as chances de isso
acontecer de novo?
Probabilidades. Elas são os profetas de um deus
mecânico. Suponha que o supervisor supremo dessa
realidade seja alguém chamado Acaso (com luzes
no cabelo e péssima habilidade de gerenciamento),
e suponha que tudo na existência aconteça de forma
aleatória (graças a ele), sem consideração pela
beleza disso. Vamos explorar a improbabilidade
total de algo assim um dia acontecer.
Diz o rumor que os homens normais enviam pelo
menos oito milhões de espermatozoides nadadores
por óvulo a cada ato sexual. Não se incomode em
adicionar variações ovulares ou o número total de
espermatozoides que tiveram alguma chance nos
dias férteis de sua mãe quando você foi concebido
(ou a possibilidade de que ela poderia ter ouvido o
conselho das amigas e rejeitado seu pai). Sejamos
simples e muito conservadores. A chance de você
estar aqui é de cerca de uma em oito milhões.
Engraçado. Essas são as minhas chances também.
As chances de nós dois estarmos aqui? Uma em 64
milhões. As chances de nós dois estarmos no
mesmo planeta redondo, inclinados longe o
bastante do sol para que nossas narinas congeladas
se fechem, mas não morramos? As chances de nós
dois estarmos no mesmo planeta redondo girando
em torno da mesma estrela com seis bilhões de
outras pessoas muito individuais, todas existindo ao
mesmo tempo? Isso me deixa cansado, como o frio.
Não sei como números maiores que um googolplex
são chamados, em especial pelo fato de um googol
ser maior que o número de partículas elementares
no “universo observável” (seja qual for o
significado disso), e um googolplex é um número 1
com um monte de zeros depois dele. Eu soube que
todo esse conceito foi inventado por um menino de
nove anos chamado Milton.
Mas, não vou parar agora. Ainda não. Mais uma
rodada de probabilidades. Comece com seus avós.
Quais eram as chances de todos os quatro piscarem,
chorarem e descobrirem que existem? Supondo que
o fato de sobreviverem, encontrarem-se e casarem-
se seja algo inevitável (e limitando as variáveis a
um único ato reprodutivo etc.), quais as chances de
seus pais serem concebidos? Supondo que o fato de
eles se encontrarem e produzirem você também
fosse algo certo, quais as chances de o resultado ser
você?
Uma em 2.097.152… espere… eu acho que fiz
bobagem aqui. Duodecilhão? Não. Isso tem apenas
39 zeros. Deveríamos apenas dizer “indefinido”?
Você entendeu, certo? Ou seja, você não tem a
mínima chance de estar aqui e deveria desistir de
tentar. Manter as esperanças doerá mais que você
não existir. Nós somos um mundo de ganhadores
da loteria. Para cada um de nós, vivo neste
momento, para cada parto, houve pelo menos
7.999.999 perdedores. Eles nem mesmo sabem
como quase existiram.
“Eu queria nunca ter nascido”, o adolescente
chora.
“Cala a boca, Randy. Há oito milhões de outros
garotos que estariam querendo existir neste
momento se ao menos eles pudessem querer.”
Quais são as chances de algo pintado por
Rembrandt ser bonito, poderoso e digno de estar na
sua parede? É algo certo. Pode apostar. O acaso não
tem nada que ver com Rembrandt. O acaso não tem
nada que ver com qualquer coisa até onde posso
dizer, graças a Deus. Se tivesse, o mundo seria pior
que uma tela de Jackson Pollock.
O ar que estou respirando e que descongela
minhas narinas, onde ele estava uma semana atrás?
Onde ele estava há um ano? Essas moléculas de
carbono e oxigênio que eu vaporizo no cosmo,
onde elas estavam quando Roma ardia em chamas?
Que árvore, que peixe, que estranha ou criatura
bizarramente normal usou esse carbono em sua
carne, bombeou esse oxigênio em seu sangue? Eu
estou respirando partes do cavalo de Genghis
Khan? Sem dúvida, esse carbono começou há
muito tempo, em um cardo distante ou um pedaço
de tronco. Quantas vezes ele foi consumido,
expelido e consumido de novo? Quantas
reencarnações ele teve ou estou trabalhando com ar
virgem? Eu duvido. Respirar onde nenhum homem
respirou antes é mais difícil do que parece.
Ao observar as estrelas, há momentos em que eu
subitamente me arrepio e sinto um tipo de vertigem
cósmica, momentos em que minha mente abre o
zoom, e estou olhando para mim mesmo sobre esta
bizarra bola de gude, momentos em que posso ver
as hostes celestiais, estrelas amontoadas por cima e
por baixo, quando o mundo de fato parece tão
grande e indômito quanto é. O mundo pode me
deixar enjoado. Ele pode me fazer rir de nervoso
até minha mandíbula doer. Não sou muito velho
para esse brinquedo? Quando foi a última inspeção
dele? Não consigo achar meu cinto de segurança, e
consigo ouvir alguém gritando para sair.
Mas, não são sempre as estrelas, não são sempre
as imensas extensões dos céus, que fazem meus
joelhos tremer.
Houve um dia, anos atrás, um dia entre o inverno
e a primavera, quando o sol começava a descer e
achar seu rumo em nossa atmosfera angulada e o
gelo se tornava água viva, gotejando de árvores
pontiagudas. Eu me assentei tremendo em um
tronco que tinha caído junto a um riacho,
observando a água correr abaixo de mim. Pequenos
montes arborizados nos rodeavam. Foi ali,
escutando o sussurro da inquietação líquida, que
comecei a sentir esses pensamentos, quando
comecei a sentir-me como uma palavra entre
palavras, entendendo a linguagem divina da
criação, mas incapaz de falá-la por mim.
Eu sabia o que Deus estava dizendo. Ele me deu
olhos para que eu pudesse enxergá-lo a dizer. Deu-
me ouvidos para que pudesse captar os ritmos,
ruídos e rimas. Minha pele pode ficar tensa,
provocada por sua respiração, e se sobressaltar.
Minha língua pode provar essas palavras, a água, as
folhas de pinheiro, até o tronco que me sustentou,
mas eu não consigo proferi-las. Nós lhes damos
nomes, criando atalhos para elas com sons
menores, sons que cabem em nossa boca.
Árvore, eu digo, e você sabe o que quero dizer.
Você vê uma em sua mente ou olha através da
janela e se lembra da poda urgente. Árvore, Deus
diz, e há uma. Mas, ele não diz a palavra árvore;
diz a própria árvore. Ele não precisa de atalhos.
Não está apenas chamando uma à existência,
embora sua voz crie. Sua voz é a existência dela.
Aquela coisa em seu quintal, aquela macieira
esquálida ou o abeto imponente, aquela coisa não é
o referente da palavra dele. Ela é a palavra dele e
seu referente. Se ele parasse de falar, ela não
existiria. Ou você acha que suas moléculas, átomos
e quarks são feitos de algum tipo de matéria
misteriosa e autossustentável que sempre existiu e
sempre existirá, alguma massa de modelar infinita
ou hidrogênio, louvado seja? Talvez houvesse um
Adão Quark up e uma Eva Lépton? Talvez Deus
tenha encontrado um pouco de matéria infinita e a
encheu como um balão, e agora ela crepita e cospe
enquanto gira, sustentando a si mesma? Talvez o
balão tenha se encontrado e se enchido sozinho.
Confie na infinidade da matéria se quiser, e o acaso
escreverá a história. Ele misturará páginas,
palavras, rabiscos de diferentes línguas, o nariz de
outras pessoas e pequenas porções de fios, rodará
tudo em um triturador e os borrifará em seu quintal.
Aproveite seu livro.
Imagine um poema escrito com palavras
tridimensionais tão enormes que foi preciso
inventar uma palavra menor para fazer referência a
cada uma das grandes; tivemos de reescrever tudo
em letras minúsculas, esmagando-as em duas
dimensões, apenas para falar sobre ele. Ou não
imagine. Olhe para fora. A linguagem humana é
nossa tentativa de navegar pela linguagem de Deus;
somos nós correndo por entre as linhas de seu
poema épico, escalando as vogais e construindo
casas com as consoantes.
Vê isso aqui?
O quê?
Essa grande pilha de pedras que vai até onde o ar
fica rarefeito?
Sim. Ela tem um monte de sílabas.
Vamos chamá-las “montanha”, está bem?
Quando eu digo montanha, isso é o que significa.
Será mais fácil que construir uma toda vez.
Ela vai explodir?
Vamos chamá-la “vulcão”.
Nós sentimos a necessidade de nos comunicar
com os outros sobre essa coisa sobre a qual
estamos, essa coisa girando de onde não podemos
sair. Nós combinamos linguagem e imaginação, e
fazemos o melhor. No entanto, as palavras nos
faltam. Elas são apenas ruídos no ar e tinta
achatada em uma página. Então, nós pintamos.
Cutucamos a argila. Desenvolvemos teorias de
arquitetura. Escrevemos poemas e romances, e
produzimos filmes independentes granulados. Tudo
para comunicar… “como o mundo nos faz sentir”?
Para fazer os outros sentirem o mesmo? Para
doutrinar? Para lembrar os outros do que todos
sabemos, do que todos vemos, do que todos
sentimos e, então, fazê-los passar por isso de novo?
Nós imitamos as palavras de Deus, mas nossos
ruídos são insuficientes. Rabiscamos as margens,
como crianças se esforçando para capturar a capela
Sistina com pintura a dedo em um prato de papel. O
que mais podemos fazer?
Meu pai usa um marcador azul para lembrá-lo
das coisas boas que lê, mas ele tem problemas em
se ater a pores-do-sol, tempestades ou gritos de
certas aves na primavera. Seu violão é mais útil.
Um pensamento de Clive S. Lewis, resumido e
retirado de seu habitat natural: “A arte não tem
valor de sobrevivência; antes, dá valor à
sobrevivência”.
Naquele dia, sentado em meu tronco nos
primeiros movimentos da primavera, a corrente do
rio me deixou estupefato. Eu me assentei,
observando, tentando compreender sua absoluta
solidez. Sim, sua solidez. Poderia ter pulado nela
(talvez) e ainda estaria além da minha
compreensão. Queria saber quantas moléculas
estavam deslizando por mim a cada minuto. Queria
saber onde elas passaram a vida, vida que
remontava ao princípio do mundo. A maioria delas
provavelmente já tinha sido neve, delicada até
pouco tempo atrás, revelando-se agora no duro e
violento mundo da rápida correnteza nas
montanhas. Antes da neve, o que elas tinham sido?
Vapor saindo de uma vaca? Evaporação de uma
piscina infantil? A maioria provavelmente foi
oceânica. Ex-ondas. Mas, e antes disso? Quantas
vezes cada uma dessas moléculas caiu do céu,
contribuindo para algum cantinho de um floco de
neve? Quantas vezes divorciadas em hidrogênio e
oxigênio solitários, quantas vezes casaram-se de
novo? Elas haviam viajado, sem dúvida. Estavam
por aí quando Moisés lidou com o mar Vermelho.
Elas estiveram lá? Elas ouviram sobre isso dos
amigos?
Em algum lugar no mundo há água que correu
pelo corpo da própria Palavra quando João, seu
primo, o batizou. Sem dúvida essa água ainda
existe, ignorada pelo homem, conhecida apenas
pelo Autor desta história. Gotas foram escolhidas
para servir como suas lágrimas por Jerusalém,
outras foram escolhidas para esperar no seu lado
pela perfuração de uma lança romana. Elas
transbordaram e completaram seu chamado
poético, um floreio na história, um quadro dentro
de um quadro.
Entretanto, essa água se aposentou? Ela não tem
mais uma tarefa? Deus se certificou de que elas
nunca mais passassem por um reservatório de
privada ou umedecessem os lábios ressecados de
um mentiroso? Por que ele faria isso? Ele nunca se
tratou como sagrado. Esse é nosso papel. Somos
nós que corremos para as relíquias e conjuramos
outras quando são difíceis de encontrar.
Retornemos a meu tronco, de volta ao momento
perdido, engolido por sensações esquecidas. Tem
alguma parte do mar Vermelho flutuando acima de
mim enquanto me inclino sobre meu poleiro?
Estariam as lágrimas de Cristo, as águas de seu
lado, misturando-se agora com urina de gado, neve
derretida e pilares de vapor rançoso expelido por
chaminés comerciais? As baleias soltam jorros de
gotas sagradas na costa do Oregon? Ou essas gotas
lavam as mãos de um assassino?
Deus molda cada molécula de água com o
cuidado dado por ele a seus flocos de neve? Ele não
precisa de atalhos para nomeá-las, nem de
categorias gerais, pois conhece cada uma delas, até
a última. Sabe onde elas estiveram e para onde
estão indo. Conhece-lhes a singularidade e quais
das antigas gotas santíssimas agora estão em
relacionamentos que aterrorizariam qualquer
sensibilidade humana. Se eu pudesse saber a
história completa de um centímetro cúbico da
correnteza, então eu poderia conhecer a história do
mundo.
Quanto a Deus, seu Filho transformou água em
vinho. E, assim, terminamos a história antes que ele
transformasse o vinho em urina. (Deveríamos negar
que ele o fez?)
Eu cuspi em uma árvore no frio congelante. Mas,
o que era de fato aquele cuspe? Onde ele estará
quando eu tiver virado presunto?
Eu queria que essas coisas pudessem falar
comigo — troncos, correntezas e todas as suas
partes. Mas, todas elas estão falando comigo. São
precisos todos os meus cinco sentidos, extrapolação
mental e imaginação apenas para ouvir as coisas a
meu redor neste momento. Elas não usam a minha
taquigrafia, elas não sabem minha língua
bidimensional, achatada e sem vida. Minha língua
pode fazer o som do “t”, mas é incapaz de fazer um
tronco. Escreva-me uma história de cada coisa que
existiu, achatada sobre páginas. Amontoe-a no seu
idioma. Um livro, um volume por coisa, uma
página por ano. Isso deve resumir o suficiente. Eu
retirarei todas elas da biblioteca e me debruçarei
sobre cada página — juro. A história de uma pedra
brita em seiscentas páginas. Uma diferente história
de seiscentas páginas para cada pedra brita —
vulcões, inundações, britadeiras, equipes de
asfaltamento. Você não compra a ideia da terra
jovem? Beleza. Adicione as páginas adicionais. Eu
as lerei também.
O Criador infinito tem uma capacidade de
concentração infinita, um infinito amor aos
detalhes. Em sua história, cada elemento do palco
deve ter uma história completa. Cada figurante
deve ter genealogia completa. E o cenário deve ser
convincente. Não poupe gastos. Deve haver
gráficos tridimensionais, efeitos sonoros
convincentes e algo para quebrar o pano de fundo
negro do céu noturno, algo de bom gosto como
alguns bilhões de sistemas solares flamejantes e
borbulhantes, cuspindo mundos coloridos e estrelas
faiscantes, distantes o bastante para conseguir um
brilho discreto (como meu cuspe na árvore).
Estrelas de verdade são ilegais na maioria dos
estados. Você precisa fazer uma reserva antes.
Eu já assisti a cientistas tentando explicar como
seria encontrar uma criatura da quarta dimensão
(você sabe, a quarta). Todos concordam. Nós nem
mesmo saberíamos que ele era quadridimensional.
Apenas o sentiríamos e interagiríamos com ele nos
termos de nossas três dimensões, do mesmo jeito
que um cego interpreta o mundo nos termos de seus
quatro sentidos remanescentes.
Todos nós somos cegos. Quantos sentidos são
possíveis que não estão inclusos em nossa
natureza? Como será o modelo completo? Como
poderíamos saber? Todos estamos limitados a cinco
sentidos (pelo que sabemos) e devemos viver e
interagir com o mundo, com a arte e a linguagem
grandes demais para nós. Mas, também temos a
imaginação e o impulso criativo próprio.
Assistimos, estudamos, tentamos traduzir e
entender a enormidade da história que se passa à
nossa volta. Tentamos processar uma peça escrita
pelo infinito para o infinito. Ficamos
sobrecarregados. Sentimos essa história de uma
série de maneiras além da mera soma dos sentidos
físicos. Sentimos empatia e simpatia. Lamentamos.
Nossos corpos tremem e nossos olhos vertem água
quando alguém é tomado, quando outra
personagem, que amávamos e conhecíamos,
desaparece de nosso alcance sensório. Rimos.
Quando as coisas nos surpreendem e nos agradam
com suas reviravoltas e guinadas, nossos lábios se
descortinam e mostramos os dentes. Algumas
pessoas perdem seus olhos dentro da pele do rosto,
e todos nós experimentamos espasmos nas
entranhas, o diafragma momentaneamente
desarticulado, imitando a imprevisibilidade do que
acabamos de ver.
Recebemos muitas ferramentas para viver no
mundo, para nos tornar parte da audiência e atores
no palco. Você pode sair de tela (se for apenas
superficialmente) e examinar uma parte da pintura.
Nós estamos presos na arte, mas a arte é tão
profunda que somos autoconscientes. Somos
incapazes de focar na história de cada pedra,
incapazes de descobrir como cada molécula em
cada floco de neve é de verdade, incapazes de
assistir à grande corrida da nossa própria
concepção.
Mas, precisamos ver tudo? Observe o que está a
seu redor. Sinta o que está à sua volta. O que está
sendo dito; qual o sabor da história que rodopia no
seu parágrafo imediato e qual sua personagem?
Você está mais ranzinza do que precisa ser? É
ingrato? Encontra apenas um elemento da história,
uma nota da canção e, então, fica por ali? Esquilos
são atropelados neste mundo. Pessoas, jovens e
velhas, morrem e deixam o palco. É tudo o que
você enxerga? Então, escolha sua música de
acordo. Pegue um delineador preto, fique em casa e
não vá trabalhar.
Quando observa as estrelas, você se desespera
com a própria pequenez? É incapaz de ser apenas
um floco de neve na nevasca dessa realidade? Sente
medo de espaços abertos? Da grandeza de Deus, do
oceano violento e do fato de que, em algum ponto,
seu tempo aqui terminará? Ou sua pequenez é
causa de riso?
Há uma alegria avassaladora que crepita em cada
canto do mundo. Eu sou minúsculo, mas estou aqui.
Recebi sentidos, consciência, existência, e fui
colocado em um palco tão lotado com a vastidão,
tão abarrotado com a pequenez, que não consigo
fazer nada além de rir, e, às vezes, rir e chorar.
Viver faz a morte valer a pena.
Ayn Rand (condescendentemente simplificada):
“A arte concretiza as abstrações metafísicas do
homem ao retransmitir a ele a importância de sua
existência”.
Isso é tudo?
É difícil ficar concentrado com tantas coisas
girando a meu redor. Deus me distrai. Ele nunca
para de falar e jamais consigo parar de ouvir.
Há uma razão para dormirmos.
Há uma borboleta (meus filhos e eu só assistimos
a isso em um filme) que não se preocupa com suas
crias. Ela bota um ovo em uma folha e voa. O ovo
eclode e a larva despreocupada rola para o solo.
Ela morrerá. Ela não tem como alimentar-se,
saber o que é o mundo, ou aonde estamos indo ou
mesmo que vida e morte são diferentes uma da
outra. Todavia, ela não se preocupa. Há formigas
neste mundo.
As formigas coletam a larva e a levam para seu
ninho, descendo por seus túneis e depositando-a
junto às suas larvas nas câmaras-berçário. Ela é
maior que a larva de formiga e é cor de rosa. Mas,
as formigas não se importam. Elas a mantêm limpa
e alimentada.
Os cientistas dizem que as formigas não
conseguem distinguir. Talvez, não consigam.
Talvez, consigam. É suficiente para elas que haja
um órfão negligenciado. Seu tamanho, cor e
espécie não têm importância. Nós ignoramos a boa
ação delas e enfatizamos a ignorância. Talvez a
ignorância delas seja a boa obra.
Pelo menos, há uma vespa que pode perceber a
diferença entre as larvas adotadas e as biológicas.
Do ar, ela localiza ninhos de formigas que
receberam esses filhos adotivos. Ela invade.
Entorpecendo as formigas em confusão, a vespa
desce com rapidez pelos túneis, caçando o que já
sabe estar ali. Na câmara das larvas, a vespa ignora
as formigas larvais. Observa a rosada e, quando
encontra uma, a vespa sobe nela, arqueando suas
costas e abaixando seu abdômen, empalando o bebê
limpo e bem nutrido. Um único ovo é posto dentro
da larva, e a vespa parte, buscando outras,
perfurando o máximo possível delas antes que as
formigas confusas recuperem a sanidade.
Cada larva endurece, virando crisálida e
transformando-se em sopa no interior de paredes
rígidas. A sopa se modifica. Enquanto as formigas
observam, duas criaturas nascem. De cada pupa não
atacada, nasce uma borboleta que arrasta asas
moles e azuladas; o inseto segue seu caminho para
o solo. As belas asas se abrem e se endurecem no
sol. As formigas observam. É um filho para se
orgulhar.
A outra crisálida também se rompe, e uma vespa
corre para a superfície.
Vespas são vilãs em muitas histórias.
Quanto à efemérida, ela passa a vida debaixo
d’água. Seu ciclo é incomum, complicado e difícil
no mundo dos insetos. Não é o caminho mais fácil.
Não é um arco confeccionado pela natureza para
buscar vantagens reprodutivas. Nenhum deus
pragmático projetou isso.
Por dois anos, as efeméridas nadam abaixo da
superfície. Quando elas finalmente alcançam o ar,
peixes e pássaros salivam. Os machos
sobreviventes sofrem transformações e
transformações até alcançar a idade adulta.
A vida adulta durará trinta minutos. O macho
não tem estômago nem boca. Ele tem apenas um
pequeno estoque de energia larval e nada a perder.
O frenesi báquico começa. Meia-hora. Meia-hora
para voar, lutar e acasalar. Meia-hora para evitar os
peixes pulando e os pássaros mergulhando, e
vencer a resistência feminina.
Por favor, eu tenho apenas trinta minutos de
vida.
Isso pode funcionar no mundo humano, mas as
efeméridas são duras na queda.
Sinto muito. Você e todos os caras que eu
conheço.
Ela podia estar a fim. Ela podia não estar. De um
jeito ou de outro, você estará morto na hora do
almoço.
Gilbert K. Chesterton (do Illustrated London
News [Notícias Ilustradas de Londres], nada menos
que isso): “A arte, como a moralidade, consiste em
traçar a linha em algum lugar”.
O que é arte?
Você é. E a efemérida. E toda vespa que já
viveu. E o severo inverno vencido pela primavera.
A maternidade. Grama. Júpiter. Seu vizinho
irritante.
A arte é.

O sol está aquecendo agora, ou a atmosfera


cansou-se de lutar. Formam-se poças na rua. Os
graus estão de volta. O gelo nunca vence.
Digo adeus para os flocos de neve. Vocês
viveram mais que as efeméridas.
Não se preocupe com isso, eles dizem. Estamos
indo para um lugar melhor.
Onde?
A maioria para o oceano. Alguns de nós
caminharão, alguns voarão. Uns têm agenda na
Ásia. Sem ofensa, estamos prontos para tocar a
vida. Não há muito acontecendo aqui além do
cachorro.
Desculpe pelo amarelo. O cachorro não é meu.
Os flocos ictéricos riem. Não nos importamos.
Aquela água de cachorro teve uma boa vida. Ótima
história. Foi uma honra.

Você entende a fotossíntese? Em especial toda a


parte de “fazer árvores e folhas e frutos a partir de
ar rarefeito”? Vá soprar naquele arbusto. Você não
consegue ver, mas o arbusto vai transformar sua
respiração em suco de morango. Nós podemos
melhorar esse nome. Fotossíntese. Eu sugeri
“magia verde”, mas ninguém me escuta.
A grama está reaparecendo, marrom e cansada,
empacotada em túmulos de relva. Porém, o sol a
trará de volta. Eu já li essa história antes, mas não
acho que consigo estragá-la se revelar o final. Tudo
volta à vida e ela vai ficar tão espessa que
precisarei cortá-la. Repetidas vezes. Nós
inventamos máquinas especiais.
Esse ar é frio, mas parece quente porque não está
me mordendo. A primavera não chegou, mas a
promessa de primavera já. Eu me sinto como um
ermitão do Antigo Testamento, um profeta
esperando o mundo descongelar, esperando por
dias maiores e o sol mais luminoso, esperando por
um mundo novo voltar à vida.
O açafrão será o primeiro, do lado sul da casa. A
primavera vale a espera. A vida vale a morte.
Eu caminho até o muro de pedras cinzentas da
rua. Algum cachorro deixou um presente de
inverno ao lado da porta do meu carro. Não vou
pensar sobre o que esse material era antes, ou todas
as coisas maravilhosas que ele pode se tornar.
Penso no que é agora, nesta fala da história. E,
nesta fala da história, eu tenho uma tarefa a
cumprir.
Quando ela está cumprida, eu me inclino contra
as pedras e observo o cinzento mundo derretido,
junto ao tronco da árvore agora sem meu brilho.
Eu gosto do meu muro de basalto. O musgo
cresce bem nele, e é um bom lar para as lesmas de
12 cm que deixarão trilhas lustrosas na calçada
durante o verão.
Certa vez, essas rochas explodiram. Em algum
momento, elas foram líquido, vomitadas por um
planeta.
Eu dou um tapa em uma.
Ela não diz nada, mas diz algo. Todas as palavras
dizem. Pelo menos, ela significa ela mesma, um
muro de contenção para mim e um lar para as
lesmas.
GOSTO DE PALAVRAS QUE PODEM LEVAR TAPAS.
EU VEJO MEU AVÔ A CAMINHAR entre montes de
neve cavados por uma pá, movendo-se com
lentidão sob o fardo da vida. Ele está a uma quadra
da janela do escritório onde estou, mas, ainda
assim, consigo ver seus lábios se mexendo,
incapazes de engolir de volta os hinos e orações
dentro dele. Ele é meu ancestral, pai do meu pai,
um velho jarro, rachado e a verter calor pelo
caminho.
Volte duas décadas atrás. Vista-me meu pijama,
e posicione-me em outra janela, uma janela na
velha, vergada e rachada casa amarela. É véspera
de ano novo, aniversário de casamento de meus
pais. Lá fora, o mundo é frio, e a noite
provavelmente passou da metade, adentrando os
primeiros momentos sombrios de um jovem ano.
No inverno, porém, a escuridão da meia-noite
assume um sabor diferente. Profundos, brancos e
brilhantes enxames de cristais se acumulam sobre
os montes e se empilham com perfeição sobre cada
galho de árvore. Eu permaneço, tremendo, a
observar pela janela um mundo pérola fulgurando
sob a face da lua, tão claro quanto silencioso. Uma
floresta de grossas formações de gelo se estica para
baixo na janela lateral, curvando e turvando o luar.
Há muito meus avós estão dormindo, mas
minhas duas irmãs cuidam de mim, empacotadas
em seus sacos de dormir ao lado das brasas
pululantes da lareira da sala de estar, protegidas das
faíscas por uma cansada tela de arame.
Meu avô é como essa casa. Outrora forte e
jovem, agora suas vigas e traves cedem ao fardo do
longo uso, mais pesado até que os montes de neve
em seu teto e os dentes de gelo que se estendem das
calhas para baixo. O jovem fazendeiro de Nebraska
remou para a Marinha. Ele serviu bem na Coreia.
Dedicou a mente afiada e a boca de buldogue à
vida de caçada a almas. Embora muitas de suas
vítimas agora continuem seu trabalho, ele não se
deterá até que seu teto desabe sob o inverno.
Da janela, de volta à minha juventude, tremo de
novo. Minha pele se arrepia em regiões
montanhosas, mas eu saboreio o frio. Esse frio, esse
calafrio e a corrente de ar que sinto atravessar a
antiga estrutura de vidro me preparam para o belo
abrigo de calor que é meu saco de dormir. O fogo
estala, tentando-me, mas permaneço parado,
observando o frio a rastejar, maravilhando-me com
as pontas de gelo. Na casa, elas são as linhas de
frente do inverno — um muro de Berlim erguido
(ou descido) entre a vida hibernante e o frio mortal.
A casa é como seus ocupantes. Ela nunca foi
egoísta com seu calor. O calor é sua dádiva para o
mundo, e as pontas de gelo se formam em
retaliação. Todos os anos, nesta noite de inverno,
quando nossos pais saem, meu avô acende o fogo,
bloqueia-o com uma tela e coloca nossos sacos de
dormir no chão ao lado dele. Às vezes, ele derruba
os sofás sobre seus rostos e os empurra para formar
um forte. Ele sempre permite que queimemos
coisas inapropriadas no fogo — no geral, lixo — e
as estranhas cores dançantes nos entretêm enquanto
deitamos no chão, cochichando.
A lua estreita por entre os galhos das árvores, e
as formações de gelo curvas capturam sua luz.
Essas são as pontas de gelo que ameaçam alcançar
o solo, os dentes do inverno a roer a casa,
deformando as calhas.
Vou até a porta e enfio os pés pequenos em botas
gigantes. Não precisarei de um casaco. Eu já estou
com frio.
Minha irmã mais velha se senta. A porta se abre
e o inverno invade, abocanhando friamente minhas
canelas, braços e rosto, deslizando de forma
invisível pelo chão até os sacos de dormir.
Eu estou do lado de fora, a porta está fechada, e
minha pele é da cor do luar.
Não consigo tremer. Minhas juntas estão se
endurecendo. Caminhando pela calçada, apresso-
me até o canto da casa, na direção do maior dos
dentes de gelo. Uma avalanche de neve ocorre para
dentro das minhas botas. Agulhas de ar, espinhos
de gelo me furam quando agarro a ponta maior. Um
terceiro se solta sobre minhas mãos. O restante
junta-se à carnificina de gelo logo abaixo. Pegando
um pedaço, eu o lanço na fileira de dentes restante.
Uma mandíbula quebrada. Presas tombam.
Eu me viro, tremendo, e corro de volta à casa, de
volta ao calor.
Petulância com o inverno, desdém e desrespeito
para com o frio eram importantes para a gente
naqueles dias. O frio não podia ser nosso mestre.
Meus filhos têm um nome para a minha avó. Ela
é Chi-Chi-Pa. Eles lhe deram o nome da canção
japonesa que ela canta, uma relíquia de seus dias de
missionária, um tempo em que ela podia caminhar
sem titubear e que a dor não era parte tão grande de
sua existência. Ela sorri e ri quando meus filhos
roubam o andador dela, quando a primavera rouba
parte do cenário do inverno.
Até onde me lembro, ela já escolheu os hinos do
próprio funeral. Tem amor, calor e alegria, mas não
pode evitar a expectativa do fim. Está ansiosa para
que o gelo deixe suas juntas, para que seus olhos
queimem cintilantes. E trabalhou por muito tempo.
Tem filhos e uma filha que a amam e honram. Ela
já viu a rica colheita de quinze netos e trinta
bisnetos. É feliz, mas está ansiosa.
Quando o colapso final chegar, quando o gelo
triunfar, pelo menos ela não terá parte com o luto.
Deixe o inverno vir. É o único caminho para a
primavera. A casa está baqueada com o frio, mas,
por dentro, há um calor que não pode, nem irá
morrer.
Minhas duas irmãs estão acordadas,
conversando, sussurrando para mim e rindo em
silêncio enquanto fecho a porta e tiro minhas botas,
com a farpa de gelo gotejando em minhas mãos.
Dentro da antiga lareira, há um estranho
fogãozinho com portas de ferro abertas e uma
tampa de ferro lisa. A ponta de gelo derretida é
colocada sobre a tampa, e nós três nos amontoamos
para assistir. O dente de inverno gira, chia e se
contorce de dor enquanto diminui, deixando uma
trilha escura que desaparece com rapidez.
Nós assistimos até que nenhum traço permaneça,
até que a mordida invernal seja levada aos ares de
modo invisível. Então, em triunfo, enfiamo-nos de
volta nos sacos de dormir e observamos o fogo,
certos de que não dormiremos antes das brasas, sem
temer o inverno, ninados com conforto pelo calor,
ninados até dormir por seus sussurros.
PRIMAVERA — olhe para o sol.
Eu estou comendo meu almoço em um
cemitério. Sementes humanas foram plantadas em
pequenas filas organizadas. Postes de pedra
marcam a colheita.
Minhas costas estão contra uma parede e,
enquanto mastigo, meus olhos vagam.
A menos de três metros de mim, um Richard foi
plantado. Ele foi plantado há três décadas. Há um
espaço na pedra para outro nome, espaço na terra
para outra semente, completando um par.
O sol brilha, mas menos do que eu esperava que
fizesse. O solo está molhado e frio. Estou em
Maryland, demorando-me atrás de uma antiga
igreja cinzenta. Jovem, a primavera ainda
cambaleia.
O sol anima o solo em que bate, mas apenas
brevemente. Nuvens, condenáveis nuvens,
interferem em sua graça.
Não importa. As sementes precisam de mais do
que o sol pode dar.
Fico em pé e caminho pelas filas, lendo placas e
predições. Certo tempo e esforço foram investidos
nesses marcadores, dinheiro gasto para nos
lembrarmos de onde aguar, capinar e observar, para
não nos esquecermos de onde colocamos outra
ervilha do nosso casulo.
Há uma pequena pedra que chama minha
atenção, momentaneamente emoldurada em um
sorriso dourado rápido demais para as nuvens
conterem. A luz passa, mas a pedra permanece, do
outro lado do terreno da igreja, ameaçada pelas
costas por uma sebe descomunal.
A água se infiltra ao redor dos meus sapatos
enquanto caminho, e não consigo deixar de pensar
em como essas camas devem ser. Mas, a umidade é
boa para o jardim.
Lembro-me do sol, das nuvens e do frio sete dias
atrás. Eu me lembro da sebe se avolumando em
torno da pequena pedra. Recordo-me de estar
parado a observar, agachado, lendo o nome e
decidindo jamais esquecê-lo.
Mas, eu me esqueci. Alice? Margaret?
Sei apenas que a garota jaz no solo há cinquenta
anos, contava dois aninhos quando sua vala foi
cavada e que flores novas, amarradas com um
cordão, repousam em seu túmulo.
Alguém não precisa desse lembrete de pedra, e a
separação de cinquenta anos permanece tão recente
quanto as flores. Para mim, mesmo a pedra não era
suficiente. No final, todos nós seremos esquecidos.
Mortes são tão comuns quanto nascimentos. Mais
comuns.
Em Cabo Cod, minha mulher e eu vimos
pequenos e apertados jardins de túmulos passarem
por nossas janelas enquanto viajávamos para o mar.
As pedras eram finas e desgastadas, cortadas e
entalhadas muito superficialmente para uma longa
memória. Aqui há sementes no solo, plantadas ao
acaso, com estacas confusas ou apagadas. O que
crescerá? Podemos apenas assistir e esperar pela
primavera. Tomates, talvez. Abobrinha. Mas, é
Cabo Cod. Haverá uma grande colheita de
marinheiros. Quantas dessas pedras de fato marcam
túmulos? Quantas foram colocadas in memoriam,
exibindo apenas um nome engolido pelo mar? Um
nome esquecido até pela pedra.
No restante do país, plantamos nossos mortos.
Nós os cultivamos no solo, o mesmo solo que nos
dá nosso alimento. Por toda a história do Cabo,
muitos milhares foram plantados no mar. Seus
nomes foram gravados em pedra e na alma de quem
os amava. Seus corpos engordaram a safra de
lagosta.
Observe o mundo. Veja morte e dor, injustiça e
luto. Como isso poderia ser um poema se Deus é o
Poeta?
Mal, o problema do.
Se Deus é todo-poderoso e bom, então como
pode haver mal no mundo?
Opção 1 (de três, de acordo com David Hume, o
escocês cético): Deus é todo-poderoso, mas não é
completamente bom. O mal não é problema para
ele.
Opção 2: Deus é bom, mas não todo-poderoso.
Ele vê todo o mal no mundo, mas é impotente
quando se trata de fazer algo a respeito. Se serve de
consolo, ele faria algo se pudesse. Pelo menos,
achamos que sim.
Opção 3: Não há Deus. Bem-vindo ao moedor do
Acaso.
Façam suas apostas. Apostem sua vida.
Gottfried Leibniz (imagine um cérebro
matemático, mais uma filosofia racional e otimista,
mais uma enorme peruca do séc. XVIII) muito
provavelmente tem provocado o uso deste
argumento mais que qualquer outro pensador. Ele
empurrou os atributos de Deus na direção oposta.
Se Deus é bom (ele começou), todo-poderoso e
perfeito em todos os sentidos, então este deve ser o
melhor de todos os mundos possíveis, um mundo
que não pode ser melhorado. Sem dúvida, um Deus
onipotente não poderia criar menos que isso.
Evidentemente, o raciocínio de Leibniz parece
correto (considerando seus axiomas). Porém, isso
não o impediu de ser zombado — em sua época, e
em cada departamento de filosofia até o presente.
Eu o admiro por isso.
Em For the Time Being [Por enquanto], Annie
Dillard tenta manter Deus por perto e fazê-lo
bonzinho (para não dizer piegas). Assim, ela (como
muitos outros) descarta a onipotência. “A coisa
menos provável pela qual Deus pode ser
responsabilizado consiste no que as seguradoras
chamam ‘atos de Deus’.”
Vai nessa. Katrina não foi ele. Nada envolvendo
falhas sísmicas tem relação com ele. Pare de olhar
assim para Deus — ele nunca chegou perto de um
tornado. Ele existe, é amigável, mas se você se
meteu em apuros, talvez queira fazer um pacto com
o diabo. Procure quem está no comando, eu sempre
digo. Você pode voltar atrás depois, e talvez vire
um guitarrista muito bom enquanto isso.
Creso não era um luminar da inteligência (apesar
de ter inventado o dinheiro). Ele era o rei de Lídia
e, quando uma de suas concubinas deu à luz um
leãozinho, ele naturalmente consultou um oráculo.
“Carregue o filhote em torno dos muros de sua
cidade, e ele se tornará invencível”, ela disse,
falando em nome de Apolo.
Creso o carregou pela maior parte do caminho ao
redor da cidade, mas deixou de fora o topo de um
penhasco. Ninguém conseguia escalar aquela parte.
Qualquer criança saberia o que viria em seguida,
mas, ao que parece, Creso não leu as histórias
certas quando era jovem. Quando um deus lhe dá
um conselho, é melhor evitar seus olhos, deixar a
cabeça baixa e se certificar de que seguirá tudo à
risca. Se não fizer, esse deus virá atrás de seu
escalpo.
A não ser que você conheça um deus maior ou,
melhor ainda, seja parente de sangue de um.
Exércitos vieram, escalaram o penhasco, e Creso,
o homem mais poderoso nessa área do planeta,
uniu-se ao grande ciclo da vida.
A tropa de Agamenon foi abandonada em uma
ilha no caminho para libertar o mundo dos troianos
— os navios morreram em um mar sem vento.
O coitado teve de sacrificar a própria filha
apenas para conseguir dos deuses o vento que
precisava. Para piorar tudo, depois de mais de uma
década de devastação na costa da Ásia Menor,
fazendo apenas o melhor para sustentar a família,
ele chega em casa e sua mulher irritada (e sem
filha) o assassina no banho.
Honestamente, foi culpa dele?
Nós poderíamos falar sobre Édipo, o pobre e
acidentalmente incestuoso rei parricida. O destino
se esforçou com ele em níveis recordes.
Odisseu teve mais sorte. Vários seres com
controle sobre os “atos de Deus” conseguiram fazer
todos a seu redor serem comidos, afogados,
viciados na flor de lótus e transformados em
porcos. Netuno o queria morto porque ele cegou o
Ciclope (em vez de apenas se deixar devorar), e
Apolo deu um fim nos últimos amigos de Odisseu
depois que estes comeram algumas de suas vacas
sagradas. Odisseu foi até mantido como escravo
sexual ligeiramente descontente de uma ninfa
durante sete anos (ele chorava na praia à noite).
Mas, no final, ele conseguiu tomar o controle. Zeus
e Atenas o levaram para casa, permitindo-lhe matar
todos os invasores que procuravam sua “viúva”.
Em relação aos heróis gregos, Odisseu teve umas
boas décadas felizes.
Os antigos gregos tinham uma teoria: O mundo
(e todas as pessoas nele) está aqui para ferrar você.
Ferre-o(s) primeiro. Faça o melhor para apaziguar
os deuses mais poderosos, mas, no fim, não fará
diferença. Você comerá capim pela raiz. Se tiver
sorte, as pessoas que ficarem farão algumas piadas
no funeral.
Passando minhas mãos pelos lisos rostos das
lápides de Cabo Cod, aprecio mais uma vez o céu
noturno, observando inúmeras moléculas de água a
passar por mim em uma corrente, contemplando
pela janela enquanto conto flocos de neve.
Eu sou pequeno. Mal conseguiria me lembrar de
todos eles, conhecê-los todos e, ainda assim,
desejo. Cada uma dessas pedras marca a página
final de um romance, uma página com nada além
de um finis, centralizado e solitário. Só um bom
romance pode me fazer gostar da página final. Com
os melhores deles, em especial com os melhores
deles, essa última página é agridoce.
Quero encontrar cada um desses colegas de
elenco mortos. Desejo sentir seus punhos e
observar as rugas ao redor de seus olhos quando
eles sorriem. Quantos morreram em paz, felizes
com seus finais, sempre sabendo que ocorreriam no
mar? Ou, talvez, eles se surpreenderam por não ter
sido assim, divertindo-se porque quem ficou teria
de fato um corpo para plantar.
O sol e a chuva da primavera se misturavam
enquanto minha mulher e eu passávamos esses dias
andando pelo Cabo. Eu observava o mar-túmulo,
pensando sobre a frieza dessa morte, querendo um
número, desejando saber quantos mortos ele
guardava, quantos continentes guardavam mais.
Dirigindo pelo “dedo” de Massachusetts,
encontramos uma pequena construção com
aparência de prédio oficial edificada próxima às
dunas. O vento e a chuva nos empurraram na
direção dela.
Dentro, um homem sorrindo apontou para um
cinema em miniatura.
“O filme está começando”, ele disse. “É sobre
caça às baleias.”
Sozinhos, rimos em nossos assentos
desconfortáveis. A tela ganhou vida e, de repente,
estávamos olhando para os rostos dos mortos.
Em tom sépia, tremeluzindo e com andamento
mais rápido que a velocidade normal, homens se
movem em torno do convés de um baleeiro, o
último baleeiro dos EUA. Pelo menos, assim o
dizem.
Homens sem pernas e mãos, homens com rostos
endurecidos pelo sal, que começaram a morrer no
dia em que nasceram, correm e escalam.
Canoas longas e arpões — a época que estamos
assistindo está tão morta quanto as pessoas. Uma
grande carcaça é amarrada a estibordo, e um
homem sobe em suas costas. Tubarões se agitam na
água enquanto ele, sozinho, corta a cabeça da
baleia.
De alguma maneira, trazida à borda, a cabeça é
posicionada com sua cavidade nos encarando, e um
homem de um braço despeja o precioso óleo da
caveira da baleia. Onde está seu túmulo? Ele sorri
para a câmera, para essa coisa nova e estranha, um
memorial que o lembrará mais do que pedra, por
mais tempo que seu sangue e sua carne, um
memorial que tremeluzirá para estranhos enquanto
eles vagam pelas dunas.
Um narrador nos conta que esse navio e sua
tripulação só fizeram mais uma viagem. Pegos por
uma tempestade, o navio, como centenas antes
dele, se espalhou pelo fundo do mar e foi destruído
nos bancos de areia. Todas as almas foram
perdidas.
O idoso que retirou o óleo. O garoto, ansioso e
rápido com as cordas, jovem para o mar. O
corajoso marinheiro a enfrentar tubarões.
Eu tenho um memorial para esses homens
pendurado em minha parede. Eu comprei assim que
saí do cinema. É um mapa com listas e listas dos
naufrágios conhecidos no Cabo — “desastres
marítimos” de acordo com o rótulo.
Os navios têm nomes e datas. Mas, para os
homens, há apenas números. Almas contadas. 125,
207, 34. Sem nomes, idades e minibiografias. Sem
menção a esposas ou mães.
Agora, é mais fácil ganhar a vida no Cabo.
Cultivam-se oxicocos, e há turistas para comprar
sentimentalismo pirata.
Estranhamente, as taxas de mortalidade não
caíram. Todo o mundo ainda morre. Mas, agora, os
romances têm mais páginas (embora sejam menos
interessantes). Demora mais para alcançar o FINIS.
Eu era jovem quando minha prima foi enterrada.
Ela teve algum tipo de dano no cérebro durante o
nascimento. Ela não podia viver sem máquinas
energizadas por barragens contendo rios. Ou assim
os doutores disseram.
Seu novo cordão, o cordão que dava força a seus
pulmões, foi puxado da parede. Seu cérebro estava
morto, mas seu corpo, sua alma, lutaram.
Para ela, o milagre da respiração era um milagre
mais óbvio. Cada um soava como o último, cada
um de cada dia, todos até seu segundo ano.
E, então, certa noite, já tarde, meu tio saiu da
cama por impulso, foi até lá e permaneceu ao lado
dela. Seu corpo, tenso e lutando desde o
nascimento, relaxou. Seu último suspiro chegou, e
foi o único suspiro tranquilo que ela deu.
Alexa foi plantada. Seu lugar, marcado. Não nos
esqueceremos dela.
Não até sermos esquecidos.

Negar o poder de Deus pode acalmar os nervos


de alguns, mas sinceramente nem consigo começar
a entender o porquê. Quando a montanha-russa me
coloca de cabeça para baixo, me entorta e me envia
por uma espiral estreita, não tenho conflitos
filosóficos ou religiosos com a ideia de alguém no
controle, ou sobre o envolvimento dos engenheiros
ou se tudo isso, de alguma forma, é intencional.
Enquanto fico enjoado e grito, não aperte minha
bochecha e tente me tranquilizar apontando para
um funcionário em pânico operando controles
desligados. Não segure minha mão, contando-me
sobre as boas intenções dos engenheiros, mas a
impossibilidade de eles saberem o que o brinquedo
ia fazer ou onde ele terminaria quando eles o
criaram.
Nessas histórias, vomitar é minha única opção.
E, de preferência, em você.
Nós estamos em um mundo ligado por um deus
que não sabe dirigir? Esse deus está com vergonha?
Ele não sabia que flocos de neves vêm com
avalanches, como as pitorescas vilas que elas
destroem?
É claro que ele sabia. Esse Deus é grande, maior
que o mundo. Ter fé é difícil na garupa de uma
motocicleta, é difícil quando a “xícara-maluca”
inverte a direção do giro, quando as luzes brilhantes
viram um borrão contra o céu escuro. Porém, a fé
traz consigo a única possibilidade de paz e alegria
no mundo — a única possibilidade de riso neste
louco, louco passeio.
Negar o poder de Deus é uma tentativa teológica
de reduzir qualquer sentença que o homem escolha
impor contra ele, de diminuir o ressentimento
cósmico humano quando a história se torna
sombria. Mas, se o Deus todo-poderoso, de alguma
forma, torna-se mau por ter me dado dor, um Deus
impotente é corrompido do mesmo jeito. Se me
matar torna o Deus onipotente culpado de
homicídio, a melhor saída para um Deus
parcialmente potente é negligência em homicídio
culposo.
Quais são nossas opções? Quem deu a partida
neste mundo? Estamos falando de um Deus
envolvido com a criação em algum sentido? Ou
estamos falando apenas sobre algum ser
macroevoluído que confundimos com a gerência?
Se Deus é o Deus criador, então ele tem
responsabilidade. Se ele é a causa, o Artista de toda
a realidade, então o que está em sua tela aponta de
volta para ele, quer ele tenha feito com a
meticulosidade de um mestre holandês, quer tenha
jogado latas de tinta em um ventilador como um
artista universitário desesperado para pagar suas
contas. Se há alguma culpa (o se é bem grande),
então ambos temos parte nela. Se você tem algum
padrão de mal maior que o próprio Deus, um
tribunal grande o bastante para ele ser julgado, e
autoridade para condená-lo, então, por favor, faça-
o. Nós podemos discutir a defesa dele e a escolha
do júri depois.
Mas, se Deus é o Deus criador e, de alguma
forma, não tinha ciência do que estava começando,
ignorava que o Holocausto aconteceria, chocou-se
quando ouviu os planos de Hitler pela primeira vez,
e se sentiu consternado por não poder detê-lo, então
ele permanece a causa primeira de todo o mal.
Deus começou uma cadeia de eventos além de seu
controle.
“Mas, não foi de propósito. (Esfregando as
mãos.) Como ele iria saber que tudo iria tão rápido
para o inferno? Ele esperava que as pessoas
agissem mais como a Moranguinho.”
Não pense que isso lhe garantirá a absolvição.
Ele pode não gostar do mundo-acidente que criou,
mas deveria ter sido mais esperto. Se esperamos
que alguém seja mais esperto, esse alguém é Deus.
Ele anda bebendo? Eu alegaria insanidade.
Deus foi o primeiro a chorar. Isso é confortador?
Ele é o primeiro a receber as más notícias. Se ele
tivesse sido um pouco mais rápido. Ou talvez,
“sabe, ele realmente sente muito. Quando ele
inventou o fogo, não percebeu que poderia queimar
a pele. Eu espero que você se lembre de tudo o que
ele disse sobre perdoar. Inscreva-se já”.
E, claro, a não existência de Deus é nada mais
que uma opção absurda. As próprias categorias de
bem e mal exigem algum tipo de padrão
transcendente. O que torna as coisas boas? O que
torna as coisas más? De modo geral, os ateístas
abrem mão da ideia do padrão absoluto de
moralidade. Afinal, o vazio espiritual e a
inexistência de algo além do simples universo
material não é um meio de alcançar um sistema
ético. Moralidade é preferência cultural (que não se
pode chamar certa ou errada) e fundamentalmente
relativa. Ela tem (sendo generoso) a mesma
autoridade que os limites de velocidade do Brasil
em uma autoestrada americana à noite.
Neste mundo, pessoas são estupradas — e o
estupro é ruim. Pelo fato de o mal existir, Deus não
existe. Por não haver nenhum Deus — não existe
nenhum padrão detentor de autoridade acima da
criação — a malignidade do estupro é reduzida à
mera questão de preferência social. Cozinha étnica,
ética étnica. Na ausência de Deus, a essência do
estupro não é mais má. Em nosso país, você ficará
confinado em uma cela (se preso e condenado),
mas isso apenas significa que impomos nosso
gosto, não que nosso gosto tenha qualquer
autoridade sobre alguém mais. Em outras
sociedades, garotas são passadas adiante e trocadas
como figurinhas. Isso é certo? Isso é errado?
Nenhum dos dois. Você gosta de abuso; eu gosto
de torta de maçã. As duas discussões existem no
mesmo plano. Não há isso de moral e imoral. Neste
país, comem-se quibes. Em outro, come-se pizza. E
vamos multar você por passar no sinal vermelho.
Estonteante. Essa sabedoria é como um beijo na
boca.
Citando um dos profetas contemporâneos: “Você
e eu, garota, somos nada além de mamíferos,
vamos fazer como eles fazem no Discovery
Channel”.1
Eu assisti ao Discovery Channel. Gosto dele.
Mas, naquele mundo, se eu quiser me reproduzir
com você (ou despedaçá-lo), só preciso ser maior e
mais forte. Você parece bem pequeno e um pouco
doente. Posso usá-lo para alimentar meus filhotes?
Por que não? O canibalismo pode não ser tolerado
em sua cultura, mas ele conta com uma longa e
célebre tradição na minha. Você está dizendo que
sua cultura é superior, que é de alguma forma certa,
enquanto a minha é errada? Você está sendo
racista, mas, felizmente, ainda é pequeno, e mesmo
racistas são saborosos em uma caçarola.
Em algumas colmeias, há um ponto no início do
inverno em que as abelhas operárias se rebelam.
Elas começam a pôr ovos por conta própria, ovos
não fertilizados que ainda vão chocar
(estranhamente), mas apenas machos. A rainha fica
furiosa e come os ovos de suas damas tão rápido
quanto elas podem pô-los. Elas estão desesperadas
por suas crias e os põem do jeito mais discreto
possível, mas é em vão. A rainha os devora.
Por fim, desesperadas e agitadas, as operárias se
voltam contra a rainha, ferroando-a até a morte. O
inverno começa com essa guerra civil. Nenhuma
abelha sobreviverá até a primavera.
Eu nunca poderia acreditar em um Deus que
permite tamanhas trevas, que permite que abelhas
sintam dor e frustração, que permite que romances
russos aconteçam no mundo dos insetos. Quanto
mais na Rússia.
Nietzsche foi honesto. Ele entendia que não era
tanto uma questão de negar a existência de Deus
quanto de não gostar dele. Quer Deus existisse ou
não, Nietzsche não se importava. De O Anticristo:
O que nos separa não é o fato de não
reencontrarmos nenhum Deus nem na História nem
na Natureza, nem por detrás da Natureza, mas de
sentirmos o que é honrado como Deus, não como
‘divino’, mas como lamentável, absurdo, nocivo;
não apenas como erro, mas como crime contra a
vida… Negamos Deus enquanto Deus… Se alguém
nos demonstrasse o Deus dos cristãos, ainda menos
acreditaríamos nele.
O ateísmo verdadeiro é absurdo. Se há algo
chamado belo, algo chamado bom ou mesmo algo
chamado mau, então há um padrão transcendente
que determina cada um deles. Um ateísta pode
dizer que a sociedade prefere mães a assassinos,
mas não pode afirmar que deveria ser assim. Diga-
nos o que é. Mas, sem Deus, você não pode dizer o
que deveria ser.
Um ateu pode nos dizer que é uma boa pessoa,
que nunca roubou um cortador de grama ou
assassinou a própria mulher. Eu acredito nele. O
que ele não pode me dizer é o que há de
fundamentalmente errado no furto do cortador de
grama e no assassinato da mulher. Ele tentará, mas
não pode mudar o fato de que, em seu mundo, não
existe erro fundamental.
Deixe o homem com os maiores exércitos e a
voz mais poderosa criar as regras. Judeus, ciganos e
homossexuais que se danem.
Eu não gosto dessa imagem. Observo o mundo e
vejo beleza. Vejo amor e perda, nascimento e
morte, alegria e sofrimento. Contemplo um mundo
em que as cores existem e recebemos com
generosidade olhos para vê-las. Este é um mundo
em que o pão tem um cheiro quando é assado e,
simplesmente, aconteceu de termos um nariz para
cheirá-lo. Cor, aroma, som, sabor — isso poderia
passar desapercebido; poderíamos não ter os
sentidos nesta realidade, rodopiando por aí como
tantas partículas dispersas. O nariz foi inventado
primeiro ou foram os cheiros? Nossos olhos ou o
que ver? Peitos ou desejo?
Nós fomos criados como receptores. Eu observo
as estrelas, a grama, o rosto gordinho dos meus
filhos, minhas unhas e sou tomado de gratidão.
Eu recebi uma barriga para poder ter fome.
Recebi a fome para poder ser alimentado.
Observo o espelho do ateu. Eu observo sua fé na
inexistência de sentido. Observo a pregação e
pintura dele. Não vejo nada além de uma
tempestade de estrume.
Por que eu passaria por essa porta? Por que
viveria no seu livro?

Guilherme de Occam imaginou ter deduzido um


princípio útil do universo. Ele é conhecido como
sua “navalha”.
Se todas as respostas forem idênticas, a mais
simples é a mais verdadeira.
Todavia, por que a simplicidade deveria ser a
rainha? Onde você vê simplicidade neste mundo?
Precisamos voltar para probabilidades e
possibilidades? Você precisa me convencer de que
não poderia existir aqui?
Na Virgínia, viveu um homem chamado Roy
Sullivan. Ele foi atingido por raios sete vezes. Eu
soube que as chances de isso acontecer são, grosso
modo, de 1,6 x 10 elevado à 25.a (16 septilhões).
Isto equivale a um homem ganhar a loteria estadual
quatro vezes, embora a sorte seja de uma diferente
estirpe. Encontre a explicação mais simples.
Roy acreditava em Deus? Deus gostava dele?
Em 1983, com 71 anos, ele se matou. O raio não
teve nenhuma ligação com isso. O rumor era que
(de acordo com a Reuters) ele tinha levado um fora.

Três cartões-postais aguardam nossa leitura, sim,


três visões de mundo.
Primeira: Eu vejo um parque temático com
muitos brinquedos, mas ninguém pode controlá-los
e ninguém sabe como os passeios terminam.
Aconselhamento para enlutados, entretanto, está
incluído no preço do ingresso.
Segunda: Vejo um acidente. Uma explosão de
algum tipo habitada por formas de vida acidentais.
Um leite derramado tornando-se bacteriano, mas
com mais fogo. Não há sentido, propósito ou
controle. Ele apenas existe.
Terceira: Vejo um palco, um mundo em que cada
cena é elaborada. Ali homens atuam em uma
tapeçaria; sentido e beleza existem, certo e errado
são mais que construtos imaginados. Há o mal.
Existem trevas. Há o inverno da tragédia, o fim de
toda vida, a conduzir de volta ao solo. Mas, a
tragédia leva à primavera. A história não termina
em morte no gelo. Os campos estão semeados em
luto. A colheita será feita em alegria. Contemplo a
pintura de um Mestre. Escuto a prosa de um
Mestre. Quando as trevas descerem sobre mim,
quando eu estiver no meu canto do palco e escutar
minha deixa, quando souber que minha cena final
chegou e devo partir, irei para o solo como milho,
aguardando o Filho.
Eu vejo meu mundo.
Em A Cadeira de prata, o paulama Brejeiro é
todo sabedoria ao refutar a feiticeira enquanto ela
nega a existência do mundo no qual ele crê. Mas,
como ficção infantil não é muito respeitado na
Academia, fingirei que aprendi isso com Blaise
Pascal.
E se eu estiver errado? E se a primeira opção for
a mais verdadeira possível e Deus está perdido nos
controles do mundo que ele construiu? Bem, então
serei culpado de superestimar Deus. Ou, usando
palavras ainda mais fortes: eu o idolatrei. Ah, bom.
Quanto à segunda opção: se o mundo é
realmente um acidente e destituído de sentido, e
você e eu não temos mais valor no cosmo que um
bolor de pão, e a beleza e o bem são construtos
artificiais imaginados em uma explosão, construtos
controlados por reações químicas do acidente e sem
correspondência necessária com a realidade, então
meu mundo imaginário infantil ganha do seu
mundo real de longe. Afaste-se de mim. Afunde-se
no seu acidente borbulhante. Brejeiro e eu vamos
ficar aqui.
David Hume merece uma resposta direta para o
problema do mal? Ele nos ofereceu falta de sentido
e, em troca, nós lhe demos um túmulo em
Edimburgo. Também há uma estátua. Ela
apropriadamente está manchada e tem aparência de
oficial. Ele está sentado, envolto em uma toga,
revelando um tórax delicado e a apoiar uma tábua
no joelho. Ele está morto, sua estátua é fácil de
ignorar, mas suas reclamações permanecem. Elas
viveram antes dele, e vivem agora. Enquanto
houver cristãos, esse argumento — mal como
evidência de um Deus ausente ou inexistente —
gritará contra eles do meio do campo de batalha,
jactando-se como Golias. Mas, é um Golias? Ele
parece furioso o bastante, ameaçador o bastante,
mas parece menor, muito mais como um Nietzsche
de um metro e meio que um gigante filisteu.
Quanto ele pesa? Cinquenta quilos? Você já
tentou acertá-lo com uma pedra?
Como um Deus bom e todo-poderoso poderia
permitir o mal no mundo? Ou, de um ângulo um
pouco diferente: como um Deus bom e todo-
poderoso poderia permitir David Hume no mundo?
Eu odeio ter que fazer isso, mas, para responder
à pergunta, precisamos saber o que é o mal. E
precisamos saber qual padrão existe que o distingue
do bem.
É difícil assim definir? Não é mais um lugar em
que os filósofos vestem colantes e fazem acrobacias
importantes e lentas? Bem, sim, na verdade é.
Entretanto, podemos ser mais rápidos e, se
possível, menos ridículos. Ou, talvez, aceitar que o
ridículo seja uma rota melhor.
Agostinho propôs que o mal era a ausência de
bem, o que ele chamou de privação. O mal não
existia como uma coisa, mas era usado como um
adjetivo para descrever as ações carentes de virtude
positiva. Assim, como o mal não tinha existência
independente no mundo, Deus não era manchado
por ele.
Mais para o leste e menos cristão, você
encontrará teorias do bem e do mal que devem
lembrá-lo de Star Wars. Bem e mal são forças
impessoais, sustentando uma à outra em equilíbrio.
Busque o equilíbrio. Um excedente de bondade
pode provocar um tsunami. Em muitos sistemas, o
mal é equiparado à desordem ou ao caos. O bem
consiste no que é organizado e regular. Nesses
sistemas, a criação muitas vezes é uma questão de
entalhar, moldar ou domar o caos primordial. Essa
loucura subjacente sempre tenta se libertar, dando-
nos o “mal”.
Em Eutífron (um dos esquetes de Platão), a
questão é levada para uma direção diferente. Os
deuses amam o que é bom porque é bom ou o bom
é bom porque eles o amam? O que veio primeiro: o
ovo ético ou a galinha ética?
Entretanto, Hume critica com especificidade a
visão de mundo cristã, a ideia de um Deus criador
dando-nos esta realidade — sombras e tudo mais.
Na tela cristã, na história cristã, o que é mal?
Nota marginal: Em última análise, esta é uma
exploração de uma posição mantida em fé. A crítica
de Hume é que os princípios do cristianismo não
são internamente consistentes entre si. A fé é
inevitável e boa, mas a fé em contradições é inútil.
Porque Deus é bom, porque ele é infinito, porque
ele é perfeito, porque ele é supremo e não há
padrão acima dele, o mal é o que lhe desagrada. O
mal não é algo existente como uma gosma
infiltrada pelas costuras da realidade. Não é uma
força que pode te fazer vestir uma capa negra, um
elmo e dar asma. Mau é um adjetivo. É um adjetivo
usado para descrever as ações humanas (e seus
efeitos) contrárias à natureza de Deus.
Respondendo à pergunta de Platão com o inevitável
paradoxo que essas questões ovo/galinha exigem
(em especial quando lidam com o infinito): Deus
sempre existiu. Ele sempre foi bom. Portanto, a
bondade sempre existiu. Deus é o padrão vivo de
bondade; assim, as coisas são boas quando são
como ele. Ele as ama por serem boas — algo
inevitável, considerando que elas espelham sua
natureza.
Está claro? Talvez, devêssemos apenas ter
respondido: “os dois”.
Como (no sistema cristão) Deus é o padrão do
bem e do mal, a questão pode ser reformulada.
Como pode um Deus bom e todo-poderoso permitir
em sua criação coisas que lhe desagradam? E
podemos acrescentar Leibniz aqui para apimentar
um pouco.
Considerando a perfeição divina, este é
realmente o melhor de todos os mundos possíveis?
O melhor de todos os mundos possíveis inclui
pessoas como David Hume?
No mundo cristão, há algumas respostas
favoritas para essas perguntas. Alguns pensadores
dão uma medalha a Leibniz por ter andado na trilha
certa, mas ele é reelaborado. Este não é o melhor de
todos os mundos possíveis, mas é o melhor de
todos os caminhos possíveis para o melhor de todos
os mundos possíveis — a saber, o céu.
Conectada a esta resposta está a réplica à questão
do mal. O mal existe no mundo porque Deus criou
o homem como agente livre. Com a liberdade
(obviamente), veio a capacidade de fazer certo e
errado, de agradar e desagradar a Deus.
Mas, que preço. Por que a liberdade humana é
tão importante a ponto de bilhões de vidas serem
sacrificadas em seu altar? Porque o céu povoado
por almas livres é um mundo melhor que o céu
povoado por fantoches. E, dada perfeição divina,
ele construiria o melhor de todos os mundos
possíveis.
Ou assim dizem essas respostas.
Mas a liberdade, apesar da minha gratidão a ela,
não é propriamente um bem. Ela depende da
utilização que lhe é dada. Um praticante do bem
livre obviamente é melhor que um fantoche
praticante do bem. Porém, um fantoche praticante
do bem parece bem superior a um estuprador em
série livre. Uma raça de fantoches bem
comportados (do meu humilde e crítico ponto de
vista) é algo que eu preferiria a uma raça de citas
seguindo seus apetites naturais entre as mulheres da
vila mais próxima.
Como os citas têm existido no mundo, de modo
literal e figurado, presumo que eles sirvam a um
propósito melhor que ser mero monumento aos
efeitos colaterais da liberdade humana.
Qual é o melhor de todos os sentimentos
possíveis? Qual é a melhor de todas as coisas
possíveis? A melhor de todas as criaturas
possíveis?
Claramente, o melhor de todos os sentimentos
possíveis é o que vem quando a agonia de passar
tempo demais no carro com a bexiga
sobrecarregada é finalmente aliviada. Esse doce
alívio permanece ímpar.
Sem dúvida, a melhor de todas as coisas
possíveis é um palito de dente. Ou um sistema
solar. Sistemas solares são coisas? Eles se
qualificam? Do que estamos falando?
O ornitorrinco é a melhor criatura viva hoje, mas
não é a melhor de todas as criaturas possíveis.
Além de sua natureza mamífera, colocar ovos, o
bico de pato, os pés com membranas, vida anfíbia,
ele também poderia ter recebido asas de morcego,
sonar e a habilidade de soltar explosões pelo
traseiro como um besouro-bombardeiro. Falando
francamente, eu sinto que uma oportunidade
criativa foi perdida.
O melhor de todos os possíveis… o quê?
Mundos não bastam. Que tipo de mundos são
possíveis? A que estamos comparando? Para quê?
O que é melhor: um martelo ou uma garrafa
térmica? Uma faca ou um amendoim?
Eu não sei; qual é o objetivo? Para que serve o
mundo? Se soubéssemos isso, então poderíamos
chegar a algum lugar.
Se o objetivo do mundo era nos dar um caminho
fácil para a imortalidade, então temo que as
avaliações do consumidor serão severas. Se o
mundo devesse ser um palácio do prazer, onde
nenhuma sensação chegaria a ponto de ser
dolorosa, então isto é um fracasso. Eu bati meu
dedinho no sábado. Na segunda, um grandalhão
com acne no pescoço me deu uma cotovelada na
testa. Meu crânio continua doendo, mas isso não
machuca mais que saber que ele arruinou meu
melhor de todos os dias possíveis. Eu estava indo
bem. Entretanto, o golpe foi forte, penoso e, ainda
assim, não trouxe danos permanentes (não que eu
pudesse perceber). Além disso, a pancada ficou
centralizada com perfeição na minha cabeça,
elevando-se em pura simetria enquanto o inchaço
crescia, e havia até uma ruga sanguinolenta onde a
pele rachou, bem no meio da protuberância.
Foi potencialmente o melhor de todos os
cotovelos não fatais, porém perturbadores, na
cabeça de um autor que deveria estar escrevendo
um livro, mas jogava basquete, em vez disso. Eu o
congratulo.
O que é o mundo? Para que ele serve?
É arte. É a melhor de todas as artes possíveis, um
quadro finito do infinito. Avalie-o como prosa,
poesia, arquitetura, escultura, pintura, dança, delta
blues, ópera, tragédia, comédia, romance, épico.
Avalie-o como você faria com um ovo Fabergé,
uma troca de tiros, um musical, um floco de neve,
uma morte, um nascimento, um triunfo, uma
história de amor, um tornado, um sorriso, um
coração partido, um suéter, uma dor de fome, um
desejo, uma realização, um deserto, uma
sobremesa, um pulo, uma busca, uma queda, uma
ascensão, uma árvore, uma queda d’água, uma
canção, uma corrida, um sapo, uma peça, uma
canção, um casamento, uma consumação, uma sede
saciada.
Avalie-o dessa forma. E, quando você terminar,
encontre uma formiga e faça-a avaliar as catedrais
da Europa.
Esta é a pintura de um Artista infinito. É um
reflexo dele mesmo (poderia haver um tema
melhor?), trabalhado em cores, vidas e
constelações, em um universo que nos parece
infinito, mas que, para ele, é apenas uma moldura,
um espaço pequeno, um desafio cofinante para sua
maestria.
Toda narrativa temporal da realidade é arte —
inventada, compilada e costurada em um quadro
cósmico e finito do infinito. Traga os tijolos e
deixe-os criticar a cidade.
Nós usaríamos menos madeira, eles dizem. E não
temos certeza de que concreto e aço se conectam
bem mesmo com o tema de civilizações como
organismos.
Traga a grama e escute como ela poderia
melhorar o mundo.
As árvores são pomposas, e as pradarias têm
pouca representatividade. Nós gostaríamos que
diminuíssem os oceanos. Ou, talvez, poderíamos
fazer uma pradaria flutuante. Vamos enviar o
design. E quem quer que tenha aprovado o conceito
de gado tem que ser demitido.
Onde você o melhoraria? Carros voadores?
Menos cotoveladas na cabeça? Nascer de novo
como membro da família real britânica? Uma
alteração no que as mulheres mais bonitas desejam
em um homem? Viagem no tempo?
Boas ideias. Definitivamente. Passe-as adiante.
Talvez você sinta uma responsabilidade mais
séria. A seus olhos, o mundo poderia ser melhorado
com facilidade. Menos pessoas poderiam morrer. A
morte poderia ser banida. A fome mitigada. A sede
saciada.
Mal — o que desagrada a Deus — sumiria.
Deveria ser assim. Mas, como? Quando? O que é
que você está avaliando? Orgulho e preconceito
seria melhorado jogando fora cada página anterior à
resolução, apagando cada falha nos personagens,
cada mal-entendido e disputa?
Certa vez, Ansel Adams tirou uma fotografia que
ele chamou de “Jeffrey Pine, Sentinel Dome”
[Pinheiro Jeffrey, Domo Sentinela]. É linda. Ele
ficou onde estava, ele viu o que viu e pôde capturá-
la, colocando-a em uma pequena moldura com
apenas duas dimensões e nada além de
combinações de preto e branco. O céu está lá, a
rocha, o pinheiro Jeffrey.
A árvore cresce para a esquerda, mas é sinuosa,
inclinando-se, espalhando-se pela fotografia na
batalha contra o vento. Seus ramos musculosos
estão congelados em sua tensão, rijos; suas raízes
agarram-se na pedra, combinando com a força do
granito. Há uma montanha assistindo à distância,
perguntando-se quem vencerá. A árvore lutou por
esta vida, lutou neste permanente e incessante
recesso.
O vento vencerá no final, mas, a árvore
imperturbável é nobre. Eu não enxergo amargura
ou ressentimento. Nós podemos esquecer, mas a
árvore sabe que o mundo está girando, e tem se
agarrado ao globo por décadas. Eu vejo orgulho nas
raízes, gratidão por onde a luz bate.
Poderíamos melhorar o retrato? Como podemos
não o tornar melhor, mas o melhor? Remova a
tensão e o contraste. Remova o preto. Tudo.
Remova o conflito e o inevitável fim.
Deixe o branco. Só o branco. E, agora, está
perfeito. Perfeitamente pálido.
Se vivemos na arte, lutando no limite entre
sombra e luz, incapazes de enxergar o todo, como
podemos começar a julgar? Podemos ousar falar de
uma pintura melhor, um romance melhor, quando
vemos apenas uma simples frase, uma simples
página, e isso nos leva à tristeza?
Qualquer um dos galhos poderia reclamar. Há
morte nos ramos. Eu poderia ser cheio e verde, não
precisaria estar no vento, conectado à batalha. Há
uma sombra se alastrando sobre mim. Estou com
frio. Podemos ter mais luz? O contraste poderia ser
mais suave.
E, assim, todos nós falamos. Cada um querendo
que nossa posição seja um pouco mais confortável.
Cada um querendo ver um pouco mais de alegria,
um pouco menos de contraste, querendo pular o
conflito, jogar fora o livro e poupar apenas a página
final, o FINIS. Um mundo de lápides não teria
guerras, dificuldades e reclamações. Assim também
seria um mundo sem nascimentos ou amores, sem
engatinhar, escalar ou caminhar, ou coisas
crescendo. Um artista melhor teria deixado este
mundo mais parecido com a lua, apenas com o
espaço negro atrás, sem o contraste das arestas.
Uma lua espalhada, quase infinita. Apague as
crateras.
A pintura é pálida. A arte é anestesiada. Talvez,
seja a melhor de todas as anestesias possíveis.
Paulo propôs o seguinte argumento: O fabricante
de porcelana não pode escolher as funções de sua
arte? A privada pode reclamar porque o vaso tem
flores e um hálito mais agradável?
Imagine um pouco de sujeira negando a
existência de Deus porque foi chamado para
obstruir seus poros. Imagine você negando a
existência de Deus porque tem poros que podem
ser obstruídos.
Depois da quarta vez atingido por um raio, Roy
Sullivan supostamente contou a um repórter que
um poder maior estava tentando matá-lo.
Isso é ridículo. Um poder maior não estava
tentando matá-lo. Isso teria sido fácil.
Cada um de nós irá para o saco no final. O
truque mais impressionante é atingir alguém sete
vezes com um raio e mantê-lo vivo.
Já aconteceu com você de algo tão irritante
ocorrer, algo tão impossivelmente coincidente, que
você sabe que deve haver um Deus e que ele deve
estar rindo? Você quer ser a personagem do filme
que não entende uma piada, que não consegue rir
do constrangimento, do incômodo? Pior: a
personagem que não consegue rir de si mesma?
Se, em uma manhã, (com dedos molhados) você
descobrir que a privada foi recoberta com papel-
filme, negará a existência de seu colega de quarto?
Pergunte-se: Quem inventou seu colega de
quarto e decidiu dar a ele um papel (além de certos
impulsos e sensibilidades)? Reclame. Chore. Aja
como uma criança mimada. A história precisa
desses caras também, pois toda piada precisa de um
alvo, e a audiência deve rir. Se eles (e Deus) riem
de ou com é com você.
Há uma igreja em Oxford que permanece em pé
por séculos. Há muitas assim. Mas, foi para esta
igreja que minha mulher e eu caminhamos,
apertados sob o mesmo guarda-chuva, em uma
caravana de primos e familiares. A primavera
estava distante enquanto serpenteávamos por
ruelas, seguindo um curso através do ar frio,
guiados a um santuário de pedras.
Pessoas vivas adoram aqui agora, mas o número
da congregação dos mortos é muito maior,
numerosas vozes de oitos séculos.
Nós adicionamos nossos ecos ao local, um lugar
desgastado pela adoração. A chuva parou, e nós
liberamos as crianças para o jardim, um lugar
irregular, salpicado de hesitante grama em
hibernação.
Risos, roupas de igreja e solo enlameado. Bolo e
café. Eu como, caminho e observo, mas algo parece
estranho. Há uma pedra no jardim, próxima à cerca,
e outra em um canto.
Minha irmã está a meu lado. Esta é a igreja dela.
Eu olho para ela rapidamente, mas ela não precisa
ouvir minha pergunta.
Ela aquiesce: “Eles tiraram todas as lápides. É
difícil achar espaço para um gramado em Oxford”.
Eu não tenho nada a dizer. Não a princípio. Sob
o solo, estão as sementes, mais velhas que meu
país. Acima delas, meus filhos brincam de pique-
pega. Não é uma colheita que eles podem estragar,
e teremos partido, escondidos em nossas próprias
fileiras, antes que a primavera venha.
O mundo não é uma fotografia. O mal não é uma
sombra fixa escondendo um galho, não é o vento a
empurrar a vida pela eternidade.
Nesta história, o sol se move. Nesta história,
cada noite encontra uma aurora e se inflama na
brilhante alegria da manhã.
Nesta história, o inverno jamais pode conter a
primavera.
Toda alma espera sua vez. Cada vida tomada na
velhice, cansada e pronta, tomada na juventude, em
choro e sofrimento, tomada em dor ou tomada em
paz, cada galho agora oculto em sombras aguarda
em ansioso silêncio. Eu vejo minha prima. Meu
sobrinho. Muitos rostos, esquecidos por aqueles
que os seguiram, sempre conhecidos pelo Autor
que não precisa de lembretes de pedra. Ele é a
melhor de todas as audiências possíveis, a única
audiência a assistir cada cena, o Autor que se
tornou uma personagem e carregou toda sombra
sobre si.
Os gregos estavam certos. Viva com medo de um
final arrasador e de um pantanoso pós-vida.
A não ser que você conheça um Deus maior ou,
melhor ainda, seja parente de sangue dele.
A última página se aproxima, alcançada apenas
por provações e triunfos, lágrimas e risos. O fim
vem. Porém, Deus é muito grande para finais,
muito grande para trabalhar um único arco
narrativo. Este será o fim da morte, o fim de uma
história que começou em um jardim e tem sido
encenada em jardins desde então.
Vamos enterrar a morte em um jardim, e selar
sua vala com uma cruz. Para ela, não haverá
primavera.
Há um farfalhar de impaciência. Antecipação. A
criação range e geme, cansada da sombra, cansada
do inverno.
O sol vem.
O milho verá a manhã.
Através do longo frio, eu aguardo a primavera.
Eu espero por ela, mas nunca vejo o momento de
sua chegada.
O sol me aquece, me lembra. Seja grato, ele diz.
Eu interrompi o inverno.
No lado sul da minha casa, feixes de açafrão
surgem. Eles são os mais ávidos pela primavera, os
primeiros a perceber e explodir.
Os narcisos os seguirão em breve.
DEPOIS DELES VIRÃO OS MARINHEIROS.
1Trecho da música The Bad Touch, da banda Bloodhound Gang.
Original: “You and me, baby, ain’t nothing but mammals, so let’s
do it like they do on the Discovery Channel”. [N. do T.]
A PRIMAVERA É JOVEM e as pessoas já começam a
sair da hibernação, andando pelas calçadas com os
braços nus, expondo os estoques remanescentes de
gordura invernal à luz do sol. Alguns são ansiosos
demais, tremendo de bermuda, manchados e
salpicados enquanto andam na sombra, adornados
pelo sol.
Eu me sento em meu carro, atrás de dois em uma
fila que só aumenta, esperando uma luz.
Bocejo. A confusão invade minha mente. As
nuvens ocasionais obscurecem o dia, e o diesel do
caminhão à frente mantém minha janela fechada.
O trabalho me espera em casa.
Há momentos em que é fácil ficar entorpecido,
quando é fácil se esquecer de que está sentado em
uma caixa de metal, cavada da terra e amalgamada,
moldada por homens e robôs de Detroit. Eu não
ligo de estar sentado a quase um metro acima do
solo em uma máquina com a alma e a força de
explosões (abafadas). Cavalos servem para
recreação; meus arreios são amarrados a explosões
de fogo, e eles me puxam (com gentileza, por
favor) sem reclamar, enquanto coleto ondas
invisíveis do ar com uma varinha mágica de metal e
as transformo em orquestras, estrelas populares e
vozes indignadas reclamando da guerra. É fácil
esquecer que as árvores estão ocupadas esculpindo
o ar com luz solar e produzindo as folhas do novo
ano de forma mais eficiente que os alemães.
Bocejo. De novo.
É fácil ficar indiferente às maravilhas do mundo
quando passou a hora do almoço e o farol ainda
está vermelho.
A fé vacila com tais provações. Quem se importa
com o cosmo? Quem tem tempo ou energia para
ponderar sobre as marés ou a multidão de
narrativas no mundo? O açúcar no meu sangue está
baixo. Meu estômago está vazio.
Meu reino por um pouco de manteiga de
amendoim.
Deus é pouco inclinado a fornecer sinais e
maravilhas sob encomenda.
Atrás do volante, pondero sobre pães e peixes.
Ao observar o livro emprestado no banco do
passageiro, eu oro, mas aparentemente sem fé.
Este livro, esse livro inútil, existe apenas pelo
poder de tua palavra. Ajusta a arte. Tu sabes que
poderias ser um pernil se quisesses. Poderias ser
uma fatia infinita com molho barbecue. Tu só
precisas falar e serás. O mundo não seria um lugar
melhor se houvesse um pouquinho menos de fome?
Esqueça seu estômago, ele diz. Abra os olhos.
Há uma universitária em uma BMX que tenta
atravessar a rua. Veste o capuz de uma irmandade e
um moletom folgado, mas isso não esconde o fato
de ser ela um pouquinho… agradável. Ela tem
problemas com a bicicleta.
Eu assisto por ser mais interessante que meu
farol vermelho. Quando o tráfego passa, ela pisa
nos pedais, mas eles não se mexem.
Ela está embaraçada, ciente de estar em público,
observando os carros, rindo de nervoso. Pedalar a
bicicleta de um amigo parecia uma ideia
interessante, até um flerte.
O tráfego desacelera. Nosso semáforo está
prestes a mudar, e ela não conseguiu nem sequer
sair da esquina. Os carros à minha frente estão
relaxando os freios, prosseguindo com calma. O
sinal muda, e andamos com determinação.
A garota também. De repente, o mecanismo da
bicicleta funciona, e ela se lança à nossa frente.
Nossos freios travam e os pneus gemem enquanto
ela cambaleia no cruzamento, olhos esbugalhados,
pânico acompanhando sua boca aberta. Ela não
consegue parar. Ela não pode dar a volta. E pedala
com velocidade.
Eu vejo onde isso vai acabar. Ela está pensando
apenas no tráfego, não onde sua jornada vai acabar.
Todos nós estamos parados, assistindo; todos os
motoristas e passageiros da outra rua assistem
também. Ela poderia desacelerar e descer pela
esquina. Em vez disso, pedala com força e alcança
a calçada oposta.
Não há espaço para frear. Um metro e vinte de
calçada antes que ela atinja a parede de tijolos
pintados de branco de um edifício comercial.
Ela se vira, consegue separar-se da bicicleta e
bate na parede.
Suas calças moletom caem primeiro, até os
joelhos, expondo um grande short rosa e uma meia-
calça laranja.
Ela desmorona na calçada, enroscada na bicicleta
e na combinação algodão-poliéster. Um pedestre de
meia-idade caminha na direção dela, ganhando um
sorriso.
Eu suspiro, novamente espiritual, grato pela
edificação, apreciando o sacrifício de uma garota.
O tráfego anda. Renovado. Alegre.
Ela está de pé agora, vermelha e rindo. Eu nem
preciso me sentir culpado.
As feridas se curam, mas histórias são para
sempre.

Não acabamos ainda o assunto do mal. Não


terminamos de importunar os filósofos. Há mais
para ser explorado na história cristã.
Se o mal é o que desagrada a Deus, então não é
possível que ele seja mau. Ele é o padrão, a régua, a
polegada, o sistema métrico ético (presumindo,
claro, que o sistema métrico não seja mau).
Esse é um jogo de palavras, mas não é apenas
um jogo de palavras. Se há um Deus criador
infinito que falou e o universo veio à existência do
nada, então que padrão de bem e mal poderia
existir fora dele? A que ele poderia ser comparado?
Que escala existe fora de sua criação, que entidade
o supera?
Um Deus infinito é Eu Sou, e tudo deve ser
medido em termos de sua natureza, seus amores e
suas repugnâncias.
Mas, na Divindade trina, há espaço para
comparação. “Quem vê a mim, vê o Pai.” E Deus
pode ser comparado à criação — a este lugar com
ciclistas batendo e motoristas rindo. Ela é, no fim
das contas, sua arte, a revelação narrativa estilizada
de uma personalidade infinita. Cada fio da narrativa
desempenha um papel em seu retrato divino.
Ésquilo deveria saber que teria uma cena final
interessante. Ele era, afinal, o pai fundador da
tragédia grega. Antes dos emos, antes dos
existencialistas, havia Ésquilo, pregando. Ele não
se incomodava com a falta de sentido da vida
porque não era um garoto branco e de classe média
com uma vida confortável, sem fundilhos e com
calças apertadas. Ele não era francês, afogado em
desespero depois dos horrores da Segunda Guerra.
Ele era apenas um grego que via o mundo como um
moedor de carne. Ele sabia que havia deuses, e ele
sabia que, se você alcançasse grandeza, eles
perceberiam e acabariam com a sua raça. Muito
provavelmente, ele é o autor de Prometeu
acorrentado, um conto comovente sobre Prometeu,
o titã que acabou acorrentado a uma pedra, cujo
fígado era devorado por uma águia todos os dias
(não se preocupe: o fígado sempre crescia de volta).
A Disney podia usar o conceito em seu próximo
filme de princesa.
Ésquilo, como todos os antigos, algumas vezes
estoicos e sempre gregos malfadados, construiu
suas histórias em torno de uma falha trágica do
herói — uma fraqueza que o fazia morrer de
maneira dramática. Ele sabia que todos os homens
tinham essas falhas, essas rachaduras no caráter e,
no caso de grandes homens, os deuses iriam até
eles com um martelo e uma marreta.
Ésquilo e Roy Sullivan, campeão internacional
de raios atingidos, teriam sido bons amigos.
Ésquilo tinha sua própria falha trágica. Ele era
obcecado demais pela tragédia, rápido demais para
enxergar trevas (embora seja difícil culpá-lo com os
deuses disponíveis). Talvez, se ele tivesse rido
mais, se tivesse visto mais alvoradas e perdido mais
crepúsculos…
Um dia, Ésquilo caminhava, sem dúvida perdido
em seus pensamentos. Talvez, ele esboçasse
mentalmente uma história sobre uma bela pastora
que de forma tola (mas correta) acreditava ser mais
adorável que muitas deusas, foi estuprada por Zeus
para sua inconveniência e, então, serviu de comida
para os pássaros graças à mulher ciumenta de Zeus.
Independentemente do que se passava em sua
cabeça no momento, uma águia avistou a careca de
Ésquilo, pegou uma tartaruga e voou até uma
grande altura. A tartaruga foi solta e despencou,
confusa — um cascudo e reptiliano agente da
morte.
Um passo para a direita, um passo para a
esquerda, e as coisas teriam sido diferentes. Uma
clavícula quebrada? Uma orelha perdida? Quem
sabe quantas tragédias mais teriam sido vistas no
teatro se a própria história de Ésquilo não tivesse
virado humor negro?
Casco encontra crânio, e Ésquilo, pai do rosto
infeliz do drama, fundador do gênero fígado-
eternamente-devorado, morreu com uma tartaruga
jogada contra sua cabeça.
Os historiadores se calam quando se trata da
tartaruga. Ela sobreviveu? Para onde ela foi? Foi
relegada ao ostracismo, incapaz de permanecer na
Grécia depois de apagar um de seus filhos
favoritos?
Nós sabemos o que é um estraga-prazeres, mas
como chamamos algo que mata o trágico?
Há só uma pessoa que sabe o que aconteceu com
a tartaruga que matou a tragédia. Só ele sabe onde
ela se escondia e o que a fez sair direto para um
encontro com uma águia. Só ele sabe onde os netos
dela estão se abrigando hoje e se eles são felizes.
Só ele sabe como cada um terá sua cena final.
Pergunta: você prefere morrer instantaneamente,
com uma tartaruga a seu lado, deixando para trás
uma história divertida que, por milênios, faz os
ouvintes segurarem o riso, sentindo-se apenas um
pouco culpados pelas risadas, ou ser amarrado a
uma pedra e ter o fígado que se autorregenera por
milagre e servir de café da manhã por toda a
eternidade? Há águias nas duas histórias, mas qual
foi a mais gentil com sua personagem?
Hamlet não era ateu. Deus era muito real para
ele, como era sua culpa. Entretanto, ele chegou à
conclusão de que a peça em que vivia não poderia
ter sido criada por um autor ou, em algum sentido,
ser intencional. Seu raciocínio era algo mais ou
menos assim: Se há um autor, então ele deve ser ou
ruim e sem controle de sua arte ou ele deve ser mau
e malicioso. Como um autor bom e competente
poderia permitir tamanha miséria em minha vida?
Ele tem razão. Ofélia morre (para mencionar
apenas uma vítima). Por quê? Ela era inocente, uma
espectadora. A que bem maior essa morte serve?
Ou o autor não era favorável a ela e era incapaz de
detê-la ou ele era favorável e, de fato, é um bruto
sórdido.
A resposta mais satisfatória é sem dúvida que
não havia autor.
Se, no mundo de David Hume, David Hume
tivesse uma alma, então ela estaria bufando neste
momento.
Eu, diz o fantasma de David Hume, com certeza
tenho mais dignidade e valor que Ofélia e, ainda
assim, estou morto. Ela não é nada além de
palavras em uma página.
A questão aqui não é afirmar que Ofélia seja, de
alguma forma, tão real quanto nós somos, ou que
toda personagem de ficção existe em algum tipo de
outra dimensão. O argumento consiste apenas no
fato de o problema do mal deixar a lógica em casa e
sair sozinho por aí sem tutor. A existência do mal
em Hamlet de forma alguma implica que
Shakespeare tenha perdido o controle de sua arte ou
que ele fosse mau. A implicação de que
Shakespeare não existiu é ainda mais extravagante.
Sem dúvida, ele chorou por Ofélia, e suas
lágrimas não eram falsas.
David Hume, tenha paciência. Você está perto de
ter uma resposta direta.
Eu vejo maestria no mundo. Não consigo assistir
a poeira girar na calçada sem ver Deus movendo
seu dedo ou escutar a chuva da primavera correndo
nas ruas sem escutá-lo ressoando seus erres. Para
quem crê na criação ex nihilo, o mundo é
inevitavelmente arte, e inevitavelmente arte da
cabeça aos pés, em todo o tempo e em todo o lugar.
O mundo não pode existir exceto pela voz de Deus.
Ele é Deus se expressando.
E, assim, a pergunta muda. As implicações da
criação combinadas com a contínua existência da
realidade exigem a maestria suprema, um
onipotente Deus contador de histórias.
Mas, esse Deus — o Deus que fez lagartas
infestarem minhas maçãs e pássaros comerem as
lagartas, o Deus que permitiu que suas personagens
lhe desagradem e o entristeçam, o Deus permissor
da entrada em cena da morte e decadência, de
sombras em suas pinturas e falhas condenáveis em
suas personagens — esse Deus pode ser bom, ou
até perfeito?
Assista ao noticiário e questione. Escute sobre
tornados e bebês de quatro braços e quatro pernas,
holocaustos e acidentes de maquinário. Perca-se
nas sombras mais acentuadas da fotografia.
Quantas almas serão engolidas pelo mar hoje?
Quando o próximo tsunami travará guerra contra a
Ásia?
Como esse Artista pode ser bom? Ele não sabe
que sentimos dor? Que crianças têm fome e
morrem? Que devoraremos uns aos outros e o
mundo quando pudermos? Suas mãos devem ficar
manchadas até de tocar essa tela. Sua língua deve
estar maculada, proferindo essas palavras.
Ou ele não existe.
E, assim, Hamlet raciocina, Hamlet com sua
profunda dor e profundo luto.
Quando eu contava 16 anos, ficava no banco de
reservas do time de beisebol, usando um
resplandecente uniforme, mas assistido aos outros
jogarem. Outro jogador estava sentado a meu lado,
nós dois sozinhos com sementes de girassol e
conversas por toda uma série de jogos.
A frustração era real. Nós queríamos jogar, mas
o técnico tinha motivos para nos excluir — motivos
profundos (de acordo com os rumores) que se
baseavam em velhas amizades e cheques assinados
para pagar uniformes. Não estávamos dispostos a
considerar habilidade como fator.
Ted não sentia culpa de sua raiva. Ele era o atleta
melhor, muito claramente superior ao jogador em
campo que tinha tomado sua posição. Ele se agitava
enquanto conversávamos e eu aprendi a valer-me
da agitação dele — isso me ajudava com a minha.
As coisas podiam ser piores. Observe o sol, a
grama, o céu. Saboreie suas sementes de girassol,
imagine a história que as trouxe até a sua língua,
uma história que alcança milhares de anos.
Aperfeiçoe o descascar e a expectoração da sua
boca.
Foi uma dura lição para dois garotos de primeiro
mundo — cômica como deveria ser.
Eu lutava para fazê-lo rir, para lhe mostrar como
essa provação era de fato pequena. Por fim, eu
venci. Juntos, nós ríamos, e o banco tornou-se mais
agradável que o campo.
“Você está vivo”, eu lhe disse. “Mesmo que você
não esteja vivo no campo. Você poderia estar se
afogando neste momento.”
“Eu poderia estar queimando vivo”, ele replicou,
e cuspiu.
Eu gargalhei. “Verdade. Mas, afogar-se é pior.”
Ele olhou para mim, suas sobrancelhas para
cima, seu boné para trás da cabeça. Então, ele
resfolegou. “De jeito nenhum! Queimar seria muito
pior.”
Certo ou errado, eu defendi minha posição. No
fogo, seria bem mais provável que você desmaiasse
antes de qualquer agonia extrema. No afogamento,
entretanto, você estaria lutando, em pânico, com os
pulmões gritando para serem cheios e, então,
gritando quando estivessem cheios.
Ele resistiu por um momento, mas, no final, foi
convencido.
Nós esvaziávamos mochilas e espalhávamos
cascas de sementes, falando sobre morte e almas,
assistindo a jogos dolorosos, derrotas sobre as quais
nada podíamos fazer.
Quando a final terminou, sua raiva voltou. Eu
deixei o banco para procurar meu pai.
Enquanto caminhávamos para o carro (eu em
meu uniforme imaculado), olhei para o parque. Ali
estava Ted, segurando seu taco, um taco caro,
erguendo-o de novo e desferindo a tacada que não
pôde usar, martelando o alumínio contra o espesso
tronco de uma árvore.
Eu gritava para ele enquanto ele batia. Ele olhou
e eu sinalizei com as mãos, lembrando-lhe de onde
ele poderia estar, que pulmões não são sempre
cheios de vida.
Ele virou-se e caminhou para longe.
Quanto tempo demorou? Duas semanas?
Rindo com minhas irmãs, um jornal atraiu meus
olhos a palavras pretas em negrito.
Um atleta local havia morrido.
Eu me lembro do sentimento que tive quando li a
manchete, quando vi o nome. Lembro-me com
perfeição. Lembro-me porque o sinto agora. A
garganta apertada. O estômago oscilante. Olhos a
queimar e a dor na alma.
Ted havia se afogado, nadando com alguns
amigos em um reservatório. Um reservatório
pequeno. Quase uma piscina. Ele esteve aqui e,
então, não estava mais.
Por fim, mergulhadores encontraram seu corpo.
Não é fácil matar a tragédia. É preciso mais que
uma tartaruga. A tragédia deve ser destruída por
alguém disposto a ser engolido por ela, disposto a
ser partido, disposto a ter a carne rasgada, mas
capaz de retornar. Alguém deve ser capaz de
despedaçar o trágico por dentro e sair para a
comédia, capaz de abrir um buraco tão grande que
uma comitiva de almas, um desfile, pode segui-lo,
tocando tambores e jogando doces enquanto eles
passeiam para o sol.
Quando meu avô escuta Clair de Lune, de
Debussy, seu estômago vacila. Trevas queimam em
suas veias por impulso, bombeadas por um corpo
com uma longa memória. Quando era criança, eu o
assisti escutar minha irmã praticando essa peça, e
me maravilhei com sua calma, tranquilidade e
olhos fechados. As notas significavam para ele algo
que nunca poderiam significar para mim. Eu
perguntei, e ele me contou. Na guerra, ele aquietava
seus nervos com esse luar em forma de peça para
piano antes que o bombardeio começasse. Morte,
explosões, rostos perdidos no fogo — essas coisas
se juntaram aos sons mais gentis, e os sons gentis
foram soterrados. Os sons mais gentis tornaram-se
essas coisas.
Ele passou pela escola de aviação com muitos
outros rostos. De seus amigos de turma, ele era o
único ainda vivo quando a guerra acabou.
Eu estou aqui. Você está aqui. Muitos outros não
estão.
Quando nos juntaremos a eles? Você irá primeiro
ou eu?
Tenho um gráfico à minha frente, com barras
indicando a probabilidade de morte para membros
de diferentes faixas etárias. Ele começa baixo e,
então, ascende. Crianças de 10 anos estão se saindo
bem neste país. Porém, as coisas ficam difíceis
mais tarde. Sua probabilidade aumenta como a
maré até que já não é uma probabilidade. É uma
certeza.
Qual é a taxa de mortalidade para soldados? Para
bombeiros? Para donas de casa e dentistas?
Qual é a taxa de mortalidade para humanos?
Cem por cento das pessoas morrem.
Quando eu era jovem, de um ovo chocado saiu
uma larva, que virou crisálida e tornou-se uma
borboleta-monarca.
A borboleta viveu uma boa vida, embora nunca
tenha chegado ao México, o alvo supremo de toda
decoração voadora, de asas douradas, comedora de
ervas-daninhas.
Antes de sua migração começar de verdade, a
borboleta foi derrubada pela antena do nosso carro.
Bem, não foi exatamente derrubada. O topo da
antena a apanhou no ar, alinhando perfeitamente
seu eixo vertical com o delicado corpo da criatura.
As asas brilhantes fecharam e encontraram-se do
outro lado — uma bandeira borboleta.
Nós deixamos a bandeira tremular por um
tempo, e nem mesmo a meio-mastro.
Deus foi maculado?
Tamanduás podem consumir mais de trinta mil
formigas por dia. Trinta mil vidas, esperanças,
sonhos e aspirações. O tamanduá é um destruidor
de civilizações narigudo, ceifando mais vidas em
um verão que Cambises, o Persa, em uma geração.
Se eu pudesse escrever uma história de formigas
e fazê-la se passar em um formigueiro, se pudesse
moldar uma narrativa e assisti-la vivida por esses
pequenos e prolíficos milhares, eu incluiria trevas?
Incluiria dificuldades, conflitos, frustração e até
morte?
Como a Primavera, minha grama cresce.
Enquanto a grama cresce, pedras fazem seu sutil
caminho em torno do meu quintal, pedras que
destruirão as lâminas do cortador quando a grama
for aparada, quando seu desejo de conquista do
mundo é frustrado.
Eu pego essas pedras e as lanço nos arbustos.
Para algumas criaturas, leais e de seis pernas,
essas pedras são do tamanho de ilhas. Eu me
agacho, com meu filho assistindo, e sacudo e puxo
até que Manhattan se erga em minhas mãos.
Jogarei Manhattan perto das flores. Observo-a
quicar e rolar na suave grama recém-nascida e bater
contra a cerca.
Meu filho está impressionado. Ele entende a
importância dessas decisões primaveris.
Ele sabe o que eu fiz, e aponta para as pequenas
formigas se juntando em pânico em torno dos
nossos sapatos. A pedra entrou no solo. Eu expus
os pálidos habitantes das trevas, as câmaras das
larvas foram rompidas e esmagadas pelo meu ato.
Outras câmaras, lotadas de nascituros e seus
guardiões, voaram pelo jardim nos torrões
agarrados à pedra lançada.
Um pássaro pousa no freixo, assistindo,
esperando que o deixemos a sós com os destroços e
os refugiados.
Qual é a taxa de mortalidade hoje, nessa bela
manhã de primavera? Qual é o número total de
coisas materiais vivas neste planeta que fizeram a
transição para a morte entre as 8 e as 12 horas,
horário de Brasília? Qual é a população global de
tamanduás, e por quantas vidas eles foram
responsáveis? Quantos milhares de toneladas de
krill as baleias, as focas e os peixes eliminaram
hoje, e por que eles têm menos valor para os
ecologicamente conscientes que as baleias?
Tamanho é o mesmo que valor? Quantos insetos
foram comidos, quantos pássaros, quantos peixes?
Quantas bactérias morreram apenas em meu corpo
nessa manhã? Espero que o número seja alto.
Quantos vírus viveram sua cena final, caindo
dramaticamente em cavidades nasais sitiadas e
fizeram monólogos adequados à sua conflituosa
vilania?
David Hume, você está aí? Bata na madeira duas
vezes se estiver escutando.
Meu filho e eu ainda assistimos às formigas, e
não me arrependo. Eu não torturaria coisas sem
motivo. Não jogaria uma Manhattan de formigas
nas flores sem razão. Eu precisava cortar minha
grama.
As formigas dão nomes a esses desastres? Os
tamanduás são os tornados delas? Eu sou uma
tempestade tropical ou um furacão? O homem do
tempo delas me previu? Ele ainda tem seu
emprego?
Essas formigas estão funcionando em um
sistema mais antigo. Enquanto assistimos, soldados
arrastam pequenas lacraias para o centro do monte
de terra, pequenas lacraias detidas e de origem
desconhecida. Como toda civilização humana em
meio ao desastre, elas precisam de bodes
expiatórios.
“Quem derrubou o céu”, o grupo grita. “Quem
abriu nosso mundo para o espaço exterior? Quem
fez esse buraco no ozônio e trouxe o calor
escaldante para nossas crias?”
Eu não consigo saber quais formigas são
sacerdotes. Não acho que a menor das câmeras da
BBC poderia me mostrar isso, mas eu ainda me
abaixo e assisto, examinando minúsculos rostos de
inseto em busca de algum sinal de autoridade.
Se eu falasse formiguês, saberia o que estava
escutando. Um monte de gritos, sim. Mas, deve
haver algum excêntrico e idoso habitante dos
túneis, com as articulações rígidas, revirando os
olhos, chocalhando as antenas e estalando as
mandíbulas.
O clamor aumenta com rapidez assim que a
palavra é dada.
“Foram as larvinhas! Seus costumes contrários
ao estilo de vida das formigas e suas abomináveis
pinças no traseiro fizeram isso acontecer conosco.
Os deuses exigem um sacrifício!”
A primeira lacraia é decapitada.
“O que elas estão fazendo?”, meu filho pergunta.
“Elas estão matando as pequenas lacraias”,
respondo.
“Por quê?”
Duas mais são mortas com as costas arqueadas,
pinças abertas, garras para o céu, perguntando ao
mundo, perguntando a Deus por quê.
“Porque as formigas pensam que a culpa é das
lacraias.”
Por um momento, fico tentado a colocar a pedra
de volta. Quero esconder esse pequeno incidente no
solo aquecido pelo sol. No entanto, vem à minha
mente que talvez os sacrifícios sejam para mim.
Elas podem pensar que as pequenas lacraias não
tenham relação com a devastação de sua cidade;
elas devem saber muito bem que fui eu.
Elas acham que quero sangue.
Aqui, fique com a alma das pequenas lacraias.
Deixe nossos filhos em paz. Traga o céu de volta.
Quantas você quer? Nós continuaremos matando
até que sua ira seja aplacada.
Eu não posso colocar a pedra de volta. Não
posso mentir para elas assim. Não vou me rebaixar
para cumprir o papel de Zeus ou de Quetzalcóatl
dos astecas.
“Matem todas as que encontrarem”, digo em voz
alta. “Nenhuma lacraia é inocente mesmo. Há mais
delas no arbusto de amora com gordos traseiros
suculentos. E quando acabarem, mudem sua
civilização de lugar. Eu lhes darei até amanhã à
tarde e, então, vou cortar a grama.”
Meu filho olha para mim. “Elas não entendem
sua língua.”
Eu me levanto devagar e observo a grama
crescida. “Não, não entendem. Mas, elas terão
partido amanhã”.
Quem pecou, este homem ou seus pais, para que
ele nascesse cego?
Quem pecou, esta pequena lacraia ou seus pais,
para que ela fosse decapitada por formigas?
Quem pecou, este pouquinho de tinta a óleo preta
ou seus pais-elementos, para que ela fosse usada
por Rembrandt para produzir as partes sombrias e
assustadoras abaixo do moinho?
Se você fosse uma gota de tinta azul, abençoada
por estar assentada no céu guardando os girassóis
de Van Gogh, você estaria ali por esforço ou justiça
próprios? Por que você não é mais grato?
Eu tenho esse argumento. Que ele seja atacado e
reelaborado. O cavalo está morto? Passe-me um
chicote.
Em um mundo com mal, Deus não é todo-
poderoso ou não é bom. Essas são as únicas
opções?
Ou ele é Shakespeare, Rembrandt, Botticelli,
Dostoievski, Van Gogh (com as duas orelhas),
Michelangelo, Vivaldi, Robert Johnson, N. C.
Wyeth e Gary Larson em uma pessoa.
Nossa arte é minúscula em comparação com a
dele. Nossas personalidades são minúsculas
comparadas à dele. E, ainda assim, ele diz que
somos à sua imagem. Ele é infinito (o que isso
realmente significa para nossa mente?) e a narrativa
do universo, a canção do universo, o épico do
universo, os fotogramas do universo em cada nível
— de quarks a galáxias — refletem seu ser, caráter,
amores, ódios, misericórdias, juízos, bondade e
iras.
O universo é um retrato em movimento, um
retrato compactado em movimento, uma miniatura,
inevitavelmente estilizada, por tentar capturar o
infinito. Cada galáxia é uma fração de uma sílaba
no haikai do Supremo. No nível humano, a arte é
em essência recompactação, tentativas de tirar um
pôr do sol da pequena moldura do horizonte e
colocá-lo em um cartão postal; pegar um riff de
blues, uma vibração rítmica de cordas, e capturar o
senso de perda; mármore, burilado e moldado até
mostrar nobreza; o quadrinho de um cartunista,
nanquim comum, retratando a meninice de seis
anos, retratando gargalhadas.
Qual é a melhor de todas as coisas possíveis? A
infinita, sempre presente e jamais em declínio. A
que consiste em muitos e um. A pura, suprema e,
ainda assim, humilde. A que é espírito, mas
pessoal. A justa, mas também, misericordiosa.
Yahweh, Deus — Pai, Filho e Espírito Santo.
Qual é a melhor de toda a arte possível? Aquela
que revela, captura e comunica o máximo de
facetas possíveis desse Ser em um quadro finito.
Você não gosta do seu papel na história, do seu
lugar na sombra? Que reclamações temos que os
hobbits não teriam lançado contra Tolkien? Você
nasceu em uma narrativa, você recebeu liberdade.
Atue, e atue bem até alcançar a cena final.
Houve um tempo em que homens e mulheres
entendiam a morte de modo mais pleno, quando a
mortalidade nunca era ignorada. Homens e
mulheres executavam melhor seus finais. Alguns
até se planejavam para ele — cartas do túmulo,
últimas palavras longas, como personagens de
Dickens.
Aqueles homens, bons e maus, heróis e vilões,
sabiam que sua cena final viria, e sabiam que
seriam cenas. Eles, como Salomão, sabiam que
nada somos além de vapor, que estamos aqui por
um curto período. Devemos deixar o palco, direto
para os bastidores, e deixar que outros andem e
cantem, amem e percam, lutem e batalhem acima
de nós.
O problema do mal é genuíno, um inimigo com
dentes afiados e pontudos. Todavia, não é um
problema lógico. É emocional, um argumento da
melancolia de Hamlet e da nossa. Ele atrai nosso
orgulho e nossos terminais nervosos. Não queremos
ouvir uma resposta que nos rebaixe tanto. Porém, a
resposta é esta: somos muito pequenos.
O apóstolo Paulo diz: Quem és tu, ó homem?
Nada na existência do mal tem como
consequência o fato de Deus não estar no controle.
Nada implica que ele não exista (exatamente o
oposto — sem ele, a categoria mal não existe; tudo
é fluxo e entropia neutros). O conflito começa
quando nós nos olhamos no espelho, em uma casa
de espelhos, espelhos que esticam nossa dignidade
até os céus. Dado meu imenso valor pessoal, como
um Deus bom poderia permitir que eu sofra?
Nossas emoções rejeitam a onibenevolência.
Eu matei pessoas boas. Eu deixei crianças órfãs e
dei a vilões um período de força, um tempo para
engordarem antes de serem desmantelados.
Eu fiz tudo isso em livros infantis. Eu sou um
assassino? Um predador?
Claro que não. Sou um manipulador de
marionetes? Espero que não. Imito o mundo o
melhor que posso. Quero minhas personagens
livres, mas minha arte falha nisso. Não sou tão
grande quanto Deus, e minhas personagens são
muito menores que as dele, muito mais artificiais.
As dele, bem… as dele conseguem estalar os dedos
de verdade, conseguem encher os pulmões com ar,
conseguem ver bondade nos olhos e cuspir nela.
Mas, ele não estava contente com apenas isso. Ele
existe em dois planos. Vê a história como conta,
enquanto a tece, a molda e a canta. E ele entrou
nela.
A sombra existe na pintura, os cantos sombrios
do choro, da provação e da maldade, todos existem
para que ele pudesse entrar neles, para que
pudéssemos ver o quanto ele consegue se inclinar
para baixo. Nesta história, o Autor tornou-se carne
e entrou no palco com Hamlet, oferecendo a
própria vida. Nesta história, o Autor carregou tudo
que desprezava, tudo que lhe desagradava, tudo que
há de errado no mundo, sobre si. O mal existe para
que ele pudesse ser humilhado e insultado, para que
a profundidade de seu amor e sacrifício pudessem
ser expressada o máximo possível na pequena
moldura da história.
Ele esteve diante das formigas, escutou as
disputas dos sacerdotes, e permitiu-se ser levado ao
centro do formigueiro.
Há água no mundo que uma vez voou da boca
dos guardas e manchou o rosto da própria Palavra.
Há ferro que rasgou suas costas e ferro que correu
em seu sangue antes que caísse sobre as pedras,
deixado para que pequenos animais se
alimentassem à noite. Animais nasceram e viveram
antes de serem abatidos, tendo seu couro curtido e
cortado em tiras, entrelaçados com pedra e vidro,
fustigando a carne das costas do Poeta, desnudando
costelas cheias de cálcio. Ainda há proteínas, em
algum lugar do mundo, usadas nos fios de sua
barba antes de os soldados os agarrarem, ignorantes
de quão perto seus dedos chegaram do infinito, e os
arrancarem à força.
Hoje, contudo, não há nada feito de sua carne
decomposta. A semente germinou há muito tempo,
o primogênito, nascido do ventre da morte no
primeiro dia verdadeiro de primavera.
Nós poderíamos dizer que ele não se importa
com nossa dor. Poderíamos dizer que ele não é
bom. Poderíamos dizer que não entendemos por
que o céu não é sempre arco-íris e por que o
resfriado existe. Mas, seríamos tolos. E, de alguma
forma, ele ainda gostaria de nós.
O quanto eu me importo com essas formigas? Eu
acho que me importo. Vou parar de assistir as
guerras delas. Vou comprar documentários para
meus filhos — tributos aos insetos. Não as
esmagarei quando puder evitar.
Mas, se tivesse a chance, eu estaria disposto a
tornar-me uma delas? Eu estaria disposto a permitir
que elas me levassem ao local de execução, me
insultassem, zombassem de mim, ridicularizassem
o dom que ofereci, um dom inteiramente além da
compreensão delas? Eu estaria disposto a ter a
pequena lacraia, executada a meu lado,
acrescentando seus insultos aos das formigas? Eu
estaria disposto a morrer?
Não mesmo. Jamais. Tenho mais autoestima que
Deus. Tenho menos amor às personagens abaixo de
mim.
É difícil quando você está resfriado. É difícil
quando se tem fome três vezes ao dia. É difícil
depender do ar e da água. É difícil ter só duas
pernas e não poder voar. É difícil sabendo que
morrerei. Sabendo que não vou poder ficar no
ensino médio para sempre.
Toda criatura material neste globo chegará ao
fim. Se Deus tem autoridade para inventar
espermatozoides, inventar óvulos, inventar o DNA;
se ele tem autoridade para me escolher entre um
número quase infinito de combinações humanas
possíveis e me chamar à existência do nada; se ele
tem autoridade para escolher meus pais, raça,
cidade natal, altura, inteligência, tamanho das
minhas amídalas; se ele tem autoridade para
projetar meus dentes do zero, então ele tem a
autoridade para escolher meu final.
Deus tem autoridade para formar uma alma com
sua voz, ligá-la à matéria e enviá-la à história.
Detém autoridade para separar minha alma do
corpo e chamá-la para outra parte do teatro. Ele tem
autoridade para reutilizar a matéria da minha carne
em narcisos. Eu não estou preocupado. Vou receber
mais.
Não há mal em sua voz nos chamar para cruzar o
Jordão, quer ele nos chame sozinhos ou em massa.
Não há mal quando ele nos chama a despir-nos de
nossa primeira carne, não mais que quando ele
envia uma lagarta ao casulo.
Quando uma das minhas personagens morre —
não importa se outra personagem aperta o gatilho,
não importa se outras sejam culpadas na história —
no nível transcendente, no nível além da capa do
livro, sou eu quem as mata.
O problema do mal deixa um hematoma, um
ponto sensível, lento para curar? Coloque seu dedo
nele. Aperte com força.
Quando morrermos — quando ou onde isso
acontecer —, haverá outras personagens na história
conosco, personagens más, personagens boas e
formigas confusas. Mas, Deus também estará
presente, moldando a história, fora e dentro do
palco, fechando um capítulo enquanto a tartaruga
quica, sorrindo enquanto acontece.
A seus olhos, você nunca deixa o palco, mas não
deixa de existir. Um capítulo termina, um ato, não a
peça. Olhe para ele. Caminhe na direção dele. O
casulo é uma morte, mas não uma morte final. O
caixão pode ser uma tragédia, mas não por muito
tempo.
Haverá borboletas.
Eu morrerei e, quando morrer — seja em minha
cama quando a idade me alcançar, ou atingido por
um raio, um meteoro ou um carro dos correios —,
quando meu corpo e minha alma se divorciarem,
sua mão será a que corta o fio e me mostra o
caminho que ele alcançou por meio da tragédia.
Seu dedo apontará para o desfile.
O sol brilha. A primavera trata da morte da
morte e da nova vida. As duas são iguais.
O vento é frio e ainda pode morder, um lembrete
do que aconteceu, uma ameaça do que poderia
acontecer de novo.
Eu estou em casa, com um lance de degraus
semicurvos diante da minha porta.
Estou vivo. Tenho pernas. Correrei com elas.
Rodeado pela primavera, por árvores vestindo o
verde-claro novo de folhas recém-nascidas, em um
muro de pedras argamassado por montinhos de
musgo crescido, eu alongo minhas pernas, pulando
degraus.
Perto do topo, eu bato meu dedinho. É para isso
que os dedos servem? Meu corpo continua viajando
sem minhas pernas. A terra cumpre suas ordens e
me puxa para baixo. Queixo contra concreto frio,
mãos contra pedra, alcanço o chão.
Eu resfolego e pisco os olhos com lentidão. Por
precaução, em sinal de submissão, deixo que meu
peito repouse no topo dos degraus. Pedregulhos
grudam-se à minha pele.
Então, eu rolo. Para quem foi isso? Onde está a
audiência? Se é para arrancar um pedaço do meu
queixo, diga-me que alegrei o dia de alguém.
Algum entregador de jornal triste, uma dona de
casa entediada, um intercambista que vê mais
beleza no ruído enlatado de um iPod que no
selvagem ruído de um dia de primavera.
Ninguém. Apenas eu. E algumas formigas que
posso ter matado. Observo o céu azul. Alguém está
brincando com as nuvens como se fossem bolhas
de sabão.
Queixos foram inventados com essa capacidade
especial de doer. Esfregar não está ajudando. Rir,
sim.
“Certo”, digo. “Recuso-me a ser
responsabilizado por esta. Os degraus claramente se
mexeram. Não ligo para o tropeço, ligo para a
trapaça.”
Você está nas sombras? Passa por dor? Perto de
você, Hamlet é um homem feliz? A pedra foi
levantada, removendo o céu, rasgando sua vida ao
meio?
Não venha chorar para mim. Eu só posso chorar
com você. Não morrerei por você. Ainda sou jovem
demais no significado do amor. Fale com o Tolo,
aquele que deixou um trono para entrar em um
formigueiro. Ele entrará em suas sombras. Elas não
podem manchá-lo. Ele já fez isso antes. Sua
santidade não é frágil. Ela queima como um pai
para o sol. Toque sua pele, coloque sua mão no
lado dele. Ele manteve as cicatrizes mesmo sem
precisar. Entregue-lhe sua dor e assista-a ser
esmagada, queimada pela alegria que ele tem em
amar. Em rebaixar-se.
No final, quando sua vida for de um tipo
diferente, sua primeira carne será pó e, de sua
tristeza, nem um grão de cinzas restará.
Você está doente? Você está se afogando? Você
é outra pequena lacraia confusa, arrancada da folha
de amora por uma turba de formigas maliciosas?
Você alcançou seu final?
ESPERE POR NÓS. NÃO ESTAREMOS MUITO ATRÁS.
REVERTA AS VOLTAS DO MUNDO. EU TENHO UMA
LEMBRANÇA:
Meu filho puxou suas meias para cima e calçou o
tênis branco. A relva é irregular para ele e pior
ainda nesta pequena encosta. Cada protuberância
aqui é um obstáculo. Ele é muito rápido no nível do
solo, mas este é um novo desafio. A mulher e o
outrora bebê nos seguem, torcendo por ele. Eu lhe
transferi o controle da expedição, todo o parque,
sem guia. Ele pode ir aonde quiser. Ele conduz.
Conheço esse olhar. E o sentimento. Cães
também entendem — cães e garotos. As barreiras
foram removidas, as portas foram abertas, a coleira
está solta. Fernão de Magalhães provavelmente
tinha esse olhar antes do escorbuto. Presumi que ele
pararia, que haveria alguma distração — grama que
precisava ser tocada, uma pedra, um dente-de-leão
— mas, ele continua. Uma distração surge enfim e
já é passado quase antes que percebamos. A cabeça
loira está virando na direção errada. Eu o ajudo.
“Por aqui, Rory.” Eu me abaixo, viro-o e aponto.
“Ali está uma borboleta.”
É quase toda preta e quase do tamanho de uma
monarca, mas não se move como uma. Essa é
rápida. Ela não esvoaça; navega, rema em ritmo,
mantendo a altitude de forma surpreendente, sem
jamais abrir as asas por completo. Há vermelho
envolvido em algum lugar ali.
“Eu quero segurar”, Rory diz. O inseto de pó
negro está girando no topo da colina a 30 metros de
distância. Todo o parque desapareceu para meu
filho. A borboleta jet ski é seu único interesse. A
liberdade pura perdeu a atração.
“Segurar”, ele reforça. Eu olho para a mãe dele e
sorrio.
“Querido”, ela lhe diz, “borboletas não gostam
de ser pegas”. Ele não está ouvindo, então reduzo
minhas filosofias ao tamanho dele. Eu sou seu pai.
Falarei a verdade como um oráculo. Explicarei o
mundo a ele.
“Filhão”, digo, pois sou sábio, “você viu como
ela é rápida? Ela não vai deixar que você a toque.
Ela vai ter medo de você e voará para longe muito
rápido. Quando você crescer, será mais rápido.
Então, terá uma rede e pode tentar pegá-la”.
Os olhos dele seguem a borboleta. Ela deixa sua
encosta e cruza o parque, passando ao nosso lado
antes de retornar a seu topo de colina. Meu filho
está considerando minhas palavras.
“Eu quero tocá-la”, ele diz. Ele não crê em mim.
É cético.
E, então, a borboleta vem. Ela vem rápido — ela
não tem outra velocidade — passando logo acima
de nós. Porém, ela hesita. Ela não tinha pousado
desde que a vimos.
Ela pousa agora. Não à nossa frente, para que
possamos vê-la e acusá-la de ser uma grande e
estranha mariposa, mas, mais perto, sobre o peito
de um menino de dois anos, em cima do ombro
esquerdo.
Ela se limpa ali.
Rory congela. Ele não precisa me explicar a
situação. Ele sabe como essas coisas são feitas. Seu
queixo cai e ele a observa. Não há flores em sua
camisa, não há cores fortes, mas ele foi escolhido
enquanto um pai, uma mãe e uma irmã estão ao
redor e observam. O gracejo divino fica ali. A
conclusão da piada repousa por um tempo e, então,
voa para longe.
Rory ri, mas rapidamente fica sério. Nós, seus
pais, estamos falando, oferecendo nossos parabéns,
informando-o, como se ele já não soubesse, que
isso foi uma coisa muito legal.
“De novo”, ele diz.
“Rory”, minha voz é bem animada, “eu não acho
que a borboleta vai voltar. Mas, ela estava bem ali
na sua camisa. Você viu?”.
“Sim”, ele diz. “De novo.”
O que mais eu disse? Eu não me lembro. Eu
expus as leis da realidade. Borboletas e raios não
caem duas vezes. E, então, Deus falou.
“Vê este homem?”, ele disse para meu filho.
“Ele é seu pai. Não acredite em nada que ele diz.”
Pela segunda vez, a borboleta pousou em seu
braço.
Quantas mentiras contei para ele? Eu e o mundo.
Arrependi-me. Não digo mais que ele não consegue
tocar a lua sentado em meus ombros. Mando que
ele se estique, e ofereço correr e pular. Pode haver
um dragão na amoreira. Eu me certifico de
verificar. E procuro um peixe no sofá.
Não aconteceu de novo. Pelo menos, não com
borboletas. Mas, amanhã, quando o aroma da
grama que cresce for pressionado pelo orvalho a
voltar para a terra, e pequenas borboletas classe B
tomarem banho de sol perto do balanço, eu vou
pedir para segurar uma.
VERÃO — o mundo curado ao sol.
A primavera é a única estação que não morre.
Pelo menos, não onde estou, que (utilizando uma
ferramenta de rastreamento do Registro de
Liberação de Tóxicos da Agência Ambiental dos
EUA) está a uma latitude de exatamente 46°43’49’’
e uma longitude de -117°00’00’’ (no caso de você
precisar encontrar de novo). É uma esquina.
Próximo a uma cafeteria.
Aqui, a primavera apenas cresce, brota e aquece,
espalhando vida, envolvendo-nos em seus braços,
até que subitamente percebemos que ela não é mais
uma criança. Ela é um adulto.
Um adulto chamado verão.
O mundo ainda está ficando esverdeado quando
os estudantes deixam esta cidade. Eles nos deixam
sozinhos assistindo aos pulgões ferozes deixarem
as calçadas grudentas com o produto de seus
banquetes. Eles nos deixam observando oceanos de
cevada e trigo chegarem a uma suave maioridade
ondulando ao vento, a uma viva colheita dourada.
Os estudantes deixam a alegria plena da transição
primavera-verão para os moradores locais.
É mais calmo desse jeito, e podemos escutar as
folhas crescendo e o trigo acariciando a barriga do
vento.
A primavera é espiritual. Ressurreição sempre é.
O verão traz o fruto desta ressurreição.
A tarde é quente e estou sozinho na esquina,
assistindo aos azuis do céu tornarem-se mais
escuros enquanto alcançam o horizonte. Elevadores
de grãos se erguem a uma quadra de distância,
cilindros para abrigar o ouro que cultivamos.
“Oi.” A voz é feminina. Eu me viro e observo o
rosto de uma garota de pele escura. Idade
universitária. Bonita. Ela sorri e move uma cadeira
de rodas para perto de mim. A voz está na cadeira
de rodas.
“Oi”, ela diz de novo. A garota pode ser
adolescente, talvez tenha vinte ou mais. Uma idade
normal não se aplica aqui. Seu pescoço luta para
manter sua cabeça de um lado. Seus braços são
pequenos, talvez utilizáveis, mas ela não está
fazendo muito com eles. Suas pernas são
decorativas, asas que não voam. Ela me olha
profundamente nos olhos, derramando os dela nos
meus, dando tudo de si, procurando, procurando
algo de que ela deve gostar — humanidade? Outro
ser em existência?
Eu sorrio. “Oi.”
Seu sorriso cresce. “Você quer ser meu amigo?”
“Sim.” Eu rio. “Claro.” Ao dizer isso,
subitamente me sinto culpado. Será que eu acho
que ela não entende o que é amizade, que não serei
chamado a cumprir minha parte no negócio? Houve
testemunhas. Um terceiro estava ali e me viu
concordar. Estou pronto. Se ela me pedir para ir ao
aniversário dela, estarei lá. Levarei o bolo.
“Você gosta do sol?”, pergunto.
“Sim.” Ela se move em seu assento, inclinando-
se para frente. Por um instante, penso que ela vai
cair. Eu observo a assistente dela. Ela ainda está
sorrindo, silenciosamente, com seu rosto voltado na
direção da luz do sol. A garota está amarrada.
Ela gira em seu assento e lança a cabeça para
trás. “Você quer ser meu amigo?”
“Claro”, digo de novo.
“Eu gosto de amigos. Eu tenho muitos amigos.”
“Tenho certeza que sim.” Ela deve ter por causa
desse sorriso e esse ritmo rápido.
Seu rosto se enche de curiosidade. “Qual é seu
nome?”
A cadeira de rodas move-se pela calçada vazia.
A ajudante da garota me dá um último sorriso de
lábios comprimidos. Eu aceno com a cabeça.
“Qual é seu nome?”, a garota grita, ainda se
virando para trás. Sua voz fica mais desesperada. É
difícil perder um amigo.
“Nate”, grito para ela, e ela vira o rosto para
frente, satisfeita.
“Você quer ser meu amigo?” Sua voz ecoa no
quartel dos bombeiros, mas não preciso responder.
Outra pessoa está caminhando na direção dela.
Alguém prestes a fazer um amigo.
Se não vos fizerdes como crianças.
Aquela garota e eu portamos a imagem de Deus.
Mas, nenhum de nós a tem por completo. Há
maneiras em que ela é um retrato mais verdadeiro
do que posso ser, maneiras nas quais ela vê o
mundo novo, renovado e sem as distrações do
passado e do futuro. Eu não tenho dúvida de que,
enquanto ela olhava para mim, ela me amava. Se eu
fosse uma imagem melhor, retornaria tamanho
favor.
Mas, agora, ela não sabe nada sobre mim. Sua
afeição queimou e está direcionada a outro, ou
talvez a tristeza a acompanhe agora, tão profunda,
instantânea e completa quanto sua alegria.
Meu dom é apenas lembrar, um dom pálido e
superficial perto do dela.
Eu tive compaixão dela. Talvez ela teve
compaixão de mim.
Nietzsche publicou O Anticristo em 1888. Além
de outras coisas, ele tinha a dizer isto sobre a
compaixão: “A traços largos, a compaixão
contradiz a lei da evolução, que é a lei da seleção
natural. Conserva o que está maduro para o
declínio, luta em prol dos deserdados e dos
condenados pela vida; e, pela abundância dos
falhados de toda a espécie, que mantém vivos,
confere à própria vida um aspecto lúgubre e
duvidoso”.1
Um ano depois, Nietzsche começou a ficar
louco. Verdadeiro ou falso, diz-se que ele foi
vencido pela visão de um cavalo sendo chicoteado.
Perturbado pela compaixão. Ele morreu no ano
1900. Por uma década, ele foi mantido vivo e
passou por insanidade, derrames e invalidez por
doença. Aos 55 anos, parcialmente paralisado,
incapaz de falar ou andar, descobriu que vida o
aguardava depois do túmulo.
Nietzsche atacou seu Criador com a língua, o
único músculo notável que teve — seu maior dom.
O Senhor dá e o Senhor toma; louvado seja o nome
do Senhor.
Havia poucas coisas que Nietzsche desprezava
mais que o legado de seu pai luterano.
Eu nunca fiquei irritado com Nietzsche, nunca
fiquei aborrecido. Em seus pontos mais blasfemos,
em seus pontos mais exuberantemente odiosos e
pomposos, eu apenas ria. Mas, ainda assim, há algo
de agridoce sobre esse riso. Conheço a história
dele. Eu sei como seu blefe foi descoberto, como
ele ficou arruinado.
Novamente, de O Anticristo: “Os fracos e os
falhados devem perecer: primeiro princípio da
nossa caridade. E há mesmo que ajudá-los a
desaparecer!”.
Falou o paralítico. O homem alimentado com
uma colher por aqueles que o amavam.
“O que é mais nocivo que todos os vícios? — A
compaixão da ação por todos os falhados e fracos:
o cristianismo…”
E, ainda assim, por ver o mundo através dos
meus olhos e não dos dele, tenho simpatia pelo
próprio Nietzsche. Corpos e mentes não são tudo
que pode falhar em um homem. Almas podem ser
vazias, defeituosas, cruéis, mais ácidas que urina.
Nem todos os estranhos em cadeiras de roda
querem ser amigos.
Quando estava na pós-graduação, conheci um
homem, magro, barba por fazer, com tendência a
ser filosófico.
Ele ria do meu cristianismo e esguichava frases
do alemão raivoso que morreu balbuciando.
Ficávamos parados em um corredor acadêmico
desalmado e olhávamos um para o outro. Temo que
eu não ouvisse com cuidado. Eu o observava comer
enquanto falava, mastigando batatas-fritas. Eu
podia ver a caixa de hambúrguer enfiada na
mochila.
“O que é o certo?”, perguntei. Eu tinha
interrompido sua linha de raciocínio. Ele mastigou
e levantou as sobrancelhas.
“Tudo o que vem da força. O mal vem da
fraqueza.”
“Passa sua batata-frita”, eu disse com calma.
“O quê?”
Endireitei-me e caminhei na direção dele. Eu
tinha pelo menos 15 centímetros a mais que ele, e
22 quilos a mais. “Passe a porcaria das batatas para
mim. O hambúrguer também.”
Eu estava pronto para socá-lo, para jogá-lo
contra a parede. O pânico tomou conta de seus
olhos, mas eu não podia continuar. Rindo, recuei.
Ele esperou tempo o bastante para blasfemar e,
então, deixou o corredor. Suas batatas foram com
ele.
Eu queria que todos os discípulos de Nietzsche
fossem tão pequenos.
O mundo é visto de muitas maneiras diferentes,
mas quem considera o caos como pai é mais
intrigante para mim. Eu olho nos seus olhos, como
uma garota em uma cadeira de rodas, e tento
perceber alguma diferença real no que eles estão
vendo.
Você já reparou nas libélulas?
Eles já repararam as libélulas.
Eles não podem realmente ter reparado. Eles
viram as ninfas? Eles sabem como elas nadam?
Eles já viram as ninfas.
Mas, elas são como lanchas. Disparam água do
ânus. Essa é sua propulsão.
Eles sabem. Eu sei que sabem. Nós observamos
as mesmas coisas e, em algum lugar atrás das
pupilas, essas coisas tornam-se completamente
diferentes.
Certa vez, por acidente, joguei a tampa de uma
banheira em cima de um sapo. Não percebi até
fechá-la banheira de novo. Eu e minhas irmãs
ficamos com os olhos esbugalhados. A criatura
estava perfeitamente achatada, com uma poça de
orvalho à sua volta. Ele estava amassado como uma
esponja.
Nós chamamos tios e parentes, para reunir
testemunhas para um memorial. Quando voltamos,
a poça estava sozinha. O sapo, novamente
tridimensional, estava na borda da tampa, nos
observando. Ele nem mesmo parecia irritado.
Possivelmente com uma concussão, mas não
irritado.
Se eu fosse católico e, se conhecesse o padroeiro
dos sapos (são Francisco de Assis?), teria acendido
uma vela. Em vez disso, ofereci o maior muito
obrigado que tinha. E ri.
O incidente não me levou nem um pouco mais
perto do agnosticismo, e acho que posso dizer o
mesmo do sapo.
Se o mundo é fundamentalmente um acidente,
se, no princípio, não havia uma personalidade
eterna, nenhum ser vivente eterno, apenas uma
matéria Eu Sou superquente, hiperdensa (sem
espaço ou universo fora de si) e, se, vagando nos
hiperdensos e superpequenos corredores da Matéria
Eterna, seguindo sua rotina normal, acontecesse de
um pequeno elemento químico tropeçar e bater em
outro elemento muito diferente, e ambos dizerem:
“Que porcaria!” com vozes minúsculas e
emudecidas pela explosão, quando o acidente
começou a fazer sentido e por que diabos nós temos
as paraolimpíadas?
É estranho que um acidente impessoal comece a
falar sobre si, que estilhaços de matéria disparando
pelo espaço-tempo comecem a fazer sons e fingir
que se comunicam com outros estilhaços, e que
esse balbucio explique com fidelidade o acidente?
Não lhe é estranho que um acidente inventasse o
beisebol, as morsas e os ingleses?
Se um observador imparcial hipotético tivesse
assistido ao nascimento de um universo sempre em
expansão a partir do ventre de uma bola de fogo
acidental, ele (ou ela ou aquilo) ficaria surpreso
quando a explosão inventasse lhamas?
Veja: para mim, lhamas são de todo coerentes
com a personalidade de um Deus que se diverte
com facilidade. Uma pegadinha para os Andes e
todo o mudo que já precisou usar um suéter de lã
com gola rolê. Grosseiras, afetadas, comicamente
ignorantes de sua aparência, cuspidoras. Perfeito.
Conte-me uma história sobre o grande deus Bum.
Conte-me como ele acidentalmente criou lhamas a
partir do hidrogênio.
Podemos ser francos aqui? Eu sei que não sou
muito como Elias, o tisbita. Nenhum rei quer minha
cabeça. Nunca fui alimentado por corvos ou
ressuscitei os mortos, e não espero ser elevado ao
céu em um redemoinho. Elias, no entanto, afirmou
com eloquência o que pensava sobre o deus Baal.
Ele não estava acima de uma pequena grosseria
humana.
Quanto a mim, eu gostaria de dizer o que penso
deste deus, Bum.
Você o serve? Bum é o criador? Então, seu deus
urina nas calças. Ou você não percebeu? Isso é tudo
o que ele já fez. Ele está fazendo agora. Embora,
como ele não tem realmente existência pessoal, o
deus criador ateísta seja, na verdade, mais um
processo — o “ato de urinar nas calças”. Nos
registros de Bum, na história da evolução, eu, você
e a mãe de cada um de nós somos nada mais que
seres rastejantes de alguma forma produzidos (por
raios que caem, talvez?) em um ponto aquecido da
colcha da realidade.
Ok, sei que não estou sendo justo. Não há Deus.
O caos não tem personalidade. Admitirei isso. Mas,
a parte da urina é justa. Nós, de cachalotes a
constelações, somos parte de um acidente sem
agente — calças molhadas sem a criança de cinco
anos.
Ainda podemos ser amigos?
Mas o que é amizade em um acidente? E que
cheiro é esse?
Sirva a Bum, e você e eu ainda podemos ser
amigos, mas a maneira como vemos as coisas muda
tudo. Eu percebo intencionalidade no mundo e,
assim, imito isso em minha arte (e na arte que
respeito). Você vê um mundo que é nada mais que
uma grande explosão, e a arte que imita isso é uma
forma de suicídio.
Um dos aspectos mais importantes da arte é o
relacionamento entre a obra, entre uma tela ou uma
página, e seu criador. Eu tento amar o que formo da
maneira que vejo Deus amar sua arte. Eu, uma
mancha de tinta, uma personagem em um palco,
um figurante em um musical, observo o cuidado e o
amor, a simpatia e a empatia com que ele põe em
cada traço, palavra e parte da coreografia. O que
coloco em uma página imita, embora sem jeito, o
que ele coloca nas dele. Como eu o faço é apenas
mais imitação.
Quando Jackson Pollock criava, ele imitava.
Queria que suas telas se parecessem com o mundo,
e o mundo que ele observava era um acidente, uma
explosão. Contudo, o mundo que ele via não era
arte de fato. Não havia artista e, assim, ele
trabalhou duro para matar-se em relação à sua tela.
Todavia, fracassou. Ele sempre fracassava porque
existia, e isso dava à sua arte um artista — sua
existência refutava tudo que ele tentava pregar.
Ele podia fazer buracos no fundo de latas e
balançá-las com cordas, mas ainda era quem
comprava a corda, arrumava a tela no chão e
balançava. Sua arte nunca foi acidental como a
realidade. Ela era fundamentalmente falsa (em seu
mundo) por ter um criador — uma vantagem que o
Grand Canyon, as cataratas de Vitória, os
penhascos brancos de Dover e o planeta Júpiter não
tinham.
Wim Delvoye é um artista belga. Quem sabe o
que ele enxerga no mundo? Hoje, sua maior
conquista chama-se Cloaca. É uma máquina de
cocô — resplandecente e eficiente. A comida é
jogada na máquina (pratos dos principais chefs
quando a obra esteve em Nova York) e, depois de
viajar por vários banhos de enzimas balanceados
com cuidado e por digestão bacteriana, ela é
apertada, tornando-se uma vulgaridade
tridimensional em formato de pequenas tiras.
Você pode comprar a coisa em um container de
plástico selado a vácuo (no caso de haver escassez)
e colocá-la sobre sua lareira. Ela vem com a
assinatura do artista.
O negócio dele é a inutilidade da arte. Vejam,
vejam, estou vendendo algo que vocês já fazem
sozinhos e odeiam. Não há diferença entre o belo e
o feio. Há apenas útil e inútil. Essas coisas inúteis
(como o Messias de Händel, uma máquina de cocô,
um pouco de chiclete mastigado, o teto da capela
Sistina e placa dentária) nós chamamos de arte.
Enquanto contemplo a obra de Wim, deveria
ficar surpreso de ver as coisas de maneira
diferente? Isso não é realmente inútil, essa longa
prateleira de tubos e baldes de enzima, essa
máquina que custa milhares de dólares pelo projeto
e pela construção. Quão difícil foi produzir?
Quanto tempo levou para fazê-la funcionar direito?
Tudo isso, essa fábrica de digestão, eu a tenho
enrolada em bobinas adaptáveis atrás do meu
umbigo. Eu nunca soube o quanto isso era
impressionante.
Quais são as baterias nesta máquina? Eu quero
energia sendo extraída dessa comida. Quero ver
algo fazer polichinelos graças a essa digestão.
Poderia acontecer — com mais alguns milhares
em doações e mais engenharia.
Consegui o meu por acidente em uma explosão,
pré-fabricado e intacto quando fui forçado a sair da
barriga da minha mãe. Por que você não tenta isso?
Poderia ser mais barato.
Uma pergunta de outros que não foram citados:
Você esperaria encontrar as obras completas de
Shakespeare impressas, agrupadas e encadernadas
por uma explosão acidental?
Mas isso é exatamente o que temos. Uma
explosão que não só nos deu as obras completas de
Shakespeare, mas um monte de unidades bípedes
atuantes, multidões para chorar e lamentar, e uma
indústria de crítica shakespeariana que atravessa os
séculos. Porém, a explosão não parou aí. Ela
também nos deu Kafka, a arquitetura russa, painéis
solares, a democracia jeffersoniana, o cristianismo
e o comércio de marfim.
Nós somos pedaços da fuselagem, girando para
longe do olho do grande desastre. Tudo que
fazemos é atribuível ao caos, pois somos seus
filhos, estilhaços de carbono com terminações
nervosas sensíveis, complexo de superioridade e
predileção por pizza.
Eu vejo sua pintura. É de Pollock. Mas, onde
está sua história? Qual é a trama? Quem são as
personagens? Quais são as regras?
Nessa história, o dispositivo darwiniano que
move a história é chamado (salve o herói
conquistador) seleção natural. Contudo, ela não tem
propósito, nenhum objetivo. Sobrevivência é o
resultado para alguns e morte para outros, mas não
há nada na história para mostrar que um deve de
fato ser preferido ao outro. A sobrevivência, como
algo bom, é apenas um dos axiomas adotados pelos
fiéis. As personagens? O que você quer dizer? Há
só uma estranha trindade impessoal — tempo,
acaso e matéria. A matéria existe e é moldada por
reações químicas ao passo que o tempo e o acaso
agem sobre ela. Você não tem alma. Você é apenas
a combinação de elementos químicos. O que você
chama de “morte” é nada mais que a transição de
uma combinação e o início de outra. Bem-vindo ao
monte de folhas secas — uma folha caída não é
melhor ou pior que um homem. Quando você
começa e termina é uma questão desnecessária.
As calotas polares estão derretendo. Quem se
importa? Deixe que a grande e veloz corrida sem
linha de chegada pela sobrevivência prossiga.
As salamandras da Costa Rica estão
desaparecendo? E daí? Fique com Nietzsche, não
com o cristianismo, e sua compaixão e pena. Deixe
o fraco ser podado. Deixe que eles e outros
fracotes, de bactérias a bebês, sejam reciclados para
o forte e o faminto.
Do “Hino Evolucionário”, de Clive S. Lewis:
Conduza-nos, evolução, conduza-nos.
Pela infinita escada do futuro;
Corte-nos, mude-nos, estimule-nos, arranque-
nos.
Pois, a estagnação é desespero:
Tateando, conjeturando, mas progredindo,
Conduza-nos sabe-se lá aonde.
A verdade é que poucos acadêmicos ateus
tentarão afirmar o caráter agradável do ateísmo. Ele
tem sido retratado como uma verdade difícil, e
esses ateístas de olhos cerrados são os corajosos
(“brilhantes”, de acordo com Richard Dawkins), os
dispostos a espiar o interior do seio ardente da
realidade, a contemplar absolutamente nada e
escrever best-sellers sobre suas experiências (e
convencer-nos da nossa falta de alma). Eles pregam
essa fatalista doutrina dura e química como um
bando de calvinistas vitorianos incapazes de
entender por que o populacho simplesmente não
abaixa a cabeça e os segue em silêncio.
Porque é absurdo. (E você pode ficar com sua
cátedra. Eu preferiria ter uma mesa de pingue-
pongue.)
A pintura de Bum é mais feia que meras
manchas de tinta e uma errante e absurda história
cósmica, global, nacional, estadual e pessoal. O que
é bem e o que é mal? Estupro não é um impulso
evolucionário? Trocar uma mulher pós-menopausa
por um pedaço novo de carne fértil não é uma ação
correta segundo a evolução?
Nos salões da pós-graduação, a sabedoria veio
até mim pela boca de oráculos mortos.
Immanuel Kant (todos de pé) nos deu algo que
ele pensava poder ser usado para extrair bondade e
moralidade sem Deus (embora ele não fosse
ateísta). O mau é assim por ser irracional.
O imperativo categórico de Kant: Aja só de
acordo com as máximas que você deseja que sejam
universais.
Aluno 1: Isso não faz sentido. É uma regra de
ouro empobrecida. Sem um Deus criador para
impô-la, ela é de todo arbitrária. A lógica não
concede bondade, apenas validade. E, se fosse
possível, como uma lei “racional” conquistaria
autoridade real em um mundo acidental?
Aluno 2 replica: Pense sobre o roubo de
bicicleta. E se todo o mundo roubasse bicicletas?
Aluno 1: Todos nós teríamos a bicicleta de outra
pessoa.
Há algo de errado em ter a bicicleta de outra
pessoa? Eu quero saber.
Hã… sim. Ela é de outra pessoa.
Mas, e se eu não me importar? E se eu quiser que
todos neguem o direito de propriedade individual?
Isso torna meu roubo legal? E se quiser o fim do
casamento e que tabus sexuais sejam afirmados e,
então, me esforçar para encaixar o adultério e o
estupro na minha agenda? E se eu quiser anarquia?
Devo começar a atirar?
Claro que não, você deveria buscar o bem maior
para o maior número de pessoas.
Apresentando… a ética do estupro grupal e da
opressão racial. Bondade por decisão majoritária
sempre deu certo no passado. Apenas certifique-se
de que há mais pessoas aproveitando o espetáculo
que sendo devoradas pelos leões.
Futilidade. Kant, o bem-intencionado intelectual,
nos ofereceu uma “regra de ouro” lógica, mas lhe
falta tutano. Alguém tirou o álcool. Tiraram a
autoridade. A versão de Cristo tem maior teor
alcóolico. Faça como você deseja que seja feito.
Por quê? Porque ele criou você e este mundo, você
e ele lhe pertencem, e ele faz as regras. Porque
você prestará contas. Porque você será julgado
como julga os outros.
Autoridade, em especial a autoridade de um
Criador infinito e santo, cujas palavras nos dão
nossa própria existência — que podem nos dar
moralidade.
Espere aqui. Vou trazer sua bicicleta de volta.
Se há metasseres, um deus ou deuses que não
criaram o mundo, então eles podem nos mandar
fazer o que os valentões fazem, embora não tenham
jurisdição. Podem governar seus países como
bairros italianos e seguirem os mesmos princípios.
Faça ou apanhe. Ajoelhem-se, touros de abate,
lambam o chão, passe-nos sua grana. Porém, força,
mesmo acima do nível humano, não torna certo.
Mas, um Deus criador, um Deus sem quem nada
disso existiria, um Deus que trouxe a realidade à
existência por sua palavra e a molda até agora, ele
detém autoridade. Este mundo é dele. Você é dele
da maneira como essas palavras são minhas. Nós
somos pó falados a partir do nada, moldados com a
umidade de seu hálito, nomeados e vivificados.
Agostinho: Ame a Deus e faça o que deseja.
Se você ama a Deus, então amará a santidade. O
que você deseja não deveria ser um problema.

Há crustáceos chamados artêmias nos desertos


do sul de Idaho. Eles foram descobertos há apenas
uns anos por homens da Guarda Nacional em
treinamento.
Pela primeira vez em anos, caiu chuva o bastante
no deserto para formar poças. Nesse mundo
bastante temporário, estranhas criaturas brancas
estavam planando, anjos da morte em poças,
devorando crias de mosquitos e outros pequenos
seres nadadores. Com 10 centímetros de
comprimento, muitas pernas, barrigas de velcro
para armazenar melhor as presas, a observar seu
mundo superficial com cabeças de louva-a-deus,
esses camarões tinham posto ovos dormentes e
secos há uma década ou mais, de alguma forma, em
algum ponto, no deserto.
Eu desisti das probabilidades. Elas não assustam
ninguém. Por que falar sobre a improbabilidade de
algo assim acontecer por acidente? Qualquer sapo,
qualquer joaninha ou borboleta é tão improvável
quanto um camarão no deserto de Idaho e, ainda
assim, há milhões de criaturas gorjeando,
rastejando e sendo formadas a partir de sopa neste
exato momento, desfrutando de uma vida cheia de
propósito, amor, comida, luz solar e lama — todas
dádivas motivadoras de gratidão. E, para a gratidão
funcionar, deve haver alguém responsável — um
Doador das dádivas.
Enquanto escrevo minha mulher dorme a meu
lado, neste momento. A terra girou para a sombra,
embora a lua-espelho esteja alta, e chegou a hora
das criaturas sanas ficarem bem paradas e terem
pensamentos involuntários.
Meu amor a ela é maior que o amor de um ímã à
geladeira. Meu amor a ela é motivo por mais que a
busca para transmitir meus genes a uma
descendência igualmente sem valor. Ela e eu temos
uma história juntos. Somos cordas tocadas juntas,
uma rotina de música e dança que polimos e
praticamos todo dia. É um amor faminto e
alimentado, sedento e sempre bebendo. Eu a
observo do jeito que uma garota olhou para mim de
sua cadeira de rodas. Não consigo me conter. Não
consigo parar de me repetir.
Admito isto: é algo muito parecido com uma
explosão, como uma onda batendo na praia até o
lugar em que nossa história amadurecerá como uma
plantação de verão, até o lugar em que o Segador
nos encontrará.
Não há nada de acidental nos olhos brilhantes
que minhas filhas usam para ver o mundo ou as
faíscas de alegria que surgem neles quando
descobrem pequenas histórias pela primeira vez,
histórias de gatos e esquilos, inverno e primavera,
diversão, amor, risos, alegria e gratidão.
Enquanto me deito no chão, com a face voltada
para o tapete, penitente de gratidão pela vida
imerecida, beleza e felicidade imerecidos, grato
pelas estrelas e pássaros, grama, folhas e fardos de
amor que recebi, sei o que se aproxima. Consigo
ouvir a voz da mãe deles os provocando.
Osso do meu osso e carne da minha carne.
Filhas nas costas, beijos e risadas nos meus
ouvidos. As mãos de um filho nos meus tornozelos,
esforçando-se para o dia em que conseguirá me
virar com facilidade. Um filho menor, com poucas
palavras na língua, esfregando o jovem crânio no
meu, girando e rastejando abaixo do meu rosto. Ele
não precisa de palavras. Olha nos meus olhos, sorri
e bate na minha bochecha, provocando uma briga,
esperando seu pescoço ser mordido. Esperando
risos.
Eu fico em pé, amadurecendo ao solo, em uma
esquina próxima a uma cafeteria. O mundo gira,
imperturbável em sua rota. O verão chegou com os
encantos de uma mãe. O calor banha meu rosto,
envelhecendo-me, levando-me para mais perto da
morte.
Deixe estar. Estou aqui para viver minha história,
para amar minha história. Não deixarei de saborear
cada dádiva por causa de um desejo de
autopreservação. Autopreservação não é uma
grande virtude nesta história.
Tenho este mundo, e tudo nele me tem, mesmo
sendo uma troca ruim. Tenho uma churrasqueira.
Eu vou usá-la esta noite.
Acima do meu ombro, uma garota se aproxima
empurrando uma cadeira de rodas. Um homem está
assentado nela, retorcido, baba seca em lábios
rachados sob os emaranhados de um bigode não
aparado.
A voz de Nietzsche é difícil de entender. “O
conceito cristão de Deus”, ele diz. “Deus como
Deus dos doentes, Deus como aranha tecendo teias,
Deus como espírito — é um dos mais corruptos
conceitos de Deus que sobre a terra se obtiveram:
representa até, possivelmente, o mais baixo nível da
evolução declinante do tipo divino.”
Eu quero bagunçar o cabelo dele. Quero pegar a
cabeça do pobre menino luterano com minhas mãos
e beijar sua testa enrugada. É tudo que posso fazer.
Eu não posso consertar um osso, quanto mais uma
alma.
Ele prossegue, pregando incredulidade em uma
rua vazia.
Eu prossigo, com o rosto ao sol. As nuvens estão
crescendo a oeste, nuvens gloriosas empilhadas
com cuidado turbulento e abastecidas de vida
elétrica.
Encho meus pulmões com o mundo, com esta
vida, com este dom além dos limites. Só há uma
coisa que posso dizer.
Obrigado. E devo dizer com minha vida. Por
meio da minha vida. Até o fim da minha vida.
E DEPOIS.
1 Neste livro utilizamos a tradução de Artur Morão, adaptada ao
português do Brasil. [N. do T.]
O AR ESTÁ FICANDO ESPESSO. Não está úmido. Não é
esse tipo de calor. Mas, o vento morreu e a
atmosfera está se tornando comprimida,
pressurizada, esfregando as meias no carpete.
As lentes dos meus óculos escuros estão cheias
do meu suor, dos dois lados.
Gafanhotos passaram a manhã crepitando asas
amarelas à minha volta, mas, agora, estão em
silêncio. Enquanto subo a escada até o beiral, com
minhas costas para o sul, o único movimento vem
de abelhas e vespas alisando a muro, perguntando-
se onde as casas trabalhadas a cuspe se foram,
esmagadas sob o novo revestimento de cedro.
A pistola de pregos está quente o bastante para
queimar minha mão. Não posso deixá-la presa à
escada. Ela desce comigo e descansa na sombra.
A oeste, há nuvens se formando, reunindo-se na
direção da lua da tarde. São elas que comprimem o
ar. Elas criam opressão à tarde para trazer alívio à
noite.
Elas não são fofinhas, mas são bonitas.
Certa vez, havia um coelho chamado Marco
Aurélio. Sua história começa com ele no mercado
agrícola, um coelho de abate, que deveria ir para a
panela de alguém.
Ele custava cinco dólares.
Minha (futura) tia comprou Marco, mas não pela
carne. Ela o comprou por amizade, por humor, por
algo quente e fofo para agarrar. Marco até sabia
como mexer o nariz.
Você já ouviu um coelho gritar? Eles soam como
porcos com um tom um pouco mais alto e maior
projeção. O grito surge sob extrema coação, como
uma oração final antes que a cobra se contraia,
antes que as garras os agarrem, antes de o sr.
McGregor fazer um guisado.
O problema dos cristãos é que normalmente
queremos escolher um aspecto deste mundo, um
aspecto da personalidade de Deus e, então, prender-
nos a isso.
Coelhos são macios e poços de fofura. Gatos
ficam lindos em cestas. Deveríamos nos fixar na
imagem de gatinhos, sem crescer, caçar, nem
deixar resíduos das populações de pequenos
animais? Deveríamos nos agarrar à suavidade,
cordialidade e longas orelhas desajeitadas, e ignorar
o grito ocasional nos arbustos?
A história de Marco Aurélio parecia consistir
apenas em arco-íris e alegria. Ele não era mais um
coelho para abate. Sua salvadora, minha tia, o
pegou para fazer amizade com seus alunos do
jardim de infância, minha irmã mais velha entre
eles.
Marco brincava com eles no recreio. Ele era
marrom, macio, grande e amigável.
Marco engordou.
No verão, depois do glorioso ano no jardim de
infância, quando os campos assavam ao sol e as
estradas entortavam o ar com seu calor, Marco
partiu para ficar com alguns amigos, fazendeiros.
Todo o mundo sabia que ele gostaria dali. A casa
deles ficava nos campos, onde um coelho deveria
viver, em um lugar onde ele poderia ver a
montanha.
Minha irmã o amava. Minha tia o amava. Eu,
embora minha mente de três anos não tenha retido
nada disso, devo tê-lo amado na época.
O livro ilustrado da vida de Marco tem uma
página final perturbadora.
Mas, que início promissor — poupado da morte,
amigo de crianças de cinco anos, inocência e
bênção.
O que é mais bonito — um macio coelho de
olhos brilhantes, bem alimentado e amado, batizado
com o nome de um imperador-filósofo estoico ou
um falcão de cauda vermelha, macio de um jeito
diferente, flutuando no tórrido ar ascendente dos
campos, com olhar aguçado e partes pontiagudas?
Levaram Marco para brincar no quintal. Ele
amava brincar com crianças. Era tudo o que ele
conhecia desde aquele dia no mercado. Ele não
sabia nada sobre falcões. Ninguém o preparou.
O falcão atacou antes que alguém o visse
descendo. Falcões tendem a fazer isso. Mas, Marco
era gordo, muito pesado para as garras, muito largo
e facilmente rasgável.
No final, Marco jazeu arfando, mutilado no
quintal. As testemunhas ficaram traumatizadas. O
falcão, mais cansado e faminto que antes, voltou
para os céus, sem dúvida procurando algo menor.
Talvez um gatinho.
Marco Aurélio chegou ao fim da vida com a
maior dignidade possível para um coelho gordo
retalhado por bico e garras.
Eu não sei onde ele foi enterrado ou se uma
pedra agora marca seu lugar.
Mas, ele nunca foi comido.
Marco Aurélio (fragmento de Meditações):
Execute cada ato de sua vida como se fosse o
último.
Falou como um romano morto.
Um gatinho malhado está deitado de pernas para
cima, observando-me com seus olhos de cabeça
para baixo. Esse gatinho tem uma mensagem:
“Deus ouve até a menor das vozes”.
Eu poderia comprar o lustroso pôster de
35 x 50 cm e pendurá-lo no meu escritório,
próximo aos “Desastres marinhos de Cabo Cod”.
O gatinho acredita no que está me contando? Ele
se sente culpado enquanto devora esquilos,
ratazanas e filhotes de codorna?
Esse trabalho está mudando minhas mãos. Elas
estão se enchendo de calos. As grossas almofadas
de pele ficam moles com suor e calor. Outrora
proteções, elas agora deslizam com o fluido
enquanto agarro as barras da escada. Eu sei o que
vai acontecer. Nos próximos dias, quando as bolhas
forem drenadas, os calos sumirão e novos serão
iniciados. Eu não conseguirei reconstruí-los antes
do outono.
Estou ignorando o calor. Empanturrando-me de
líquido enquanto meço e corto, engolindo e
ofegando e, então, semicerrando os olhos por causa
dos dentes giratórios da serra. Eles viram borrão
contra o cedro, lançando lascas contra minhas
lentes.
Minha família está na piscina.
Em um segundo dissonante, a lâmina faísca, a
madeira é lançada na minha mão. Eu solto o gatilho
e paro para olhar a ponta do meu dedo. Uma longa
lasca de cinco centímetros encontra-se debaixo da
unha do meu indicador. Ela foi enterrada na metade
do caminho para a minha cutícula. Não há sangue,
ainda não. Está sendo contido pelo cedro.
Eu retiro a lasca e deixo-a no chão junto com as
primeiras gotas de sangue. As formigas podem
bebê-las. Elas precisam de proteína. Suor era tudo o
que estavam conseguindo comigo.
Há um pôster, menor que o outro, mas ainda com
a temática gatinhos. Ele tem a borda amarela, e é
tão animado quanto uma animação pode ser. O gato
parece levemente perturbado. Eu olho mais de
perto. Oh, não, agora eu vejo! O cachorrinho
peludo tem o rabo do gatinho na boca. Não se
preocupe. Nenhum gatinho foi ferido. Parece
Photoshop.
Mensagem em uma fonte gordinha: “Ajude-me a
lembrar, Senhor: nada vai acontecer hoje que tu e
eu não possamos enfrentar juntos”.
Contanto que nada maior que um cãozinho
apareça.
O ar se move. Algo ronca à distância — um
caminhão puxando sua caçamba? O ar-
condicionado do teto do hospital movido pela
primeira brisa da tarde?
Ou trovão. Os chicotes do céu estão estalando
em algum lugar do estado de Washington. As
plantas tombam e o vento transforma a poeira em
demônios que brincam nos campos, primos mais
novos dos grandes funis que avançam pelos céus do
Meio-Oeste.
Eu termino com meu corte e caminho até a
escada, chupando o dedo.
Dois falcões de cauda vermelha voam acima de
mim. Eles vivem aqui agora, nesta vizinhança,
aninhados no alto de um abeto azul. Eu me
pergunto o que encontram para comer. Gatinhos?
Coelhos de estimação? Eu me pergunto com que
clareza seus olhos conseguem ver a tempestade que
se forma e quando eles irão para seu ninho, uma
casa localizada no ponto mais alto do quarteirão.
Quantos falcões morrem atingidos por raios?
Como eu saberia? Escalo minha escada de metal.
No topo, um grupo de vespas voa em torno de um
degrau. Equilibrando-me com uma parte do
revestimento no ombro, alcanço nas sacolas a
morte que comprei ontem. Ela é negra e cheia de
aerossol.
“Hoje é o dia de sua morte”, digo em voz alta.
“Vocês viveram de forma plena e arruinaram
muitos piqueniques, assustaram muitas crianças e
comeram seu quinhão de melancia. Ou talvez, não.
De qualquer forma...”
Elas têm convulsões e caem do céu. Eu as assisto
por um instante: elas se contorcem ao lado da base.
A contagem de hoje passa de cinquenta.
Se meu dedo não doesse, se não estivesse
perdendo meus calos favoritos, se meu filho não
tivesse sido picado tantas vezes neste verão, talvez
elas tivessem vivido. Mas, provavelmente não.
Por que os cristãos pensam em pureza, santidade
e até divindade como algo com olhos grandes e
pelos macios? Por que muitas vezes ignoramos o
belo a favor do fofo?
O que eu deveria aprender sobre Deus a partir de
gatinhos e cãezinhos? Ele os criou; com certeza,
eles podem me ensinar algo. Ele criou coelhos
também e levou a maciez a novos níveis quando
trabalhou nos pelos deles. Então, ele lhes deu
dentes que podem atuar como saca-rolhas… e os
coelhos gritam.
E, no sexto dia, ele criou os ratos-toupeiras-
pelados. E eles eram bons.
Ratos-toupeiras-pelados não são fofinhos (ou
belos no sentido convencional). Eles vivem em
colônias (um tipo de inseto social mamífero) e
funcionam com uma rainha, uma rainha extralonga,
adaptada para navegar por túneis e gerar a próxima
geração de trabalhadores cegos, nus e dentuços. A
rainha terá até cinco ninhadas por ano, e cada
ninhada tem uma média de doze filhotes (podendo
chegar a 27).
Graças aos intrépidos esforços fotográficos de
pessoas que não conheço, eu vi uma filmagem da
rainha-rata-toupeira em sua câmara, seu nobre rei
ao seu translúcido, contorcido e esperneante lado.
Os ratos-toupeiras são formados em um útero ativo
e tunelado. A vida na “colmeia” é espaçosa.
Podemos fazer um pôster dessa rainha comprida,
por favor? Podemos distribuir essa imagem para as
mulheres da cristandade?
Deus ouve até a menor das vozes, sim, até a voz
do nascituro rato-toupeira-pelado.
Eu consigo imaginar a borda amarela. Escolha
sua fonte.
Os ventos são seus mensageiros. Angelos, anjo,
mensageiro. Evangelho.
Mudei a posição da minha escada. O vento está
aumentando. O tapume avançou sobre a casa. Sei
que estou correndo contra algo muito maior e mais
rápido que eu. O próprio vento torna minha corrida
mais fácil. O suor é afastado. O calor pressurizado
foi empurrado para o leste, onde agora algum
fazendeiro pode tirar seu chapéu manchado e
limpar a testa na quietude.
Os falcões não estão no céu.
Sem dúvida, minha família saiu da piscina.
Qual é essa mensagem que o vento carrega?
Qual é a moral? Alguém pode digitar em um cartão
para mim?
Do alto da minha escada, quando consigo olhar
acima das árvores do vizinho, a mensagem é mais
clara.
Haverá granizo ou chuva em gordas gotas bem
alimentadas. Posso vê-las congeladas em sua queda
diagonal. Desta distância, parece que um artista
lambeu o dedão e borrou a nuvem na direção da
terra. Ela parece congelada, pronta para um cartão
postal inspirativo. Quando eu estiver dentro da
tempestade, a mensagem será mais clara. O
impressionismo está partindo. O realismo vem
como consequência.
Realismo. Eu tenho uma bênção angelical. Pelo
menos, eu acho. É um cartão com uma figura de
uma mulher com um vestido bufante e macio, de
avental. Ela foi feita com linhas finas e aquarela
gentil.
O vestido da mulher é roxo com flores. Seu
cabelo tem permanente e o avental é largo e branco,
cobrindo a extensão do torso. O avental tem uma
palavra cursiva nele, desenhando para parecer
bordado.
Fé.
A coitada da mulher também tem tornozelos
muito gordos, e chinelos decorados com estrelas
desiguais costuradas. Seu rosto é ainda mais
estranho. Ela não tem boca ou nariz, apenas uma
simpatia oval (ela é branca) com dois olhos de bola
e grandes círculos rosados nas bochechas de todos
os beijos angelicais que está ganhando. Ou isso, ou
ela é insegura com a total ausência de traços faciais
e colocou um pouco mais de blush para compensar.
Ela tem asas, e eu estou feliz por ela,
considerando a situação dos tornozelos.
Anjo, anjo, qual é sua mensagem?
Certo. Sem boca. Mas, há algo escrito no canto
do cartão.
“Alegrem-se na esperança, sejam pacientes na
tribulação, perseverem na oração.”
Paulo escreveu essas palavras para os cristãos em
Roma. Ele escreveu essas palavras a cristãos em
uma cidade em que homens, mulheres e crianças
serviram de comida para grandes gatos, outrora
gatinhos, na frente de uma plateia. Em Roma, os
cristãos eram amarrados em estacas e queimados
para providenciar iluminação para as orgias de
Nero. Em Roma, os cristãos eram forçados a adorar
em sepulcros, túneis com prateleiras cheias de
caveiras. Em situação nada melhor que a dos ratos-
toupeiras, eles adoravam em pequenas câmaras
fúnebres cheias de vida em palavra e sacramento.
Aqui é o primeiro mundo. Nós precisamos
desses lembretes deixados por avós de tornozelos
gordinhos, pregadas na geladeira com pequenos
ímãs de peixe.
Em outros lugares do mundo, cristãos morreram
hoje e morrem por causa de seu batismo.
Deveríamos enviar esses anjos para o Sudão?
Deveríamos enviá-los para Indonésia e Irã, Coreia e
China? As vovós aladas estão disponíveis com
aventais bordados?
Ezequiel: Olhei e vi um vento tempestuoso vindo
do norte, uma grande nuvem e um raio cercado de
um brilho; e um metal que brilhava saía do meio do
raio. Algo semelhante a quatro seres viventes saía
do meio da nuvem. Sua aparência era semelhante a
de homem; cada um tinha quatro rostos e também
quatro asas. Suas pernas eram retas; os pés eram
como os de um bezerro e brilhavam como bronze
polido. Eles tinham mãos de homem debaixo das
asas, nos quatro lados; e os rostos e asas dos quatro
eram assim: as asas se uniam umas às outras; eles
não se viravam quando andavam; cada um andava
para a frente. Os rostos tinham aparência de rosto
humano; os quatro tinham rosto de leão no lado
direito e rosto de boi no lado esquerdo; os quatro
também tinham rosto de águia; os rostos eram
assim. As asas estavam estendidas para cima; cada
um tinha duas asas que tocavam as de outro; e duas
cobriam o corpo de cada um deles.
Santidade é terrível. Ela vem com o vento
tempestuoso. Ela é um fogo purificador. Nós não
somos os primeiros cristãos a banalizar os
querubins. Não somos os primeiros a suavizar as
coisas em nossa imaginação e torná-las
confortáveis em nossos sonhos.
Quando pensa em um querubim, você vê um
vestido de tecido cheio de vovó? Você vê um bebê
gordo e alado urinando em uma fonte? Você vê
algo cavalgando os ventos da tempestade, algo
confortável com um vórtice de nuvens? Algo com
quatro faces e quatro asas, da cor do bronze polido,
inconsumíveis pelo fogo que os envolve?
O banal é mais confortável. Eu gosto de anjos
que posso abraçar. Esqueça a coluna de fogo; um
urso de pelúcia é um ícone mais apropriado para a
santidade.
Vocês acham que suas mãos não terão bolhas no
céu? Ou você acha que verá suas bolhas de um jeito
diferente? Acha que seu corpo, a carne que agora o
sustenta, por fim será removida e você ficará livre
para ouvir um concerto eterno do conforto de uma
cadeira de massagem etérea? E, felizmente, a
música será clássica e dormir será sua única defesa.
Você terá uma harpa e se sentará em uma
nuvem? Receberá um novo corpo, um corpo
melhor, um corpo que não falhará ou fraquejará sob
esforço. Esse corpo que o abriga agora é nada além
de vapor se comparado à carne que lhe aguarda.
Quando Cristo ressuscitou, ele ressuscitou em
carne. Ele não era um fantasma, mas atravessava
paredes. As paredes eram fantasmas, e nós também.
Nós somos crianças quando se trata de trabalho,
quando se trata de amor, quando se trata de moldar
este mundo.
O vento está construindo, mas minha escada é
pesada, e a chuva ainda não encontrou este canto
do mundo. Tijolos e lona estão entre minhas
ferramentas.
Do alto da minha escada, é difícil trabalhar
quando não consigo tirar os olhos do céu. Quero
descer e aumentar a escada até o máximo. Quero
subir no meu teto e estar no mais alto, dando boas-
vindas ao vento.
Escalo, enchendo minhas narinas com o cheiro
do ozônio puxado das alturas para baixo. Esse
cheiro é a glória da tempestade. As árvores se
inclinam diante dele. A chuva atinge as ruas
quentes, encontra o asfalto empoeirado e desprende
seu próprio aroma, uma oferta.
Em uma tempestade de verão, é difícil encontrar
um lugar com cheiro mais santo que um
estacionamento.
Se eu encontrasse um anjo, não pediria um
biscoito. Se tivesse olhos para ver o que Ezequiel
viu, precisaria ser erguido após cair de rosto.
Precisaria ser lembrado de que contemplei uma
criatura como eu, uma criatura agora regida pelo
homem. “O” homem.
Sou muito pequeno e estou no corpo errado para
ter esses olhos tão abertos. O vento é suficiente
para me sobrecarregar. As árvores a balançar
capturam como me sinto, ajoelhando-se e partindo-
se enquanto o céu passa.
Deus inventou cangambás.
Gordos e desagradáveis, os rebeldes da mata não
têm noção de seu tamanho e nem precisam. Eles
plantam bananeira e marcham obscenamente na
direção de qualquer predador — enfrentando ursos-
pardos com nada mais que comportamento
glandular inapropriado.
Os cangambás vagam pela cidade à noite,
mastigando gatos menores. Pessoas solitárias
colocam cartazes em postes, mas o resto de nós não
fica triste. Todo gato tem seu fim.
Assim como todo cangambá.
Deus também inventou as corujas, dando-lhes a
audição tão aguçada quanto seus olhos e um voo
quase silencioso. Ele negligenciou dar a muitas
delas algum sentido de olfato notável.
Um cangambá não precisa temer um puma ou
um urso-pardo, toda uma matilha de lobos ou o
mais astuto dos coiotes.
Mas, enquanto ele está ocupado no seu quintal,
polindo os ossos do seu gato, ele é tão vulnerável
quanto Marco Aurélio, o outrora coelho de abate.
Arquear as costas e soltar odores não
funcionarão contra um dos assassinos noturnos e
emplumados de cara chata.
Deus ouve até a menor das vozes e os filhotes da
coruja são alimentados enquanto eu fecho minha
janela contra o fedor do crepúsculo.
Pintor, Pintor, pinte-me um quadro de como é
Deus e dos lugares alegres e secretos para onde ele
amaria me levar.
Você gostaria de um uma moldura dourada? (O
valor é irrisório.)
Eu vejo quedas d’água, pequenas e gentis, com
água em temperatura ambiente, então não lamento
se molho meus dedos. Vejo moitas rosadas, azuis e
brancas. Elas devem ter um cheiro ótimo. Tenho
certeza de que nenhuma aranha-caranguejo branca
esconde-se nas flores. Tenho certeza de que não há
espinhos.
Oh, mas haverá coelhos. Muitos coelhos,
enrolados e dormindo em grupos sob as rosas sem
espinho.
Eles comerão as rosas?
Comerão? Eles não comerão nada. Se eles
comerem, eles vão ter que… você sabe… fazer
cocô. Assim é o céu. Não teremos corpos que
precisam de comida no céu, e nem os coelhos. Eu
duvido que existirão objetos pontudos. Tesouras de
ponta redonda para todos os santos! Bolas de tênis
na ponta de cada pico das Montanhas Rochosas.
Não gostaríamos que os anjos prendessem os
aventais enquanto distribuem biscoitos de canela.
O cristianismo não se preocupa mais com mudar
o mundo. Ele não trata de enfrentar as trevas e
caminhar nas sombras com a alma repleta de luz.
Não vemos o mal como algo a ser vencido, não
vemos a vida como uma história com algum tipo de
arco narrativo. Não queremos que nosso Deus seja
o Deus dos falcões, dos ratos-toupeiras e dos
cangambás.
Esse Deus que você adora inventou os coelhos.
Mas, esse também é o Deus de seu intestino grosso
(um projeto que muito lhe agradou). Esse é o Deus
que inventou o sexo, não como algum tipo de
abstração pornográfica, bidimensional e depilada.
O Deus que inventou tudo que acompanha o sexo
entre um homem real e uma mulher real.
Esse Deus fez o sexo destruidor, fez homens
cantarem “House of the Rising Sun” [Casa do sol
nascente] e escreverem Anna Karenina. Esse Deus
tornou isso um dom e o colocou em um jardim
cercado (privado, sem tours, sem subsídio público).
Esse Deus inventou o musgo, as centopeias, os
morcegos e as centopeias gigantes que se
suspendem nos tetos das cavernas e comem
morcegos. Esse Deus inventou a luz solar,
atmosferas e um mundo giratório para captar a luz e
espalhar cor pelos céus. Esse Deus inventou
incêndios florestais em Montana. Milhões de acres
queimam e, onde estou, a oeste das chamas, a
fumaça impulsiona o pôr do sol ao domínio
completo do céu. Esse Deus inventou cristãos para
tirarem fotos desses pores do sol, trabalharem com
chamas e morte em um verão quente e colocá-los
em cartões postais junto com a frase “Estou
sozinho no jardim”.
Esse Deus inventou axilas. Ele fica triste quando
elas fazem você feder?
Deus inventou sanguessugas, mosquitos e
percevejos que mordem. Não foi ele? Então, quem
foi? Do que eles são feitos? Deus tenta livrar o
mundo dos piolhos, mas não é rápido o bastante em
aprender a arte do controle de pragas?
Por que essas coisas não entram em nossos
cartões-postais? Por que as omitimos em uma
versão resumida e muito mais santa da realidade
para toda a família?
Elas estão aqui. São palavras. O que nos dizem?
Qual é o papel delas na história?
O apóstolo Paulo: Toda carne é semente,
aguardando ressurreição.
Clive S. Lewis: Animais são carne. Eles
marcharão para o sol da nova vida.
Pessoas: Há! O que você diz dos mosquitos? Os
bons vão para o céu?
Clive S. Lewis: Se o pior vem para os piores, um
céu para mosquitos e um inferno para as pessoas
podiam facilmente ser combinados.
Não coloque isso na brochura.
O céu será maravilhoso (novidade). Será mais
maravilhoso do que podemos imaginar, mesmo que
nossa imaginação não seja tão ocupada por visões
de algodão doce. Você terá um corpo mais físico
que o atual. O céu será duro e resplandecente, e os
ventos serão fortes. Você terá corpo, olhos e alma
purificada e saudável para suportá-lo.
Você refará este mundo com mãos calejadas.
Não se ressinta de seu lugar na história. Não se
imagine em outro lugar. Não feche os olhos e
imagine um mundo sem espinhos, sombras e
falcões. Mude o mundo. Use seu corpo como
ferramenta a ser utilizada, descartada e substituída.
Melhore cada vida que tocar. Você chegará ao
último capítulo. Quando tivermos olhos que
poderão olhar para o sol, olhos que apenas
semicerram para a shekhinah [presença divina],
então veremos crianças risonhas puxando cobras
pela cauda, e falcões e coelhos brincando de pique-
pega.
Mas, não podemos esperar chegar ao último
capítulo sonhando, prendendo a respiração coletiva
e contemplando pinturas sem sombras em acrílico
por escapismo. A única estrada para o capítulo final
começou no jardim e prosseguiu no deserto. Ela
corre por estes capítulos. Viva agora. Aprecie as
tensões, os desafios e ria das dores pequenas.
Na Páscoa, no antigo caminho, a casa deveria ser
purificada, cada germe de fermento removido.
Longos códigos de purificação foram dados às
personagens anteriores, as personagens dos
primeiros capítulos. Marisco o deixava impuro.
Poliéster o deixava impuro. Prepúcios o deixava
impuro. A santidade humana era frágil nesses dias.
As coisas mudaram. Um grande lençol foi
descido no sonho de Pedro. Coma. Pegue um sushi.
Prove uma cobra. Camarões são uma delícia
enrolados em bacon com molho barbecue
apimentado.
A comida é santa enquanto você a come, quando
é usada para fortalecer um corpo usado para
fortalecer o mundo.
Deixe o fermento. Seja o fermento. Não tema os
lugares sombrios. Você nunca será o primeiro lá.
Outra pessoa foi antes e desceu até que ele saiu do
outro lado.
O problema do mal já tem força sozinho. Não
precisamos deixá-lo mais forte imaginando que
perfeição é ponto-de-cruz, biscoitos e gatinhos que
não comem, nem são comidos.
O mundo já é mais maravilhoso que podemos
imaginar. O céu será ainda melhor.
Tenho certeza de que, não importa como sejam
os portões, eles serão de pérola. Mas, eu sei como
pérolas são feitas. Você sabe?
No céu, os portões serão feitos de cuspe de ostra.
Exercício: Imagine essas ostras.
Pintor, pintor, pinte-me um pouco de luz. Pinte-
me uma vila longe da dor. Pinte-me cercas
exuberantes, janelas luminosas e poças que
brilham.
Essas cenas existem, como coelhos, como gotas
de chuva em rosas e bigodes em gatinhos, chaleiras
de cobre brilhantes e luvas de lãs quentes.
Pintor, pintor, encontre o outro sapato. Chega.
Tudo tem seu lugar nesta moldura. Tudo tem sua
posição no palco. O mundo está repleto de coisas
confortáveis. O mundo está repleto de beleza suave
e ondas do mar gentis. Seríamos tolos se
ignorássemos a suavidade e ficássemos restritos ao
sombrio, capazes apenas de contar histórias
tenebrosas. Porém, o mundo de toques gentis não é
mais verdadeiro que o mundo no escuro. Coloque
as cores em seu lugar. Pinte um retrato fiel, com
tensão.
Depois de cada chuva, olhe para seu pé. Quando
o sol se põe, admire o frescor do mundo e como ele
parece elegante com esse matiz dourado. Observe a
carnificina lívida e inchada.
Cada poça brilhante está cheia de minhocas
mortas. Por que elas chegam a esses finais úmidos
não sei. Elas são chamadas pelo nome quando sua
jornada terrena acaba ou apenas amam a água sem
saber nadar?
Elas são os lemingues das poças. Nas chuvas de
verão, morrem; suicidam-se aos milhares.
O realismo não consiste em anjos de rosto
gordinho e ele não significa intrepidez solitária.
Uma escola, composta por tias, avós e pessoas
agradáveis e boas de abraçar, concentra-se em
travesseiros e pinturas de anjo em tons pastel com
detalhes dourados. A outra escola, a escola
desesperada pela fé e uma história de extremos,
foca em algo que pertence a uma parede de
banheiro. Os romances deveriam ir de cinza a preto
até um lampejo de cinza. Incesto, abuso, tiras de
borracha nos antebraços, delineador preto e
abandono — essas coisas são reais. A felicidade
não é real. A alegria não é real, principalmente
alegria nas dificuldades. O ressentimento é real.
Uma vida de amargura é real.
Os coelhos são uma droga (a não ser que sirvam
de alimento para a minha cobra), mas gatinhos são
legais — porque eles são assassinos felpudos,
paradoxo irônico.
O problema (parte 1): Coisas fofas existem, e
elas são fofinhas. O filme não acabou. Eu sinto
muito informá-lo, mas o mundo terá um final feliz.
O sofrimento morre em um tiroteio, e a tristeza é
executada após um julgamento justo. Cílios existem
e os das minhas filhas são ondulados. Elas amam
passá-los em minhas bochechas, e aquele toque
efêmero, aquele sussurro arrebatador, é mais real
que seus sonhos de heroína. É um retrato melhor do
mundo e da história que todo o seu choramingo.
Quando Hitler tiver sido esquecido e Stalin for o
nome de uma nova marca de chiclete, os beijos de
borboleta continuarão.1
O problema (parte 2): O mundo tem classificação
18 anos e ninguém verifica as identidades. Não
tente torná-lo “censura livre” e imagine as sombras
indo embora. Não tente esconder seus filhos do
mundo para sempre, mas não finja que não há
perigo. Treine-os. Dê-lhes olhos aguçados e
barrigas cheias de riso. Torne-os perigosos. Torne-
os fermento e, quando crescerem, eles poluirão as
sombras.
Mantenha as almofadas de anjo se quiser. Elas
não contaminarão. Você pode descansar sua cabeça
enquanto assiste ao pôr do sol de verão — o sol
sangrento a banhar o céu enfumaçado.
O céu acima do meu telhado ainda é azul, ainda
brilha com a tarde quente. Mas, os portões de
pérola estão cheios ao oeste e transbordando.
O vento corre agora, deslizando por baixo da
minha escada, dividindo-se pelos arbustos e
perseguindo a poeira pela rua.
Os querubins estão vindo. Consigo ouvir-lhes o
riso, o rugido no céu.
Minha escada desliza, apenas alguns centímetros,
mas o bastante para fazer-me estremecer.
Agora é hora de descer. Agora é a hora de os
coelhos encontrarem as moitas.
Os primeiros granizos batem na grama abaixo de
mim e chacoalham a escada.
Não quero perder minha carne. Quero uma carne
melhor. Quero poder correr com esses cavalos,
como Elias.
Alguém já foi feliz como Elias cavalgando a
tempestade?
Esses querubins não são destruídos, embora
tenham destruído. Essa saraiva não está caindo no
Egito.
Quando estou em pé no topo de um penhasco,
não tenho medo de cair por acidente. Tenho medo
de pular. O vento fala com a argila do meu corpo.
Esse vento, esse sopro de Deus é o que primeiro
encheu os pulmões de Adão e lhe deu vida.
As nuvens estão escuras. As vespas se
esconderam. O granizo cai mais rápido. Não posso
balançar uma lata spray e pulverizar algo contra
ele.
Agora é hora de descer, de afastar-me da escada.
Sou um coelho gordo.
No solo, não estou ainda pronto para cobrir
minhas ferramentas. Estou esperando. Tenho
esperado o dia todo.
O céu se abre e o solo palpita abaixo de mim. O
reflexo do mundo oscila nas minhas janelas,
sacudido pelos tambores de bronze polido dos
querubins, envoltos em fogo.
Ozônio. O cheiro sacia minha necessidade e
corro para minhas ferramentas.
Havia um coelho que nunca foi guardado em
uma gaiola e vendido por cinco dólares. Ele era
rápido, e não temia lugares abertos. Não temia os
falcões.
Assisti esse coelho correr, repetidas vezes,
reproduzindo uma fita gravada por uma alma
sortuda, testemunha de uma estranha inversão.
Em um mergulho, a velocidade do mais rápido
dos falcões foi registrada como mais de 90 km/h.
No início, correndo sobre a poeira, com a morte
seguindo de perto, o coelho é mais rápido que o
falcão em uma trilha reta. A ave de rapina volta
para cima e voa em círculos, tendo mais respeito
pela presa no próximo mergulho. A presa se
prepara também, desviando-se no último momento
possível, roçando o corpo com o caçador enquanto
o pássaro se joga no pó. Mais uma vez o falcão
circula; novamente o coelho não procura esconder-
se.
O coelho corre, a ave mergulha, alcançando esse
desafiador pela frente, confronto direto com a
estranha confiança de orelhas compridas.
O coelho não se desvia de novo. Ele não recua.
Quando o falcão ataca, o coelho pula, tirando um
fino das costas empenadas, pegando embalo,
impulsionando sua fuga.
E, assim, a história termina.
Por enquanto. Até que alguma página ignorada
traga a morte dessa carne, o fim desse corpo tão
bem utilizado.
Minha lona precisa de mais tijolos depois que
coloquei minha escada no chão.
Estou correndo agora, esmurrado pela chuva, por
gotas abandonadas do oceano no céu.
O vento cola minha camisa no meu peito. Galhos
jazem na rua.
Escuto sirenes, estridentes reclamações contra os
querubins.
Escuto uma voz baixa. Olho. Minha bela filha de
três anos, cabelos enrolados, já molhada da piscina
antes da chuva, treme em uma toalha. Escuto sua
mãe chamando.
Eu a levanto e tento abraçá-la, mas ela afasta a
cabeça, olhando para a tempestade, a chuva
correndo por seus cílios.
Estamos na varanda. Chegamos à porta da frente.
Ela fala sabedoria como um oráculo, encolhendo
os ombros, rindo.
“Deus ama ruídos.”
Da boca das criancinhas…
Eu sorrio.
Os querubins batem seus tambores, mensageiros
carregando água para Montana.
1 Beijo de borboleta é o que o autor acabou de descrever: acariciar
alguém usando os cílios. [N. do T.]
EU SOU BOM COM UM BALDE. DERROTAREI O OCEANO.
O objetivo não é detalhamento. Não quero um
castelo de areia com linhas góticas e janelas
entalhadas com palitos de dente. Quero algo grande
o bastante para ser usado como assento. Uma
trincheira. E não vou recuar para a segurança, bem
acima da maré mais alta. Esculpirei meu legado
aqui, no ponto em que a espuma chia e os siris se
escondem. Farei isso enquanto a maré sobe. E a
maré está sempre subindo. Todo dia ela pega
impulso, para fazer outra corrida; todo dia, ela
avança, deslizando, subindo a praia.
O oceano jamais esquecerá o Dilúvio. Ele
provou as montanhas. Andando e dormindo, ele
mastiga.
Eu cavo valas, canais, pontos de drenagem e
acumulo diques em forma de “U” que posso me dar
ao luxo de perder. Deixe-os pra lá. Eles serão
substituídos com rapidez. Por enquanto, bloqueiam
a espuma e enviam a água para os arredores da
trincheira.
Meu filho não valoriza. O pródigo. Ele cava em
busca de siris. Ele até os encontra. Uma filha senta
no ponto alto da praia ao lado da mãe. Ela gosta de
areia. Areia seca. E ignora o oceano. A mais jovem,
resistente e destemida, gosta de abraçar cães e
agarrar gatos. Ela está sempre andando, feliz, na
direção da água. Não vai se distrair com um forte
de areia, siris ou caminhonetes e pás. Ela quer
apenas acariciar as ondas.
Eu estou sozinho, construindo essa propriedade,
esse banco de areia dentro de uma trincheira. Eles
prefeririam comer com os porcos.
Minha mulher quer que eu vá atrás das crianças.
Mas, as ondas não esperarão.
Não longe daqui, há uma casa em uma ilha que
antes era uma península. Ao lado dela, os ossos de
um farol estão expostos, como as costelas de uma
baleia. A casa, destruída e vazia, foi herdada por
elefantes-marinhos, e eles cuidarão dela até que o
oceano os roube também.
Vou ficar encharcado. Serei batido e moído. Vou
me encurvar e vacilar. Minha pele será esticada,
dobrada e mais tarde triturada na areia. A
decadência me alcançará. Mas, por enquanto, até o
dia em que perder, eu ganharei. Encherei as paredes
do meu corpo de força que ele não pode conter.
Comerei e beberei. E quando a maré descer,
retornando, fecharei os olhos e descansarei os
ossos.
Se tivesse concreto, eu usaria. Quem poderia
deter-me? Os salva-vidas? Não vejo nenhum e, se
eles estivessem por perto, talvez estariam mais
preocupados com pessoas se afogando que com
castelos enfeitados com concreto.
Entretanto, mesmo o mais rápido dos concretos
não poderia me ajudar. O oceano não ligaria. Uns
noventa quilos não significam nada para ele. Eu
poderia estacionar minha caminhonete aqui e ela
teria desaparecido de manhã. Talvez, as ondas
apenas a dobrassem ao meio e largassem pendurada
no penhasco. Ou, se elas estiverem de bom humor,
poderiam puxá-la até as florestas de algas e dá-la a
uma família de tubarões-leopardos.
Uma vez deixei uma marca nesta praia. Um
entalhe atrás de uma rocha. A rocha estava
conectada a uma saliência, e a saliência, enterrada
debaixo da areia, ao penhasco. Cavei minha
trincheira ao lado dela, canalizada e represada, e
conservada com diligência. De manhã, havia sulcos
na areia aonde eu laborei.
Fiquei orgulhoso.
Minhas filhas são muito pequenas para se sentar
neste presente para elas. Eu pego dois sobrinhos
mais velhos e meu filho. Os três, seguros por trás
das paredes de areia, riem e provocam o oceano. A
espuma bate no dique exterior e envolve a minha
criação. As paredes a seguram. As crianças gritam.
A água se afasta.
Os três estão pulando, esperando. Eles querem
outra. Querem destruição.
Eu também.
Eu vencerei o oceano, mas só sendo vencido.
Vivi dentro de paredes de areia — todos nós
vivemos — e elas são sempre destruídas. Gerações,
pessoas, ancestrais brancos e negros com nomes
esquecidos e túmulos esquecidos romperam as
ondas e foram rompidos.
Há pouco tempo, uma mulher que eu amava me
chamou na igreja.
“Eu queria mostrar para você”, ela disse. “Eu
sabia que você gostaria disso.” Ela levantou o
chapéu, e vi a cabeça que os médicos tinham
raspado e a linha curva onde eles dividiram o
crânio dela. Eu a abracei. Eu a cheirei, conservando
na memória tudo o que podia do corpo de avó que
ainda tinha vida. Ela disse adeus e beijou minha
bochecha. Eu levei o caixão dela. Ela, eu verei de
novo. Aqueles lábios, nunca mais.
As ondas vêm. Elas atravessam as paredes e
apagam os diques. As três crianças pulam e correm,
caindo de rir.
As coisas são assim. É minha vez de ser o muro,
de deitar e romper a onda. Cavarei, rasparei,
gritarei e amaldiçoarei o oceano. Quero, porém,
que essas ondas venham enquanto as crianças riem.
E quando elas triturarem minha areia, deixarei mais
que um sulco para trás. Deixarei outros, outros que
riem, impacientes por sua vez de ser o muro.
ELES SÃO BONS COM BALDES. DERROTARÃO O
OCEANO.
OUTONO — amadurecer, chamejar, desaparecer.
Do meu lado da rua, a calçada é um túnel, um
caminho pelo tempo. Paro ali todos os dias. De um
lado, o escuro muro de basalto percorre todo o
bloco. Do outro, árvores formam uma longa fila,
braços erguidos, braços cansados se esticando sobre
o caminho, dedos que, em alguns lugares, até
cutucam a terra inclinada contida pelo muro.
Esses dedos estão ficando amarelos. De alguma
forma, eles sabem que nosso mundo giratório
chegou à esquina outonal de nossa órbita. Sabem
porque provaram a luz, porque eles a cheiraram,
porque eles olharam para o sol e viram suas costas.
Eles sentem o mundo se inclinar enquanto fazemos
a curva.
Vamos envelhecer, eles dizem. Vamos adocicar
o ar com putrefação. Vamos morrer.
Eu paro por um segundo, por um minuto ou dez,
e sinto o lugar. Assisto a esse glorioso
desaparecimento, o começo de uma morte, uma
morte celebrada com confetes flamejantes.
As primeiras folhas caem, ansiosas para
começar. Milhares permanecem, saboreando a vida
bem envelhecida e o ar que cheira a futebol
americano.
Quando envelhecer, vestirei essas cores e
mudarei meu nome para Outono. Eu não vou
adocicar o ar. As pessoas não pararão na rua para
admirar como o sol atravessa os meus dedos. Mas,
isso não me impedirá de morrer.
Todo ano, 55 milhões de pessoas morrem.
Seiscentas morrem a cada hora do dia (100 a cada
minuto). Isso de acordo com o panfleto pendurado
na minha maçaneta ontem de manhã.
Eu não sei se os números são precisos. Não
preciso saber; o espírito sem dúvida é verdadeiro.
Se você tem pele e ossos, se respira, perderá tudo
algum dia.
O panfleto me faz uma pergunta em negrito:
Você está preparado?
Para compor o cenário, um clip-art de um
canivete cheio de ferramentas adorna a margem.
Eu examino a frente. Examino o verso. Não há
menção direta ao inferno. Porém, as palavras juiz e
julgamento aparecem. Como “morte espiritual”.
Se Deus é bom, se ele é o Deus dos animais
pequenos e peludos, se é o Deus das tempestades
de verão, então por que me lançaria no inferno?
Sou uma companhia melhor que muita gente que
conheço. Por que eu queimaria eternamente por
nada mais que falsificar às vezes meu relatório de
vendas?
Pior: por que ele me queimaria quando eu
trabalhei em sopões, quando doo o dólar ocasional
para a Associação Americana do Coração, quando
choro com tiroteios em escolas e furacões?
Há pouco tempo, um idoso estava morrendo.
Todos os idosos morrem, mas esse era diferente
porque eu o amava. Ele era o avô da minha mulher,
e meus filhos compartilhavam do seu sangue.
Minha mulher viajou até onde ele aguardava pela
morte — no Arizona. Ela levou uma filha de rosto
puro, nascida no outono, na primavera de sua
própria vida. Ela levou olhos redondos e
iluminados para a sombra.
Ele estava morrendo de não querer viver. Ele
estava morrendo de recusar-se a comer.
Agostinho descreveu o inferno como um lugar
com dores sensoriais (físicas) e dores da perda,
resultado apenas da separação de Deus.
Tomás de Aquino lhe fez eco, mas talvez com
mais satisfação a respeito dos detalhes físicos.
Teólogos como Jonathan Lee Kvanvig preferem
pensar no inferno como um lugar onde o tormento é
apenas o da separação da bondade de Deus.
Inferno é dor existencial.
Clive S. Lewis, em O grande divórcio, colocou o
inferno em uma pequena rachadura no solo do céu.
De um sermão pregado por John Donne, poeta:
“Quando tudo tiver terminado, o inferno dos
infernos, o tormento dos tormentos, será a ausência
perpétua de Deus. […] Cair nas mãos do Deus vivo
é um horror além de nossa expressão, além de
nossa imaginação”.
Fico inclinado a usar “letra maiúscula” para a
palavra “inferno” porque penso nele como um
lugar. Como Topeka.
Jean-Paul Sartre, em sua peça Sem saída: O
inferno são os outros.
Um escritor da revista Wired fez uma ligeira
alteração: O inferno é a música dos outros.
Os dois podem ser combinados de modo
conveniente.
Eu não sou Enoque. Não pularei passos e serei
levado ao céu de imediato. Minha rota me levará
pela lama. Não sou Elias, e não haverá carruagem
de fogo. Não sou Artur. Nenhuma mitologia
florescerá em torno de histórias do meu retorno.
Não sou Moisés. Meu corpo não será tão sagrado
que o arcanjo e Lúcifer batalharão por carne
abandonada.
Eu me tornarei lentamente pó em uma caixa. Ou,
se eu for com um caixão de vime hipster, bem
rápido me tornarei adubo. Estes olhos, esta mente,
meu queixo dividido, esta língua — que eles
alimentem o gramado. Estarei em outro lugar.
Você já viu as costas murchas de um feijão ou a
pele seca de uma semente de girassol aderindo ao
talo de uma planta viva e alta, um lembrete de suas
origens, da morte que trouxe nova vida verde?
Algumas sementes foram lançadas entre os
espinhos, outras em solo raso, e outras ainda em
pedras.
Essas sementes nunca subirão até o céu, aderindo
a uma parte verde e nova.
Houve um homem, um ladrão, sentenciado à
morte pelos juízes de Roma.
Qual era o papel dele? Nós só sabemos de um
propósito para que ele serviu. Não sabemos se ele
teve filhos ou o que houve com eles, caso os
tivesse. Não sabemos se já bateu em sua mulher ou
se ele se considerava nobre.
Sabemos que os soldados o seguraram enquanto
ele gritava. Sabemos que homens com marretas
enfiaram pregos de ferro grosseiros por seus pés e
pulsos, jogando-o contra um pesado madeiro.
Ele estava na grande cena. Nasceu, levantou-se e
caminhou para a morte no ápice da história. Foi um
dos dois que morreram ao lado do Messias, que
estavam lá sangrando com ele, olhando para a
forma nua de um Deus em agonia.
O outro morreu bem, e nenhum homem morreu
em melhor companhia ou com melhores palavras
moldadas por lábios pecadores. Ele estava com o
Filho nos momentos finais de sua primeira carne, e
caminhou pelo véu com ele. Sangrou quando a terra
tremeu, quando o Santo dos Santos foi rasgado para
as nações, para os impuros, entrarem. Ele esteve
presente quando o papel do fermento mudou e, de
modo diferente dos piedosos discípulos a derramar
lágrimas aos pés das três cruzes, ele partiu com seu
Criador.
Cristo para o apóstolo Pedro: Aonde vou não
podes seguir-me.
Cristo para o ladrão: Venha comigo. Nós
morreremos juntos, um ladrão e o Criador do
mundo. Caminhe com o infinito encarnado para a
barriga da baleia. Fique por perto enquanto a
realidade é sacudida. Assista enquanto a morte é
pega pelo pescoço. Hoje você estará comigo no
paraíso.
Histórias não terminam com a morte.
O outro ladrão, sangrando, arfando, sendo
sufocado pela pressão da crucificação, escolheu
diferentes últimas palavras. Com seus últimos
suspiros, de uma cruz para a outra, de um corpo se
partindo com seu próprio peso para um corpo a se
partir com o peso do mundo, ele zombou do
Messias.
O que aconteceu com ele? Onde ele está agora?
As folhas não caem. Ainda não. Elas estão
mudando, crescendo, aceitando um novo papel.
Quando caírem, eu as recolherei com o ancinho.
Varrerei a calçada até que as túnicas de muitas
cores rejeitadas virem um montinho alto. Então,
vou levá-las para meu quintal. Verei minhas
crianças suadas descobrirem e redescobrirem a
alegria de brincar na morte, a alegria de pular, rir,
espirrar e rodar nos restos de outro ano, a alegria de
ser enterrado e ressuscitado, de entrar e sair de um
túmulo.
Não chore pelas folhas.
Eu me lembro de escalar meu pai. Eu me lembro
da sensação de suas costelas embaixo dos meus
pés. Essa época ainda está fresca na imaginação,
mas passou.
Agora, desço ao chão, e escuto o grito subir de
folhas mais verdes.
Montinho. Montinho. Joelhos e pés encontram as
minhas costas e tentam se equilibrar enquanto rolo.
Corpos tombam, rindo. Eu estou vestindo um suéter
grande e alguém está se infiltrando por baixo dele.
O rosto de uma filha emerge do meu peito, rindo
embaixo do meu queixo.
“Eu não posso ficar aqui para sempre”, ela diz,
com suas sobrancelhas altas. Como é sábia.
Eu rio. “Por que não?”
“Porque vou crescer. Ficarei muito grande e você
será velho e brilhante.”
“Brilhante?”
“Sim. E, então, você vai morrer.”
Eu rio. Ela permanece séria.
“E, então, eu ficarei velha e brilhante e morrerei,
e meus filhos me colocarão no chão.”
Aperto seu pequeno corpo com meus braços,
subitamente sofrido, pressionando sua vida o mais
próximo que puder da minha. Ossos dos meus
ossos. Ela desliza para trás sob o pano grosso, de
volta à pilha de folhas. Não há tristeza em seu
rosto, nada em sua voz. Por que haveria? Ela pula e
gira, escorregando em uma vaca de plástico.
“Nós estaremos no céu”, ela diz, pulando sobre
seus dedos descalços. Mas, agora sua testa se
enruga. Ela sente que há algo de errado. “Onde está
meu balão?”, ela diz.
Não chore pelas folhas.
Escrevi uma carta para o vô Marty. Minha
mulher a levou consigo enquanto voava pelos céus;
ela a levou para a casa, para o quarto escolhido para
sua morte, e sentou-se com ela ao lado de sua
cama.
Ele era um escritor, um homem com olhos e
ouvidos para histórias. Estava escolhendo seu final,
escolhendo seu último capítulo. Ele queria que a
consciência se fosse. Em seu livro, carne era tudo o
que ele tinha, carne era tudo o que havia. Apenas
deixaria de existir. A reação química que tinha sido
sua mente cessaria. Os elementos químicos, que
constituem o homem, se fragmentariam e
encontrariam novos lares.
Escrevi para ele como um crítico. Eu não gostei
do final — um final ruim pode estragar e arruinar
até um romance bem executado, um final bom pode
redefinir a palidez de uma vida. Pedi que ele
considerasse mudar as páginas finais.
Onde está o triunfo final, a risada final, a
reviravolta final?
Minha mulher leu a carta para ele, enquanto ele
lambia lábios secos e rachados, e a tomou dela. Eu
a tenho hoje. De caneta, na margem do papel, ele
escreveu sua primeira resposta em caixa alta — um
palavrão.
Então, ele pediu que ela lesse de novo.
Luís XV era um homem tão pervertido que
ajudou a provocar a revolução de camponeses.
Com um gosto por virgens (suprido por sua amante
oficial), diz-se que ele fazia uma oração de gratidão
pela ausência de doenças venéreas antes de cada
encontro — rumores de comportamentos mais
depravados e exuberantes eram constantes entre os
franceses.
Luís, enquanto amarelava e seu pecíolo
enfraquecia, caiu da árvore: “Sou um grande
pecador, sem dúvida, mas tenho guardado a
Quaresma com a mais escrupulosa exatidão. Fiz
rezar mais de cem mil missas a favor do repouso de
almas infelizes, assim me conforto em dizer que
não fui um cristão tão ruim”.
Rei Sol, onde você está agora?
Sabendo que tinha chegado ao fim, William
Blake morreu tentando desenhar sua mulher no
aniversário de 44 anos de casamento.
Blake: “Eu não consigo pensar na morte como
mais que ir de um quarto para outro”.
Oscar Wilde: “Estou morrendo como vivi, entre
meus bens”.
Muitos cristãos, longe das discussões filosóficas,
não se sentem dispostos a trazer à tona o tópico do
inferno. Mesmo as pessoas desejosas de pendurar
coisas na minha maçaneta prefeririam dizer que
estou “sob o juízo de Deus”, e não as culpo.
Pregadores de fogo, enxofre e condenação
deixaram cicatrizes profundas e nervosas na psique
dos evangelistas.
Ninguém quer julgar.
Ninguém com qualquer instinto social quer
anunciar a condenação. Ninguém quer falar sobre o
fogo. A era de Dante acabou, uma era com vívidos
passeios infernais, com até mesmo papas retratados
no inferno, invertidos, chamas eternas dançando no
peito de seus pés.
Mas, se o inferno (de algum tipo) existe, se as
almas se encontrarão em uma casa de lamentação
ou uma casa de alegria, se dor e agonia aguardam
por eles, deveríamos balançar os pés e esperar que
eles não façam perguntas difíceis, esperar que eles
não solicitem um julgamento?

A memória é apenas parcial. O velho bar era


generoso em dias de semana entre seis e oito da
noite. Comida grátis aparecia por uma mágica em
um carrinho e copos de bebida eram vendidos por
dois dólares.
Era um refúgio para os pobres e ingratos
estudantes de pós-graduação. Zombava-se do
queijo frito grátis. Exigia-se a torta como um
direito (por haver sido dada uma vez). As asinhas
eram consideradas mínimas. Eles não percebiam
que esse era nosso jantar?
Nós nos sentávamos à mesa, acalentando dois
dólares em forma líquida e comendo queijo grátis.
Meu amigo católico falava sobre os professores.
Um ateu reclamava do estacionamento. Uma
garota, também ateia, estava pensativa,
observando-nos, os “crentes” expostos em várias
discussões em sala de aula.
Quando a conversa parou, ela fez sua pergunta.
“Vocês acham que eu vou para o inferno?”
“Sim”, meu amigo católico disse sem hesitar. Ele
olhou ao redor. “Eu acho.”
As pessoas riram, não porque era uma piada, mas
porque ele era sério e desembaraçado. Ele nunca se
sentia constrangido — atributo que eu admirava.
Ela olhou para mim e inclinou-se para a frente,
esperando a versão protestante.
“Não sei”, eu disse. “Você não quer?”
“O que você quer dizer?”, ela fez uma excelente
cara questionadora — cabeça em riste e
sobrancelhas atrás das lentes. Era perfeito para a
sala de aula. “Por que eu iria querer ir para o
inferno?”
“Deus é quem ele é. Você quer estar com ele?”
O inferno é voluntário. Você gostaria de ir?
Vô Marty ouviu a carta muitas vezes. Ele pediu
para ficar com ela. Ela estava a seu lado quando
entrou em coma — um sono que apenas se
aprofundou até que, por fim, mesmo seus
pensamentos pararam e a fibra que amarrava alma
ao corpo, há muito lacerada, desgastou-se até o fim.
Esteja junto dos recém-mortos. Confuso,
enlutado, observe o corpo. Mas, eles ainda são um
ser. Eles não são apenas uma reação química que
você presenciou a dissolução, uma reação que
passou de manutenção de células e extração e
distribuição de energia para o rompimento de
células, putrefação e decomposição.
Você olha para o corpo, para a pilha de folhas,
mas a pessoa não está mais ali. As folhas caíram.
Chore pela árvore.
Eu não finjo saber como o inferno aguarda quem
não deseja a Deus. Será uma questão de desejo, não
de fé. Desgosto, não descrença. Os mortos estarão
diante dele, mas vivendo de outro jeito. Não haverá
ignorância então. Não existirá confusão, nenhum
nativo distante e sem instrução (usado quando
evangélicos querem fazer os outros se sentirem
culpados) que nunca ouviram as boas-novas e
ficam surpresos ao se descobrir sob um machado
eterno. Todos acreditarão em Deus no final, e todos
serão julgados com justiça pelo padrão que eles
mesmos usaram para julgar os outros.
Mesmo os demônios creem. Eles viram a cruz e
se lembram da Páscoa.
Céu ou inferno tratam de amor e ódio. Você ama
a Deus ou você o odeia? Ele lhe é desagradável?
Você enxerga sua arte e deseja que seu braço fosse
longo o bastante para alcançar seu rosto? Você
cospe e amaldiçoa como Nietzsche? Você trocaria
de lugar com o ladrão condenado para poder vê-lo
morrer e saber que o próprio Deus ouviu seus
desafios?
Então, o inferno é para você. O inferno é para
você porque Deus é bom e reserva um lugar para
quem o despreza até o final, um exílio eterno, um
refúgio sem alegria para quem acumula culpa por
toda a eternidade, o lugar em que a blasfêmia se
renova a cada manhã. Um lugar menos doloroso e
menos terrível que a alternativa.
A não ser que você mude, o céu, a shekhinah, a
presença próxima da santidade flamejante, a
presença do Deus Criador e o rosto da exaltada
Palavra, os ventos e fogo dessa tempestade de
alegria seriam um inferno pior que o próprio
inferno, uma queimadura pior que quaisquer
chamas figuradas (ou literais).
No final, não haverá como escapar do inferno,
porque tudo o mais será o céu. Não haverá
necessidade de muros, cadeias ou algum tipo de
cela porque o inferno será o lugar mais distante do
cheiro dele. Um lugar que você odiará e não terá
vontade de sair. A terra, cada canto dela, não será
mais neutra.
O inferno será o inferno. Agora, a graça divina
nos rodeia por completo. Crentes e incrédulos
aquecem o rosto no sol, ambos assistem as folhas
se repintarem, e observam as estrelas à noite.
Se você ama a Deus, então procure a mudança
em seu Filho. Procure nele olhos fortes o bastante
para penetrar nos jogos dos querubins, ouvidos
abertos para ouvir o cântico dos planetas, pés que o
ancorem na risada do oceano, triturando montanhas
— ofertas molhadas a um Mestre.
Procure nele um coração capaz de amá-lo.
As chamas arderão mais no céu.
Nossas línguas descobrirão o sabor delas.
Se você o despreza, ele desprezará você. Ele o
mandará para longe e removerá a graça que você
experimentava no mundo. Sem as muletas da
bondade dele, ele deixará as pessoas por conta
própria, entregues a seus desejos e artifícios
corruptos.
Você já viu pessoas entregues a si mesmas?
Você reclamou da ausência de Deus quando viu?
Onde ele está nos genocídios? Onde ele está entre
os baleados e mutilados?
Você teve um vislumbre do inferno, o lugar onde
Deus permite o que lhe desagrada. O lugar onde as
pessoas viverão na sombra. Todas as sombras serão
derrotadas quando o Filho surgir. Todas as trevas
serão removidas, espanadas e esmagadas e, então,
varridas para um canto, uma rachadura no solo.
Você pode viver lá se quiser. Mesmo no capítulo
final, o contraste existirá. Uma sombra
permanecerá para acender o fogo em outro lugar.
Você não tem nada em si mesmo nem por si
mesmo. Você e eu fomos feitos de barro e cuspe.
Qualquer santidade nossa é poluída além de nossa
minúscula compreensão.
Eu não tenho nada a lhe oferecer além do
pescoço curvado, o pescoço que ele me ajudou a
curvar. Não tenho nada a lhe oferecer além de
sujeira, e ele a tomou para si. Ele a trocou por
sangue, como vinho, e seu corpo partido, como
pão.
Você se ressente deste mundo, desta arte? Você
odeia a Deus por causa do câncer, por conta dos
acidentes de carro e pelo súbito e chocante sono
dos jovens? Você o odeia por causa dessas ondas
que quebram muito alto, pelas horas em que mais
de seiscentas pessoas morrem? Você se ressente de
sua história? Seu peso, sua calvície, seu pé com
comichão e o intestino grosso instável, os pores de
sol de fogo florestal e sua própria mortalidade?
Compre creme para suas rugas. Clareie os
dentes. Faça os médicos esticarem sua pele e a
pregarem com um grampeador até que você morra
e decomponha e só os grampos se lembrem de
você.
Vá para ele ou vá para o inferno.
Essas são as únicas opções, pois o inferno será
onde ele não estará.
Cristo na cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me
desamparaste?
Esse foi um exílio bem maior que o
experimentado por qualquer alma condenada ao
inferno. O Filho, um com Deus Pai, experimentou o
divórcio, a separação da graça, foi abandonado só
com a imundice, o incesto e assassinato, a malícia e
o genocídio. Abandonado com o orgulho e a inveja,
deixado com cada olhar farisaico e pensamento de
rancor. Abandonado com os trapos e a podridão
que cada alma usa para preencher o vazio em forma
de Deus.
Alguém tinha que suportar tudo até o inferno.
Eu sei pouco, mas sei disto: Quando você tiver
morrido e as suas folhas tiverem sido varridas,
quando olhar na face de Deus e tiver a conversa
final, trocando palavras que outros podem nunca
saber, você estará onde quer estar. Se não conseguir
abrir mão de si mesmo, caso você se agarre à
sujeira que amou por tanto tempo, acariciando as
estimadas feridas que se acumulam em sua alma —
ódio e amargura que você não pode abandonar, um
espelho imaginário a retratar o ego glorioso —
então, ele o afastará para longe. Você será enviado
para as trevas, distante de sua presença. Você não
gostará das trevas, mas a outra opção parece pior.
Você não consegue suportar viver sem as feridas.
Você estará em boa companhia, vagando com
pregadores, sacerdotes e reis, e todo ser humano
altivo e incapaz de viver sem si mesmo. Muitos
“justos” se amontoarão no canto com você, pessoas
que só conseguem se imaginar como algo além de
bom, que não se curvam a um Deus que não se
curvará a eles.
São os outros. E sua música.
Você será afastado da alegria, mas não vai
desejá-la a esse preço. Será afastado do amor, pois
o amor significa sacrifício, e por que você faria
isso? Você será afastado da dança, da música, do
palco central e da vida ao sol.
Em vez disso, você ouvirá apenas trovões e
clamor, você verá apenas calos, labor e dor ardente.
Caso você deseje amar a Deus, então ele já
começou a mudá-lo. Ele já começou a abrir seus
punhos fechados, retirar sua sujeira para ser lavada
na cruz. Deus cospe na areia e faz lama para limpar
seus olhos. Sua alma aleijada pegará seu leito e
andará. Ele o conduzirá pelo caminho e pela barriga
da baleia. Do outro lado, você surgirá refeito,
correto.
Curve o pescoço. Não chore pelas folhas. Não
chore pela árvore.
No entanto, fique atento: aqui, a companhia não
tem classe e é inferior. Aqui estão as prostitutas e
os ladrões, os desviados e os pisados, os escravos,
os feios, os calejados, o povo que fica estranho de
terno. Há até cristãos.
Aqui está o povo que reconhece a própria
dignidade.
Você iria para o céu? Há uma placa lá e você
precisa se posicionar ao lado dela, ali onde o
homem com o cigarro pega os ingressos. Há uma
altura mínima nela que se deve alcançar.
Você precisa ser miserável. Esse é seu ingresso e
sua única qualificação. É um passeio inclusivo,
porém insano, em um clima em que você nunca
esteve e com luz atordoante. Talvez, não seja
seguro.
Clive S. Lewis (em Os quatro amores): “‘É fácil
amar a Deus?’, pergunta um antigo autor. ‘É fácil’,
ele responde, ‘para aqueles que o fazem’”. Rory,
meu filho, está no quintal do meu primo e observa
o mundo com olhos de 5 anos.
Dois anos depois, ele está pensando no vô Marty.
Seu primo brinca enquanto Rory examina as
árvores e o solo sob seus pés.
Ele não consegue achar uma forma de se
expressar e, então, pega a carteira que lhe demos
para guardar o dinheiro do sorvete dado por suas
avós. Ele retira os dólares e os joga na grama.
“Eles não são importantes”, ele diz e encolhe os
ombros, piscando.
Ele está certo.
Eu o ajudo a pegá-los.
Papel e tinta não são importantes. Prosperidade
não tem importância em comparação com almas.
Como pernas e dedos, todos os cinco sentidos.
Como a vida.
Todavia, a gratidão é fundamental. Tudo é uma
dádiva. Cada cheiro, cada segundo, cada dólar para
o sorvete. Gratidão por toda a história, do começo
ao fim, gratidão pelos vales e sombras que nos
conduzem à página final do romance.
Dê um passo e agradeça a Deus, pois ele o
segura em suas mãos. Nunca peça para ele o
colocar para baixo. Nunca lute pela separação ou
dignidade não proveniente das dádivas dele.
Respire, prove o mundo de Deus, suas palavras e
maravilhe-se por estar aqui sentindo o atordoante
turbilhão da vida. Sinta-se atordoado por isso.
Aproveite o sorvete.
Deus é perfeito. Justiça e misericórdia não são
abstrações; elas se originam nele. Elas são
adjetivos. Toda alma morta vê a face dele. Toda
alma estará diante dele, e se curvará ou entrará em
pânico antes que ele o ordene. Não haverá
ignorantes. Não precisamos desconfiar dele. Não
podemos. Não sabemos quais pecadores olham para
a cruz e quais escolhem fincar-se à sua própria.
Podemos apenas confiar.
E nos inclinar.
Podemos rir enquanto nos tornamos amarelos.
Podemos estender nossos dedos e assistir como o
sol brilha sobre nosso declínio. Podemos sentir o
vento vindo, nossos pecíolos tremendo e, então,
sendo cortados. Podemos tentar nos agarrar ou
podemos flutuar, cair e esperar sermos varridos por
seu ancinho e reunidos. Deixemos as crianças
brincar sobre nós, deixemos que rolem e pulem,
podemos nos prender aos cabelos delas enquanto
envelhecemos e morremos.
Elas nos colocarão no solo.
Eu caminho com meu filho pelo túnel dourado,
chutando folhas, vida rodopiante e abandonada na
altura dos nossos joelhos.
“Um monte de folhas”, Rory diz. Ouro disperso
pousa em sua cabeça e escorrega para seu ombro.
“É.”
Rápido, ele se move para a frente, amontoando
uma estação crepitante contra suas pernas. “Deus
conhece cada uma.”
“Sim, ele conhece.”
“Isso é engraçado?”
“Sim, é.”
Beethoven, lutando com a surdez quase a vida
toda, tempestuoso e suicida, enquanto morria de
envenenamento por chumbo: “Eu escutarei no céu.
Aplaudam agora, meus amigos, a comédia acabou”.
Ou:
Beethoven morreu em uma tempestade, com uma
expressão desagradável em seu rosto, sacudindo um
punho furioso contra os céus.
Há outras versões.
No ponto mais alto da rua, meu filho e eu
paramos e damos a volta. Eu me agacho a seu lado.
Nós observamos o chão por todo o túnel; vemos o
sol se inclinar através do primeiro esplendor
dourado da morte. A terra se esvai diante de nós,
pronta para a colheita.
Há muitos de nós flutuando no ar, chutados ao
longo do solo, muitos de nós cavalgando a luz
solar, pintados com sua vida, imitando suas cores.
No fim do túnel, na outra ponta da história, no
canto do quarteirão em que o muro de basalto e as
árvores terminam, há uma igreja, pequena e recém-
pintada de branco.
LOGO, NÓS SEREMOS VELHOS E BRILHANTES.
HOJE, O OUTONO SERÁ UMA NEVASCA. As árvores
abandonarão a última das muitas peles do ano e,
pela manhã, eu contemplarei suas formas nuas,
eriçadas contra o céu cinza. Pela manhã,
contemplarei o inverno, mas o solo não estará
branco. Ele estará coberto com as cores molhadas
do fogo.
Há épocas em que o outono vem com graça —
como ocorreu nas últimas semanas — quando ele
age conforme sua idade e se lança com lentidão,
quando a pilha de folhas cresce dia após dia até que
as crianças consigam desaparecer simultaneamente
no montinho que ajuntei para elas. Mas, nesta noite
o vento sopra, arremessa água pesada, e as folhas e
bordo brilham ao longo da minha rua, meu túnel
desce sobre a velha parede de pedra, será derrotado
em uma ação climática.
Eu assistirei com uma lanterna, como um homem
ao lado de um leito de morte. Amo esta estação,
este período; fiquei a seu lado nos dias claros e nos
dias fáceis. Agora, quando suas mãos se esfriam e
suas chamas morrem, sussurrarei para ele e lhe
contarei histórias, jurarei guardar sua memória.
Assistirei aos ruídos de morte e, quando a
estação se for e os ossos descobertos forrarem a
rua, farei chocolate quente e o beberei, rindo com
minha mulher, ansioso pela neve, pela completude
dessa morte, ansioso para que esse novo frio seja
rompido pela alegria explosiva do Natal.
No princípio, não havia terra, ar, fogo e água.
Não havia quarks up ou quarks down. Não havia
léptons ou núcleos.
Não havia ostras, coelhos gordos, coelhos
rápidos e nem falcões.
Ninguém tinha inventado o espermatozoide.
Ninguém tinha inventado homem ou mulher,
magnetismo, vacas ou leite que pode ser
transformado em queijo, ou canos excretores de
doçura para ser misturada com creme.
Não havia coisas verdes para cultivar o ar com
luz solar, pois não havia ar, sol ou verde.
Não havia afídeos ou formigas para defendê-los.
As asas não tinham ainda sido sonhadas. Rios
não tinham sido ainda cantados. A areia do deserto
não tinha sido ainda espalhada e ondulada.
Não havia nada parecido com a cor — o
comportamento da luz em resposta a algo material.
Não havia nada como o aroma — a interpretação
da matéria por uma amostragem transportada pelo
ar.
Não havia toque — a sensação física do contato
entre duas coisas materiais.
Não havia visão — não do nosso tipo.
Sem sabor.
Sem ouvidos.
Sem tempo.
No entanto, havia um Ser, espírito, infinito, Eu
Sou. Naquele ser havia Um e havia Muitos. Havia
amor. Havia alegria. Havia verdadeiro riso. Havia
uma Palavra, uma voz. Havia um artista, mas não
havia arte ainda.
E aquela Voz disse “Luz”, e ela própria estendeu
uma tela finita para pintar a única coisa digna de
ser pintada, para pintar o Eu Sou.
A arte tem princípio — ela começou quando o
tempo começou — mas não terá fim. Apenas finais.
Mesmo agora, ela ainda cresce e se expande, torce
e entrelaça, ergue-se e se põe, gira e dobra-se.
A Voz nunca estará calada.
Formigas são fáceis de descrever. Elas têm seis
pernas. Mas, que palavras tenho para capturar o
transcendente? A descrição mais verdadeira que eu
conceber sem dúvida terá um lado falso. Quais
dessas 26 letras eu deveria usar para tentar e moldar
para você um busto do infinito?
Eu deveria contar um poema sobre pegadas na
areia?
Deveríamos falar sobre esferas, rotação, guerra,
filosofia, crianças, insetos, solo, lápides, estrelas e
antimatéria? Não é o bastante.
Quando o Artista se encarregou da mesma tarefa,
ratos-toupeiras-pelados aconteceram. Assim como
o haikai, os anéis de Saturno, os três estados da
água, o fogo, os gregos e o ocasional mamífero que
põe ovos.
Essa é uma tarefa que o próprio Deus não pode
completar. Ele é infinito (junto com tudo o que isso
realmente significa — se pelo menos soubéssemos
de verdade), e sua tela está se expandindo para
sempre. Ele precisa acrescentar dimensões extras,
usando arcos narrativos de watts de energia únicos
em erupções solares de sóis que não teremos mais
que um vislumbre até que tenhamos contado alguns
milhares de histórias humanas do começo ao fim e
as elevado ao cubo. Ele deve usar formigas, cada
formiga em cada jardim, rachadura na calçada,
buraco e floresta. Ele precisou multiplicar as mídias
enquanto continha o que não pode ser contido e,
assim, isto é música e escultura, isto é realismo,
impressionismo, misticismo e, acima de tudo,
fantasia.
Veja o mundo como um limerique, como um
poema épico, como um comercial de carro, como
ópera, como um romance russo adaptado para livro
pop-up infantil.
Veja os insetos. Veja a artêmia no deserto. Veja
as estrelas. Veja Roma.
Veja seus ossos.
Este não é um projeto absurdo. Deus não procura
um círculo quadrado, uma descendência fértil de
um casal reprodutor geométrico estéril. Ele não
tenta falar uma pedra tão grande que não possa
levantar.
Ele é a rocha que não pode levantar. Ele é o
infinito lutando para capturar-se, para revelar cada
faceta de seu “infinito eu” dentro das limitações do
minúsculo espaço finito.
Ele teria falhado se houvesse limite de tempo.
Ele teria falhado se parasse e dissesse que a obra
estava pronta. Se ele um dia acabasse.
Contudo, ele nunca acabará. Enquanto os três
Triúnos permanecerem, tinta será misturada na
paleta.
Esse é o único desafio real para o infinito. O
resto é tão fácil quanto falar. Essa é a única batalha
para o infinito, a única resistência que ele jamais
enfrentará.
A melhor de todas as tarefas possíveis para o
melhor de todos os seres possíveis.
Eu observo o mundo e entendo o impulso de
alguns dos místicos do passado estranho e irregular
da cristandade. Entendo o motivo de eles sentirem a
necessidade de sentar em postes por anos a fio ou
jejuar até morrer. É uma forma de contemplar o
mundo sem piscar, a tentativa de chegar a novas
camadas há muito escondidas sob as distrações da
carne, de nossas comunidades e necessidades
percebidas. Entendo o impulso deles, pois, às
vezes, acho que entenderia a realidade melhor se eu
apenas observasse pelo buraco de um rolo de papel
higiênico.
Projeto de Casa (você vai precisar de: um
humano). Em tudo o que fizer, seja uma perfeita
imagem de Deus.
Alternativa para alunos em conflito (você vai
precisar de: um fio de cabelo humano, uma pastilha
de garganta sabor eucalipto): umedeça o fio de
cabelo com a língua, use-o para esculpir a pastilha
em um friso epigráfico de doze lados contando a
história; não omita nenhum indivíduo; inclua
teorias alternativas para a origem deste universo;
faça uso especial de formigas.
Não podemos enxergar tudo, e não podemos
descrever tudo que enxergamos — nem mesmo
usando esse pequeno tubo de papelão. Mas, há
muito que podemos fazer.
O infinito nos fala. Nós estamos na moldura,
desempenhando nosso papel junto com as formigas,
o musgo e o Órion. Nós caímos, e nosso mundo
caiu conosco. Ele se rebaixa por nós e, no fim,
nosso correr e nosso suicidar-se só retratarão a
profundidade de seu amor e sua humildade. Isso
magnifica seu triunfo supremo.
Os filósofos gregos tiveram seu papel. Platão
criou regras que permitiram Deus blasfemar, sujar-
se quando assumiu a matéria em sua arte.
Para os gregos, a matéria era a corrupção do
espírito. O imaterial era o ideal, o mundo dos
espíritos era imaculado. A carne trazia odores,
necessidades, rugas e vastos depósitos de limitação.
Carne — a maldição.
E, assim, como João Batista preparando o
caminho, os gregos prepararam o palco para uma
inversão.
O apóstolo Paulo poderia falar com eles sobre a
Palavra infinita, o Espírito criador.
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος — isso poderia fazer as
barbas concordarem, poderia ser anexado ao retrato
de Platão.
Mas, o Natal — para os gregos, o Natal era
obsceno, uma vulgaridade ao extremo.
Eles estavam certos.
Daí a beleza.
Se o Criador do mundo fosse descer à terra,
como você esperaria que ele viesse? Se você
ouvisse que o infinito Espírito criador estava
entrando em sua própria arte, você não olharia para
as nuvens? Você não olharia para os querubins em
suas tempestades? Você não esperaria uma
carruagem de tornado? Eu esperaria e, em minha
defesa, acho que minhas sensibilidades são boas e
completamente ajustadas. Deus é gauche.
Daí a surpresa.
Os judeus esperavam pelo Messias. Estavam
esperando um homem que derrubasse o opressor,
alguém como Judas Macabeu, alguém como o rei
Davi. O Messias veio, e não só para os judeus. Veio
como Judas, como Davi, mas não como ele era
esperado.
Ele veio para ser humilhado. Ele veio para
morrer.
Planeje o evento. Prepare a recepção. O Rei dos
reis está chegando. O governo estará sobre seus
ombros. Ele será chamado Príncipe da Paz,
Maravilhoso Conselheiro.
Platão: sem cobrir seus olhos, sem vomitar
indignado, sem boicotes ofendidos do crucifixo
colocado na urina. O Senhor de toda a realidade
está vindo para seu hemisfério. Ele, o Espírito puro,
encarnará, precisará comer e respirar, evacuar e ter
as fraldas trocadas.
Não olhe para mim. Eu tinha um monte de ideias
gloriosas. A blasfêmia não é minha.
Ele será um carpinteiro, com mãos calejadas,
cortadas e unhas rachadas. Uma de suas avós era
uma prostitua de Jericó. Ele entrará no útero de
uma virgem e o expandirá da maneira normal. Ele
sairá do útero dela do jeito normal. E, então, ela o
amamentará como as vacas fazem com seus
bezerros. Porque, bem, ele será mamífero.
Nesses dias, nós ornamentamos tudo e
cantarolamos até que tudo pareça santo. Colocamos
pequenas encenações de plástico em nossos jardins
e, então, as iluminamos.
Se Deus se agrada disso, é porque elas são
prosaicas e bobas — inteiramente em sintonia com
todo o evento.
O Senhor veio para purificar o impuro. Ele
trouxe a infecção da santidade, e ela tem se
espalhando daí em diante. Ele nasceu em um
estábulo e dormiu em uma manjedoura.
Talvez o gado tenha todo se ajoelhado com
gentileza, piedosamente consciente, como o verso
de um livro infantil de Natal.
Talvez, bois e vacas tenham continuado a
ruminar, a levantar a cauda e a estercar a estrebaria.
Os anjos sabiam o que estava acontecendo
quando ninguém mais sabia. Eles compreenderam a
bizarra realidade de Shakespeare entrando no palco,
de Deus tornando-se vulnerável, dependente e
humano — fazendo-se Adão. E, assim, em um
espírito mais apropriado, eles organizaram um
concerto e fizeram o que, sem dúvida, foi a maior
performance de um coral na história planetária.
Os reis foram reunidos? Onde estavam as
pessoas com chapéus importantes? Onde estava o
cerimonial, os patrocinadores?
O exército celestial, as almas e anjos de estrelas,
desceram à nossa atmosfera e explodiram em uma
alegria harmônica sobre um campo e uns poucos
pastores bastante assustados.
No entanto, a multidão era maior do que isso. Os
pastores eram uma distinta minoria. Os anjos
estavam sobretudo cantando para as ovelhas.
Eu tenho certeza de que os animais prestaram
atenção e não apenas por haver um bebê na tigela
deles.
Nota marginal: Isso soa como algo que um
humano inventaria? Isso soa como algo que um
grupo de inventores de seita criaria para
impressionar dizimistas potenciais?
E, então, o Santo, o Criador do Mundo, nasceu
em uma… er… hã…
E os próprios anjos desceram, transbordando de
júbilo e cantando para um rebanho de ovelhas
escolhido de forma aleatória e um grupo de
pastores incultos e sujos — os primeiros adoradores
do Senhor encarnado.
Nota marginal extra: Essas ovelhas se
reproduziram? Elas têm descendentes diretos?
Alguém está tosquiando uma agora e levando uma
cesta de lã para o garotinho que vive no fim da rua?
Aposto que é uma ovelha negra.
Se eu pudesse conseguir um suéter feito da lã do
descendente de uma das primeiras ovelhas de
Natal, ele coçaria como os outros suéteres? Ele me
daria visões?
Alguém está vestindo um agora. Se ele
soubesse… isso explicaria os sonhos.
As mudanças de direção na história não pararam
no nascimento de Cristo. Em vez de ser celebrado,
um dos primeiros elementos da trama foi a
declaração genocida de Herodes. O Rei dos reis
está aqui, vocês disseram? Banhem a terra com
sangue de bebê.
Massacre, Raquel chorando por seus filhos
perdidos… essas coisas são parte da história de
Natal. Por algum motivo, deixamos os soldados, os
bebês mortos e as mães chorando fora da coleção
de personagens de plástico.
Herodes, o primeiro rei a cair, foi comido por
vermes. Onde ele está agora? Onde está a matéria
que ele costumava usar?
O bebê Israel foi levado à noite para o Egito e
escapou daquela morte precoce.
Contra quem Cristo lutou? Os líderes de sua
religião, os líderes declarados. Os justos.
O que Cristo fez no templo? Ele chicoteou
pessoas e virou mesas. Mais tarde, ele até rasgou a
grande e cara cortina púrpura.
Com quem ele se sentou e comeu? Prostitutas.
Ladrões. Os impuros.
Do nascimento ao final, ele jamais abandonou a
manjedoura. Cristo andou de insulto em insulto, de
imundice em imundice.
Leprosos. Meretrizes. Publicanos. Os mortos.
Ele escolheu pescadores para estarem mais
próximos dele e, dentre os educados, ele escolheu
um grande homem — um assassino que não queria
vir e precisou ser derrubado de seu jumento.
Como ele venceria? Quando ele deixaria o
caminho de impureza?
Ele veio para ser despido. Ele veio para ser
chicoteado. Ele veio para ter a barba arrancada e
espinhos cravados na cabeça. Ele veio para ser
zombado, para ter o corpo traspassado por pregos
grosseiramente forjados e uma lança romana. Ser
separado do Pai e experimentar o inferno como
Adão — pelo homem.
Ele veio para viver na manjedoura e morrer em
um poste.
Pilatos, você conversou com seu Criador. A
verdade esteve diante de você, e você lhe
perguntou: “Que é a verdade?”.
Pilatos, você teve outra conversa. Que palavras
você usou?
A Palavra demostrou quão baixo ele pôde descer.
Do poste, ele foi até o chão. Do chão, ele foi ao
mais profundo, todo caminho até o tártaro, abrindo
caminho para quem vinha atrás, para o ladrão que
caminhava a seu lado.
A baleia não o vomitou. Ele rasgou a baleia.
A pedra foi rolada.
Os guardas: “Sacerdotes, o Cristo não era um
mentiroso. Ele ressurgiu”.
Os sacerdotes: “Peguem esse dinheiro. Não conte
a ninguém”.
Membros do Sinédrio, houve outro julgamento.
Qual foi a sua defesa? Mesmo as ovelhas podem
testificar contra vocês.

No frio, eu permaneço, tremendo na tempestade


sombria, mexendo minha luz para cima e para
baixo no meu túnel. Ele colapsa com rapidez. Essas
folhas não tremulam; elas não rodopiam no ar
dourado. Elas morrem com velocidade na noite,
suas cores já ocultas.
Eu vejo Roma caindo, destruída pela chuva.
Eu vejo Bizâncio, com a pompa dos grandes
chapéus e a importância dos imperadores.
Eu vejo a China em confusão.
Eu vejo a África resvalando na terra.
Eu vejo Nietzsche e Platão, Hume, Leibniz e
Kant. Eu vejo reis e profetas incapazes de ficar em
pé.
Eu vejo a mim mesmo, meu povo, meu país,
minhas folhas, meu sangue.
Nós estamos morrendo. Devemos morrer. A
estrada é bem conhecida. Não precisamos temer o
escuro, pois o caminho é iluminado com luzes de
Natal.
Vamos para o solo, onde o musgo se alimentará
de nós e outros serão empilhados sobre nós. Vamos
para o piso de igrejas e cemitérios atrás de
supermercados. Vamos para o mar e a neve. Somos
devorados — por outros, pela terra, pelo tempo, por
cânceres e confusão, pelo giro desta esfera
enquanto ela corre suas voltas equilibradas.
Estamos no inverno, quando a luz morre e o
sangue corre frio.
Mas, não somos esquecidos. Molhados,
arrancados das árvores e pisados, não seremos
perdidos, pois somos palavras dele e, quando sua
voz chamar, nós iremos.
Atrás do palco, há outro palco maior.
Venham, envelheçamos como pescadores.
Adociquemos o ar com canções enquanto
desaparecemos. Vamos morrer. O inverno não nos
pode conter. Vamos para o solo, e nossas faces
encontrarão o solo. Vamos percorrer a erupção de
Páscoa.
Nosso Criador aguarda. Ele quer conversar. Que
palavras nós teremos?
Precisamos de apenas uma, Aquela que nos
falou.
Nós ouviremos os anjos cantarem. Seremos as
ovelhas. Seremos feitos novos e nos encontraremos
de pé em um jardim. Receberemos corpos, pás e
alegria.
Nenhuma árvore será proibida.
Caleje suas mãos. Cuide das formigas. Afaste as
sombras. Cante. Faça do mundo um jardim.
Nós riremos e esculpiremos Finis na terra. Nós o
esculpiremos na lua. Veremos a voz, o cantor, o
pintor, o poeta, o nascido no estábulo, aquele com
furos nas mãos e oceanos nos olhos e, naquele dia,
nós saberemos —
A história começou.
E nós varreremos as folhas.
FINIS
GRATIDÃO
HÁ PESSOAS E COISAS QUE PRECISAM DE
RECONHECIMENTO.
Quero agradecer aos insetos de todos os lugares
por tudo que fizeram e à BBC por produzir o
documentário Life in the Undergrowth [Vida no
submundo] (e permitir-me passar mais tempo no
mundo dos exoesqueletos). Também sou grato a
Annie Dillard pela textura de sua voz e a Nietzsche,
por ser o único filósofo que me fez rir alto. Meu
débito a Clive S. Lewis e Gilbert K. Chesterton
deveria ser óbvio para qualquer um que os conheça.
Obrigado também a Herbert Lockyer por Last
Words of Saints and Sinners [Últimas palavras de
santos e pecadores], e muitos outros escritores
anônimos que me temperaram.
Agradeço a um regimento de professores e
mestres que tentaram colocar coisas na minha
cabeça e, de modo geral, me toleraram durante
meus anos em suas salas de aula. Seu esforço foi
nobre, e eles não deveriam ser responsabilizados
pelo resultado.
Tenho uma profunda dívida para com minha
mulher, minha mãe e meu pai. Eles firmaram meus
pés e moldaram minha visão. Mais que isso: eles
leram isso e ainda foram gentis comigo.
Obrigado, Thomas Nelson e meu editor, por
estarem dispostos a publicar um… livro anormal. E
obrigado a meus filhos (Rory, Lucia, Ameera e
Seamus) por pularem nas minhas costas sempre que
sentiram necessidade.
Obrigado por girar comigo, por compartilhar a
vertigem e por chegar até aqui. Presumo,
evidentemente, que você tenha chegado longe
assim pelos meios tradicionais, e não de modo vil
— ao pular do primeiro capítulo para o final. Se
você é alguém que pulou para o fim, então meus
pensamentos sobre você são sombrios e meus
sentimentos não envolvem gratidão.
Mas, se você é um leitor ou um pulador, você
está aqui agora e tenho algo para você, algo para
lembrá-lo de que você está em uma esfera, girando
em círculos enquanto ela roda, algo para lembrá-lo
do que você é feito, de onde você vive e de como
você logo partirá. Um sinal da minha gratidão:
Lamba a palavra e pressione a palavra contra as
costas de sua mão. Você é um pouco mais sábio
agora, porque agora você sabe o gosto da tinta em
uma publicação.
Mostre para o pessoal do parque e talvez eles até
deixem você andar de novo nos brinquedos.
Quanto a mim… bem, as luzes ainda brilham e
os cantos ainda são escuros, mas eu já caí de um
dos brinquedos. É hora de cambalear pela noite.
SOBRE O AUTOR
Nathan David Wilson é autor de sucesso, sonhador
profissional e roteirista ocasional. Seus romances
incluem a trilogia 100 Cupboards [100 armários] e
a série Ashtown Burials [Enterros em Ashtown]. Ele
também tem diversos roteiros em vários estágios de
desenvolvimento. Nathan gosta de colinas, calos e
do cheiro de chuva no asfalto quente. Ele e sua
mulher têm cinco filhos, e eles os assistem lutarem
contra o mar com pranchas de surfe e baldes (o
máximo possível). Uma vez, ele falsificou o
Sudário de Turim, o que resultou em levar uma
bronca em uma TV húngara, e ele digitou um
pequeno romance em um guardanapo impresso na
revista Esquire (aquele bastião de justiça). Hoje é
Professor Associado de Literatura no New Saint
Andrews College, onde ensina os calouros a brincar
com palavras. Como todo o mundo, ele é feito de
pó.

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