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N° 20 | Setembro de 2013 U rdimento

Notas sobre cenografia. Dispositivos


cênicos espetaculares em espetáculos do
século XVII e na contemporaneidade1
Evelyn Furquim Werneck Lima2

Resumo

A hipótese principal deste artigo é que – desde a época da primazia do


texto dramatúrgico sobre a cena – o teatro recorreu aos efeitos visuais
espetaculares que provocavam a excitação de todos os sentidos, em
especial devido ao desenvolvimento de teorias e práticas cientícas que
se sucederam desde o Renascimento, fazendo migrar das ciências para
as artes cênicas inúmeros recursos técnicos. No sentido de comprovar
a espetacularidade destas encenações utilizamos como metodologia de
pesquisa a análise da dramaturgia de três peças de Shakespeare e três
de Molière. Paralelamente constatamos que “o espetacular” continua
bem vivo, e que tem sido a tônica de encenações contemporâneas.

Palavras-chave: efeitos visuais; cenograa; espetacularidade

Abstract

The main hypothesis of this paper is that – since the time of the primacy
of the dramaturgic text over the scene performance– theatre enlisted
the spectacular visual effects that provoked excitement to every sense,
in particular due to the development of theories and scientic practices
that happened since the Renaissance, causing the migration of technical
resources from sciences to many scenic arts. To check the spectacularity of
these performances we used as research methodology the analysis of three
Shakespeare’s plays and three plays by Moliere as well as the analysis of
some iconography of the period. At the same time we noticed that “the
spectacular” remains alive and well, and that it has been the main object of
contemporary performances.

Keywords: visual effects; stage design; spectacularity

1 Este artigo é decorrente da pesquisa apoiada pelo CNPq e pela FAPERJ.

2 Doutora em História Social pela UFRJ/EHESS (1997). Pós-doutora pela Universidade de Paris X e Estágio Senior no Collège de France
(2011). Atualmente é professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de Estu-
dos do Espaço Teatral e Memória Urbana. É pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. É membro titular do Conselho Municipal do Patrimônio
Cultural e do Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone. Autora dos livros premiados Arquitetura do Espetáculo
(2000) e Avenida Presidente Vargas: uma drástica Cirurgia (1990 e 1995). Publicou Das vanguardas à tradição (2006) e organizou Espaço
e Teatro (2008), Espaço e Cidade (2004 e 2007) e Cultura, Patrimônio e Habitação (2004). Publicou em co-autoria Arquitetura e Teatro
(2010) e Entre arquiteturas e Cenograas. Editora especial da revista O Percevejo n. 10, e das revistas opercevejonline 2009.2, 2012.1
e 2012.2.

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Introdução impressionar o público teatral por meio


de máquinas, alçapões, elementos cênicos
As diferentes possibilidades da pas- de intensa visibilidade que conduziam ao
sagem de um texto dramatúrgico para a sonho (Berthold, 2006, p.335). Elementos
encenação moderna e contemporânea fo- usados como materiais cênicos formam
ram discutidas com ecácia pelo teórico sistemas signicantes como cenários, -
Patrice Pavis no capítulo “L’enfantement gurino, iluminação, rapidez de execução,
de la scène” do livro Le théâtre au croise- conguração espacial, e coreograa, es-
ment des cultures (1990). Por outro lado, tabelecendo a atmosfera de sonho ou de
o historiador Roger Chartier - enfocando estranhamento (Pavis, 2003, p. 161).
autores do século XVII-, analisa espetácu- Aleotti desenvolveu um sistema que
los que foram apresentados em diferentes diferia muito das primeiras cenograas
lugares teatrais e para públicos diversos, renascentistas e o aplicou no Teatro Far-
gerando textos só posteriormente publi- nese (1618-1628) construído para o Duque
cados, às vezes por editores piratas que de Parma já dotado de proscênio e de sala
haviam assistido à peça encenada (Char- com arquibancadas em “U”, e, pouco de-
tier, 2002). Deste modo, não era surpresa pois, com a divulgação do livro Pratica de
no Seicento, que a encenação precedesse à fabricar Scene e Machine ne’ Teatri, de Sab-
publicação. Os textos das peças, os fron- battini, em 1638, novas propostas foram
tispícios das edições e as gravuras dispo- introduzidas na cenograa, sempre no
níveis foram aqui analisados como fontes intuito de propiciar o “espetacular” em
primárias para dar a ver o que podem ter cena. Simultaneamente, Torelli se trans-
sido as organizações cenográcas funda- formou no “grande mágico” do teatro ita-
mentadas no espetacular vigentes no sé- liano, introduzindo visões que causavam
culo XVII. A hipótese principal deste ar- maior profundidade ao palco. Outros en-
tigo é que– desde a época da primazia do genheiros do Seicento criaram engenhos
texto dramatúrgico sobre a cena – o teatro tais como a utilização de roldanas, ala-
recorreu aos efeitos visuais espetaculares vancas, painéis deslizantes na cenograa,
que provocavam a excitação de todos os aumentando a capacidade de ilusionismo
sentidos, em especial devido ao desenvol- nos palcos.3
vimento de teorias e práticas cientícas Entretanto, esta espetacularidade não
que se sucederam desde o Renascimento, é privilégio do teatro dos séculos XVI e
fazendo migrar das ciências para as artes XVII, pois o espetacular ainda pode ser
cênicas inúmeros recursos técnicos. percebido nas peças contemporâneas.
Vale lembrar que a Itália, que havia Este estudo visa a comprovar duas situa-
assumido a hegemonia da história cultu- ções da história da cultura, em palcos que
ral desde o Quattrocento, sobre os pressu- não seguem especicamente o modelo
postos da antiguidade clássica, foi a loco- italiano, obras nas quais o “espetacular”
motiva de intensas atividades artísticas assumiu um caráter impactante, ainda
e recuperou as trocas de sociabilidade que na primeira situação os depoimen-
tanto nos palácios da aristocracia, quanto tos presenciais sejam bastante reduzidos
nas praças públicas. Explorava-se naque- como fontes históricas. A segunda situ-
le momento todas as possibilidades da ação busca problematizar as encenações
arte e da técnica para produzir uma ma- contemporâneas que prescindem dos
quinaria teatral sosticada que permitis- palcos italianos, e portanto da caixa cêni-
se criar nos palcos os efeitos e aparições ca de milagres e ilusionismos, mas ainda
propostos pela dramaturgia da época. que fora do edifício teatral ou dentro de
Nos séculos XVI e XVII, coube aos enge- uma antiga forma, como a elisabetana re-
nheiros italianos Giovanni Battista Ale-
otti, Nicola Sabbattini e Giacomo Torelli, 3 Aleotti trabalhou inicialmente na corte de Ferrara, Sabbattini em Pesaro e Torelli em
Veneza, porém seus trabalhos foram seguidos en todo o continente europeu. (Berthold.
entre outros, criar formas variáveis de Op. Cit., 2006, p.335).

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construída, continuam a utilizar o “espe- fundamentadas em unidades elementares


tacular” de diversas maneiras, inclusive que não são nem signicações nem seres,
explorando a universalidade de certos mas ações relativas a situações conituais
conceitos locais. daquela sociedade. Esta leitura perspi-
Para investigar a primeira situação, caz permitiria reconhecer nos textos dra-
ainda nos séculos XVI e XVII, recorremos matúrgicos os discursos estratégicos do
às didascálias dos textos, e aos poucos in- povo. (Certeau, 1994).
dícios iconográcos disponíveis para bus- O “espetacular” é antes de tudo uma
car comprovar esta espetacularidade que forma de entretenimento, e, como tal,
migra das páginas para o espaço cênico deve atender às expectativas do público,
ou vice-versa. Naquele período histórico seja ele popular ou aristocrático. Segundo
a espetacularização era parte integrante Pascale Drouet, no contexto aristocráti-
do espetáculo teatral, elemento esperado co, o espectacular em geral está ligado às
pela audiência fosse pelos textos drama- questões políticas e ao aparato hegemôni-
túrgicos, repletos de referências imagéti- co; a economia do espetacular não pode
cas, fosse pelos efeitos cenográcos das ser disassociada da ideologia dominante
“pieces à machines”. Mas, é sobretudo na ( Drouet, 2009, p. IX). No contexto popu-
contemporaneidade que temos a presença lar, entendemos que haja no homem este
da espetacularização. Será que o homem desejo de maravilhar-se, mas também de
nunca teria mudado? Porque o público estranhamento diante do espetacular.
ainda se deixa embevecer pelos efeitos A tempestade de Shakespeare demons-
especiais ou interpretações transgresso- tra a maturidade do autor, que projeta
ras de determinadas peças clássicas? Que nas ações de Próspero os valores sociais
negociações e conitos contribuem para e morais da época. O projeto de vingança
conceituar o “espetacular”, mas também de Próspero leva-o a mergulhar nos es-
de torná-lo obra de impacto social? tudos bibliográcos de sua época, e o faz
apaixonar-se pelos livros de magia. Exila-
Efeitos espetaculares em Shakespeare do numa ilha desconhecida com sua lha
Como estudos de casos de espetacula- Miranda, Próspero vence a bruxa Sycorax
ridade investigamos a Tempestade, Romeu e adota o seu lho, Caliban, mistura de
e Julieta e Julius Cesar, de Shakespeare e monstro e homem. Apesar dos esforços
recorremos também ao Amphitryon, Psiché para vencer os elementos da ilha e criar
e Plaisirs à Isle enchantée, peças das quais sua lha e Caliban, não atinge muito su-
Molière foi o principal idealizador. Pos- cesso. A peça inicia-se justamente no mo-
teriormente trouxemos o problema para mento em que ele coloca seu plano de
o nal do século XX, quando a espetacu- vingança em curso. Com a ajuda de Ariel,
laridade passa a existir não mais pelos espírito do bem, provoca uma perigosa
recursos técnicos, mas pela própria dra- tempestade sobre o navio no qual esta-
maturgia coletiva que permite criar e re- vam Antônio, Sebastião e Alonso, que o
criar efeitos pela própria palavra e pelos haviam traído. Os náufragos conseguem
espaços utilizados de maneira inusitada. atingir a ilha e passam a ser encantados
De que forma se apresenta o espetacular? até Próspero revelar as razões da situação.
Quais as táticas que se escondem sob as Após conversar longamente com Ariel
estratégias políticas e ideológicas de cada sobre as possibilidades das falhas huma-
nova apresentação? nas e de como o amor poderia melhorar a
Identicamos que, em geral, nas nar- vida para homens fracos, o protagonista
rativas das peças de Shakespeare pode-se traído perdoa os ofensores, conrmando
aplicar a teoria certeaudiana de que seus a máxima de que “tudo está bem quan-
contos apresentam análises de acurada do termina bem”. O que se deduz de A
percepção das combinações de táticas Tempestade é a natureza híbrida de Cali-

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ban, as metamorfoses fantásticas de Ariel, na perspectiva, procedimento gráco re-


a mágica introdução de Próspero repleta descoberto por Brunelleschi no Quattro-
de efeitos espetaculares. Na cena nal a cento.
espetacularidade se acentua: Ariel entra O “espetacular” se apresenta pelos
invisível e uma música estranha envolve efeitos cênicos da tempestade em cena e
Próspero e, em meio a trovões e raios, um pelas imagens utuantes que foram ins-
grande estrondo persegue as ninfas que piradas na Eneida de Vigílio, entretanto,
dançam. A peça denota uma encenação a ilha mágica e os espíritos presentes na
repleta de elementos fantásticos e oníri- peça podem ser alusivos a um fato re-
cos, quase surrealistas, que comprovam o almente real: o naufrágio de um navio
viès maneirista de Shakespeare. chamado The Sea Adventurer, ocorrido no
Entre as análises recentemente publi- Caribe em 16095. Como arma Certeau,
cadas de A Tempestade destacamos a de contos e lendas parecem ter o mesmo pa-
John Demarey, que desenvolve um inte- pel. Eles se desdobram, tal como o jogo,
resse pela tradição das Masques, muito co- num espaço especial e isolado das compe-
muns nos teatros de Corte. Pelo seu argu- tições cotidianas, o espaço do maravilho-
mento, esta peça, exibida em première no so, do passado, das origens. “Ali podem
Whitehall, absorveu a estrutura das Mas- então expor-se, vestidos como deuses ou
carades, conforme consta do texto drama- heróis, os modelos dos gestos bons ou
túrgico publicado no First Folio. Para este mal, utilizáveis a cada dia. Ai se narram
autor, qualquer análise da peça estaria in- lances, golpes, não verdades”(Certeau,
completa sem se levar em conta o contex- 1994, p.84).
to de sua produção inicial, num teatro da O que se percebe investigando a dra-
corte (Demarey, 1998, p.174). O estudio- maturgia nas cenas shakespearianas é que
so acredita que a peça seria um trabalho quase todos os personagens são amál-
já de transição entre o drama encenado e gamas de diferentes modelos recriados6.
as futuras adaptações desta obra como a Os diários de John Evelyn e de Samuel
de Willian Davenant, que encenou a Tem- Pepys esclarecem sobre algumas peças
pestade em 1670 já nos moldes do drama encenadas nos anos 1660 e 1670. Não se
espetacular do período da Restauração. pode dizer que todos os personagens se-
Chartier também se refere à companhia jam originais, pois muitos foram inspira-
de Sir William Davenant ter recebido o dos em Horacio, Plauto ou Terêncio, mas
monopólio de Hamlet e de oito peças de são repletos de simbolismos e de novas
Shakespeare que ele adaptou para mon- interpretações, foram recepcionados com
tagens que realizou em Lincoln Inn’s sucesso pelo público e reapropriados por
Field, e em 1671 no seu novo teatro em encenadores até os nossos dias.
Dorset Gardens (Chartier, 2002, p. 84). A Em Julius Cesar, o maravilhoso é a res-
Tempestade constitui um apanhado de má- posta apropriada aos espetaculares jogos
gicas, rituais e temas contraditórios que de artifício que tiveram lugar na noite de
possibilitam um espetáculo contínuo no abertura do The Globe, quando efeitos de
palco, porém que não encerra uma ver- grandes tempestades foram usados na
dadeira história fechada.4 Na verdade a cena da morte de Cesar na abertura do
dramaturgia e as didascálias remetem às public theatre em junho de 1599. O edifício
Masques, escritas por Ben Jonson, porém teatral, embora sempre descrito como de
valorizadas pelos magnícos cenários uma arquitetura rudimentar, estava pre-
de Inigo Jones, que trouxe da Itália uma
nova concepção de cenograa com base
5 Ver relato do editor in Shakespeare, W. The Tempest. London: Penguin Books Ltd, 1995,
p. 15-16.

4 Demarey seguiu como fonte primária o First Folio de 1623 e um dos pontos que aponta 6 O crítico mais antigo que os estudiosos localizaram foi Samuel Pepys, que escreveu um
em sua obra é de que The Tempest foi manipulada pelos editores que a consideraram diário entre 1660 e 1769, no qual, além do testemunho de história social ele também
uma comedy e a dividiram em cinco atos, fato que ele nao considera ter sido a proposta descreve sua impressóes sobre o Romeu e Julieta que assistiu em 1662 (http://www.
de Shakespeare . (Demarey, Op. Cit.). pepysdiary.com/p/5445.php)

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parado para a produção de efeitos visu- Shakespeare8.


ais e sonoros. Situado fora da jurisdição As primeiras edições de Shakespeare
da City de Londres, The Globe cava na continham poucas didascálias para eluci-
margem esquerda do Tamisa, no distrito dar a cena. Mas as próprias palavras são
de Southwark, bairro ainda rural naquela tão evocativas, que permitem reconstruir
época, que apesar de reunir arenas de bri- cenários a cada minuto. É por meio das
gas de ursos e tavernas, abrigou oito tea- generalidades descritas pelos dramatur-
tros descobertos que recebiam uma popu- gos que entendemos o tratamento cênico
lação heterogênea (Lima, 2010). característico da cena elisabetana: por-
Há relatos de Steve Sohmer sobre a es- tas, espaço de descoberta, galeria sobre
tréia desta peça com a nalidade de acen- a cena, o alçapão e o “heavens”. Mas há
tuar a capacidade do novo teatro para a registros de que as produções teatrais no
espetacularidade7. Superstições e o sobre- teatro elisabetano proporcionavam ao
natural são relevantes nesta peça. A este seu público um verdadeiro espetáculo de
respeito, destacam-se as instruções de Ce- efeitos especiais. Tais efeitos levavam a
sar a sua mulher para cuidar-se dos Idos platéia ao delírio, principalmente em ce-
de Março, o terror criado pela tempestade nas de guerra. Para que se alcançasse um
cuja verdadeira intenção era impressio- sistema de efeito especial perfeito para as
nar os ouvidos da platéia, mas também cenas de ação, fazia-se uso de fumaça, de
de todos os freqüentadores dos demais fogo e de fogos de artifício. Os atores po-
teatros dos empresários rivais situados na diam encenar personagens suspensos por
circunvizinhança de Southwark. Há que uma corda em sistemas de roldanas, caso
lembrar que a abertura do novo edifício houvesse algum ato que necessitasse de
teatral levou a população londrina a uma tal recurso.
grande expectativa e há indícios de que Na peça Romeu e Julieta, Romeu e
Shakespeare usou tempestades e batalhas Mercúrio estão do lado da casa dos Capu-
em cena da maneira como eram descritas letos, decidindo se entram ou não no baile
nas narrativas daquele período. mascarado. Sabe-se que é noite, devido à
Mas não foi apenas no interior dos te- referência às tochas que iluminavam os
atros que o Maneirismo acentuou o cará- bailes de máscara. Pela leitura do texto
ter espetacular. Coreógrafos e arquitetos dramatúrgico percebe-se que há um salão
foram estimulados a prepararem as ci- com mesas e cadeiras, as primeiras serão
dades para os cortejos reais e certamente empilhadas pelos serviçais e o antrião
criarem objetos e efeitos especiais para a da festa junto com o primo da família Ca-
cena. A expansão do Maneirismo e sua te- puleto sentam nas cadeiras. Existem mui-
atralidade foi exuberante. Giorgio Vasa- tas velas ou tochas acesas que deverão ser
ri - arquiteto e critico de arte italiano do apagadas por causa do calor, o ambiente
século XVII relata que quando Charles V deve ser grande porém fechado. O bai-
foi à Mântua, o também arquiteto Giulio le que acontece na casa dos Capuletos –
Romano, por ordem do duque, executou quando Romeu e seus amigos penetram
muitos arcos do triunfo, cenários para na festa é representado como um baile de
comedias e outras peças. Segundo este máscaras com um suntuoso espetáculo de
autor, Giulio era “um perfeito cenógrafo música, gurino e dança, na melhor tradi-
para festas e torneios que exitavam não ção das Masques9. O elemento espetacular
só o imperador mas todos os presentes”. está no próprio texto dramatúrgico. Está
É possível que tenha participado de al-
guns efeitos especiais nas montagens de
8 Ver Josée Nuyts-Giornal. La virtuosité shakespearienne et le tour de force maniéris-
te dans le Conte d’hiver. Disponible en http://shakespeare.edel.univ-poitiers.fr/index.
php?id=142, accedé en 02 nov. 2011.

9 Muito comum no tempo elisabetano a mascarada era um baile iniciado por um grupo de
7 Ver Steve Sohmer. Shakespeare’s Mystery Play: The Opening of the Globe Theatre convidados devidamente mascarados que encenavam pantomimas, farsas, de acordo
1599. Manchester: Manchester University Press, 1999. com um tema especíco. Posteriomente todos os presentes eram convidados a dançar.

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também presente no uso fatal do veneno se prólogo, imagina-se Mercúrio, sobre


como bebida e das mortes espetaculares uma nuvem; e a Noite, em uma carrua-
de Romeu e Julieta, que imprimem nos gem puxada por dois cavalos. O frontis-
olhos e ouvidos dos espectadores um sen- pício da edição de 1682 permite realmen-
timento de dor e compaixão. te observar Mercúrio sobre uma nuvem,
Ao analisar alguns textos de Shakes- montando uma enorme ave, e os três de-
peare, Pascale Douet arma que o espe- mais personagens em terra diante de uma
tacular está “intimamente associado seja edicação com características barrocas.
com o espanto despertado por questões Após ser apresentada ao grande público
inverossímeis ou com o excesso por ra- no Palais Royal, ainda em janeiro Moliè-
zões de entretenimento. Ele quase magne- re apresentou a peça à corte na Salle des
ticamente solicita os olhos e — no início Machines da Tuilleries. Vale ressaltar que
dos tempos modernos — as orelhas, com como uma “pièce à machines”, a encena-
uma intensidade propícia às extensões do ção de Amphitryon nos teatros reais fez
imaginário, mas também às reações críti- concorrência ao Teatro do Marais que era
cas” (Drouet, 2009, p. X).10 especializado neste gênero de espetácu-
lo (Lima, 2012). Analisando esta peça de
Analisando as didascálias e as gravuras Molière, percebe-se que contos e lendas
de encenações de Molière e Corneille parecem ter o mesmo papel. Eles se des-
No que se refere aos efeitos espe- dobram, como o jogo, num espaço exce-
taculares no teatro francês do XVII, até tuado e isolado das competições cotidia-
meados do século XVII ainda vigorou o nas, o do maravilhoso, do passado, das
cenário múltiplo e compartimentado ins- origens. (Certeau, 1994, p. 84)
pirado no teatro medieval, que variava Maravilhar os espectadores era o ob-
os lugares da ação num mesmo palco, - jetivo comum às peças encenadas com a
cando os atores posicionados diante do ajuda de máquinas para substituir os ce-
cenário que correspondesse às didascá- nários e sustentar as divindades nas nu-
lias do texto. Por volta de 1645, no teatro vens. Este efeito do “espetacular” atraia
que acontecia nos Colégios Jesuítas sob o uma multidão de espectadores, não só
apoio do cardeal Mazarin, a estética se- pelos efeitos visuais porém por deseja-
guia a pluralidade de lugares e um pen- rem decifrar a engenharia escondida nas
dor para o “espetacular”, em detrimento caixas cênicas e até mesmo ao ar livre.
dos próprios textos. Muitas montagens Máquinas especiais para enriquecer os
do século XVII se utilizavam de máquinas cenários foram criadas inicialmente pe-
espetaculares, privilegiando o aparato da los italianos, entre eles Giacomo Torelli e
cena em relação ao texto dramatúrgico. Carlo Vigarani, engenheiros responsáveis
Maravilhar os espectadores era o objetivo pelos cenários da peça A inundação do Ti-
comum às peças encenadas com a ajuda bre (1638), concebida por Bernini. Esses
de maquinaria. mesmos engenheiros colaboraram com
Em 13 de janeiro de 1668, Molière vários espetáculos ocorridos em Paris.
montou Amphitryon pela primeira vez em Vigarani se destacou como maquinista
Paris no teatro do Palais-Royal, utilizado de Les Plaisirs de l’Île Enchantée, obra cole-
o “espetacular” no teatro edicado pelo tiva, representada entre 7 e 13 de maio de
Cardeal Richelieu. Nesta peça, Molière 1664 nos jardins do antigo Palácio de Ver-
começa com um diálogo entre Jupiter e sailles e inspirada no Orlando Furioso de
a noite e o cenário é a cidade de Tebas, Ariosto, com dispositivos espetaculares
diante da casa de Amphitryon. Já nes- e fogos de artifícios. Sabe-se que foi este
espetáculo que aprofundou as relações
10 “closely associated with either implausibility arousing amazement or excess for the entre Molière e o rei Luis XIV. O espetá-
sake of entertainment. It nearly magnetically solicits the eyes and—in early modern
times—ears with an intensity propitious to imaginary extensions, but also to critical re-
culo – desdobrando-se em vários dias de
action”. (Drouet, 2009, p. X).

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representação - foi idealizado por Moliè- de revelar quaisquer formas de conhe-


re, Corneille, Quinault et Lully. cimento, exceto talvez pelas engenhosas
Para se ter uma ideia do impacto deste criações dos cenógrafos. Este “espetacu-
espetáculo, recorre-se à carta do embaixa- lar” pode ser despertado pelas descober-
dor de Savoie que arma que: tas cientícas, pela capacidade artística
dos atores, por uma necessidade disfarça-
Mais pour la dernière scène, c’est da de reconhecimento do trabalho do au-
bien la chose la plus étonnante qui se tor. Segundo Drouet “o espetacular pode
puisse voir, car l’on voit tout en un ser usado como um chamariz e têm uma
instant paraître plus de trois cents per-
espécie de efeito de Gorgona, praticamen-
sonnes suspendues ou dans les nuages
ou dans une gloire, et cela fait la plus
te hipnotizando o olhar a um ponto de
belle symphonie du monde en violons, quase de anestesia»11. Até que ponto pode
théorbes, luths, clavecins hautbois, haver o objetivo de manipulação pelos
ûtes, trompettes et cymbales. efeitos especiais que podem atender aos
projetos individuais de um encenador ou
(http://www.toutmoliere.net/2008/ propósitos ideológicos e políticos, como
oeuvres/plaisirsile/index.html) tem ocorrido na sociedade do espetáculo
contemporânea?
Outra obra que se imortalizou pelo É fato que as cidades do século XXI,
seu teor espetacular foi Psychè, uma tra- sob a estratégia da competitividade para
gicomédia com números de ballet em cin- atrair capitais estrangeiros, desenvolver
co atos e escrita em versos, representada o turismo e galgar degraus nos rankings
na inauguração da Salle des Machines em de cosmopolitismo, têm se utilizado de
17 de janeiro de 1671, para a qual Moliè- muitos artifícios entre eles a construção
re foi o autor dos versos do prólogo, pri- de equipamentos culturais implantados
meiro ato e algumas cenas, tendo sido em áreas que os governantes desejam re-
responsável pelos principais efeitos cêni- vitalizar. E sempre com a assinatura dos
cos. Apesar de Corneille participar tam- maiores arquitetos globais. Estas cidades-
bém do espetáculo, há indícios de que a espetáculo tem se suplantado às obras
tragicomédia repleta de efeitos especiais sociais e de infraestrutura urbana, e, al-
teria feito concorrência às suas próprias gumas vezes se transformado em locais
peças. Mas Corneille também acreditava de turismo ou paraísos scais à custa de
no poder da cenograa, pois referindo- um uso articial da cultura. Paralelamen-
se à peça Andromède- tragédia « à machi- te, porém, com sentido além de estético,
nes »encomendada pelo Cardeal Mazari- também pragmático, temos vivenciado as
no e representada em 1650 no Teatro do obras dos artistas plásticos contemporâ-
Petit Bourbon, com cenários de Giuseppe neos que, com propostas políticas e ideo-
Torelli, armou que o espetacular nas ce- lógicas provocam ações espetaculares nas
nas suplantava a beleza de seus versos. cidades, como incendiar três quilômetros
Corneille justica a estética primorosa dos de trilhos de bonde em bairros históricos,
efeitos cênicos da montagem: «la beauté embrulhar enormes monumentos por vá-
de la représentation supplée au manque rios dias, fazer performances em chafarizes
de beaux vers […] parce que mon prin- públicos para que voltem a funcionar, en-
cipal but ici a été de satisfaire la vue par tre outras ações nas quais as encenações
l’éclat et la diversité du spectacle, et non que o público acompanha em barcos, cha-
pas de toucher l’esprit par la force du rai- mando a atenção para a poluição de rios,
sonnement, ou le cœur par la délicatesse baías e lagoas e para a péssima qualidade
des passions. […] cette pièce n’est que de vida nos centros urbanos. Estes espetá-
pour les yeux »(Corneille, 1862-1868 :v.10,
Tomo V, p. 243).
11 “the spectacular can be used as a decoy and have a sort of Gorgon-like effect, virtually
Nem sempre o “espetacular” preten- mesmerizing the gazer to the point of near anaesthesia”. Pascale Drouet. Op. Cit., XI.

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culos da arte contemporânea promovem espetáculo circense no The Globe pelo


verdadeiro city marketing, ou como diz Grupo Galpão, no qual comprovei o cará-
Guy Debord, uma verdadeira cidade do ter de universalidade da obra de Shakes-
espetáculo. Portanto, o “espetacular” não peare devido à capacidade que ela tem de
se resume às possibilidades plasticas e dialogar pelas diferentes culturas e em
cênicas das mises-en-scènes teatrais do Sei- diferentes épocas (Lima, 2011, p. 79-86).
cento, mas, muitas vezes os mitos e lendas O “espetacular” esteve sempre pre-
conferem também às cidades contempo- sente no teatro como um todo e, conforme
râneas projetos espetaculares que visam a discutido neste artigo, em muitas das pe-
esconder ou a enfatizar problemas sociais. ças de Shakespeare e Molière percebe-se
que os autores escreviam para a encena-
Algumas considerações ção, para aquilo que fala aos olhos e que
Nosso argumento aponta para a ence- provoca a imaginação. O imaginário, seja
nação tal como a descreve Patrice Pavis, inspirado nos heróis da mitologia greco-
ou seja: como “olhar sincrônico de todos romana, seja nos mitos medievais ou em
os sistemas signicantes cuja interação acontecimentos históricos pode criar a
produz sentido para o espectador. É a espetacularidade tão cara aos homens,
encenação que estabelece relações signi- sempre desejosos de observar algo que os
cantes entre os materiais cênicos. (Pavis, maravilhe ou que os induza ao questio-
1990, p. 20). Tanto no século XVII quan- namento, mas que, por algumas horas, os
to no presente momento pode-se aplicar retire das atividades cotidianas. Muitas
este argumento. vezes, pelos efeitos visuais e auditivos,
No decorrer dos séculos a drama- mas também pela força das palavras e pe-
turgia de Shakespeare assumiu o caráter las interpretações transgressoras. Outras
erudito, porém em sua época era bastan- vezes, o “espetacular” pode simplesmen-
te popular, visto que o público de suas te chamar a tenção do espectador pelo
apresentações era composto de todas as que oferece de inusitado, seja no espaço
classes sociais. Vale lembrar que The Glo- público ou no interior de um edifício te-
be comportava uma platéia heterogênea atral.
de cerca de três mil espectadores que reu-
nia dos artesãos e pequenos comerciantes
aos aristocratas, e os autores elisabetanos
combinavam a musicalidade das palavras
com sua intensidade dramática, a violên-
cia e o lirismo, a magia e a imaginação em
contraponto à realidade, como vimos nas
análises realizadas.
Eram muitas as possibilidades de o
dramaturgo idealizar suas peças em di-
ferentes localidades no espaço cênico
elisabetano. O número de metamorfoses
sofrido pelo espaço era proporcional à
necessidade dramatúrgica e à imaginação
do autor. O poder sugestivo da palavra,
a utilização de adereços e os corpos dos
atores em cena atuavam como um potente
produtor de imagens cênicas. Tratava-se-
como defende Peter Brook-, de um espaço
vazio – porém repleto de possibilidades.
Em artigo recente explorei o “espetacu-
lar” na peça Romeu e Julieta montada em
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NOTAS SOBRE CENOGRAFIA: EVELYN FURQUIM WERNECK LIMA
N° 20 | Setembro de 2013 U rdimento

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NOTAS SOBRE CENOGRAFIA: EVELYN FURQUIM WERNECK LIMA

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