Tag: Ethan Coen

  • Crítica | Papai Noel às Avessas

    Crítica | Papai Noel às Avessas

    No ano de 2003, chegava aos cinemas um filme de natal que fugia completamente dos tradicionalismos. Produzido pelos irmãos Bob e Harvey Weinstein e por Joel e Ethan Coen, Papai Noel as Avessas começa mostrando Willie, personagem de Billy Bob Thornton em um pub no final do ano, bebendo com sua roupa de trabalho, o tradicional manto vermelho, fumando e enchendo a cara, para logo depois vomitar na sarjeta. Seu olhar melancólico demonstra o total desânimo com a vida e completa não vocação para trabalhar com crianças.

    O filme de Terry Zwigoff tem duas versões, uma mais curta, de menos de 90 minutos e outra que tem quase cem e que possui uma explicativa narração, que vez por outra explicita demais sobre a origem do personagem e quebra um pouco da magia em volta de si. A rotina de Willie inclui ele atender as crianças de maneira impaciente e irônica, enquanto fica bêbado, sendo capaz até de se urinar. Com auxilio do anão Marcus (Tony Cox) que faz um duende com ele, ele espera o shopping fechar para saquear o mesmo.

    Ser um saqueador é apenas um dos defeitos do personagem, ele também é anti social, alcoólatra e tem fixação em bundas, não se permitindo ser educado nem um pouco com as mulheres que o rodeiam, incluindo aí as mães que fazem compras no shopping. As cenas extras da versão do diretor são fracas, mostram Willie de férias, ou confraternizando, e isso fere a essência do personagem, que é apenas um personagem ranzinza sem amigos, e o conflito que passa a ter com o pequeno garoto gordinho, que sofre bullying e é interpretado por Brett Kelly.

    O menino, que no filme não tem nome – e é chamado só de The Kid – parece ser o único que realmente se importa com ele, ainda que o faça por acreditar que Willie é o verdadeiro Papai Noel, e apesar de no começo a relação dois tenha sido de aproveitamento da parte do adulto, aos poucos o menino faz afeiçoar o beberrão, ao ponto até dele cometer atos graves como ameaçar crianças que maltratavam o rapazinho, chegando a ponto dele até treinar o menino com boxe, para que supere de certa forma o claro atraso mental que tem.

    O final do filme é conciliador, e mostra Willie evoluindo de certa forma, não ao ponto de se tornar alguém bom, mas ao menos ele é mostrado como um sujeito que consegue se afeiçoar a alguém que demonstra inocência, basicamente por conta da ingenuidade alheia e conseqüente incapacidade dessa pessoa de não passar-lhe a perna. Papai Noel as Avessas é sacana, mas ainda é comedido no politicamente incorreto, poderia ser mais transgressor, mas especialmente sua versão estendida faz perder boa parte da malandragem e dificuldade de socializar que Willie tem.

    https://www.youtube.com/watch?v=cEtRnuQcdys

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  • Crítica | A Balada de Buster Scruggs

    Crítica | A Balada de Buster Scruggs

    Os irmãos Coen (conhecidos, dentre outros, por Fargo: Uma Comédia de ErrosOnde os Fracos Não Têm Vez) assinam o roteiro e são responsáveis pela direção de The Ballad of Buster Scruggs. Não à toa, o filme parece uma coleção de contos. Aliás, essa é a maneira pela qual se apresenta a obra, algo como se o espectador estivesse lendo um livro de contos (assim mesmo, em primeira pessoa).

    O longo se inicia com a história do criminoso Buster Scruggs (Tim Blake Nelson), um animado pistoleiro do antigo oeste americano, que anda trajado de branco, sempre sorridente e cantarolando. Essa primeira história começa numa locação deslumbrante em meio um deserto repleto de formações rochosas. Embora haja, aparentemente, algum tratamento digital para as imagens, já há aí uma grande entrega da obra. Na trama, Scruggs se mete em uma disputa ao chegar num típico saloon de época. Ao tentar recusar assumir uma mão numa disputa de poker, seu adversário lhe diz: “You see’em, you play’em!” (algo como: Você viu as cartas, então você joga com elas). Esse é o momento em que Scruggs deixa a todos atônitos com sua ação e sua habilidade. “Eu não tenho uma natureza má, mas quando se está desarmado suas táticas precisam ser de Arquimedes”. Apenas 12’45” de filme já são suficientes para conquistar o espectador.

    Logo após, o ladrão interpretado por James Franco entra num banco no meio do nada e disputa a existência com um velhinho baixinho e meio louco. Uma atuação para ser lembrada, embora curta. A vontade de ver essa história num longa com Franco atuando dessa forma se torna enorme tamanho carisma. Ironia fina, hilário, comicidade no meio da selvageria sem lei. Joel e Ethan Coen não precisam pensar em assaltar um banco, merecem receber sacos de dinheiro.

    Toda a tragédia, todo o drama, toda humilhação e dor pode ser concentrada numa única vida? Liam Neeson é incapaz de ser um personagem diferente? Um ser humano pode ter menos valor que uma galinha? Alguns homens se sentem satisfeitos em usar outros como instrumentos. Se sua moralidade os permitirem, são capazes de usar outra vida como um meio para o alcance de um pequeno objetivo. Da mesma forma, são capazes de se desfazerem de tal vida, facilmente, sem que lhes custe muito. Segundo Abraham Lincoln, “… government of the people, by the people, for the people, shall not perish from the earth” (governo do povo, pelo povo, para o povo, não perecerá na terra); a mensagem dos irmãos Coen nessa citação direta do Discurso de Gettysburg – do então Presidente dos EUA, proferido durante a Guerra Civil Americana em 19 de novembro de 1863 – não poderia ser mais clara.

    Pode o homem ser uma força que assusta toda a natureza? Parece certo que a força que impulsiona o homem à conquista, à vontade de ter, o leva a superar o que precisar passar por cima. Tom Waits tem uma excelente atuação, faz saltar da tela a mensagem do quanto a impulsão do homem ao trabalho como meio para o ganho é forte, e tão mais forte quanto maior a possibilidade do ganho. O trabalho pode ser suado, penoso e moral ou amoral, sujo e traiçoeiro (em verdade, o não-trabalho). Muitas vezes, “Só as pegadas no campo e a terra mexida restaram da vida turbulenta que havia interrompido a paz do local e seguido em frente”. O que verdadeiramente importa se o potencial de ganho é alto?!

    E a vida pode dar uma pirueta ou piruetas, e fazer tudo que parecia sólido e certo se transformar em areia movediça. Só o desespero sobra. Só falta e ausência. E mesmo em ausência é a cooperação que nos move à frente. A história do homem não é uma história de bravos, fortes, inteligentes, astutos conquistadores solitários. Os solitários, por mais corajosos e fortes, morreram sem disseminar seus genes. Os seres humanos que cooperaram entre si foram mais longe, viveram mais, construíram mais, superaram desafios, lograram mais prole, deixaram para a história a disseminação dos seus genes.

    E aonde chega o ser humano, por fim? Tentar entender o que somos? Entender o que, no limite, faz diferir um de outro… Cada um de nós aparenta acreditar ter as respostas, não importa o quão amplas ou estreitas são nossas experiências, cada indivíduo teima em ter (e em ser) a medida correta. É possível observar isso na mais populosa multidão em uma grande “arena” ou no mais estrito grupo no menor dos cubículos. Cada indivíduo vai levando sua vida, julgando os outros, sendo repulsivo, afastando-se pouco a pouco por motivos fúteis uns dos outros, entretidos com bobagens, deixando de fazer, de ser, desperdiçando grande parte da vida. Quando a viagem acaba, quando chega o fim da linha, não é incomum o viajante ter jogado fora a oportunidade de aproveitar a viagem, sem ter nunca entendido de fato o que passou e o que está acontecendo ao seu redor.

    Aos irmãos Coen, resta agradecer pelas excelentes doses de comicidade, drama, tragédia, suspense e motivos para refletir. As seis histórias do filme têm uma sequência e lógica entre elas incrível, ainda que sejam sutis e difícil de perceber – não estão no “campo do roteiro em si”, mas no da natureza humana.

    Texto de autoria de Marcos Pena Júnior.

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  • Crítica | Suburbicon: Bem-Vindos Ao Paraíso

    Crítica | Suburbicon: Bem-Vindos Ao Paraíso

    Em sua sexta incursão por detrás da câmeras em um longa-metragem, George Clooney se reúne a dois roteiristas de peso, Joel e Ethan Coen, e ao parceiro Grant Heslov (Caçadores de Obras-Primas, Tudo Pelo Poder, Boa Noite e Boa Sorte) para uma narrativa de humor negro situada em 1959, em um subúrbio que reflete o sonho americano.

    Suburbicon: Bem Vindos Ao Paraíso se inicia como um anuncio antigo, informando sobre esse local quase idílico em que é possível viver com os mesmos confortos de uma cidade grande, sem os problemas enfrentados por grandes metrópoles. É neste local que residem os Lodge, uma família tradicional que após sofrer uma invasão por assaltantes, destroem a imagem de um grupo perfeito cedendo a vingança, chantagem e traição.

    Escrito na década de 80 pelos Irmãos Coen, dois anos após o lançamento de Gosto de Sangue em 1984, o roteiro foi desengavetado por Clooney, além de ter sido alterado com novas subtramas, como a presença da primeira família negra no bairro, um evento baseado em um fato real que culminou em violência e agressão contra a família.  Em pouco tempo de exibição, é possível perceber o estilo narrativo dos irmãos, a crítica estabelecida sobre a falsa perfeição da sociedade americana e as consequências de um crime que destroem a família, revelando as camadas podres por debaixo da pintura. A conhecida comédia de erros tão bem definida no clássico Fargo – Uma Comédia de Erros.

    A reescrita do antigo roteiro com acréscimos de subtramas para encorpá-lo é um feito visível na tela. A história envolvendo a família negra é mal aproveitada, funcionando mais como um pano de fundo mostrando as tensões da época do que mais uma denúncia contra o falso moralismo americano. Enquanto a trama central parece esconder inicialmente a índole dos personagens, como se o público não soubesse se tratar de uma trama crítica. Ao evitar abordar a família como um grupo corrupto, salvo o pequeno garoto Nicky, o filme perde tempo excessivo decompondo o pai de família. Se desde o início ele fosse desenvolvido como um homem imoral, a crítica poderia ser mais eficiente.

    O universo estabelecido em cena sobre um bairro idílico é funcional, a paranoia e o preconceito envolvendo a família de negros é perceptível como se o bairro sob a grama aparada e os sorrisos representasse um mundo as avessas. Matt Damon e Juliane Moore dão um pouco mais de cor há um roteiro mal desenvolvido, bem como o coadjuvante Oscar Isaac brilha em suas únicas duas cenas. Porém, nada parece suficiente para causar incômodo nem estabelecer uma crítica profunda como era a intenção inicial.

    A ideia de Clooney em restaurar um antigo roteiro dos Coen é interessante e seria bem representativo como crítica se sua trama não parecesse desequilibrada. Como uma comédia de erros, a própria execução da trama se tornou também um erro. Suburbicon se destaca apenas por poucos bons momentos, lembrando-nos que tanto o diretor quanto os roteiristas já estiveram em melhor forma.

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  • Especial | Irmãos Coen

    Especial | Irmãos Coen

    Nascidos e criados no subúrbio de Minneapolis, no interior dos EUA, Joel e Ethan Coen são dois dos cineastas mais importantes das últimas décadas. Filhos de judeus e professores universitários, a temática judaica e a precisa irreverência sempre estiveram presentes em sua obra, juntamente com elementos difusos como uma violência muitas vezes brutal. Enquanto Joel estudou cinema, Ethan se formou em Filosofia, o que provavelmente contribuiu para alguns dos inúmeros dilemas morais que seus personagens passam em suas histórias.

    Com uma produção vasta, os Coen possuem vários filmes que poderiam ser citados como essenciais. O longa de estreia, Gosto de Sangue (1984), traz já alguns dos elementos que marcariam suas carreiras: o suspense, a tensão, a progressão lenta de eventos e o humor negro. Se em Arizona Nunca Mais eles soltam todo seu potencial humorístico em uma excelente comédia (com também excelente atuação de Nicolas Cage), Ajuste Final traz um filme de máfia compenetrado e focado, cuja única dúvida é por que esse filme não figura entre as principais obras do gênero.

    Barton Fink e Na Roda da Fortuna são produções tão díspares quanto interessantes, mas principalmente o fracasso comercial da última deixou a dupla sob a desconfiança da indústria, que logo se dissipou após três obras excelentes: Fargo e O Grande Lebowski, ambos com toques fortes de comédia, mas que não conseguem se encaixar apenas neste gênero. E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? Também aposta nesse caminho. A adaptação da Odisseia de Homero se passando na época da Grande Depressão garante outra grande experiência dento do universo conhecido dos diretores: a cultura sulista norte-americana.

    Se o esmero técnico ainda brilha em O Homem Que Não Estava Lá mesmo com uma história não envolvente, não se pode dizer na comédia romântica de folhetim O Amor Custa Caro (que justiça seja feita, não era roteiro deles) e no considerado pior filme da dupla, o remake Matadores de Velhinhas. Ambos dispensáveis e muito aquém da qualidade que já os vimos produzir.

    Porém, todo o talento da dupla é escancarado e reconhecido com Onde os Fracos Não Têm Vez, um suspense de perseguição de tirar o fôlego situado em uma época de perda de inocência e sobre a fragilidade do homem. A comédia volta ao centro de suas atenções com a escrachada sátira de espionagem Queime Depois de Ler e o excelente, meio amargo e judaico Um Homem Sério. Esse último, uma imersão essencial nesse caldo cultural tão rico quanto complexo.

    A adaptação do romance western Bravura Indômita garante um espetáculo visual e uma história sobre o oeste americano como poucos filmes recentemente fizeram. O mesmo faz Inside Llewyn Davis com o começo do declínio dos beatniks e de um fracassado cantor folk dos EUA. Já mais recentemente, o roteiro de Ponte dos Espiões garante uma boa história e bons diálogos nas mãos de Spielberg. Já o engraçadinho, porém decepcionante, Ave, César! apesar de tirar esboços de risadas do espectador, não traz a graça do talento à altura dos diretores.

    Sendo assim, os Coen estão consolidados como excelentes autores. Suas principais características, o humor negro refinado, o uso excessivo, porém pontual, da violência enquanto recurso narrativo, e a delimitação de personagens e locais com características marcantes, como sotaques e figurinos exagerados, garantem um toque visual e artístico completo e único em suas obras. A fotografia de um grande parceiro da dupla, Roger Deakins, também ajuda muito a compor todo o espetáculo visual a que propõem. Sem dúvida é uma filmografia a ser apreciada e essencial para se entender não só o cinema moderno e americano, mas a arte como um todo.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

    Filmografia (Diretor)

    (1984) Gosto de Sangue
    (1987) Arizona Nunca Mais
    (1990) Ajuste Final
    (1991) Barton Fink: Delírios de Hollywood
    (1994) Na Roda da Fortuna
    (1996) Fargo
    (1998) O Grande Lebowski
    (2000) E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?
    (2001) O Homem que Não Estava Lá
    (2003) O Amor Custa Caro
    (2004) Matadores de Velhinhas
    (2007) Onde os Fracos não Têm Vez
    (2008) Queime Depois de Ler
    (2009) Um Homem Sério
    (2010) Bravura Indômita (Crítica 2)
    (2013) Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum
    (2016) Ave, César!
    (2018) A Balada de Buster Scruggs

    (Roteirista)

    (2012) 0 Golpe Perfeito
    (2014) Invencível

    (2015) Ponte dos Espiões

    (Produtor)

    (2014) Fargo – 1ª Temporada
    (2015) Fargo – 2ª Temporada

    Artigos

    Filmografia Comentada Parte 1 – Por Douglas Olive
    Filmografia Comentada Parte 2 – Por Douglas Olive

    Atualizado até dia 20/01/2019.
  • Crítica | Ave, César!

    Crítica | Ave, César!

    ave_cesar_cartazO cinema do humor e do pastiche é uma característica clássica dos irmãos Coen, e a nova produção da dupla, a comédia Ave, César! traz novamente esse elemento a seus filmes, depois de duas produções mais sérias. Em cena está novamente George Clooney, dessa vez como o bonachão ator Baird Whitlock, astro de uma superprodução chamada Ave, César!, que conta a história de um general romano que se converte ao cristianismo após conhecer Cristo. Josh Brolin interpreta Eddie Mannix, um “resolvedor de problemas” do estúdio, que trabalha horas a fio para resolver tudo o que acontece dentro e fora do set a fim de que as filmagens não parem.

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    O mote inicial se dá quando Baird é sequestrado por dois figurantes e levado a uma casa de veraneio de outros trabalhadores de Hollywood, especialmente roteiristas, que explicam cuidadosamente ao confuso ator suas motivações. Curiosamente, todos são comunistas e usam vários jargões do materialismo histórico, quase o convencendo de sua condição. Nisso, a trama também lembra vagamente a de Trumbo: A Lista Negra. Enquanto isso, Mannix precisa encontrar Baird, ao mesmo tempo em que precisa decidir se muda para outro emprego, parar de fumar, encontrar um marido para a estrela solteira e grávida DeeAnna Moran (Scarlett Johansson) e também um ator conhecido para o filme do conceituado diretor Laurence Laurentz (Ralph Fiennes) em uma possível referência a Laurence Olivier. As cenas de Fiennes garantem ótimos momentos cômicos quando atua junto ao jovem e promissor Alden Ehrenreich, interpretando o canastrão ator de faroeste Hobie Doyle.

    Todas essas linhas de história se entrecruzam, porém em momento algum confundem o espectador, pois são extremamente simples, diretas e bem contadas, ao mesmo tempo em que são centralizadas em Mannix, o que torna o foco bem claro. Ao mesmo tempo, a pressa em resolver tantas histórias faz com que a profundidade clássica dos Coen seja deixada de lado, tornando o humor mais raso e menos conceitual. A diferença em relação a Um Homem Sério neste aspecto é gritante.

    Porém, a homenagem/sátira aos anos dourados de Hollywood, com suas megaproduções e seus artistas fabricados sob medida para manter a ilusão do público, funciona muito bem, com a paleta de cores e maquiagem pesada nos atores lembrando de forma precisa o visual da época. O desfecho do sequestro envolvendo Burt Gurney (Channing Tatum) também é digno de nota. A metalinguagem de se tratar a dedicação dos comunistas de Hollywood a URSS quase como um musical é icônica no sentido de que aquilo também era uma idealização de um imaginário para eles, tanto quanto o cinema da época fazia para o público. Porém, essa afirmação visual interessante acaba sendo deixada em segundo plano no final.

    Ave, César! é uma produção de nível técnico muito bom, mas falta em si um centro, uma trama mais enxuta e menos corrida, que nos fizesse digerir e acompanhar mais o que vemos na tela. Os bons momentos valem a conferida, mas deixa muito a desejar em comparação a obras dos Coen que abordaram o mesmo tema.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Review | Fargo – 1ª Temporada

    Review | Fargo – 1ª Temporada

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    Um dos trabalhos mais ingratos que se pode ter no mundo do entretenimento é cutucar um clássico, seja por meio de reboot, remake, ou transposição para uma outra mídia. Como então mexer em Fargo, o excelente filme dos irmãos Coen, que aqui produzem a série. Fargo, o filme, conta a história de uma pequena cidade na Dakota do Norte onde uma série repentina de assassinatos é desencadeada pelo acordo desastrado de um vendedor de carros que planeja sequestrar sua esposa e assim conseguir o dinheiro do resgate de seu detestável sogro, mas que precisa lidar com as adversidades e inteligência determinada de uma policial grávida.

    E assim, tão inesperado quanto os acontecimentos da série, Fargo se estabelece como a melhor série de 2015, não só por concorrer a diversos prêmios, mas principalmente por conter aspectos cinematográficos com qualidade vista apenas em alguns poucos longas-metragens, quanto menos na TV.

    Simplesmente tudo parece estar no lugar, e o grande mérito desta ousadia está em no criador e roteirista da série Noah Hawley, que dirige o primeiro episódio e roteiriza os demais e faz um trabalho irrepreensível.

    Fargo se passa na pequena Bemidji, em Minesota, e conta a história de Lester Nygaard, brilhantemente interpretado por Martin Freeman (O Hobbit, e a série Sherlock Holmes), um agente de seguros inseguro e passivo, sem força para revidar a qualquer ataque que seja, inclusive de sua esposa que vive a compará-lo com seu irmão mais novo e bem-sucedido. Tragado pela cidade e sua mediocridade, Lester parece estar sempre à beira de um colapso emocional. Frágil, em certo dia reencontra um antigo colega da escola o qual relembra os episódios de bullyng que praticou contra Lester, bem como um breve enlace amoroso com sua esposa. Com medo, Lester acaba se machucando, e no hospital se depara com uma figura estranha com olhos de tubarão e personalidade cínica chamada Lorne Malvo. O personagem interpretado por Billy Bob Thornton (Papai Noel às Avessas, Na Corda bamba), magnético como sempre.

    Rapidamente numa conversa, Lester se abre e deixa em aberto a estranha proposta de auxílio através do assassinato de seu agressor. Mas este pequeno encontro desencadeia uma série de mortes que ultrapassam os limites geográficos.

    Tudo isso é investigado pela ainda jovem, mas brilhante Molly Solverson (Allison Tolman), que desata os nós e relaciona Lester com Lorne Malvo. Tudo isso com bom trabalho policial e inteligência, mas sem jamais ser levada a sério pela atrapalhada força policial da cidadezinha.

    Como uma extensão do filme original, a série estabelece a região e Fargo e seus condados como uma espécie de fenda moral, um local onde aquilo que pode dar errado certamente dará errado. Um cotidiano absorvente que por algum motivo se mostra quase surreal, inclusive ao analisar a cadeia dos acontecimentos. Outra característica trazida do filme é que existem pessoas extremamente lúcidas carregando a trama, permitindo que não haja qualquer tipo de raio de manobra para que o roteiro não subestime a força de sua narrativa e o espectador.

    A escala crescente de violência funciona como motor da trama, que mais do que envolver algum mistério, ou coisa assim, fala do desenvolvimento dos personagens, todos frente àquelas situações. Assim como o filme que deu origem à série não é sobre o que irá acontecer, mas sim como irá acontecer. Sem recorrer à pirotecnia ou tramas rocambolescas, tudo é relativamente simples de acompanhar, mas feito de forma a se comunicar continuamente com o espectador que poderá vir a ter empatia com qualquer um daqueles personagens em seus dilemas morais, pois exatamente todos os personagens da trama são muito bem escritos.

    Outro destaque está na escolha dos diretores, com destaque nos episódios 7 “Who Shaves the Barber?” na direção, que traz um humor inspirado e envolvente, bem como soluções de cena geniais; para o episódio 9 “A Fox, a Rabbit, and a Cabbage” que consegue alavancar ainda mais uma história que em nenhum momento empalidece e segue em frente com determinação ímpar, algo que pode enfraquecer no caso de algum ponto anti-climático. Aqui a série se coloca em um estado introspectivo, mas mantendo a força de sempre. E por fim, o Season Finale “Morton’s Fork“, que consegue amarrar toda a trama de maneira simples e extremamente recompensadora, novamente demonstrando que a luta moral com o acaso é parte inerente daquela região e a aura quase surreal da neve intensa, onde o clima inóspito marca a população que se perdeu no tempo e ainda acredita ser tão pura quanto a neve, mesmo que constantemente manchada pelo vermelho do sangue.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Crítica | Ponte dos Espiões

    Crítica | Ponte dos Espiões

    Ponte de Espiões 6

    Tencionando retornar ao misto de boa história dramática, esmero técnico eficaz e carisma de personagem e narrativa, Steven Spielberg traz à luz seu filme mais significativo e eclético dos últimos tempos. Ponte de Espiões é baseado em uma história ocorrida no auge da Guerra Fria, e mostra o drama de Jim Donovan, conduzido por um cineasta apaixonado pelo tema pecados de guerra e inspirado em expor as contradições do “quase” conflito.

    Donovan é vivido pelo antigo parceiro de Spielberg, Tom Hanks, que também estava ávido por qualquer papel que exigisse dele um trabalho maior de corpo e sentimentos. O advogado é quase paladínico, preso a uma moral justiceira que compreende nuances que não são facilmente admissíveis em uma época tão paranoica e cinza. Antes de sua apresentação, o diretor conduz sequências silenciosas que emulam o operar dos agentes de espionagem de ambos os lados, soviético e capitalista.

    Mark Rylance faz um Rudolf Abel que não se permite em momento algum sair da personagem ambígua que lhe é proposta, ocasionando uma performance magistral, à prova de qualquer aforismo sentimental que pudesse atrapalhá-lo em seu trabalho, sem deixar de lado um comportamento espirituoso e muito carismático. O trabalho de cores, em que predominam o cinza e o grafite, salienta a dubiedade do caráter geral do mundo.

    A junção de destinos, com Donovan assumindo o caso de Abel, é recebida com reprimenda por parte da opinião pública, com uma rejeição dos próximos – incluindo familiares – e olhares recriminadores dos populares na rua. Esses fatores ajudam Jim a perceber o acerto em prosseguir em direção aos seus conceitos do que é certo e errado, contrariando o lugar comum pseudo correto.

    A segunda metade do filme se passa em território europeu, em uma missão que o jurista recebe para tentar ajudar seu cliente que foi condenado, ocasionando uma tentativa de troca do prisioneiro por outros dois presos de guerra estadunidenses. A falta de comunicação, igual ao conto bíblico sobre a Torre de Babel, tenciona mais uma vez salientar a temerosa linha de equilíbrio que era posta entre as duas forças dominantes do mundo, fazendo inclusive da Alemanha uma vítima dessa incômoda dicotomia.

    Exceto por alguns pecados – como mostrar a ideologia socialista de forma muito mais selvagem do que a capitalista, com um recurso bastante didático em retratar as diferenças, como comparativos tendenciosos -, Ponte de Espiões, em vista do que poderia ter sido, não é tão panfletário quanto filmes recentes, a exemplo de Crimes Ocultos, e alcançou nuances que normalmente não se encontram nas fitas recentes sobre a época.

    Spielberg tem um belo retorno a histórias que abusam de tramas paralelas e que não perdem força ao serem exibidas lado a lado, mostrando que as más relações também acontecem por parte dos alemães que vivem do lado ocidental do muro, salientando que o destino é trágico durante a guerra, seja qual for o lado. A demonstração máxima de amizade, feita pelo roteiro de Matt Charman, Ethan e Joel Coen, acompanha uma relação que vai muito além do simplista interesse egocêntrico, pautando na justiça de aspectos legais primários uma lição de civilidade acima de ideologias e dogmas baratos, o que resulta em uma história real e parcial em um drama universal.

  • Crítica | Invencível

    Crítica | Invencível

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    Invencível, novo filme dirigido por Angelina Jolie, adaptado do livro Invencível – Uma História de Sobrevivência, Resistência e Redenção, conta com os irmão Coen no roteiro para dar corpo à vida e à memória do atleta olímpico Louis Zamperini (Jack O’Connor), que após sobreviver 47 dias no mar é feito refém pelos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.

    A literalidade da obra não fica apenas no título, porém. Invencível é um drama clássico, ao menos em teoria, feito aos moldes da Poética de Aristóteles: é a síntese da busca pela catarse através da dor e sofrimento, com o objetivo de nos provocar medo e compaixão, para, em seguida, entregar uma breve purificação como fruto do sofrimento compartilhado.

    Apesar de seguir à risca o caminho canônico da tragédia dramática, falta a Jolie e ao roteiro dos Cohen o compartilhamento sobre o real estágio humano de seu protagonista, que em nenhum momento parece saber por que sobreviver. Falta comunicação com o espectador e um fio condutor melhor resolvido do que a frase “se puder suportá-los, pode vencê-los”, a qual Zamperini leva consigo como mantra.

    Datado como obra, Invencível não só é aristotélico como também platônico. Ao trabalhar diversos combates e situações em um plano quase etéreo, eleva seu protagonista aos céus, enquanto seus companheiros – tão sofridos quanto – mantêm-se no plano mundano. Jolie idealiza seu protagonista a ponto de achar que não precisamos de suas motivações, e que sua sobrevivência fala por si. Fora das convenções do cinema, sua fibra moral é óbvia, mas em determinado momento Zamperini deixa de reagir às privações, o que é problemático em termos de dramaturgia.

    Isso influencia no trato dos coadjuvantes, subaproveitados, que poderiam ter dado um pouco mais de sustância ao roteiro se houvesse nisso a tentativa de decodificar Zamperini ao público. A idealização faz sentido, já que o veterano foi vizinho e amigo pessoal de Angelina Jolie, chegando a participar ativamente da produção. Mas ao espectador falta justamente a catarse, da qual temos apenas vislumbres, como na belíssima composição da batalha ideológica do personagem principal e seu algoz, o sargento Watanabe, que perde seu potencial de conquistar até mesmo o mais blasé dos espectadores ao reafirmar a santidade do atleta olímpico e fazendo da cena um bem filmado exercício de futilidade. O resultado são 162 minutos do que seria uma bela história de resiliência filmada como se fosse apenas teimosia da parte de Louis.

    A crítica especializada (sic) diz que, quando uma crítica começa a análise falando bem sobre a fotografia do filme, é porque este não é tão bom, mas sim simpático. Simpático, mas nada empático; bonito, mas carece de poder cinematográfico, pois logo nas primeiras cenas a mão pesada da montagem enfeia todas as incríveis composições da direção de fotografia idealizada por Roger Deakins (Onde os Fracos Não Têm Vez, 007 – Operação Skyfall), e consegue tornar o filme mais insensível do que seu roteiro ao simplesmente não nos permitir contemplar cena alguma por carecer de ritmo. Não há suspiro quando deveria haver, nem tensão quando deveria haver. A tentativa de tensão é feita sem sutileza na transposição das cenas, levando o espectador a perder-se geograficamente mesmo em ações simples.

    Não faltará nem mesmo a tradicional explanação sobre o destino de seus personagens, apenas burocraticamente colocada para arremate. Um trabalho visualmente muito bonito e inspirado que funcionaria melhor em mãos mais delicadas e focadas.

    Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.

  • Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    Filmografia Comentada: Os Irmãos Coen – Parte 2

    De Gosto de Sangue a Inside Llewyn Davis, uma análise geral e não-datada sobre as diretrizes da obra de Joel e Ethan Coen. Da parceria primordial com Sam Raimi a dois lugares cativos nas expectativas de crítica e público, feito mais que raro, senão raríssimo. Suas obras são trabalhadas com mãos de pelica juntamente a todas as possibilidades do cinema, em seu estado humilde, para apostar em temas ricos, intentando criar algo inédito, como que com o ímpeto de um fracassado que aposta tudo na única chance de sua vida.

    A moral e a força dessas obras vêm em forma de lenta infiltração atrás da parede da sala, apesar da rápida duração, geralmente, das mesmas. Em um punhado de entrevistas dedicadas a dissecar o que está por trás dos estímulos da filmografia vigente, os cineastas não cedem a surtos didáticos sobre seu caminho no cinema, carregado de marcos em dobro.

    O Homem que Não Estava Lá(2001)

    O expressionismo alemão que não se mostra herdeiro das consequências do passado, mas de uma irrevogável essência dúbia e ambígua da composição do mundo surreal desses realizadores, corajosos por experimentar de tudo, um pouco; formados na fórmula de como se sustentar na corda bamba da criatividade. As sombras do interior de um homem expostas nas calçadas no contra plongée de um enquadramento, na possibilidade do filme ser mudo, sem carência de pantomima, na caricatura de uma história contida, prestes a explodir a qualquer segundo como um dínamo desconfiado. Até onde pode se estender a luz nas sombras do mero ser, quiçá os domínios da técnica numa produção com coração e possibilidade de submersão, além do visual. O Homem Que Não Estava Lá é um convite para o espectador ter a responsabilidade de sentir a história separadamente ao belíssimo arranjo e aquisição do fotógrafo Roger Deakins, o oposto do que as produções bilionárias de Hollywood tentam evocar. É como se os irmãos, através de cada frame e close facial do ator Billy Bob Thornton, levassem o público pelas mãos por um campo já arado, esperando uma semeadura de consciência para algo poder ser colhido dali. É claro que o potencial poético do filme não é de todo renegado, mas desde que a estrutura dialoga em primeira e terceira pessoa, o que é unilateral nos filmes de Joel e Ethan não tem vez.

    O Amor Custa Caro (2003)

    Crises existenciais sempre foram inerentes aos Coen, e aqui, em plena era da infinitamente atrasada igualdade entre os sexos, eles homogeneízam em uma inusitada paleta de cores quentes o que há de bom e ruim no interior humano, na fronteira entre o distinguível e as miragens da neblina moral, no caso, existencial. A ênfase às contradições, revogáveis vistas do lado de fora, da natureza do homem e da mulher são colocadas no microscópio conhecido por Cinema, imagens e sons novamente sob o prisma da interpretação variável. A começar por ser boêmio e não menos que simbólico, há alguns “novamentes” aqui, seja a repetida parceria com Thornton e Clooney ou o raro esforço por não serem tão óbvios no tratamento de um contexto pré-montado, há mais no sorriso de George Clooney e no vermelho de Catherine Zeta-Jones do que sonha nossa vã filosofia. Como nós aceitamos ser guiados por dois seres desprezíveis é cortesia nossa, só nossa, nascida do simples ímpeto de se envolver com uma boa história, humilde sem demais alegorias no fluxo de ideias velhas bem retocadas, num cenário de roupagens e vocabulários requentados; poucos podem ser culpados por tentar a nobre arte da revitalização clássica.

    Matadores de Velhinha (2004)

    O humor universal é o que há de mais caro no gênero. Tudo se assemelha em âmbito cultural e de repente a satisfação se esvai em prol da sede pelo original. Quase não há espaço para a inovação nessa questão, a menos que essa seja obtida por legítimos punhos de aço; um empurrãozinho da sorte, aliás, não faz mal a ninguém. Só nos resta ser o gato à margem da ponte, na cena derradeira de Matadores de Velhinha, filme que se recusa a ir ou a voltar no espaço-tempo: Vaga nesta filmografia como um espectro do que ficou na vontade, e do que os Coen poderiam ter sido na pior instância. O maior risco intelectual dos Coen se concretizou em escorregão, convertido aqui em plena irresponsabilidade no material final: É lugar comum, é a espreguiçada que se dá ao acordar no domingo de manhã. Equívoco que todo cineasta merece e faz bem de cometer para se mostrar hábil o bastante de espantar o pó e seguir de cabeça erguida adiante.

    Onde os Fracos Não Têm Vez (2007)

    E seguiram. Quando um(a) artista, no sentido amplo do termo, chega no auge do exercício almejado com unhas e dentes, ele(a) retorna talvez injustamente ao ponto de partida, pois sente que foi naquele ponto onde sua autenticidade falou mais alto, gritou e berrou ao mundo. Onde os Fracos Não Têm Vez é uma constatação rara que não tem espaço para nada mais do que a maturidade absoluta no ofício do realizador, este que arrisca toda a reputação até aqui conquistada para fazer o que é preciso dentro e fora da conjetura que se equilibra para não arredar o pé, com ou sem esforço. Tipo de peça que toda filmografia deve ter, é o currículo dos Coen falando lado a lado com a história árida e que casa mais que perfeitamente com os fundamentos dos irmãos, na hora certa e com o material certo. Estimulante a qualquer profissional da área, nota-se que, através dos paradoxos psicológicos e do desenvolvimento harmonioso do mosaico de sensações a ser desembrulhado, conforme a projeção se encarrega do próprio desfecho, a adaptação de McCarthy é a mais notável evolução moral desta dupla de mentes. Sua maior proeza extraestrutural é ser denso enquanto flexível, aberto a todo o tipo de interpretação a quem acompanha o cão (Tommy Lee Jones) perseguir o gato (Javier Bardem), que persegue o rato (Josh Brolin) e rata (Kelly Macdonald). De câmera intimista num mundo desesperado por lógica, intenções se desenham em terreno abstrato diante dos olhos; um manifesto imprevisível e amargo contra a violência e a favor do que pode ser ridículo nela. Os irmãos aqui assumem a figura de dois palhaços tristes que sempre nos fizeram rir com signos derivados de tiros a queima roupa e sangue sobre carne, se posicionando desta vez na lateral oposta do mesmo, sem máscaras ou maquiagem, acerca de uma modernidade ainda deficiente de humanidade. Se eles não conseguiram ser pretensiosos aqui na abordagem, por mais ativa que seja, eles certamente não mais poderão ser, pois sem o habitual humor negro, qualquer um morreria sufocado assistindo Onde os Fracos Não Têm Vez.

    Queime Depois de Ler (2008)

    Do veterano roteirista Marshall Brickman: “A mensagem do filme não pode estar no diálogo”, e para quem não tem ideia de onde mais poderia estar, os filmes desses instáveis irmãos chegam a ser uma boa resposta. Infelizmente, sendo uma resposta reflexiva para alguns, fato é que Queime Depois de Ler, dotado de um elenco estelar, faz parte do que já pode ser analisado como a segunda fase dos Coen: A fase que eles não precisam mais provar nada a ninguém, quando o motor do carro para de ranger após subir a colina e chegar ao topo do planalto. É possível descansar nessa hora, esticar as pernas e deixar rolar tudo o que o desejo assim apontar. Instáveis, porém incansáveis, o céu não é o limite para quem anda com a cabeça nas nuvens, e à medida que a câmera desce na abertura do décimo quarto filme da dupla rumo ao foco no teto de uma instalação governamental em Washington, Estados Unidos, é como se o tempo tivesse parado e aquelas comédias, dos tempos de Arizona Nunca Mais, nunca tivessem saído do lugar para alçar voos mais altos. Premissa claramente iniciada do zero, um filme interessante de corroer as bases, morder os princípios ao longo da projeção, por lá estar contido um punhado de estruturas submersas, à tona aos poucos: Um strip-tease ofertado pelas toneladas de relações humanas trágicas apresentadas, terrivelmente familiares para muitos de nós, e em constante impacto quase cármico. Um círculo social de diálogos subversivos vindos de condições, apenas e, sobretudo, masoquistas por excelência. A obra é o picolé de limão mais ácido no dia de verão mais quente, conquistando quem vive a vida real e acha graça nos imprevistos irresistíveis e contínuos. Como Cartola já cantou: “Rir, pra não chorar”. É a vida.

    Um Homem Sério (2009)

    Uma rara metalinguagem não-admitida. Por mais abstratas que sejam suas cognições, Um Homem Sério é um antifilme onde os Coen brincam de ser Deus e se fazem ilegíveis, portanto. O excesso de subjetividade é totalmente proposital, e entre fenômenos naturais improváveis e a lógica matemática que também não chega a lugar nenhum, os irmãos assumem a ironia de o cineasta ser capaz de criar seus mundos, mantê-los e destruí-los quando e como bem quiser, seja através de um divórcio ou de um furacão geológico. Indo além do masoquismo e sendo tão imparcial quanto as constelações nos são, Um Homem Sério não parte mais do pressuposto artístico de investigar os mistérios da vida, mas passa a aceitá-los sem a pretensão de entendê-los, como sugere um personagem em devido momento quando a força do que vem a ser dispensável pontua qualquer julgamento, cético ou não, agnóstico ou não, quanto a confusão que é provável de se formar da abrangência da produção em relação ao tudo e ao nada. Os rostos interrogatórios de todas as figuras no filme promovem signos indecifráveis, embora para com a dupla de cineastas, sempre serenos e donos das verdades que não aceitam compartilhar, no caso, os rabinos desta história que olha para si mesmo e rejeita um final, pois é um retrato do ciclo da vida que só termina quando a montagem exibe os créditos finais e tudo fica escuro, na técnica do fade out. Filosófico sem levantar bandeiras, e bem sucedido enquanto amplo em torno de embalagens melancólicas, como projetos cinematográficos no início foram idealizados a ser, aqui os Coen riem baixinho da vida com as mãos na frente da boca, após gargalharem do caos existencial em Queime Depois de Ler. Logo, a filmografia desses irmãos tem humor negro próprio, caso seja procurado um sentido para cada filme existir.

    Bravura Indômita (2010)

    Silenciar as impressões dos Coen quanto a um gênero não funciona com eles. É tentador imaginar os irmãos na premissa de um terror a seus moldes, assim como era um western visto a temperatura e o fluxo de calor que suas produções são submetidas, de vez em quando, na direção que o gênero imortalizado por LeoneFord e Hawks era inevitável, em uma visão senão mais próxima de Sam Peckinpah, é verdade, se esse fosse adepto de Proust. Se de estereótipos se faz o gênero, os irmãos se aproveitam disso e mostram a jornada da vida através de quem vai, e só não ignora o cenário devido à beleza das pradarias e do céu do meio-oeste dos Estados Unidos captados pela câmera de Roger Deakins, mais uma vez na sua melhor parceria com a dupla criadora. Metáfora sobre a coragem do “fazer humano” reflexiva e caricatural em suas causas, e seus efeitos. O rosto deformado de Jeff Bridges, a bravura cega da jovem figura de Hailee Steinfeld e, principalmente, a ineficiência do personagem de Matt Damon apontam para o fim de um jeito seco, sem conclusões, aqui substituídas pela, artisticamente falando, analogia moral de se realizar a arte que reúne as outras, o cinema, da concepção notória do movimento com ou sem final feliz, tanto faz, na ubiquidade do invólucro narrativo aqui presente até a última cena. Toda a beleza fotografada indica qual beleza? Uma beleza que não se pode ver, apenas ouvida, quiçá pela força dos diálogos, os olhares que dizem tanto? Daí a principal indagação, de dentro pra fora, no frescor da nobre odisseia para prender um bandido. De uma mera vaidade surge a obra mais sábia e onisciente de seu poder de persuadir o espectador desde Onde os Fracos Não Têm Vez, a partir do momento que retira a bravura do título da humildade com que tudo nos é configurado, sem pressa na familiar esquematização cênica dos irmãos que quase nos permite ver seus filmes com nossas avós ao lado, numa dramatização econômica e cirurgicamente precisa, não mais que satisfatória; uma máquina que chega com o manual necessário, porém, obviamente, escrito em uma língua que só as emoções sabem falar. No dia mais escuro, quando os Coen se tornarem objetivos em suas razões então deturpadas, nada mais poderá fazer sentido.

    Inside Llewyn Davis: A Balada de um Homem Comum (2013)

    O folk de Joan BaezDave Van Rock e Bob Dylan é o ritmo que melhor casa com o ritmo dos Coen, se tornando irresistível de representar; o frenesi de discos como The Folkways Years e Highway 61 Revisited exemplificam perfeitamente a semelhança ideológica nas intenções conjuradas em mensagens sociais (e atemporais, como as do folk), oriundas da desconexão com o que e quem essas mensagens pretendem tocar. O músico Llewyn Davis de decadente e ascendente social não tem nada, é apenas um nômade feito com pernas incansáveis, junto a seus sapatos surrados, violão e cabelos despenteados, a materialização do espírito musical em pauta, de uma geração e de um artista. No primeiro musical convencional dirigido em dobro pelos Coen, a predominância do tempo presente é mais uma vez redigida com gosto, uma espécie de limpeza de alma, do poder que a música empresta ao cinema quando esse se habilita em aperfeiçoar melodia com o audiovisual sem perder fatores de fidelidade. Retratar o som em nome da expressão não verbal que A Balada de um Homem Comum termina por ser é tarefa árdua, que aqui parece ser das mais simples, tímida, mas masoquista até a medula. O foco dos diretores continua sendo a potencialidade do que é retratado, num processo de destilação vertiginosa no conteúdo da história, um descobrimento leve do que pode vir a ser – sempre no tempo presente já mencionado – e um polimento do interesse bruto do público. Os Coen aqui assumem que suas zonas de conforto são amplas e seus domínios, largos, e há ainda muito a que se agarrar e discursar em prol daquela visão 360° que eles têm sobre seu terreno, e nos querem fazer ter também.

  • Crítica | Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum

    Crítica | Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum

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    A música, especialmente da região sul dos EUA, sempre fez importante papel nos filmes dos irmãos Coen. Se em produções como E aí Meu Irmão, cadê Você ela era tratada como uma característica marcante de seus personagens, em seu último lançamento atinge o status de protagonista dentro da adaptação da vida do cantor folk americano Dave Van Ronk.

    O personagem principal, Llewyn Davis (Oscar Isaac), é um cantor do efervescente movimento cultural dos EUA dos anos 1960 e que tenta carreira solo após o suicídio de seu parceiro, o que deixa nele consequências traumáticas. Migrando de sofá em sofá nas casas de amigos, Davis tenta, sem sucesso, emplacar a carreira enquanto lida com problemas pessoais e uma angústia crescente frente a seu futuro como músico.

    Traço marcante do protagonista e também condutor da narrativa é a crescente melancolia e incapacidade de controlar seu destino. Davis tenta de todas as formas, mas simplesmente não consegue fazer nada dar certo, e não reage frente às agressões verbais de Jean (Carey Mulligan), ou mesmo físicas. Tal característica – de ver, assustado, a realidade passar rapidamente – é evidenciada, em uma bela e poderosa cena no metrô, carregando o gato perdido de um amigo.

    Muito autoconsciente, o filme flerta diversas vezes com o humor característico da dupla de cineastas, em uma forma de linguagem que começa a ganhar adeptos nesse momento histórico: a ironia autodepreciativa como forma de dissimulação. Tocando em um dos únicos bares onde consegue trabalho, Davis afirma que quando se trata de uma canção folk, ela nunca é nova e nunca envelhece. Ou seja, não tem tempo, época e está acima das convenções tradicionais, como muitos acreditam ser possível.

    Em um mundo castigado pela falta de autenticidade, a dupla de diretores garante-a com os próprios atores, de talento ímpar, executando as canções apresentadas no filme – como os amigos de Davis, a dupla Jean e Jim (Justin Timberlake). Tamanha é a qualidade nessas performances que se dá outra tonalidade à narrativa. Se fosse somente uma simples dublagem, grande parte da essência e sentimento do filme seria perdida, já que a música desempenha um papel essencial na transição entre as camadas de vida do protagonista e também em seus momentos chaves. A total atenção da câmera e o excelente som permitem um imenso mergulho na intensidade emotiva das canções.

    Ao trazer à tona Dave Van Ronk, um cantor folk relativamente desconhecido mas que influenciou lendas como Bob Dylan e Tom Waits, o filme também dialoga com gêneros em alta na cultura mundial, quando cada vez mais artistas tentam emular uma outra época e costumes através de instrumentos típicos, mesmo vivendo em uma sociedade moderna e superindustrializada, onde a mesma angústia existencial do protagonista é compartilhada por muitas pessoas que não sabem seu lugar no mundo. Não à toa alguns protagonistas da série de TV Girls fazem ponta na produção, como Adam Driver no papel do cantor Al Cody, e Alex Karpovsky como Marty Green. Temos também na produção musical do filme Marcus Mumford, da banda Mumford & Sons; além de um dos protagonistas de Na Estrada, Garrett Hedlund como Johnny Five, o motorista de Roland Turner (John Goodman).

    A participação de Goodman também oferece momentos preciosos do embate de duas personalidades diferentes. Enquanto Davis busca seus sonhos utilizando-se de todos os meios que consegue, mesmo deixando escapar pelos dedos quase tudo o que tenta segurar, Turner, com sua personalidade destrutiva, faz questão de depreciá-lo, como se já tivesse compreendido Davis (e o planeta) em uma única olhada.

    O filme, então, não é uma biografia fidedigna de Dave Van Ronk, pois muitos detalhes foram alterados. Ambos, Van Ronk e Davis, possuem o espírito de um cantor folk perdido e, apesar de bons, não foram bons o bastante para emplacar um sucesso comercial. Porém, Van Ronk criou em torno de si um culto pequeno e íntimo de artistas que reconheciam sua capacidade e beberam de sua fonte criativa; enquanto Llewyn Davis era autodestrutivo e se sabotava, ao mesmo tempo em que procurava o sucesso até desistir de vez da música apenas para ganhar dinheiro trabalhando na marinha comercial. Seu desespero era tão grande que só poderia ser comparado ao seu ego. Ao ser chamado para um bico em uma música comercial, reclama da composição para o amigo Jim, sem saber que era este o seu autor. Também abre a mão dos direitos autorais de um potencial sucesso apenas para ter o dinheiro necessário para sobreviver alguns dias.

    Dessa forma, Inside Llewyn Davis trata da música também como expressão de uma tristeza que existe em todos nós, mas em um tom descolorido e desiludido, ao contrário de E aí Meu Irmão, Cadê Você?, em que é mostrada de forma anedótica. Ambas as formas atingem o coração do espectador, mas o filme cativa não tanto pelo personagem, já que suas atitudes não nos fazem torcer por ele, mas por toda a construção em volta dele. Faz-nos quase sentir tudo aquilo que ele está sentindo, cristalizando sua dor através da música e nos dando um lugar para testemunhar.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Bravura Indômita (2010)

    Crítica | Bravura Indômita (2010)

    bravura indomita

    A adaptação do romance de Charles Portis feita pelos irmãos Coen talvez seja o trabalho menos autoral da dupla de cineastas, pois não tem os traços característicos mais marcantes de suas produções, como o humor negro e a complicada cadeia de eventos que acomete e dificulta a vida dos protagonistas. Porém, não é menos significativa por isso. Ao optar por uma ótica e narrativa mais diretas, temos contato com o outro lado, também talentoso, dos diretores.

    A história se inicia com a órfã de pai extremamente inteligente, educada e perspicaz Mattie Ross (Hailee Steinfeld) em busca de alguém para trazer Tom Chaney (Josh Brolin), o assassino de seu pai, à justiça. Para isso, tenta contratar o caçador de recompensas Rooster Cogburn (Jeff Bridges), que aceita o serviço a contragosto. Também se junta ao bando o Texas Ranger LaBoeuf (Matt Damon), que há anos procura Chaney por um assassinato de um senador cometido no Texas.

    Bridges compõe um personagem peculiar, pois ao mesmo tempo em que se mostra um bêbado e em decadência, mostra um faro apurado ao ser colocado no encalço de seu alvo. Misturando um sotaque carregado com a fala confusa característica dos alcoólatras, Bridges cativa o espectador ao flertar com um típico anti-herói, que, apesar de antagonizar a protagonista, no final faz de tudo para salvá-la.

    A protagonista Mattie Ross também tem em sua pele a atuação impressionante da novata Hailee Steinfeld, que logo de início convence o espectador através da obstinação de sua personagem – que renegocia os pôneis de seu falecido pai – em um diálogo rico, rápido e extremamente inteligente, que lembra o estilo clássico dos Coen, mas em um tom mais sóbrio, condizente com a proposta do filme. A própria existência de uma adolescente, forte e dona de seu destino, em um contexto como o do Velho Oeste oitocentista, garante uma profundidade maior a Mattie, fartamente explorada tanto pelas situações em que é colocada como pela amplitude dramática de Steinfeld.

    Matt Damon dá a LaBoeuf a arrogância típica do texano, que traz um sentimento maior para com o seu estado do que para com o seu país, causando uma antipatia em Cogburn. Porém, após tantas disputas e certas trapalhadas, como morder a língua ao ser arrastado por um cavalo, LaBoeuf mostra um lado fraternal para Ross, como se estivesse tentando protegê-la tanto de Cogburn quanto do restante do mundo.

    Juntando três personagens tão diferentes com um mesmo objetivo, a dinâmica da narrativa se estabelece exatamente na evolução de suas relações e como todos aprendem mais sobre o outro, si próprios e sobre o mundo, especialmente Mattie, que acaba por enfrentar e depois matar Chaney sozinha, enquanto Cogburn protagoniza uma bela e épica cena de tiroteio contra o grupo de “Lucky” Ned Pepper (Barry Pepper), sendo ajudado depois por LaBoeuf em um tiro certeiro, o que restabelece sua confiança como atirador antes abalada justamente por Cogburn. Interessante também é a composição de Chaney, mostrado como um bandido inferior, submetido às ordens do outro, e que reage impulsivamente e de forma nem sempre inteligente às situações, contrariando a expectativa criada sobre um grande mestre do crime que engana as autoridades há meses.

    Tecnicamente falando, a produção é um primor em todos os aspectos. A fotografia de Roger Deakins traz os mais belos planos do Oeste, nos lembrando a todo instante das razões pelas quais o gênero conquistou tantos espectadores com o passar das décadas. O figurino, o design de produção e a maquiagem passam toda a brutalidade suja do Oeste, responsável por transformar homens em bestas que, depois de algumas décadas, seriam alçados à categoria de heróis e desbravadores do país.

    Bravura Indômita cativa, então, por sua seriedade e sobriedade, com toques de um leve humor, e por seus personagens que agem, reagem e crescem frente aos obstáculos em seus caminhos, criando-se um vínculo próprio entre eles. Vínculo esse que é friamente subvertido na cena final, onde a já crescida Mattie Ross procura Cogburn depois de 25 anos para prestar uma homenagem a ele e o encontra morto. Essa atmosfera áspera e melancólica do Oeste, que se reflete nas relações entre seus habitantes, é transferida para o filme, o que dá a ele uma carga emocional ainda mais intensa, já que poucos cineastas têm a sensibilidade de retratar o sul dos EUA com toda a complexidade social e cultural da região sem cair em clichês e estereótipos.  E essa produção traz exatamente isso: uma nova releitura sobre uma história bem conhecida mas que renova o combalido gênero western através de um revigorante sopro de qualidade.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Um Homem Sério

    Crítica | Um Homem Sério

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    A cultura judaica possui diversas características que a tornam uma das mais ricas e influentes do ocidente. Além de comandarem grande parte do show business dos EUA, pessoas com ascendência judaica sempre se destacam também no campo artístico, em especial na comédia, onde seu tom de humor negro e autodepreciativo já é consagrado. Por fazerem parte desse universo, os irmãos Coen sempre tiveram afinada essa veia humorística, mas em seu longa de 2009, Um Homem Sério, decidem se aprofundar na cultura judaica que conhecem tão bem desde a infância.

    O filme começa com uma representação de uma antiga lenda judaica sobre o dybbuk, um espírito que toma o corpo de pessoas comuns. Essa pequena história, que é falada em íidiche e se passa em algum país do leste europeu em alguma época (que pode ser tanto há 1000 ou há 100 anos), dará o tom de todo o filme, contrastando as características de um casal, onde o homem é esperançoso e vê tudo pelo lado positivo, enquanto a mulher, com um tom mais realista, vê tudo pelo lado negativo. Seu encerramento se dá também deixando ao encargo do espectador tirar a lição do que tudo aquilo significou, o que só fará realmente sentido após o final do filme.

     história principal começa intercalando personagens de uma mesma família judaica de um subúrbio do meio-oeste norte-americano (local similar a onde os Coen cresceram), os Gopnik. O patriarca, Larry (Michael Stuhlbarg), é um professor universitário de matemática avançada que está fazendo um checkup no médico, e aparentemente, tudo está normal. Seu filho, Danny (Aaron Wolff), ouve Somebody to Love de Jefferson Airplane (que embalará todo o filme) em meio a uma tediosa aula de uma escola judaica, de onde também precisa fugir do grandalhão que vendeu-lhe maconha e agora cobra a dívida.

    Larry é um cidadão pacífico e submisso. Nunca levanta a voz para ninguém, segue todas as regras sociais e morais, e não é respeitado por ninguém. Porém, uma onda de acontecimentos desastrosos, ao melhor estilo dos Coen, o acomete. Sua mulher Judith (Sari Lennick), quer o divórcio para casar com o vizinho Sy Ableman (Fred Melamed), um aluno reprovado o suborna e ameaça processá-lo, seu irmão problemático Arthur (Richard Kind) se recusa a sair de sua casa e ele também passa a receber cartas o difamando para a comissão que o avaliaria para uma promoção dentro da universidade em que leciona. A partir daí, seu questionamento do “o que eu fiz para merecer isso?” passa a dar o tom da narrativa, já que Larry não entende a razão pela qual Deus (ou Hashem) está castigando um homem que nunca fez nada de mal a ninguém.

    Portador de uma personalidade totalmente lógica, toda a organização do universo depende uma ação e consequência, fato que deixa bem claro quando seu aluno sul-coreano tenta suborná-lo para passar. Quando ele recebe a avalanche de acontecimentos ruins, tem uma dificuldade imensa em conseguir se organizar e lidar com elas. Ele sai de casa e vai morar em um motel ao mesmo tempo que seus filhos, de forma bem egoísta, só se preocupam consigo mesmos. As cartas o difamando não param de chegar, ameaçando sua promoção. Os custos com os advogados parecem só crescer, enquanto sua mulher exige cada vez mais dele. Até mesmo quando seu pretendente morre em um acidente de carro (onde Larry curiosamente sofre outro, provavelmente no mesmo instante), ela pede que Larry pague seu funeral. Lá, o rabino o chama de “homem sério”, mesmo ele tendo causado a ruína do casamento de Larry, e depois ter sido o autor das cartas de difamação (em uma revelação curta, porém, poderosa e muito bem construída), enquanto Larry não tem nenhum reconhecimento. Mais ou menos da mesma forma que é a vida.

    Sob toda essa pressão e a ponto de quebrar, Larry procura ajuda dentro da tradição judaica, falando com três rabinos. O primeiro, um rabino jovem e sem experiência, só consegue traçar paralelos hilários com o estacionamento. O segundo, o rabino experiente da comunidade, conta uma história também hilária e absurda sobre um dentista, que não tem nenhuma relação com Larry e seus problemas, para sua e nossa aflição. O terceiro, o rabino já aposentado, não garante a Larry nem uma audiência para ouvi-lo.

    Essa sucessão tragicômica de eventos aleatórios nos coloca ao lado do protagonista, relembrando um pouco a lição de Magnólia, onde essas coisas, por mais trágicas e pessoais que possam parecer, acontecem. Não por nossa causa. Não para nos agradar nem punir. Simplesmente acontecem. E nós temos de lidar com elas.

    Essa é a lição, então, simples e fria, transmitida de forma tecnicamente apurada (onde cada plano é necessário e se encaixa perfeitamente com a narrativa) e com um roteiro muito bem construído (além de ousado). Nas mãos de pessoas menos competentes, talvez se tornasse um filme insuportável. Porém, os Coen conseguem dar a essa tragédia pessoal a leveza de seu humor negro, e a sensibilidade na hora de carregar nos elementos corretos para deixar tudo balanceado ao ponto de fazer a história fluir. Passagens memoráveis deixam transbordar essa sensibilidade dos direitos, com um rabino super tradicional citando a letra de Jefferson Airplane, ou um homem coreano, pai de família tradicional e rígida, diz a Larry para “aceitar o mistério” dos acontecimentos, confundindo a ele e a nós, para seu desespero e nosso prazer.

    Esses pequenos momentos, marca característica dos Coen, que tornam “Um Homem Sério” tão sedutor, pois eles aliam todo o seu rigor técnico a uma história simples, mas contada de tal forma que carrega emocionalmente o espectador enquanto vai, camada por camada, mostrando o que está por trás de cada personagem e sua visão de mundo. E no final, estamos nos perguntando o que temos de Larry em cada um de nós. O quanto agiríamos diferente. O quanto somos diferentes. Quantos golpes aguentaríamos de pé até cairmos e questionarmos tudo o que consideramos sagrado. Perguntas incômodas, mas sempre necessárias.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Onde os Fracos Não Têm Vez

    Crítica | Onde os Fracos Não Têm Vez

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    Onde os Fracos Não Têm Vez, ganhador de 4 Oscars e já cultuado filme dos irmãos Coen, ganhou tantas críticas e interpretações que soa difícil analisa-lo depois de tantos anos de seu lançamento. Mas sua qualidade é tão grande que, igual ocorre com todo grande filme, ele será sempre revisitado, pois enquanto a sociedade muda, e com ela as percepções das pessoas sobre ela e si próprios, novas camadas sobre ele vão sendo descobertas.

    O filme é uma adaptação do livro de Cormac McCarthy, e se passa no ambiente já conhecido e preferido dos Coen, o sul dos EUA e suas características, que compõem um personagem a parte. Em 1980, com o crescimento do tráfico de drogas na fronteira com o México e também o crescimento da violência urbana e da degradação social e moral que o mundo começou a ver com maior frequência, Llewelyn Moss (Josh Brolin) encontra uma mala com dois milhões de dólares em meio a cadáveres de traficantes. Enquanto isso, Anton Chigurh (Javier Bardem) é colocado em seu encalço para tentar recuperar o dinheiro, deixando uma trilha de corpos e destruição pelo caminho. Seguindo essa trilha está o xerife quase aposentado Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), que cada vez mais fica surpreso e desiludido com a brutal realidade desse mundo novo, até então praticamente desconhecido para ele.

    O sotaque sulista, característica marcante do cinema dos Coen, soa como música aos ouvidos, onde cada palavra é pronunciada de forma elegante, e as frases montadas com uma certa erudição e um toque leve de comédia garantem uma diversão a parte e um deleite ao espectador atento. Porém, ao contrário das outras produções como E aí meu irmão, cadê você?, dessa vez a música não ganha o destaque principal, e é substituída por sons diegéticos que contribuem para o suspense das cenas de perseguição entre os personagens.

    O trio de personagens principais forma uma síntese da sociedade. Moss representa o selvagem do oeste clássico lutando pela sobrevivência. Chigurh representa a pura maldade e a psicopatia quase inexplicável que vemos ser cada vez mais comum, enquanto Ed Tom é o homem bom, civilizado, que luta para se manter equilibrado em meio ao turbilhão de eventos que está fora de seu controle, e que só resta a ele assistir a tudo impassível.

    A composição de Bardem em seu personagem merece um destaque a parte, pois desde o início somos apresentados a ele de forma crua e direta, sem origem e sem explicação, pois ele não necessita disso. Sua expressão corporal, rosto imóvel e olhar frio conseguem gelar qualquer ser humano ao menor contato, e a cena onde ele, algemado, mata um policial, com um close em seu rosto transfigurado pelo seu ódio impessoal, já diz tudo o que precisamos saber sobre sua violência. Porém, como é lembrado várias vezes durante o filme, Chigurh também parece operar sob um código próprio, distorcido de acordo com sua distorcida visão da sociedade. Quando ele é incomodado por uma simples pergunta de um dono de posto de gasolina a ponto de jogar uma moeda para decidir a sua vida, conseguimos acompanhar a crescente tensão da cena ao mesmo tempo que incomodamente conseguimos entender parte do funcionamento doentio de sua lógica.

    Enquanto avança o jogo de gato e rato entre Moss e Chigurh, fica cada vez mais claro que o primeiro não terá muitas chances contra o segundo. Tampouco conseguimos ter esperanças que Ed Tom conseguirá pegar algum dos dois. Dessa forma, o filme em seu ato final abdica de contar a história de perseguição e passa a refletir sobre o papel de cada um desses homens dentro da sociedade contra seus males, e mesmo a origem desses males. Ed Tom conversa com seu antigo parceiro, que sabiamente diz que nada daquilo é pessoal. Achar que o mundo está pior para nos punir por algo é pura vaidade. A complexidade das relações sociais que leva a isso vai além da cor de cabelo ou piercings, como outro personagem afirma, da forma que todos estamos habituados a ouvir.

    O espetáculo visual proporcionado pelos Coen garante um realismo e uma solidez aos ambientes dos personagens. A sisudez de ambos nos incomoda, ao mesmo tempo em que nos deixa com os olhos grudados na tela, querendo saber mais sobre aquele mundo, cujas portas sabemos que deveriam permanecer fechadas. Onde os Fracos Não Têm Vez mergulha no profundo abismo que a humanidade possui, e retorna de lá com essa mensagem incômoda e complexa de entender. Cabe a nós tirarmos conclusões sobre esse abismo e o seu reflexo em cada um de nós, ao mesmo tempo em que nos digladiamos para manter a nossa humanidade frente a tamanha escuridão.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Homem Que Não Estava Lá

    Crítica | O Homem Que Não Estava Lá

    70 - The Man Who Wasn't There (O Homem Que Não Estava Lá)

    Uma das características mais marcantes dos Irmãos Coen é a homenagem que vez ou outra prestam a gêneros de cinema que os fizeram gostar dessa arte. Em O Homem Que Não Estava Lá, a homenagem é feita ao noir, grande marca do cinema americano dos anos 40, famoso pelo preto e branco, em cidades esfumaçadas, femme fatales e narrações em off feitas geralmente por um detetive que investiga um crime. Praticamente todos estes elementos estão neste filme.

    O filme conta a história de Ed Crane (Billy Bob Thornton) um barbeiro infeliz que vive com sua esposa Doris (Frances McDormand). Ao desconfiar que ela está traindo-o com seu chefe Big Dave (James Gandolfini), Ed passa a planejar uma trama de chantagem contra o amante, a fim de ganhar dinheiro para investir em um negócio que acaba de ter contato com um cliente na barbearia. Mas quando seu plano vai por água abaixo uma série de consequências desagradáveis ocorre, ao melhor estilo dos Coen.

    A fotografia é excelente e eficaz na reconstrução dos EUA da virada da década de 40 para 50, com seus figurinos, carros e até mesmo os maneirismos, como o jeito de fumar, o que praticamente todo o elenco faz exaustivamente. As sequências são todas singulares, com o objetivo de demonstrar o vazio existencial de Ed, que sempre se queixa de não gostar de conversar com ninguém.

    O filme apresenta diálogos e situações interessantes. A construção dos “erros” vai se aprofundando de tal forma que consegue de início prender a atenção do espectador. Quando essa atenção começa a se diluir por conta do ritmo lento da narrativa, um personagem interessante é inserido, que nos atrai de volta a história: O advogado Freddy Riedenschneider (Tony Shalhoub), que misturando conceitos de ciência em um tom quase místico, tenta elaborar uma defesa para o fato de que a mulher de Ed está presa, mas que ninguém sabe que a culpa na verdade é dele.

    O interessante nisso é que nem mesmo Ed parece acreditar ou se importar na ambiguidade moral de sua mulher estar presa por sua culpa. Ele continua agindo como sempre agiu, como se fosse programado por um código externo de ética, tomando decisões de acordo com o que deveria ser certo. Porém, quando ele se toca que desperdiçou a vida fugindo de contato humano, é tarde demais. Todo o seu mundo artificial já havia desmoronado, e o conto clássico de crime e castigo, por vias tortas, já havia se concluído.

    Apesar de nuances interessantes acerca das motivações dos personagens e das discussões morais a respeito de suas atitudes, o filme não chega a envolver emocionalmente. Sentimos-nos ao seu final mais ou menos como Ed, acompanhando a história e os personagens sem nos envolvermos com eles, somente por obrigação. Acho difícil acreditar que esse era o objetivo dos Coen com o filme, que apesar de sua precisão técnica e de elenco, falha em gerar um envolvimento real com a história.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Matadores de Velhinha (2004)

    Crítica | Matadores de Velhinha (2004)

    74 - The Ladykillers (Matadores de Velhinha)

    Um grande problema dos grandes artistas é que sempre após uma grande obra, as atenções se voltam para a próxima com a inevitável comparação de qualidade entre ambas. Desde fins dos anos 80, os Coen se mantiveram em produções de altíssimo nível, mesmo em gêneros diferentes. Porém, no início dos anos 2000, a famosa crise parece ter chegado, dando sinal de esgotamento em “O Amor Custa Caro” e comprovando isso definitivamente agora com Matadores de Velhinha.

    Adaptação de um filme de 1955, aqui traduzido como “O Quinteto da Morte”, a história gira em torno do professor Goldthwait Higginson Dorr (Tom Hanks), arquiteto de um grande plano para assaltar um cassino. Ele aluga um quarto na casa da senhora Munson (Irma P. Hall), uma simpática velhinha, onde convoca seus comparsas para o plano de ação, que era o de disfarçar o ato transformando o grupo de ladrões em um conjunto musical. A situação se complica quando a senhora Munson descobre o plano, o que faz com que os ladrões tenham de alterar os planos várias vezes, até chegarem a conclusão que deveriam matá-la.

    Caracterizado novamente no sul dos EUA, o filme dá espaço a toda a musicalidade negra, assim como em “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”, porém, na música gospel, com toda a energia característica dos cultos evangélicos daquela região. Também há no filme as características clássicas dos Coen, como o humor negro (porém, aqui um pouco gratuito e deslocado), os erros que avançam a história e os estereótipos clássicos, porém, o elenco dessa vez não ajuda muito. Se antes tínhamos Frances McDormand, agora temos o irritante e previsível Marlon Wayans, trazendo o lado negativo dos estereótipos, ao contrário daqueles que favorecem a história e familiarizam o espectador com o ambiente, como a personagem da sra. Munson.

    Apesar de ter um arco fechado, a história passa sem que envolva o espectador nela. O filme é plano em todos os aspectos e não consegue sensibilizar. Apesar de garantir uma ou duas risadas por conta da boa atuação de Tom Hanks, a tentativa um tanto quanto rasteira de se apelar ao humor de “tipos” garante mais olhadas no relógio do que diversão, na curta duração do filme (apenas 1h36). O filme também falha na tentativa propositadamente simples de emplacar uma discussão moral a respeito de justificar um roubo se ele fosse para uma causa nobre, onde a incorruptível sra. Munson não cai na tentação e no argumento dos fins justificam os meios do prof. Dorr.

    Tecnicamente, o filme é primoroso, como tudo o que os Coen fazem. Tanto os planos milimetricamente encaixados quanto os diálogos quase ininteligíveis e rápidos para os não fluentes em inglês. O destaque dado à música gospel também é louvável, pois dá um vigor a mais em uma narrativa lisa e com poucas emoções.

    Ninguém discorda da capacidade dos Coen de produzir grandes obras cinematográficas, de apresentar e desenvolver personagens das mais variadas formas, de estabelecer tramas, simples e complexas, que envolvem o espectador de maneira inteligente e tudo isso de forma comercialmente viável, o que a indústria adora. Mas também poucos discordam que Matadores de Velhinha é provavelmente o ponto mais baixo da genial carreira dos diretores/roteiristas/produtores.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Amor Custa Caro

    Crítica | O Amor Custa Caro

    o amor custa caro

    Todo grande cineasta, vez ou outra, se depara com projetos onde precisa ceder para conquistar público ou agradar seus empregadores a fim de mantê-los felizes o suficiente para continuarem bancando seus projetos pessoais, e poucos são os felizardos que nunca precisaram passar por isso. Com um orçamento de U$ 60 mi e uma renda mundial de U$ 120 mi, pode-se dizer que neste aspecto o filme atingiu seus objetivos. Artisticamente falando, porém, a produção não faz jus à filmografia dos Coen.

    A história gira em torno de Miles Massey (George Clooney), um bem-sucedido advogado especialista em divórcios que está entediado e em busca de novos desafios em sua carreira e em sua vida particular. Marylin Rexroth (Catherine Zeta-Jones) é uma mulher que deseja se tornar rica através do dinheiro conseguido em diversas separações, e que conhece Miles por este ser o advogado de seu ex-marido, Rex Rexroth (Edward Herrmann). Miles consegue a separação a favor de Rex, mas acaba se apaixonando por Marylin.

    O elenco, como de costume, é bem escolhido e Clooney está exagerado na medida certa como o advogado caricato. Zeta-Jones às vezes destoa nas caras e bocas sensuais, mas faz bem o papel que lhe é dado. A boa sequência inicial com Geoffrey Rush (que serve inicialmente só para apresentar-nos a Miles) também rende uma participação maior e muito boa no final, assim como a pequena (mas importante) participação de Billy Bob Thornton.

    Porém, apesar de o filme conter algumas das principais características dos Coen (como o humor negro e as viradas de roteiro), esses elementos não são suficientes para salvar o roteiro de certo cansaço no avançar da história, que de certa forma se torna previsível. O que realmente a salva são os personagens empáticos e cenas hilárias (e infantis, na medida certa) que tiram sorrisos agradáveis do espectador, que, graças a essas qualidades, acaba esquecendo e relevando as falhas estruturais da narrativa.

    O Amor Custa Caro funciona como comédia romântica ao dar espaço para protagonistas inteligentes se apaixonarem, ao utilizar clichês do gênero ao seu favor e como diversão pura e simples, mas fica aquém da capacidade de uma dupla que já nos deu produções como Fargo, apesar de estar bem acima da média das comédias românticas dos últimos anos, gênero desgastado como poucos.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?

    Crítica | E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?

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    Os Irmãos Coen são conhecidos por criarem exóticos personagens em meio ao retrato realista de um determinado local ou época, como podemos ver em Fargo, O Grande Lebowski e principalmente Arizona Nunca Mais. Em E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, voltamos ao sul dos EUA, no período da Grande Depressão, quando três presidiários, Everett Ulysses McGill (George Clooney), Delmar (Tim Nelson) e Pete (John Turturro), fogem da cadeia rumo a uma missão de resgatar o tesouro que Everett havia roubado e escondido.

    Logo no início do filme, somos avisados que o roteiro é baseado n’A Odisseia de Homero. Como em Fargo os Coen já haviam pregado uma peça no espectador ao dizerem que o filme se baseava em uma história real, todo cuidado é pouco na hora de levá-los muito a sério. Porém, o que vemos é que o filme realmente se utiliza de elementos da narrativa do clássico grego, mesmo no nome do personagem principal, até mesmo nos confrontos e sucessivas confusões que os protagonistas se deparam, como o “Ciclope” Big Dan Teague (John Goodman), as três sereias no rio e a urgência de se chegar em casa antes que a esposa de Everett se casasse com outro homem.

    O filme tem tons de comédia pastelão, em homenagem ao cinema da época, com frases feitas e situações bobas, mas nunca gratuitas. Os três protagonistas se completam, cada um dentro de sua atuação, personificando um estereótipo da época: o bandido sulista malvado clássico, o bandido culto e o bandido de bom coração. A fotografia do sul do Mississipi, com seus pântanos e florestas quentes e densas, é bem utilizada em cada sequência, nos fazendo sentir que estamos naqueles locais, pois cada tomada tem um propósito singular de servir unicamente à história.

    Outro destaque é a trilha sonora, composta por canções folk do sul norte-americano muito bem executadas, e que são um personagem à parte na história, pois fazem os bandidos virarem astros de uma pré-indústria cultural quase de forma nativa, em uma alusão ao fato de que a musicalidade é inata ao sulista, tão forte é esta característica na região. Destaque também para o sotaque sulista, em que podemos ver, assim como em Arizona, a entonação perfeita de cada palavra e letra da forma simpática que os sulistas fazem. Isso infelizmente perde-se um pouco na tradução do título original para o português; “Ó Irmão, Onde Estarás?” ficaria mais fiel à proposta original.

    Outros pontos mais polêmicos são abordados, como política e racismo: há uma disputa política entre dois figurões da cidade que concorrem ao cargo de governador do estado, e apesar de nos ser mostrado desde o início que um seria ruim e outro bom, logo essa falsa crença é desmontada ao colocar a figura que supostamente iria renovar a política em um encontro da KKK, também tratada da forma como deve ser, a de uma interpretação simplista e falsa da complexa realidade local.

    Em meio a tantas informações subjetivas que temos de absorver, a história principal acaba ficando em segundo plano, assim como alguns personagens que poderiam ser mais desenvolvidos, como Tommy (Chris Thomas King), um músico que acaba de vender a alma ao diabo para tocar bem o violão, mas que só fica nisso, deixando no ar uma oportunidade perdida de flertar com outro elemento cultural conhecido do sul.

    Apesar de não ter a profundidade de Fargo, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? garante uma boa diversão e uma imersão a um universo fabulesco que garante boas risadas e nos remete a uma época e lugar que poderiam ter sido boas, mesmo que a realidade nos diga o contrário.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | O Grande Lebowski

    Crítica | O Grande Lebowski

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    Que os irmãos Coen são especialistas em criar universos e personagens singulares e que se tornam antológicos não é segredo. Porém, em O Grande Lebowski, de 1999, a dupla se supera. Se em Arizona Nunca Mais ambos já tinham provado sua capacidade de criar protagonistas do sul americano estilizados ao máximo e que conseguiam arrancar risadas do espectador a todo instante, esse estilo atinge outro patamar, que transforma este longa em um dos filmes mais cultuados dos diretores. E não é à toa.

    O Grande Lebowski contra com um grande elenco. Jeff Bridges interpretando magistralmente Jeff Lebowski, ou, como gosta de ser chamado, The Dude (“O Cara”, mas a tradução literal não consegue abarcar o significado genérico do nome, que está ligado ao personagem). Preguiçoso, leniente, com extremas dificuldades em se expressar e com amigos igualmente problemáticos, o excelente Walter Sobchak (John Goodman) e Donny (Steve Buscemi), Dude é daqueles personagens que nos incomoda no início pela dificuldade em terminar uma simples frase, passando até uma falsa ideia de que não seja apto de uma grande inteligência.

    Mas, no desenrolar dos acontecimentos, ele vai se mostrando a figura mais lúcida do filme, que tenta a todo instante trazer as pessoas de volta à realidade. Walter é o amigo do Dude, veterano do Vietnã e com claros problemas de raiva; sua vontade de ajudar só é comparável a sua falta de percepção das coisas. E é justamente essa dificuldade em lidar com as situações com que se depara que garante as melhoras cenas do filme, com falas memoráveis, como “This is what happens when you fuck a stranger in the ass!” ou ”You are entering a world of pain.” Buscemi também fica muito bem no comedido e comportado Donny, que aguenta calmamente as grosserias e cortes de Walter. Detalhe também para a hilária e pequena participação de John Turturro como Jesus, um jogador de boliche rival de Dude, Walter e Donny.

    A jornada do Dude começa quando seu tapete é roubado. Algo tão trivial serve de gatilho para uma série de eventos e confusões que nos remetem ao termo clássico para definir grande parte dos filmes dos Coen, a “comédia de erros”, pois são os erros e interpretações errôneas da situação que garantem a criação de cenas tão engraçadas quanto icônicas.

    Do outro lado, temos o milionário também de nome Jeff Lebowski e sua filha Maude Lebowski (Juliane Moore), que brigam pelo dinheiro de sua falecida esposa e mãe, respectivamente, e ambos veem em Dude a chance para ajudarem em sua empreitada pessoal. Em um terceiro grupo de personagens, há os alemães niilistas, que garantem cenas também engraçadíssimas, retratando de forma satírica o submundo da cultura das grandes cidades alemãs e sua excentricidade.

    Porém, apesar de personagens excelentes, faltou um pouco de tempo para desenvolvê-los, o que acaba prejudicando um pouco a narrativa, que se preocupa muito, em alguns momentos, com a parte estética e com a comédia ao invés de aprofundar as relações dos personagens com o objetivo central da trama, que por vezes fica meio perdida. Mas isto não afeta a ponto de prejudicar a narrativa, que tem o seu ponto forte mais nos personagens do que na história que eles perseguem.

    O Grande Lebowski é daqueles filmes que a gente guarda para citar falas e recriar situações entre os amigos, e somente filmes com personagens tão bons conseguem fazer isso.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Um Golpe Perfeito

    Crítica | Um Golpe Perfeito

    Golpe Perfeito

    Um Golpe Perfeito (Gambit), começa com uma introdução animada, do que a princípio, seria uma comédia de erros. Com direção de Michael Hoffman, o roteiro de Ethan e Joel Coen apresenta uma proposta ousada, com um mirabolante esquema de falsificação e fraude com pitadas de humor, mas que com o decorrer da história, o espectador é desiludido.

    A princípio, Um Golpe Perfeito é despretensioso, explora uma sucessão de atos falhos no plano de Harry Deane (Colin Firth), que contrata a cowgirl PJ Puznowski (Cameron Diaz) a fim de ludibriar seu chefe, o colecionador de arte Lorde Shabandar (Alan Rickman). O filme é cortado por uma narração, que se torna enfadonha, e que não é nada mais que um incômodo na maioria das vezes em que é usada – pior, o personagem que a faz só consegue falas significativamente interessantes quando dita as emoções e agruras dos personagens.

    O tom da comédia é nonsense, mas está longe de ser escandalosamente hilário, em alguns pontos chega a ser entediante. Lembra bastante O Amor Custa Caro, uma comédia romântica dos próprios Coen, e repete também os seus acertos – o elenco é formidável. Firth e Rickman elevam o nível da película, e conseguem com suas atuações, elevar considerávelmente a qualidade de Um Golpe Perfeito, seus personagens são interessantes, de peculiaridades e personalidades curiosas. Stanley Tucci também não compromete nas poucas cenas em que aparece.

    Deane torna-se muito mais engraçado à medida que se embebeda. As cenas dentro do Hotel Savoy são disparadas as melhores coisas da obra, mas a solução de mostrá-lo enciumado com a relação entre seu chefe e PJ não funciona, primeiro por não haver química nenhuma entre Firth e Diaz, segundo, por não ter sido construída ou mencionada qualquer intenção amorosa/sexual antes, esta foi uma saída muito fácil e se mostrou uma péssima escolha, o que evidencia que o roteiro está longe de ser um dos melhores da carreira dos irmãos.

    É lastimável que o plot enverede pelos erros comuns das comédias românticas, seu resultado final é uma história de amor fraca, com elementos de filmes de assalto, que esconde um caráter sentimental e açucarado, que não cumpre nem mesmo a intenção básica de “filme cor de rosa”. Michael Hoffman não consegue fazer jus a filmografia dos roteiristas, nem mesmo nos seus piores momentos.

    Um dos pontos altos no desfecho é o alarme anti-furtos – tão ridiculamente inverossímil que se torna cômico, mas tal esquete não salva o todo, ainda mais com a reviravolta que ocorre com Harry Duane nos minutos finais, que é muito previsível e poderia ser melhor construída.

  • Crítica | A Roda da Fortuna

    Crítica | A Roda da Fortuna

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    A Roda da Fortuna (The Hudsucker Proxy) é o quinto longa dirigido e roteirizado pelos irmãos Coen (Sam Raimi também tem crédito como roteirista), e também um dos menos lembrados da filmografia de Joel e Ethan.

    A história começa com a chegada de um jovem entusiasta e idealista, Norville Barnes (Tim Robbins) à Nova Iorque dos anos 50, no auge do capitalismo americano, onde o sonho de vencer na vida movia gerações esperançosas após o pesadelo da 2ª Guerra Mundial. Paul Newman interpreta magistralmente o vilão e diretor das Indústrias Hudsucker chamado Sidney J. Mussburger, cujo objetivo era substituir o presidente da empresa, Waring Hudsucker, que havia se suicidado. Porém, como a empresa era valiosíssima, Mussburger decide abaixar o valor de suas ações e assim compra-la a um preço baixo. A fim de atingir seus objetivos, coloca como presidente Barnes, recém-contratado pelas indústrias Hudsucker.

    O filme apresenta bem os personagens, porém, a dinâmica entre eles e a demora na execução de seus planos, objetivos e interações, faz a narrativa perder um pouco do clima inicial. Os arquétipos clássicos são muito bem representados, como o trabalhador comum, o jovem idealista, o vilão poderoso, o conselheiro, dentre outros.

    Os diálogos possuem uma rapidez e fluência que remete aos filmes dos anos 50, ainda mais caracterizada na jornalista Amy Archer (Jennifer Jason Leigh). A linguagem corporal e trejeitos dos personagens, retratados de forma fiel, mas caricata ao melhor estilo dos Coen, nos faz acreditar que a Nova Iorque dos anos 50 foi mesmo um período mágico. Ainda assim a obra apresenta uma crítica ao capitalismo selvagem, em cenas ótimas, como a que os trabalhadores fazem um minuto de silencio pela morte de Hudsucker, mas são imediatamente avisados de que esse minuto será descontado de seus pagamentos. Além, é claro, da estilização do vilão e capitalista sem escrúpulos Mussburger e dos acionistas, tratados como meros instrumentos em suas mãos.

    Visualmente o filme atinge seus objetivos, com uma perfeita montagem e fotografia que lembra o cinema glorioso dos anos 50, com um ar de pastiche e comédia. Mas o drama de ascensão e queda de Barnes soa um pouco forçado, pois suas realizações e compreensões não parecem nos convencer em momento algum de sua veracidade, tornando tudo um pouco artificial. O humor negro e direcionado dos irmãos Coen aqui parece um pouco fora de contexto, não encaixando na história e no tom que a narrativa do filme sugere. As reviravoltas acontecem de forma artificial e uma rapidez que não fluem de forma natural para o espectador, tornando a boa experiência visual de seu início um pouco cansativa e enjoativa no final.

    Apesar de alguns defeitos, A Roda da Fortuna é uma história que envolve a sua maneira, valendo a experiência. Os Coen mesmo quando aparentemente erram, conseguem realizar obras acima da média.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.

  • Crítica | Barton Fink: Delírios de Hollywood

    Crítica | Barton Fink: Delírios de Hollywood

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    Barton Fink é um desses filmes que, em somente uma assistida, não é suficiente para captar toda a profundida da narrativa, seja com os detalhes inseridos na tela ou a complexidade de sua história. Qualquer um que acabe de vê-lo dificilmente consegue escapar de ficar pensando um bom tempo sobre todo o significado do que acabou de experimentar. Infelizmente o título em português Delírios de Hollywood acaba por estragar um pouco dessa experiência ao ter inserido nele um spoiler que está diretamente ligado a uma possível interpretação dos eventos ocorridos.

    O filme conta a história de Barton Fink (John Turturro), um escritor nova-iorquino de peças teatrais que acaba de atingir o sucesso com uma peça cujo tema é seu assunto preferido: o homem comum. Essa obsessão de Fink com o tema acaba gerando ótimas sequências e contradições na história, pois alfineta o escritor burguês e elitizado com sua obsessão por uma realidade concreta, onde a vida é uma batalha diária. Esse escritor, cansado da mesmice das mesmas histórias (simplesmente por não precisar se submeter ao desgastante trabalho do tal “homem comum”) procura nessa realidade uma nova fonte de ideias, conflitos e personagens mais conectados com a realidade. Porém, quando Fink encontra um desses sujeitos ordinários, não lhe dá ouvidos, pois está mais preocupado em ouvir sua própria genialidade do que a trivialidade de seu companheiro.

    Pois bem, Fink é contratado por um estúdio de Los Angeles para escrever um simples roteiro de um filme B de luta. Ele se hospeda de propósito em um hotel de qualidade duvidosa para não perder o contato com a realidade, coisa que os hotéis luxuosos de LA certamente fariam. Apesar de no início acharmos que o filme é sobre um escritor com bloqueio criativo – as cenas da máquina de escrever parada e as folhas de papel amassadas são constantes – logo ele se aprofunda na própria metalinguagem, a respeito das batalhas constantes entre roteiristas e suas ideias com os interesses comerciais de estúdios. Cada atitude e cada exagero dos diálogos, é milimetricamente calculado para mostrar o mundo artificial e paternalista dos estúdios com roteiristas, que supostamente irão trazer idéias novas a um mercado saturado. Da mesma forma que Fink é tratado muito bem no início, é escorraçado no final quando entrega a obra pronta – que não era sobre o que o estúdio queria.

    Mas, o ponto de destaque do filme é para Charlie Meadows (John Goodman), vizinho de quarto do hotel de Fink, que se apresenta como um simples vendedor de seguros, o tal homem comum sonhado por Fink, cuja gentileza e bondade transbordam em cada expressão. Após uma reticência inicial, Fink se rende a amizade com Meadows e ambos desenvolvem uma relação interessante, onde o primeiro está sempre preocupado em falar, mas nunca em ouvir.

    Após dois atos acompanhando a jornada do protagonista na busca pela criatividade, o 3º ato inicia-se com uma mulher morta ao seu lado. Nada mais do que a secretária e amante de W. P. Mayhew, um de seus escritores favoritos e que havia conhecido alguns dias atrás. Ao acordar em desespero, Fink recebe a ajuda de Meadows, que o ajuda de forma misteriosa e desaparece. Fink então recebe uma visita da polícia, afirmando que Meadows era na verdade um assassino com um histórico grande de vítimas, inclusive Mayhew.

    A partir daí, segue-se uma linha de questionamentos que fogem a  racionalidade que o filme estava seguindo. Fink realmente existe da forma como normalmente se pensa? Onde se situa a linha de sua sanidade e insanidade? Meadows realmente existe ou é um produto de sua imaginação mais profunda e sombria? Seria isso uma fuga ou uma forma de ele não ter de se assumir responsável por atos tão atrozes? Texto nenhum faria justiça ao espetáculo visual proporcionado pelos Irmãos Coen, que aqui referenciam Orson Welles a Hitchcock, de pequenas pistas até resolução de cenas com um profundo significado. O caráter da obra chega a flertar com alguns dos produtos de David Lynch.

    Considerado por muitos como o trabalho mais autoral dos irmãos Coen, fica difícil chegar a alguma conclusão sobre a história, os simbolismos, os personagens, e tudo o que o universo criado por eles representa. Extremamente personalista, intimista e subjetivo, Barton Fink (o filme e o personagem) refere-se a essa nossa tentativa de sempre estarmos em contato com o nosso pensamento e o que ele significa na prática, pois como ele cita no longa: “I gotta tell you, the life of the mind… There’s no roadmap for that territory. And exploring it can be painful”.

    Texto de autoria de Fábio Z. Candioto.