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  • Resenha | O Livro do Cemitério – Neil Gaiman (2)

    Resenha | O Livro do Cemitério – Neil Gaiman (2)

    Uma das minhas maiores críticas a Stephen King é como ele tem claras dificuldades em nos fazer emergir e nos envolver pra valer nos horrores que ele propõe, em sua longa e popular obra. O Livro do Cemitério, de Neil Gaiman, é o triunfo que o prestigiado King parece suar para alcançar, e aqui, carrega a sensação naturalista de imersão no sobrenatural de uma forma tão suave, e inevitável, quanto um carro que entra e some na neblina na mais escura das noites. Gaiman é o esteta verdadeiro do suspense, e do terror literário atual, tendo provado isso várias vezes não apenas na literatura, guiando-nos de mãos dadas por veredas ocultas e imprevisíveis como poucos autores contemporâneos conseguem fazer. Andar entre os mortos com Gaiman apresenta a familiaridade, a emoção e o conforto que nunca esperaríamos ter nesta excursão pelo macabro, a ponto de desejarmos ir cada vez mais fundo entre suas fundações, seus mitos e sentimentos que o espectro da morte não consegue apagar.

    Ao acompanharmos a história de Ninguém, um menino adotado por espíritos de um cemitério (tal como Mogli ingressa em uma alcateia para crescer, e perceber que no fundo, não é um deles), Gaiman não sai de sua zona de conforto mas apresenta novos caminhos pelo desconhecido que tanto lhe (nos) atrai, e constitui, a bem da verdade, grande parte da experiência humana. De onde viemos e para onde vamos permanece um dos nossos grandes mistérios, e estarmos cercados por almas que também ainda não descobriram essas respostas é estranhamente reconfortante – pode acreditar. Após escapar de um assassinato, o jovem Ninguém é salvo, e acolhido ainda bebê por seres cheios de afeto mas que pertencem a outras dimensões, e Silas, o coveiro oficial de um lugar mais repleto de vida que muitas ruas fora dos seus muros, se compromete a alimentá-lo e educá-lo do melhor jeito possível, devido as condições, mesmo sabendo que a hora do menino sair da necrópole, um dia, vai chegar.

    Entre túmulos e passagens secretas, Nin (como é chamado) cresce, decorando o alfabeto através das letras nas lápides, fazendo amigos leais, inimigos de todo tipo, vivendo aventuras em outros mundos e descobrindo, afinal, que nem sempre a nossa casa é aonde achamos que ela esteja. Sem se prender no mundo de sonhos, delírio e perdição que é Sandman, o clássico das HQ’s e sua maior obra, Gaiman conta com os expressivos desenhos em preto-e-branco de Dave McKean, o velho colaborador dele, para caminhar com graça e leveza entre o real e o surreal, como se fosse o senhor das duas realidades (e fazendo-nos sentir assim também) ao explorar suas conexões sob a égide de vários temas, tais como a amizade, a família, a sociologia, o misticismo, e porque não, o amor ágape entre duas crianças. Dois infantes que se envolvem sem esperar nada em troca, senão, a simples presença um do outro que o tempo também não consegue varrer. Sobre as coisas que duram, enfim, num mundo tão cheio de valores tão duráveis quanto copos descartáveis.

    Talvez seja essa relação entre Nin e Scarlett, a corajosa garotinha que vai no cemitério escondida dos pais apenas para ver seu amigo esquisito, a mais bela relação da obra de Gaiman. A doçura do encontro proibido e duradouro entre a menina que mora numa casa normal, e o moleque do cemitério que não sabe muito bem lidar com essa normalidade, é irresistível e encantadora, rendendo grandes momentos numa obra cujo os capítulos nada mais são do que contos. Oito contos (Gaiman começou a escrever o livro pelo quarto capítulo) a respeito do início da jornada de Ninguém pela vida e a morte, como se os dois conceitos fossem um só, no melhor estilo yin-yang de se encarar nossa passagem (e, porque não, nossas lições) pela Terra. O Livro do Cemitério, da editora Rocco, é marcante para todos os públicos, e idades, pois faz divertir e refletir muito mais do que se pode esperar, sendo então, para a maioria dos leitores, algo aproximado a uma versão do Tim Burton para uma animação da Disney, mas com a elegância e o charme ímpar que Neil Gaiman, tão bem, consegue nos arrebatar.

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  • Resenha | Sandman: Noites Sem Fim (2)

    Resenha | Sandman: Noites Sem Fim (2)

    “Foi um inverno árduo. Os lobos se mostraram ousados, e se não protegêssemos nossos rebanhos, encontraríamos as ovelhas mortas.”

    O mundo de Sandman é tão delirante, quanto irresistível. Há, na criação máxima de Neil Gaiman (Coraline, Deuses Americanos), um gosto perpétuo de fantasia e devaneio que dialoga, visual e substancialmente, com nossa visão meio pessimista e meio sombria, para alguns, da nossa própria realidade. Há, também, em tudo o que envolve os passos e as interferências mundanas de Morfeu, o Senhor dos Sonhos, e os de sua família, os sete Perpétuos, um tesão legítimo pelas experiências humanas mais terríveis e prazerosas, numa representação orgulhosamente surreal do puro êxtase e assombro que envolve nossa percepção e sanidade, diante dos eventos mais desafiantes, a elas. A vida é um sopro, e de tão rápida, pode às vezes parecer um longo sonho.

    Ou um pesadelo. Sempre no limiar da questão, Gaiman nos conduz para dentro de uma criatividade na qual podemos nos perder em seus arranjos sensoriais sem restrições alguma, torcendo para que tudo não vá terminar na próxima página. Essa sedução tão típica do seu trabalho é uma constante artística que poucos autores de HQ’s podem ostentar, e Noites Sem Fim aloja em sete contos essa condição soberana de Gaiman, enquanto colaborador insubstituível para com a nona-arte. Sete histórias curtas e conectadas pela lógica tortuosa e imprevisível de uma dimensão guiada pela morte, pelo desejo, pela destruição, pelo desespero, pelo sonho, pelo delírio, e pelo destino… pelo o que cada um dos sete perpétuos representa neste universo que mais parece uma versão sobrenatural de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.

    Contos soltos, estes, cuja solenidade encanta e desperta nossa imaginação, uma vez que a sensação de estarem sendo observados por Morfeu e sua irmã, a própria e belíssima Morte, é latente ao longo de suas rápidas páginas. Em Noites Sem Fim, a racionalidade aqui presente permanece aquém dos limites ilimitados de histórias que jamais poderão ser definidas por um único assopro verbal. Fala-se sobre reis caídos, entidades celestiais e o papel (e a necessidade) de mudanças na vida de todo mundo sob uma égide reinante do faz de conta, de uma fantasia perturbadora acima do certo e errado – esporros de um subconsciente brilhante demais para não ser marcante, tal como se apresenta, na qual sua principal motivação de se mostrar é expandir as possibilidades de uma criação fabulesca ganhadora, já, de inúmeros prêmios, ao longo de mais de quarenta anos de publicações reverenciadas, no mundo todo.

    Incrível como Gaiman nunca está sozinho, e sempre pode contar com grandes desenhistas para potencializar a maestria de suas ideias que, visualmente, são tão assombrosas quanto seus mistérios deliciosamente arrebatadores, e impossíveis de se explicar – cabe a cada leitor sentir o deleite desta experiência. Até mesmo Milo Manara aceitou o convite, aqui, no conto “Desejo”, o segundo desta coletânea. Cada história então ganha seu próprio traço, do mais formal ao mais expressionista, tal os retratos chocantes do conto “Desespero”, que mais parecem ter sido feitos por um paciente em estado grave de um manicômio, mas são apenas reflexos da genialidade de Barron Storey, um influente artista plástico, e Dave McKean, outro louco genial que adora colaborar com Gaiman – para a nossa sorte, é claro. Nesta publicação lançada no Brasil pela Editora Panini, noutro de seus primorosos trabalhos editoriais, tudo se converge em êxtase feito sob medida para nos tirar do razoável, e nos catapultar à zona do absurdo. Algo espantosamente similar a tudo aquilo que fingimos não conhecer, ou acreditar, mas quem sabe um dia, gostaríamos de provar. Eis a chance.

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  • Resenha |  A Vida Secreta de Londres

    Resenha | A Vida Secreta de Londres

    Em paralelo ao reconhecimento mundial, destacado pela tradição histórica, bem como em icônicas imagens como o relógio Big Ben e diversos outros monumentos, a cidade de Londres também possui uma faceta comum em que o simples e o prosaico se apresentam diariamente. Além do sucesso dos espaços turísticos e das aparições da Rainha, a capital da Inglaterra também possui suas entranhas, os vícios e a sujeira que complementam o esplendor. É essa observação natural sobre a cidade o tema central de A Vida Secreta de Londres lançado pela Editora Veneta.

    Organizado por Oscar Zarate, quadrinista argentino que reside na cidade há mais de 40 anos, a obra reúne grandes artistas contemporâneos explorando as particularidades de Londres em uma espécie de guia alternativo da cidade. Ao todo, 24 artistas – entre eles Alan Moore, Neil Gaiman, Dave McKean, Woodrow Phoenix e Iain Sinclair – produzem narrativas sobre bairros londrinos em uma compilação que reúne diversas formas artísticas como quadrinhos, poema e prosa.

    Mesmo compartilhando um tema em comum, é perceptível a diversidade narrativa. Além da composição exposta em diferentes formas artísticas, as abordagens narrativas se alinham com uma grande cidade, formada por seres distintos, cada um percebendo e observando o local que o cerca de maneira singular. Como a análise parte de moradores da cidade, a visão é mais crua e caótica do que se vê pelos batidos cartões-postais.

    Tramas policiais se destacam abordando uma cidade sem filtro em que o desenvolvimento aquebranta parte da alma de seus moradores. A beleza da cidade é vista a partir de seus estilhaços, da dor e do sangue de suas ruas. Em certas narrativas, a sanidade é definida pela própria arte. Em outras, a crueldade parece uma tônica constante do caos. Dentre os nomes mais graúdos da coletânea, Gaiman apresenta uma história que introduziria dois personagens do livro Coisas Frágeis. Moore demonstra talento em frontes diversas colaborando em HQ, prosa e poesia. Mesmo que tais nomes consagrem a edição e chamem o público, é interessante descobrir novos autores como Alexei Sayle, Chris Webster, Carl Flint e Carol Swain, autores das melhores histórias de acordo com a preferência desse crítico.

    A edição da Veneta segue o tamanho padrão de graphic-novels lançadas no mercado, ou seja, em um formato um pouco maior que os encadernados em formato americano. O escritor Rogério de Campos assina um excelente prefácio sobre a urbanização como forma de expressão artística, bem como a edição apresenta notas explicativas sobre algumas histórias, apontando locais e referências.

    A Vida Secreta de Londres desenvolve um mapeamento alternativo de Londres, sem nenhum filtro que esconda o sangue de suas entranhas. Talvez melhor do que a leitura seja se aventurar pelos locais descritos nas narrativas, reconhecendo cada espaço disforme que, mesmo oculto das fotos famosas, compõe uma das cidades mais famosas do mundo.

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  • Resenha | Dias da Meia-Noite

    Resenha | Dias da Meia-Noite

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    O prestígio de Neil Gaiman no cenário mundial dos quadrinhos permitiu o lançamento desta coletânea editada originalmente em 1999, reunindo trabalhos dispersos do roteirista britânico. Não à toa. O autor sempre demonstrou qualidade tanto em trabalhos autorais quanto em revistas mensais, com um estilo narrativo consistente e, normalmente, filosófico.

    Lançado pela primeira vez em versão integral e expandida – anteriormente a Pixel lançara somente três histórias da edição –, Dias da Meia-Noite apresenta a reunião de cinco histórias compiladas, além de uma inédita, desenhada especialmente para a publicação. Cada história apresenta um prefácio do autor contextualizando a obra e trazendo maiores informações sobre a sua composição.

    A primeira história do volume, Jack In The Green, apresenta uma trama inédita, escrita por Gaiman mas engavetada pelo estúdio, e agora presente nesta edição especial. O elemental Jack, um monstro do pântano de outra época, cuida de um amigo prestes a morrer, vítima da peste negra. Trata-se de uma bonita história fechada, com um leve toque de fábula, sobre uma reflexão a respeito da evolução humana, vista por uma figura observadora que caminhou pelos continentes. Reverenciando a escrita de Alan Moore, a edição conseguiu reunir os desenhistas, colorista e letrista, que trabalharam na época de Moore, para este especial. Uma dupla homenagem ao autor, que modificou as estruturas da personagem, e aos responsáveis pela identidade visual do monstro.

    As próximas duas narrativas vieram de uma edição anual de Monstro do Pântano. A primeira, diz o roteirista no prefácio, seria parte de uma saga que escreveria para a revista. Porém, após a editora negar o roteiro de um amigo que trabalharia alternadamente com ele, o britânico descartou a ideia de trabalhar no periódico. A história resgata um antigo personagem da cronologia do monstro como argumento para um futuro arco que nunca aconteceu. Talvez, para os leitores que desconhecem a trajetória da criatura, esta seja uma trama quase descartável, tendo mais importância histórica do que narrativa.

    A segunda história, retirada de Monstro do Pântano Anual, é a única parceria de Gaiman com Mike Mignola. Um breve enredo sobre o universo da personagem, outra trama filosófica que pouco acrescenta ao compilado mas demonstra a devoção do autor pelo mestre Moore, reassumindo outra criação do bruxo em sua fase na revista.

    A edição #27 de Hellblazer é uma das mais bonitas histórias da Vertigo. Um roteiro breve, de 25 páginas, em que o roteirista demonstra sua habilidade em narrar uma trama ao mesmo tempo que trabalha em um movimento filosófico maior. Abraço tem um tom poético e impressiona pela carga dramática aprofundada a cada página. Enquanto John Constantine vai a uma festa de amigos, sente o tédio da velhice e recebe uma proposta inadequada de um casal de lésbicas que desejam um filho seu, um espírito de um mendigo trafega pelas ruas procurando quem possa esquentá-lo. Diante de um universo metaforicamente frio onde os sem-teto são quase invisíveis na sociedade, Constantine é o responsável pelo bonito abraço que aquece o homem. Os traços de Dave McKean, sem dúvida uma das melhores parcerias de Gaiman, compõem o tom acinzentado da obra e, em rabiscos, acentuam a desconexão social do homem à procura de um simples gesto que transmita calor. Póetico e surpreendente.

    Outra excelente história é a intersecção de dois personagens em O Teatro da Meia-Noite de Sandman, um crossover entre os dois Sandman: o primeiro vindo da Era de Ouro e recriado por Matt Wagner em uma revista na década de 90, e o perpétuo mestre dos sonhos. A trama foge de um bobo encontro direto das personagens, em respeito à cronologia de cada revista. Na época em que O Teatro do Mistério ambienta-se, Sonho mostra-se aprisionado por um encantamento. Gaiman desenvolve o roteiro ao lado de Wagner em uma história policial que leva Wesley Doods até a Inglaterra para investigar o suicídio de um amigo, que tinha posse de um convite para uma festa que reunia diversos magos do mundo. Trata-se da trama mais longa do gibi, e bem equilibrada entre os dois universos: a investigação característica do Sandman de Doods e os elementos místicos de Sono, presente em poucas páginas devido a seu confinamento. Uma trama densa que não deturpa as narrativas de cada revista e ainda acrescenta um elemento extra em cada uma.

    A última história trata-se de um acréscimo de uma reedição feita em 2012. Com desenhos de Sérgio Aragonés, Bem-vindo à Casa dos Mistérios é uma apresentação quadrinesca utilizada em cada edição desta revista que reunia contos de terror. Novamente, como a obra anual de Monstro do Pântano, a inclusão da edição é mais histórica do que importante como trama. É interessante para observamos o quanto Gaiman escreveu em diversas frontes e sempre foi capaz de extrair elementos de cada uma delas, sem perder seu estilo como autor. Uma das provas de seu talento.

    Como uma coletânea de edições específicas, é evidente que algumas histórias necessitam de um contexto ampliado para compreensão completa. Outros compilados de obras, como a de Alan Moore, editado pela DC Comics, também sofrem problemas interpretativos quando a história precisa de um contexto que o público possa desconhecer. Dessa forma, a história de Hellblazer, o crossover dos dois Sandman e o roteiro inédito de Monstro do Pântano são os verdadeiros destaques da edição, por serem funcionais mesmo sem precisarem de nenhuma referência externa. Uma boa edição merecida para o marco dos quadrinhos que Gaiman se tornou.

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  • Resenha | Batman: Asilo Arkham

    Resenha | Batman: Asilo Arkham

    Batman - Asilo Arkham - Panini - Capa

    David McKean é um artista dos mais renomados da indústria de quadrinhos. Graças a sua ocupação maior como artista plástico, pouco se tem (fora, é claro, as inúmeras capas de artigos para o selo Vertigo) de materiais dele como desenhista. Seu modo peculiar de ver o mundo garante uma aura anárquica, caótica e até agressiva para as obras que assina, e sua arte sequencial é tão singular que não combina com tramas normativas ou convencionais. A química de McKean funciona com cabeças pensantes, como as de Neil Gaiman, e ganha mais um capítulo interessantíssimo com a tresloucada Asilo Arkham, uma das primeiras histórias de Grant Morrison com o Homem Morcego.

    No primeiro de abril em que os insanos malfeitores de Gotham resolvem se rebelar e tomar o asilo para os internos, pondo em risco os funcionários da instituição, já eram esperadas demandas das mais insanas possíveis, entre elas, a descida do Cruzado Encapuzado ao inferno que era o sanatório. Antes de qualquer recurso textual, há uma série de gravuras, na maioria figuras abstratas, remetendo a estados mentais alterados e idílicos lugares, recônditos mentais, esconderijos para a perturbada percepção daqueles que são internos do Arkham.

    Um trecho de Alice, de Lewis Carroll é flagrado, que reafirma o estado soberano de loucura, e a consequente inexorabilidade da condição. A partir daí adentra-se na intimidade de Amadeus, o mesmo que dá nome ao asilo, em seu diário, que demonstra de forma gráfica a nada aplacada realidade do ainda infante, pelos idos de 1901, ao conviver com uma mãe à beira da loucura. A mentalidade débil já o assombrava quando pequeno, de modo atroz. A cor que predomina neste plot é o castanho, diferente do tom grafite que contempla o Batman, que em sua primeira aparição é mostrado como uma rasura em formato humanoide, um esboço, que precisava de uma arte-final, e que sofreria este último tratamento ainda dentro daquele micro-universo.

    O Coringa convida seu nêmese a descer as escadas da mansão rústica, mas o convite é mera formalidade, uma vez que para o morcego adentrar os portões do Arkham parecia uma questão de tempo, talvez uma referência de Morrison a máxima freudiana denominada “retorno do recalcado”, onde – em linguagem popular – o doente tende a voltar aos seus pecados originais, mesmo os renegados a muito, além de ser um regresso aos seus traumas.

    É notável que o roteiro segue a dualidade da fórmula de transição entre protagonistas, de Batman para Amadeus. O ofício e repertório de ambos é muito semelhante, pois tanto o Detetive quanto o psiquiatra tratam em sua intimidade de insanos, e ambos vivem a atravessar a tênue linha da saúde mental plena, ou, no caso, o que mais se assemelhe a isto. Os pacientes, analisados pelo imberbe Coringa estão em condições ainda mais lastimáveis e penuriosas que o Palhaço, desde Harvey Duas Caras, que está explorando um campo maior de possibilidades, além do velho cara e coroa, e que em virtude disso mal consegue conter sua bexiga. A recuperação dos internos cai na tradição folclórica do local.

    A primeira vez em que o rosto do Batman é contemplado sem que quase todo ele esteja à sombra, é quando este quebra um pedaço de vidro, para então perfurar a própria mão, para não se ver capturado pela aura lunática do asilo. O artifício é tentar esconder-se do perigo não mostrando a face ao maior temor da vida, reconhecendo que o senso de loucura é mais forte que a resistência do homem por trás da máscara.

    Talvez a mais plausível posição ideológica seja a do Chapeleiro Louco, que é outra referência a Lewis Carroll, que guarda a ideia de que o Asilo é formado pelos pensamentos de alguém, como era o País dos Espelhos, e que talvez a mente por trás disso, fosse a do morcego – ou até de sua contraparte narrativa, o fundador.

    Um dos médicos da instituição, Cavendish, foi um dos responsáveis pela liberação dos presos. Seu motivo seria os escritos de Arkham, que assume a sua condição lunática, a mesma que tanto negou e reprimiu. Seu entendimento é de que aquilo seria uma questão hereditária e inegável ao sangue dos seus. Nem mesmo as precárias condições, que não permitiam ao psiquiatra ter uma pena para escrever, o impediram de registrar suas lembranças, e logo ele passa a riscar as próprias unhas para dar vazão ao seu texto profano e sedutor.

    Através de uma artimanha nada usual e pouco correta, o Morcego consegue através de interferência externa, vencer Cavendish, tomando para si a responsabilidade de restabelecer a Ordem e a saúde mental daquela sociedade. Seu avatar deveria ser o mais forte, assim que ele assume a via que finalmente o distinguiria dos derrotados, que era a loucura finalmente assumida. Assim, ele estaria em pé de igualdade com os seus semelhantes, afinal.

    O mergulho que Morrison e McKean fazem é na intimidade, na parte mais volátil da psiquê do Batman, expondo-o ao lugar mais sujo e fétido que todo o seu universo contempla. A soberania do herói só ocorre graças a sua atitude de abrir mão de suas crenças, entre elas, a de que criminosos são seres inferiores, supersticiosos e covardes. De fato a maioria é, mas somente a patuleia. Casos como os do Coringa, Duas Caras, Chapeleiro e Crocodilo provam que a tese não é tão congruente quanto ele gostaria, e que não há tantas diferenças entre eles e o paladino. O aspecto pitoresco e tragicômico imposto pela dupla de autores faz o peso de cada atitude do morcego ser ainda maior e mais trágico, além de ser uma reimaginação das mais pontuais, pelo quase ineditismo em assumir a condição de louco que preconiza veladamente o herói criado por Bob Kane e Bill Finger, num belo quadro expressionista que remete a um tipo de arte que infelizmente caiu em desuso, e que se diferencia muito da média industrial.

  • Resenha | O Livro do Cemitério – Neil Gaiman (1)

    Resenha | O Livro do Cemitério – Neil Gaiman (1)

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    Neil Gaiman construiu uma carreira sólida ao longo de mais de 20 anos de trabalho. Tendo como o grande “pontapé” inicial sua amizade com Alan Moore, o que lhe rendeu contatos no mundo dos quadrinhos e posteriormente o tornou mundialmente conhecido ao escrever a obra Sandman. Atualmente, já mais afastado dos quadrinhos e se ocupando cada vez mais com obras literárias, Gaiman nos apresenta O Livro do Cemitério, história fortemente influenciada pelo clássico, O Livro da Selva, de Rudyard Kipling em 1894, como citado pelo próprio autor. Levando em consideração o tom sombrio de muitas de suas histórias, não é de se espantar que O Livro da Selva de Gaiman se passe em um cemitério…

    Na trama, conhecemos um menino chamado Ninguém Owens, que quando ainda era um bebê e teve toda sua família assassinada misteriosamente por um homem chamado Jack. Enquanto o crime era consumado, o bebê engatinha até um cemitério que existia no fim da rua que sobe a colina, o que acaba o salvando de seu trágico destino.

    O bebê acaba sendo salvo por um casal de fantasmas da Inglaterra Vitoriana que há muito tempo desejavam um filho, porém, existe uma regra que nenhum humano pode viver em um cemitério, com isso é realizado uma reunião entre os moradores do local e o misterioso Silas (uma espécie de zelador do cemitério), onde concordam em deixá-lo morar ali, e assim, o casal de fantasmas vitorianos se tornam seus pais adotivos e o batizam de Ninguém. Silas se torna seu tutor, já que é o único que pode conseguir alimentos, vestuários e outros bens necessários para o dia-a-dia de uma pessoa comum. E assim, Nin passa a viver no cemitério da colina, entre fantasmas e ossadas, lápides e covas.

    A cada página o leitor acompanha o crescimento da personagem, desde bebê até sua adolescência. Cada capítulo é um importante ponto no aprendizado de Nin, seja no aspecto de crescimento dele, como habilidades especiais como atravessar paredes, assombrar, vagar por sonhos alheios, entre outras, tudo isso graças a “liberdade do cemitério”, uma concessão que os fantasmas de lá dão a Nin, pois só assim ele poderia viver com eles.

    Contudo, o assassino de seus pais continua a sua procura para terminar o serviço que começou, e não importa quantos anos passem, Jack não irá descansar até terminá-lo e sua chance surge quando Nin completa 15 anos e decide sair para o mundo fora do cemitério e conhecer um pouco da vida. E assim, o destino caminha para um embate entre os dois.

    Gaiman compõe uma narrativa fluida, seguindo um padrão bastante similar a contos, já que cada capítulo traz uma história fechada, uma espécie de coletânea de contos onde quando juntos em ordem cronológica formam um romance (se é que algo assim existe). Apesar de ser voltado para o público infantil – pelo menos é o que dizem, não que eu concorde com isso -, O Livro do Cemitério traz momentos sombrios, embora todos belíssimos, quase lúdicos, deixando claro que a obra não é apenas para crianças, como já vimos em Coraline e O Lobo Dentro das Paredes, aqui isso fica ainda mais nítido.

    O Livro do Cemitério traz um universo fantástico fascinante, as personagens são cheias de vida (por mais irônico que isso possa parecer), as descrições dos momentos da vida de Nin emocionam qualquer um e claro, as ilustrações magníficas de Dave McKean, parceiro de Gaiman de anos, são lindas e ajudam ambientar esta bela estória. Difícil de acreditar que um cemitério seria um lugar tão cheio de vida como aqui apresentado, não é a toa que Neil Gaiman é um dos maiores escritores da atualidade.