O Repertório Musical No Documentário Brasileiro Dos Anos 1960

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O REPERTÓRIO MUSICAL NO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO DOS ANOS 1960 1

Um estudo sobre resistência em "Bethânia bem de perto: a propósito de um show" e "Nelson


Cavaquinho"

Rafael Saar da Costa2


Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal
Fluminense, PPGCine-UFF, Niterói-RJ

RESUMO: O cinema brasileiro da década de 1960 estabelece novas relações entre os filmes e a
música popular. Na América Latina esta efervescência política e artística é potencializada por
conjunturas nacionais mobilizantes como a Revolução Cubana e por outro lado, os governos
militares. As artes buscam aproximações frente a dilemas sociais comuns e se apresentam em
movimentos de renovação em estética e discurso e vemos a consolidação dos cinemas novos
brasileiros, Nuevo Cine Latinoamericano, Tropicália, Música Popular Brasileira e a Nueva Canción
Latinoamericana. Cinema, teatro, artes plásticas, literatura e música novos. No Brasil, a bossa nova,
as canções de protesto e a MPB, a Tropicália, e a música erudita com o movimento Música Nova.
Este trabalho se debruça neste panorama através do repertório musical dos filmes "Bethânia bem de
perto: a propósito de um show" (dir. Júlio Bressane e Eduardo Escorel, 1966) e "Nelson Cavaquinho"
(dir. Leon Hirszman, 1969).

Palavras-chave: Cinema brasileiro. Música brasileira. Documentário.

1 INTRODUÇÃO

O termo MPBentário foi concebido por Suzana Reck Miranda e


apresentado na dissertação por ela orientada: Os documentário musicais brasileiros:
Uma análise do filme Nelson Freire, de Guilherme Gustav Stolzel Amaral. Trata-se
do encontro entre o cinema documentário brasileiro e a Música Popular Brasileira -
MPB, e faz referência ao rockumentary, gênero americano de filmes protagonizados
pelo rock'n'roll a partir dos anos 1960. Sobre Bethânia bem de perto - a propósito de
um show, filme de Júlio Bressane e Eduardo Escorel, de 1966, Amaral diz neste
trabalho:

O filme, que pode ser compreendido como o produto do encontro do


documentário brasileiro com o ascendente mercado de bens culturais do
país, é a obra inaugural de uma manifestação cinematográfica intitulada por

1
Artigo apresentado no GT 08 - Elementos de sons, trilhas sonoras e diversidades do 10º Musicom.
2
Mestrando na Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual.
e-mail: [email protected]

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nós de MPBentário, que se refere a uma tendência do documentário
brasileiro voltada à temática musical, semelhante ao rockumentary
americano, mas direcionada ao cenário brasileiro da MPB. A comparação
do MPBentário com o rockumentary nos parece pertinente à medida que as
duas manifestações compactuam do esforço de aplicar a estrutura e os
propósitos do documentário, sobretudo aquelas que dizem respeito ao
cinema direto americano, ao universo da música, além de refletirem, cada
qual ao seu modo, as transformações sociais e econômicas pela qual
passavam o Brasil e o EUA. (AMARAL, 2015, p.38).

Deste ponto de partida, do grupo de filmes que a partir da década de


1960 estabelece novas relações entre o cinema e a música popular, pensamos um
panorama social, político e estético que permeia esta produção cinematográfica. Se
o desenvolvimento do cinema brasileiro está atravessado pela trajetória da música
deste país, diálogos e paralelismos podem ser identificados em aspectos históricos,
mercadológicos, de conteúdo e forma. Na América Latina esta efervescência política
e artística convergiu de forma potencializada pelas conjunturas nacionais
mobilizantes como a Revolução Cubana e por outro lado, os governos militares. As
artes buscam aproximações frente a dilemas sociais comuns e se apresentam em
movimentos de renovação em estética e discurso e vemos a consolidação dos
cinemas novos brasileiros, o Nuevo Cine Latinoamericano, a Tropicália, a Música
Popular Brasileira e a Nueva Canción Latinoamericana. Cinema, teatro, artes
plásticas, literatura e música novos. No Brasil, a bossa nova, as canções de protesto
e a MPB, a Tropicália, a música erudita com o movimento Música Nova em um
universo cultural que constrói um cruzamento frequente entre todas estas
expressões.

Situados frente aos debates acerca do neocolonialismo cultural, o repúdio


à hegemonia norte-americana e europeia na América Latina, os movimentos de
renovação e emancipação cultural buscaram na tradição popular um dos elementos
de impulso revolucionário de afirmação de identidades nacionais. No Brasil esta
nova arte se volta ao morro e ao sertão, presentes na música de protesto, no Teatro
Opinião, no Cinema Novo. Não será incomum o encontro destas expressões no
cinema, e podemos observar já nos anos 1950, prenunciando estes diálogos, Rio,
40 graus (dir. Nelson Pereira dos Santos, 1955) e Rio Zona Norte (dir. Nelson
Pereira dos Santos, 1957), com o sambista carioca Zé Kéti em destaque na trilha

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sonora e como inspiração para o argumento do segundo filme. O show Opinião
testemunhava:

Côro
Avante, avante / Avante companheiros / Vamos fazer mais filmes / Muitos
filmes brasileiros / Fazer cinema não é sôpa, não / Não é sôpa, não, não é
sôpa, não.

Zé Kéti
Êsse é um hino que eu fiz de brincadeira para a equipe do filme Rio 40
graus. Fiz parte da equipe. Foi uma batalha. Primeiro pra fil­mar. Depois veio
a censura. O chefe de po­lícia dizia que no Rio nunca tinha feito 40 graus. O
máximo que tinha feito era 39 graus e 7 décimos. E por aí foi. Juntou todo
mundo - jornalistas, estudantes, artistas, todo mun­do, e a fita saiu. O cinema
brasileiro estava começando de nôvo.

Côro
Brasil, meu Brasil, teu cenário é sem igual / Nós te dedicamos / Rio 40
graus, mais um filme nacional.

João do Vale
Cinema era difícil mesmo. Eu trabalhei com o Roberto Farias, o que dirigiu
Assalto ao Trem Pagador. E fazia chanchada porque não tinha outro jeito.
Depois, ficava sem dinheiro e ia pra fazenda do pai. Lia o livro "Selva
Trágica" e dizia - quando é que eu vou poder fazer um filme assim, hein,
Sabará?

Nara Leão/Maria Bethânia


Foi cinema novo, foi bossa nova, foi o teatro que apresentou novos autores
brasileiros. Teve uma coisa que eu descobri, que todo mundo descobriu - o
Brasil era o que a gente fazia dele. Era uma verdade trabalhosa, mas era
uma verdade. O cinema novo ajudou muito a música popular brasileira. Pra
que ela falasse novos temas, para que ficasse mais ampla, voltada para
grandes platéias, para sentimentos coletivos. "Rio 40 graus" deu "Voz do
Morro", "Rio Zona Norte" deu "Malvadeza Durão" (COSTA; FILHO;
PONTES, 1965. p. 66).

Podemos traçar um paralelo com outros territórios latino-americanos,


como o Chile, e o panorama de um cinema que também reproduzia estéticas
importadas e hegemônicas e que encontra realizadores que irão abrir caminho para
o Nuevo Cine Latinoamericano, como Sérgio Bravo, e a dupla Nieves Yankovic e
Jorge Di Lauro. Em comum no trabalho pioneiro destes realizadores está a artista
Violeta Parra, que compõe a trilha sonora e eventualmente aparece nos primeiros
filmes destes cineastas. Violeta desenvolveu trabalhos nas artes plásticas, em
escultura, e em sua música desenvolveu uma importante pesquisa e valorização da

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música tradicional de seu país, além de uma obra autoral engajada e comprometida
com a representação de uma identidade nacional.

A música talvez seja, mais do que a voz, o elemento sonoro mais


comentado do conjunto de análises sobre os filmes das décadas de 1960 e
1970 - que, por si só, é o período mais comentado dentro da história do
cinema brasileiro. O uso da música popular, ou, em alguns casos, mesmo
da música erudita feita no Brasil, é entendido como uma ferramenta
importante para o funcionamento do projeto de levar a cultura e o povo
brasileiro para o centro da tela (COSTA, 2008. p. 180).

O farto conjunto de pesquisas e análises feitas a partir do cinema dos


anos sessenta, assim como de sua música, reflete a efervescência cultural daquele
momento e a importância desta obra. No entanto é possível notar a escassez de
trabalhos mais específicos deste diálogo cinema-canção, encontrando artigos ou
capítulos que se dedicam ao tema, com destaque para A música no cinema
brasileiro - os inovadores anos sessenta de Irineu Guerrini Jr., de 2009, texto
fundamental para esta análise. Em sua maior parte esta produção está voltada para
a música, a trilha sonora, porém aqui nos propomos a abordar a presença física dos
músicos, à sua representação neste cinema, especificamente o não-ficcional que os
protagoniza, tomando como ponto de partida a canção por eles performada ou
pertencente à trilha dos filmes estudados.

Em sua variedade de estilos e inspirações, o cinema moderno brasileiro


acertou o passo do país com os movimentos de ponta de seu tempo. Foi um
produto de cinéfilos, jovens críticos e intelectuais que, ao conduzirem essa
atualização estética, alteraram substancialmente o estatuto do cineasta no
interior da cultura brasileira, promovendo um diálogo mais fundo com a
tradição literária e com os movimentos que marcaram a música popular e o
teatro naquele momento (XAVIER, 2001. p. 18).

2 UM BREVE HISTÓRICO

Partindo da ideia de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura


Brasileira, e reafirmada por José Novaes (NOVAES, 2003. p. 37), com a crítica à
noção de cultura isolada das esferas política e social traçamos um panorama
sócio-cultural e político dos anos 1960. A América Latina vivia o forte impacto da

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implantação da Revolução Cubana que colocou o país como referência na cultura
latinoamericana. A criação do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematograficos
- ICAIC - foi também uma base importante nas renovações do Nuevo Cine
Latinoamericano, cujo passado colonial comum representado na obra de Frantz
Fanon inspirou a crítica à dominação cultural imposta pelos países hegemônicos
formatada no cinema brasileiro através do manifesto A Eztétyka da Fome, de
Glauber Rocha. Uma negação ao cinema industrial e enfrentamento das realidades
nacionais através de um cinema engajado e precário como opção política e estética.

O Brasil havia saído do governo nacional-desenvolvimentista de Juscelino


Kubitscheck (1956-1961), passado pelo curto período presidido por Jânio Quadros e
vivia a política reformista de João Goulart interrompida pelo golpe civil-militar de
1964. Outros regimes ditatoriais militares apoiados pelos Estados Unidos se
estabelecem na América Latina, como o Paraguai, Argentina, e na década de 1970 o
Chile. Diante desta conjuntura Marcos Napolitano situa o nacional-popular diante da
música popular brasileira.

Tanto o nacional-desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek (1956


-1960), como o nacional-reformismo do governo de João Goulart
(1961-1964) estão na base dessa clivagem. Na medida em que estas
ideologias, pólos diferentes da cultura política nacional-popular, penetravam
no panorama musical, eram incorporadas nas obras que trazem em si
marcas das contradições inerentes ao processo social como um todo.
Portanto, não tomamos a BN (Bossa Nova) como “reflexo” do
desenvolvimento capitalista da era JK, como muitas vezes é vista, mas
como uma das formas possíveis de interpelação artístico-cultural deste
processo, a forma com que os segmentos médios da sociedade assumiram
a tarefa de traduzir uma utopia modernizante e reformista que desejava
“atualizar” o Brasil como Nação perante a cultura ocidental (NAPOLITANO,
2010, p. 11).

A música popular teve como grande veículo de divulgação o teatro de


revista desde meados do século XIX e encontra no rádio, mais fortemente a partir
dos anos 1930, seu novo canal entre artistas e público. A Rádio Nacional, que teve
sua origem como empresa privada em 1936, foi estatizada em 1940 durante o
Estado Novo, construiu um elenco estelar em seus programas de auditório (GÓES,
2011. p. 176-177) , com nomes que encontram espaço nas tentativas de um cinema
industrial iniciadas com a Cinédia. Filmes ligados à tradição da revista, com

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elementos de comédia, música e paródia social, em que o samba terá importante
afirmação.

Como aponta José Novaes o samba, assim como as manifestações


populares, a modinha, o choro, as marchas carnavalescas são forças de resistência
diante da invasão estrangeira, em um mercado dominado principalmente a partir da
década de 1920 pelas gravadoras que detinham a tecnologia de gravação e
moldavam o gosto das elite (NOVAES, 2003. p. 54-55.). O samba é visto como
gênero musical fundamental e hegemônico de uma ideia de identidade nacional,
fatores essenciais para entender, a seguir, a construção dessa presença do gênero
no cinema brasileiro, do período silencioso à figura de Nelson Cavaquinho no
filme-objeto deste trabalho. Fernando Morais ao comentar sobre os filmes cantantes
da primeira década do século XX, diz:

(...) pode-se ali vislumbrar o nascedouro dos signos que, bem mais tarde,
serão tomados como aqueles sobre os quais é possível discutir a formação
de uma procurada identidade nacional. No Rio de Janeiro, aquele é um
momento anterior à maior dessas demarcações, o processo de legitimação
do samba, que ainda não nascera, e que na década de 1930 deixaria a
clandestinidade rumo aos salões do Estado Novo, aos estúdios da Rádio
Nacional, servindo de ferramenta um processo de hegemonização cultural
do país (COSTA, 2008. p. 67).

Nos anos 40 também o samba-exaltação ufanista ganha impulso


internacional através de Ary Barroso na política de boa vizinhança norte-americana
durante a Segunda Guerra. Aquarela do Brasil fica famosa após integrar, na voz de
Aloysio de Oliveira, a trilha-sonora da produção de Walt Disney Saludos Amigos (dir.
Norman Ferguson, Wilfred Jackson, Jack Kinney, Hamilton Luske, Bill Roberts,
1942), ao lado de outras canções suas, Na baixa do sapateiro e Os quindins de Iaiá,
e versão instrumental de Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu, Você já foi à
Bahia, de Dorival Caymmi e Apanhei-te cavaquinho de Ernesto Nazareth.

A bossa nova sai da elite da zona sul carioca, absorvidas as influências


do samba e do jazz americano, e passa a ser a trilha sonora do governo de
Kubitschek, tendo seu auge internacional em 1962 na apresentação coletiva no
Carnegie Hall em Nova York. O movimento já em crise interna aponta novos rumos

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na canção popular, mais engajados e ligados ao popular, abrindo caminhos para as
canções de protesto e o germe da maiúscula Música Popular Brasileira - MPB. Com
a base melódico-harmônica da bossa e um acabamento com elementos da tradição,
a Moderna Música Popular Brasileira afirmaria um "um país moderno, democrático e
sofisticado pela integração de classes, etnias e regiões" (NAPOLITANO, 2014. p.
52), utopia sublimada pelo golpe em 1964.

A MPB talvez tenha sido o produto mais eficaz na realização de uma


identidade cultural nos termos do nacional-popular, na medida em que
conseguiu construir uma linguagem poético-musical que articulou o
"particular" (folclore, gêneros musicais locais) ao "universal" (jazz, música
erudita, rock), no âmbito utópico da nação, pensada como termo médio no
espaço (a síntese -ainda que assimétrica- das características regionais
agregadoras da brasilidade), no tempo (a síntese entre a tradição e a
ruptura) e no conjunto de sua sociedade civil (o conjunto das classes
sociais). Este "termo médio", como vimos, não esteve isento de tensões e
conflitos nem foi produto de um consenso entre artistas e intelectuais,
sobretudo quando se inseria nas estruturas de um mercado altamente
industrializado (NAPOLITANO, 2014, p. 61).

O Centro Popular de Cultura - CPC - da União Nacional dos Estudantes -


UNE - é um símbolo das articulações do engajamento da esquerda no encontro com
a classe e a cultura popular, e o artista assume seu papel revolucionário de
conscientização destas classes como agentes transformadores, base da libertação
nacional ainda no momento anterior ao regime militar estabelecido em 1964.

O papel da música popular na resistência à ditadura, seja no seu período


inicial, nos "anos de chumbo" ou no período de abertura, teve a
peculiaridade de aliar consumo cultural de massa à expressão de valores
políticos, principalmente através de letras que conciliavam a tradição lírica
das emoções subjetivas com a expressão épica dos desejos coletivos.
Diferente do cinema e do teatro, pólos importantes na cultura de oposição
ao regime, que optaram (bem como foram impelidos pelo mercado), nas
suas expressões mais críticas e criativas, pelo isolamento das demandas do
grande público e do chamado "gosto médio", a música popular assumiu sua
vocação de cultura de massa, mesmo no seu segmento mais crítico e
criativo (NAPOLITANO, 2014, p. 59).

A cultura jovem se volta à tradição que se apresenta mediada e


sofisticada pela juventude, encontrando espaço de revalorização. Espaços também
de ruptura, experimentação e resistência de iniciativas "tanto mais bem sucedidas

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quanto mais entenderam o mecanismo da situação colonial" como bem coloca Ismail
Xavier.

Consolidava-se assim o conceito moderno de Música Popular Brasileira


(MPB), cuja sigla passou a ser escrita com maiúsculas, como se fosse um
partido político e poético, signo de resistência o regime militar de direita que
se implantava no país. Mais do que um gênero musical, a MPB
transformou-se em instituição sociocultural e rótulo de mercado, chancela
do gosto hegemônico às canções engajadas dotadas de qualidade poética e
musical. A chegada deste tipo de música na televisão potencializaria como
nunca este processo de popularização do gênero. A partir de então, além
das plateias estudantis, os telespectadores de outras faixas socioculturais e
etárias, teriam acesso à "moderna" MPB. (NAPOLITANO, 2014, p. 53).

A partir dos anos 1960 as rádios perdem força e espaço como


estabelecimento da televisão e a música passa a ocupar o horário nobre da
televisão brasileira, em programas como o Fino da Bossa, a Jovem Guarda, e os
festivais de música popular. Os festivais tem seu auge a partir de 1965 com o
Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, o Festival Internacional da
Canção da TV Globo e o Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV
Excelsior, em que Arrastão, de Vinicius de Moraes e Edu Lobo, venceu com
interpretação de Elis Regina, e marcando o início da MPB como aponta Zuza
Homem de Mello (MELLO, 2003. p. 67). Elis apresentou O Fino da Bossa ao lado de
Jair Rodrigues entre 1965 e 1967 na TV Record, e o sucesso gerou a gravação de
três discos long play, e um deles foi o primeiro disco brasileiro a vender um milhão
de cópias e segundo Napolitano, apontando uma nova relação entre modernidade e
tradição, e paradoxalmente sucesso de mercado. Os artistas passam a fazer parte
do elenco contratado das emissoras e multinacionais do ramo musical, dominada
majoritariamente pela Polygram/Philips. (NAPOLITANO, 2014, p. 60.)

Cantores e compositores do passado, oriundos do rádio, sambistas de


morro, jovens cantores egressos dos shows estudantis, dividiam o palco sob
o comando festivo de Elis Regina e Jair Rodrigues. (...) Elis Regina ajudou a
ampliar o circuito sociocultural que consumia MPB, agregando antigas
audiências radiofônicas que não tinham prestado muita atenção nas
rupturas estéticas promovidas pela Bossa Nova de 1959, pois seu estilo
dialogava com a tradição de grandes cantoras do rádio, como Angela Maria
e Dalva de Oliveira (NAPOLITANO, 2014, p. 54.).

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O cinema brasileiro moderno se afirma a partir da década de 1960 com a
decadência do modelo industrial da Vera Cruz. Em diálogo com o neorrealismo
italiano ou a nouvelle vague francesa, o Cinema Novo estabelece suas bases de um
cinema de autor, de baixos orçamentos e renovação em linguagem, abrindo caminho
para desdobramentos como a Tropicália e o Cinema Marginal. Neste lugar
identificamos e pensamos o diálogo Rio de Janeiro-Bahia que se repete tanto no
cinema novo quanto na música popular.

A música, fundamental para o sucesso dos filmes entre 1908 e 1911, assim
como na década de 1930, terá seu papel reconfigurado na década de 1960
e novamente nos últimos dez anos. Continuará a ser importante, embora
passe a dividir espaço na trilha sonora com outros sons, perdendo a
onipresença dos dois primeiros momentos. As vozes, que se encontravam
atrás da tela na década de 1910, estarão no centro do quadro, unidas às
bocas de quem canta, na década de 1930, e sobre as imagens, fora da tela
ou dentro dela, embora, pela primeira vez, na confusão das ruas, na década
de 1960. Os ruídos, pouco presentes nos dois primeiros momentos, se farão
notar no cinema brasileiro moderno, vindo da impureza da gravação exposta
aos sons das ruas, ou colocados nos filmes de modo a estarem livres da
subordinação às imagens (COSTA, 2008. p. 8).

O início de um novo modelo de ruptura na cultura brasileira é marcado no


Festival da Record de 1967. Lançando musicalmente um diálogo com a guitarra
elétrica, temas urbanos, inspiração na contracultura e em uma estética vanguardista,
em Alegria, alegria e Domingo no parque, Caetano Veloso e Gilberto Gil confrontam
a ideia nacionalista dominante na MPB de origem e afirmam o movimento
tropicalista. No ano seguinte no Festival Internacional da Canção da Rede Globo,
Caetano apresenta É proibido proibir:

(...) ao defender a polêmica canção É proibido proibir, Caetano Veloso


provocou a ira da plateia politizada, pois a música não apenas mergulhava
de vez na estética da contracultura, criticada pela juventude politizada de
esquerda, como também apresentava uma letra na qual a revolução era
apresentada na sua forma libertária, erótica e rebelde (NAPOLITANO, 2014,
p. 56).

Cinema, teatro, artes visuais e música se conectam e influenciam em


formas transversais de expressão artística. Da montagem de O rei da vela pelo
Teatro Oficina, à Terra em Transe, Caetano Veloso reafirma a relação intrínseca
entre a Tropicália e o cinema novo na revista Filme Cultura com conteúdo

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especialmente dedicado ao som no cinema, e coloca Luiz Carlos Barreto como a
pessoa que colocou o nome no movimento.

Conforme a ditadura militar brasileira se consolida e se endurece, a


sensação de fracasso e desencanto de grupos que a ele se opunham, já
presente num filme como O desafio, de 1965, torna-se mais aguda, e
provoca um questionamento não só das formas tradicionais de oposição ao
quadro político, mas também dos valores culturais, tanto dos grupos
dominantes como da esquerda tradicional. O resultado são obras nos
campos das artes plásticas, do teatro, da música e do cinema que se
identificam com o que virá a ser conhecido como tropicalismo (GUERRINI
JÚNIOR, 2009, p. 101).

Esta conjuntura criativa seria ameaçada em 1969 através do Ato


Institucional n˚ 5 instiuído ao final de 1968 pelo general Costa e Silva, com a
perseguição a artistas de esquerda, a tortura e o exílio de muitos deles, além do
acirramento da censura às expressões artísticas, com vetos e mudanças nas letras
das canções, cortes e interdição de filmes.

Na perspectiva de pensar o presente e o futuro de um cinema brasileiro


possível é que esta pesquisa se encontra, no estudo das reflexões e estratégias de
um período tão fértil e marcante em nossa cultura, diante de tantas contradições em
sua conjuntura social conectadas tão fortemente com o período que atravessamos
hoje.

(...) o fato de um passado recente do cinema brasileiro ser objeto de


retrospectivas e debates, no Brasil ou no exterior, ultrapassa o interessante
puramente histórico ou acadêmico, sendo mais a reativação de um capital
simbólico que pode ter o seu papel no jogo político em que se decide a
viabilização de seu futuro (XAVIER, 2001. p. 14).

3 O CASO DE BETHÂNIA BEM DE PERTO E NELSON CAVAQUINHO

Bethânia bem de perto - a propósito de um show (dir. Júlio Bressane e


Eduardo Escorel, 1966) e Nelson Cavaquinho (dir. Leon Hirszman, 1969) são dois
filmes que se voltam a figuras da música popular brasileira e podem ser observados
através de seu repertório musical, elemento sonoro que toma grande parte da banda
sonora destas duas produções. Através da história e letra de cada canção,

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destacamos o modo como a música é utilizada e performada em cena, e pensando
na obra como é inserida em um campo social. Enfrentamos por outro lado a
dificuldade das informações sobre a trilha sonora que este cinema não creditou da
forma detalhada como encontramos no cinema contemporâneo, com ausência de
créditos musicais - muitas vezes como forma de burlar questões de direitos autorais
(GUERRINI JÚNIOR, 2009. p.33) - ou assinatura do próprio diretor, pela seleção
musical. No caso destes dois filmes não há informação musical alguma nos letreiros.

Bethânia bem de perto - a propósito de um show, de 1966, coloca a


música e a jovem intérprete Maria Bethânia como temas centrais de uma narrativa
em primeira pessoa, nesta que foi uma das iniciativas pioneiras do cinema direto no
Brasil. (DA-RIN, 2013 p. 34) Júlio Bressane e Eduardo Escorel realizam sua obra
iniciante, e encontramos elementos que são desenvolvidos no cinema marginal de
Bressane, e no amplo trabalho de Escorel. Em sua maioria os registros musicais
estão através do então inovador som direto, utilizado de diversas formas ao longo do
filme, para além da sincronia com a imagem do concerto base do Recital na Boate
Cangaceiro realizado por Bethânia naquele ano. Também observamos o uso de
fonogramas pré-existentes, recurso que ganha força na produção cinematográfica
do período. A duração musical no filme representa 56% da duração total, incluindo
os créditos referentes à restauração. O documentário é atravessado não só pelo
repertório musical da protagonista Maria Bethânia, mas daquela geração, com todos
seus questionamentos. O resgate de uma tradição da música popular brasileira
diante de um cenário de invasão da música estrangeira, e daí uma busca pelas
origens em Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, Luiz Gonzaga ou a cantiga Minha
machadinha. A música do morro de Zé Kéti, no cinema de Nelson Pereira dos
Santos e em Opinião, ganhava projeção e junto, novos sambistas ligados a este
universo como Paulinho da Viola e Elton Medeiros. A bossa nova influenciada pelo
música americana e sua projeção internacional no início dos anos 60 trazem novos
rumos no movimento que em parte busca diálogos com sonoridades afro brasileiras
e uma aproximação a uma estética mais popular, surgindo uma canção revigorada
do encontro de Vinicius e Baden Powell em duas canções nesta trilha. Finalmente
compositores modernos e coetâneos à protagonista, também atentos a todos estes

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movimentos, Edu Lobo, Torquato Neto, Capinam, Gilberto Gil e especialmente seu
irmão Caetano Veloso, anunciando as misturas referenciais que forjaram novas
rupturas estéticas que viriam a seguir como a Tropicália e o que veio a ser chamado
de MPB.

Nelson Cavaquinho é realizado por Hirszman em 1969 e traz como


protagonista o músico que dá nome ao curta-metragem. Desta vez, um compositor
já sexagenário, sem produção fonográfica própria lançada e ligado à tradição
popular do samba carioca. Um repertório inteiramente composto, tocado e cantado
pelo protagonista, registrado em som direto. Situamos esta obra em uma filmografia
de um cineasta vinculado ao Cinema Novo e que coloca atenção especial à música
brasileira, em especial o samba. A música ocupa 79% da duração total do filme.
Notamos uma certa correspondência na ordem entre as músicas que aparecem no
filme e os compositores parceiros de Cavaquinho. Em sequência começamos com
duas parcerias com José Ribeiro (Risos e Lágrimas - triceria com Ruben Brandão - e
História de um valente); Nourival Bahia e Walto Feitosa (Dona Carola); Amâncio
Cardoso (Luz Negra); Gerson Filho (Pimpolho Moderno); Ermínio do Vale
(Caridade); duas com Guilherme de Brito (A flor e o espinho - triceria com Alcides
Caminha - e Revertério) e mais duas finais com Jair do Cavaquinho (Eu e as flores e
Vou partir). Desta forma, temas particulares, frutos de cada um destes encontros,
permanecem agrupados em uma lógica que passa pelas diversas nuances do
gênero do samba, escolhido como símbolo da buscada identidade nacional, como
genuína da cultura brasileira. Expressão negra periférica, o samba é associado à
resistência, arte imune ao neocolonialismo cultural apontado por Glauber no
manifesto Uma estética da fome. Malandragem, boemia, resistência, melancolia pelo
amor perdido, morte, luto, são os temas que permeiam a obra de Nelson
apresentada neste filme e que ecoam nas questões investigadas pelo Cinema Novo,
e no trabalho de Leon. Se antes Hirszman já apontava sua conexão com o samba,
ainda mediado e reconfigurado pela figura do maestro sofisticador daquela
linguagem em A falecida (1965), em Nelson Cavaquinho ele vai até a fonte. Já sob o
Ato Institucional n˚ 5 que interrompe a efervescência cultural com a prisão de
Caetano Veloso e Gilberto Gil, e seu exílio, ou a fuga de Geraldo Vandré para o

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Chile, o filme torna-se singular em sua filmografia, inclusive póstuma, que busca de
forma pensada certo didatismo como ideal político conscientizador, e abre mão
neste documentário da figura do narrador. O cineasta volta à classe popular e ao
preto e branco após Garota de Ipanema e a elite em cores. Em Nelson Cavaquinho
o cinema de Leon Hirszman se redireciona a este universo e também às origens do
cineasta no subúrbio carioca, o que podemos talvez vislumbrar com sua aparição no
filme, à mesa com Nelson, integrado àquele lugar.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Guilherme Gustav Stolzel. Os documentários musicais brasileiros: uma


análise do filme Nelson Freire. Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-Graduação em Imagem e Som, Universidade Federal de São Carlos. São
Carlos, 2015.
COSTA, Armando; FILHO, Oduvaldo V.; PONTES, Paulo. Opinião. Rio de Janeiro:
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