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  • Resenha | Tempos Extremos – Míriam Leitão

    Resenha | Tempos Extremos – Míriam Leitão

    “A história é dura para com os seus anônimos.”

    A veterana jornalista Míriam Leitão é uma figura controversa por suas opiniões, dona de altos e baixos em sua carreira, em especial na Globo News. Acima de tudo, soma-se a isso sua credibilidade enquanto profissional da comunicação e sua aptidão a literatura, como nesse recente Tempos Extremos, seu primeiro romance, publicado pela famosa editora Intrínseca. Expondo seu vasto repertório intelectual sobre o país que habita, e o seu interesse insaciável por quartos escuros e empoeirados que impede uma casa de ser limpa, Leitão constrói sua própria Macondo, a mítica aldeia de Gabriel García Márquez, tendo na centenária fazenda Soledade de Sinhá o seu portal físico para uma outra “dimensão”; outras eras de um Brasil inacabado que vê suas feridas abertas e nunca as trata. Feito brasa que, ao mero sinal de brisa rarefeita, também revive o fogo de outrora. A história importa, sim, e quem comanda o mundo sabe muito bem disso.

    Em um universo paralelo de múltiplas realidades que suga os mais curiosos, somos a ele tragados junto da doce, discreta, pensativa e corajosa Larissa, jovem mulher que passa um feriado com a família no interior mais denso de Minas Gerais, atendendo ao chamado da avó para ver toda a família reunida. No que começou como um vulto escuro a ser seguido, Larissa então recebe outros chamados de um pretérito que deseja engoli-la por entre suas veredas, como se aceitasse uma turista do presente a transitar pelos idos reprimidos que nunca desapareceram do DNA desta terra. Justamente por ser historiadora, Larissa começa a duvidar se as suas visões e interações com o passado e suas figuras típicas são mero delírio, algum tipo de distúrbio mental projetando períodos históricos diversos, ou uma realidade fantástica que só se revela a ela, e começa a tomar conta do cenário repleto de documentos, cheiros e enigmas históricos.

    Todo escritor merece sua própria Macondo, sua Nárnia, sua Soledade de Sinhá para atravessar a outras realidades temporais, seja lá quais forem os motivos de acessá-las, rompendo linhas entre o hoje, e o ontem. Leitão impressiona em sua prosa por mixar outros conflitos (a época da escravidão, o regime militar) sob a lente política e crítica de uma mulher de alma desbravadora, e que em sua postura e dialética flerta absolutamente bem com os interesses da própria autora de Tempos Extremos. Toda a consciência de Larissa faz paralelo a de Leitão, vivendo uma aventura junto de sua família rumo aos rincões de um país abissal, e promovendo reviravoltas e reflexões para si mesma e aos seus entes queridos acerca do mundos dos mortos que tanto nos influencia – influência inteligentemente metaforizada aqui nas decisões que Larissa começa a tomar, da metade do livro em diante, para se infiltrar, cada vez mais, na sedução que fantasmas de outras raças, outras épocas a propõe. Alma detetivesca incendiada pela iminência das próximas pistas de um quebra-cabeça irresistível.

    “O país tem direito a verdade e a memória”, diria qualquer jornalista e historiadora que se preze. Naquela fazenda, Larissa vai literalmente do século XXI aos porões da Casa Grande, quando a sociedade escravocrata presenciou pela primeira vez uma negra tocando piano (a mais bela e simbólica passagem do livro), enquanto lembranças de um tempo autoritário (e recente) do país vêm à tona, impactando toda a família na fazenda e as relações com o tempo atual. Leitão surfa entre décadas e séculos com grande desenvoltura, e o passado assim se alastra: Tudo é tomado de assalto por verdades antepassadas que precisam se mostrar, urgentemente, seja no claro, seja no escuro. A história importa, e a autora ilustra isso da melhor forma possível em tempos que pedem empreitadas do tipo. Isso porque o Brasil talvez não evolua em seus principais aspectos justamente por não resolver de fato as suas pendências, por não reviver os seus porões, preferindo trancá-los e passar tinta nas imperfeições mais basilares. Não é o mesmo com a gente? Seria então o mesmo com a nossa pátria.

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  • Crítica | Vazante

    Crítica | Vazante

    Daniela Thomas tem filmes de cunho bastante contestador, normalmente retratando parcelas ignoradas e à margem da sociedade. Linha de Passe, que fez junto com Walter Salles, se localizava na periferia de São Paulo e mostrava o cotidiano de uma família lutando para sobreviver; Terra Estrangeira retratou a exploração de brasileiros em países europeus; e por fim, O Primeiro Dia demonstrou a rotina dos desafortunados e marginais que veem na vida bandida uma opção para subsistência. Vazante é seu primeiro longa-metragem solo, e mostra a solidão e devastação sentimental que ocorria na época de um Brasil ainda colonial, passando pela discussão da posse que os homens tinham sobre as mulheres, evidenciando ainda a escravidão dos negros africanos e seus descendentes.

    Na trama, conhecemos Antônio (Adriano Carvalho), um português, sujeito de muitas posses, dono de terras e escravos, que vê o dia-a-dia de sua fazenda entrar em ruínas, por conta disso, migra pelo interior brasileiro. Ao chegar ao seu destino, sua esposa ainda grávida falece, fazendo-o abandonar bens e família. Assim, seu cunhado Bartholomeu (Roberto Audio) ao tentar remediar a situação financeira da família, acaba por perder a carga que carregava, entre elas, os escravos estrangeiros que não sabiam uma palavra sequer de português.

    O núcleo familiar de Bartholomeu se põe em perigo, uma vez que não tem dinheiro para lidar com suas próprias despesas. A partir daí, o desposamento da jovem caçula Beatriz (Luana Nastas) se torna algo aceitável, já que mulheres eram vistas apenas como mercadoria. Desse modo, um novo ponto de vista é adicionado, já que Beatriz se aproxima demais dos negros que servem a casa-grande, não tendo conexão alguma com boa parte de sua família, exceto Dona Zizinha (Juliana Carneiro da Cunha), sua já senil avó.

    A  amizade estabelecida entre Beatriz e Virgílio (Vinicius dos Anjos) é mal construída, soando bastante gratuita em certos momentos. A observação da menina sobre a rotina terrível dos escravos faz lembrar em partes o bom filme O Abraço da Serpente, do colombiano Ciro Guerra.

    Algo extra-filme fez Vazante se tornar notícia antes mesmo de entrar em circuito. Quando foi exibido no Festival de Brasília já tarde da noite, o filme havia sido ovacionado, no entanto, um dia depois passou a ser depreciado por completo, com alegações de que daria margens à um subtexto racista, por se utilizar de uma história ambientada à época da escravidão sob a ótica de uma personagem branca, desse modo, deixando de dar voz aos personagens negros do filme.

    De fato, Thomas não tenta repaginar o que O Nascimento de Uma Nação fez, e o volume de análises com tons mais críticos do ponto de vista racial do filme têm transbordado os sites e jornais especializados, vez por outra ignorando a análise técnica do longa para se mirar apenas em elementos polêmicos para aumentar a discussão e angariar acessos em seus sites.

    Os problemas textuais do roteiro de Daniela e Beto Amaral são muitos, em especial no que diz respeito às ambiguidades que propõe. Antônio é um sujeito que parece perturbado por algo, ao mesmo tempo em que seu código ético é absolutamente vergonhoso. Sua crença de que a culpa de sua antiga esposa ter morrido é de responsabilidade de seus servos é absolutamente injusta diante do que se mostra em cena, e falta claramente um direcionamento da história para evidenciar que tal pensamento é falacioso. Se a tentativa foi gerar ambiguidade, esta falha horrendamente, já que não há muitos elementos para que dê sustentação a essa discussão. Há também uma dificuldade em criar conexões entre personagens e os espectadores, fazendo com que mesmo as mulheres que são abusadas pelos ideais de Antônio, não causem qualquer empatia na plateia, com exceção da pena que é universal para qualquer pessoa que sofra qualquer tipo de abuso.

    Mesmo as personagens que mais se aproximam de ter uma ligação real e emotiva são desperdiçadas, tanto Beatriz quanto a personagem de Jai Baptista, que são mulheres de repertório completamente diferente, mas que não possuem jornadas que conversem minimamente entre si. Apesar de não ser o manifesto racista como alguns críticos e espectadores pretendem vender, Vazante não entrega uma história sobre necessidade de liberdade ou sofrimento inevitável, imposto e resignado como foi antes vendido.

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  • Crítica | Menino 23: Infâncias Perdidas do Brasil

    Crítica | Menino 23: Infâncias Perdidas do Brasil

    Há um ditado popular que define que a verdade nunca fica escondida para sempre. Talvez a repetição costumeira da expressão faça com que ela perca a força, mas, ainda assim, é uma máxima funcional. Ocultar fatos e, portanto, a verdade é sempre um aspecto mais doloroso do que analisar a realidade sem filtro.

    Baseado na tese de Doutorado em Educação de Sidney Aguilar Filho, defendida em 2011, Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil é um documentário que retoma um passado obscuro do país a partir de um fato inusitado. Em uma aula de história de Sidney sobre nazismo, uma aluna aponta que na fazenda da família um pequeno acidente revelou um conjunto de tijolos com a suástica nazista. A partir dessa evidência o autor investiga a história, descobrindo no município de Campina do Monte Alegre uma fazenda de uma poderosa família da região que retirou 50 crianças negras de um orfanato para escraviza-las.

    O documentário de Belisário Franca retorna a um Brasil de 1930 apresentando a contextualização mundial e social do país na época. A Bolsa de Nova York havia quebrado no final da década anterior. O país vivia a crise mundial e ainda se readequava tanto a uma nova condução política com o fim da República Velha como ainda sofria para estabilizar socialmente os escravos, alforriados há apenas 42 anos.

    Na época, o patriotismo e o nacionalismo se confundiam entre orgulho a pátria e uma ideologia que identificava uma preservação da nação acima de tudo. Seguindo vertentes internacionais, o Brasil foi um dos países a alimentar o movimento nacionalista aliado as teses favoráveis a eugenia, uma busca de uma pureza racial. Em um momento anterior ao domínio de Hitler no poder da Alemanha e de toda a barbárie do Holocausto, a eugenia ainda era vista como um movimento intelectual que foi observado como um ato de modernidade capaz de alinhar a nação a outros grandes países. Campanhas sanitárias e educacionais fomentavam o movimento eugênico brasileiro analisando, por exemplo, a importância da esterilização, da seleção de imigrantes e análises sobre o que seria a verdadeira raça brasileira com teses apontando que a mestiçagem inviabilizaria o país como grande nação.

    Dentro desse cenário delicado, a narrativa aponta a história de uma importante família local que adota no Rio de Janeiro um grupo de crianças negras com a falsa pretensão de educa-las. Recebidas em uma fazenda em Campina do Monte Alegre, as crianças vivem em situações precárias, vivendo isoladamente como escravos a serviço da família.

    O documentário apresenta a trajetória de dois jovens que sobreviveram ao período e prestam seu depoimento histórico sobre um grupo que nem mesmo possuía nome. Oficialmente adotados pela família, o grupo era tratado por números, bestificados a perder seu próprio nome de batismo. O Menino 23 destacado no título da produção é Aloísio Silva, um dos personagens centrais dessa história. Em um amplo espaço isolado, a fazenda dos Rocha Miranda era um espaço ideal para demonstrar a leniência da lei. O status de representante da elite brasileira na época, garantiu-lhes a facilidade em adotar 50 garotos sem grandes questionamentos.

    Trazendo a verdade a tona, a produção revela com fatos informações abrangentes que, ao mesmo tempo, compreendem a época e demostram a violência vivida pelos garotos em uma ação que, independente do pensamento eugênico popular no país, explicitava o racismo que ainda perdura. Ao dar voz aos garotos-sem-nome, o documentário revela o outro lado da história. Elimina qualquer anonimato que mascara o conceito da escravidão, do preconceito e do racismo para apresentar personagens reais que viverem na pele anos de violência física e emocional instituída por uma família de elite, em grande parte apoiadora de teorias estúpidas mas, estranhamente, bem quistas na época.

    Os tijolos com a suásticas encontrados por acaso pontuam a muralha que escondeu durante muito tempo a verdade. Uma ação perversa em um período não tão distante do país que funciona como exemplo de um racismo na época, trazido a tona graças a um acaso, nos fazendo questionar quantos mais casos como esse nunca foram revelados e quantos ainda existem em pleno século XXI. Um fato entristecedor de uma realidade que ainda persiste nas diversas desigualdades do Brasil.

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  • Crítica | Um Estado de Liberdade

    Crítica | Um Estado de Liberdade

    Se tem um assunto além da segunda guerra mundial que os EUA adoram fazer filmes sobre é a sua Guerra Civil. Durando de 1860 a 1865 entre os confederados e a união, a também chamada Guerra de Secessão forjou violentamente o caráter industrial do Norte do novo país, assim como manteve suas tradições racistas e agrárias no sul. Este conflito mexeu tanto com o imaginário do americano que museus, roupas, armas, cartas de soldados e encenações de batalhas são um enorme filão de comércio, mas sempre mantendo a dicotomia Norte x Sul. Neste sentido, Um Estado de Liberdade joga uma nova luz sobre o evento.

    O filme conta a história de Newton Knight (Matthew McConaughey), um pequeno proprietário de terras do interior do Mississipi que ao perceber a inutilidade de uma guerra que não era sua, deserta (como muitos soldados confederados) e volta para casa. Ao se dar conta das injustiças que os confederados cometem contra uma família de amigos, tenta protege-los, mas isso expõe seu status de desertor e ele precisa fugir. Ao ser ajudado, se une a também escravos fugidos e ali passam a tramar uma insurreição contra os confederados dentro de seu próprio território.

    Devido aos desmandos do comando sulista, os desertores só engrossam as fileiras dos revoltosos, causando problemas reais aos grandes proprietários de terras e escravos da região, devido ao caráter abolicionista e igualitário da insurreição. Porém, quando Knight não recebe apoio nem da união, a revolta enfraquece, e o consequente fim da guerra e os acordos de paz entre as elites locais trazem uma paz para os ricos de outrora, mas uma perseguição intensa aos antigos escravos libertos, formando as primeiras células da KKK na região, tratados no excelente terceiro ato do filme.

    Se por um lado a história de Knight é interessantíssima sob o ponto de vista da história local e de como uma pequena parcela da população local se organizou por conta própria, o filme trata o próprio protagonista de uma forma tão heroica que soa como uma das grandes biografias do passado, contrastando com a proposta de trazer novos tons a uma narrativa tão batida. O passado de Knight, que poderia explicar porque ele não era racista como seus iguais (a ponto de ter o primeiro casamento inter-racial registrado) no estado mais racista dos EUA, é completamente ignorado, e ele acaba encarnando o papel do “homem branco bom”, que assola os filmes passados na época.

    Na mão de um roteirista e diretor um pouco mais competentes, toda a excelente produção e reprodução fiel das batalhas do século XIX, de uma guerra antiga, teriam uma importância muito maior, assim como o trabalho de atuação, muito competente, por parte de todo o elenco. Comparando com Tempo de Glória, todas essas diferenças de tratamento ficam abundantemente claras, no entanto, com essas escolhas dramáticas rasas, lembra mais O Patriota. Com seus 139 minutos de duração, tempo para desenvolver isso não foi uma questão, e sim direcionamento, ou talvez talento.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Resenha | Cumbe

    Resenha | Cumbe

    Cumbe - Capa

    A melhor interpretação da canção A Carne, composta por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette, foi realizada por Elza Soares. Em tom agudo, a intérprete proclama com voz visceral: a carne mais barata do mercado é a carne negra. Uma frase pesada de tom metafórico que carrega a interpretação vinda de épocas antigas em referência ao preconceito racial.

    Retornando às origens da História do Brasil, Marcelo D´Salete nos apresenta Cumbe, uma HQ com quatro histórias passadas na época da escravidão. São relatos que evidenciam sentimentos primordiais, como amor, liberdade e fé, conduzindo os personagens centrais, escravos que desejam se ver livres de grilhões impostos pelo sistema escravocrata, infelizmente presente em diversas nações mundiais de épocas passadas, que não consideravam aberrante o uso de um povo estrangeiro, retirado à força de seu país materno, como mão de obra. Sob poder do chicote, a escravidão se difundiu no país do Brasil Colônia ao Império durante oficialmente mais de 300 anos.

    A narrativa economiza nas palavras. Transcorrem no silêncio imagético entre sinais e inferências, dando-nos a imersão àquela época em que qualquer sussurro por parte dos negros era exemplo para demonstrar o poder de seus donos, entre prisões, torturas e morte. Os traços dão a dimensão emotiva da história, representada por um grupo que fez parte da história como um povo maltratado e que, acima de tudo, desejava sair desta condição. Um retrato cruel da origem dos negros no país.

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    No livro É Isso Um Homem? do italiano Primo Levi, um judeu que viveu a experiência do campo de concentração, é mencionada a questão da identidade dentro de um sistema opressor e do quanto estas pessoas se apegam até mesmo a elementos simbólicos – no seu caso, ele menciona um botão de camisa – para continuarem com garra para sobreviver. Em Cumbe, forças sagradas ou superiores são tais referências de resistência: deuses, o amor, o mar como profecia de purificação, quilombos como esperança de um futuro livre. Um conjunto que forma maneiras diversas de projeção e proteção contra o presente agressivo. Histórias trágicas carregadas de violência e morte, um sufocamento diário que tratava os negros como párias da sociedade. As poucas cenas em que os escravocratas aparecem são motivadas pela violência, e a obra é capaz de trazer a apreensão e tensão ao leitor.

    A composição do Brasil é oriunda de origens diversas, e parte da vasta cultura do país deve-se aos índios nativos e aos africanos. Neste aspecto, a história mantém o apuro de diversas referências a expressões e tradições africanas trazidas pelos escravos. O título Cumbe, por exemplo, refere-se tanto ao quilombo de alguns países americanos como às línguas de Congo e Angola, cuja tradução da palavra significa sol, dia, luz, fogo, símbolos abstratos fundamentais para a composição da matéria da vida como metáfora simbólica. O glossário de termos, além da referência bibliográfica, demonstra o apuro de D´Salete em produzir uma obra com fidelidade histórica.

    Mesmo que o passado seja amargo, a obra lançada pela Editora Veneta é de uma triste beleza e merece ser lida tanto quanto registro histórico  como belo objeto de arte.

    Compre: Cumbe – Marcelo D´Salete

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  • Crítica | 12 Anos de Escravidão

    Crítica | 12 Anos de Escravidão

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    A introdução que McQueen arquiteta é típica de sua filmografia, com nenhuma palavra por parte dos importantes personagens mas escancarando o conjunto de sensações que eles têm através das imagens. Solomon Northup (Chewtel Ejiofor) passa por formas diversas de escravidão, desde o simples plantio de cana até ganhar status e seguir o serviço de músico, como um negro livre das amarras que ainda prendiam seus irmãos. Solomon é obrigado a retornar ao estágio de cativo, perdendo o direito que conquistara para si legitimamente, e com isso, os conflitos que visavam o retorno a liberdade vieram, entre eles, a condescendência de alguns do escravizados. Um dos negros, Clemens, ao ser indagado sobre uma possível rebelião diz:

    “Somos negros, nascidos e criados escravos. Os negros não têm estômago para lutar.”

    A mercantilização das vidas é mostrada de forma emocional, com uma rasgante separação de uma mãe e suas duas crianças… Solomon toca seu violino na tentativa de desviar a atenção da separação, mais tarde recebe o nome de Platt, é comprado por Mister Ford (Benedict Cumberbatch) e volta gradativamente a resignar-se e aceitar o chicote. Ele próprio vê Platt como uma outra personalidade, a que aceita os maus tratos a fim de sobreviver mesmo sabendo o quanto isto é injusto.

    McQueen flagra as consequências da rebeldia, mostrando o personagem preso com uma corda no pescoço por longos momentos, após uma discussão com um dos mestres brancos. Mesmo estando “certo” ele é mantido suspenso, sofrendo por seu ato de desobediência, para aqueles que exploravam seus préstimos, sua vida prosseguia sendo inferior, mesmo para aqueles que este considerava benevolentes.

    Edwin Epps, o novo mestre de Platts é imprevisível, e atuação tresloucada de Michael Fassbender grifa ainda mais esse aspecto. A religiosidade, algumas vezes ligada a esperança de dias melhores, é muito presente na vida dos homens brancos, e os motiva de forma diferente, Ford prefere tratar a todos da forma mais suave possível enquanto a rigidez de Epps é dita como prevista nas páginas sagradas da Bíblia, o realizador utiliza a filosofia religiosa para demonstrar diferentes pontos de vista relativos ao convívio com o diferente.

    Patts, uma das escravas “preferidas” de Epps interpretada por Lupita Nyong’o, é mostrada com as costas inflamadas e sangrando graças a uma sessão de chibatadas de seu mestre: esta parte constitui em si uma cena forte e bastante chocante, não só pelo grafismo do sofrimento, mas também pelas injustas razões do castigo. O espanto para o público infelizmente não é o mesmo para os personagens, acostumados a atos selvagens como aquele. O escravocrata faz questão de humilhá-la e tortura Solomon mentalmente, tentando coagi-lo, por perceber que ele tem um pouco mais de liberdade de pensamento que os outros negros servis.

    Quando o golpe finalmente é resolvido, os cabelos de Solomon são grisalhos, suas feições mudaram, estão mais duras, ele está marcado como nunca, mas ao ver os seus novamente, sua reação é de desabar em lágrimas em frente àqueles que tanto buscava, e seus constantes pedidos de desculpas são prontamente recusados. Mais tarde, ele se tornaria um ativo crítico abolicionista, mesmo sem ter sucesso nos tribunais contra seus agressores. O roteiro adaptado de John Ridley é competente demais em mostrar os muitos momentos da trajetória de Northup, sem fazer concessões e sem saídas politicamente corretas, pois expõe uma realidade dura e cruel sem dar ao povo retratado um papel estereotipado de vítima. A direção de Steve McQueen é ainda mais madura do que a apresentada no ótimo Shame, o que demonstra uma ótima evolução por parte do diretor, especialmente em tocar em temas tão delicados quanto os abordados na sua ainda breve filmografia.

    Ouça nosso podcast sobre Steve McQueen.

  • Crítica | Django Livre

    Crítica | Django Livre

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    Não é todo dia que vemos um filme de Quentin Tarantino no cinema. Nas duas últimas décadas, o estadunidense de 50 anos lançou apenas 8 filmes, e mandou bem em todos!

    O número de títulos assinados por Quentin é tão impressionante quanto seu aproveitamento: O filme mais fraco (minha opinião: Jackie Brown) não pode ser chamado de ruim, o casting de seus filmes sempre é incrivelmente estrelado e Hollywood sempre vê seus futuros projetos com bons olhos. Foi assim desde Cães de Aluguel, seu primeiro filme e que teve atores muito famosos se acotovelando para ocupar os poucos papéis disponíveis. Diretor novato, Tarantino conseguiu o que ninguém acreditava ser possível para um estreante: Ter o projeto aceito por um dos maiores nomes da época em Hollywood, o renomado Harvey Keitel. Além de Keitel, o primeiro filme de Quentin Tarantino, contava também com Steve Buscemi, Michael Madsen, Tim Roth e ele próprio, dentre outros.

    Assim como seus filmes, Tarantino possui várias marcas registradas que transbordam nas películas e fazem dele um diretor autoral com o nome gravado à ferro na história do cinema. Exímio diretor de câmera, abusa dos chamados long shots com cenas de até 10 minutos sem cortes. Seus roteiros, geralmente originais, trazem personagens de personalidade forte e a grande maioria das tramas tem uma dualidade muito evidente: Os personagens nunca são completamente vilões ou mocinhos. O grande trunfo dos filmes “tarantinescos” sempre foram os personagens e seus diálogos, muitas vezes surreais, sobre assuntos cotidianos.

    Os filmes dirigidos e roteirizados por Quentin tem, também, uma veia sanguinolenta e extremamente violenta que sempre se apresenta por grandes tiroteios, linguagem obscena e violência explicitada com litros e mais litros de sangue que transformam os cenários em retratos de chacinas fantasiosas, totalmente inverossímeis e exageradas. Todo filme dele é aguardado do anúncio à estreia com expectativas muito elevadas por parte da comunidade cinéfila, e Django Livre não foi exceção.

    O filme conta a história de Django (D-J-A-N-G-O, o “D” é mudo…), um escravo que é resgatado por um caçador de recompensas enquanto era transportado de sua fazenda de origem para um outro local. O caçador de recompensas, um alemão abolicionista conhecido como Doutor King Schultz, propõe a Django que o ajude a capturar (e matar) os três donos da fazenda em que ele trabalhava e em troca oferece sua liberdade e algum dinheiro para recomeçar sua vida. A principio relutante em aceitar a proposta, o escravo parte com o caçador em uma viagem em busca dos alvos.

    Depois de achar e matar os três irmãos e mais crédulo do discurso anti-escravagista do nobre Doutor Schultz, Django recebe a ajuda do caçador para reaver sua esposa, vendida para um fazendeiro de identidade até então desconhecida. Enquanto viajam lado-a-lado caçando procurados por todo o sul dos Estados Unidos, os dois se tornam amigos em busca do objetivo maior de Django: reunir-se novamente com sua esposa Broomhilda.

    O filme, vendido para mim como um thriller de ação e vingança se mostrou outra coisa durante a primeira uma hora. Esperei ver litros de sangue, tiroteios frenéticos e muitos personagens se interligando ao maior estilo Quentin Tarantino mesmo, mas essa primeira parte do filme não tem nada disso. Decepcionado? Nem um pouco!

    Esta primeira (e maior) parte do filme foca inteiramente na interação de Django (Jamie Foxx) e Schultz (Christoph Waltz). Tem diálogos impressionantemente bem feitos, ótimos momentos de humor e ação na medida certa para desenvolver os dois personagens. Durante esta primeira metade, Django e Schultz caçam dezenas de procurados enquanto o escravo aprende a técnica necessária para colocar seu plano em movimento. Quando finalmente descobrem o paradeiro de Broomhilda (Kerry Washington), as rédeas do filme passam para as mãos do protagonista-título da trama. Até este ponto de virada, Waltz leva o filme com a mesma maestria e atuação  que deu vida a Hans Landa (vivido por Waltz em Bastardos Inglórios, também de Tarantino). Impressionou-me bastante a forma como ele trabalha magistralmente bem junto de Quentin Tarantino, e o filme é levado por ele com uma atuação de gala que lhe rendeu, merecidamente, a indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante. Seu personagem alterna extremamente bem momentos de serenidade e bondade com sequências de implacável violência e inteligência na caça aos bandidos procurados.

    E por falar em atuações de gala, Samuel L. Jackson está tão solto e frenético em “Django Livre” quanto estava em Pulp Fiction (pra mim, o melhor filme de sua carreira). Aqui, ele vive o afetado Stephen, um escravo que trabalha há muito tempo para o personagem de Leonardo Dicaprio administrando sua fazenda e cuidando da casa. O inglês pronunciado com um incômodo sotaque texano e sua falta de educação nos diálogos rendem boas risadas nos últimos 40 minutos de filme. Sua atuação tira parte do brilho do personagem de Leonardo Dicaprio, que vive Calvin Candie, um dono de terras que negocia escravos negros para as lutas de “mandingos” e é o atual dono da esposa de Django. Interpreta bem, nos poucos momentos em que o roteiro o deixa em evidência, mas não faz nada extraordinário.

    Jaimie Foxx me surpreendeu bastante com sua atuação. Na verdade, era o único que eu não sabia o que esperar mas manda bem demais durante todo o filme. Django é um personagem complexo e ele pareceu entender bem qual era seu propósito no roteiro, sendo modesto quando necessário, violento e forte quando o roteiro assim o pede e, como já falei, tomando as rédeas do filme depois que o personagem de Waltz vai embora.

    E é só depois que o nobre Dr. Schultz se ausenta que o filme toma ares mais tarantinescos de verdade. Passa, apartir dalí, a se tornar um filme sobre vingança, com ritmo acelerado e, como não poderia faltar, baldes e mais baldes de sangue derramado na tela. A velocidade da câmera, as viradas no plot e a aparição modesta de Quentin na tela mudam completamente a pegada do filme e compõe, agora sim, o thriller frenético de ação e vingança que haviam me vendido. Não sei precisar qual das duas partes eu gosto mais, mas este é certamente um adendo favorável ao meu resumo da obra: Comprei um ingresso de cinema e acabei vendo dois excelentes filmes!

    A trilha sonora é simplesmente uma das mais fantásticas que eu já ouvi e ajuda demais a ditar o andamento das cenas. Misturando estilos, Tarantino traz para o filme uma série de artistas diferentes que vão desde as trilhas compostas por Ennio Morricone até uma música montada num remix incrivelmente bem feito que une as vozes de, acreditem, James Brown e Tupac Shakur!

    Que outro autor/diretor você conhece com moral suficiente para emplacar um Western ao som de Hip Hop?! E o melhor da trilha é que ela está disponível, gratuitamente, para ser ouvida neste link. Nele você encontra todas as trilhas empregadas e algumas citações tiradas do próprio filme. Abaixo, a música póstuma produzida pelo Rei do Soul e o Mestre do Rap:

    Com orçamento estimado em 100 milhões de dólares e faturamento de quase 350 milhões, “Django Livre” tornou-se o maior e mais bem sucedido filme da ainda curta (mas muito bem sucedida) filmografia de Quentin Tarantino. O filme chegou ao Brasil em 18 de janeiro, mas ainda está em exibição em algumas poucas salas do país. Tarantino, que já anunciou que não pretende ir muito além de 10 filmes em sua carreira, conseguiu um resultado excelente e acima do meu esperado ainda que tivesse grande expectativa para o filme. Como já é de praxe, fez dezenas de referências durante os 160 minutos de filme. Referências facilmente captadas, como o nome do personagem e trilha de abertura (retirada do filme “Django”, de Sergio Corbucci), diversas metáforas ao homem branco e à relação do negro com a liberdade e até uma crítica bem humorada à Ku Kux Klan. Um filme bastante fácil de compreender, divertidíssimo e nada cansativo, que merece ser visto por todos os fãs de cinema, menos o Spike Lee.