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Artigo Marisa

A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA ESTATAL POR MEIO DAS LEGISLAÇÕES DE EXCEÇÃO E A DEGRADAÇÃO DOS SUJEITOS

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Revista Despierta, Curitiba, Ano 11, número 15, jan.-jun.

2024 59

A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA ESTATAL POR MEIO DAS LEGISLAÇÕES


DE EXCEÇÃO E A DEGRADAÇÃO DOS SUJEITOS

Marisa de Fatima Morais

Introdução

O presente artigo tem como objetivo demonstrar de que forma o Estado aplica sua
violência estatal por meio das legislações de exceção, que, de acordo com Maria Lúcia Karam,
são aquelas legislações que vão para além das garantias constitucionais, ou seja, ferem os
direitos básicos garantidos na Constituição Federal de 1988.
Assim, fazemos inicialmente uma análise de como funciona o sistema de justiça
criminal, que é responsável por efetivamente aplicar as legislações de exceção. Além disso,
analisamos a questão da política penal, que é aplicada justamente no momento de elaboração
das leis, de modo que a seleção sobre quem recai o peso das consequências do sistema de
justiça criminal.
A seguir, analisamos a seletividade desse sistema e de que forma essa seletividade é
demonstrada por meio da atividade policial e como seleciona aqueles que serão os “clientes”
do sistema.
Por fim, é feita a análise acerca das dinâmicas de degradação, teoria elaborada por
Harold Garfinkel. O autor explica os ritos essenciais para que haja uma degradação de sucesso.

Revisão Bibliográfica

Iniciamos o presente artigo discorrendo sobre a dinâmica de funcionamento do sistema


de justiça criminal, atuando com alta seletividade, de gênero, raça e classe.
Para essa análise acerca do sistema de justiça criminal, selecionamos um artigo de Vera
Regina Pereira de Andrade, intitulado: “A soberania patriarcal: O sistema de Justiça Criminal
no tratamento da Violência Sexual contra as Mulheres”, no qual a autora afirma que o sistema
de justiça criminal é um subsistema cuja finalidade é principalmente o controle social, sendo
ainda completamente desigual e seletivo. Além disso, esse sistema reproduz dois dos grandes
tipos de violências sociais: a violência das relações sociais capitalistas (desigualdade de
classes) e a violência das relações sociais patriarcais (desigualdade de gênero).
Em um segundo momento, a autora aborda o que seria o sistema de justiça criminal. A


Mestranda em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC Paulista/UFABC.
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autora divide esse sistema em: primeira dimensão, que seria a da Lei e das instituições formais
de controle, sendo este o seu caráter stricto sensu, sendo essa dimensão a normativa
institucional-instrumental e o sistema de justiça criminal é enxergado como o Outro.
A segunda dimensão do sistema é a integrativa do controle social informal (o Outro não
está só), aqui sendo constituído pela esfera de controle informal, esfera privada – família,
escola – e pelas mídias. E por fim a terceira dimensão é a ideológica simbólica (o sistema
somos todos nós), sendo esta a dimensão com caráter de senso comum punitivo.
A autora pontua:
com efeito, é precisamente a Lei e o saber (Ciências Criminais), dotados da ideologia
capitalista e patriarcal, que dotam o sistema de uma discursividade que justifica e
legitima sua existência (ideologias legitimadoras), co-constituindo o senso comum
punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social,
com ênfase, contemporaneamente, para a mídia” (PEREIRA DE ANDRADE, 2005,
p.78).

Percebe-se que o sistema de justiça criminal segue a lógica capitalista patriarcal,


ideologia dominante, e permanece fazendo com que as classes baixas e as mulheres continuem
sendo marginalizadas (aqui não apenas se refere à lei, mas como uma forma de mantê-las longe
dos locais de privilégio e poder na sociedade).
A autora fala, ainda, sobre as funções que o sistema de justiça criminal declara e aqueles
reais, de forma que a eficácia que é invertida
mas é precisamente o funcionamento ideológico do sistema – a circulação da
ideologia penal dominante entre os operadores do sistema e no senso comum ou
opinião pública – que perpetua o ilusionismo, justificando socialmente a importância
de sua existência e ocultando suas reais e invertidas funções. Daí apresentar uma
eficácia simbólica sustentadora da eficácia instrumental invertida” (PEREIRA DE
ANDRADE, 2005, p.79).

A partir deste fragmento é possível perceber que a legitimação da atuação do sistema de


justiça criminal não se dá apenas por seus operadores, mas até mesmo por aqueles que são
dominados pelas instituições de controle do sistema de justiça criminal, sendo assim, não
cumpre com sua função de combater o crime – que seria sua função declarada – mas sim de
continuar a legitimar as desigualdades entre gênero, classe e raça.
A autora aborda também sobre a seleção estigmatizante de vítimas e criminosos, sendo
a seletividade a função real do sistema de justiça criminal
ora, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua e a clientela do sistema penal é
composta, regularmente, em todos os lugares do mundo, por homens adultos jovens
pertencentes aos mais baixos estratos sociais e, em grande medida, não brancos, isto
significa que impunidade e criminalização (e também a vitimação) são orientados pela
seleção desigual de pessoas de acordo com uma fortíssima estereotipia presente no
senso comum e dos operadores do controle penal, e não pela incriminação igualitária
de condutas, como programa o discurso jurídico-penal (PEREIRA DE ANDRADE,
2005, p.82).
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Sendo assim, a seletividade do sistema de justiça criminal é inegável. Ela alerta para a
análise não só da vulnerabilidade para a criminalidade, mas também para a vitimação, vez que
esta também é selecionada pelo sistema, uma vez que se entende que ao se designar um
criminoso automaticamente há a necessidade de haver uma vítima.
Ainda de acordo com a autora, o capitalismo e o patriarcado são matrizes do sistema de
justiça criminal, aqui começa-se a delinear a relação dos dois com a seletividade
Ora, nisto o SJC replica a lógica e a função real de todo mecanismo de controle social
que se, em nível micro, implica ser um exercício de poder e de produção de
subjetividades (a seleção binária, entre o bem e o mal, o masculino e o feminino), em
nível macro, implica ser um exercício de poder (de homens e mulheres); reprodutor
de estruturas, instituições, simbolismos e o SJC ocupa um importantíssimo lugar na
manutenção do status quo social (PEREIRA DE ANDRADE, 2005, p.83),

O sistema de justiça criminal seleciona para manter a ordem e o status social, como o
capitalismo oprime as classes o patriarcado o gênero feminino (além da opressão de raça) e de
modo que esses sistemas estão intrínsecos o sistema de justiça criminal apenas reproduz e
mantém aquilo que a hierarquia social propaga.
A autora ainda menciona o fato de que o sistema de justiça criminal só criminalizar a
mulher de forma residual – conforme as mulheres começam a ocupar espaços na esfera pública,
passando a exercer papéis até então masculinos, especialmente no mercado, sendo legal ou
ilegal, elas se tornam mais vulneráveis ao controle penal
“o SJC funciona então como um mecanismo público integrativo do controle informal
feminino, reforçando o controle patriarcal (a estrutura e o simbolismo de gênero), ao
criminalizar a mulher em algumas situações específicas e, soberanamente, ao
reconduzi-la ao lugar da vítima, ou seja, mantendo a coisa em seu lugar passivo”
(PEREIRA DE ANDRADE, 2005, p.89),

Ainda, é necessário pontuar que crimes próprios de mulheres são acolhidos de forma
privilegiada pelo sistema de justiça criminal, uma vez que a criminalização é simbólica, pois
tem como finalidade reforçar os papeis de gênero, ressaltando que o lugar da esposa e mãe é
em casa (de volta à esfera privada).
Por fim, o centro do controle feminino no patriarcado se concentra no controle da
sexualidade, assim a violência contra a mulher é entendida pelo sistema de justiça criminal
como violência sexual, em que a mulher aparece como vítima da violação sexual.
A seguir, analisamos a perspectiva crítica em que o professor Nilo Batista conceitua
política criminal, sendo ela um “conjunto de princípios e recomendações para a reforma ou
transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação” (BATISTA,
2011, p. 33).
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Em vista disso, essa política criminal que, segundo o mesmo autor, é composta pelas
instituições policial, judicial e prisional, não deve se restringir à mera função de indicar para o
legislador onde, quando e quais condutas criminalizar.
Essa é uma concepção que se constrói diante da evidente falha da pena privativa de
liberdade, busca-se elaborar, então, uma política criminal que se volta, justamente, à uma menor
incidência (quantitativa e qualitativa) do sistema penal: é o que propõe, por exemplo,
Alessandro Baratta, ao fazer indicações estratégicas ao desenvolvimento de uma política
criminal não mais pautada nos interesses das classes dominantes, mas daquelas que são
dominadas.
Tocante ao sistema de justiça criminal brasileiro, percebe-se que esse, além de social e
economicamente custoso, é altamente seletivo e consolida um punitivismo extremamente
mortal sem trazer quaisquer benefícios reais à sociedade como um todo.
Assim, o que se averigua é, em verdade, uma política penal, como elencou June Cirino
dos Santos, “enquanto a formulação de políticas públicas por parte do Estado estiver voltada ao
controle do crime, esta será denominada política penal” (SANTOS, 2018, p. 55).
Isto é, não há uma política (criminal) verdadeiramente instrumentalizada à
transformação social e remediação das dificuldades e problemáticas do Sistema e do Direito
Penal: é política penal porque se concentra e se limita à pena enquanto punição e ferramenta de
controle social, utilizada pelos grupos dominantes, em detrimento dos subalternos, na
manutenção das desigualdades, pouco importando o descumprimento e/ou o desvio das funções
e princípios que a regulariam e legitimariam.
Nessa lógica, o Estado brasileiro adota uma política penal de exceção, que contraria as
noções de democracia e cidadania, colocando a questão social como problema de polícia. De
modo que a consolidação do Estado punitivo apenas reforça as violências históricas já sofridas
por determinadas parcelas da população, selecionadas justamente para isso, e essa seleção se
encaixa perfeitamente ao Estado punitivo bem como ao modelo econômico neoliberal
(PASTANA, 2009), como diria Massimo Pavarini “o cárcere funciona contra a criminalidade
mediante seleção/neutralização de sujeitos que o Estado não pode/não quer incluir”
(PAVARINI, 2012, s. p.).
Nesse sentido é o livro de Didier Fassin, “La fuerza del orden”, em que o autor explica
o funcionamento da polícia francesa e toda a estigmatização contra pessoas de cor e imigrantes.
Além disso, o autor explica que a polícia é essencial para a estabilidade do governo, sendo tanto
uma ferramenta para consolidar a autoridade quanto um reflexo do estilo do regime.
No Brasil, tal realidade não se mostra tão diferente, uma vez que a seletividade do
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sistema de justiça criminal começa pelas polícias, pois são a porta de entrada para o sistema.
Em seguida, o autor aborda sobre a necessidade de explorar a justificação interna dos
policiais para agir como agentes da justiça e destaca a necessidade de avaliar não apenas as
ações em si, mas também as crenças e valores que as fundamentam. Ele aponta também para a
necessidade de explorar as consequências da desconfiança mútua entre a polícia e o sistema
judicial, levantando questões sobre o equilíbrio de poder e a aplicação imparcial da lei.
Adentrando no tópico sobre as práticas policiais em bairros populares, o autor destaca a
tendência de repressão e punição sem evidências claras de crimes. Fassin observa que as ações
policiais muitas vezes se assemelham mais à vingança do que à justiça, especialmente quando
não conseguem encontrar os verdadeiros culpados. São delineados dois modelos de represália:
o castigo aleatório, onde um indivíduo é escolhido para "pagar" pelos outros, e as operações
punitivas, que envolvem ocupação e abuso em larga escala.
Nesse sentido, o autor traz a chamada "economia moral do trabalho policial", que é
apresentada como um conjunto de valores e sentimentos que tornam aceitáveis as práticas que,
de outra forma, seriam consideradas imorais, de modo que a hostilidade na sociedade,
combinada com a retórica pública radical, reforçando o ethos policial.
Assim, Fassin destaca que a intolerância em relação a certas categorias da população e
à tolerância percebida dos magistrados alimenta o sentimento de que os policiais têm o direito
de fazer justiça por conta própria.
Adiante, o autor pontua que, além da violência física, há outras formas de castigo moral,
como a divulgação da condição de saúde de um suspeito, de modo que a humilhação é
considerada uma forma de castigo merecido, vinculada à ideia de que os policiais estão do lado
do bem e agindo contra o mal. O conceito de "sentimentos morais" é introduzido como uma
característica subjacente a essas práticas.
Além disso, o autor argumenta que essa economia moral não reflete necessariamente as
éticas individuais dos policiais, e destaca a diversidade de posturas morais observadas na
atividade policial. Há contraste entre disposições morais opostas de dois policiais. Enquanto
um expressa empatia e generosidade em relação aos detidos, o outro revela antipatia e
agressividade, indicando que a insensibilidade é considerada a norma, enquanto a compaixão é
vista como desviante.
O autor explora a transformação da polícia francesa ao longo das últimas décadas,
especialmente em relação aos bairros populares e minorias étnicas. Ele destaca uma mudança
na filosofia profissional da polícia, passando de "guardiã da paz" para "força do ordenamento",
com ênfase em uma abordagem mais dura e securitária. Essa mudança é atribuída a fatores
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ideológicos, geográficos e tecnológicos.


Argumenta que a polícia, ao invés de manter a ordem pública, está se tornando uma
ferramenta para administrar problemas sociais, exacerbando desigualdades e discriminando
certos segmentos da população. Ele também destaca a falta de avaliação efetiva dessas práticas
policiais, apontando para os custos sociais e de segurança associados.
Demonstra uma desconexão significativa entre a polícia e os habitantes dos bairros
populares, com uma distância sociológica notável. Os policiais, em sua maioria homens
brancos, muitas vezes veem os residentes como inimigos, alimentando a hostilidade mútua. A
narrativa destaca a tensão entre as expectativas da polícia, como manter altos índices de prisões,
e a realidade de patrulhas frequentemente ineficazes e desafios na aplicação da lei.
Assim, as práticas agressivas da polícia, incluindo detenções arbitrárias e humilhações
públicas, não apenas falham em alcançar seus objetivos, mas também têm um impacto negativo
na confiança pública e na coesão social.
Conclui enfatizando a necessidade de uma abordagem ética e política na condução de
estudos etnográficos sobre a polícia e seus efeitos nas comunidades. Há a importância de
compreender e divulgar as verdades desconfortáveis sobre a interação entre a polícia e os
cidadãos, especialmente em contextos democráticos. Por fim, expressa a esperança de que seu
trabalho estimule um debate mais amplo sobre a democracia, a aplicação da lei e a necessidade
de uma antropologia pública.
Ademais, como pontua Maria Lucia Karam, o Estado máximo, vigilante e onipresente,
no que concerne ao campo da justiça criminal, fornece uma roupagem pós-moderna para antigas
formas de intervenção e restrições sobre a liberdade individual. Assim, a autora pontua que o
neoautoritarismo surge como a outra face do neoliberalismo.
Ainda, acerca da repressão política das ditaduras, que alimenta a crescente repressão por
parte do sistema penal, naquelas democracias que são mais ou menos reais, das formações
sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado. Nesse sentido, pode-se falar acerca das
legislações de exceção
a intensificação do controle social, revivendo as premissas ideológicas de afirmação
de autoridade e da ordem, a abrir espaço para uma desmedida extensão do poder do
Estado de punir, nas formações sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado,
reflete-se no campo normativo, com a produção de leis, que, também fazendo lembrar
a repressão política das ditaduras, afastam-se de princípios garantidores, inerentes ao
Estado Democrático de Direito (KARAM, 2004, p. 99).

A autora considera como marco da legislação de exceção no Brasil a Lei de Crimes


Hediondos - Lei 8.072/90 - que foi além das exceções previstas na Constituição de 1988.
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Não obstante, essas legislações de exceção ainda contemplam meios invasivos para
obtenção de provas, bem como rompe-se com o mínimo de racionalidade, transparência e
conteúdo ético que deveriam orientar as atividades estatais em um Estado Democrático de
Direito.
Assim, o Estado desempenha um papel deseducador no que concerne às relações entre
os indivíduos, pois acaba por transmitir valores tão ou mais negativos que aqueles ditos dos
“criminosos” que eles alegam combater (KARAM, 2004).
A seguir, a autora pontua sobre as Leis nº 9.034/95, modificada pela Lei nº 10.217/01,
que dispõe sobre a “criminalidade organizada”. Além disso, encontra-se nesse rol de legislações
de exceção, a Lei nº 10.792/2003, que dispõe sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD),
criando uma prisão dentro da prisão e minando a garantia constitucional de respeito à
integridade dentro do sistema penitenciário.
Além dessas leis trazidas por Maria Lucia Karam, podemos elencar a Lei nº
13.964/2019, também conhecida como “pacote anticrime”, editada durante o governo de
Bolsonaro, pelo então Ministro Sérgio Moro.
Indicamos aqui o que seria uma das maiores violações da Constituição por essa nova
lei, na parte em que dispõe sobre as supostas lideranças de organizações criminosas, não
prevendo nenhum tipo de requisito para que uma pessoa seja tida como tal, deixando um amplo
espaço para a discricionariedade dos juízes. Ainda, retirou direitos da execução penal dessas
pessoas.
A autora pontua ainda que para além da abertura de brechas para meios invasivos de
busca de prova, ação controlada e a infiltração de agentes policiais, também premia a delação,
invertendo-se as premissas.
Feita essa consideração acerca do funcionamento do sistema de justiça criminal, bem
como realizada a explicação de conceitos como legislação de exceção e política penal, passemos
a análise da obra de Harold Garfinkel, sobre cerimônias de degradação.
Passemos a análise então do artigo formulado por Harold Garfinkel como “condições
de cerimônia de degradação de sucesso”, sendo entendido como: “trabalho comunicativo
voltado para transformar a identidade total de um indivíduo em uma identidade mais baixa o
esquema de tipos sociais do grupo é chamado de "cerimônia de degradação do status".
Para reconstituir o outro como um objeto social, o denunciante deve fazer com que as
testemunhas apreciem o autor e o culpado, evento como instâncias de extraordinária
uniformidade, em contraste dialético com valores de rotina, ordens de pessoal e ação.
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O denunciante deve reivindicar e gerenciar publicamente o status de boa-fé,


representante do grupo de testemunhas. A partir dessa posição, ele deve nomear o agressor
como "alguém de fora". Variáveis organizacionais determinarão a eficácia de um programa
de táticas de degradação” (GARFINKEL, 1956, p.420).
A seguir, o autor lista os passos para que haja sucesso e cita um exemplo em nossa
sociedade de um sujeito que pratique a degradação. O autor afirma que a indignação moral é
que serve para efetuar a destruição de forma ritual da pessoa denunciada. “No mercado e na
política uma cerimônia de degradação deve ser contada como uma forma secular de
comunhão” (GARFINKEL, 1956, p.421).
A partir disso, é possível compreender que o autor parte do princípio de que a
degradação acontece como um ritual, além disso ele ainda ressalta que possuem semelhança
com cerimônias de posse e elevação, “a destruição da identidade é a destruição de um objeto
social e a constituição de outro” (GARFINKEL, 1956, p.421). Ele ressalta que o objeto antigo
não é superado, mas sim substituído por outro.
Além disso, Garfinkel elenca os passos para que uma cerimônia de degradação
“obtenha sucesso”, em que o último passo consiste em: “a pessoa denunciada deve ser
ritualmente separada de um lugar na ordem de um companheiro, ou seja, ele deve ser definido
como padrão em um lugar oposto a ele, devendo ser colocado ‘fora’, deve ser feito ‘estranho’
” (GARFINKEL, 1956, p.423).
Aqui temos a ligação com o sistema de justiça criminal, uma vez que a pessoa passa a
integrar o sistema, é colocado em um lugar “fora” da sociedade, sendo assim estigmatizado e
degradado.
Além disso, de acordo com o autor, os dispositivos para efetuar a degradação variam
tanto na característica quanto na eficácia, de acordo com a organização e operação do sistema
de ação em que ocorrem.
Por fim, o exemplo de instituição que degrada utilizado pelo autor são os tribunais, “o
tribunal e seus oficiais têm algo como um monopólio sobre tais cerimônias, e lá eles tornam
uma rotina ocupacional” (GARFINKEL, 1956, p.424), sendo assim o sistema de justiça
criminal se faz seletivo, estigmatizante e degradante.
Considerações finais
Mediante o exposto, concluímos que o Estado permanece legitimando sua violência,
utilizando-se dos meios tidos como legítimos, principalmente das legislações de exceção,
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como bem pontuou Maria Lucia Karam, sendo essas leis exceções que violam os direitos
fundamentais da população garantidos pela então chamada Constituição Cidadã.
Conforme demonstrado, o Estado não se utiliza da política criminal, inicialmente
pensada de acordo com a Constituição, mas sim, política penal, que é justamente voltada a
uma parcela vulnerável da população.
Desse modo, o sistema de justiça criminal atua apenas para reforçar as distinções já tão
presentes na sociedade, principalmente com relação ao gênero, à classe e à raça.
Conforme bem pontuado por Didier Fassin, a polícia, que é a “porta de entrada” para
o sistema, tem uma clientela preferida. Apesar do autor estar se referindo ao contexto
parisiense, no Brasil não há muita diferença.
Assim, a atuação do sistema de justiça criminal faz com o indivíduo aquilo que Harold
Garfinkel chama de rituais de degradação.

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Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar de que forma o Estado aplica sua violência
estatal por meio das legislações de exceção, que, de acordo com Maria Lúcia Karam, são aquelas
legislações que vão para além das garantias constitucionais, ou seja, ferem os direitos básicos
garantidos na Constituição Federal de 1988. Assim, por meio de revisão bibliográfica, de uma literatura
crítica, abordamos sobre o sistema de justiça criminal e seu funcionamento, assim como sobre a
seletividade desse sistema e como ele opera primeiramente nas polícias, que são a “porta de entrada”.
Por fim, fazemos a análise sobre a degradação dos indivíduos, sendo o sistema de justiça criminal um
dos principais exemplos desse ritual.

Palavras-chave: Violência Estatal; Legislações de Exceção; Degradação.

Abstract: This article aims to demonstrate how the State applies its state violence through exceptional
legislation, which, according to Maria Lúcia Karam, is legislation that goes beyond constitutional
guarantees, that is, violates the basic rights guaranteed in the Federal Constitution of 1988. Thus,
through a bibliographic review of critical literature, we address the criminal justice system and its
functioning, as well as the selectivity of this system and how it operates primarily in the police, which
are the “gateway”. Finally, we analyze the degradation of individuals, with the criminal justice system
being one of the main examples of this ritual.

Keywords: State violence; excepcional legislation; degradation.

*Artigo recebido em: 09/04/2023


*Artigo aceito em: 12/05/2023

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