Fevereiro | 2019

Faz sentido Christian Bale ter agradecido a Satã pela inspiração ao receber o Globo de Ouro de ator em musical ou comédia. A narrativa de Adam McKay pode ser uma inventiva brincadeira de fazer do fato uma hipótese ficcional, mas leva a sério – muito a sério – quando transforma Dick Cheney no grande artífice maquiavélico do início do século XXI. O ex-vice-presidente de George W. Bush, encarado por Sam Rockwell como um bundão aéreo, partiu de uma interpretação da tal Teoria do Executivo Unitário para tornar suas atribuições, digamos, menos simbólicas. Nem que para isso pegasse carona nos atentados de 11 de setembro de 2011 para criar a controversa Guerra ao Terror. Entre a atmosfera de farsa e sátira política, o filme de McKay navega no absurdo na mesma pegada do anterior ‘A Grande Aposta’|2015, quando tentou ‘explicar’ a crise econômica de 2008 nos Estados Unidos. Bale, como o camaleão que já provou ser, some na própria transformação, mas solta lampejos discretos de uma humanização da amoralidade do protagonista. Se é que o feito vai suavizar a figura de Cheney. O esforço é curioso, de todo modo. Após a primeira parte ‘anedotas de Wikipedia’, que conclui nos falsos créditos do meio, a narrativa toma fôlego e dispara cáustica e zombeteira [até o narrador fica alternando de posição social] até o primeiro plano do próprio coração do demônio. Se já não bate, pois foi trocado, o estrago que fez talvez tenha dado o tom do novo século inteiro.

* * * Monteiro Júnior
01.02.19 - Cinemas Teresina, sala 7

No filme mais ambicioso de Jacques Tati, o cenário, como ele mesmo dizia, é o protagonista. Pudera, só a construção do ‘Tativille’ resultou na produção francesa mais cara da época. Por isso mesmo, filmar em 70 mm foi um acerto, figura humana e ambiente interagindo sem a necessidade dos planos invasivos. Aliada a uma paleta de cores acinzentada, a terceira desventura do idiosincraticamente icônico Monsieur Hulot registra a impessoalização crônica perante o automatismo do cotidiano moderno. Tati no seu auge como autor, sofisticando ainda mais a comédia visual com simbologias aterradoras da solidão humana, num mundo onde ninguém se encontra com ninguém de verdade. Até na hilária, e longuíssima, sequência do restaurante a câmera não busca um personagem específico, enquadra a cacofonia do caos. Uma fantástica alegoria da anarquia de uma sociedade esterilizada se deixando extravasar – sob preciso controle do realizador.

* * * ½ Monteiro Júnior
05.02.19

No primeiro filme da Trilogia da Alemanha Ocidental, R. W. Fassbinder alcança o que tanto queria: um distanciamento dramático dentro da própria estrutura do melodrama herdado de Douglas Sirk. Alegoria do milagroso restabelecimento econômico do país no pós-Segunda Guerra Mundial, na qual a atriz Hanna Schygulla faz essa chaga que vai sendo cauterizada com devastador cinismo emocional. Graças ao estilo sóbrio imposto por Fassbinder a um gênero pautado pela novela sentimental, o filme não apenas dribla as armadilhas óbvias. Destaca-se como uma observação fria, mas longe de ser rasa, das fissuras sociais deixadas pela derrota, catalisadas pelas camadas de sua excelente protagonista.

* * * * Monteiro Júnior
06.02.19 - DVD (Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema, n. 14)

O mais sofrível da quadrilogia de Tati e o deslocado protagonista feito por ele mesmo. Não apenas na estrutura, que traz gags menos inspiradas, mas a própria razão de aspecto 1:37 parece um recuo depois da pretensão visual de ‘Playtime – Tempo de Diversão’, quatro anos antes. Assumindo-se como uma verdadeira sátira da obsessão do homem moderno com automóveis cujo design é cheio de dispositivos, a atmosfera da mise-en-scène mantém o charme da série apesar de toda a indulgência. Há uma qualidade original de autoralidade e comentário social que paira acima da feitura do filme e o coloca – aliás, coloca a obra inteira de Jacques Tati – num patamar diferenciado no gênero da comédia. Por outro lado, um personagem tão fabuloso merecia despedida melhor.

* * ½ Monteiro Júnior
06.02.19 - Mubi

É particularmente interessante como a narrativa da argentina Kris Niklison, no primeiro longa de ficção, não chega a ser claustrofóbica mesmo encerrada num único ambiente. Graças às cenas na varanda do apartamento com as plantas, que dá título ao filme? Ou às digressões imaginativas que pontuam o sofrimento da protagonista? Nessa purgação psicossexual da suspensão provocada pelo luto, Camila Morgado se entrega fisicamente como elemento dramático. Maricel Álvarez, todavia, é quem catalisa todo o árduo processo de retorno gradativo à vida.

* * ½ Monteiro Júnior
07.02.19 - Cinemas Teresina, sala 1

A câmera de Julian Schnabel é um partícipe ativo da narrativa, tentando tocar de forma arduamente íntima a inquietude do holandês em sua fase efervescente. É quase um estudo de como deveria operar a mente de van Gogh. A experiência alterna entre o sensorial excruciante e o contemplativo da busca artística. Um pintor contando sobre outro pintor só poderia dar nisso, uma investigação estética da ânsia pela criação. Willem Dafoe, em contrapartida, abstrai essa agressividade imagética com uma atuação delicada, que vai modulando, como por instinto, os quadros emocionais do protagonista. Lindo ver um ator em pleno domínio de um papel impossível de ser feito sem estar realmente ali. A produção ainda atualiza a teoria sobre o tiro no estômago que interrompeu a existência de alguém que nasceu póstumo.

* * * Monteiro Júnior
07.02.19 - Cinemas Teresina, sala 6

O terror satírico de Dan Gilroy [‘O Abutre’|2014] esguicha o sangue sobre a mercantilização no mundo da arte sem qualquer sutileza. Mundo esse superficial, estereotipado, quase no nível do pastiche. Basta reparar no esquematismo reacionário da estrutura do roteiro, aqueles que encontram a morte [art dealers e críticos] e os poupados [artistas não entregues à sedução do mercado]. A mensagem incomodaria mais, no sentido de potencializar a reflexão pós-filme, se não agonizasse na inconsistência divertida da trama costurando os típicos clichês do universo retratado ao terror pós-temporâneo.

* * ½ Monteiro Júnior
10.02.19 - Netflix

A pedido direto do presidente Franklin Delano Roosevelt, o cineasta Lewis Milestone [‘Sem Novidade no Front’|1930] realizou essa raríssima vez em que o cinema hollywoodiano foi simpático com os russos. Antes da Guerra Fria, na verdade quando Estados Unidos e União Soviética se aliaram contra o Terceiro Reich de Hitler. À parte toda a atmosfera de propaganda – o que, óbvio, deu dor de cabeça para os realizadores no macarthismo, uma década depois –, a produção é brutalmente honesta em mostrar como a inocência dos mais jovens se esvai a olho nu e eles são forçados a crescer em meio ao terror do confronto. História pequena, geograficamente contida, aborda temas como ética e desumanidade na medicina e continua controversa até hoje.

* * ½ Monteiro Júnior
10.02.19 - Mubi

Tarkovsky continua a desafiar o olhar para a obra, uma jornada filosófico-existencial pelas veredas da atração da verdade inatingível e sua promessa de plenitude. E a fascinar na maneira como essa busca cheia de simbolismos revela as fragilidades mais profundas da condição humana. A travessia da misteriosa Zona rumo ao Quarto onde os desejos se tornariam reais vem acumulando camadas nos 40 anos da estreia do filme. De crítica ao regime soviético à antecipação do desastre de Chernobil em 1986, o que permanece inquestionável é o aprisionamento emocional dos quadros em sépia e a falsa sensação de paz e felicidade do contraponto colorido. Baseado no livro dos irmãos Arkadiy e Boris Strugatskiy, ainda esculpe um tempo poético que desmonta as classificações óbvias.

* * * * Monteiro Júnior
11.02.19 - YouTube

Pawlikowski aprimora a estética de ‘Ida’|2013, com um resultado emocionalmente atroz. A razão de aspecto 1:37 modula o desconforto interno dos personagens nos quadrantes inferiores da tela. O roteiro, numa concisão elíptica maravilhosa, atravessa 15 anos de encontros e rupturas, amorosas, políticas e musicais, do casal Zula [Joanna Kulig] e Wiktor [Tomasz Kot]. Ela, que transformação passa. A atriz já tinha cantado no outro filme do realizador polonês, e aqui se sai como um nome a ser observado mais de perto. História de uma paixão renitente, de destrutiva força criadora – ele é pianista e ela cantora –, minado por muros ideológicos na Europa em plena efervescência artística, mas dividida em dois blocos. Quase uma releitura politizada do ‘Romeu e Julieta’ de Shakespeare? É tão doloroso quanto, sem dúvida, ver a arte sendo aparelhada como instrumento de propaganda rasteira e lançando as pessoas cada qual para um lado. Como também o romance que vai se amargando, erupcionando as fendas, mesma na resistência de não se permitir acabar. Levando-nos insuspeitamente à beleza agridoce do último plano: o simbolismo poético do derradeiro diálogo, a saída esperançosa dos dois do quadro. Só nos é permitido engolir a seco o que a História faz com quem não quer nada com ela.

* * * * ½ Monteiro Júnior
11.02.19 - Cinépolis Rio Poty, sala 7

A aguardada versão do mangá cyberpunk de Yukito Kishiro por James Cameron/Robert Rodriguez é quase um aperitivo do cinema do futuro: superando o ‘uncanny valley’ dos personagens digitais, o fotorrealismo da computação gráfica 3D é o que impulsiona as sensações dramáticas da sessão. A protagonista-título, com os movimentos capturados de Rosa Salazar, é talvez mais palpável que os atores reais com os quais contracena. Já se foi o tempo dos olhos sem vida serem o calcanhar de Aquiles dos efeitos visuais; aqui eles são enormes e ainda assim nos conectam à alma e ao carisma de Alita. E só o fato de eu estar atribuindo alma a uma formação de pixels diz tudo. Mesmo fiel à fonte – digo: os primeiros quatro volumes da série –, o roteiro termina soando uma [absorvente] desculpa burocrática. Roteiro com mais de 600 páginas quando foi editado por Rodriguez, que assumiu a direção depois de Cameron optar pelo sacerdócio perpétuo aos seus ‘Avatares’. Mas a costura deixa as marcas visíveis, as conveniências indulgentes que mantém a trama em movimento, a ponto de personagens surgirem do nada no local certo. Ou as motivações serem vazias e as revelações carecerem de impacto orgânico à história. Muita coisa fica lançada no ar. Pois, aqui é um chute, as relações entre um e outro foram reduzidas a arquétipos, ou simplesmente caíram na edição estrutural de Rodriguez, para dar espaço às sequências de luta e aos set pieces que seriam de tirar o fôlego se não fossem fruto de uma animação sofisticada. Empolgam, é claro. Com o uso batido do frame rate alterado, suspendendo por segundos o frenetismo da ação, e a proativa personalidade da heroína [empoderamento feminino pixelizado!], difícil não vibrar. Sobretudo quando remete a um ‘Rollerball’|1975 sem as limitações da física. A câmera rodopia por entre correntes-garras. A adrenalina como o relevo do quadro. O cinema do nosso tempo antecipando o vindouro. A emoção estéril aflorando a pele e ligando nosso afeto a um código de computador com grandes olhos.

* * ½ Monteiro Júnior
14.02.19 - Cinépolis Rio Poty, sala Macro XE

Aos 88 anos, Clint Eastwood volta a se dirigir – de novo, após suposta aposentadoria da frente da câmera – e entrega uma atuação que, se for realmente a última, possui a dignidade das boas despedidas. Sem deixar transparecer, ele se esforça em tornar o amoral protagonista um sujeito carismático sem nunca esconder suas falhas de caráter. O humor seco, munido da própria persona do ator-diretor, faz esse delicado equilíbrio parecer algo fácil, quando anda a um fio de estragar a coisa toda. Ainda por cima se diverte com o personagem, o qual usa para apontar os 'dessincronismos' da vida pós-temporânea. Baseado em artigo de Sam Dolnick para o New York Times, dividiu a opinião da crítica estadunidense, talvez por mostrar a facilidade com que um gringo branco transita com drogas entre México e Estados Unidos sem ser incomodado [mexe com as principais feridas atuais da sociedade de lá: racismo e xenofobia]. Mas teve público sólido, refletindo a qualidade do diálogo da obra. Se derrapa aqui e ali no drama de estrutura superficial, ao menos mostra como a paciência narrativa permite desenvolver as relações e os arcos de modo a nos deixar próximos deles. Nos dias de hoje, um filme à moda antiga que flui com segurança dá para perdoar todo o resto.

* * * Monteiro Júnior
15.02.19 - Cinemas Teresina, sala 5

O processo do samba-enredo da Mangueira, campeão do carnaval carioca de 2016, serve como costura para Marcio Debellian colocar em quadro uma Maria Bethânia, homenageada pelo grêmio verde e rosa, em toda a sua religiosidade. Não só ela, na verdade, a família Veloso em peso – Caetano e Mabel completam a trinca principal que conduz o filme. Dessa deixa vem o mergulho no Brasil de raiz, os festejos de Santo Amaro, na Bahia, no entardecer de janeiro e alvorecer de fevereiro, junto com a celebração das origens étnicas, o eco do fim [pelos menos oficial] da escravatura e, sobretudo, a maravilhosa pulsação do sincretismo dos credos. A mistura atmosférica de tradição, fé e raça dá um exemplo do que deveria ser o país, de todos os santos, de todos os orixás, de todos os gêneros e de todos os tons de pele. Quase como se um Brasil utópico, em seu pluralismo tolerante, existisse durante a Festa de Nossa Senhora da Purificação.

* * * Monteiro Júnior
17.02.19 - Cinemas Teresina, sala 5, matinê

Há, já perto do desfecho, uns dez minutos de pura tensão realista, quase documental, inclusive trazendo como atores de si mesmos os quatro reais personagens – três estadunidenses e um britânico – que impediram a tragédia no trem que viajava entre Amsterdã e Paris em agosto de 2015. Tudo antes disso, porém, é uma sacal sabotagem estrutural comandada sem qualquer energia ou entusiasmo por Clint Eastwood. É mais um contraexemplo do uso de flashbacks que, não só impede o fluxo do que deveria ser a ação principal, mas força um discurso melodramático do heroísmo. Pena, tinha tudo para ser uma reencenação com algum tipo de vigor – mesmo nesse exame frouxo e ali e acolá controverso. Curiosamente, fiz o mesmo trajeto [não lembro se no mesmo trem] no mês anterior.

* * Monteiro Júnior
18.02.19 - HBO Go, madrugada

A cinebiografia de Lui Farias sobre o Tremendão utiliza sem medo certos dispositivos – imagens de arquivo, quebra da quarta parede, animação – para escancarar sua natureza representativa. Mesmo que isso termine evidenciando mais o processo cinematográfico do que a história propriamente contada. Mesmo que os vá abandonando, um a um, no decorrer da produção. Assume o risco de revelar toda a falsidade construtiva da mise-en-scène. O recorte temporal, focado no início da carreira e, sobretudo, na popularidade do programa de TV Jovem Guarda, é um bálsamo diante das narrativas que convulsionam para dar conta da vida inteira do sujeito. E os atores afinados, sem o impulso de mimetizar, não precisam ser trocados no didatismo brasileiro das fases. O trio principal vai até o fim, canta com suas vozes, constrói cada um seu personagem. Chay Suede, Gabriel Leone, Malu Rodrigues. Nomes importam mais ou menos que suas representações? Assim como a Jovem Guarda recebeu críticas de alienada, o filme de Farias [o pai, Roberto, trabalhou com os Carlos e Wanderléa] não explora o contexto político-social do Brasil da época. Se embebe da fantasia escapista das músicas, ao passo que converte a relação Erasmo com Roberto num 'bromance' nem sempre fácil de engolir. Usar a canção ‘Amigo’ para encontrar o fim do filme fica entre o tocante e o emocionalmente forçado. São os artifícios narrativos se voltando contra a narrativa? Mais uma vez o cinema nacional opta pelo hagiografismo wikipediano que parece fazer das cinebiografias, musicais ou não, o filão pós-globochanchada.

* * ½ Monteiro Júnior
18.02.19 - Cinemas Teresina, sala 1

Inspirando-se nos próprios filhos, Mamoru Hosoda usa o ciúme infantil pela chegada de um novo bebê e declama uma verdadeira poesia lúdica sobre amadurecer enquanto membro familiar. Por meio do fantástico, une futuro e passado para mostrar que as lições vêm de onde, de quem e de quando menos se esperaria. Em sua estrutura episódica, valoriza o nada simples processo de mudança – até porque o protagonista é um pirralho de quatro anos daqueles bem mimados –, assim como o resultado de um intimismo apoteótico. Interessante como os níveis da casa a confinar boa parte da história parecem revelar a conformação hierárquica da família japonesa. E em que lugar a magia acontece.

* * * ½ Monteiro Júnior
20.02.19 - Pestana Hotel, ap 1535, São Paulo-SP

Se fosse possível, o filme dirigido por Marielle Heller teria o cheiro de uma biblioteca antiga ou de uma livraria cult. A atmosfera em paleta melancólica evidencia os ácaros dos escritos velhos, fetichizados. Melissa McCarthy e Richard E. Grant, ambos em momento singular e maravilhosa interação, são os agentes do caos a desmontar o ‘intocável’ olimpo literário. No caso, todo o mercado informal da aquisição das correspondências de autores e personalidades mortas. Os losers são capazes de gerar figuras trágicas interessantíssimas quando bem trabalhados. É o que faz a adaptação do livro de Lee Israel, que McCarthy personifica longe de sua zona cômica de conforto, sem se preocupar em torná-la minimamente simpática. No auge de uma crise pessoal e profissional, ela testa seu talento de um modo torto e desesperado: mimetizando estilos de escrita em cartas falsificadas vendidas a colecionadores. No subtexo, a produção quebra a sagrada tese do ‘impossível de imitar’ ou ‘ninguém escreve como fulano’. O tom dispensado por Heller é sóbrio, evita o melodrama de redenção, humaniza tanto os personagens que não precisa torná-los hagiograficamente rasos. Com efeito, provoca sugerindo os pedestais que montamos para coisas genéricas.

* * * ½ Monteiro Júnior
21.02.19 - Pestana Hotel, ap 1535, São Paulo-SP

Como negar que o tom moralizante do filme, capitaneado pela perspectiva de uma criança, tenha mesmo uma certa ingenuidade ante a complexidade social das coisas? Mas também como negar a potência da mensagem, assumindo a receita devastadora do melodrama, depois do mergulho na absoluta crueza da realidade miserável desses personagens? A libanesa Nadine Labaki consegue cozinhar os ingredientes imersivos da narrativa de modo que o grito inocententemente furioso do garoto Zain Al Rafeea, refugiado sírio e o coração da obra, ultrapasse a artificialidade na qual é construído. Exemplo de como a mise-en-scène tenta driblar a própria diegese do roteiro. A contração é no mínimo inusitada quando se tem o olhar documental numa estrutura elaborada – o crime do menino fica fora do quadro e a temporalidade investe em flashfowards que talvez não fizessem diferença, afinal. Pedir para processar os pais por ter nascido pode levar a interpretações muitas vezes equivocadas. Como premissa dramática, desculpando os deslizes bem intencionados da realizadora no desfecho otimista, é um golpe seco na carótida.

* * * * Monteiro Júnior
25.02.19 - Cinemas Teresina, sala 7

A opção de Felix van Groeningen, do ótimo ‘Alabama Monroe’|2012, em evitar as explosões dramáticas comuns ao gênero e à temática confere uma sobriedade que Hollywood está distante de alcançar. Apenas não se engane: esse é daqueles filmes que não buscam respostas fáceis nem nas doloridas atuações de Steve Carell e Timothée Chalamet. O roteiro de Luke Davies e van Groeningen costura os livros autobiográficos de Sheff pai e Sheff filho num fluxo quase poético de flashbacks e flashfowards – flutuação temporal que vem a calhar quando se trata da tortuosa espiral do limbo das drogas. O desconcerto de alguns críticos é pelo fato de esteticamente ser uma produção bonita de se ver. O realizador belga, estreando em terra estrangeira, não mergulha sua fotografia no inferno imagético popularizado por ‘Réquiem para um Sonho’|2000 ou algo parecido. Ao contrário, deixa o plano aberto e bem enquadrado para expor as vulnerabilidades dos personagens sem a redundância visual ou ainda atribuir-lhes justificativas rasas. Mesmo sendo de pais separados, o garoto sempre teve amor e carinho de todos. Uma história simples em sua superfície, mas humanamente desoladora. Sobretudo quando o pai, depois de tentado tudo [até se drogar para entender o que acontece com o filho], percebe que nada mais pode fazer para ajudar o rapaz. Parece cruel, quase uma inadmissível desistência parental. Às vezes, porém, são as decisões mais radicais as únicas capazes de romper círculos inquebráveis.

* * * Monteiro Júnior
26.02.19 | Cinemas Teresina, sala 5

Alvaro Furloni transforma o roteiro de Pedro Perazzo num raríssimo exercício de gênero – o thriller psicológico – com certo equilíbrio no cinema brasileiro. Claro, requenta alguns clichês visuais já surrados por centenas de outras produções do terror contemporâneo, embora pareça fazer isso com a propriedade cinéfila de quem brinca referenciando. Trabalha a atmosfera e os elementos linguísticos, da fotografia escura e claustrofóbica ao som ambiente mais baixo que a trilha extradiegética, para reforçar, talvez até demais, o viés subjetivo da narrativa. Em nenhum momento esconde o fato de que estamos percorrendo a história pela mente distorcida do protagonista feito por Armando Babaioff. Se por um lado potencializa sua luta interna contra os demônios da culpa, chegando mesmo a materializá-los – recurso ainda mais sintomático por eleger como cenário uma igreja evangélica, que, o filme termina defendendo esse estereótipo, terceiriza as falhas humanas –, por outro enfraquece a tentativa de enquadrar a paranoia do criminoso-celebridade com a sentença judicial paga, mas o qual nunca será perdoado pela sociedade. Nem todas as pontas propositalmente deixadas soltas reverberam num efeito consistente de convidar o espectador a participar, e ressignificar, a loucura do personagem. Na verdade, no afã de inserir camadas, talvez o filme diga além do necessário sem satisfazer a promessa do crescendo rítmico. Seja como for, acerta na ironia dramática do título.

* * ½ Monteiro Júnior
27.02.19 - Cinemas Teresina, sala 4, sessão-debate com Alvaro Furloni

Faz da preparação de Alex Honnold para a escalada solo dos 910 metros do El Capitan, paredão rochoso no Vale de Yosemite, Califórnia, um íntimo estudo de personagem – e da própria natureza obsessiva da prática de alpinismo. A experiência se torna ainda mais fascinante ao registrar como o risco envolvido afeta não apenas o psicológico do atleta, sua maneira de encarar a vida e seus relacionamentos, mas também a própria equipe de filmagem que o segue por dois anos. Afinal, não há qualquer equipamento ou rede de proteção para evitar uma queda fatal, e mesmo com câmeras posicionadas ao longo da subida a dinâmica não pode ser interferida. O casal de diretores, Elizabeth Chai Vasarhelyi e Jimmy Chin, incorpora à narrativa toda a tensão e urgência de ter que lidar com o pior dos cenários: filmar uma possível morte de Alex. Os 15 minutos finais são de entrecortar a respiração. Tanto pelas imagens [fico pensando no trabalho logístico da excelente decupagem] quanto pela proeza que o filme eterniza. Só então podemos ter um vislumbre do apelo interior de uma escalada como essa. É quase provar a si mesmo ser capaz de realizar um milagre. Um milagre humano.

* * * * Monteiro Júnior
28.02.19