A Aventura Do Livro Roger Chartier

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A aventura do livro

do leitor aonavegador

mpr ensa ficial


A In te rn e t faz re n asc e r o so n h o d e
u n iv ersalid ad e no q u al to d a a h u m an id ad e
p artic ip a d o in te rc âm b io d e id éias. M as su sc ita
tam b ém a an g ú stia d e v er d esap arec er a c u ltu ra
d o liv ro . Q u al é o fu tu ro d o liv ro ? O q u e n o s
e n sin a seu p assad o ? R o g er C h artier n o s lem b ra
q u e m u itas rev o lu ç õ es, d entre as q u ais a d e
G u ten b e rg , v iv id as c o m o am e aç as, c riaram ,
p elo c o n trário , o p o rtu n id ad es e e sp eran ç as. Ele
m o stra p o r q u e a h istó ria d o liv ro é insep aráv el
d o s g e sto s v io len to s q u e o rep rim em , d o s au to s-
d e-fé à c e n su ra, m as, tam b é m , c o m o a fo rç a d o
e sc rito to rn o u trag ic am e n te d errisó ria esta
o b sc u ra v o ntad e. A ssim , a n e g aç ão d a fig u ra d o
au to r c o n d u z iu , p o r fim , ao re c o n h e c im e n to d e
seu s d ire ito s, c o lo c ad o s h o je n o v am ente em
q u estão p ela im aterialid ad e d o te x to eletrô n ic o .
N e sta ev o c aç ão d o jo g o d e p ap éis en tre au to r,

Ctiartier le ito r, ed ito r e su p o rtes té c n ic o s d o e sc rito ,


R o g er C h artier n o s p reserv a tan to d a n o stalg ia
c o n serv ad o ra c o m o d a u to p ia in g ên u a. Po is
re fletir so b re a av entu ra d o liv ro é, em

A aventura do livro d efinitiv o , ex am in ar a te n são fu n d am en tal q u e


atrav essa o m u n d o c o n tem p o rân e o , d ilac erad o
do leitor ao navegador en tre a afirm aç ão d as p artic u larid ad es e o d esejo
d o u niv ersal.

H isto riad o r, R o g er C h artier é o rientad o r d e estu d o s na Éc o le


d es H au tes Étu d e s en Sc ie n c e s So c iales. Esp e c ialista em
histó ria d o liv ro e d a leitu ra, p u b lic o u e d irig iu nu m ero sas
o b ras: H i s t o i re d e V é d it io n f r a n ç a i s e em q u atro v o lu m es
(Fay ard , 1989-1991), H i s t o i r e d e Ia l e c t u re d a t / s t e m o n d e
O c c i d e n t a l (Seu il, 1997), C u t t u re é c r i t e e t s o c i é t é . L ’o r d r e d e s
l i v re s X I V - X V l l s i è c l e s (A lb in M ic h el, 1997).

Je an Leb ru n , a g r é g é d e histó ria, é p ro d u to r d o p ro g ram a


C u l t u re M a t i n na F r a n c e C u t t u re .

Im p re n sa O ficial

e d ito ra mpr ensa ficial


unesp
© 1 9 7 7 b y Les Ed itio n s Tex tu el
T ítu lo o rig in al e m francês: Le livre en revolutions.
En tre tie n s av ec Je a n Leb ru n.

© 1 9 8 8 d a trad u ção b rasileira


Fu nd aç ão Ed ito ra d a U N ESP ( FEU )
Praç a d a Sé, 108
0 1 0 0 1 - 9 0 0 - São Pau lo - SP
T e l.: ( 0 x 1 1 ) 3 2 4 2 - 7 1 7 1
Fax: ( 0 x 1 1 ) 3 2 4 2 - 7 1 7 2
w w w .ed ito rau n esp .c o m .b r
f e u @ e d ito ra.u n e sp .b r

Im p re n sa O f ic ial d o Estad o d e São Pau lo


R u a d a M o o c a, 1 .9 2 1 M o o ca
03103 902 São Pau lo SP
w w w .im p re n sao f ic ial.c o m .b r
liv ro s@ im p re n sao f ic ial.c o m .b r
SA C G ran d e São Pau lo 0 1 1 5 0 1 3 5 1 0 8 [ 5 1 0 9
SA C D e m ais Lo c alid ad es 0 8 0 0 0 1 2 3 4 0 1

D ad o s In te rn ac io n ais d e C atalo g aç ao na Pu b lic aç ão


Bib lio te c a d a Im p re n sa O f ic ial

C hartier, Ro g er, 1945


A av entu ra d o liv ro : d o le ito r ao nav eg ad o r : co nv ersaçõ es c o m Je a n Lebrun/ Ro g er
C h artier; trad u ção R e g in ald o C arm e llo C o rrêa d e M o raes — [São Pau lo ] : Im p ren sa O fic ial
d o Estad o d e São Pau lo : Ed ito ra U N ESP , { 1 9 9 8 } .
l 6 0 p : il. - (co leção : p rism as)

Bib lio g rafia.


T ítu lo o rig in al: Le liv re en rev o lu tio ns : en tretien s av ec Je a n Leb ru n
“ I a. reim p ressão ” , 2 0 0 9 -

IS B N 9 7 8 - 8 5 - 7 0 6 0 - 1 8 1 - 0 ( Im p re n sa O f ic ial)
IS B N 9 7 8 - 8 5 - 7 1 3 9 - 2 2 3 - 6 ( U N ESP )

1. Liv ro s e leitu ra — En trev istas 2. Liv ro s — H istó ria 3. C o m u n ic aç ão esc rita —


H istó ria 4. Te c n o lo g ia d a info rm aç ão — A sp ec to s so ciais I. Leb ru n , Je a n , 1 9 5 0 II. T ítu lo .

CDD 002

ín d ic e p ara c atálo g o siste m átic o :

1.Liv ro s : H istó ria 0 0 2

A Ed ito ra U N ESP é afiliad a:

€ £ £ £ £ >
A so ciació n de Ed ito riales Univ ersitarias A sso c iaç ão Brasile ira d e
de A merica Latina y ei Caribe Ed ito ras U niv ersitárias
SUMÁRIO

Prólogo

O autor entre punição e proteção

O texto entre autor e editor

O leitor entre limitações e liberdade

A leitura entre a falta e o excesso

A biblioteca entre reunir e dispersar

O numérico como sonho de universal

A AVENTURA DO LIVRO
Prólogo

Arevoluçãodasrevoluções?

A presen tam -n os o texto eletiv n ico com o u m a rev olu ção.


A história do livro j â viu outras!
D e fato , a p rim eira tentação é co m p arar a rev o lu­
ção eletrô nica co m a rev o lução d e Gutenberg. Em
m ead o s da d écad a d e 1450, só era p o ssív el rep ro d u­
zir um texto co p iand o -o à mão , e d e rep ente uma
no v a técnica, basead a no s tipo s m ó v eis e na prensa,
transfiguro u a relação co m a cultura escrita. O custo
d o livro diminui, através da d istribuição das d esp e­
sas p ela to talid ad e da tiragem, muito m o d esta aliás,
entre mil e mil e quinhento s exem p lares. A nalo ga­
m ente, o tem p o d e rep ro d ução d o texto é red uzid o
graças ao trabalho d a o ficina tipo gráfica.
Co ntud o , a transfo rm ação não é tão abso luta co m o
se diz: um livro m anuscrito (so bretud o no s seus
Na Mad one du Mag nific at, de último s século s, XIV e XV) e um livro p ó s-G utenberg
B o ttice lli, o a to da escrita e m um
baseiam -se nas m esm as estruturas fund am entais -
dos te x to s mais c a n ta d o s da
tra d iç ã o cristã. O livro a b e rto , de
as d o có d ex. Tanto um co m o o utro são o b jeto s
c u id a d o s a c a lig ra fia , ric a m e n te co m p o sto s d e fo lhas d o brad as um certo núm ero
e n c a d e rn a d o , d o u r a d o nas
d e v ez es, o que d eterm ina o fo rm ato d o livro e a
taterais, tra z à m e m ó ria , mais d o
q u e à leitura d o e s p e c ta d o r, o su cessão d o s cad erno s. Estes cad erno s são m o nta­
c a n to de lo u v o r de M a ria :
d o s, co sturad o s uns ao s o utro s e p ro teg id o s p o r
M ag nific at anima mea Dominum
(Minha alma exalta o Senhor). um a encad ernação . A d istribuição d o texto na su­
S a n d ro B o ttice lli. Mad one du p erfície da p ágina, o s instrum ento s que lhe p erm i­
M ag nific at (d e ta lh e ), cerca de
1 4 8 2 -1 4 9 8 . Florence, M u s e u
tem as id entificaçõ es (p ag inação , nu m eraçõ es), o s
d e g li U ffiz i. índ ices e o s sum ário s: tud o isto existe d esd e a ép o -

A AVENTURA DO LIVRO 7
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Para A le x a n d re H u m b o ld t, ca d o m anuscrito . Isso é herd ad o p o r G utenberg e,


g e ó g r a fo e n a tu ra lis ta , o espaço
fe c h a d o d o g a b in e te de tr a b a lh o
d ep o is d ele, p elo livro m o d erno . A hierarquia d o s
c o n c e n tra , n o in te rio r de suas fo rm ato s, p o r exem p lo , existe d esd e o s últim o s sé­
paredes, os in s tru m e n to s q u e
a s s e g u ra m o c o n h e c im e n to d o culo s d o m anuscrito : o grand e in-fó lio que se p õ e
m u n d o : os livros, os m apas, o
so bre a m esa é o livro d e estud o , da esco lástica, d o
g lo b o , e, re c o lh id o s q u a n d o de
suas viagens na A m é rica e na Ásia, saber; o s fo rm ato s m éd io s são aq ueles d o s no v o s
os o b je to s h e te ró c lito s q u e delas
c o n s titu e m a m e m ó ria . Ernest lançam ento s, d o s humanistas, d o s clássico s antigo s
H ild e b ra n d t, Humb old t dans sa
co p iad o s d urante a primeira vaga d o humanismo ,
bibíiotèque, 1 8 5 6 . Londres, Royal
G e o g ra p h ic a l Society. antes d e Gutenberg; e o libellus, isto é, o livro que

8 A AVENTURA DO LIVRO
Prólogo

se p o d e lev ar no b o lso , é o livro d e p reces e de


d ev o ção , e às v ezes d e diversão.
Há p o rtanto uma co ntinuid ad e muito fo rte entre a
cultura d o m anuscrito e a cultura d o impresso , em ­
bo ra d urante muito tem p o se tenha acred itad o numa
ruptura total entre uma e outra. Co m Gutenberg, a
p rensa, o s tip ó g rafo s, a o ficina, to d o um m und o
antigo teria d esap arecid o bruscam ente. Na realid a­
d e, o escrito co p iad o à m ão so brev iv eu p o r muito
tem p o à inv enção d e Gutenberg , até o sécu lo XVIII,
e m esm o o XIX. Para o s texto s p ro ibid o s, cuja exis­
tência d ev ia p erm anecer secreta, a có p ia m anuscri­
ta co ntinuav a send o a regra. O d issid ente d o sécu ­
lo XX que o p ta p elo sam iz dat, no interio r d o m und o
so v iético , em v ez da im p ressão no estrang eiro , p er­
p etua essa fo rm a d e resistência. D e m o d o geral,
persistia um a fo rte susp eita d iante d o im p resso , que
sup o stam ente ro m p eria a fam iliarid ad e entre o au­
to r e seus leito res e co rro m p eria a co rreção d o s
texto s, co lo cand o -o s em m ão s “m ecânicas” e nas
p ráticas d o co m ércio . M antev e-se tam bém a figura
d aq uele que na Inglaterra d o sécu lo XVIII se cha­
mava d e gentleman-w riter, aq uele que escrev ia sem
entrar nas leis d o m ercad o , à d istância d o s m aus-
m o d o s d o s liv reiro s-ed ito res, e que p reserv av a as­
sim um a cum p licid ad e m uito fo rte co m o s leito res.

A im pressão se impôs portan to m ais len tam en te do qu e se


im ag in a, p o r sucessiv os desliz am en tos. Os ociden tais tam bém
têm dificu ldades p ar a c on c eber o fat o de qu e ela n ão era

A AVENTURA DO LIVRO
Prólogo

univ ersal: ela conv iv ia, p o r u m a espécie de sobreposição, com


um outro sistem a de m u ltiplicação, a x ilog rafia, que, n a C hina,
no Jap ão , n a C oréia, propiciou um outro sen tido p ar a o signo.
Po d e-se d izer que ali tam bém existe im p rensa, já
que se trata de imprimir texto s so bre o p ap el, mas
sem tip o s m ó v eis - o s escrito s são grav ad o s em
m ad eira - nem p rensa, já que a técnica de im p res­
são é aquela da fricção da fo lha so bre a madeira
entintad a. O p o nto fund amental, aqui, é a fo rte co n­
tinuid ad e entre a arte do texto manuscrito , a caligra­
fia, e o caractere im p resso . As tábuas são gravadas,
efetiv am ente, a partir d e m o d elo s calig ráfico s. No
m und o o cid ental, em co ntrap artid a, estab eleceu -
se um a im p o rtante ruptura entre o s texto s m anus-
crito s e a letra ro m ana que se to rna o caractere
d o m inante no s livro s im p resso s.
No Extrem o O riente, o signo , ao m esm o tem p o
que tem um co nteú d o sem ântico , p o ssui um senti­
d o p ela sua p ró p ria fo rm a, o que não so brev iv eu
no O cid ente a não ser em certas tentativ as ligad as
ao sim bo lism o da letra. A ind a no O cid ente, a partir
De G e o rg e s de La Tour, u m São
d o fim d o século XVI e início d o XVII, a im agem
J e rô n im o leitor. J e rô n im o , de
início p e n ite n te no d e s e rto da
inserid a no livro está ligad a à técnica da gravura
Síria, e m p re e n d e u a tra d u ç ã o da em co b re. V ê-se então uma d isjunção entre o texto
Bíblia para o la tim a p e d id o d o
e a imagem: para imprimir, d e um lado, os caracteres
p a p a D â m a s o I. U s a n d o ócu lo s,
v e s tid o de ca rd e a l, ele é tip o g ráfico s e, d e o utro , as gravuras em co b re, são
re p re s e n ta d o le n d o u m a ca rta
necessárias p rensas d iferentes, d uas o ficinas, duas
(ta lve z p o n tific a i? ) ao m e s m o
t e m p o q u e d ia n te deíe se a b re o p ro fissõ es e d uas co m p etências. É o que exp lica
g ra n d e livro das Escrituras. que, até o século XIX, a im ag em esteja situad a à
G e o rg e s de ia Tour, Saint Jérome
lisant, p rim e iro q u a rte l d o século
m argem d o texto - o fro ntisp ício abrind o o livro,
XVII, Paris, M u s e u d o Louvre. as p ranchas fo ra-d o -texto . Na xilo grafia d o Extre-

10 A AVENTURA DO LIVRO
m o O riente, p erm anece m ais fam iliar uma lig ação
fo rte entre texto e im agem , grav ad o s so bre o m es­
m o sup o rte. Esta técnica, além d o v ínculo m antid o
co m o texto m anuscrito , ap resentav a no táv eis v an­
tagens: ela p erm itia um a esp écie d e ed ição co nfo r­
m e a d em and a, já que as tábuas, d e um a resistên­
cia d urad o ura, p o d iam ser co nserv ad as p o r m uito
tem p o , enq uanto as co m p o siçõ es tip o g ráficas d e­
v iam ser d esfeitas a fim d e utilizar o s caracteres
p ara co m p o r o utras p ág inas. N ão se d ev e p o rtanto
julgar as técnicas não o cid entais a partir d e no ssa
sup o sta sup erio rid ad e técnica.

D esliz am en tos, sobreposições... Q u an do, o historiador do liv ro


o lha p ar a trás, dev e ser p ru den te ao defin ir tran sform ações
p assadas. H oje, se ele con tin u a u tiliz an do o v o c abu lário do
g eólog o, é p rec iso qu e p ro c u re u m a p alav r a m ais r adic al p ar a
defin ir aqu ilo qu e está ocorren do. Trata-se de um corte, u m a
frat u ra. D esde logo, p o r qu e o objeto esc ap a à ap reen são da
história m aterial tal com o ela sabia, ou trora, ab o r d ar e
defin ir o livro.
A liás, é d ifícil em p reg ar aind a o term o o b jeto . Exis­
te p ro p riam ente um o b jeto que é a tela so b re a
qual o texto eletrô nico é lid o , m as este o b jeto não
é mais m anusead o d iretamente, imed iatamente, p elo
leito r. A inscrição d o texto na tela cria uma distri­
buição , uma o rganização , uma estruturação d o texto
que não é d e m o d o algum a m esm a co m a qual se
d efro ntav a o leito r d o livro em ro lo da A ntigüid ad e
o u o leito r m ed iev al, m o d erno e co ntem p o râneo
d o livro m anuscrito o u im p resso , o nd e o texto é

12 A AVENTURA DO LIVRO
Prólogo

o rg anizad o a partir d e sua estrutura em cad erno s,


fo lhas e p áginas. O fluxo seq ü encial d o texto na
tela, a co ntinuid ad e que lhe é d ad a, o fato d e que
suas fro nteiras não são m ais tão rad icalm ente, v isí­
v eis, co m o no livro que encerra, no interio r d e sua
encad ernação o u d e sua cap a, o texto que ele car­
rega, a p o ssibilid ad e para o leito r d e em baralhar,
d e entrecruzar, d e reunir texto s q u e são inscrito s
na m esm a m em ó ria eletrô nica: to d o s esses traço s
ind icam que a rev o lução d o livro eletrô nico é uma
rev o lu ção nas estruturas d o sup o rte m aterial d o es­
crito assim co m o nas m aneiras d e ler.

Este é o objeto. Se o objeto p e r de su a an tig a den sidade, p ode- se


diz er en tão qu e o leitor se sen te livre?
D e certo m o d o , sim. D e um lad o , o leito r d a tela
assem elha-se ao leito r d a A ntiguid ad e: o texto que
ele lê co rre d iante d e seus o lho s; é claro , ele não
flui tal co m o o texto d e um livro em ro lo , que era
p reciso d esd o brar ho riz o ntalm ente, já que ago ra
ele co rre v erticalm ente. D e um lad o , ele é co m o o
leito r m ed iev al o u o leito r d o livro im p resso , que
p o d e utilizar referências co m o a p ag inação , o índ i­
ce, o reco rte d o texto . Ele é sim ultaneam ente esses
d o is leito res. A o m esm o tem p o , é m ais livre. O
texto eletrô nico lhe p erm ite m aio r d istância co m
relação ao escrito . N esse sentid o , a tela ap arece
co m o o p o nto d e cheg ad a d o m o v im ento que se­
p aro u o texto d o co rp o . O leito r d o livro em fo rm a
d e có d ex co lo ca-o d iante d e si so bre um a m esa,
vira suas p áginas o u então o segura quand o o fo r­

A AVENTURA DO LIVRO 13
Prólogo

m ato é m eno r e cab e nas m ão s. O texto eletrô nico


to rna p o ssív el uma relação m uito m ais d istanciad a,
não co rp o ral. O m esm o p ro cesso o co rre co m quem
escrev e. A quele que escrev e na era da p ena, d e
p ato o u não , p ro d uz uma grafia d iretam ente ligad a
a seus g esto s co rp o rais. Co m o co m p utad o r, a m e­
d iação d o teclad o , q u e já existia co m a m áquina d e
escrev er, m as que se am p lia, instaura um afasta­
m ento entre o auto r e seu texto . A no v a p o sição d e
leitura, entend id a num sentid o p uram ente físico e
co rp o ral o u num sentid o intelectual, é rad icalm en­
te o riginal: ela junta, e d e um m o d o que aind a se
d ev eria estudar, técnicas, p o sturas, p o ssibilid ad es
q ue, na lo ng a histó ria da transm issão d o escrito ,
p erm aneciam sep arad as.

A rev olu ção diz respeito tan to ao m odo de p ro du ç ão qu an to à


reprodu ção dos textos. C orrem o risco de serem p u lv eriz adas as
n oções de autor, editor e distribuidor, qu e m al se p u deram
fix ar, n u m a ép o c a bastan te recente, qu e c oin c ide com a
in du strializ ação do livro.
Po d e-se juntar aqui a reflexão so b re a ed ição e a
d istribuição , já que, no m und o d o texto eletrô nico ,
tud o isso é uma co isa só . Um p ro d uto r d e texto
p o d e ser im ed iatam ente o ed ito r, no d up lo sentid o
d aq uele que dá fo rm a d efinitiva ao texto e d aquele
q u e o d ifund e d iante d e um p ú blico d e leito res:
g raças à red e eletrô nica, esta d ifusão é imed iata.
Daí, o abalo na sep aração entre tarefas e p ro fis­
sõ es que, no sécu lo XIX, d ep o is da rev o lução in­
d ustrial d a im p rensa, a cultura escrita p ro v o co u: o s

16 A AVENTURA DO LIVRO
Prólogo

p ap éis d o autor, d o ed ito r, d o tip ó grafo , d o distri­


buid o r, d o livreiro , estav am então claram ente se­
p arad o s. Co m as red es eletrô nicas, to d as estas o p e­
raçõ es p o d em ser acum ulad as e to m ad as quase
co ntem p o râneas umas d as o utras. Seq ü ências tem ­
p o rais q u e eram d istintas, que sup unham o p era­
çõ es d iferentes, que intro d uziam a d uração , a d is­
tância, se ap ro xim am . A tualm ente, é na esfera da
co m u nicação p riv ad a o u científica que a transfo r­
m ação v ai m ais lo ng e: ela ind ica aquilo que p o d e­
ria ser am anhã o co njunto da ed ição eletrô nica.

D e passag em - e aqu i p oderíam os olhar brev em en te p ar a


aqu eles qu e serão os prim eiros a ler este livro - perg u n ta-se o
qu e v irã a ser o p ap el do crítico,
O p ap el d o crítico é ao m esm o tem p o red uzid o e
am p liad o . A m p liad o na m ed id a em que to d o m un­
d o p o d e to rnar-se crítico . Este fo i o so nho d as Lu­
zes e, talv ez, o d o fim d o sécu lo XVII: p o r que to d o
leito r não p o d eria ser co nsid erad o cap az d e criti­
car as o bras, fo ra d as instituiçõ es o ficiais, d as aca­
d em ias, d o s sábio s? É a querela d o s A ntigo s e d o s
M o d erno s, na França, no fim d o sécu lo XVII, que
faz nascer a id éia seg und o a qual cad a leito r d is­
p õ e d e uma legitim id ad e p ró p ria, d o d ireito a um
julg am ento p esso al.
Esta id éia afirm a-se então atrav és d o s no v o s p erió ­
d ico s, co m o o Le M ercu re G alant, que lev am em
grand e co nta as cartas que lhe d irigem seus leito ­
res. O leito r reag e ao s artigo s d o p erió d ico e env ia
suas p ró prias o p iniõ es. Ev id entem ente, as red es ele­

A AVENTURA DO LIVRO 17
Prólogo

trô nicas am p liam esta p o ssibilid ad e, to rnand o mais


fáceis as interv ençõ es no esp aço d e d iscussão co ns­
tituíd o graças à red e. D este p o nto d e vista, p o d e-se
d izer que a p ro d ução d o s juízo s p esso ais e a ativi­
d ad e crítica se co lo cam ao alcance d e to d o m un­
d o . Daí, a crítica, co m o p ro fissão esp ecífica, co rrer
o risco d e d esap arecer. No fund o , a id éia kantiana
seg und o a qual cad a um d ev e p o d er exercer seu
juízo liv rem ente, sem restrição , enco ntra seu su­
p o rte m aterial e técnico co m o texto eletrô nico .

A ntes qu e a troca tom e con ta de tudo, o qu e p o de diz er o


historiador, en qu an to su a v oz é ain da singular, dian te desta
rev olu ção eletrôn ica?
Ele não d ev e sustentar um d iscurso utó p ico o u no s­
tálgico , m as mais científico , que ap reend a em c o n ­
junto , m as cad a um em seu lugar, to d o s o s ato res e
to d o s o s p ro cesso s que fazem co m que um texto se
to m e um livro , seja qual fo r a sua fo rm a. Esta
encarnação do texto numa materialid ad e esp ecífica
carrega as d iferentes interp retaçõ es, co m p reensõ es
e uso s d e seus d iferentes p úblico s. Isto quer dizer
que é p reciso ligar, uns co m o s o utro s, as p ersp ec­
tivas o u p ro cesso s trad icio nalm ente sep arad o s.
O histo riad o r d ev e p o d er v incular em um m esm o
p ro jeto o estud o da p ro d ução , da transm issão e da
ap ro p riação d o s texto s. O que q uer d izer m anejar
ao m esm o tem p o a crítica textual, a histó ria d o li­
vro , e, mais além , d o im p resso o u d o escrito , e a
histó ria d o p ú blico e d a recep ção . Reunir estas d i­
ferentes abo rd ag ens p erm ite resp o nd er à questão

18 A AVENTURA DO LIVRO
Prólogo

central que está p o r trás d o m eu p ro jeto intelectual.


D e um lad o , cad a leito r, cad a esp ectad o r, cad a
o uv inte p ro d uz um a ap ro p riação inv entiv a da o bra
o u d o texto que receb e. A í tem o s que seguir M ichel
d e Certeau, quand o diz que o co nsum o cultural é,
ele m esm o , um a p ro d ução - um a p ro d ução silen­
cio sa, d issem inad a, anô nim a, m as um a p ro d ução .
D e o utro lad o , d ev e-se co nsid erar o co njunto d o s
co nd icio nam ento s que d eriv am das fo rm as p arti­
culares nas quais o texto é p o sto d iante d o o lhar,
da leitura o u da aud ição , o u das co m p etências, c o n ­
v ençõ es, có d ig o s p ró p rio s à co m unid ad e à qual
p ertence cad a esp ectad o r o u cad a leito r singular.
A grand e questão , q uand o no s interessam o s p ela
histó ria da p ro d ução d o s sig nificad o s, é co m p re­
end er co m o as lim itaçõ es são sem p re transgred id as
p ela inv enção o u, p elo co ntrário , co m o as liberd a­
d es d a interp retação são sem p re limitad as. A partir
d e um a interro g ação co m o essa será talv ez m eno s
inquietante p esar as o p o rtunid ad es e o s risco s da
rev o lução eletrô nica.

A AVENTURA DO LIVRO 19
O a u to r entrepunição eproteção

A cultura escrita é inseparáv el dos gestos


violentos qu e a reprimem. A ntes mesmo que
fosse recon hecido o direito do au tor sobre
su a obra, a prim eira afirm aç ão de su a
iden tidade esteve lig ada à cen su ra e à in ­
terdição dos textos tidos com o subversivos
p elas au toridades religiosas ou políticas.
Esta “ap ro p riaç ão p en al” dos discursos, se­
g u n do a ex pressão de M ichel Foucault, ju s­
tificou p o r muito tempo a destruição dos
livros e a con den ação de seus autores, edi­
tores ou leitores. A s persegu ições são com o
qu e o reverso das proteções, privilégios, re­
com pen sas ou pen sões con cedidas pelos
poderes eclesiásticos e pelos príncipes. O es­
petácu lo pú blico do castigo inverte a cen a
da dedicatória. A fog u eira em qu e são lan ­
p e lo f o g o os " m a u s "
çados os m aus livros constitui afig u ra in­
•:s: a in te n ç ã o e rra d ic a d o ra
- : clico u as fo g u e ira s , acesas vertida da biblioteca en carreg ada de p ro ­
teger e preserv ar o patrim ôn io textual. D os
:s in q u is id o re s ou pelas
= ~:as. A q u i, Pedro B e rru g u e te ,
d o sécu lo XV, m o s tra autos-de-fé da In qu isição às obras qu eim a­
: rd á lio o rd e n a d o p o r
: D o m in g o s d u ra n te sua
das pelos nazis, a p u lsão de destru ição
e g a çã o c o n tra os A lb ig e n se s, obcecou p o r muito tempo os poderes opres­
■ " 1 2 0 5 : o f o g o d e s tró i as o b ra s
"éticas, e n q u a n to a q u e la q u e sores que, destru in do os livros e, com fr e ­
_ncia a v e rd a d e ira fé resiste,
qüência, seus autores, pen sav am erradicar
dro B e rru g u e te , São Doming os
25 Albigenses (d e ta lh e : os p ara sem pre suas idéias. A fo r ç a do escrito
é de ter torn ado tragicam ente derrisória
-os h e ré tic o s são q u e im a d o s ),
rca de 1 4 7 7 -1 5 0 3 . M a d rid ,
js e u d o Prado. esta negra vontade.

A AVENTURA DO LIVRO 23
0 a u to r entrepunição eproteção

Com a rev olu ção eletrôn ica, as possibilidades de p artic ip aç ão


do leitor, m as tam bém os riscos de in terpolação, torn am -se tais
qu e se em baç a a idéia de texto, e tam bém a idéia de autor.
C omo se o fu tu ro fiz esse ressurgir a in certez a qu e caracteriz av a
a p o siç ão do au tor du ran te a A ntigüidade.

A leitura antiga é leitura d e um a fo rm a de livro que


não tem nad a d e sem elhante co m o livro tal co m o
o co nhecem o s, tal co m o o co nhecia G utenberg e
tal co m o o co nheciam o s ho m ens da Id ad e M éd ia.
Este livro é um ro lo , uma lo ng a faixa d e p ap iro o u
d e p erg am inho que o leito r d ev e segurar co m as
d uas m ão s p ara p o d er d esenro lá-la. Ele faz ap are­
cer trecho s d istribuíd o s em co lunas. A ssim, um au­
to r não p o d e escrev er ao m esm o tem p o que lê.

O u b em ele lê, e suas duas m ão s são m o bilizad as


p ara segurar o ro lo , e neste caso , ele só p o d e ditar
a um escriba suas reflexõ es, no tas, o u aquilo que
lhe insp ira a leitura.

Ou b em ele escrev e d urante sua leitura, m as então


ele necessariam ente fecho u o ro lo e não lê mais.
U m São J e rô n im o , de T h e o d e ric h
vo n Prag, na s e g u n d a m e ta d e d o Im ag inar Platão , A ristó teles o u Tito Lívio co m o au­
sé cu lo XÍV. V e s tid o c o m o
to res su p õ e im ag iná-lo s co m o leito res d e ro lo s q ue
cardeal, o d o u t o r da Igreja
segura e m suas m ã o s a q u ilo q u e im p õ em suas p ró p rias lim itaçõ es.
p o d e ser u m e x e m p la r
s u n tu o s a m e n te e n c a d e rn a d o de
Isto su p õ e im aginá-lo s, tam bém , d itand o seus tex­
sua p ró p ria tra d u ç ã o da Bíblia. to s e d and o um a im p o rtância à v o z infinitam ente
Ele indica assim a d u p la
m aio r que o auto r d o s tem p o s p o sterio res, que, no
a u to r id a d e d o te x to s a g ra d o e da
tra d iç ã o da Igreja. retiro d e seu g abinete, p o d e escrev er ao m esm o
T h e o d e ric h v o n Prag,
tem p o q u e lê, co nsultar e co m p arar as o bras ab er­
Hieronymus, cerca de 1 3 4 8 -
1 3 8 0 . Praga, N a ro d n i G alerie. tas d iante d e si.

24 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

A fig u ra do “au tor o r al” é u m a fig u ra de lon g a du ração.


Nos últim o s século s da Id ad e M éd ia, quand o se
esb o ça a p erso nalid ad e d o auto r m o d erno , cujo
texto é, so b sua auto rid ad e, fixad o p ela có p ia m a­
nuscrita e d ep o is p ela ed ição im p ressa, o “auto r
o ral” está sem p re ali. É o caso do p regad o r. To m e­
m o s o exem p lo d e Calvino . Para ele, há um co n­
junto d e texto s que, im ed iatam ente, sup õ e co m o
d estinatário um leito r: as trad uçõ es d o s texto s sa­
grad o s, o s texto s d e p o lêm ica, o s tratad o s teo ló g i­
co s. Em o p o sição , há as liçõ es o u serm õ es que são
p ensad o s co m o “p erfo rm ances” o rais. Calvino sem ­
p re m anifesto u uma extrem a reticência d iante da
transcrição escrita e d ep o is p u b licação im p ressa de
seus serm õ es, co m o se ho uv esse aí um g ênero que
só resistisse na e p ela o ralid ad e, a p alavra viva.

O utro caso de o ralidade à an tig a m an tida p o r muito tempo:


o teatro.
Nas ed içõ es im p ressas das p eças d e teatro d o s sé­
culo s XVI e XVII - a co m éd ia esp anho la, o d rama
elisab etano e o teatro clássico francês, em esp ecial
a co m éd ia - , enco ntra-se no âm ag o d e to d o s o s
p refácio s, p ró lo g o s o u av iso s ao s leito res, a id éia-
chav e seg und o a qual o texto não é feito p ara ser
im p resso .
O teatro não é escrito p ara que um leito r o leia
num a ed ição saíd a d o s p relo s, ele é feito p ara ser
encenad o . É isso que M o lière cham a d e “aç ão ” o u
“jo g o d o teatro ” . A justificativ a d a ed ição im p ressa
d ev e sem p re im p licar razõ es p articulares, seja p o r-

26 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

que fo i p ublicad a uma ed ição p irata d o texto , nâo


co ntro lad a e não d esejad a p elo autor, seja p o rq ue
as co nd içõ es da rep resentação tinham sid o m ed ío ­
cres, d ev end o -se entreg ar à leitura aquilo que ti­
nha sid o mal entend id o .
/

E a p rio ri ilegítim o sep arar o texto teatral d aquilo


que lhe dá vid a: a v o z d o s ato res e a aud ição d o s
esp ectad o res.

N esse debate estão ain da os coreóg rafos qu e se perg u n tam sobre


a n ecessidade m as tam bém sobre as frag ilidades da n otação,
qu e con g ela, Q u an do D om in iqu e Bag ou et morreu, deix ou os
Carnets Bag o uet, m as legou a su a com pan hia, sem pre viva, o
c u idado de retom ar su a obra.

A m em ó ria da co reo g rafia p assa não ap enas p ela


no tação m as tam bém p ela m em ó ria co letiv a das
co m p anhias, a lem brança d o s g esto s e d as figuras.
A m em ó ria d o teatro era o utro ra co nceb id a sim i­
larm ente em to rno da rep resentação que im p lica a
ação , o s jo g o s d o teatro , o s cenário s, o s trajes...
uma to talid ad e, em suma, na qual o texto é ap enas
um elem ento . M anter o m o no p ó lio d e um a trup e é
um a d as razõ es que militam co ntra a p ublicação
im p ressa.

Isto faz cair as p eças num a esp écie d e d o m ínio


p úblico , já que cad a trup e, uma v ez p ublicad o o
texto , p o d erá rep resentá-lo . Então , não há mais m o ­
no p ó lio so b re as rep resentaçõ es nem so bre a ren­
da p ro p o rcio nad a p elas entrad as.

A AVENTURA DO LIVRO 27
0 a u to r entrepunição eproteção

E o ensino? Estamos em p len a m u tação eletrôn ica m as as


an tig as qu erelas ain da n ão se esv az iaram . D eve-se p u b lic ar - e
c o m o ? - os sem in ários de Lacan , os cursos de M icbel Fou cau lt
n o C o llèg e d e France?
O caso das liçõ es, p ara em p reg ar um term o antigo ,
não é fund am entalm ente d istinto d aquele d o s ser­
m õ es o u d o teatro . D e um lad o , há a necessid ad e
d e to rnar p ú blico um trabalho , p ara além d a cir­
cunstância p articular em que fo ra transm itid o ; d e
o utro , a fo rte co nsciência d e uma p erd a irrem ed iá­
v el: a palavra - a d o p regad o r, afortiori, a d o ato r
d izend o um texto m esm o a d o ensino , é uma
p alav ra que se inscrev e num lugar, num gestual,
em m o d o s d e co m u nicação co m o aud itó rio que
são irrem ed iav elm ente p erd id o s p ela fixação escri­
ta. Para o s auto res co ntem p o râneo s junta-se a isso
a questão da p ro p ried ad e. Uma p ro p ried ad e não
ap enas p ensad a em term o s eco nô m ico s e financei­
ro s, m as em term o s de co ntro le e exatid ão : a co rre­
ção d o texto não d ev e ser p rejud icad a p elas trans­
Em u m e v a n g e liá rio d o sé cu lo IX, c riç õ es ap ressad as, c o m eq u ív o c o s d o p ró p rio
u m a m in ia tu ra m o s tra Lucas
p ro fesso r, que nem sem p re tev e tem p o d e v erificar
e scre ve n d o sob o d ita d o d o
Espírito. 0 e s c rito r é o escriba to d as as referências que cita d e m em ó ria e que
de u m a Palavra q u e lhe v ê m de p o d e d ar info rm açõ es textuais inexatas.
fo ra e q u e o h a b ita . É s o b re este
Fo ucault era bastante liberal e g enero so quanto à
m o d e lo e v a n g é lic o q u e será
d u ra n te m u ito t e m p o c o n c e b id o p o ssibilid ad e d e ap ro p riação d e sua palavra, uma
e re p re s e n ta d o o g e s to criador,
v ez que circulav am , antes d as ed içõ es francesas d e
in s p ira d o e s a g ra d o .
O evangelista Lucas, m in ia tu ra suas liçõ es m inistrad as no Collège, um co njunto d e
e x tra íd a d o e v a n g e liá rio S am uel, v o lum es em esp anho l, italiano e p o rtug uês, fruto
A u g s b o u r g , s e g u n d o q u a rte l d o
sé cu lo XVI. Q u e d in b u r g , te s o u ro
d e d iversas transcriçõ es: d urante seus curso s, fun­
da ca te d ra l. cio nav am centenas d e grav ad o res, ao s quais ele

28 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

oe m in ia tu ra s
não p restav a muita atenção . A queles que assum i­
- c"esença
r :a s m a g e n s, ram sua herança cultural, em no m e d o co ntro le
r : e . 3 c ã o , c o m os
D 9

d o s texto s, em p rincíp io d escartaram qualquer id éia


' ; _ - a d o s nas paredes,
: .'0 de m in ia tu ra s , d e p u b licação p ó stum a, d ep o is d ecid iram integrar
nas m ãos.
c, a re p re s e n ta ç ã o
o s curso s na o bra ed itad a. A ssim, reso lv eram a q ues­
:e n a o p r ó p r io o b je to
tão da p o ssív el traição da p alav ra p ela d ifusão d o
se e n c o n tra ,
de m in ia tu ra s , França, texto , uma q uestão q u e Fo ucault, quand o vivo , tal­
m a n u s c rito 3 8 8 /1 4 7 5 ,
v ez não im ag inasse q u e p ud esse ser tão agud a.
ntilly, M u s e u de Condé.

M ichel Fou cau lt é con tu do, a seu ver, aqu ele qu e talv ez m elhor
refletiu sobre a em erg ên cia, n a história, da fu n ç ão do autor.
Co isa que não era ev id ente p o rque, da Id ad e M é­
dia à ép o ca m o d erna, freq üentem ente se d efiniu a
o bra p elo co ntrário da o riginalid ad e. Seja p o rque
era inspirad a p o r D eus: o escrito r não era senão o
escriba d e uma Palavra que v inha d e o utro lugar.
Seja p o rque era inscrita num a trad ição , e não tinha
v alo r a não ser o d e d esenv o lv er, co m entar, glo sar
aquilo que já estav a ali. A ntes d o s sécu lo s XVII e
XVIII, há um m o m ento o riginal d urante o qual, em
to rno d e figuras co m o Christine d e Pisan, na Fran­
ça, D ante, Petrarca, Bo ccácio , na Itália, alguns au­
to res co ntem p o râneo s v iram -se d o tad o s d e atribu­
to s q u e até então eram reserv ad o s ao s au to res
clássico s d a trad ição antiga o u ao s Pad res da Ig re­
ja. Seus retrato s ap areciam nas miniaturas, no inte­
rio r d o s m anuscrito s. Eles são co m freq ü ência re­
p resentad o s no ato d e escrev er suas p ró p rias o bras
e não mais no d e ditar o u d e co p iar so b o d itad o

A AVENTURA DO LIVRO 31
0 a u to r entrepunição eproteção

S obre u m a p á g in a
d ivino . Eles são “escrito res” no sentid o que a p ala­
m a g n ific a m e n te o r n a m e n ta d a
das Grandes heures du duc de
vra vai to m ar em francês, no co rrer d o s últim o s
Berry, o te x to é p re c e d id o p o r sécu lo s da Id ad e M éd ia: eles co m p õ em um a o bra,
u m a im a g e m ilu m in a d a d o papa
e as im ag ens o s rep resentam , d e m o d o um p o u co
G re g ó rio , o G ra n d e , u m dos
d o u to re s da Igreja latina. ing ênuo , no ato d e escrev er a o bra que o leito r tem
In s p ira d o p e lo Espírito S a n to
nas m ão s. É nesse m o m ento tam bém que são reu­
(vid e a p o m b a ) e pela Escritura,
ele é o d e tè n to r e a g a ra n tia de nid as em um m esm o m anuscrito várias o bras de
u m a a u to r id a d e q u e sua palavra certo s auto res, relacio nad as a um m esm o tem a. O
tra n s m ite , p o r in te rm é d io d o
que significav a ro m p er co m um a trad ição seg und o
escriba q u e re d ig e , sob seu
d ita d o , para to d a a c ris ta n d a d e . a qual o livro m anuscrito é um a ju nção , uma m is­
Gregório, o Grande, p a p a (5 9 0 -
tura d e texto s de o rigem , natureza e datas d iferen­
6 0 4 ), m in ia tu ra e xtra íd a de
Grandes heures du duc de Berry, tes, e o nd e, d e fo rm a algum a, o s texto s incluíd o s
França, sé cu lo XV, Paris, são id entificad o s p elo no m e p ró p rio d e seu autor.
B ib lio te ca N a cio n a l.
Para que exista auto r são necessário s critério s, n o ­
çõ es, co nceito s particulares. O inglês ev id encia bem
esta no ção e d istingue o writer, aq uele que escre­
v eu algum a co isa, e o author, aq uele cu jo no m e
p ró p rio dá id entid ad e e auto rid ad e ao texto . O que
se p o d e enco ntrar no francês antigo quand o , em
um D iction n aíre co m o o d e Furetière, em 1690,
d isting ue-se entre o s “é c r iv ain f e o s “au t e u r f. O
escrito r ( écriv ain ) é aq u ele que escrev eu um texto
que p erm anece manuscrito, sem circulação , enquanto
o auto r (au teu r) é tam bém qualificad o co m o aq u e­
le que p ublico u o bras im p ressas.
É Fo ucault quem sug ere que, num a d eterm inad a
so cied ad e, certo s g ênero s, p ara circular e serem
receb id o s, têm necessid ad e d e uma id entificação
fund am ental d ad a p elo no m e d e seu autor, enq u an­
to o utro s não . Se co nsid erarm o s um texto d e d irei­
to o u um a p ublicid ad e no m und o co ntem p o râneo ,

32 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

alg uém o s escrev eu, mas eles não têm auto res; ne­
nhum no m e p ró p rio lhes é asso ciad o .

Sendo fe it a a distin ção en tre os discursos qu alific ados p o r um


n om e de au tor e os outros, Fou cau lt estu dav a as circu n stân cias
/

qu e p ro du z iam as prim ícias.


Sugeria que o autor, na o rigem , era inicialm ente
um “fau t e u r ” (fo m entad o r). Ele ev o cav a, p o r exem ­
p lo , esses texto s d o início da era m o d erna que, p o r
transgred irem a o rto d o xia p o lítica o u relig io sa, eram
censurad o s e p erseg uid o s. Para id entificar e c o n ­
d enar aq u eles q u e eram seus resp o nsáv eis, era n e­
cessário d esig ná-lo s co m o auto res. As p rim eiras
o co rrências sistem áticas e o rd enad as alfabeticam en-
te d e no m es d e auto res enco ntram -se no s índ ices
d o s livro s e auto res p ro ibid o s, estab elecid o s no
século XVI p elas d iferentes faculd ad es d e teo lo g ia
e p elo p ap ad o , e d ep o is nas co nd enaçõ es d o s Par­
lam ento s e nas censuras d o s Estad o s. É isso que
Fo ucault cham a d e “ap ro p riação p enal d o s d iscur­
so s” - o fato d e p o d er ser p erseg uid o e co nd enad o
p o r um texto co nsid erad o transgresso r. A ntes de
ser o d etento r d e sua o bra, o auto r enco ntra-se
exp o sto ao p erig o p ela sua o bra.

A litan ia dos processos é longa, de M ichel Sew et a Théophile de


V iau.
No sécu lo XVI, enco ntram o s um p ro cesso m uito
interessante que é o d e Étienne D o let. Ele é co nd e­
nad o à fo g ueira p o rq ue é im p resso r e “auto r” . O

34 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

fato d ele ser auto r d e texto s que p ud eram se trans­


fo rm ar em p refácio s o u p ró lo g o s d e o bras d e auto ­
res p ro testantes está ind isso ciav elm ente ligad o ao
fato , p o r o utro lad o , d e ter sid o ed ito r d e texto s
hetero d o xo s. É um p ro cesso d ecisiv o que term i­
no u na p raça M aubert, em Paris, num a fo g ueira
em que fo ram queim ad o s D o let junto co m seus
livros, aq ueles que havia p ublicad o o u p refaciad o .
A autoridade cató lica interveio co m toda fo rca e criou
o s instrum ento s que lhe p erm itiam exercer o p o ­
d er de censura. Mas, nào esqueçam o s, o s seg uid o ­
res da Refo rma, vítimas, eles pró prio s, d essa censu­
ra católica, às vezes no seu dia-a-dia ou na sua própria
p ele, p o d em se co m p o rtar co m o seus adversário s.
Vem o s isso no caso d e G enebra, o nd e o s hetero ­
d o xo s, o s anabatistas, o s so ciniano s, são p erseg ui­
d o s p ela auto rid ad e calv inista d a cid ad e e da ig re­
ja. O infeliz M ichel Servet pagará muito caro o p reço
desta censura, mas, ao m esm o tem p o , p o r diversas
v ezes, segund o as flutuaçõ es da co njuntura p o lítico -
religio sa da cid ad e, o p ró p rio Calvino será o b jeto
d e censura p o r causa d e alguns de seus texto s.
Isto p o d e no s esclarecer so bre realid ad es d ifíceis
d e co m p reend er, p o r não co lo carem d e m aneira
sim p les, d e um lad o , a censura e, do o utro , a liber­
d ad e d e escrev er. Nas so cied ad es d o A ntigo Regi­
m e, o s p o d eres d e censura não estav am b em d ife­
renciad o s e as auto rid ad es relig io sas e p o líticas
co nco rriam para assum i-lo s e exercê-lo s. No caso
da França, a partid a era jo g ad a a três, a Igreja cató ­
lica, o p arlam ento d e Paris e a m o narquia. No caso

A AVENTURA DO LIVRO 35
0 a u to r entrepunição eproteção

d e G enebra, a ad eq u ação não é p lena entre o co n­


selho da cid ad e e o co nsistó rio . O direito d e exercer
a censura e a d efinição d aquilo so bre o que ela
d ev e ser exercid a são sem p re o b jeto d e rivalid ad es
agud as, m uito rev elad o ras d as tensõ es só cio -p o líti-
cas que m arcam uma so cied ad e em um m o m ento
d ad o d e sua histó ria.

Isto perm ite u m a aprox im ação, à qu al n ão nos av en tu rarem os,


com as situ ações atu ais do Islã, m arc adas elas tam bém p e la
descon tin u idade, p ela m u ltiplicidade das au toridades.
Creio que sim. Em um m ap a d as so cied ad es que
são d o minantemente, majoritariamente o u exclusiva­
mente muçulmanas, veríamo s ap arecer co m intensi-
d ad es d iferenciais, d e um lad o , o s limites d aquilo
q u e é aceitáv el o u d aquilo q u e d ev e ser interd ito ,
e, d e o utro , a relação que p o d e existir entre a auto ­
rid ad e relig io sa e a auto rid ad e p o lítica. Em uma
extrem id ad e d o esp ectro ap areceriam Estad o s no s
quais o p o d er p o lítico é fo rtem ente autô no m o co m
relação às auto rid ad es religio sas e, na o utra extre­
m id ad e, v erd ad eiras figuras m o d ernas d e Estad o s
teo crático s.

X o sécu lo XVI7, no O cidente, se o au tor é um cu lpado em


poten cial, ele se vê tam bém com o um pen sion ista virtual.
Ele tem e qu e se lhe im pute u m a respon sabilidade p olític a ou
religiosa, qu e lhe v aleria u m a p u n iç ão, m as espera tam bém
qu e seus méritos sejam recom pen sados p o r u m a p en são.
D ep o is d o nascim ento da “função auto r” , co lo ca-
se a questão da co nd ição d e autor. O s auto res que

38 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteçãio

tentarão v iv er d e sua p ena só irão ap arecer real­


m ente no século XVIII. Um auto r em blem ático co m o
Ro usseau asp irará a essa no v a co nd ição . A ntes d is­
so , a cessão d o s m anuscrito s ao s liv reiro s-ed ito res
não asseg ura d e m o d o algum rend as suficientes.
Daí, para um escrito r d o sécu lo XVII, não há senão
d uas p o ssibilid ad es. Uma é que ele seja p ro v id o de
b enefício s, cargo s, p o sto s, caso ele não p ertença a
um a linhag em aristo crática o u burguesa, d isp o nd o
d e uma fo rtuna p atrim o nial. O u ele é o brig ad o a
entrar nas relaçõ es d e p atro cínio e receb e uma re­
m uneração não im ed iata d e seu trabalho co m o es­
critor, so b a fo rm a d e p ensão , d e reco m p ensa o u
d e em p reg o .
O g esto que inicia estas relaçõ es d e clientela, o u
d e p atro cínio , é o da d ed icató ria, um v erd ad eiro
rito. Ela p o d e ser, tratand o -se d e um im p resso , a
o ferta d e um a có p ia m anuscrita co m b ela caligrafia
e ricam ente o rnam entad a. Po d e ser tam bém a d e­
d icató ria d e um exem p lar d o livro im p resso m as
luxuo sam ente encad ernad o e im p resso so bre p er­
g am inho , enq uanto a ed ição é feita em p ap el. Na
cena da d ed icató ria, a m ão d o auto r transm ite o
livro à m ão q u e o receb e, a d o p ríncip e, d o p o d e­
ro so o u d o m inistro . Em co ntrap artid a d este d o m,
um co ntra-d o m é buscad o , q uand o não garantid o :
na França, so b Francisco I, um p o sto , um cargo ,
um em p reg o , e so b Luís XIV, um a p ensão . O que é
interessante é justam ente esta recip ro cid ad e. O au­
to r o ferece um livro co ntend o o texto que escre­
v eu e, em tro ca, rec eb e as m anifestaçõ es da b e-

A AVENTURA DO LIVRO 39
0 a u to r entrepunição eproteção

nev o lência d o p ríncip e, trad uzid a em term o s d e


p ro teção , em p reg o o u reco m p ensa.
Mas esta recip ro cid ad e é falsa. A retó rica d e to d as
as d ed icató rias visa na v erd ad e o ferecer ao p rínci­
p e aquilo que ele já p o ssuía. N ão aquilo que ele
não tinha, essa o bra que so b a fo rm a d e um livro
lhe é d ad a, m as aquilo que ele já p o ssuía, na m ed i­
da em que ele é o auto r p rim eiro , o auto r p rim o r­
dial. Ele não escrev e o livro m as a intenção do O

livro estav a já no seu esp írito . Co rneille exp lica as­


sim a Richelieu, na d ed icató ria d e H orace, que, afi­
nal, o auto r d as tragéd ias d e Co rneille é o p ró p rio
card eal, e o p o d ero so é lo uv ad o co m o p o eta.

Isto qu e diz iam ain da há p o u c o os escritores que, n a Fran ça,


dedicav am seus livros a Fran çois M itterrand. O ex -presiden te
da R epú blica teve a cru eldade de c o n fiar os ex em plares qu e
hav ia assim recebido à biblioteca m u n icipal de Nevers.
Pelo que se lê nas p áginas d e ro sto , co nstata-se
q u e o p atro cínio co ntinu a fu nd am ental m esm o
quand o não se trata mais d as m esm as rem unera­
çõ es. O que é cho cante, nisso que v o cê diz, é a
lo ng ev id ad e das figuras env o lv id as na d ed icató ria
e que atribuem , afinal, àq uele a q uem se d ed ica, a
p o sição d e auto r p rim eiro . Se p o sso ap ro xim ar
M o lière d o s escrito res q u e end ereçaram suas o bras
a Franço is Mitterrand, no taria que M o lière entra na
intim id ad e d e Luís XIV co m Les Fâcheu x , cuja re­
p resentação em V aux-le-V ico m te p ro v o ca a d es­
graça d e Fo uquet. Na d ed icató ria da ed ição im-

40 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

p ressa, ele exp lica que to d o o m érito da co m éd ia


v em d e uma cena q u e o rei lhe insp iro u e que,
afinal, Luís XIV é o autor, senão da to talid ad e da
p eça, ao m eno s da p arte que lhe p ro p icio u o su­
cesso . Em suma, o p ríncip e rec eb e aquilo d e que,
no fund o , ele é v irtualm ente o auto r.

Q u an do um au tor f a z u m a dedicatória a Fran çois M itterrand,


em 1985, é u m a dedic atória m an u scrita secreta. En qu an to a
dedicatória, n a época do R ei Sol, fig u rav a n o livro impresso à
vista de todo m u n do.
A bso lutam ente. A d ed icató ria p ertence às p relim i­
nares da o bra o u ao “p aratexto ”, isto é, ao s texto s
que p reced em e aco m p anham a o bra p ro p riam en­
te dita. M arca-se bem , d esd e a p ágina d e título até
as no tas ao s leito res, a p luralid ad e d e d estinaçõ es
d o texto . No Século d e O uro esp anho l, nas p ág i­
nas d e título d e D on Q uixote, d e Cerv antes, o u das
co m éd ias d e Lo p e d e Vega, enco ntra-se um a enu ­
m eração extrem am ente lo ng a d e to d o s o s título s
d o p ro teto r a quem é end ereçad a a o bra. Em se-
;uida, q uand o a id éia d o m érito d o auto r p rev ale­
ce so bre a p ro teção d o p ríncip e, o equilíbrio mud a.
So bretud o , ad quire mais im p o rtância a d im ensão
d o m ercad o , d o p úblico , d o leito r: o que se traduz,
na p ágina d e título , p ela p resença da m arca d o
livreiro-editor, às v ezes d o end ereço em que se p o d e
enco ntrar o livro, e, nas p relim inares, p ela existên­
cia d as no tas ao leito r. É esta d ualid ad e que carac­
teriza b em o ing resso d o auto r na id ad e m o d erna.

A AVENTURA DO LIVRO 41
0 a u to r entrepunição eproteção

Esta en trada se f a z tam bém m ais n itidam en te qu an do a


depen dên cia dian te do poder, a espera de u m a recom pen sa e o
tem or de u m a p u n iç ão dão lu g ar a u m a m aior tolerân cia.
Com M alesberbes, em 1780, a Fran ç a perm ite qu e o livro
ap areç a sem a n ecessidade de u m a u n ç ão ou tem or de u m a
san ç ao.
No século XVIII, a ed ição francesa enfrenta um d e­
safio eco nô m ico maio r. Se a censura é p o r d em ais
sev era, o s texto s são im p resso s fo ra d o reino . O s
liv reiro s euro p eus, na Suíça, nas Pro v íncias Unid as
e no s p rincip ad o s alem ães, eram esp ecializ ad o s na
p u b licação d esses texto s p ro ibid o s que faziam en ­
trar cland estinam ente na França. Co m isso , o b ti­
nham um grand e lucro p o rq ue havia fo rte exp ecta­
tiva d o s leito res. D iante d esse d esafio , M alesherbes,
que tinha sid o no m ead o d ireto r da Librairie em
1750, estab eleceu um a d iferença entre o s texto s de
d enúncia v io lenta d a fé e da auto rid ad e d o rei -
que d ev iam ser p ro ibid o s e p erseg uid o s - e o s tex­
to s que p o d iam ser auto rizad o s sem , co ntud o , p o r­
Página p re c e d e n te .
Em Flandres, no início do século tar a chancela d o p o d er real. Co m efeito , para o b ­
XVI, p in ta d o s p o r Q u e n tin
ter uma p erm issão o u um p riv ilégio , era necessário
Massys, u m m e rc a d o r sa tisfe ito ,
q u e c o m e rc ia liz a m e ta is
o bter a auto rização da m o narquia, e esta auto riza­
preciosos, e sua esposa. D ia n te ção enco ntrav a-se impressa no p ró p rio livro, na fo r­
dela, p o s ta s o b re a b a n ca d a em
ma d e uma p erm issão , co m o selo real. M alesherbes
q u e seu m a rid o e x a m in a m o e d a s
e o b je to s , u m livro o r n a m e n ta d o queria evitar a ruína da ed ição francesa, mas sem
p o r m in ia tu ra s , q u e ela fo lh e ia
co m isso d o tar alguns texto s da ap ro v ação exp líci­
d e lic a d a m e n te . A leitora de
im a g e n s le m b ra assim q u e o livro ta da auto rid ad e m o nárquica. Inv enta então as au­
n ã o é a p e n a s o s u p o rte de u m a to riz açõ es tácitas: isto é, um esq u em a d e auto riza­
escrita. Q u e n tin Massys,
ção esp ecífico em no m e d o qual se fing e acred itar
L'O rfèvreet sa femme, 15 1 4.
Paris, M u s e u d o Louvre. que tais livro s são im p resso s no estrang eiro e sua

44 A AVENTURA DO LIVRO
0 a u to r entrepunição eproteção

d istribuição p erm itid a na França, em bo ra sejam , d e


fato , livro s p ublicad o s na França so b este reg im e
esp ecífico d e auto rização . Cheg a-se, d esse m o d o ,
a d ar auto riz açõ es p uram ente v erbais, asseg uran­
d o -se ao s liv reiro s-ed ito res que não serão p erse­
guid o s. To lerância não é, co ntud o , ind ep end ência.
N ão basta ao auto r escap ar da censura e d as c o n ­
d enaçõ es para ser d efinid o p o sitiv am ente. É n e­
cessário que se b eneficie d e um estatuto juríd ico
p articular que reco nheça sua p ro p ried ad e. Isto se
fará a partir d o século XVIII p ara se d esfazer talvez
no fim d e no sso século : p ara o s auto res d e ho je, o
p erig o d e p erd er seus d ireito s é, d e fato , m ais di­
fund id o que o d e p erd er sua liberd ad e.

A AVENTURA DO LIVRO 45
0 te x to entre autor eeditor

No século XVIII, a teoria do direito n atu ral


e a estética da orig in alidade fu n dam en ­
tam a propriedade literária. Uma v ez qu e
se ju stifica, p ara c ada uma, a posse dos
fru tos de seu trabalho, o au tor é recon he­
cido com o detentor de um a propriedade
imprescritível sobre as obras qu e ex primem
seu próprio gênio. Esta n ão desaparece com
a cessão do m anuscrito àqu eles qu e são
seus editores. N ão é portan to de espan tar
qu e sejam estes últim os os qu e ten ham
m oldado a fig u ra do au tor-proprietário.
In scrito n a v elha ordem da liv raria, o
Copyright n ão deix a de defin ir de m odo
orig in al a criação literária, cu ja iden tida­
_ : XVIII, a escrita se
de subsiste qu alqu er qu e seja o suporte de
5 cão pessoal e o rig in a l
ne u m g a b in e te , o n d e su a transmissão. 0 cam in ho estav a aberto
'e n h u m livro, o escrito r
zzr D oncre, e m 1 7 7 2 , assim p ara a leg islação atu al qu e proteg e
a obra em todas as form as (escritas, visuais,
ante da o b ra que
* seu. As fo lh a s já
5 s são c u id a d o s a m e n te
son oras) qu e lhe podem ser dadas. Hoje,
ss atrás, na escrivaninha.
3 js p e n s a indica q u e o com as novas possibilidades oferecidas pelo
§o se desvia se n ã o um
= de seu tr a b a lh o texto eletrônico, sem pre m aleáv el e aberto
ta.
~ie D o m in iq u e Jacques
a reescrituras múltiplas, são osprópriosfu n ­
. Portrait d'un écrivain,
dam en tos da apropriação in div idu al dos
Ârras, M u s e u
s-Artes. textos qu e se vêem colocados em qu estão.

A AVENTURA DO LIVRO 49
0 te x to entre autor eeditor

0 editor, tal co mo ainda existe, na v éspera da rev o lução


eletrô nica, o rigino u- se da ou das rev o luçõ es industriais que o
livro co nheceu no século XIX. M as no s século s XVI, XVII e XVIII,
estamos ainda no tempo da loja. Q ue diferenças separam o
liv reiro - edito r de então do edito r de hoje?

Essa questão lev a im ed iatam ente a p ensar na ar­


m ad ilha d as palavras. D e um lad o , so m o s o brig a­
d o s a utilizar term o s estáv eis: quer se fale d a A nti­
güid ad e, d a Id ad e Méd ia, d o A ntigo Regim e, da
ép o ca co ntem p o rânea, há leito res, há auto res, de
um certo m o d o há ed ito res. E, ao m esm o tem p o ,
as realid ad es histó ricas que estão p o r d etrás d essas
palavras são extrem am ente variáveis. Nos ano s 1830,
fixa-se a figura do ed ito r que aind a co nhecem o s.
Trata-se d e uma p ro fissão d e natureza intelectual e
co m ercial que v isa buscar texto s, enco ntrar auto ­
res, ligá-lo s ao editor, co ntro lar o p ro cesso que vai
Esta m a d e ira g ra va d a , q u e
da im p ressão da o bra até a sua d istribuição . O ed i­
le m b ra a in s ta la ç ã o da p rim e ira
o fic in a tip o g r á fic a no M é x ic o , to r p o d e p o ssuir uma gráfica, mas isto não é n e­
e m 1 5 3 9 , celebra u m a in v e n ç ã o
cessário e, em to d o caso , não é isto que fund a­
m a io r d o século XVI; a prensa.
A o c o n trá rio de o u tra s im a g e n s , m entalm ente o d efine; ele p o d e tam bém p o ssuir
esta n ã o fo c a liz o u o tr a b a lh o da
um a livraria, mas tam p o uco é isso que o d efine em
c o m p o s iç ã o , para m e lh o r e x a lta r
a im p o rtâ n c ia da prensa, q u e primeiro lugar. Enco ntram o s encarnaçõ es muito b e ­
m u ltip lic a os e x e m p la re s d o
las d esse ed ito r d o séc u lo XIX, em H achette,
m e s m o livro e o c o n d u z para os
n o vo s m u n d o s . No p rim e iro Laro usse, Hetzel. Grand es av entureiro s, eles impri­
p la n o , os c a rim b o s c o m os quais m em uma marca muito p esso al à sua em p resa. Seu
a tin ta é d e p o s ita d a nas p á g in a s
já c o m p o s ta s a f im de q u e sejam
sucesso d ep end e d e sua inv entiv id ad e p esso al, às
im pressas. v ez es d o ap o io d o Estad o , c o m o no c aso d e
Uimprimeríe á México en 1539 ,
H achette co m o livro esco lar, e, o utras v ez es, da
g ra v u ra . M é x ic o , M u s e u da
C idade. inv enção d e no v o s m ercad o s (no v o s “nicho s”, diría-

50 A AVENTURA DO LIVRO
0 te x to entre autor eedito)

S iIIÉIÉÍ^

m o s ho je), co m o no caso d e Laro usse. D o fim do


século XIX até ho je, as casas d e ed ição fo ram fre­
q üentem ente m arcad as p o r p erso nalid ad es d esse
tipo . Vemo s isso muito bem entre o s ed ito res literá­
rios parisienses do século XX: Gallimard, Flammario n
p erm aneceram d urad o uram ente ligad o s a um fun­
d ad o r e em seg uid a a um a família. As p ró p rias

52 A AVENTURA DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

; : e : p rín cip e e scla re cid o


transfo rm açõ es d o cap italism o ed ito rial, co ntud o ,
- ' r ' _= =e e n c o n tra n o f u n d o
" " c caso, José 11),
o rig inaram reag ru p am ento s, criaram em p resas
. - ' = c o n c ó rd ia das multimíd ia, d e cap ital infinitam ente mais v ariad o e
: -~sns e confissões,
• ‘ : T ieiro p la n o d o
muito m eno s p esso al, e p ro v o caram um certo en ­
: : , "o filo s ó fic o é fraquecim ento d esse v ínculo que unia a figura d o
: : ■ e '" to d a a Europa, d o
ed ito r e a ativid ad e d e ed ição . N ão impo rta: até
: := "5 z ã o . S obre os m u ro s
■ r ■ r : e Liège, À l'égide de esta recente reco m p o sição , tud o gira em to rno d este
p “

em p reend ed o r singular que se vê tam bém co m o


a n u n c ia m os novos
de V o lta ire , um intelectual e cuja ativid ad e se faz em iguald ad e
d 'A le m b e r t, ou
co m a d o s auto res; daí, aliás, suas relaçõ es freq üen­
: _s, e os p a co te s de livros
: ' bs estã o p ro n to s para tem ente d ifíceis e tensas.
■ e x p e d id o s para Espanha ou
Se o lham o s para trás e o bserv am o s as figuras de
Graças aos
i r r t a d o r e s c la n d e s tin o s ou “ed ito res” d o s século s XVI ao XVIII, d e Plantin a
e~.dedores a u d a cio so s, os Pancko ucke, é claro que não existe então uma au­
c e n e tra ra m inclusive nos
es o n d e as a u to rid a d e s
to no m ia similar da ativid ad e ed ito rial. Primeiro se
~dem proibi-los e persegui-los. é livreiro , p rim eiro se é im p resso r e, p o rque se é
s rd D e fra n c e , À l'égide de
"ve: Ia p o litiq u e de to lé ra n c e
livreiro o u gráfico , se assum e um a função ed ito rial.
seph II fa v o ris a n t les D ev e-se falar então , p ara ser p reciso , d e “livreiro -
:iopédistes, cerca de 1 7 8 0 .
ed ito r”, o u de “g ráfico -ed ito r”. O liv reiro -ed ito r d o s
, M u s e u de Belas-Artes.
século s XVI, XVII o u XVIII d efine-se inicialm ente
p elo seu co m ércio . Ele v end e, além d o s livros que
ele m esm o edita, aq ueles que o btêm p o r uma tro ­
ca co m seus co leg as: ele lhes envia, em fo lhas não
encad ernad as, livro s que ed ito u e, em tro ca, rec e­
b e o s livro s d o s o utro s. Po d e p o ssuir uma gráfica,
o u então fazer co m que uma gráfica trabalhe para
ele. É, p o rtanto , em to rno da ativid ad e d e livraria
que se o rganiza to d a a ativid ad e ed ito rial. O que
exp lica que algum as d essas livrarias, p o r p ro teção
o u p o r p o sição , tenham p o d id o d o m inar uma gran-

A AVENTURA DO LIVRO 53
0 te x to entre autor e editoi

d e p arte d o m ercad o d o livro. Pro teção : p o d e-se


p ensar no caso d o s Plantin, que hav iam o btid o o
m o no p ó lio da v end a d as o bras ligad as à Refo rm a
cató lica - brev iário s, missais - que rep resentav am
um eno rm e m ercad o na escala da cristand ad e. Po ­
sição : p o d em o s lem brar o s livreiros p arisienses, que
a m o narquia fav o rece a partir da m etad e d o século
XV II, esp erand o assim sua leald ad e. O co ntro le é

mais fácil quand o a p ro d ução é mais co ncentrad a.


Em tro ca d e fid elid ad e p ro m etid a ao m o narca, o s
livreiro s p arisienses receb em um q u ase-m o no p ó -
lio so bre o m ercad o d o s no v o s lançam ento s e o s
O

p riv ilégio s o uto rgad o s para as p eças d e teatro , o s


ro m ances, o s livro s d a no v a ciência. A p erp etua­
ção d esses p riv ilégio s im p ed e que se abra um d o ­
m ínio p úblico do livro. A ativid ad e d e livraria c o ­
mand a assim a atividade de ed ição , seus m ecanism o s
e seus limites.

Você fa la de mo no pó lio e de priv ilégio s. Se co m pararm o s a


situação da Inglaterra co m a da França, enco ntram o s na
Inglat ena os mesmo s meios de entrav ar o trabalho do
liv reiro - edito r?

Não . Em m ead o s d o século XVI, na Inglaterra, a


m o narquia d eleg o u à co m unid ad e, à co rp o ração
d o s liv reiro s-gráfico s d e Lo nd res, d e um lad o , o
p o d er d e censura, d e exam e p rév io d o s livro s (p ara
saber se estav am d e aco rd o co m aquilo que seria
p ublicáv el) e, d e o utro , o co ntro le d o s m o no p ó lio s

DO LIVRO
0 te x to entre autor e editor

so bre as ed içõ es. O m ecanism o era muito sim p les:


quand o um livreiro o u um gráfico lo nd rino ad qui­
ria um m anuscrito , ele o registrava p ela co m unid a­
d e e, a partir d esse registro , p retend ia p o ssuir esse
m anuscrito de m aneira p erp étua e imprescritível,
tend o p o rtanto o d ireito exclusiv o d e ed itá-lo e
reed itá-lo ind efinid am ente. É esse o sistem a inglês,
d o m inad o p ela p ro fissão .
O sistem a francês, o que não é nenhum a surp resa,
é muito mais estatal, já que o s p riv ilégio s o u p er­
m issõ es d e livraria são co nced id o s p ela m o narquia
através d o chanceler e da ad ministração da Librairie.
O

A exp ressão “p rivilégio s d e livraria” é interessante:


tud o aquilo que deriva da p ro d ução d o livro, da
censura, d o regim e reg ulam entar e juríd ico da p ro ­
d ução im p ressa é d esignad o a partir do co m ércio
d e livraria. Um livreiro o u um gráfico que ad quiriu
um m an u sc rito o d ep o sita no s e sc ritó rio s d o
chanceler, que o faz exam inar p o r censo res para
saber se está co nfo rm e à o rto d o xia po lítica, religio sa
o u mo ral. O livreiro o u g ráfico receb e, caso o te­
nha so licitad o , um p rivilégio so bre a p ublicação
d esse título, p o r um p razo que p o d e variar entre
cinco e quinze ano s, em geral. O que quer d izer
que nenhum d e seus co leg as tem o d ireito d e p u­
blicá-lo . Para refo rçar o p o d er d o s livreiro s p arisien­
ses, a m o narquia d ecid e q u e estes p riv ilégio s se­
jam reno v áv eis quase que ind efinid am ente. D e um
lad o da M ancha, p o rtanto , um sistem a co m unitário
e co rp o rativ o , d o o utro , um m ecanism o estatal.

A AVENTURA DO LIVRO 55
0 te x to entre autor eeditor

0 m ercado j á é euro peu p o rq ue as fro nteiras são po ro sas e os


Estados são freqüent em ent e pequeno s e encaixado s uns nos
outros. Existem regiõ es - H o landa, A v igno n. enclav e po ntifício ,
etc. - que difundem falsificaçõ es (diríam o s hoje: v írus) p ara
deso rganiz ar o sistema?
Exatam ente. Falem o s inicialm ente cia Franca. Mui- O

tas falsificaçõ es são feitas p o r liv reiro s-ed ito res d a


p ro v íncia: eles se sentem alijad o s d o m ercad o d o s
no v o s lançam ento s a partir da m etad e d o sécu lo
XVII, q uand o a co ncentração d o s auto res, em Pa­
ris, e a p erp etuação d o s p rivilégio s co nced id o s p elo
p o d er real a alg uns g rand es liv reiro s-ed ito res, q ue
se to rnam assim seus clientes, v ão refo rçar a cen-
* O

tralizaçào d a ed ição . Em Lyon e o utro s lugares, a


falsificação to rna-se uma ativ id ad e essencial d e
d efesa eco nô m ica d o s liv reiro s-ed ito res excluíd o s
d o m ercad o d o s no v o s lançam ento s. Mas v o cê tem
razão d e lem brar so bretud o a d im ensão interna­
cio nal. O p rivilégio não v ale senão no interio r d o
territó rio g o v ernad o p elo rei da França. O s livrei­
ro s e g ráfico s lo calizad o s fo ra da França não se
sentem d e m o d o algum p reso s p o r esta reg ulam en­
tação e, p o rtanto , p ro d uzem falsificaçõ es, isto é,
v io lam o p rivilégio d e um livreiro o u g ráfico so bre
um d ad o texto , o imp rimem, o d istribuem, fazem -
no entrar no reino . A luta é co nstante entre o s li-
v reiro s-ed ito res p arisienses e o s falsificad o res que,
co m o v o cê diz, estão so bretud o na Euro p a d o No r­
te: Pro víncias Unidas (a Ho land a o u o s atuais Países
Baixo s), principad o s alem ães e cid ad es da Suíça. Um
liv reiro -ed ito r na Suíça (a So cied ad e Tip o g ráfica d e

DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

: ~ go d o Sena, u m a visão N euchâtel, a So cied ad e Tip o gráfica d e Berna), um


■ ^ : i c a e inglesa d o c o m é rc io
livreiro -ed ito r instalad o num p rincip ad o alem ão o u
: vreiros de seb o s"
- 2jinistes\ a palavra d a ta d o o s grand es livreiro s-ed ito res ho land eses não se sen­
_ ; XVIII). Seus ta b u le iro s ao tem em nad a co nstrangid o s p elo s privilégio s o bti­
'e p e rm ite m u m a relação
d o s p o r seus co leg as p arisienses. Os Elzévir, em
5 “ a m ilia r c o m o livro, em
:.3S de ocasião, o fe re c id o s a A msterdã, são grand es falsificad o res no século XVII.
" o r p re ço e, às vezes,
Teo ricam ente, a entrad a d o s livros falsificad o s no
: a d o s p o r hora, para u m a
- ' a ao ar livre. reino é p ro ibid a, mas eles são intro d uzid o s no país
3 m Parrot, Le quai Conti, p o r d iferentes cam inho s e através d e alianças co m
5. Paris, M u s e u C arnavalet.
livreiros d e pro víncia que p o r eles se interessam.
Não tend o que pagar o manuscrito nem o privilégio,

i I
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! •

A AVENTURA DO LIVRO 57 . i
i
0 te x to entre autor eeditor

o s falsificad o res p o d em v end er o livro a m elho r


p reço . É assim que. entre o século XVI e a ép o ca
das Luzes,, a falsificação de livraria to rno u-se, p o u ­
co a p o u co , uma ativid ad e eco nô m ica muito im­
p o rtante. Em certo s caso s, ali o nd e o s Estad o s são
num ero so s e p eq u eno s, co m o na Itália o u na A le­
m anha, a situação é aind a mais agud a, já que o s
p riv ilégio s v alem ap enas para uma ciclacle-Estado ,
para um p rincip ad o : d esd e lo go , a falsificação é
quase imed iata, no sentid o d e que o livreiro que
está a algumas d ez enas d e quilô m etro s se enco ntra
p lenam ente legitim ad o para p ublicar uma o bra p ela
qual um d e seus co leg as receb eu privilégio para
sua p ublicação em um territó rio limitad o e p ró xi­
m o . Daí, no século XV III, um a reflexão d o s auto res
e das livrarias, na A lemanha, para tentar definir (mas
isso seria muito lento ) uma p ro p ried ad e literária
que p ud esse v aler para além d o s limites d o s Esta­
d o s. Nos ano s 1780, v em o s o s m aio res auto res ale­
m ães - Fichte, Kant... - entrar nessa luta para ten­
tar estabilizar um direito supra-estatal que p ro tegesse
o s livreiro s-ed ito res e, po rtanto , p ro teg esse eles p ró ­
p rio s, na m ed id a em que ced em seus texto s àq u e­
les que o s transfo rm am em livros.

É a falsificação , não necessariam ente em escala euro péia mas


sim plesm ente em escala local, na v iz inhança imediata do
autor, que desencadeia as prim eiras reaçõ es dos auto res.
Tomemo s o caso muito delicado do teatro.
A esse resp eito , é exem p lar a histó ria da ed ição de
Sganarelle o u le Co cu im aginaire, d e Molière. O li-

DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

v reiro -ed ito r q u e d etinha o p riv ilég io d e im p res­


são tam b ém tev e o p riv ilég io d e rec eb er o s p ri­
m eiro s exem p lares falsificad o s, antes m esm o q u e
seu s p ró p rio s exem p lares tiv essem saíd o d o p re­
lo . N o teatro , as falsificaçõ es eram feitas, freq ü en ­
tem ente, a p artir d o s m anuscrito s estab elec id o s
p o r esp ectad o res env iad o s p elo s liv reiro s-g ráfico s
c o n c o rren tes d o d etento r d o p riv ilég io e q u e tra­
b alhav am p o r co nta p ró p ria, transcrev end o as p e ­
ças d ep o is d e terem assistid o a v árias rep resenta­
ç õ es. O q u e su p u nha um a m em o riz ação d o texto ,
o u então , c o m o no caso ing lês, a utiliz ação d e
técnicas esteno g ráficas. D e im ed iato , eles estab e­
lec em um texto antes m esm o d e q u alq u er p u b li­
c aç ão d o m anu scrito q u e o auto r tiv esse ced id o a
um liv reiro -ed ito r. É o q u e o co rre co m Sganarelle
o u le C o cu im aginaire. O falsificad o r exp licav a,
num p refácio irô nico d irig id o a M o lière, q u e ha­
v ia assistid o v árias v ez es à co m éd ia e q u e se lem ­
brand o d o co njunto d o texto , tinha feito uma có p ia
p ara um am ig o , m as q u e, infeliz m ente, esta c ó ­
p ia, m isterio sam ente m ultip licad a, tinha caíd o em
m ão s d e liv reiro s-ed ito res. Em sum a, era m elho r
p u b licá-la.
A histó ria é mais o u m eno s fictícia, m as trad uz bem
a realid ad e: o m esm o o c o rre na Ing laterra, na
Esp anha, e na França, em p leno sécu lo XVIII, co m
A s bo das de Fígaro . As p rim eiras ed içõ es d e A s bo­
das de Fígaro fo ram p ublicad as co ntra a v o ntad e
d e Beaum archais e p ro ced em - tem o s as M em ó ri­
as d aq ueles q u e fizeram essa o p eração - d e d o is

A AVENTURA DO LIVRO 59
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ind ivíd uo s que. d ep o is de ter assistid o a várias re­


p resentaçõ es, reco nstruíram o texto de m em ó ria,
talvez ap o iad o s em no tas, ed itand o -o em seguid a
e p o nd o -o em circulação . As rep resentaçõ es feitas
na p ro v íncia o u a ad ap tação inglesa d e As bodas
de Fígaro , 1785, têm co m o o rig em esta transcrição
feita de m em ó ria.

Você cita B eaum arcbais. Seu no m e - co mo o de B en Jo nso n. na

Inglaterra, desde o século X V II - é asso ciado à luta pelo direito

do autor. Trata- se de dois casos de auto res de teatro.

Ben Jo n so n acha que d eve tirar p ro v eito não ap e­


nas da v end a d e suas p eças para as co m p anhias
que as encenam , mas tam bém que d eve m anter e
reter a p ro p ried ad e so bre o s m anuscrito s e, p o r­
tanto , ele p ró p rio neg o ciar a v end a ao s livreiro s-
ed ito res para a im p ressão d e seus escrito s. A liás,
ele é o p rim eiro d ramaturgo a p ublicar em vida
uma co letânea d e suas p eças em um grand e in-
fó lio , em l6 l6 , co m o título ;‘w o rks’ , “o b ras” , em ­
p restad o ao s clássico s. É um g esto muito fo rte de
afirm ação d o autor. Talv ez o s auto res d e teatro so -
O

fressem uma perd a ainda maio r que o s outros, quan­


d o o texto se to rnava um livro im p resso .
Talvez, tam bém , habituad o s a receb er um a p o r­
centag em so bre as entrad as, d isp usessem d e uma
esp écie d e m o d elo para d efinir a id éia d e d ireito s
d e auto r p ro p o rcio nais às v end as d o s livros.

60 A AVENTURA DO LIVRO
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Q uem diz B eau m arc hais diz Sociedade dos A utores. 0 direito
de au tor con tem porân eo é apen as o resu ltado dos com bates dos
au tores org an iz ados em g ru pos de p ressão e associações?
Não . D urante m uito tem p o , o m o d elo d o p atro cí­
nio p erm aneceu muito fo rte. A garantia da existên­
cia m aterial d o auto r d ep end ia fund am entalm ente
da o b tenção d e g ratificaçõ es, d e p ro teçõ es que lhe
eram d ad as p elo so b erano , m as tam b ém p elo s m i­
nistro s, p elas elites, p elo s aristo cratas. N ão se d ev e
subestim ar tam p o u co a resistência em id entificar
as co m p o siçõ es literárias co m o m ercad o rias. Esses
d o is elem ento s co ntribuíram p ara que o s auto res
não p ro m o v essem um a luta extrem am ente v irulen-
ta co ntra o s liv reiro s-ed ito res q u e co m p rav am seus
m anuscrito s para sem p re. Q uand o se o bserv a, em
d o cu m ento s raro s, o s co ntrato s, d o s sécu lo s XVI e
XVII, entre auto res e liv reiro s, as so m as env o lv id as
p arecem bastante p eq u enas. Em co ntrap artid a, é
sem p re p rev isto no s co ntrato s q u e o auto r rec eb e­
rá exem p lares d e seu livro um a v ez p ublicad o , al­
g uns suntuo sam ente encad ernad o s, co m o s quais
p o d erá p resentear p ro teto res, já d efinid o s o u em
v ias d e sê-lo . D urante m uito tem p o , a Rep ública
d as letras, esta co m unid ad e na qual o s auto res se
asso ciam , tro cam co rresp o nd ência, m anuscrito s e
info rm açõ es, não está habituad a à id éia d e o b ter
um a rem uneração d ireta em tro ca d o escrito .
É no sécu lo XVIII q u e as co isas m ud am , m as não
necessariam ente p o r iniciativ a d o s auto res. São o s

A AVENTURA DO LIVRO 61
0 te x to entre autor eeditor

Página p re c e d e n te . liv reiro s-ed ito res que. para d efend er seus p riv ilé­
N o c e n tro de ste q u a d ro de 1 8 7 3 ,
q u e m o s tra balcões de Nova
gios, seja no sistema co rpo rativo i , se)a no sis
O rleãs o n d e se n e g o c ia a lg o d ã o , tema estatal francês, inventam a idéia do auto r-pro -
Degas c o lo c o u o jo rn a l, g ra n d e
p rietário . O liv reiro -ed ito r tem interesse nisso , po is,
m a n c h a branca e m h a rm o n ia
c o m a cam isa d o escrevente e as SC O auto r SC to rna p ro p rietário . O l Í Y f C Í r O tam bém
a m o s tra s de a lg o d ã o . Na
se to rna, uma v ez que o m anuscrito lhe fo ra ced i­
s e g u n d a m e ta d e d o século XIX,
o d iá rio se t o r n o u o in s tru m e n to do! É este cam inho to rtuo so que lev a à inv ençào
o b r ig a tó r io para q u e m quisesse d o d ireito d o autor. D id ero t o co m p reend eu, uma
c o n h e c e r as n o v id a d e s d o
m u n d o , o flu x o das coisas, das
v ez que, na sua Lettre em favo r d o s liv reiro s-ed ito ­
m u d a n ç a s e dos p ro d u to s . res de Paris, em lugar de ap arecer, co m o de hábito ,
E dgar Degas, Portraits dans un
co m o arauto das liberd ad es e ao m esm o tem p o
b ureau (Nouveile-Orléans) o u
Bureau de coton à Ia Nouveile- co m o ho m em ho stil ao s m o no p ó lio s e privilégio s,
Orléans, 1 8 7 3 . Pau, M u s e u de ele se faz o d efenso r d o s p riv ilégio s das livrarias.
Belas-Artes.
Ele co m p reend eu que p o d ia inco rp o rar nessa es­
tratégia d e d efesa d o s livreiro s - não o bstante fo s­
sem b em m ald o so s co m ele - a afirm ação , alta-
m ente reiv ind icad a, da p ro p ried ad e d o auto r so bre
sua o bra. A ssim, ele utiliza a argum entação d o s li­
v reiro s-ed ito res para d ela fazer o p ró p rio fund a­
m ento da reiv ind icação do auto r-p ro p rietário .

Portanto os autores intervém em segundo p lan o , m ais tardiamente,


E isto não diz resp eito ap enas a Beaum archais: o
auto r d e teatro não é o único m o d elo . Há uma
o utra figura em blem ática, Ro usseau...

R ou sseau e n ão V oltaire.
Vo ltaire recusa a d ep end ência d o v ínculo d e clien­
tela co m relação a p atro no s privad o s, p articulares,

64 A AVENTURA DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

aristo crático s, m as não o faz ab so lu tam ente em


no m e cia d efesa d o d ireito d e auto r; o faz, d e um
lad o , ap o iad o na seg urança que lhe p ro p o rcio na
sua fo rtuna e, d e o utro , aleg and o que, para aqueles
que não são rico s e que não querem a hum ilhação
das d ep end ências particulares, o sistema d o m ecenato
d o Estad o , tal co m o Luís XIV o havia co nstruíd o ,
co ntinuaria send o o recurso legítimo . Co m auto res
co m o Ro usseau, uma no v a asp iração se co lo ca, a de
tentar viver de sua pró pria p ena. A ssim, Jean-Jacq u es
v end e, várias v ezes, La Nouvelle Héloíse, um a vez
so b p retexto de que se tratava de uma ad ap tação
p ara a censura francesa, um a o utra p o rq u e lhe ad i­
cio no u um p refácio ... Para ele, era a única m aneira
d e p o d er rentabilizar um p o u co a escrita.
Aliás, uma vez que tanto na Inglaterra, d ep o is de
1709, quanto na França, d epo is de 1777, to rna-se p o s­
sível para o s autores, e não mais apenas para os livrei­
ros, reiv ind icar p rivilégio s, v em o s muito s auto res
tentand o transfo rmar-se em seus p ró p rio s ed ito res.

No ferv ilhar de iniciativ as, co mo o Estado interv ém, p o r sua vez,


p a ra regular o direito de auto r?
Em 1709, a m o narquia ing lesa quer acabar co m o
sistem a co rp o rativ o que assegurav a a p erp etuid a-
d e da p ro p ried ad e so bre o s título s registrad o s p e­
lo s livreiro s e g ráfico s da co rp o ração . Co m isto,
p retend e limitar a d uração do Copyright. Na França,
é so bretud o co m as d iscussõ es das assem bléias re­
vo lucio nárias que o Estad o vai intervir d e maneira

A AVENTURA DO LIVRO 65
0 te x to entre autoreeditor

m uito fo rte na leg islação co m o d up lo p ro p ó sito


d e p ro teg er o auto r e o p úblico . Pro teg er o auto r
su p õ e que algo seja reco nhecid o d e seu d ireito :
im p õ e-se a id éia d e v er as co m p o siçõ es literárias
co m o um trabalho ; a retribuição d esse trabalho é
p o rtanto legítim a, justificad a. Mas, p o r o utro lad o ,
é p reciso fazer q u e o p ú b lico não seja lesad o .
Po d e-se d izer que a leg islação que sai das assem ­
bléias rev o lucio nárias, d eterm inad a p o r essa d up la
exig ência, vai d efinir o d ireito m o d erno , m esm o
que, d urante o s sécu lo s XIX e XX, o s seus d isp o si­
tivo s se to rnem m ais co m p lexo s, mais num ero so s
e m ais p reciso s. Trata-se d e um d ireito que, d e um
lad o , rec o n h ec e a p ro p ried ad e literária, mas que,
ao m esm o tem p o , limita seu p razo : um a v ez q ue
este exp ira, a o bra se to rna “p ública". Q uand o se
diz que um a o bra caiu em d o m ínio p úblico , isto
q u er d iz er q u e q u alq u er um está au to riz ad o a
p ublicá-la, enq uanto , antes, o autor, o u o s herd ei­
ro s, p erm aneciam seus p ro p rietário s exclusiv o s. Esta
c o n c ep ç ão d e d o m ínio p ú blico , d e um b em que
vo lta a ser co m um d ep o is d e ter sid o individual, é
herd eira d ireta d a reflexão rev o lucio nária: ela tem
raízes no s d ebates d o sécu lo XVIII e se o p õ e a to ­
das as reiv ind icaçõ es, q uaisq uer que tenham sid o
suas fo rm as, q u e p retend iam a im p rescritibilid ad e
e a p erp etuid ad e da p ro p ried ad e so b re as o bras.

E agora, dois séculos depois, como preserv ar os princípio s do direito


de auto r na grande confusão eletrônica, quando a obra toma um a
m ultiplicidade de fo rm as, cada v ez mais difíceis de apreender?

DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

A lem brança d e um o utro d ebate antig o p o d e ter


um certo interesse aqui. Ele não se refere, d esta
v ez, ao s d ireito s d o p ú blico o u d o auto r, m as ao
o b jeto no qual a o bra se inscrev e. Na p rática da
co m unid ad e d o s liv reiro s e g ráfico s d e Lo nd res,
co nsid erav a-se q u e o o b jeto da p ro p ried ad e, d o
Copy right , era o m anuscrito da o bra q u e o livreiro
tinha d ep o sitad o e registrad o . Este m anuscrito d e­
via ser transfo rm ad o em livro im p resso , mas ele
co ntinuav a send o o fund am ento , a garantia e o
o b jeto m esm o so bre o qual se ap licav a o co nceito
d e right in copies, isto é, d o d ireito so bre o exem ­
plar, d ireito so b re o o b jeto . D urante o sécu lo XVIII,
to d o um trabalho fo i feito para d esm aterializar essa
p ro p ried ad e, p ara faz er co m q u e ela se exercesse
não so b re um o b jeto no qual se enco ntra um texto ,
m as so b re o p ró p rio texto , d efinid o d e m aneira
abstrata p ela unid ad e e id entid ad e d e sentim ento s
q u e aí se exp rim em , d o estilo q u e tem, da sing ula­
: '■ a se g u in te .
rid ad e q u e trad uz e transm ite. A bre-se aqui um
r i: e re tra to d o a rtis ta c o m o
o im p o n e n te in -fó lio cam inho p ara esclarecer a situação co ntem p o râ­
~ c r i m e a c a rta d o b ra d a , c o m o
nea. O q u e p ro d uz d e fato a rev o lução d o texto
j n t o s , eles sig n ifica sse m
: j p l a relação c o m a c u ltu ra
eletrô nico , senão um p asso sup lem entar no p ro ­
: ' ta, p ro d u z id a e rece bid a . cesso d e d esm aterializ ação , d e d esco rp o raliz ação
~.ão e s q u e rd a d o le ito r segura
da o bra, q u e se to rna m uito difícil d e estancar? To ­
:a p a a b e rta , e n q u a n to os
zos da m ã o d ire ita m a rc a m d o s o s p ro cesso s m o d erno s so b re a p ro p ried ad e
’e re n te s páginas. Ler u m c ó d e x
literária, em particular, em to rno da no ção d e imi­
er vá rio s te x to s a o m e s m o
"npo, a p ro x im a d o s e tação , d e p lág io , d e em p réstim o , já estão lig ad o s a
n fro n ta d o s . esta d up la q uestão : a d o s critério s q u e caracteri­
.'enzo L o tto , Autop ortrait,
zam a o bra ind ep end entem ente d e suas d iferentes
rca de 1 5 3 0 . V e n e za ,
3(eria da A c a d e m ia . m aterializ açõ es e a d e sua id entid ad e esp ecífica. A

A AVENTURA DO LIVRO 67
0 te x to entre autor eeditor

d istinção entre a o bra e o co njunto das materiali-


d ad es, d as fo rm as p o r m eio d as quais ela p o d e ser
vista o u o uvid a, d esigna ela p ró p ria o lugar d e uma
q uestão ao m esm o tem p o juríd ica e estética que é
p reciso apro fund ar.

N um momento em que a multimídia perm ite expôr, como em um a


vitrina, pro duto s como livros, CD-Roms, filmes, ou derivados, a
reflexão do século XVIII é ainda interessante, mas não suficiente.
Ela é aind a interessante. Se co nsid erarm o s A cartuxa
de P arm a, trata-se d e um texto co m p letam ente in­
d ep end ente d a m aterialid ad e d o s livro s o u film es
no s quais a o bra se enco ntra d issem inad a, d esd o ­
brad a, d ifund id a; p o rtanto , o juízo estético sup õ e
q u e se co nstrua um tip o d e o bra q u e transcend a a
to d as as fo rm as p articulares que esta o bra p o d e
tomar. As categ o rias juríd icas tam bém p ro m o v em
esse trabalho d e d esm aterializaçâo , ap licand o -se a
um a realid ad e co nstruíd a, abstrata, a uma o bra que
existe co m o categ o ria, co m o ficção . D e tal so rte,
que o d ireito e a estética p erco rrem um m o v im en­
to similar que co nd uz à p ro d ução d e uma entid a­
d e, d e um a o bra co m traço s esp ecífico s, que não
são aq u eles d as fo rm as materiais em que ela se
encarna.
Mas, to d o leito r d iante d e um a o bra a receb e em
um m o m ento , uma circunstância, um a fo rm a esp e­
cífica e, m esm o q uand o não tem co nsciência d isso ,
o inv estim ento afetiv o o u intelectual q u e ele nela
d ep o sita está ligad o a este o bjeto e a esta circunstân-

70 A AVENTURA DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

cia. Vemo s p o rtanto que, d e um lado , há um p ro ­


cesso d e d esm aterializ ação q u e cria um a categ o ria
abstrata d e v alo r e v alid ad e transcend entes, e que,
d e o utro , há múltip las exp eriências q u e são d ireta­
m ente ligad as à situação d o leito r e ao o b jeto no
qual o texto é lido . Eis aí o d esafio fund am ental
q u e d ev e ser co m p reend id o , no sécu lo XVI co m o
no XX, da cultura escrita. A go ra, se p ensam o s no
m und o co ntem p o râneo da multimíd ia, na p assa­
g em d e um a m esm a o bra, d o livro ao CD-Ro m , d o
CD -Ro m ao film e, esta q u estão se p õ e d e m o d o
p articularm ente agud o . As catego rias d o direito apli­
cad as a estes o b jeto s são categ o rias q u e red uz em e
até anulam as d iferenças. O

H o je, no s co ntrato s d e autor, cláusulas p rev êem as


d iferentes m u taçõ es p o ssív eis d o texto q u e vai se
to rnar inicialm ente um livro , m as que p o d e ser em
seg uid a uma ad ap tação cinem ato g ráfica, telev isiv a,
um CD-Ro m , um texto eletrô nico , etc. O trabalho

zes d e eng lo b ar to d as estas fo rm as para unificá-las


aind a que as d esm aterializ and o . D e um o utro lad o ,
p ara o autor, e afo rtio ri p ara o leito r, as p ro p ried a­
d es esp ecíficas, o s d isp o sitiv o s m ateriais, técnico s
o u culturais q u e co m and am a p ro d u ção d e um li­
v ro o u sua recep ção , d e um CD-Ro m , d e um filme,
p erm anecem d iferentes, p o rq u e eles d eriv am d e
m o d o s d e p ercep ção , d e hábito s culturais, d e téc ­
nicas d e co nhecim ento d iferentes. A o bra não é
jam ais a m esm a quand o inscrita em fo rm as d istin­
tas, ela carrega, a cad a v ez, um o utro sig nificad o .

A AVENTURA DO LIVRO 71
0 te x to entre autor eeditor

Sim, m as o au to r con tin u a operan do sob as reg ras de


con stru cão do livro tais com o ele as herdou .
O

Talvez o s auto res da era multimídia, um p o uco co m o


o auto r d e teatro , sejam g o v ernad o s, não mais p ela
tirania d as fo rm as d o o bjeto -liv ro trad icio nal, mas.
no p ró p rio p ro cesso da criação , p ela p luralid ad e
d as fo rm as d e ap resentação d o texto p erm itid a p elo
sup o rte eletrô nico . D esd e já, v em o s o bras escritas
q u e, d esd e o m o m ento d e sua p ro d ução , são p en ­
sad as em relação ao que elas se to rnarão so b fo r­
m a d e ad ap tação cinem ato g ráfica o u telev isiv a.
Po d e-se ig ualm ente imaginar, no q u e diz resp eito
a texto s mais árid o s o u mais austero s, q u e eles se­
jam im ed iatam ente p ro d uzid o s co m o multimíd ia.
Lem brem o s da co nsciência que certo s auto res anti­
g o s tinham da fo rm a d o livro, da tip o grafia, da d is­
p o sição d o texto . Entre o s sécu lo s XVI e XVIII, o u
m esm o no XIX, há auto res mais sensív eis, mais
aberto s a esta “co nsciência tip o g ráfica" d o que o u ­
tro s: aq u eles que jo g am co m as fo rm as, aq u eles
q u e q u erem co ntro lar a p u b licação im p ressa, q ue
q u erem subv ertê-la o u rev o lucio ná-la. N em to d o s
o s auto res d eixav am a resp o nsabilid ad e da fo rm a
p ara a o ficina. Po r analo gia, a “co nsciência multimí­
d ia” co ntem p o rânea p o d eria ap arentar-se a esta
co nsciência tip o g ráfica muito esq u ecid a. Po d er-se-
ia p ensar que, p ro g ressiv am ente, e a c o n c ep ç ão
d o texto q u e vai ser m o d ificad a e q u e carreg ará,
d esd e o m o m ento d o p ro cesso de criação , o s v es­
tígio s d o s uso s e interp retaçõ es p erm itid o s p elas
suas d iferentes fo rm as.

72 A AVENTURA DO LIVRO
0 te x to entre autor eeditor

V ocê qu er diz er qu e o flu x o v ai m odific ar o estoque?


É b em p o ssív el, sim. N este m o m ento , racio cina-se
co m o se um esto q u e existisse e o s d iferentes flu­
xo s o d istribuíssem . Creio q u e se d ev e d esenv o lv er
um a reflexão inversa, ind o d as fo rm as em d ireção
ao q u e elas transm item , atend o -no s à d iv ersid ad e
d as sig nificaçõ es d e um “m esm o ” texto q u and o
m ud am suas m o d alid ad es d e d ifusão . Talv ez, no s
sécu lo s XXI e XXII, o s auto res p o ssam ser classifi­
cad o s em fu ncão d e sua m aio r o u m eno r acuid ad e
O

e agilid ad e na p ercep ção e m anejo das no v as p o s­


sibilid ad es abertas p elas técnicas multimíd ia.

A AVENTURA DO LIVRO 73
r

0 le ito r entre limitações e liberdade


O

A leitura é sem pre apropriação, inv enção,


p rodu ção de significados. Segundo a bela
imagem de M ichel de Certeau, o leitor é um
c aç ado r qu e percorre terras alheias. A pre­
en dido p ela leitura, o texto n ão tem de
m odo alg u m - ou ao m enos totalm en te- o
sentido qu e lhe atribui seu autor, seu edi­
tor ou seus com entadores. Toda história da
leitura supõe, em seu prin cípio, esta liber­
dade do leitor qu e desloca e subverte aqu i­
lo qu e o livro lhe preten de impor. M as esta
liberdade leitora n ão éjam ais absoluta. Ela
é cercada p o r lim itações deriv adas das c a­
pacidades, conv enções e hábitos qu e carac­
terizam, em suas diferenças, as práticas de
leitura. Os gestos m u dam segundo os tem­
pos e lugares, os objetos lidos e as raz ões de

A o sol p o e n te , no c a m p o , u m
ler. N ovas atitudes são inventadas, outras
le ito r s o litá rio . In te n s a m e n te se ex tinguem . D o rolo an tig o ao códex
v o lta d o para o livro de d e v o ç ã o
q u e se g u ra e m sua m ã o d ire ita . medieval, do livro impresso ao texto eletrô­
nico, v árias rupturas m aiores div idem a
Na era ro m â n tic a , a le itu ra ao ar
livre e sta b e le ce u m a e stre ita
c o rre s p o n d ê n c ia e n tre a longa história das m an eiras de ler. Elas
h a rm o n ia da N a tu re z a e a fo rç a
da Palavra divina, a m e d ia çã o colocam em jo g o a relação entre o corpo e
o livro, os possív eis usos da escrita e as c a­
religiosa e a presença no universo.
Carl S p itz w e g , Le lec teur de
bréviaire, le soir, cerca de 1845- tegorias in telectu ais qu e assegu ram su a
1850.
Paris, M u s e u d o Louvre. com preen são.

A AVENTURA DO LIVRO 77
0 le ito r entre limitações e liberdade

Você, qu e p refac io u e com en tou os g ran des livros de N orbert


Elias, especialista da civ iliz ação dos costum es e das m an eiras
da mesa, n ão ac ha qu e a história das m an eiras de ler está p o r
fa z e r e p o r descobrir?
Elias m o stro u co m o as no rm as d e co m p o rtam ento
e o s lim ites m o rais tinham sid o subm etid o s a exi­
g ências intensificad as entre o s sécu lo s XVI- e XIX. A
instauração o brig ató ria d o silêncio nas b ib lio tecas
univ ersitárias na Id ad e M éd ia central v ai na m esm a
d ireção . Enco ntram o s, nas b ib lio tecas, esta m esm a
/ /

id éia d e um co m p o rtam ento q u e d ev e ser reg ula­


d o e co ntro lad o . O bserv e, m ais tard e, no sécu lo
/ /

XVIII, as so cied ad es d e leitura, q u e tiv eram muita


im p o rtância na A lem anha d as Luzes. M eno s d esen­
v o lv id as na França, eram num ero sas na Inglaterra,
so b a fo rm a d o s book clubs. N o s seu s reg ulam en­
to s, está p rev isto q u e o lugar da leitura d ev e ser
sep arad o d o s lugares de um d ivertim ento mais m un­
d ano - aq u eles o nd e se p o d e beber, co nv ersar e
jo gar. O s reg ulam ento s d essas so cied ad es d e leitu­
ra, na A lem anha, são um d o s sup o rtes d isso que
Elias d esig no u co m o o p ro cesso d e civ ilização , q u e
o brig a o s ind iv íd uo s a co ntro lar suas co nd utas, a
censurar seus m o v im ento s esp o ntâneo s e a rep ri­
mir seus afeto s. D ev e-se co ntu d o m atizar isso . A
histó ria d as p ráticas d e leitura, a p artir d o sécu lo
XVIII, é tam bém um a histó ria da liberd ad e na leitu­
ra. É no sécu lo XVIII q u e as im ag ens rep resentam o
leito r na natureza, o leito r q u e lê and and o , q u e lê
na cam a, enq u anto , ao m eno s na ico no g rafia co -

DO LIVRO
0 le ito r entre limitações e liberdade

nhecid a, o s leito res anterio res ao sécu lo XVIII liam


no interio r d e um g abinete, d e um esp aço retirad o e
privad o , sentad o s e im ó veis. O leito r e a leito ra do
século XVIII p erm item -se co m p o rtam ento s mais v a­
riad o s e mais livres - ao m eno s quand o são co lo ca­
d o s em cena no quad ro o u na gravura.

A in da assim raram en te. É sobretu do a p artir do m om en to em


qu e a leitu ra é represen tada p e la fo to g rafia e p elo c in em a qu e
se v ê esta liberdade ex pan dir-se e desenv olv er-se. N a m aioria
das represen tações pictu rais, o leitor, du ran te muito tempo,
p erm an ec eu sen tado.

: 3ginas se g u in tes.
Co m o cinem a e a fo to g rafia, em co ntrap artid a, o s
- esq u erd a. leito res são surp reend id o s p ela o bjetiv a. O que p er­
jm o d is ta n c ia m e n to p ró p rio da
;e :o n s titu iç ã o h istó rica , u m le ito r m ite v er p ráticas d e leitura m ais d eso rd enad as, m e­
século XVIII, nas tin ta s de um
: '~ t o r d o século XIX, Ernest no s co ntro lad as. A p intura o u a grav ura im o bili­
/e is s o n ie r. 0 le ito r a ris to c rá tic o ,
z am o s le ito re s n u m a atitu d e q u e re m e te às
, e stid o de b ra n co ,
:e s c u id a d a m e n te a p o ia d o na co nv ençõ es e có d ig o s atribuíd o s à leitura legítim a.
c o rd a da m esa, lê u m livro de
: e q u e n o fo r m a to . N ão se p o d e d aí inferir que to d o s o s leito res les-
Ernest M e isso n ie r, Le liseur bíanc,
‘ 357. Paris, M u s e u d'O rsay.
sem fo rço sam ente sentad o s no interio r d e um g a­
b inete o u d e um salão . Eles p o d iam ter p ráticas d e
- direita.
século antes, n u m a posição leitura m ais livres que não eram co nsid erad as co m o
~ e n o s d e s c o n tra íd a , o u t r o le ito r
~ : o r e instalou-se c o m o d a m e n te leg itim am ente rep resentáv eis. O s leito res d o s livro s
: ; b as fo lh a g e n s para ler u m
p o rno g ráfico s o u eró tico s liam talvez co m uma única
~ a n u s c r ito in -fóiio.
- e itu ra é, a in d a a q u i, le itu ra de m ão , seg und o a exp ressão d e Ro usseau. Um a q u es­
r5".udo e de saber, m as a b a n d o n o u
: re tiro d o g a b in e te para d e s fru ta r tão im p o rtante p ara o trabalho histó rico é m ed ir a
:s a tra tiv o s d o ja r d im à inglesa.
_" j i s C arrogis, d ito C a rm o n te lle .
p o ssív el d istância entre, d e um lad o , aquilo que é
. 'onsieur de Longueil, p rim e ira
lícito rep resentar e, d e o utro , o s g esto s efetiv o s, as
"-e ta d e d o século XVIIJ (Gruyer, t. II,
28).C hantilly, M u s e u de C ondé. p ráticas reais. Freq ü entem ente, o s histo riad o res d e-

A AVENTURA DO LIVRO 79
0 le ito r entre limitações e liberdade
O

v em se co ntentar co m o registro das m ud anças no s


sistem as d e rep resentação . Seria tem erário co nclu ir
d em asiad o ráp id o so b re a realid ad e d o s co m p o rta­
m ento s a partir d e rep resentaçõ es co d ificad as q ue
d ep end em tanto d as co nv ençõ es o u d o s interesses
env o lv id o s no ato d e m o strar - p ela p intura, p ela
gravura - q uanto da existência o u d a au sência d o s
g esto s q u e são m o strad o s.

A ssim, um pin tor hesitará muito menos em represen tar um jo r n al


do qu e um livro. No livro, há um segredo com paráv el àqu ele do
retrato. A crescen tar um livro em um retrato. é acu m u lar seg redo
sobre segredo e impor-se u m a tarefa muito difícil.
N o s sécu lo s XVII e XVIII, um jo rnal não tem um a
estrutura d iferente d aquela d o livro . Q uand o o jo r­
nal ad quire um g rand e fo rm ato e um a d istribuição
am p la, q uand o ele é v end id o na rua a cad a nú m e­
ro , aí o co rre isso q u e v o cê diz. Q u er dizer, um a
atitud e m ais livre: o jo rnal é carreg ad o , d o brad o ,
rasg ad o , lid o p o r m uito s. N ão estam o s tão lo ng e
Em Paris, n o f im d o século XIX, d as no v as técnicas da rep resentação co m o a fo to ­
d u a s im a g e n s d o jo rn a l.
No a lto, a u rg ê n c ia da
grafia e o cinem a.
d is trib u iç ã o : os v e n d e d o re s d o La
Se no s v o ltarm o s p ara o artigo clássico d e W alter
Patrie e s p a lh a m pela c id a d e o
n ú m e r o q u e acaba de sair d o Benjam in so b re a fo to g rafia e o cinem a, v em o s q ue
prelo. a fo to g rafia e o cinem a lig am -se ao ho m em c o ­
E m b a ixo , o t e m p o tr a n q ü ilo da
le itu ra , e m u m b a n c o , io n g e d o
m um e p erm item um a abertura m ais am p la p ara o
local d e tr a b a lh o e da casa. Nos m und o so cial. A ssim, p ráticas não legítim as e m ais
dois casos, u m v ín c u lo f o r t e
esp o ntâneas enco ntram -se rep resentad as, enq u an­
e n tre o m u n d o da im p re n sa e as
s o c ia b ilid a d e s m asculinas. to , antes, elas não entrav am no s có d ig o s e tem as

82 A AVENTURA DO LIVRO
0 le ito r entre limitações e liberdade
O

da rep resentação . Benjam in o bserv a até que p o d e


nascer, co m o cinem a e o jo rnal, um a co nfu são d e
p ap éis entre p ro d uto r e co nsum id o r. Xo s jo rnais, a
d iferença entre red ato r e leito r se d esm ancha q u an­
d o o leito r se to rna auto r, g raças às cartas d o s leito ­
res. Pro d uz-se a m esm a co isa co m o cinem a q u an­
d o ele se p õ e a filmar, co m o ato res p resentes na
im ag em , aq u eles q u e são o s p ró p rio s esp ectad o ­
res, p o r exem p lo , o s o p erário s film ad o s na saíd a
das fábricas. A liberd ad e m ais am p la d o s g esto s é
ligad a à d em o cratiz ação d o acesso à rep resentação
e a uma certa interferência entre p ap éis q u e antes
eram estritam ente sep arad o s.

O livro p erm an ece, às vezes, com o um objeto de hon raria em


certas fo to g rafias oficiais - Fran çois M itterand p o r G isèle
Freu n d, em 1981 - qu e perpetu am a an tig a tradição do retrato
de pessoas qu e se destacam .
O livro ind icav a auto rid ad e, um a auto rid ad e que
d eco rria, até na esfera p o lítica, d o sab er q u e ele
carreg av a.
A fo to g rafia p o d e ser, p o r o utro s m eio s, a reto m a­
da d o co nju nto d e có d ig o s q u e g o v ernav am o re­
trato d o A ntigo Reg im e. Isso p o d e ser v isto em um
estud o serial e sistem ático d as fo to g rafias o ficiais
d o s p resid entes da Rep ública, seg uram ente inscri­
tas na co ntinuid ad e d o s retrato s o ficiais p intad o s.
Pela rep resentação d o livro , o p o d er fund a-se so ­
b re um a referência ao saber. A ssim, ele se m o stra
“esc larec id o ” .

84 A AVENTURA DO LIVRO
0 le ito r entre limitações eliberdade

Por qu e o livro é hoje tão pou co presente n a pintura, se ex cetuarmos


obras com o as de Baselitz ou de Barcelo?
/

E no sécu lo XIX q u e a p intura se d istancio u d o


livro , co m ex c ec ão d e Fantin-Lato ur o u Reno ir. Mas
o s g rand es p into res ino v ad o res não faz em d ele um
o b jeto p riv ilegiad o , talv ez p o rq u e ele p ertença ao
m und o d a no rm a. Ele ap arece ap enas no s retrato s
da burg uesia e não nas p inturas que rev o lu cio nam
o s có d ig o s estético s. Q uanto à p intura histó rica, no
sécu lo XIX, a p intura das batalhas, ela exp õ e tem as
q u e exclu em a p resença d o livro , d em asiad o liga­
d o à intim id ad e e ao p riv ad o . O s p into res q u e v ão
reintro d uzir a m atéria im p ressa são o s cubistas. Em
Braq u e, enco ntram o s m uitíssim a m atéria escrita e
im p ressa, m as co lo cad a a serv iço d e um a sig nifica­
ção d iferente, não m ais ligad a à id éia d o livro co m o
d em arcad o r so cial, m as a um jo g o d e fo rm as e às
relaçõ es entre as p alav ras e o m und o . Enco ntra­
m o s aí um a “reflexão ” em ato so bre as relaçõ
O
es
entre o escrito e a im ag em e so b re as lig açõ es en­
tre o esp etácu lo e o o lhar.

A leitu ra com o con tem plação, ru m in ação, m editação, p o d e ser


represen tada?
Este não fo i sem p re o caso . Na p intura antiga, en­
Dá gin a se g u in te .
M a d a le n a p e c a d o ra é t a m b é m tre o fim da Id ad e M éd ia e o sécu lo XIX, o livro ,
M a d a le n a leitora. O p in to r
ita lia n o d o sé cu lo XVIII re u tiliza
o nip resente, estav a lig ad o à fo rça d a m ensag em
co n ve n çõe s q u e são as m e sm a s sag rad a. Pensem o s nas im ag ens d a V irgem , no s
das im a g e n s lib e rtin a s - o seio
d e sn u d o , o c o rp o e stic a d o , a
quad ro s rep resentand o Santa A na ensinand o a Vir­
o o s tu ra e n ía n g u e s c id a . g em a ler, o u na o bra d e Rembrand t. Em Rembrand t,
A te lie r de P o m p e o G iro la m o
B atoni, Sainte Marie Madeleine,
a Bíblia é m o strad a co m o alg o im enso , sem rela­
século XVIII. C o le çã o p a rtic u la r. ç ão co m um o b jeto tip o g ráfico p o ssív el o u real.

A AVENTURA DO LIVRO 85
0 l ei t or entre limitações e liberdade

P ara v oltar à qu estão qu e atrav essa toda esta nossa con v ersa..a
tran sform ação da leitu ra p elo suporte qu e a m aterializ a, v ocê
dev e c o n c o rdar qu e está prov av elm en te am eaç ada a lectio
d ivina, tal com o a p ratic am as v elhas m u lheres de R em brandt.
m u n idas de ócu los dian te de seus in-fólio.
D esd e a ép o ca d e Rem brand t, co lo cav a-se a q u es­
tão se a Bíblia p o d ia ser p ublicad a em p eq u eno
fo rm ato . A sacraliz ação d o texto , d izia-se, não p o ­
d ia resistir à ind ig nid ad e d o p eq u eno fo rm ato . Ela
d e fato resistiu à p assag em d o ro lo ao có d ex, ao
ab and o no d o in-fó lio e, sem d úvid a, resistirá à p as­
sag em p ara o texto eletrô nico .

A bíblia em CD -Rom, qu e se com eça a c om erc ializ ar na


Fran ça, é alg o diferen te de u m a espécie de história sag rada
lú dica, im própria a toda postu ra m editativ a?
O no v o sup o rte d o texto p erm ite uso s, m anuseio s
e interv ençõ es d o leito r infinitam ente mais num e-
S obre esta p á g in a de um
ro so s e m ais livres d o q u e q u alq u er um a d as fo r­
m a n u s c rito d o Decret de Gratien,
p rim e ira c o m p ila ç ã o , no m as antig as d o livro . No livro em ro lo , co m o no
século XII, d o d ire ito c a n ô n ic o ,
có d ex, é certo , o leito r p o d e intervir. Sem p re lhe é
as m ú ltip la s in te rv e n ç õ e s de seu
o u seus leitores. N o te x to ,
p o ssív el insinuar sua escrita no s esp aço s d eixad o s
c o p ia d o p elo escriba e c e rc a d o em b ranco , mas p erm anece um a clara d iv isão , q ue
d e glosas, os leitores
se m arca tanto no ro lo antigo co m o no có d ex m ed ie­
a c re s c e n ta ra m n u m e ro s a s
a n o ta ç õ e s , c o lo c a d a s e n tre as val e m o d erno , entre a auto rid ad e d o texto , o fereci­
linhas ou as m a rg e n s . A ssim , eles
d o p ela có p ia m anuscrita o u p ela co m p o sição tip o ­
d e ix a ra m , n o p r ó p r io livro,
os vestígios de suas m a n e ira s gráfica, e as interv ençõ es d o leitor, necessariam ente
de ler e de c o m p r e e n d e r a ob ra . ind icad as nas m argens, co m o um lugar p eriférico
Decret de Gratien, cerca de 1 1 4 0
(m a n u s c rito 3 5 4 , f . 31). A m ie n s ,
co m relação à auto rid ad e. Sab e-se m uito b em - e
b ib lio te c a m u n ic ip a l. v o cê sublinho u o s uso s lúd ico s d o texto eletrô nico -

88 A AVENTURA DO LIVRO
0 leitor entre limitações eliberdade
D

Sobre o c h a m a d o e x e m p la r de
q u e isto não é m ais v erd ad eiro . O leito r não é mais
B o rd e a u x d o s Essais, M o n t a ig n e
c o lo c o u , de p r ó p r io p u n h o , as
co nstrang id o a intervir na m argem , no sentid o lite­
c o rre çõ e s e as e m e n d a s q u e ral o u no sentid o figurad o . Ele p o d e intervir no
desejava ve r inseridas na
co ração , no centro . Q ue resta então da d efinição
re e d iç ã o de sua o b ra . Este
e x e m p la r c o rrig id o da q u in ta d o sag rad o , que sup unha um a auto rid ad e im p o n­
e d içã o , a de A b e l L'A ngelier, d o uma atitud e feita d e rev erência, d e o b ed iência
p u b lic a d a e m 1 5 8 8 , tr a n s fo r m o u -
o u d e m ed itação , q u and o o sup o rte m aterial c o n ­
se assim e m u m a nova cópia d o
te x to d e s tin a d a ao im pressor. Ele fund e a d istinção entre o auto r e o leito r, entre a
p e rm ite e n te n d e r, mais de p e rto , auto rid ad e e a ap ro p riação ? Eu não sei se um a re­
o d iá lo g o crítico d o a u to r c o m
sua p ró p ria criação.
flexão teo ló g ica se d esenv o lv eu no m und o d o tex­
Paris, B ib lio te ca N a cio n a l. to eletrô nico , m as ela seria abso lu tam ente ap aixo -
nante, ao lad o d e um a reflexão filo só fica o u d e
um a reflexão juríd ica.

Sem dúv ida, ela m ostraria qu e se p o de distingu ir u m a


abordag em católica ou lu teran a de u m a abordag em calvinista.
É assim: con form e as tradições religiosas, m as tam bém con form e
as tradições intelectuais ou as pertin ên cias sociais, desenvolve-se
u m a m u ltiplicidade de abordag en s da leitura. A té o infinito?
A té o infinito , não . Ler, leitura, essas palavras arm am
cilad as. Existe alg o m ais universal? Há leito res em
Ro m a, na M eso p o tâm ia, no sé c u lo XX. É um a
invariante, sem p re se leu o u nunca se leu o suficien­
te, isto d ep end e d o p o nto d e vista. A liás, co m o
v o c ê diz co m justeza, há esta m ultip licid ad e d e m o ­
d elo s, d e p ráticas, d e co m p etências, p o rtanto há
um a tensão . Mas ela não cria d isp ersão ao infinito ,
na m ed id a em que as exp eriências ind iv id uais são
sem p re inscritas no interio r d e m o d elo s e d e no r­
m as co m p artilhad as. Cad a leito r, p ara cad a um a d e
suas leituras, em cad a circunstância, é singular. Mas

A AVENTURA DO LIVRO 91
0 le ito r entre limitações e liberdade

esta sing ularid ad e é ela p ró p ria atrav essad a p o r


aquilo que faz que este leito r seja sem elhante a
to d o s aq u eles que p ertencem à m esm a co m u nid a­
d e. O q u e mud a é q u e o reco rte d essas co m u nid a­
d es, seg u nd o o s p erío d o s, não é reg id o p elo s m es­
m o s p rincíp io s. Na ép o c a d as refo rm as relig io sas,
a d iv ersid ad e d as co m unid ad es de leito res é em
am p la m ed id a o rganizad a a partir da p ertinência
co nfessio nal. No m und o d o sécu lo XIX o u XX, a
frag m entação resulta das d iv isõ es entre as classes,
d o s p ro cesso s d iferentes d e ap rend iz ag em , das es-
co larid ad es mais o u m eno s lo ngas, d o d o m ínio mais
o u m eno s seg uro d a cultura escrita. Po d er-se-ia tam ­
b ém ev o car o co ntraste que se rev elo u, no sécu lo
XVIII, entre leito res d e um tip o antigo , que reliam
m ais d o que liam, e leito res m o d erno s, que ag arra­
v am co m av id ez as no v id ad es, no v o s g ênero s, no ­
v o s o b jeto s im p resso s - o p erió d ico , o libelo , o
p anfleto . A cliv ag em , aqui, rem ete a um a o p o sição
entre cid ad e e cam p o , o u entre g eraçõ es.
O q u e se d ev e no tar, e q u e é d ifícil p ara o s histo ria­
d o res e so ció lo g o s, é o p rincíp io d e o rg aniz ação
da d iferenciacão . N ão há inv ariância o u estabilid a-
O

d e d este p rincíp io . O que to rna p ensáv el um p ro ­


jeto d e histó ria da o u das leituras, q u e não caísse
num a esp écie d e co leç ão ind efinid a d e singulari­
d ad es irred utív eis, é a existência d e técnicas o u d e
m o d elo s d e leitura que o rg anizam as p ráticas d e
certas co m unid ad es: a d o s m ístico s, a d o s m estres
d a esco lástica da Id ad e M éd ia, a d e d eterm inad a
classe so cial d o sécu lo XIX etc.
0 le ito r entre limitações eliberdade
O

Os m em bros dessas com u n idades, su pon do qu e possam os


iden tificá-los, imitam, p elo fat o de terem sido ben eficiados p o r
u m a apren diz ag em , o com portam en to da g eraç ão preceden te,
dos pais, ou p ais eletivos. A quilo qu e é radicalm en te novo, com
a rev olu ção eletrôn ica atu al, é qu e n ão há processo de
apren diz ag em transmissív el de n ossa g eraç ão à g eraç ão dos
nov os leitores.
É p o r isso que esta rev o lu ção , fund ad a so b re um a
rup tura d a co ntinuid ad e e so b re a necessid ad e d e
ap rend iz ag ens rad icalm ente no v as, e p o rtanto d e
um d istanciam ento co m relação ao s hábito s, tem
m uito p o u co s p reced entes tão v io lento s na lo ng a
histó ria da cultura escrita.
A co m p aração co m d uas rup turas m eno s brutais
faz sentid o . No início da era cristã, o s leito res d o s
c ó d ex tiv eram que se d eslig ar da trad ição d o livro
em ro lo . Isso não fo ra fácil, sem dúvid a. A transi­
ção fo i ig ualm ente d ifícil, em to d a um a p arte da
Euro p a d o sécu lo XVIII, quand o fo i necessário ad ap ­
tar-se a um a circu lação m uito m ais eferv escente e
efêm era d o im p resso . Esses leito res d efro ntav am -
se co m um o b jeto no v o , q u e lhes p erm itia no v o s
p ensam ento s, m as q ue, ao m esm o tem p o , sup u­
nha o d o m ínio d e um a fo rm a im p rev ista, im p lican­
d o técnicas d e escrita o u d e leitura inéd itas.

f ã fo i fe it o alg u m estudo sobre os nov os com portam en tos


in du z idos em u m a g eraç ão m ais jov em , qu e ten ha sido
edu c ada dian te da tela?
É d ifícil p ô r em o rd em a biblio g rafia, p o rq u e ela é
d o m inad a o u p elo s d iscu rso s téc n ic o s o u p ela

A AVENTURA DO LIVRO 93
0 le it o r entre limitações eliberdade
O

d iscussão d o s d esafio s p o lítico s d essas técnicas. A


d escrição etno ló g ica o u so cio ló g ica d as p ráticas
co ntinua m arginal. Em um a o bra co letiv a d irigid a
p o r D aniel Fabre, Écritures o rdinaires, enco ntra­
m o s um a análise d o s co nflito s que surgiram em um
labo rató rio d e p esquisa a p ro p ó sito da utilização d o
co rreio eletrô nico . D e um lad o , p esquisad o res am e­
ricano s habituad o s a receb er um a info rm ação c o n ­
sid eráv el e a não resp eitar, em suas co m u nicaçõ es,
nenhum a d as co nv ençõ es q u e reg ulam habitual­
m ente a tro ca ep isto lar. D e o utro , p esq u isad o res
franceses que co nsid eram que o s p rim eiro s o cup am
a m em ó ria co m o se o cu p a um territó rio , de m anei­
ra ilegítim a, e q ue, nas co m u nicaçõ es ep isto lares
na tela, é necessário p reserv ar as fó rm ulas d e p o li­
d ez e d e referência ao s d estinatário s. Há, p o rtanto ,
aí um co nflito d e civ ilid ad e e um co nflito d e territó ­
rio que trad uz, d e fato , tensõ es p ro fissio nais, rev ela-
d o ras da p o sição d esig ual d e uns e o utro s no lab o ­
rató rio . Este tip o d e estud o o ferece um a esp écie d e
etno lo g ia d as p ráticas e p erm ite v er co m o , na e sc a­
la d e co m unid ad es esp ecíficas, surgem co nflito s em
to rno d a d efinição d e có d ig o s e d e uso s q u e rev e­
lam tensõ es m ascarad as.
Sab e-se ig ualm ente que o s p rim eiro s leito res ele­
trô nico s v erd ad eiro s não p assam m ais p elo p ap el.
Nas exp eriências q u e fo ram feitas em to rno d a Bi­
b lio teca N acio nal d a França, env o lv end o um a p o ­
p u lação d e estud io so s o u g rand es leito res p ro fis­
sio nais, p ô d e-se o bserv ar q u e alg uns d entre eles
liam d iretam ente na tela as info rm açõ es e o s texto s
0 le ito r entre limitações eliberdade

arm az enad o s na m em ó ria d e seu co m p utad o r. N o s


Estad o s Unid o s, v ê-se m esm o d esenv o lv er a p ráti­
ca da leitura d e co nferências na tela d o co m p u ta­
d o r p o rtátil, aberto p elo co nferencista co m o era o
cad erno o u a p asta d e p ap éis. Isto d efine um a fi­
gura d o leito r futuro? Talv ez.

A AVENTURA DO LIVRO 95
A leitura en tre a fa lt a e o excesso

D urante muito tempo, tres in qu ietações


dom in aram a relação com a cultura es­
crita. A prim eira é o temor da perda. Ela
levou à busca dos textos am eaçados, à có- O /

p ia dos livros m ais preciosos, à impressão


dos manuscritos, à edificação das g ran des
bibliotecas. C ontra os desaparecim en tos
sempre possíveis, trata-se de recolher, fix ar
epreserv ar A tarefa, jam aisfin da, é am ea­
ç ada p o r um outro perigo: a corrupção dos
textos. No tempo da cópia manuscrita, a
m ão do escriba p o de falh ar e acu m u lar os
erros. Na era do impresso, a ignorância dos
tipógrafos ou dos revisores, com o os m aus
m odos dos editores, trazem riscos ain da
maiores. D aí, os esforços dos autores p ara
escapar das teias da liv raria e da reprodu ­
ç ão m ecân ica. P reserv ar o patrim ôn io es­
crito fren te à p erda ou à corru pção suscita
tam bém u m a outra inquietude: a do ex ­
cesso. A proliferação tex tu alpode se torn ar
obstáculo ao conhecim ento. P ara dom in á-
la, são necessários instrumentos capaz es de
C o s tu ra d o , p o r tá til, acessível, o
livro d o século X X é u m possível triar, classificar, hierarqu izar. M as, irôni­
c o m p a n h e ir o de cada m o m e n to .
Ele se t o r n o u u m o b je to c o m u m
co paradox o, essas ferram en tas são elas
q u e , c o m o a tig e la ou o
próprias novos livros qu e se ju n tam a todos
c a c h im b o , satisfaz os prazeres
m ais sim ples. os outros.

A AVENTURA DO LIVRO 99
A leitura en tre a fa lt a e o excesso

A p ro p o rç ão dos leitores com relaç ão à p o p u laç ão g lobal dos


p aíses in du striais está a cam in ho de se redu z ir terrivelmente?
P odem -se resolv er as con trov érsias sobre o au m en to do iletrismo
nos p aíses ricos?
O d ebate na França, que tem seus equiv alentes em
o utras so cied ad es euro p éias o cid entais e no s Esta­
d o s Unid o s, fo i p ro v o cad o há uma d ezena de ano s
p elo “iletrism o " d o s jo v ens, m ed id o p o r o casião
d o s testes de inco rp o ração ao exército . D o ze e m eio
p o r cento d o s jo v ens eram co nsid erad o s iletrad o s.
Q uand o se o lhav a a co m p o sição d esses 12,5% , via-
se que m eno s d e um p o r cento estav a to talm ente
fo ra da cultura escrita, não co nseg uind o ler nem
escrev er. Mas o s o utro s, isto é, o nz e e m eio p o r
cento , eram co nsid erad o s iletrad o s p o rque, para
ler, eram o brig ad o s a o ralizar e só co nseg uiam es­
crev er fo neticam ente. Para o p rim eiro critério - a
leitura em vo z alta co m o co nd ição de inteligibilidade
d o texto - , p o d e-se p ensar que, d urante lo ng o s
p erío d o s, esta necessid ad e não fo i unicam ente p ro ­
blem a d o s iletrad o s; ela era tam bém a d e um g ran­
d e núm ero d e p esso as que p ertenciam , em m aio r
o u m eno r grau, ao m und o da cultura letrad a. D o
m esm o m o d o que a no rm a da leitura silencio sa e
co nd uzid a ap enas p elo s o lho s, a seg und a no rm a,
aquela que sep ara a escrita da o ralid ad e e im p õ e o
resp eito d as regras gram aticais e o rto gráficas, im-
p ô s-se tard iam ente. D o p o nto d e vista histó rico , é
interessante v er co m o , aum entand o as exig ências
que d efinem a alfabetiz ação , transfo rm a-se o valo r,

DO LIVRO
A leitura en tre a fa lt a e o excesso

neg ativ o o u p o sitiv o , d e certo s co m p o rtam ento s e


d e certas p ráticas.

N ão é o iletrismo qu e av an ça, m as são a escrita e a leitu ra qu e


se torn am m ais com plex as?
Certam ente. O Estad o tem o utras exig ências. A ssim
co m o as em p resas e as ad m inistraçõ es exig em sem ­
p re mais. A p ro v a d isso é o reto rno d o o fício de
escrev ente p úblico . N ão o escrev ente p úblico a ser­
v iço d aq uele que é to talm ente iletrad o , m as o es­
crev ente p úblico resp o nd end o às d em and as d e uma
so cied ad e buro crática na qual se d ev em resp eitar
as fo rm as - e o s fo rm ulário s. Q uand o se escrev e
um a carta a um a auto rid ad e, quand o se p reenche
um fo rm ulário , quand o alguém quer ap resentar-se
(o cu rricu lu m vitaé), o escrev ente p ú blico to rna-
se o m ed iad o r fo rçad o entre a supo sta inco m p etên­
cia d aquele que d eve escrev er e o d o m ínio d aquele
que co n hece as no rm as. É um a situação que se v ê

Página s e g u in te : b em no s p aíses da A m érica Latina: em Guad alaja-


Escrever para o o u tro . O
ra, so b o s p ó rtico s d e um a g rand e av enid a, d ez e­
escrevente p ú b lic o é u m a fig u ra
fa m ilia r das cidades d o A n t ig o
nas d e escrev entes p úblico s d atilo grafam cartas e
R egim e. S e n do u m recurso fo rm ulário s em m áquinas d e escrev er d o s ano s 30.
indispensável para os ile tra d o s ou
os m a l-le tra d o s . Nesta g ravura,
O escrev ente p ú blico era um a figura m uito im p o r­
in s ta la d o na sua te n d a m o n ta d a tante d as so cied ad es d o A ntigo Regim e. Ele d esa­
na rua, ele tr a n s fo r m a e m ca rta ,
c o m c e rte z a de a m o r, o q u e u m a
p arece p erto d o fim d o sécu lo XIX, a p artir d o
d o m é s tic a lhe d ita . S e g u n d o P. m o m ento em que, no interio r d e um a certa categ o ­
A . W ille Filho, O escrevente
ria so cial - em p reg ad o s d o m éstico s, co stureiras,
p úb lico , g ra vu ra , fim d o século
XVIII, Paris, B ib lio te ca N a c io n a l o p erário s, so ld ad o s ... - , havia sem p re (o u quase

A AVENTURA DO LIVRO 101


M eiíura en tre a fa lt a e o excesso

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Dois séculos mais ta rd e , na Paris sem p re) um co leg a que, no p ró p rio m eio , p o d ia
o c u p a d a (a f o to g r a f ia d a ta de
p restar ao s o utro s esse serv iço d a escrita. Isto não
1 9 4 3 ), a m e d ia ç ã o da escrita
fe m in iz o u -s e e m e ca n izo u -se . Na q uer d izer q u e as so cied ad es atuais sejam necessa­
m á q u in a de escrever, a q u e la q u e riam ente m eno s alfabetizad as que as d o fim d o
escreve para os o u tro s dedica-se
sem d ú v id a ao p r e e n c h im e n to
sécu lo XIX, m as sim p lesm ente q u e a interio rização
dos p a p é is e fo r m u lá r io s o ficia is d as exig ências d o Estad o buro crático lev a a d ele­
re q u e rid o s pela a d m in is tra ç ã o .
gar a um esp ecialista aquilo d e que não no s senti­
M a d a m e L e g ra n d , escrevente
p ú b lica . Paris, 1 9 4 3 . m o s cap az es nó s m esm o s.

En con tram os ain da o discu rso seg u n do o qu al as classes m ais .


jov en s afastam -se da leitura.
Sim, se co nco rd am o s im p licitam ente so b re o que
d ev e ser a leitura. A queles que são co nsid erad o s

A AVENTURA DO LIVRO 103


A leitura en tre a fa lt a e o excesso

não -leito res lêem , m as lêem co isa d iferente d aqui­


lo que o câno ne esco lar d efine co m o uma leitura
legítim a. O p ro blem a não é tanto o de co nsid erar
co m o não -leituras estas leituras selv ag ens que se
ligam a o b jeto s escrito s d e fraca legitim id ad e cultu­
ral, m as é o de tentar ap o iar-se so bre essas práticas
inco ntro lad as e d issem inad as p ara co nd uzir esses
leito res, p ela esco la m as tam bém sem dúvida p o r
m últip las o utras vias, a enco ntrar o utras leituras. É
p reciso utilizar aquilo que a no rm a esco lar rejeita
co m o um sup o rte p ara dar acesso à leitura na sua
p lenitud e, isto é, ao enco ntro de texto s d enso s e
m ais cap az es d e transfo rm ar a v isão d o m und o , as
m aneiras d e sentir e d e p ensar.

V oltamos à p ro blem átic a de Rousseau, qu e p en sav a qu e todos os


m étodos de apren diz ag em da leitu ra eram bons. os ex tra-
escolares tanto qu an to os escolares.
O auto d id atism o à la Ro usseau sup õ e uma fam ilia­
rid ad e co m o m und o do livro e da cultura escrita.
Ro usseau lem bra co m o eram im p o rtantes, no m eio
g enebrino , a relação co m o s livro s da lo cad o ra de
livros, a ed u cação fam iliar ... N esse caso , a ap ren­
d izagem extra-esco lar rem ete a uma cultura escrita
já d o m inad a. Há um o utro m o d elo d e auto d id atis­
m o : aq uele da co nq uista d a cultura escrita a partir
d o analfabetism o e d o iletrism o . É o m o d elo que
fo i p o sto em ev id ência p o r Jean G o ulem o t e Jean
H ébrard a partir das M émoires d e Jam erey Duval,
um pasto r igno rante e iletrado que p ro gressivam ente
co nquista a cultura escrita para to rnar-se um d o s

104 A AVENTURA DO LIVRO


A leitura en tre a fa lt a e o excesso

Páginas se g uin tes.


p erso nag ens em inentes da Rep ública das letras das
Duas leitoras, a le m ã e russa, d o
século XIX. Suas p o s tu ra s são
Luzes. Jam erey Duval relacio na seu acesso à escri­
d ife re n te s (u m a pôs seu livro ta ao enco ntro , nas biblio tecas das ald eias, das fábu­
s o b re u m a m esa; a o u tra , s o b re
las ilustradas d e Eso p o e d o s livros da Bibliothèqu e
os jo e lh o s , s e g u in d o o te x to co m
o d e d o ), t a n t o q u a n to o lu g a r de Bleue. N esse caso , não se trata d e leituras ilícitas
le itu ra : n o severo in te rio r de casa o u d esap ro v ad as, m as d e leituras que ele co nq u is­
ou p e r to de u m b u q u ê de flo re s
ta v alend o -se das im ag ens p ara d ecifrar o texto . Os
de suave c o lo rid o . M as, para
a m b a s, a le itu ra é u m a to livros da Bibliothèqu e Bleue, p ela estrutura repetitiva
in te n s o , a b s o rv e n te , q u e p re n d e
d e sua co nstrução , p erm itiam um acesso mais fácil
c o m p le ta m e n te a a te n ç ã o .
ao escrito , ao co ntrário d o s texto s mais o riginais,
À e s q u e rd a , A n n a -M a ria mais singulares. D esse m o d o , eles p erm item a ap ro ­
Elisabeth J e rich a u -B a u m a n n ,
p riação ind ireta d a cultura escrita. Po rtanto tem o s,
Portrait d 'une jeune filie assise
de trois quart, c oiffée d'un d e um lad o , o s ensinam ento s da esco la e, de o u ­
b onnet roug e e lisant à une tro, to d as as ap rend izag ens fo ra da esco la, seja a
table, 1 8 6 3 . C o le çã o p a rtic u la r.
partir d e um a cultura escrita já d o m inad a p elo gru­
À d ire ita , A lexei A le x e ie v u its c h
H a rm a lo ff, Jeune filie lisant , p o so cial, seja p o r um a co nquista ind ivid ual, que é
1 8 7 8 . C o le çã o p a rtic u la r.
sem p re vivid a co m o um d istanciam ento frente ao
m eio fam iliar e so cial e, ao m esm o tem p o , co m o
um a entrad a em um m und o d iferente.

É apen as n a Eu ropa do sécu lo XIX qu e o Estado p reten de im por


a todos u m a apren diz ag em com u m sobre a qu al ele m an teria o
con trole. M as - su rp resa! - se olham os de perto seu discu rso
p erc ebem os qu e n essa o c asião as au toridades estav am tão
c ho c adas p e la possív el p ro liferaç ão dos leitores qu an to estão
hoje p ela su a suposta rarefação.
É p reciso v o ltar p ara antes d o século XIX. Leito res
d em ais, leitura d em ais. Estes são d o is tem as m uito
im p o rtantes na lo ng a d uração d as so cied ad es da
era m o d erna, a partir d o sécu lo XVI. Leito res d e­
mais: o tem a traduz o m o d elo estatal estático e fixista

A AVENTURA DO LIVRO 105


A leitura en tre a fa lt a e o excesso

da so cied ad e d o A ntigo Regim e, na qual o s filho s


d ev em co p iar o s p ais. O ra, o acesso à leitura e à
escrita lev a uma p o p u lação de co leg iais, e d ep o is
univ ersitário s, a aband o nar a terra, o u a lo ja, em
fav o r d o s o fício s da p ena e da p alavra. Tud o isso
co ntribui p ara que o s p o d eres e o s p o d ero so s v e­
jam nisso uma grand e d eso rd em so cial que enfra­
q ueceria o Estad o , já que, d esv iad o s d o s o fício s da
terra o u da m anufatura e em busca de cargo s e
b enefício s, o s leito res que se to rnam estud antes
d em asiad o num ero so s o brig am a im p o rtar d o es­
trangeiro aquilo que não mais se p ro d uz no país. E
a teo ria m ercantilista tem e, mais d o que tud o , o
esg o tam ento da riqueza m etálica d o reino , d ilap i­
d ad a p ara p agar as im p o rtaçõ es. É um im aginário
m uito fo rte, enraizad o nas c o n c ep ç õ es eco nô m i­
cas, que não c o n c eb e a o rd em so cial a não ser
co m o rep ro d ução id êntica d as co nd içõ es p assad as.

Esse discu rso v ai muito além do A ntigo Regime.


Ele persiste qu an do com eçam os g ran des deslocam en tos
hu m an os da in du strializ ação. C om para os riscos, p ar a o pov o,
en tre a m u ltiplicação das leitu ras e os perig os da u rban iz aç ão.
Em uma so cied ad e em que não existe m ais uma
hierarquia jurid icam ente co d ificad a d as o rd ens e
d o s estrato s so ciais, a abertura d em o crática p erm i­
te a m o bilid ad e so cial. Mas este id eal d em o crático ,
que abre p ara to d o ind ivíd uo a p o ssibilid ad e d e
entrar na esco la elem entar, vai ser aco m p anhad o
p o r uma estrita hierarquização d o s nív eis esco la-

1 08 A AVENTURA DO LIVRO
A leitura en tre a fa lt a e o excesso

res. A o m esm o tem p o que a ed u cação elem entar é


co nsid erad a necessária, o ensino secund ário , e a
fo rtio ri o univ ersitário , co ntinua um d o m ínio restri­
to, aberto ap enas a uma mino ria. O que cria um
p ro blem a para no ssas so cied ad es co ntem p o râneas,
quand o o ensino secund ário e d ep o is o universitá­
rio d errubam as barreiras para seu acesso , aco lhen­
do, d e go lp e, aqueles que não são mais herd eiro s -
para reto m ar o term o d e Bo urd ieu e d e Passero n.

Leitores dem ais, fala- s e hã m uito tempo. E se repete, ain da há


m ais tempo-, leitoras dem ais!
Em LÉcole desfem m es, A rno lp he entreg a a A gnes
as m áxim as d o casam ento que ele escrev eu: isto
su p õ e que existe um a m ulher leito ra. Mas ele se
ab o rrece am arg am ente p elo fato d e q u e ela ap ren­
d era a ler, o que p erm ite a A gnes dirigir bilhetes a
seu am ante. D urante m uito tem p o , a leitura das
m ulheres fo i subm etid a a um co ntro le que justifi­
cav a a m ed iação necessária d o clero , p o r tem o r
d as interp retaçõ es selv ag ens, sem garantia d o p o ­
der. Po d er-se-ia co m p arar esta o b sessão co m o
m ed o que a Ig reja sentia d iante da leitura da Bíblia
p o r to d o s o s cristão s. O p ró p rio Lutero, d esd e o s
ano s 1520, d ep o is d e ter d ad o a to d o s a Bíblia,
trad uzind o -a p ara o alem ão , tem um m o v im ento
d e recuo quand o p erceb e que ela suscita interp re­
taçõ es - a d o s anabatistas, p o r exem p lo - p o lítica e
so cialm ente p erig o sas. D aí o reto rno ao catecism o
e ao ensinam ento d o pasto r.

A AVENTURA DO LIVRO 109


A leitura en tre a fa lt a e o excesso

A té qu an do se estende este discurso defensivo, qu e ju lg a mais


perig osos os riscos da leitura do qu e v an tajosa a su a
A s estran has reações prov ocadas pelo aparecim en to do livro de
bolso, logo an tes e sobretu do depois da Segunda G u en a M undial,
n ão p oderiam ser com paradas à cen su ra e à v igilância dian te da
Biblio thèq ue Bleu e e dos livros de div ulgação?
D e fato , o m ed o d o ex c esso d e liv ro s é b astante
antig o . Enco ntram o -lo d esd e o tem p o em q u e a
p ro d u ção d o liv ro não tinha, aind a, a d im ensão
que terá no século X K o u no início d o XX. A mul­
tip licação d o s liv ro s é g arantid a, p rim eiro , p ela
inv enção d e G u tenberg , seg u nd o , no sécu lo XIX,
p ela ind ustrializ ação da ativ id ad e g ráfica e, e n ­
fim , no sécu lo XX, p ela m u ltip licação d as tirag ens
g raças ao s liv ro s d e b o lso . D iante d essa m ultip li­
c aç ão , há aq u eles q u e estão em c o n d iç õ es d e d o ­
m iná-la p o rq u e sua cultura e o s instru m ento s q u e
ela co nstruiu p erm item o rientar-se racio nalm ente
nesse m und o p ro lífico , e aq u eles q u e, c o m p leta­
m ente d esarm ad o s d iante d esta p ro fu são , faz em
as más esco lhas e são co m o que asfixiad o s o u afo ­
g ad o s p ela p ro d u ção escrita. Em sum a, eles lêem
aq u ilo q u e jam ais d ev eriam ter lid o . Po rtanto , a
id éia d a p ro liferaç ão d as leituras inco ntro lad as
and a d e m ão s d ad as co m a d a m u ltip licação d o s
leito res inco ntro láv eis.
O livro d e b o lso d eu um a no v a fo rm a a estas p u­
b licaçõ es p recárias, p o u co cuid ad as e p o u co cu s­
to sas que, d esd e o fim d o sécu lo XVI, eram d esti­
nad as àq u eles e àq uelas q u e não p o d iam o u não
queriam entrar nas livrarias. O co nju nto d essas c o ­
leçõ es, séries e b ib lio tecas eram v end id as p o r m as-

DO LIVRO
A p a r tir dos anos 1 8 3 0 , cates - o que não q uer d izer necessariam ente no
a p ro d u ç ã o d o livro e n tr o u em
cam p o . “Sem q ualid ad e”, estas o bras eram co nd e­
u m a nova era. A im p re ssã o ,
a fa b ric a ç ã o d o papel, a nad as ao d esd ém d o s letrad o s e ao d esap arecim en-
- *■

e n c a d e rn a ç ã o e d e p o is to . A m esm a co isa se d isse d o livro d e bo lso . A que­


a c o m p o s iç ã o fo r a m
in d u s tria liza d a s . Daí s u rg e m ,
les que o m eno sp rez av am o u tem iam exp ressav am
c o m o neste ca so e m Essen, sua no stalgia p o r uma fo rm a no bre d o livro e recea­
em 1 9 0 0 , v e rd a d e ira s fá b ric a s
v am a p erd a d e co ntro le so bre a cultura escrita,
de livros, q u e re ú n e m e m vastas
o fic in a s u m a s ig n ific a tiv a fo rç a ap o iad a em um co njunto d e d isp o sitiv o s, co m o o
de tra b a lh o . O ficin a s da e m p re s a co m entário o u a crítica, que p ro d uzem uma tria­
g rá fica e casa e d ito ra W . G irardet,
e m Essen, p e rto de 1 9 0 0 .
g em entre as d iferentes classes d e leito res e as di­
ferentes categ o rias d e leituras.
A leitura en tre a fa lt a e o excesso

Passad o o tem p o , em v ez d isso , o bserv a-se que o


livro d e b o lso acabo u m ultip licand o a leitura entre
aq ueles que já eram leito res, mais d o que co nd u ­
zind o à leitura aqueles que não estav am fam iliari­
zad o s co m a cultura d o s livro s. São o s texto s que
p ertencem ao corpus clássico d e texto s “leg ítim o s”
q u e enco ntraram p rim eiram ente um no v o d estino
co m o livro d e bo lso . Em seguid a, ele fo i o sup o rte
p ara o utro s tip o s d e literatura, co m o o s ro m ances
p o liciais, a co leção H arlequin, etc. Mas, na o rigem ,
o livro d e b o lso , co m o a Bibliothèqu e Bleu e , graças
a uma no v a fo rm a, mais acessív el e m eno s cara,
tinha co m o o bjetiv o lev ar a no v o s leito res aquilo
q u e tinha sid o p ublicad o para o utro s. D e fato , co m
a Bibliothèqu e Bleu e , uma v ez p assad a a p rim eira
fase d e d esap ro v ação , o livro d e b o lso to rno u-se
o bjeto d e co leção . É bem ced o , d esd e o século XVIII,
que ap arecem o s co lecio nad o res da Bibliothèqu e
Bleue. Enco ntram o s assim co leçõ es da Bibliothèqu e
Bleu e na Bib lio teca N acio nal, o rnad as d e so b erb as
encad ernaçõ es co m brasõ es da elite. Este o lhar aris­
to crático so bre um o b jeto p o p ular é uma p rim eira
m anifestação da atitud e que faz que se estim e e se
p ro cu re o s o b jeto s d ep reciad o s.

A s au toridades du ran te muito tempo atribu íram -se o p o d e r de


g u iar e selecion ar, a fam ília, a Ig reja - lem bre-se do sucesso
ex traordin ário do ab ad e Bethleem e de seus Livres à lire, livres
à p ro scrire a escola, e, n o seu prolon g am en to, o bibliotecário
pú blico, qu e é u m a ou tra fo rm a de m estre-escola. H oje se
p ro du z u m a ruptura. P or que, de repente, n en hu m a dessas

112 A AVENTURA DO LIVRO


A leitura en tre a fa lt a e o excesso

au toridades assu m e m ais o p ap el de selecion ar, de afastar ou


desacon selhar certas leituras? C omo se o p ân ic o dian te da
sobre a m issão p rim eira de
todos esses corpos constituídos.
Cada uma d as instituiçõ es m encio nad as, a esco la,
a Igreja, a família e a biblio teca, tem razõ es pró prias
que exp licam sua incerteza. Seria um p o u co ap res­
sad o co nsid erar que é p o ssív el inscrev ê-las em uma
m esm a p ersp ectiv a. No século XIX, o s três grand es
d iscurso s so bre a leitura, o da esco la, o da Igreja e o
da biblio teca - que co rresp o nd em a três co rp o s p ro ­
fissio nais, para falar co m o M ax W eber, o s pad res, os
p ro fesso res e o s biblio tecário s - , tinham co nteúd o s
d iferentes (a esco la rep ublicana e a Igreja ro m ana
não tinham a m esm a co n cep ção so bre o que era
b o m p ara ler). Mas é v erd ad e que elas usav am o s
m esm o s instrumento s para im p o r o corpus das o bras
e d ás p ráticas co nsid erad as legítimas. O s três dis­
curso s d e auto rid ad e d esagregaram -se, talvez p o r­
que o m und o so cial tenha se d istanciad o d as insti­
tuiçõ es que o s enunciam . Po r sua co m p lexid ad e,
sua im p rev isibilid ad e, p elo s cam inho s freq ü ente­
m ente enco berto s que to mam, as práticas de leitura
em ancip aram -se frente às o rd ens e no rm as - assim
co m o o fizeram as p ráticas sexuais.

A AVENTURA DO LIVRO 113


r

A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

D esde A lex andria, o son ho da biblioteca


universal ex cita as im aginações ocidentais.
C onfrontadas com a am bição de u m a bi- f

blioteca on de estivessem todos os textos e


todos os livros, as coleções reu n idas p o r
prín cipes ou p o r particu lares são apen as
u m a imagem m utilada e decepcion an te da
ordem do saber. O contraste fo i sentido
com o um a intensafru stração. Esta levou à \
constituição de acew os imenSos, à v onta­
de das conquistas e confiscos, a paix ões
bibliófilas e à heran ça de porções con side- y

ráveis do patrim ôn io escrito. Ela inspirou,


V

igualmente, a com pilação dessas “bibliote­


cas sem p aredes” qu e são os catálogos, as
coletân eas e coleções qu e se preten dem p a ­
liativos à im possibilidade da u n iv ersalida­
P in ta d o p o r Carl S p itz w e g ,
de, oferecen do ao leitor inv entários e an to­
este á v id o leitor, q u e a c u m u lo u
os livros n u m a im p re s s io n a n te logias. Com o texto eletrônico, a biblioteca
»
b ib lio te c a e q u e segura q u a tr o
a o m e s m o t e m p o (u m e m cada univ ersal torna-se im ag in áv el (sen ão p o s­
sível) sem que, p ara isso, todos os livros es­
m ã o , u m sob o b ra ç o e u m o u t r o
preso e n tre as pernas), m a n ife s ta
a in q u ie ta n te v e r tig e m criada tejam reu n idos em um ú n ico lugar. P ela
pela p ro life ra ç ã o d o escrito, a
p a ixã o de a c u m u la r prim eira vez, n a história da hu m an idade,
a con tradição entre o m undo fec hado das
e a obsessão da leitura.
Carl S p itz w e g , Le ra t de
b ib liothèq ue , cerca de 1 8 5 0 . coleções e o universo infinito do escrito p er­
S c h w e in fu rt, c o le ç ã o
G e o rg Schaefer. de seu caráter inelutável.

A AVENTURA DO LIVRO 117


A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

É p rec iso perg u n tar-se ag o ra de qu e m an eira o leitor arm az en a


textos. Q u an do son ha com u m a biblioteca ideal, o seu desejo é
v er reu n ido o m áx im o de con hecim en tos em um espaço
delim itado. A ssim n asceu o mito de A lex an dria.
Em A lexandria, o texto se ap resentav a aind a so b a
fo rm a de ro lo s. Co m mais de quinhento s mil ro lo s, a
biblio teca d e A lexand ria d ispunha, d e fato, d e um
núm ero d e o bras muito m eno s significativo , já que
uma o bra p o d ia o cupar, so zinha, dez, vinte, até trin­
ta ro lo s. O catálo go da biblio teca era co nstituíd o de
cento e vinte ro lo s. É p o ssív el imaginar as o p era­
çõ es manuais que a busca d o universal exigia.

N a su a origem, à qu al v ocê está estreitam en te associado, a


Biblioteca da Fran ça, an tes qu e se torn asse Biblioteca N acion al
da Fran ça, p reten dia n ada m en os qu e restabelecer o g ran de
projeto de A lex an dria.
O p ro jeto era o rientad o p o r uma v isão d o m und o ,
uma id éia d o p ro g resso , que buscav a o ferecer a
to d o ind iv íd uo aquilo que p o d eria to rnar m ais p o ­
tente o seu o lhar so b re si m esm o e so b re o m und o .
O centro d o p ro jeto inicial resid ia na co m u nicação
à d istância d e texto s transfo rm ad o s, num erad o s e
co nvertid o s em texto s eletrô nico s. Co m o a biblio teca
se id entificav a co m a red e que p erm itiria a co m u ­
nicação d e texto s eletrô nico s, a questão d e sua co ns­
trução era d e im p o rtância ap enas sim bó lica.

M esmo assim, fo i n ecessário determ in ar su a im plan tação,


p o rqu e u m a g ran de biblioteca do fu tu ro n ão p o d ia prom ov er
ap en as o m odo de leitu ra qu e se su pu n ha ser o do fu tu ro, m as
satisfaz er tam bém as outras dem an das de leitura.

1 18 A AVENTURA DO LIVRO
A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

Era necessário p rep arar, co m efeito , a biblio teca


im aterial e ao m esm o tem p o ap ro xim ar as leituras
d e estud io so s da Bib lio teca N acio nal da leitura p ú­
blica à m aneira ang lo -saxô nica. Um leito r p ro fissio ­
nal p o d e ter grand e p razer em p eram bular em uma
b ib lio teca p ública, aberta, co m livre acesso às p ra­
teleiras, e, d esse m o d o , circular no m eio d aquilo
que é o ferecid o . Nas b iblio tecas d e p esquisa, tais
co m o as que existem na França, v o cê so m ente en ­
co ntra o s livro s que são p ro curad o s. Na b ib lio teca
p ública, v o cê d ev e enco ntrar livro s que não p ro cu ­
ra, co m o se fo ssem eles que o p ro curassem . A bi­
b lio teca eletrô nica p erm ite, p o r sua v ez, co m p arti­
lhar aquilo que até ago ra era o ferecid o ap enas em
esp aço s o nd e o leito r e o livro d ev eriam necessaria­
m ente estar junto s. O lugar d o texto e d o leito r
p o d em então estar sep arad o s.

No fu n do , essa sep araç ão en tre o tex to e o leitor é m ais


fac ilm en te con cebív el do qu e a ju n ç ão , ou sim plesm ente a
c o lo c aç ão em um m esm o lugar, das diferen tes categ orias de
leitores: pesqu isadores e curiosos, silen ciosos e falan tes.
A co existência p o d e ser regulad a p ela d isp o sição
arquitetural, que d ev e p o ssibilitar a co nv iv ência,
em bo a harm o nia, d e vário s tip o s d e leitura. O s
p rim eiro s texto s que im p unham silêncio nas b ib lio ­
tecas não d atam senão d o s sécu lo s XIII e XIV. É
ap enas nesse m o m ento que, entre o s leito res, c o ­
m eçam a ser num ero so s aq ueles que p o d em ler
sem murmurar, sem “rum inar”, sem ler em v o z alta
p ara eles m esm o s a fim d e co m p reend er o texto .

A AVENTURA DO LIVRO 1 19
A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

No suave c o n f o r to de u m in te rio r
Os reg ulam ento s reco nhecem esta no v a no rm a e a
b u rg u ê s , a leitora e n la n g u e s c id a
p re fe riu os ro m a n c e s em im p õ em àq ueles que não teriam aind a interio rizad o
b ro c h u ra (u m está a b e r to no a p rática silencio sa da leitura. Po d e-se então sup o r
chão, c o m o se a le itu ra tivesse
sido in te r r o m p id a e o o u t r o é
que antes, nas scriptoria m o násticas o u nas b ib lio ­
s e g u ro pela sua m ã o e s q u e rd a ) tecas das p rim eiras univ ersid ad es, o uv ia-se um ru­
em vez d a q u e le s e n c a d e rn a d o s
mor, p ro d uzid o p o r essas leituras murmurad as, que
da e s ta n te , b e m a rru m a d o s mas
sem d ú v id a p o u c o lidos. o s latino s cham av am d e rum inatio. O silêncio é
G e o rg e s C ro e g a e rt (n a scid o em
uma co nquista reco lo cad a em questão ho je. O p ro ­
1 8 4 8 ), Heures de loisirs, início d o
século XIX. C o le çã o p a rtic u la r. blem a se p õ e to d as as v ez es que uma p rática cu l­
tural ganha aqueles que não tenham sid o fo rmad o s,
p o r trad ição familiar o u so cial, a recebê-la nas co n­
d içõ es que ela exig e. O cinem a é bem sinto m ático
d essa v isão . Há ho je, nas salas d e cinem a, muito s
esp ectad o res que reagem co m o se estiv essem diante
d e sua telev isão . Eles falam, co m unicam -se, co m en­
tam, co m o se a sala fo sse um lugar em que o silên­
cio não se im p usesse. Enquanto p ara o utro s esp ec­
tad o res, habituad o s a um a o utra m aneira d e ser, o
silêncio é um a co nd ição necessária d o p razer cine­
m ato g ráfico .

A su a p reo c u p aç ão é fa z e r com qu e se abram , u m a à outra, a


tradição da leitu ra do estudioso e a tradição da leitura p ú blic a.
Sim, m as a d ificuld ad e na França resid e na fragili­
d ad e d esta última. Talv ez tenha hav id o em no sso
p aís uma id ad e d e o uro d o cato licism o , d ep o is da
Rev o lução , o u uma id ad e d e o uro da esco la rep u ­
blicana, entre 1870 e 1914. Em co ntrap artid a, ja­
m ais ho uv e id ad e de o uro das biblio tecas p úblicas,
d iferentem ente d o q u e se p asso u na Ing laterra

A AVENTURA DO LIVRO 121


A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

v ito riana o u, mais tarde, no m und o ang lo -saxào ,


estend id o até o s Estad o s Unid o s, a Nova Z elând ia
e a A ustrália.

P or qu e esta ex c eç ão fran c esa?


A p u blic library no s Estad o s Unid o s, co m suas
raíz es ing lesas d o séc u lo XVIII, era. no sécu lo XIX,
um a instituição central da co m u nid ad e urbana, e
^ /

seus fo rtes v estíg io s p o d em ser v isto s em to d as as


g rand es cid ad es am ericanas. A N ew York P u blic
Library é tão im p o rtante q u anto a b ib lio teca d o
Co ngresso o u a de Harvard. Uma exp licação simpli­
ficad a co nsiste em relacio nar esta instituição co m
O

um a cultura p ro testante d o livro . Sem d úvid a isto


co nta. Mas não exp lica tud o . Talv ez ela esteja li­
g ad a à intensid ad e d a cultura co m unitária. Esta
últim a se fo rtaleceu nas so cied ad es d e leitura, nas
su bscription libraries o u no s book. clubs. São b i­
b lio tecas m o ntad as p o r ind iv íd uo s q u e se reú nem
p ara co tizar, co m p rar livro s a fim d e co nstituir uma
b ib lio te c a. o u rev end er as o bras ao cab o d e um
ano , co m o no s bo o k clubs.
Esta fo rte cultura co m u nitária, q u e se m o ld o u no
interio r d o s d iferentes p ro testantism o s, ing leses
o u am ericano s, jam ais existiu na so cied ad e fran­
cesa: esta sem p re tev e um a estrutura m ais v erti­
cal, m ais hierárq u ica, em q u e o p eso d a au to ri­
d ad e é m ais fo rte d o q u e a iniciativ a co letiv a.
Talv ez resid a aí um a chav e m ais fu nd am ental q u e
a chav e relig io sa.

122 A AVENTURA DO LIVRO


A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

M esmo qu e a Fran ç a n ão ten ha p ublic libraries com o outros


países, ela tem u m a história, u m a ideolog ia, u m a p o lític a da
leitu ra p ú blic a.
Sim, e uma histó ria m arcad a p o r d o is m o m ento s
im p o rtantes. O p rim eiro nasce da co nstatação , en ­
tre 1850-1870, da incap acid ad e d as b iblio tecas m u­
nicip ais (cu jo s acerv o s tinham sid o co nsid erav el­
m ente am p liad o s p elo s co nfisco s rev o lucio nário s)
no sentid o d e assegurar a leitura co m o uma ativida­
de p ública. Talvez eu esteja fazend o uma caricatura,
mas estas biblio tecas ficavam ap enas entreabertas,
em p o eirad as; eram, afinal, d ep ó sito s inertes. Po r
isso surgem as biblio tecas da So cied ad e Franklin,
d a Liga d o Ensino , d o s A m igo s da Instrução Públi­
ca, que p ro curam , tanto p elo s o bjetiv o s d e sua aber­
tura quanto p elo s acerv o s o ferecid o s, cum p rir a
fu nção d e b ib lio tecas p úblicas, p o p ulares, abertas
àq ueles que não o usam o u não q uerem atrav essar
as p o rtas da b ib lio teca m unicip al.
O seg und o m o m ento o co rre d ep o is da Prim eira
Guerra M und ial, a ap licação d o m o d elo am erica­
no : a leitura p ública sup õ e que a b ib lio teca saia de
seus m uro s, vá ao enco ntro d o s leito res, co m os
ô nibu s-biblio tecas, as biblio tecas circulantes insta­
lad as no s bairro s, as b iblio tecas nas em p resas. O s
resultad o s fo ram b em co ncreto s, aind a que tenha
hav id o uma certa d ecep ção quanto à transfo rm a­
ção d as p ráticas d e leitura. É um m o v im ento cuja
insp iração co ntinua send o m uito útil. N este m es­
m o m o m ento em que estam o s co nv ersand o , está

A AVENTURA DO LIVRO 123


A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

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U m a re p re se n ta çã o idealizada de o co rrend o um a rev o lução técnica, co m o que ela


u m a bib lio te ca a n tig a . Os livros,
dispostos e m o rd e m , conservados
tem d e p ro m isso r e d e tem erário . É p o r isso que se
c o m o e m u m te s o u ro , são d ev e co nservar, no interio r d o d ebate so bre a biblio ­
m o s tra d o s sem n e n h u m realism o,
d ife re n te m e n te d o m a n u s c rito teca eletrô nica, senão as fó rm ulas o u o s instrum en­
s e g u ro pelo p e rs o n a g e m à direita.
to s da leitura p ública, ao m eno s o esp írito que ela
M in ia tu ra extraída d o Roman de
/

Troie, de B enevoit de Sainte p o ssuía.


M o r e /s é c u lo XV. Paris, Biblioteca
N acional

Em Une jeunesse allem and e, Golo M ann, filh o de Thomas,


descrev e os an os 2 0 com o os últimos an os em qu e os acadêm icos
p o diam p en sar em colecion ar em su as vastas bibliotecas todos os
con hecim en tos de qu e tin ham n ecessidade. D epois, os próprios
acadêm icos tiveram de participar da leitura pú blica.
Esta id éia d o fim d o século XIX e início d o XX,
segund o a qual se p o d ia abraçar, em uma área esp e-

124 A AVENTURA DO LIVRO


A biblioteca en tre retin ir e dispersar

Na B ib lio te ca p ú b lica de cífica d o saber, to d as as p u b licaçõ es fund am entais


in fo r m a ç ã o d o C e n tro G eorges-
P o m p id o u , o e n c o n tr o e n tre os
e p o rtanto , em certo sentid o , d o m inar e instalar em
livros e as telas, a p ro x im id a d e casa este co nhecim ento exaustiv o , se d esfez co m o
e n tre as d ife re n te s m ídias. M as,
ig u a lm e n te , a s e p a ra ç ã o ainda crescim ento d o núm ero d e p ro fesso res, a p ro life­
c o n s e rv a d a e n tre o escrito, lido
ração d e revistas, a m ultip licação das p esquisas. A
n o livro, o p e rió d ic o o u o jo rn a í,
e a tela, d e d ic a d a à im a g e m p o sse p articular d o saber to rna-se im p o ssív el e en ­
s o n o ra d o c in e m a ou d o vídeo.
A m a n h ã , ou a in da hoje, a
tram o s na era, talvez p articularm ente inquietante
m u ltim íd ia p ro m e te o u tra coisa: p ara o trabalho intelectual, d o d esco nhecim ento
n o m e s m o s u p o rte , a re ce p çã o
d o te x to , da im a g e m e d o som .
fo rçad o . Salv o se red uzirm o s d rasticam ente no sso
d o m ínio d e esp ecializ ação , ao qual o m o d elo anti­
g o p o d e ser aind a transp o sto . D esd e q u e este seja
d im ensio nad o mais am p lam ente, as bib lio tecas, se­
jam elas nacio nais, p úblicas o u universitárias, to r­
nam -se um recurso abso lutam ente ind isp ensáv el,

A AVENTURA DO LIVRO 125


A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

e guias, recurso s, instrum ento s d ev em ser inv enta­


d o s para limitar as inev itáv eis p erd as.

A parece en tão u m a outra im ag em da biblioteca. D e lu g ar de


proteção, de receptácu lo da etern idade qu e era, eis qu e ela se
torn a inv asora, am eaç ado ra, in con troláv el.
O tem a da crise d o livro ligad a à sup erp ro d ução
ap arece d esd e a seg und a rev o lução ind ustrial d o
livro , no século XIX, a d o s ano s 1860-1870, quand o
se aband o na a co m p o sição m anual d e G utenberg
p ara p assar à era d o m o no tip o e d ep o is à d o lino -
tip o . O aum ento das tiragens, o crescim ento da
p ro d ução im p ressa, sem falar da p ro d ução d o jo r­
nal e a m ultip licação d o s p erió d ico s e revistas, aco m ­
p anham esta m utação técnica. D ev e-se no tar que a
p rim eira rev o lução da ind ustrialização do livro, d o s
ano s 1820-1830, que é um a ind ustrialização da im­
p ressão , não tinha o rig inad o o s m esm o s fenô m e­
no s. As tiragens não cresceram significativ am ente
antes d e 1860. O núm ero d e título s p ublicad o s au­
m enta a cad a ano , m as não em p ro p o rçõ es co nsi­
d eráv eis. Se se co nsid erar que no fim d o A ntigo
Reg im e havia entre três o u quatro mil título s p ubli­
cad o s na França, ating e-se seis o u o ito mil título s
em 1860. É d ep o is d esta data que o crescim ento
muda d e escala. Po rtanto , entre 1910 e 1914, é que
surge o tem a d e uma crise d e sup erp ro d ução . Já se
discutia a id éia de haver livros d emais co m relação à
cap acid ad e d o s leito res. Muitas casas d e ed ição fali­
ram naquele m o m ento , o que d eixo u esp aço aberto
p ara as grand es casas p ublicad o ras d o século XX,

1 2 6 A AVENTURA DO LIVRO
A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

que ainda são, em parte,, aquelas que conhecem os.


E ncontram os assim, nas discussões sobre o exces­
so da p ro d u çã o im pressa, a idéia de que livro s de­
mais é algo que po de ser perigoso ou in ú til para a
constituição d o p ró p rio saber, que supõe escolhas
e triagens.

Um bom leitor é alguém qu e evita um certo n úm ero de livros,


um bom bibliotecário é um ja r d in eir o qu e p od a sua-biblioteca,
um bom arquivista selecion a aquilo qu e se deve refugar ao
invés d e arm azen ar. Eis a í tem as inéditos de nossa época.
Sim. A presença do escrito nas sociedades co n tem ­
porâneas é ta l que ela supera toda capacidade de
conservação, m esm o para a m a io r b ib lio te ca do
m u n d o , que é a d o Congresso dos Estados U nidos,
que seleciona e envia a outras bibliotecas os m ate­
riais que não p o d e aceitar. Aliás, é preciso pensar
não apenas nos livros, mas tam bém em todos os
m ateriais im pressos. Q u a lq ue r u m po de fazer a e x­
periência, observando quantos m ateriais im pressos
chegam na sua caixa de correio. In d o para além
desta m odesta experiência para a dim ensão da p ro ­
dução im pressa, quaisquer que sejam esses m ate­
riais, percebe-se a necessidade absoluta da triagem ,
para a gestão, a organização, o p ró p rio d o m ín io da
conservação desta p rodução. Face a esta p ro life ra ­
ção, mais um a vez um a resposta fo i procurada do
lado da eletrônica. A p a rtir do m o m en to em que se
transform a um a revista, u m p e rió d ico , u m liv ro em
um te xto e le trô n ico acessível em um a tela, p ro p a ­
gado pela rede, parece que se po de dispensar a

A AVENTURA DO LIVRO 127


A biblioteca en tre r eu n ir e dispersar

Ler e m c o m p a n h ia , m e s m o co nserv ação do o bjeto o riginal, já que o texto , de


q u a n d o em silêncio,
qualquer m o d o , subsiste.
é e s ta b e le c e r c u m p lic id a d e
e co n ivê n c ia a p a r tir d o te x to . O s histo riad o res d o livro (co m o eu) estão , no en­
As d u a s irm ãs de R enoir
tanto , m uito p reo cup ad o s co m essa ev o lução . Co m
m o s tra m o p ra ze r im o r r e d o u r o
de c o m p a r tilh a r o livro, em
efeito , a fo rm a d o o b jeto escrito d irige sem p re o
u m a é p o ca e m q u e a le itu ra sentid o que o s leito res p o d em dar àquilo que lêem .
so litá ria se t o r n o u a n o rm a
Ler um artigo em um b anco de d ad o s eletrô nico ,
e sco la r e social,
A u g u s te Renoir, Les deux soeu rs, sem saber nad a da revista na qual fo i p ublicad o ,
1 8 8 9 . C o le çã o p a rticu la r. nem d o s artigo s que o aco m p anham , e ler o "m es­
m o ” artigo no núm ero da revista na qual ap areceu,
não é a m esm a exp eriência. O sentid o que o leito r
co nstró i, no seg und o caso , d ep end e d e elem ento s
que não estão p resentes no p ró p rio artigo, mas que
dep en dem do conjunto dos texto s reunid o s em um
m esm o núm ero e d o p ro jeto intelectual e ed ito rial
da revista o u do jo rnal. Às v ez es, a p ro liferação d o
univ erso textual acabo u p o r lev ar ao g esto da d es­
truição , quand o d ev ia ser co nsid erad a a exig ência
da co nserv ação .

128 A AVENTURA DO LIVRO


0 n u m é ric o como sonho de universal

Os hom ens do século XVIII viam a circu la­


ç ão do escrito com o a própria con dição do
progresso das Luzes. G raças a ela, todos
estão em ig u aldade p ar a ju lg ar as institui­
ções e opiniões e subm eter à discussão co­
mum suas próprias idéias. Um novo espaço
crítico e político n asce desse ex ercício p ú ­
blico da raz ão pelas pessoas priv adas. A
com u n icação à distância, livre e im edia­
ta, p rop iciada pelas redes eletrônicas, dá
um novo alen to a este sonho, em qu e toda
a hu m an idade participaria do in tercâm ­
bio dos ju lg am en tos. M as estefu tu ro possí­
vel n ão está inelutav elmente inscrito n as
m utações da técnica. Estaspodem delin ear
um fu tu ro bem diferente, no qu al com u ­
n idades separadas, ou indiv íduos isolados,
n ão m ais com partilharão qu alqu er refe­
rência comum. Assim, ao universal, prometi­
do pelo intercâm bio dos saberes e in form a­
0 livro, s o b r e tu d o q u a n d o é ções, opõe-se a ju staposição de identidades
a n tig o , ilu s tra d o e pre cio so ,
fig u r a fr e q ü e n te m e n te e n tre os
singulares, v oltadas p ara as suas diferen ­
o b je to s q u e os c o le c io n a d o re s
ças. Portanto, refletir sobre as revoluções do
c o n s id e ra m c o m o raridades. Ele
p a rtic ip a d o in v e n tá rio d o m u n d o livro e, mais amplamente, sobre os usos da
e indica, ta m b é m , a e fe m e rid a d e
escrita, é ex am in ar a tensão fu n dam en tal
das coisas.
Jan van d e r H eyden, Coin de qu e atravessa o m undo contemporâneo, di­
pièce avec curiosités, século XVII.
B u d a p e st, S zé p m ü vé szé ti
lacerado entre a afirm aç ão das particu la­
M uzeum . ridades e o desejo de universal.

A AVENTURA DO LIVRO 133


0 n u m é ric o como sonho de universal

Com o tex to eletrôn ico, enfim , p ar e c e estar ao alc an c e de nossos


olhos e de nossas m ãos um son ho muito an tig o da
hu m an idade, qu e se p o deria resu m ir em du as palav ras,
u n iv ersalidade e in terativ idade.
A s Luzes, que p ensav am que G utenberg tinha p ro ­
p iciad o ao s ho m ens uma p ro m essa d e univ ersal,
cultiv avam um m o d o d e uto p ia. Elas im aginav am
p o d er, a partir d as p ráticas privad as d e cad a um,
co nstruir um esp aço d e intercâm bio crítico das idéias
e o p iniõ es. O so nho d e Kant era que cad a um fo s­
se ao m esm o tem p o leito r e autor, que em itisse
juízo s so b re as instituiçõ es d e seu tem p o , quais­
q u er que elas fo ssem e que, ao m esm o tem p o ,
p ud esse refletir so b re o juízo em itid o p elo s o utro s.
A quilo q u e o utro ra só era p erm itid o p ela co m u ni­
cação m anuscrita o u a circulação d o s im p resso s
enco ntra ho je um sup o rte p o d ero so co m o texto
eletrô nico .

P rim eiro ex em plo de aplicaç ão, tom ado de um tipo de


em preen dim en to c aro às Luzes.- a en ciclopédia.
A quilo que está em jo g o em to d o em p reend im ento
enciclo p éd ico dá um a fo rça p articular ao texto ele­
trô nico . Pela p rim eira vez, no m esm o sup o rte, o
texto , a im ag em e o so m p o d em ser co nserv ad o s e
transm itid o s. Im ed iatam ente, to d a a realid ad e d o
m und o sensív el p o d e ser ap reend id a através de
d iferentes figuras, d e sua d escrição , d e sua rep re­
sentação o u d e sua p resença. Existe aí uma fo rça
p ró p ria d a míd ia eletrô nica p ara o p ro jeto enci-

DO LIVRO
0 n u m é ric o como sonho de universal

No sé cu lo XVIII, n u m e ro s a s são
as e d içõ e s fin a n c ia d a s p o r 4 s, t f
SV-gj
l ^ *j-Fi M ‘V» ^ '*V"í ^
' Ci « s, y !t r ' v'

ío f#i
» .V -

subscrição. Isso ta m b é m o c o rre c ru ;


r ‘^ w
3 & J i !

n?,-* * r«l >


«?
c o m o g ra n d e e m p r e e n d im e n to :gjj í i ã ] ! õ j 2 s\ < èl £•d í!í: J\ •■'úy j iÇl ”1[Ü
í Ü S A:íl'
------•i i^ r •, .. , „ r. ^ . »

filo s ó fic o d o século, c o n d u z id o


p o r D id e ro t e d 'A le m b e r t e
p u b lic a d o p o r u m c o n s ó rcio de
PECTUS D E
livreiros parisienses. O p ro s p e c to ,
d irig id o aos e ve n tu a is
c o m p ra d o re s , a n u n c ia "p e lo
'CLOPEDIE, O
m e n o s " o ito v o lu m e s (ao fin a l, 0 17

DU D ÍCTIO N N A IRE
se rã o dezessete) e seiscentas
p ra n c h a s (em o n z e v o lu m e s ).
A p e s a r das d ific u ld a d e s e das RAt S ÒNKÉ
censuras, e m suas seis d ife re n te s í) ES S C I E N C E S , D ES A RT S
è

e d ições, a o b ra , p u b lic a d a d e n tr o
e fo ra d o reino, será u m best- ET DES MÉTIERS.
seller, c o m p e r to de 2 5 m il *Oü P^.RACE quç nons annonçons *
e x e m p la re s . C o le tâ n e a das o b ra s ■ j$ %| «’<?/?/>/«$ un fíuvrags àfaire. Le Manuf-
^

0 j\ crit & les D efféin s cn fo n t com pltts. N o u s


filo s ó fic a s de D id e ro t, Londres, 1 ^ 4 2 = 2 » ’-^^ p o u v o n s affu rer q u il r i au ra p a i m o in i
1 7 7 3 . C o le çã o p a rtic u la r. 'de huit V-ilames, &deJix cens Planches,
'<£* quz les P^olurmsfs fuccidcront fans interrUp:ionm
Á p rès av o ir info rm e le Pu b lic d e Fé tat p réfen t
4e T En c y c lo p e d ik , ÒC
d e Ia d iligen.ee q u e n o u s

O tn.o t 'Encychpéâit íig n ííie e n c h aín e m e n t d es Sc i« n»


ces.Il eíl compofé de lv en , yjvxAQí u r d e , &de TreuSítà
inilimàon ou feien ce. Ceux qui ont prétendu que cet Ou-
Tvmt L A

clo p éd ico . Na m esm a p ro p o rção , no sup o rte e le ­


trô nico , p o d e-se enco ntrar um a trad ução da ins­
p iração q ue caracteriz o u o s g rand es p ro jeto s en ­
ciclo p éd ico s: to rna-se p o ssív el a d isp o nibilid ad e
univ ersal d as p alav ras enunciad as e das co isas re­
p resentad as.
A lém d isso , no s p ro jeto s enciclo p éd ico s, havia a
id éia d a o rg anização , da classificação e da o rd em .
Tam bém aí, graças ao s instrum ento s de p esquisa
existentes no s texto s, nas im agens o u no s so ns ele-

A AVENTURA DO LIVRO 135


0 n u m é ric o como sonho de universal

U m a Bíblia im ensa, irreal, m a io r


trô nico s, estas fu nçõ es são b em mais seguras que
q u e o m a io r dos in -fo lio , exaíta a
fo rç a da Palavra de Deus. No aquelas dos livros d e o rd em co m um da Renascença
claro-escuro d o q u a d ro de o u d as árv o res enciclo p éd icas co m o a que abre o
R e m b ra n d t, ela é a luz viva que,
pela m e d ia ç ã o d o s a p ó s to lo s “Tableau cies co nnaissances” na En ciclopédia d e
(Paulo, neste caso), ilu m in a cada D id ero t e D ’A lem bert. Um no v o recurso técnico dá
fie l e to d a a c ris ta n d a d e .
R e m b ra n d t (1 6 0 6 -1 6 6 9 ), O
um a resp o sta p o d ero sa a p ro blem as antes d ifíceis
ap óstolo Paulo, cerca de 16 3 0 . d e reso lv er. A enciclo p éd ia está d e aco rd o co m a
V ie n a , K u n sth isto risch e s
M useum .
rev o lução eletrô nica, bem mais q u e o utro s tip o s
d e texto s, p ara o s quais se p o d e p ensar que p er­
m aneçam ligado s à co m unicação p elo livro impresso
e ao s g esto s que ele sup õ e.

Segundo ex em plo, sem pre ex traído das fo r m as m ais c aras ao


sécu lo XVIII: a rev ista ou a g az eta, qu e hoje se c ham a jo rn al.
Certo , p ara as p u b licaçõ es co tid ianas o u sem anais,
m antém -se sem p re um a ed ição em p ap el, que é o
p ró p rio jo rnal, mas, para certas revistas, esta ed i­
ção não existe mais. A co m p o sição na tela, a trans­
m issão ao leitor, a recep ção , a leitura e o arm azena­
m ento na m em ó ria info rm ática são efetuad as sem
que em nenhum m o m ento haja inscrição em p a­
p el: isto se to rna uma realid ad e na m icro -ed ição e
nad a no s im p ed e d e p ensar q u e um dia se g enera­
lize. Eu co lab o ro em Le M onde, que é sem p re, ev i­
d entem ente, um jo rnal im p resso em p ap el. Mas,
uma v ez que o s artigo s são escrito s em co m p u ta­
dor, d ep o is transm itid o s à m em ó ria eletrô nica d o
jo rnal e, a partir d esta m em ó ria, im p resso s em v á­
rias centenas d e m ilhares d e exem p lares, p o r que
não p ensar que um dia esta co m p o sição eletrô nica

A AVENTURA DO LIVRO 137


0 n u m é ric o como sonho de universal

d o jo rnal seja d iretam ente recebid a e lida em uma


tela, ao m eno s p o r uma p arte d o s leito res?

O leitor de um artigo de R oger C hartier está sujeito a n ão ter

com o tex to n o m eio de toda u m a m atéria impressa.


Efetiv am ente, m esm o que seja exatam ente a m es­
ma m atéria ed ito rial a fo rnecid a eletro nicam ente, a
o rg aniz ação e a estrutura da recep ção são d iferen­
tes, na m ed id a em que a p ag inação do o b jeto im­
p resso é d iversa da o rg anização permitid a p ela c o n ­
sulta d o s banco s d e d ad o s info rm ático s. A d iferença
p o d e d eco rrer d e uma d ecisão d o ed ito r, que, em
um a era d e co m p lem entarid ad e, d e co m p atib i­
lid ad e o u d e co nco rrência d o s sup o rtes, p o d e v i­
sar co m isso d iferentes p ú b lico s e d iv ersas leitu­
ras. A d iferença p o d e tam bém estar ligad a, mais
fu nd am entalm ente, ao efeito sig nificativ o p ro d u ­
z id o p ela fo rm a. Um ro m ance d e Balz ac p o d e ser
d iferente, sem que uma linha d o texto tenha m u­
d ad o , caso ele seja p ublicad o em um fo lhetim , em
um livro p ara o s g abinetes d e leitura, o u junto co m
o utro s ro m ances, incluíd o em um v o lum e d e o bras
co m p letas.

M al ac ab a de nascer, eis qu e o sol da u n iv ersalidade se


escon de!
Tanto mais que a uto p ia d o univ ersal é o nerad a
p o r um seg und o m al-entend id o que C o nd o rcet já
ap o ntav a, quand o , no século XVIII, falav a d o s limi-

1 3 8 A AVENTURA DO LIVRO
0 n u m é ric o como sonho de universal

tes da co m unicação impressa: trata-se da pluralid ad e


das línguas. N enhum leito r - m esm o Dumézil - p o ­
d erá jam ais d o m inar a to talid ad e d as líng uas n e­
cessárias p ara ter acesso à univ ersalid ad e d o p atri­
m ô nio escrito . O p ro jeto da língua univ ersal fo i
ab and o nad o , tanto o d as líng uas fo rm ais d o séc u ­
lo XVII (d e Leibniz a C o nd o rcet, im ag inav a-se uma
líng ua univ ersal cap az d e fo rm alizar o s p ro ced i­
m ento s d o p ensam ento ) q uanto o d as líng uas in­
v entad as no sécu lo XIX, d as quais o esp eranto
não era senão um a das muitas p ro p o stas. Persiste
p o rtanto um limite intransp o nív el para a realização
d o univ ersal.
Um o utro o bstácu lo aind a. A cultura im p ressa - e,
antes d ela, a cultura m anuscrita - p ro d uziu tria­
Página s e g u in te . g ens, hierarquias, asso ciaçõ es entre fo rm ato s, g ê­
Em u m país p ro te s ta n te , no
nero s e leituras; p o d e-se sup o r que, na cultura que
século XIX, u m a re p re s e n ta ç ã o
ideal da le itu ra bíblica. Frente a
lhe será co m p lem entar o u co nco rrente p o r num e­
fr e n te , o pai de fa m ília , q u e ro so s d ecênio s, isto é, o texto eletrô nico , o s m es­
re u n iu e m t o r n o de si to d o s os
m o s p ro cesso s estejam em funcio nam ento . Tam ­
p a re n te s , e o p a s to r q u e explica
o te x to s a g ra d o . A o f u n d o , na b ém este o utro m und o v ai frag m entar-se seg und o
s o m b ra , os serviçais. Duas
p ro cesso s d e d iferenciação o u d e d iv ulg ação que
g ra n d e s bíblias, a d o p re g a d o r e
a d o d o n o da casa - e u m a não and am no m esm o p asso e não têm as m esm as
m e n o r, e n tre as m ã o s da jo v e m , fo rm as co nfo rm e o s d iferentes co ntexto s. Uma das
à e sq u e rd a . Cada u m , na
d ificuld ad es p ara p ensar esse fenô m eno é que o
re u n iã o , re ce b e a palavra d ivin a ,
lida ou o u v id a . M e s m o a criança, m o d o co m o im aginam o s o futuro co ntinua sem p re
q u e parece desligar-se, c o m ela
d ep end end o d aquilo que co nhecem o s; o que faz
se fa m ilia riz a , fo lh e a n d o , n o
ch ã o , a q u ilo q u e parece ser u m a q ue, p ara nó s, a cultura d o texto eletrô nico seja
bíblia ilu stra d a . fo rço sam ente um m und o d e telas. É o co m p utad o r
H en ri V a lk e n b e rg , Dimanche
après-midi dans 1'arrière pays,
tal co m o o co nhecem o s, são o s p o sto s d e co nsulta
1 8 8 3 . C o le çã o p a rtic u la r d o s texto s eletrô nico s nas b iblio tecas o u em um

A AVENTURA DO LIVRO 1 3 9
0 n u m é ric o como sonho de universal

certo núm ero d e lug ares p ú b lico s. A fo rm a d esses


o b je to s, o s lim ites q u e eles im p õ em p arec em
d istanciad o s d o s hábito s m ais íntim o s, mais livres,
/ 7

da relação m antid a co m a cultura escrita. A firm a-


se freq üentem ente que não dá pra im aginar m uito
b em co m o se p o d e ler na cam a co m um co m p u ­
tad o r, co m o a leitura d e certo s texto s q u e env o l­
v em a afetiv id ad e d o leito r p o d e ser p o ssív el atra­
v és d essa m ed iação fria. Mas sab em o s o q u e v irão
a ser o s sup o rtes m ateriais d a co m u nicação d o s
texto s eletrô nico s?

A leitu ra n a biblioteca eletrôn ica refu g ia-se com freqü ên c ia em


“cam arotes g abin etes isolados ou silen ciosos em .que está p resa
su a tela. Isto é ex atam en te o con trário da postu ra interativ a qu e
se en altece: com u n icam o-n os talv ez com o universal, m as n ão
com as pessoas qu e nos são g eog raficam en te próx im as.
O texto eletrô nico p o d eria, co m o tem p o , sup o r a
reto m ad a da leitura no esp aço d o m éstico e p riva­
d o o u no s lugares em que a utilização d o s b anco s
d e d ad o s info rm ático s, d as red es eletrô nicas, é a
m ais im p o rtante. N o s Estad o s Unid o s, o p rivad o
p o d e ter d o is sentid o s. O u o p riv ad o da casa, o u o
p riv ad o d o escritó rio , que não sup õ e m ais a leitura
so b o o lhar d o o utro , na p resença d o o utro . A tra­
jetó ria d este no v o m eio p o d eria lev ar a uma fo rm a
d e leitura m ais privad a d o que aquela q u e a p rece­
dia, p o r exem p lo , na biblio teca. Ter-se-ia aí o limi­
te extrem o d e um p ercurso q u e co m eço u bem an­
tes da info rm ática e da eletrô nica, nas so cied ad es
d o A ntigo Regim e. Na ép o ca, ler em v o z alta era

142 A AVENTURA DO LIVRO


0 numérico com o son ho de un iv ersal

um a fo rm a d e so ciabilid ad e co m p artilhad a e muito


co m um . Lia-se em v o z alta no s salõ es, nas so cied a­
d es literárias, nas carruagens o u no s cafés. A leitu­
ra em v o z alta alim entav a o enco ntro co m o o utro ,
so b re a base da fam iliarid ad e, d o co nhecim ento
recíp ro co , o u d o enco ntro casual, p ara p assar o
tem p o . No século XIX, a leitura em v o z alta v o lto u-
se p ara certo s esp aço s. D e início , o ensino e a p e­
d ago gia: faz end o o s aluno s ler em v o z alta, p ro cu ­
rav a-se p arad o xalm ente co ntro lar sua cap acid ad e
d e ler em silêncio , que era a p ró p ria finalid ad e da
ap rend izagem esco lar. Lia-se aind a em v o z alta no s
lugares institucio nais co m o a igreja, a universid ad e,
o tribunal. Durante to d o um p erío d o d o século XIX
(ao m eno s na p rim eira m etad e), a leitura em v o z
alta fo i tam bém vivid a co m o um a fo rm a d e m o b i­
liz ação cultural e p o lítica d o s no v o s m eio s citad i-
no s e d o m und o artesanal e d ep o is o p erário . Em
seguid a, esv aziaram -se num ero sas fo rm as d e lazer,
d e so ciabilid ad e, d e enco ntro s que eram sustenta­
d o s p ela leitura em v o z alta. Cheg a-se à situação
co ntem p o rânea em que a leitura em v o z alta é fi­
nalm ente red uzid a ã relação ad ulto -criança e ao s
lugares institucio nais.
A leitura em v o z alta alim entav a uma relação entre
o leito r e a co m unid ad e d o s p ró xim o s. A leitura
silencio sa, mas feita em um esp aço p úblico (a b i­
b lio teca, o m etrô , o trem, o av ião ), é um a leitura
am bígua e mista. Ela é realizad a em um esp aço
co letiv o , m as ao m esm o tem p o ela é privad a, co m o
se o leito r traçasse, em to rno d e sua relação co m o

A AVENTURA DO LIVRO 143


0 numérico com o son ho de un iv ersal

Em u m salão ro c o c ó , u m le ito r livro , um circulo invisível que o iso la. O circulo é


b e m -n a s c id o fa z a le itu ra para
seus c o m p a n h e iro s de lazer.
co ntud o p enetráv el e p o d e hav er aí intercâm bio
O q u a d ro é de de Troy e te m so bre aquilo que é lid o , p o rque há p ro xim id ad e e
c o m o t it u lo Une lecture de
p o rq ue há co nv ív io . A lguma co isa p o d e nascer d e
Molière. O jo g o de olhares,
tro c a d o s ou e vita d o s , te c e e n tre um a relação , d e um v ínculo entre ind iv íd uo s a p ar­
os p e rs o n a g e n s in trig a s m ú ltip la s tir da leitura, m esm o silencio sa, p elo fato de ser ela
q u e t r a n s p o r ta m para o q u a d ro ,
p raticad a em um esp aço p úblico . Co m o texto ele­
e para o e s p e c ta d o r, as histó ria s
da c o m é d ia . trô nico p o d eria se p ro d uzir um a rev ersão d efiniti­
Jean-François de Troy - Une
va. Na b ib lio teca, ler-se-á iso lad am ente. E p o d er-
lecture de Molière, cerca de
1 7 2 8 . C o ie çã o p a rticu la r.
se-á ler sem sair d e casa, p o rq ue o s texto s virão ao
leito r enq u anto , até então , o leito r d ev ia ir ao li­
v ro quand o não o p o ssuísse. A relação privad a co m
o texto co rre o risco d e se sep arar d e to d a fo rm a
d e esp aço co m unitário . Está lev antad a a susp eita
que nasce co m as so cied ad es co ntem p o râneas: será
que elas v ão d isso lv er o esp aço p úblico , não so ­
m ente aquele da cid ad e antiga, em que se pro feriam
e escutav am o s d iscurso s, mas tam bém o esp aço
o nd e p o d iam articular-se as fo rm as da intim id ad e
e d o p riv ad o co m as fo rm as d o intercâm bio e da
co m unicação ?

Frag m en tação da leitura, de um lado, m o dific aç ão da


p ro du ç ão editorial, de outro: o perig o é duplo. N as nov as
circu n stân cias, os dispositivos editoriais m u dam . A rev olu ção
eletrôn ica, ev identem ente, ac elera as con cen trações.
É certo que, co m o v im o s neste p ro cesso , o b jeto s
ao s quais estávam o s habituad o s d eixam d e ser to d o -
p o d ero so s, e, p o rtanto , a cultura escrita à qual eles
estav am ligad o s. D ev em o s rep ensar tanto no sso s
g esto s quanto no ssas categ o rias d e co nhecim ento

144 A AVENTURA DO LIVRO


0 numérico com o son ho de un iv ersal

e d e co m p reensão . Vo cê m encio na a ed ição e a


função d o edito r. H o je, co m freq üência, a ed ição
não é m ais d o que um ram o no interio r d e uma
em p resa múltipla, que d esenv o lv e muitas o utras
ativid ad es.
Co m o o texto eletrô nico atua so bre esta realid ad e?
Talv ez em d o is extrem o s. D e um lad o , b u sca-se
um a liberd ad e no v a que mistura o s p ap éis e p er­
m ite ao s auto res to rnarem -se seu p ró p rio ed ito r e
seu p ró p rio d istribuido r. Lem bráv am o s d essas re­
vistas científicas que têm ap enas existência eletrô ­
nica: afinal, são as m esm as p esso as que são seus
auto res, ed ito res, d istribuid o res e leito res. Existe
um a esp écie d e afastam ento - que seg uram ente
teria agrad ad o às p esso as da Rep ública d as letras -
da co m u nicação intelectual frente ao m und o d o
m ercad o , da em p resa, d o lucro etc. E, do o utro
lad o d o esp ectro , se p ensam o s naquilo que se c o ­
lo ca à d isp o sição nas red es eletrô nicas, é claro - a
d iscussão so bre as auto -estrad as da info rm ação m o s­
tro u isso - que são as mais p o d ero sas d entre as
em p resas multimíd ia que d eterm inam a o ferta d e
leitura, a o ferta d e co m u nicação e a o ferta d e info r­
m ação . Send o assim, o futuro d a rev o lução d o tex­
to eletrô nico p o d eria ser - p o d erá ser, eu esp ero -
a encarnação d o p ro jeto das Luzes, o u então um
futuro d e iso lam ento s e d e so lip sism o s. Ir-se-á ain­
da mais lo ng e na co ncentração , isto é, no m o no ­
p ó lio exercid o so b re a info rm ação e o p atrim ô nio
textual q ue, aliás, and a junto co m as d o m inaçõ es
lingüísticas o u as im p o siçõ es id eo ló gicas? O u en-
C ’ -n e :::o com o son ho de u n iv ersa l

tão , send o a técnica tão flexív el quanto p o d e ser


fo rte, co nseg uir-se-á p ro p iciar a p o ssibilid ad e d e
interv enção no d ebate p úblico àqueles m esm o s que,
no m und o d o im p resso , não p o d iam fazê-lo ? Eis aí
um d esafio m aio r d e no sso p resente.

M as a em presa m ultim ídia, em term os de ren tabilidade, só p o de


ser efic az sob três con dições: qu e ela esteja im plan tada no
m aior n ú m ero de regiões produ tiv as do mundo, qu e ela
con g reg u e ativ idades afin s - c ada produ to sen do portanto,
desde a su a origem, con cebido p ar a a div ersificação - e tam bém
qu e ela ten ha u m a c ap ac idade de inv estimento en orm e, com os
crescen tes custos de acesso aos ban cos de dados.
A esse resp eito , tenho um a lem brança fo rte: fui
co nv id ad o p ara um co ng resso da A sso ciação Inter­
nacio nal d o s Ed ito res, realizad o em Barcelo na, na
p rim av era d e 1996. Fui surp reend id o então p ela
d istância entre o d iscurso sustentad o p elo rep re­
sentante d e Bertelsm ann, essa eno rm e p o tência
multimíd ia, e a angústia, a p reo cu p ação d e ed ito ­
res que não eram esp ecificam ente p eq u eno s, mas
q u e se se n tiam em um a situ aç ão d e g ran d e
v ulnerabilid ad e. As g rand es em p resas multimíd ia
co ntro lam um cap ital im p o rtante, d isp õ em d e uma
im p lantação m und ial e m anejam o s p ro d uto s d eri­
v ad o s, d o livro ao film e, d o film e ao CD-Ro m, d o
CD-Ro m ao s p ro gram as telev isio nad o s etc. Co ns­
truir esta cad eia d e p ro d uto s d eriv ad o s sup õ e que
a criação estética co rresp o nd a a um certo núm ero
d e critério s: v o cação p ara a univ ersalid ad e, utiliza­

A AVENTURA DO LIVRO 147


0 numérico com o son ho de un iv ersal

ção da língua mais d ifund id a, co nteú d o que se d i­


rija ao mais am p lo p úblico . Co m o , nestas co nd i­
çõ es, p o d e so brev iv er um univ ersal que se exp res­
sa através d o singular?
Po rque há v árias m aneiras d e exp ressão d o univ er­
sal: p o d e-se enunciá-lo p o r um a esp écie d e red u­
ção à m éd ia, mas p o cle-se m anifestá-lo tam bém gra­
ças a um a singularid ad e que exp ressa algum a co isa
p ro fu nd am ente co m p artilhad a. Estes p ro b lem as
d ev em ser co nsid erad o s no interio r d a eco no m ia
da co m u nicação , m as é p reciso ig ualm ente c o m ­
p reend er seus efeito s so b re a eco no m ia d a cria­
ção . O estu d o freq ü ente d a p ro d u ção d o s best-
sellers no m und o da ed ição im p ressa é ag o ra uma
q u estão q u ase o b so leta. O p ro b lem a d o p resente
é a cad eia d o s p ro d uto s d eriv ad o s. É inútil m an­
ter um d iscurso d e rejeição to tal, abso luta, co m o
se a q ualid ad e fo sse p o r essência estranha à cu l­
tura d e m assa. É p reciso antes co m p reend er o s
critério s q u e v ig o ram na co nstru ção d as p ro d u­
çõ es que d ão o rig em a esses p ro d uto s d eriv ad o s. E
a m eu v er é a partir d aí que se d ev e racio cinar,
p ara além d e um d iscurso no stálg ico e m elancó lico
o u d e um a có lera d enunciad o ra, q u e tem suas ra­
z õ es, m as é im p o tente d iante d e uma ev o lu ção d e­
m asiad o p o d ero sa.

V ocê ado ta um com portam en to de com preen são, de dentro.


C om portam entos de resistên cia n ascerão tam bém , v isan do
o c u p ar os “n ic ho s”. Q uanto m ais g en eraliz ada a rev olu ção
eletrôn ica for, m ais su rg irão com portam en tos de diferen c iaç ão

148 A AVENTURA DO LIVRO


0 numérico com o son ho de un iv ersal

e de ex ceção. O v igor da bibliofilia, insensív el à rev olu ção


eletrôn ica, p ro v a qu e o livro p erm an ec e u m a en tidade viva, j á
qu e ele p assa de m ão em m ão e é colecion ado.
M esm o em tem p o s d e m assificação e d e univ ersa­
lização , não se p o d erá im p ed ir o s co lecio nad o res
d e co nstruir a rarid ad e. Po rque, ap esar d a rarid ad e
p o d er ser o bjetiv a, ela é, d e fato , co m freq üência
co nstruíd a. Um livro é raro a partir d o m o m ento
em que há biblió filo s para p ro curá-lo . Se não há
ning uém interessad o , m esm o que tenha sid o p u­
blicad o em um ú nico exem p lar, ele não é raro . É
um a histó ria ab so lu tam en te ap aix o n an te a d a
biblio filia, que co m eça no fim do século XVII ou
no co m eço d o XVIII, no s m eio s financeiro s, e que
sup õ e que seja d efinid o o univ erso d o co lecio náv el.
Po d em ser to d o s o s livro s im p resso s antes d e certa
data, o u to d o s o s livro s que têm o m esm o sup o rte
m aterial, rico e luxuo so , o u to d o s o s livro s que
p ertencem ao m esm o g ênero literário , o u aind a to ­
d o s o s livro s saíd o s da m esm a o ficina tip o g ráfica
etc. Um critério d e rarid ad e se p õ e em m archa,
d efinind o o co lecio náv el p ela série. Daí, livreiro s
que se esp ecializ am neste m ercad o p ublicam catá­
lo g o s d escrev end o as o bras que são p o stas à v en­
da seg und o regras p articulares, atentas às p articu­
larid ad es d e cad a exem p lar.
Pro g ressiv am ente, o g o sto d esses co lecio nad o res
será co nd uzid o co m mais facilid ad e (m as não n e­
cessariam ente) para o s o bjeto s mais custo so s, fa­
z end o d o livro raro um inv estim ento . É um a histó ­
ria p aralela que co ntinuará, m esm o que, co m o s

A AVENTURA DO LIVRO 149


0 n u m é ric o comosonho de universal

Página p re c e d e n te .
instrum ento s da eletrô nica, tal em p resa d e “livros
Vanitas vanitatum. C o m o o re ló g io
q u e e sca n d e o cu rso d o te m p o , à la c art é ’ p ro p o nha “reed itar” para v o cê, em um
c o m o os in s tru m e n to s de m úsica
c o m as n o ta s e fê m e ra s , c o m o os exem p lar único , aq uele livro que v o cê p ro cura d e­
sím b o lo s da g ló ria vã, o livro
p r o fa n o te m seu lu g a r nas
sesp erad am ente há ano s. D isp o r d e um texto p o r
c o m p o s iç õ e s q u e q u e re m e n s in a r esse cam inho não d isp ensará a aquisição , quand o
a fra g ilid a d e das coisas deste
m u n d o . D ia n te da irre m e d iá v e l ap arecer a o p o rtunid ad e, d e um exem p lar d e sua
d e s tru iç ã o , o ú n ic o a m p a r o ve m
dos dois livros de Deus: a N atureza, antiga ed ição . No tem p o d as telas, o m und o da
q u e é sua criação, e a Bíblia, o n d e
c o leç ão tem aind a b elo s dias d iante d e si.
está inscrita sua Palavra.
E d w a e rt Collier, Vanité, 16 6 4,
Leiden, Stedelijk M u s e u m De
Lakenm al.

O tex to vive u m a p lu ralidade de ex istên cias. A eletrôn ica é


ap en as u m a den tre elas.
A ind estrutibilid ad e d o texto , sup o nd o que seja
atingid a, não significa que d evam ser d estruíd o s os
supo rtes particulares, histo ricam ente sucessivo s, atra­
v és d o s quais o s texto s chegaram até nó s, p o rque -
e creio que o co njunto d esta co nv ersa o d em o ns­
trou - a relação da leitura co m um texto d ep end e, é
claro , d o texto lid o , mas d ep end e tam bém d o lei­
tor, d e suas co m p etências e p ráticas, e da fo rm a na
qual ele enco ntra o texto lid o o u o uv id o . Existe aí
uma trilo gia abso lutam ente ind isso ciáv el se no s in­
teressam o s p elo p ro cesso d e p ro d ução d o sentid o .
O texto implica sig nificaçõ es que cad a leito r co ns­
trói a partir d e seus pró prio s có d igo s d e leitura, quan­
d o ele receb e o u se apro pria d esse texto d e fo rma
d eterminad a. Po d e-se lamentar que o m und o d o li­
v ro em ro lo não no s seja acessív el a não ser p o r
frag m ento s e q u e to d o este univ erso - que era o
da biblio teca d e A lexand ria, d o s livros sagrad o s,

1 5 2 A AVENTURA DO LIVRO
0 numérico comosonho de universal

d e Platão e d e Esquilo , o u o d o s leito res que tinham


relaçõ es co m o texto que não são mais as no ssas -
não seja p ercep tív el senão p o r um d ifícil trabalho
d e reco nstrução arq ueo ló g ica, real o u m ental. No
que diz resp eito ao s no sso s d o is m und o s d e ho je,
d o s quais falam o s aqui, o m und o d o texto im p res­
so e o d o texto eletrô nico , v ê-se que o m esm o
p ro blem a se p õ e. É p reciso asseg urar a ind estruti-
bilid ad e d o texto p elo m aio r tem p o p o ssív el, atra­
v és da utilização d o no v o sup o rte eletrô nico : d este
p o nto d e vista, nem o s d iscurso s d e d enúncia nem
o s entusiasm o s u tó p ico s e às v ezes ing ênuo s co r­
resp o nd em ao d iag nó stico que se d ev e fazer. A o
m esm o tem p o , p ara to d o s o s texto s cuja existência
não co m eço u co m a tela, é p reciso p reserv ar as
p ró p rias co nd içõ es d e sua inteligibilid ad e, co nser­
v and o o s o bjeto s que o s transmitiram. A biblio teca
eletrô nica sem m uro s é um a p ro m essa do futuro ,
mas a b ib lio teca m aterial, na sua função d e p reser­
v ação d as fo rm as sucessiv as da cultura escrita, tem,
ela tam bém , um futuro necessário .

V ocê g osta de repetir um relato de A n dré M iquel, an tig o


adm in istrador da Biblioteca N acion al, qu e reú n e com o qu e em
um con to essa dialética da m em ória das fo r m as tradicion ais e
da pesqu isa das nov as fo rm as.
A nd ré M iquel v iu-se d iante das queixas de um lei­
to r que não co nseg uia nem co nsultar, nem o mi­
cro film e d e um im p resso . Ele se dirigiu ao s co nser-

A AVENTURA DO LIVRO 153


0 n u m é ric o como sonho de universal

v ad o res d izend o -lhes: “D êem -m e este livro, que v o u


d estruí-lo im ed iatam ente” . Grand e p av o r d o s c o n ­
serv ad o res. A nd ré M iquel exp lico u : já que este d o ­
cum ento não p o d ia ser co nsultad o na sua realid a­
d e m aterial p rim ária e tam b ém n ão era nem
m icro film áv el nem transferív el p ara o utro sup o rte,
p ara que então co nserv á-lo ? N inguém mais p o d e­
ria ler seu co nteúd o , p o rtanto não im p o rtav a que
fo sse d estruíd o o u p reserv ad o . É uma p eq u ena fá­
bula que finalm ente rem ete à tem ática d este d iálo ­
go : um livro existe sem leitor? Ele p o d e existir co m o
o b jeto , mas, sem leito r, o texto d o qual ele é p o rta­
d o r é ap enas virtual. Será que o m und o d o texto
existe quand o não há ning uém p ara d ele se ap o s­
sar, p ara d ele fazer uso , p ara inscrev ê-lo na m em ó ­
ria o u p ara transfo rm á-lo em exp eriência? Paul
Rico eur lem bro u muitas v ez es o fato d e que um
m und o d e texto s q u e não é co nquistad o , ap ro p ria­
d o p o r um m und o d e leito res, não é senão um
m und o d e texto s p o ssív eis, inertes, sem existência
v erd ad eira.
O que m e lem bra, p ara terminar, um o utro co nto : a
no v ela d e Pirand ello intitulad a M undo de papel.
N ela, um leito r, o p ro fesso r Balicci, fica ceg o d e
tanto ler. Ele fica d esesp erad o p o rque a vo z interio r
d o s livros, que p assav a p o r sua v isão se calo u. Im a­
gina então um p rim eiro subterfúg io , p ed ir a uma
leito ra p ara lhe ler em v o z alta, mas o p ro ced im en­
to rev ela-se um d esastre. A m o ça lê à sua m aneira
e Balicci nâo o uv e mais a v o z d e seus livros. Ele
o uv e um a o utra v o z, que cho ca sua aud ição e sua
0 n u m é ric o comosonho de universal

m em ó ria. Ele p ed e então a sua leito ra que fique


quieta e leia em seu lugar. Ela d ev e ler, p ara ela
m esm a, em silêncio , a fim d e d ar no v a v id a a este
m und o que, d esabitad o , co rre o risco d e se to rnar
inerte. Lend o em lugar d e Balicci, a leito ra evitará
que seus livro s m o rram, aband o nad o s, igno rad o s.
Mas o drama se p recip ita quand o um dia, lend o uma
d escrição da cated ral e d o cem itério d e Tro nd heim ,
na N o ruega, a leito ra exclam a: “Eu estiv e lá e não é
d e m o d o algum co m o está no liv ro !” . O p ro fesso r
Balicci, então , to m ad o d e terrível có lera, d esp ed e a
leito ra gritand o : “Po u co m e im p o rta que v o cê te­
nha estad o lá, d o m o d o co m o está escrito , é assim
que d ev e ser”. O m und o d e p ap el d e Balicci, co m o
o d e D o m Q uixo te, to rnara-se o p ró p rio univ erso .
Cego , o p ro fesso r enco ntra seu único co nfo rto , o u
sua única certeza, no fato d e que, quand o fo lheia
seus livro s, que se to rnaram ilegív eis, seus texto s
reto rnam na sua m em ó ria e, co m eles, o univ erso
tal co m o ele é - o u d ev e ser.

A AVENTURA DO LIVRO 155

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