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Teoria da Literatura - Prosa

Material teórico
Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha

Revisão Textual:
Profa. Ms. Helba Carvalho
Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

• Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

• O Conto: Antiguidade e Contemporaneidade

• O Romance

Seja bem vindo à unidade III da disciplina: Teoria da


Narrativa. Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre
Aprendizado

os elementos necessários para uma análise do texto


Objetivo de

ficcional narrativo. Além disso, discutiremos as


características essenciais de duas espécies do gênero: o
conto e o romance.

Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento da unidade:

1) Leia o conteúdo teórico da disciplina;


2) Leia o esquema gráfico do conteúdo teórico;
3) Assista à apresentação narrada;
4) Faça a atividade de sistematização;
5) Faça a atividade de aprofundamento;
6) Leia o material complementar;
7) Formule suas dúvidas ao professor da disciplina por meio do módulo Mensagens do
blackboard ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina;
8) Procure ler as obras indicadas na bibliografia, principalmente aquelas que estão disponíveis
na biblioteca eletrônica da Universidade, isso irá colocar você em contato com diferentes
visões sobre o problema além de fornecer a você um repertório maior de conceitos da
teoria da narrativa.
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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento da unidade:

1) Leia o conteúdo teórico da disciplina;


2) Leia o esquema gráfico do conteúdo teórico;
3) Assista à apresentação narrada;
4) Faça a atividade de sistematização;
5) Faça a atividade de aprofundamento;
6) Leia o material complementar;
7) Formule suas dúvidas ao professor da disciplina por meio do módulo Mensagens do
blackboard ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina;
8) Procure ler as obras indicadas na bibliografia, principalmente aquelas que estão disponíveis
na biblioteca eletrônica da Universidade, isso irá colocar você em contato com diferentes
visões sobre o problema além de fornecer a você um repertório maior de conceitos da
teoria da narrativa.

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Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Narrar é o ato de expor ou contar um acontecimento real ou imaginário. Trata-se de


uma atividade humana gregária, porque remonta às origens da vida em sociedade, é uma
forma de conhecimento que procura explicar o mundo como, por exemplo, no conjunto dos
mitos de determinada cultura. Aliás, a palavra mito, que vem do grego, significa fábula, relato,
história.

A literatura, como arte da palavra que é, nutre-se desses mitos e os reelabora


constantemente por meio da produção de narrativas que tentam reorganizar as experiências
humanas por meio da linguagem.

Embora seja importante pensar na inexistência de gêneros puros, a narrativa encontra-


se associada ao gênero épico, conforme visto na unidade II, cujas espécies mais conhecidas
são: o poema épico (longo poema narrativo que relata os grandes feitos de um herói ou de
um povo); o conto (narrativa curta); a novela (gênero intermediário entre o conto e o
romance); o romance (modernamente concebida como composição em prosa vinculada à
sociedade burguesa); a crônica (forma elástica, próxima do lírico, mas que em grande parte
dos casos apresenta uma narrativa curta inspirada em fatos do cotidiano), a fábula (conto que
encerra uma lição, a moral da história) entre outros.

Esse gênero é considerado mais objetivo do que o lírico pela espacialidade,


temporalidade, construção de caracteres mais detalhada, apresentação das ações encadeadas
e pela presença de um mediador, o narrador, que assume um ponto de vista ou perspectiva e
nos conta a história, fato que propicia um maior distanciamento entre o sujeito que narra e
aquilo que é narrado, isso porque o narrador conhece, domina o fato que conta, ainda que
possa fingir que a ação ocorre simultaneamente ao ato de narrar.

Além disso, o gênero permite que o sujeito da enunciação (entendida como ato
individual de utilização da língua pelo falante, ao produzir um enunciado, no caso a
construção da narrativa, num dado contexto comunicativo)se manifeste por meio das
descrições e da apresentação dos personagens ou ainda por meio da técnica de reproduzir, de
modo direto, indireto ou indireto livre, a voz dos próprios personagens.

Os elementos estruturais da narrativa e sua função na análise dos textos

Evidencia-se, desse modo, a necessidade de isolarmos os elementos estruturais da


narrativa e refletir um pouco sobre cada um deles para que tenhamos “ferramentas” para
fazermos uma análise dos textos épicos. São eles aação, enredo, tempo, espaço, personagens
e foco narrativo ou ponto de vista.Esses elementos respondem às perguntas básicas para uma
abordagem inicial da obra narrativa:

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Elemento Estrutural da Narrativa Informações Transmitidas

Ação/Enredo O que aconteceu? Como se organiza?

Tempo Quando aconteceu?

Espaço Onde aconteceu?

Personagens Quem participa da história?

Foco narrativo ou ponto de vista Quem conta e sob que perspectiva? Primeira pessoa (eu)
ou Terceira pessoa (ele)? Neste caso, trata-se de um
narrador que é capaz de entrar na mente dos
personagens, ou seja, possui onisciência?

Veja como mesmo em uma narrativa extremamente sucinta, como é o caso do


microconto dado a seguir, os elementos básicos são identificáveis:

Deixou a Ana Rosa. Rumou para a Liberdade. Chegou no escritório do advogado: o


divórcio havia saído.

Edson Rossato, Cem toques cravados.


Microconto disponível em:
http://www.cemtoquescravados.com/2012/01/deixou-ana-rosa-rumou-para-
liberdade_14.html, acessado em 29/01/2012

Temos uma sequência de ações representadas pelos verbos “deixar”, “rumar”,


“chegar” e pela locução verbal “havia saído”. Essas ações estão organizadas de forma linear,
sequencial, o que nos dá o enredo da narrativa: um homem foi de metrô para o escritório do
advogado e, chegando lá,recebeu a informação de que seu divórcio se concretizara.

Temos, ainda, acesso ao tempo por meio do tempo verbal, os fatos ocorrem no
passado, ainda que este não esteja determinado.

O espaço também está presente, a ação principal ocorre no escritório do advogado,


que fica próximo ao bairro da Liberdade, em São Paulo. Para chegar lá, temos referências
espaciais às estações do metrô Ana Rosa e Liberdade.

Podemos, também, identificar um personagem principal dessa história, o passageiro


do metrô, e podemos pensar em outros personagens secundários que não são
explicitados: a mulher de quem o protagonista acabou de se divorciar e o advogado que
cuidou do processo de divórcio.

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O foco narrativo é de um sujeito que usa a terceira pessoa (ele) rumou, chegou etc.
Esse narrador limita-se a contar a história de forma objetiva, sem vasculhar os a mente dos
personagens, haja vista a concisão do gênero escolhido.

A construção dos sentidos: elementos estruturais e discursivos

Note, porém, que essas informações nos ajudam a entender a narrativa, fazer uma
paráfrase dela (recontá-la com nossas palavras), mas apenas o exame da organização desses
elementos por meio da linguagem, neste caso a linguagem literária, é que nos dará uma
leitura mais profunda e evidenciará o caráter estético desse ato de comunicação. Isso significa
que, para além de uma visão superficial dada pelo levantamento dos elementos estruturais,
será a análise da língua em ação, da enunciação que nos conduz ao discurso, que nos
dará uma dimensão mais abrangente, embora não definitiva, do que o locutor (aquele que
conta a história ou o sujeito da enunciação) quer comunicar ao interlocutor (aquele que lê,
interage com o texto). Essa operação de leitura envolve questões mais complexas, como a
experiência que temos sobre viagens de metrô, escritórios de advogado, relacionamentos
amorosos e conflitos conjugais, divórcio entre outros elementos que envolvem a memória
coletiva.

Além disso, devemos considerar que o texto deve ser lido como uma peça literária, o
que nos obriga a ativar todo nosso conhecimento sobre linguagem conotativa.

Para termos acesso às diversas possibilidades interpretativas da narrativa, temos de


cooperar com o sujeito da enunciação e pensar no duplo sentido que assumem os nomes das
estações: o substantivo Ana Rosa pode ser entendido não só como nome de estação do
metrô, mas como o possível nome da mulher de quem o protagonista se separou e, nesse
caso, o nome da estação Liberdade ganha outro sentido, representa o fim de um
relacionamento problemático, que aprisionava o personagem, haja vista que esse ponto do
percurso está associado à notícia do divórcio.

Outra metáfora importante é a da viagem, do percurso, especialmente se associado ao


meio de transporte a que o narrador se refere, o metrô. Trata-se de um percurso subterrâneo,
que evoca associações com elementos obscuros, coisas que não se revelam claramente, o que
nos sugerea imagem de um relacionamento infeliz, que produziu mágoas entre o personagem
e sua ex-mulher. Nesse caso, emergir na Liberdade e entrar no escritório do advogado ganha
o sentido mais amplo de retomar a vida de forma mais independente, e agora oficial por
causa do divórcio, não mais subterrânea aos olhos da sociedade, haja vista que se pressupõe
que o casal já estava separado de fato antes que a justiça concedesse o status legal da
separação pelo ato do divórcio.

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

As escolhas dos verbos (escolhas lexicais) contribuem para isso no texto. Menos força
teria o uso dos verbos “partiu da Ana Rosa e chegou à Liberdade”. O uso do verbo “deixou”
nos autoriza a pensar no fim do relacionamento, ao passo que o verbo “rumou”, associado à
Liberdade, nos autoriza a pensar que o divórcio será a possibilidade de o sujeito assumir ou
reassumir as rédeas de seu destino.

A natureza mais extensa da locução “havia saído” em lugar do termo mais conciso
“saíra” sugere a ideia de que o processo foi longo, doloroso, o que complementa a ideia da
viagem, do percurso, ação central da narrativa, viagem que agora pode ser entendida como
uma ação subjetiva, não mais como mero deslocamento físico.

Por tudo isso você deve ter percebido que devemos levar em consideração mais do
que a simples descrição dos elementos estruturais da narrativa, que não fornece uma leitura
competente da obra, mas constitui meio inicial de acesso ao texto. Observarmos como a
seleção e a organização desses componentes contribuem, além do significado prático eles que
têm, para uma leitura mais completa da obra, o que chamamos construção de sentido.

Aliás, é preciso notar que esta breve leitura não teve a pretensão de esgotar as
possibilidades de interpretativas que nos fornece a narrativa, mas procurou mostrar um
exemplo de como podemos partir dos elementos estruturais, que são os que objetivamente se
apresentam no texto, e procurar preencher as lacunas do material linguístico por meio de uma
abordagem cooperativa que ative as nossas experiências e conhecimentos. Essas lacunas só
podem ser preenchidas se concebermos a língua como ato comunicativo complexo que
envolve a memória, bem como nossa consciência da natureza específica do ato comunicativo
literário (como vimos na unidade que conceitua o fenômeno literário) e não apenas a visão do
texto como um sistema de códigos a serem decifrados.

Além disso, devemos levar em consideração no processo de análise a espécie do texto:


o conto, por exemplo, geralmente possui poucos personagens, notações espaciais reduzidas,
ações em menos profusão do que o romance, que, em grande parte dos casos apresenta uma
pluralidade maior de ações, espaços e personagens decorrente da extensão maior desta
espécie em relação àquela. Já a crônica, pela proximidade com o gênero lírico, por vezes dilui
a ação em meio às reflexões do sujeito. Todas estas observações decorrem da consciência de
que a pureza dos gêneros é um conceito, não uma realidade concreta, ou seja, eles são
híbridos e a pureza de gêneros em sentido absoluto não existe.

No caso do microconto, espécie relativamente nova a que pertence o texto estudado, a


concisão é o elemento-chave da composição, pois força o locutor a carregar cada palavra de
significado de forma a suprir as lacunas tradicionalmente preenchidas em textos mais longos
com o uso da descrição, do diálogo e da dissertação e por isso pede maior cooperação do
leitor.

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Considerações sobre os elementos estruturais da narrativa

Faremos agora algumas observações sobre os elementos estruturais da narrativa,


aqueles quedão acesso ao texto. Certamente o espaço de que dispomos não permite esgotar
os aspectos que envolvem cada conceito, por isso lembramos que você deve complementar o
seu estudo por meio da leitura da bibliografia da disciplina, só desse modo terá à sua
disposição o instrumental teórico que fundamentará suas análises literárias a serem realizadas
ao longo do curso. Além disso, a Internet oferece bons recursos de pesquisa rápida e de
aprofundamento do tema. Um deles, que indicamos para o tema é o site que abriga o E-
Dicionário de Termos Literários, coordenado por Carlos Ceia, disponível em:
http://www.edtl.com.pt. Lá você encontrará um detalhamento maior de cada elemento
discutido a seguir, bem como outras abordagens do mesmo tema que o auxiliarão a formar
uma consciência crítica sobre o conteúdo, já que nem sempre os diferentes autores concordam
em todos os pontos.

a) Enredo: elemento que responde à pergunta o que aconteceu? Também é designado


como trama, intriga, fábula e consiste no arranjo da sequência de ações (fatos), que
pode ser feito de forma linear, sequencial ou anacrônica, começar no meio da história
(in medias res) ou no final (in ultimas res). Em grande parte dos textos há um conflito,
um problema, a ação evolui em direção a um clímax, ponto máximo da tensão
narrativa. Há narrativas em que o conflito se resolve depois do clímax, há narrativas,
entretanto, em que permanece o clima de mistério. Podemos considerar também que
há ações externas e internas. Todas essas opções são elementos produtores de sentido
e devem ser analisadas como decorrentes do estilo de cada autor, de cada subespécie:
o romance policial, por exemplo, costuma ser uma obra que privilegia a ação e a
resolução do conflito; o romance psicológico tende a diluir a ação em meio às reflexões
dos personagens; a epopeia, gênero narrativo, convencionalmente, começa a narrativa
no meio da ação, in medias res, como faz Camões em Os Lusíadas: “Já no largo
oceano navegavam” (Canto I, 19). O autor situa os portugueses em alto mar para
depois contar como foi a partida de Portugal em direção às Índias.

Voltando ao microconto que analisamos, percebemos que o enredo se organiza


de forma linear. Contudo, a situação apresenta-se próxima do final, da resolução do
conflito. Somos jogados, por assim dizer, no meio da história, o que significa que
devemos preencher essa lacuna com nossa imaginação. A ação prosaica de apanhar
um transporte coletivo apresenta-se como a ponta de um iceberg que nos leva a refletir
sobre o sentido dela em função das ações que ocorrem posteriormente.

b) Tempo: está essencialmente ligado à ação e reponde à pergunta quando aconteceu?


Há alguns tipos de tempo:
Tempo cronológico: aquele que pode ser medido em horas, minutos, segundos e se
liga ao tempo histórico, em que o narrador nos indica datas. Possui um aspecto
quantitativo.
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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Tempo psicológico: aquele que se passa no interior da mente dos personagens,


denominado por Benedito Nunes como tempo vivido ou duração interior. Trata-se de
um elemento qualitativo, predominante em romances psicológicos, que não coincide
com as medidas temporais objetivas: “uma hora pode parecer-nos tão curta como um
minuto se a vivermos intensamente; um minuto pode parecer-nos tão longo quanto
uma hora se nos entediarmos” (NUNES, 1995, p. 18); mítico, que é o tempo do eterno
retorno, aquele das lendas e das narrativas das origens.
Tempo linguístico e tempos verbais: estão ligados ao exercício da palavra e se
originam no presente da enunciação: “Cada vez que você fala com alguém é agora que
você fala, e agora é o presente da enunciação funcionando como eixo temporal a partir
do qual os eventos se ordenam” (NUNES, 1995, 22). Passado e futuro estão situados
para trás e para frente desse presente implícito que é o presente do discurso que
funciona como um eixo entre essas duas dimensões temporais.
Tempo mítico: é circular, cíclico, do eterno retorno prevalece nas lendas, narrativas
míticas, caracterizando-se pela expressão, nem sempre explicita “Era uma vez...”.

No microconto que estudados vimos que o tempo cronológico não é delimitado,


embora os que conhecem a cidade de São Paulo possam inferir que uma viagem de
metrô da estação Ana Rosa à Liberdade dure mais ou menos cinco minutos. Além
disso, nossas experiências em relação às questões judiciais nos informam que um
processo de divórcio pode demorar meses ou anos, assim como um relacionamento
pode durar algum tempo antes de se deteriorar. Temos acesso, em certo sentido, a um
tempo histórico: a cidade de São Paulo do final do século XX, por causa da existência
do metrô, o Brasil dessa mesma época, a partir de quando foi instituído o divórcio no
país. Essas noções temporais, contudo, são acessórias, pois o que se impõe na
narrativa em questão é o tempo linguístico, conforme observamos na análise do texto:
o pretérito perfeito, que caracteriza uma ação terminada no passado; a locução verbal
que substitui o pretérito mais que perfeito sugerindo, conforme apontamos, um
processo demorado e ao mesmo tempo uma ação concluída antes do início da
narrativa e das ações narradas.

c) Espaço: responde à pergunta onde aconteceu? O espaço pode ser interior ou exterior,
pode ser mais fechado ou mais amplo e, geralmente, concentra elementos significativos
a respeito do personagem que o ocupa, principalmente nos romances naturalistas, em
que a influência do meio é ressaltada como expressão do pensamento determinista
vigente na segunda metade do século XIX. De qualquer modo, como a literatura é um
fenômeno essencialmente simbólico, nenhum elemento espacial deve ser considerado
como meramente decorativo, mas produtor de sentido se analisado em relação aos
outros, isso vale, obviamente, para todos os outros aspectos estruturais. No caso, vimos
que metrô é um espaço que agrega forte sentido simbólico: pelo aspecto de viagem, de
percurso que sugere; pelo aspecto subterrâneo de sua natureza em contraste com o
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escritório do advogado; pelo aspecto de transporte coletivo que se conecta à ideia da
do divórcio (ato oficial, certificado pela autoridade pública)como reconhecimento
social da separação..
d) Personagem (substantivo de dois gêneros, portanto você pode dizer a personagem ou
o personagem): personagens são seres fictícios, pessoas imaginárias que se movem no
espaço da narrativa. O termo vem da palavra latina persona, que se significava a
máscara do ator de teatro. Os personagens são agentes das ações e são delineados,
portanto, não só pela descrição que deles faz o narrador, mas pelo que dizem ou não,
pelo que fazem ou deixam de fazer.

No texto que estudamos, dada a ausência de caracterização da personagem, só


podemos ter acesso a ele por meio das ações e da sugestão da qualidade dessas ações
dadas pela escolha lexical, como destacamos. Em narrativas mais extensas, o ficcionista
não arquiteta o personagem apenas pelas suas ações, mas também pela exposição de
pormenores físicos ou psíquicos que, não raro, são apresentados por meio de alguns
traços distintivos, já que uma descrição minuciosa poderia comprometer o andamento
da narrativa. Há casos, porém, em que essa caracterização pode ser mais detalhada,
em função da espécie do texto, como dissemos, ou do período literário. O Realismo,
por exemplo, que busca uma aproximação mais estreita entre a arte e a vida, procura
caracterizar minuciosamente os personagens.
Os romances,obras mais extensas, trazem ainda personagens que foram
denominados por E. M. Forster, em sua obra Aspectos do Romance(Globo, 2005),
como planas, aquelas constituídas em torno de uma única ideia ou propriedade, que
são tipos, não raros estereótipos; e as redondas, personagens mais complexas e que
possuem diversas qualidades. Essas classificações, como todas, aliás, devem ser
tomadas como elementos norteadores da análise, mas não devem ser tidas como
rótulos estanques. Já o conto, pela sua menor extensão tende a condensar na ação as
propriedades dos personagens.
Além da obra de Forster, que se destina à compreensão da forma romance, é
interessante que se faça uma leitura da obra A Personagem de Ficção (Perspectiva,
2002), escrita por Antonio Candido, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e
Paulo Emílio Salles Gomes, em que são discutidos com muita propriedade os diversos
tipos de personagem. Neste momento, interessam especialmente os capítulos
“Literatura e Personagem”, de Rosenfeld, e “A Personagem do Romance”, de
Candido.

e) Foco narrativo ou ponto de vista: É a perspectiva que o narrador assume ao contar


a história. Como mediador entre os fatos e o leitor, esse elemento não deve ser
confundido com a figura do escritor. Mesmo em textos autobiográficos, devemos
considerar que quando conta uma história, o sujeito assume uma postura distanciada
em relação aos fatos, cria uma espécie de máscara que imagina para conceber o
universo ficcional.

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Podemos encontrar o narrador onisciente, aquele que pode, como um deus, revelar
a vida interior dos personagens. Ele serve-se da terceira pessoa para isso. Veja como
exemplo este fragmento inicial do conto “As Voltas do Filho Pródigo”, de Autran
Dourado:“Alguma coisa no ar dizia que Zózimo estava para chegar. Desde longe, antes
mesmo de qualquer anúncio, João pressentia: não demorava muito e tio Zózimo estaria de
volta.” (BOSI, 1978, p. 199). O narrador fala de uma terceira pessoa, João, e é capaz de
saber o que esse personagem está pressentindo no momento.

No microconto que estudamos, podemos perceber a presença de um narrador em


terceira pessoa que, pela brevidade da narrativa, não nos revela, de modo explícito, o que vai
na consciência do personagem. De qualquer modo, a referência ambígua à Liberdade, ao
mesmo tempo local em que receberá a notícia do divórcio e condição que esse fato dará ao
homem, configura-se como um comentário sugestivo de certa onisciência sutil que nos revela
aspectos mentais do personagem: alívio depois de uma longa espera, desejo de tomar um
novo rumo etc.

Outro modo de narrar é utilizando a primeira pessoa (eu/nós) e, nesse caso, esse eu
pode ser assumido por uma personagem secundária, que funciona como testemunha, ou
pelo protagonista, personagem principal da narrativa, a quem denominamos narrador-
personagem.

Como exemplo do primeiro caso temos o narrador testemunha do conto “Civilização”,


de Eça de Queiroz: “Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome é Jacinto) que nasceu
num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado”
(QUEIROZ, s/d).

Como exemplo do segundo caso podemos citar o narrador-personagem do conto de


Luiz Vilela, “Eu estava ali deitado”: “eu estava ali deitado olhado através da vidraça as
roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas do meu quarto e
de repente cessava e tudo ficava tão quieto, tão triste e de repente recomeçava e as roseiras
frágeis e assustadas irrompiam nas vidraças...”(BOSI, 1978, p. 291).

Cabe notar que o uso desses diferentes pontos de vista aproxima ou afasta a figura do
narrador dos acontecimentos: um maior afastamento da ação se dá no foco em terceira
pessoa, teoricamente a perspectiva que permitiria maior objetividade; um afastamento
intermediário ocorre no caso do narrador-testemunha, uma vez que ao presenciar a ação ele
não se envolve tanto com ela quanto se envolve o personagem que a vive; um envolvimento
maior na ação se dá no caso do narrador em primeira pessoa, que pode transformar de modo
mais subjetivo, mais intenso, as emoções em linguagem.

Mais uma vez ressaltamos que essas classificações ou inferências a partir delas não são
estanques, têm apenas uma finalidade didática, e devem ser analisadas caso a caso. Na
narrativa moderna podemos encontrar em um único fragmento uma mescla mais de uma
perspectiva, configurando um discurso polifônico, porque as vozes narrativas soam

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simultaneamente ao longo do texto. Esse fato também é um índice interpretativo que deve ser
associado aos outros aspectos da narrativa para dele serem extraídos os significados.Veja um
exemplo do romance Memorial do Convento:

Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, (...)a procissão é uma


serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando e
recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o
espectáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira
e Sousa, sem mester nem benefício, mas que do Santo Ofício declarava ser
qualificador, e sendo secular dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo
tempo que isto fazia proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão
assim, (...) e aquele é o padre António Teixeira de Sousa, da ilha de S. Jorge,
por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpava e
fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e terminando no
acto recato da sacristia, (...),e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um
quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no
tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que
era efeito demoníaco, (...) condenada a ser açoitada em público e a oito anos
de degredo no reino de Angola, (...) vou vê-la, ai, ali está, Blimunda,
Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir
que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que
apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu
Lourenço, (...), e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe(...)
(SARAMAGO, 1982, 30-31)

No texto em questão, o narrador inicia o parágrafo sob a perspectiva da terceira


pessoa, a personagem Sebastiana assume a narrativa, sob a perspectiva da primeira pessoa e,
no final, o narrador em terceira pessoa volta a assumir o discurso.

Considerações sobre os elementos da linguagem

Como ressaltamos anteriormente, é a linguagem que apresenta e dá sentido aos


elementos estruturais da narrativa. Por isso ela deve ser vista sob a perspectiva dos aspectos
conotativos: ambiguidades, metáforas, metonímias, mas também do ponto de vista dos tipos
textuais que articula. Há obras em que prevalece a narração, outras em que a descrição é
bastante frequente. Em certas composições, prevalece o diálogo, por meio do discurso direto,
indireto ou indireto livre. Em outras, ainda, é frequente o uso da dissertação, tipo textual em
que o narrador expõe suas ideias. A prevalência ou ausência de um ou outro tipo textual
também constitui elemento produtor de sentido.

Repare que no exemplo que analisamos o tipo textual que prevalece é a narração. Não
há descrição, diálogos ou dissertação. Isso, contudo, não impede que o texto assuma uma
dimensão argumentativa, haja vista que as formas de construção da linguagem que
apontamos sugerem uma série de perspectivas sobre o fato narrado como observamos.

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

O diálogo ou monólogo, frequentemente usado para aproximar o leitor dos


acontecimentos, é um recurso fundamental nos textos narrativos e também pode ser
considerado como uma forma de arranjo da linguagem que produz sentido.

A apresentação pode ser por meio do:

a) discurso direto, como no exemplo a seguir, extraído do conto “Os Três nomes de
Godofredo”, de Murilo Rubião:

Insatisfeito com as hipóteses que formulava, arrisquei-me a uma tímida observação:

− Você é minha convidada, não?

− Claro! E não precisava ser para estar aqui.

− Como? – indaguei estupefato.

− Ora, desde quando se tornou obrigatório ao marido convidar a esposa para


jantar ou almoçar? (BOSI, 1978, p. 123)

Note que, neste caso, os diálogos são transcritos sem a interferência do narrador, que
dá voz aos personagens.

b) discurso indireto, como no trecho de“Singularidades de uma rapariga loura”, de


Eça de Queiroz:

Perguntei-lhe então se era de uma família que eu conhecera, que tinha o


apelido de Macário. E como ele me respondeu que era primo desses, eu tive
logo do seu caráter uma ideia simpática, porque os macários eram de uma
antiga família, quase uma dinastia de comerciantes...
(QUEIROZ, s/d, p. 13).

Repare que neste trecho o narrador reproduz de forma indireta as falas dele e do
personagem com quem conversa, servindo-se do que chamamos de verbos discendi, ou
verbos de dizer, tais como: perguntei, respondeu, disse, retrucou entre outros.

c) discurso indiretolivre, como no trecho do conto “Gato gatogato”, de Otto Lara


Resende:

O menino apanhou o tijolo com que vedava a entrada do mistério. Lá


embaixo – alvo fácil – o gato dormia inocente a sua sesta ociosa. Acertar
pendularmente na cabeça mal adivinhada na pequena trouxa felina, arfante.
Gato, gato, gato: lento bicho sonolento, a decifrar ou a acordar?
(BOSI, 1978, 134)

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Note que neste fragmento as observações “alvo fácil” e as impressões e
questionamento sobre o gato, se é bicho sonolento, se está a decifrar ou acordar, tanto podem
ser atribuídas ao narrador onisciente como ao personagem, o menino.

O discurso indireto livre está bastante associado, embora não exclusivamente, a


narrativas que exploram o fluxo da consciência dos personagens e que por isso ganham um
tom mais introspectivo, psicológico. Além disso, nestes casos notamos também certa
dominância do tempo psicológico.

Nas próximas unidades serão feitas análises de textos narrativos de diferentes espécies
ou gêneros: o conto, o romance e a crônica. Essas análises terão como base os elementos
discutidos neste material, mas é muito importante que você amplie seus conhecimentos por
meio da leitura de obras da bibliografia que tratam mais especificamente de cada elemento da
narrativa.

Para que você tenha um melhor suporte teórico, faremos considerações breve sobre
dois tipos de narrativas bastante presentes na literatura, o conto e o romance.

O Conto: Antiguidade e Contemporaneidade

O conto talvez seja a mais antiga forma de expressão literária. Etimologicamente, a


palavra vem do latim computus, cujo sentido original era cálculo, cômputo, conta, e só mais
tarde adquiriu a acepção de narrar, no sentido de enumerar os detalhes de um acontecimento,
relatar.

Podemos dizer que os textos bíblicos ou ainda os vários episódios da epopeia homérica
são conjuntos de contos, o que reforça a antiguidade desse gênero. Há ainda os que
acreditam que os contos egípcios são os mais antigos, tendo aparecido por volta de 4000 anos
antes de Cristo.

Na obra A arte do conto, Roberto Magalhães Júnior fornece um conceito abrangente


dessa forma de ficção literária:

O conto é uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia


dos personagens nem nas motivações de suas ações. Ao contrário, procura
explicar aquela psicologia e essas motivações pela conduta dos próprios
personagens. A linha do conto é horizontal: sua brevidade não permitiria que
tivesse um sentido menos superficial.
(MAGALHÃES JÚNIOR, 1972, p. 10-11).

Destacam-se as noções dede linearidade; ausência de profundidade psicológica ou


motivacional; prioridade dada à ação; horizontalidade; e brevidade.
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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Devemos considerar, no entanto, que o conto não é linear, horizontal e superficial


porque é breve, mas a brevidade que se exige do contista determina aquelas qualidades. Por
linearidade narrativa entende-se um tipo de construção clara, simples e direta. A
superficialidade de que se fala não deve ser interpretada de forma pejorativa, mas como uma
necessidade que o autor tem de se ajustar à extensão reduzida do gênero. Em um romance, o
escritor tem espaço para desenvolver verticalmente cada personagem, os seus aspectos
psicológicos, analisar cada situação e as suas motivações. No conto, o autor deve traçar, em
pinceladas rápidas e precisas, os elementos mais significativos de cada elemento estrutural:
tempo, espaço, personagem e ação. Isso torna a linguagem geralmente mais densa,
plurissignificativa, conotativa, aproximando-se da linguagem poética.

No conto, nenhum detalhe pode ser desprezado, como afirmaram Edgar Alan Poe
(1809-1849), escritor norte-americano, e Anton Thecov (1860-1904), escritor russo. Para Poe,
“Em toda composição (a ser considerada conto) não deverá haver uma palavra escrita cuja
tendência, direta ou indireta, não tenha um desígnio pré-estabelecido”. (apud LIMA,1958,
passim). Para Tchecov, “Uma história pode não ter princípio nem fim, mas se os autores
descreverem na primeira página um fuzil pendurado na parede, esse fuzil, mais cedo ou mais
tarde, terá de disparar”.(apud LIMA,1958, passim). Esse dado reforça o aspecto poético e ao
mesmo tempo lúdico da obra, que deve prender o interesse do leitor.

Há, ainda, o momento privilegiado que o conto apresenta (MOISÉS,1983, p.21).


Trata-se, esse momento, de um acontecimento único, para o qual o passado e o futuro têm
importância menor. O passado funciona como preparação para esse fato, enquanto que o
futuro se torna previsível ou conhecido, seja porque encerrado (morte ou solução
correspondente), “seja porque os atos a praticar foram determinados por aquele hiato
dramático, seja porque os figurantes dão a impressão de regressar ao primitivo
anonimato”(MOISÉS,1983, p.21).

Essa fração ou núcleo dramático único determina a extensão menor do conto e


também condiciona os outros elementos estruturais, pois em torno da unidade dramática,
giram:

− A unidade de espaço: no conto há poucos elementos espaciais, em comparação com o


romance, por exemplo;

− A unidade de tempo: a brevidade faz com que a história se esgote em um tempo


relativamente curto. Caso haja a necessidade de referências ao passado, isto é feito de
forma rápida, ocupando poucos parágrafos iniciais, pois ao narrador interessa um
acontecimento específico;

− O número reduzido de personagens: fato decorrente do núcleo único de ação em que


se concentra a história;

− A pouca descrição, narração e dissertação: estes procedimentos tendem a anular-se,


embora existam no conto, pois a brevidade propicia o predomínio do diálogo.
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Sendo a mais antiga forma de narração, o conto é, paradoxalmente, uma das mais
prestigiadas na contemporaneidade. Isso talvez tenha ligação com sua brevidade, adequada a
uma sociedade em que tempo significa dinheiro. Também a capacidade de adaptação desse
tipo de narrativa aos temas e motivos contemporâneos garante seu sucesso entre os leitores.

Alfredo Bosi analisa a questão do conto contemporâneo de modo bastante elucidativo:

O conto cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea. Posto entre


as exigências da narração realista, os apelos da fantasia e as seduções do jogo
verbal, ele tem assumido formas de surpreendente variedade. Ora é o quase-
documento folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama
do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim,
grafia brilhante e preciosa voltada às festas da linguagem.
(...)
Proteiforme, o conto não só consegue abraçar a temática toda do romance,
como põe em jogo os princípios de composição que regem a escrita moderna
em busca do texto sintético e do convívio de tons, gêneros e
significados”(BOSI,1983,p.7)

Apontado o caráter proteiforme, ou seja, a capacidade de mudar de forma que o conto


tem, bem como seu caráter estético e democrático, o crítico chama a atenção para as
qualidades que asseguram a longevidade desse tipo de narrativa.

O Romance

O romance é uma composição em prosa, narrativa de contornos elásticos que permite


ao escritor exprimir uma gama bastante ampla da realidade por meio do retrato da vida em
sociedade. Mais que entretenimento, o romance permite que se apresente um amplo painel
das experiências humanas que o transformam numa espécie de síntese da totalidade do
mundo que se oferece ao leitor de forma que ele possa conhecer a vida de um ângulo
privilegiado.

O romance visto como forma de conhecimento talvez explique porque o gênero se


transformou, a partir do século XIX, em uma das mais importante e complexa forma de
expressão literária dos tempos modernos. Do século XVIII até hoje, passou de mera narrativa
de entretenimento a estudo da alma e das relações sociais, a veículo de reflexões filosóficas, a
reportagem, a testemunho polêmico. O romancista, antes pouco considerado, passou a ser
privilegiado e dispor de um vasto público exercendo uma poderosa influência em seus leitores.

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Estruturalmente, o romance caracteriza-se pela pluralidade de ação. Nesse gênero


temos vários conflitos ou dramas ocorrendo simultaneamente. Não há limite definido para a
quantidade deles, mas o romancista elege um ou alguns apenas como os mais importantes e
em torno deles os outros se articulam. Quando esses conflitos se resolvem, o romance termina,
tornando-se, nesse sentido, uma obra fechada. O romance simula uma rede complexa de
relações.
No que diz respeito ao espaço, o romance oferece uma pluralidade geográfica. Como
nasceu vinculado à burguesia, seu espaço típico é o urbano, mas há os romances
regionalistas, que não deixam de refletir as estruturas sociais burguesas. O espaço assume uma
importância dramática muito grande, funcionando como extensão dos personagens ou como
concretização das tendências psicológicas deles.
O tempo no romance costuma ir além dos limites cronológicos da história. O ficcionista
transforma-se em senhor absoluto do tempo e pode acompanhar os personagens durante toda
a existência deles. Para isso, os dois tipos fundamentais de tempo, já estudados na teoria da
narrativa,podem ser considerados: o histórico (ou cronológico) e o psicológico (ou metafísico).
Os personagens do romance variam em número, mas tendem a ser apresentados em
um número razoável, uma vez que o gênero trata do conflito em sociedade.
No que diz respeito especificamente ao romance e à personagem de ficção, é a obra
Teoria do Romance, de GyörgiLuckács, publicada em 1920, que relaciona o gênero com a
concepção de mundo burguesa, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de confronto
entre herói problemático e o mundo do conformismo e das convenções. O herói
problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em comunhão e em
oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a tragédia
clássica e a poesia lírica, de um lado, e a epopeia e o conto, de outro.
Ainda na década de 1920, outro crítico empenha-se em esclarecer alguns aspectos
diretamente ligados ao romance e à personagem de ficção. Mais precisamente em 1927,
aparece o livro Aspectos do Romance, de E. M. Forster, romancista e crítico inglês que,
apesar de todas as suas outras obras, imortalizou-se pela sua classificação de personagens em
flat – plana, tipificada, sem profundidade psicológica – e round – redonda, complexa,
multidimensional. Conforme estudamos no tópico sobre personagens, o romance, pela sua
extensão, tem possibilidade de desenvolver caracteres redondas, mais complexas, embora não
dispense o tratamento de figuras planas, aquelas que são construídas ao redor de uma única
ideia ou qualidade.
Quanto aos recursos expressivos, o romance apresenta diversidade e
complexidade.Preocupado em destacar as especificidades do romance como gênero dotado
de originalidade estilística, Mikhail Bakhtin que se dedicou ao estudo do gênero, chamou-o de
polifônico e dialógico, porque se decompõe em unidades estilísticas que tais como: a narrativa
direta do ator, narrativa tradicional oral, cartas, diários, discursos dos personagens entre outras
(BAKHTIN, 1998, p. 74).

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Bakhtin afirma ainda que a originalidade do gênero romanesco repousa na
combinação destas unidades, ao mesmo tempo subordinadas umas das outras, mas
relativamente independentes:

O estilo do romance é uma combinação de estilos; sua linguagem é um


sistema de “línguas”.(...) O romance é uma diversidade social de linguagens
organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais. (...) E é
graças a este plurilinguismo social e ao crescimento em seu solo de vozes
diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo o seu mundo
objetal, semântico, figurativo e expressivo. O discurso do autor, os discursos
dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das personagens não
passam de unidades básicas de composição com a ajuda das quais o
plurilinguismo se introduz no romance. (BAKHTIN, 1998, pp. 74-75)

Dessa forma, o romance caracteriza-se pela dialogicidade. Comparando-o com os


outros gêneros poéticos, Bakhtin afirma que gêneros como a epopeia seriam centralizadores,
enquanto o romance apresenta o jogo vivo das ruas .Ao confrontar o discurso na poesia com
o discurso no romance, Bakhtin afirma que nos gêneros poéticos não há o que chama de
dialogização, pois “o discurso satisfaz a si mesmo e não admite enunciações de outrem fora
dos seus limites (1998, p. 93) enquanto no romance:

O prosador-romancista(...) acolhe em suas obras diferentes falas e diferentes


linguagens da língua literária e extraliterária, sem que esta venha a ser
enfraquecida e contribuindo até mesmo para que ela se torne mais profunda
(pois isto contribui para sua tomada de consciência e individualização). Nesta
estratificação da linguagem, na sua diversidade de línguas e mesmo na sua
diversidade de vozes, ele também constrói o seu estilo, mantendo a unidade
da sua personalidade de criador e a unidade do seu estilo (...)
O prosador romancista não elimina as intenções alheias da língua feita de
diferentes linguagens de suas obras, não destrói as perspectivas sócio-
ideológicas(...) [mas] utiliza-se de discursos já povoados pelas intenções sociais
de outrem, obrigando-os a servir ao seu segundo senhor. (BAKHTIN, 1998, p.
104-105)

Lucien Goldmann, por sua vez, propõe uma abordagem do romance moderno
baseado na tensão entre o escritor e a sociedade e na pressuposição da existência de
homologias entre a estrutura da obra literária e a estrutura social. O dado inicial do qual parte
é a tensão entre o escritor e a sociedade.

Em face da sociedade burguesa, o romancista tende a criar a figura do herói


problemático em tensão com as estruturas degradadas vigentes, ou seja, estruturas que
existem não correspondem aos valores que a sociedade prega: liberdade, justiça, amor,
igualdade.A partir daí, Goldmann estabelece uma tipologia do romance de acordo com a

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

atitude do herói, que pode empreender a busca de valores pessoais que subordinem a si a
hostilidade do meio; pode fechar-se na memória ou análise dos próprios estados de alma; ou
pode autolimitar-se e aprender a viver com o que o teórico denomina madura virilidade no
mundo difícil em que foi lançado.

Goldmann acredita, assim como Georg Lukács, outro grande teórico do gênero que o
romance, cultuado pela burguesia, seria a história de uma investigação degradada
(denominada demoníaca): trata-se da busca por valores autênticos em um mundo também
degradado, mas em um nível diversamente adiantado e de modo diferente. Assim, a
característica primordial do romance seria a ruptura insuperável entre o herói e o mundo,
ambos degradados.Como afirma Lucien Goldmann:

(...) a comunidade do herói e do mundo resulta, pois, do fato de ambos


estarem degradados em relação aos valores autênticos (...) O herói demoníaco
do romance é um louco ou um criminoso, em todo o caso,(...), um
personagem problemático cuja busca (...) de valores autênticos num mundo
de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário
que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamaram
“romance". (1976, p.9).

Assim, este novo herói é fruto da sociedade individualista que se estabeleceu apósa
Revolução Burguesa. O cerne da busca do herói problemático são os valoresautênticos, em
um mundo composto por conformismo e convenção. Você pode encontrar uma excelente
proposta de abordagem do romance brasileiro sob a perspectiva da teoria de Goldmann no
livro do prof. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, no capítulo sobre
Tendências Contemporâneas da Literatura Brasileira em “As Trilhas do romance: uma
hipótese de trabalho” (1997, p 440-445).

Como se percebe por estas observações que podem ser complementadas pela leitura
das obras citadas, o romance está vinculado a um momento histórico e, assim como as formas
clássicas que desapareceram com o mundo clássico, pode se transformar caso a sociedade
burguesa também se transforme. Discute-se, inclusive, a pertinência de se atribuir às narrativas
contemporâneas, pelo menos a grande parte delas, o rótulo de romance. De qualquer modo,
trata-se de um gênero que permitiu a produção de obras que serão eternas na literatura:
Madame Bovary, de Gustave Flaubert; O Vermelho e o negro, de Stendhal; Crime de
Castigo, de Fiódor Dostoiévski; D. Casmurro, de Machado de Assis entre outras.

A bibliografia a seguir, uma mescla de obras clássicas e atuais, embora parcial, abrange
as grandes questões sobre teoria da narrativa, o conto e o romance e pode levá-lo a outros
autores, propiciar um aprofundamento no assunto e fornecer instrumentos teóricos para
análises de textos ficcionais.

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Conclusão

Para Pensar
Ao ler o conteúdo teórico, você observou que foram apresentados os elementos
estruturais da narrativa, bem como características dos gêneros conto, crônica e romance.
Vamos pensar, agora, como este assunto pode ser inserido no seu cotidiano e no de seus
futuros alunos?

Vimos, em nosso conteúdo teórico, o microconto, como uma espécie relativamente


nova a que pertence o texto narrativo e a concisão é o elemento-chave da composição, pois
força o locutor a carregar cada palavra de significado de forma a suprir as lacunas
tradicionalmente preenchidas em textos mais longos com o uso da descrição, do diálogo e da
dissertação e por isso pede maior cooperação do leitor.

Você pode pedir para seus alunos escolherem uma notícia de jornal e orientá-los a
produzirem um microconto a partir dessa notícia. Trabalhe os elementos estruturais da
narrativa no momento em que estiver orientando-os na elaboração desse texto narrativo.
Assim, os alunos vão perceber a diferença entre o texto literário e o não literário. Para a
elaboração dessa atividade, você pode consultar os sites a seguir:

SEABRA, C. Microconto.

Disponível em http://microcontosdocarlos.blogspot.com.br Acesso em 29-01-2013.

______. Microcontos.
Disponível em http://cseabra.wordpress.com/2010/02/25/microcontos-literatura-
minima. Acesso em 29-01-2013.

______. Microcontos e educação.


Disponível em http://cseabra.wordpress.com/2011/06/11/entrevista-com-carlos-
seabra-sobre-microcontos. Acesso em 29-01-2013.

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Unidade: Teoria da Narrativa: Conto, Crônica e Romance

Material Complementar

Teoria da Narrativa:

Para que você possa entender melhor o romance sob a perspectiva Bakhtiniana e
compreender melhor a importância que esse filósofo da linguagem confere ao gênero, leia o
texto “A Teoria do romance e a análise estético cultural de M. Bakhtin” de Irene A. Machado,
publicado na Revista USP.

Disponível no endereço: http://www.usp.br/revistausp/05/19-irene.pdf

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Referências

Sobre a teoria da narrativa:

BRAIT, Beth. A Personagem. 8ª ed. São Paulo: Ática, 2006.


CANDIDO, Antonio et al. A Personagem de ficção. 10ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1987.
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O Foco narrativo. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2002.
MENDILOW, A.A. O Tempo no romance. Trad. Flávio Wolf. Porto Alegre: Globo, 1972.
MESQUITA, Samira Nahid. O Enredo. São Paulo: Ática, 1987.
MOISÉS, Massaud. A Criação Literária – prosa. São Paulo: Cultrix,1983
______. Dicionário de Termos Literários. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 1982.
NUNES, Benedito. O Tempo na narrativa. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ática, 1998.
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, 1982.

Sobre o conto:

BOSI, Alfredo. O Conto brasileiro contemporâneo. São Paulo:Cultrix, 1978.


GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. São Paulo:Ática, 1988.
LIMA, Hermann. O Conto.Salvador:Universidade Federal da Bahia, 1958.
MAGALHÃES JÚNIOR, R.A arte do conto. Rio de Janeiro: Bloch, 1972.
MOISÉS, Massaud. A Criação literária: prosa. São Paulo:Cultrix, 1983.

Sobreo romance:

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad.


BERNADINI, Aurora F. et al. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed. São Paulo:Cultrix, 1997.
FORSTER, E. M. Aspectos do romance. 2ª ed. Trad. Maria Helena Martins. Porto Alegre:
Globo, 1974.
GOLDMANN, Lucien. A Sociologia do romance. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1976.

Outras fontes de pesquisa:

E-Dicionário de Termos Literários. Coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9,


<http://www.edtl.com.pt>, consultado em 04-02-2012.

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