PANOFSKY Erwin Significado Nas Artes Visuais

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. SIGNIFICADO
NAS ARTES VISUAIS

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~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

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Coleção Debates
Dirigida por J. Guinsburg

,quipe de realização - Tradução: Maria Clara F. Kneese e


J. Guinsburg; Revisão: Mary Amazonas Leite de Barros:
Pro~nlmação visual: Walter Grieco; Produção: Plinio Martins
Filho.
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ervvin panofsl<y
SIGNIFICADO NAS
ARTES VISUAIS

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~ ~ EDITORA PERSPECTIVA

~I\\~
Título do original inglês:

Meaning in the Visual Arts

© 1955, by Erwin Panofsky

UNI-RIO
Aquisição: eOtffJ/CJl
Dita:lJ /t02/0/
Fornecedor:lv,.e.JtOi1~Ite:b Ja 1/f1/10
Preço:f.\$,ir; o ()
Empenho:J30g/0D
Nota Fiscal:jjjgO /01
N.- Tombo: 002..31 041 i...)~ Ju 2.-
Bibli~teca: r)/G/-I

3!edição

Direitos em língua portuguesa reservados à


EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 3025
01401 SAoPaulo- SP - Brasil
I I f n A: 885-8388/885-6878
11)111
SUMARIO

Prefácio ............................... 9

Locais Originais de Publicação . 15

Introdução: A História da Arte como uma dis-


ciplina Humanística .. , . . . . . . . . . . . . . . . . 17

1. Iconografia e Iconologia: Uma Introdução


ao Estudo da Arte da Renascença .45

2. A História da Teoria das Proporções Hu-


manas como reflexo da História dos Estilos 89

9
o Abade Suger de S. Denis 149

4. A A legaria da Prudência de Ticiano: um


Pós-Escrito 191

5. A primeira página do "Libro" de Giorgio


Vasari
1. Um estudo sobre o estilo gótico segun-
do o julgamento da Renascença Italia-
na com um apêndice sobre dois de-
senhos de fachada de Domenico Bec-
cafumi ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 227
2. Excurso: dois desenhos de fachada por
Domenico Beccafumi e o problema do
maneirismo na arquitetura 293

6. Albrecht Dürer e a Antiguidade Clássica 307


Excurso: As ilustrações das Inscriptiones
de Apianus em relação a Dürer 367

7. Et In Arcadia Ego: Poussin e a Tradição.


Elegíaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 377
Epílogo: Três Décadas de História da
Arte nos Estados Unidos
Impressões de um europeu transplantado. 411

10
PREFÁCIO

Os ensaios reunidos nesta obra foram escolhidos


mais pela variedade do que pela coerência. Eles
englobam um período de mais de trinta anos e tratam
de problemas gerais assim como de tópicos especiais
referentes a fatos arqueológicos, atitudes estéticas,
iconografia, estilo, e mesmo daquela "teoria da arte",
em nossos dias bastante obsoleta, que em certos perío-
dos desempenhou um papel análogo ao da harmonia
ou do contraponto na música.
Esses ensaios incluem-se em três classes: primeira,
Versões Revistas de Antigos A rtigos, completamente

11
~eescrita e, na medida do possível, atualizada pela
incorporação tanto de contribuições subseqüentes de
outros autores como de novas reflexões minhas (Caps.
4 e 7); segunda, Reimpressão de Trabalhos Publicados
em Inglês nos Últimos Quinze Anos (Introdução, Epí-
logo, Caps. 1 e 3); terceira, Traduções do Alemão
(Caps. 2, 5, 6).
Em contrapartida às "versões revistas", as "reedi-
ções" não foram mudadas materialmente exceto quanto
à correção de erros e incorreções e para alguns adendos
ocasionais que foram colocados, entre parênteses. O
mesmo se aplica às "traduções do alemão", apesar de
que nesse caso foram tomadas algumas liberdades re-
lativamente aos textos originais: senti-me à vontade
para traduzir menos literalmente do que ousaria se a
obra fosse de autoria de outra pessoa, para acrescer
alguns comentários e, em dois lugares, proceder a algu-
mas consideráveis supressões.' Não se fez, no entanto,
nenhuma tentativa para mudar o caráter dos originais.
Tampouco tentei torná-los menos pedantes expurgando
argumentos escolásticos e documentação (se alguma
coisa se ganha da 'leitura de ensaios como este é um
certo respeito pela convicção de Flaubert segundo a
qual "le bon Dieu est dans le détail"); também não
tentei torná-los mais inteligentes fingindo conhecer
mais do que realmente conhecia quando os escrevi,
exceto, mais uma vez, para um ou dois acréscimos
entre parênteses. Deve-se deixar ao leitor - se ten-
cionar fazê-Io - conferir o conteúdo das "reedições"
e "traduções do alemão" com os resultados da mais
recente pesquisa, e para esse propósito pode ser de
utilidade a seguinte relação bibliográfica:
Para o Capo 1, "Iconografia e Iconologia", ver:
J. SEZNEC, The Survival of the Pagan Gods: The
Mythological Tradition and Its Place in Re-
naissance Humanism and Art (Bollingen Senes.
XXXVIII), Nova York, 1953 (revisto por W. S.
HECKSCHER em Ar' Bulletin, XXXVI, 1954,
p. 306 e ss.).
J. No Capo 5. uma longa digressão sobre o estilo dos de-
~\ho. r produzidos nas F'igs. 46 e 47 foi suprimida (pp. 28-32
,'" 11I1 ); no Capo 6. um segundo excurso foi eliminado (pp.
I ,'" !lI Ir,) ,
Para o Capo 2, "A História da Teoria das Pro-
porções Humanas", ver:
H. A. FRANKFORT, Arrest and Movement: An Essay
on Space and Time in the Representational Art
of the Ancient Near East, Chicago, 1951.
R. HAHNLosER, Villard de Honnecourt, Viena, 1935
(especialmente p. 272 e ss. e Figs. 98-154).
E. IVERsEN, Canon and Proportions in Egyptian Art..
Londres, 1955.
H. KOCH, Vom Nachleben des Vitruv (Deutsche Beitrii-
ge zur Altertumswissenschait), Baden-Baden, 1951.
E. PANOFSKY, The Codex Huygens and Leonardo da
Vinci's Art Theory (Studies of the Warburg Ins-
titute, XIII), Londres, 1940, pp. 19-57, 106-128).
F. SAXL, Verzeichnis astrologischer und mythologischer
illustrierter Handschrijten des lateinischen Mittelal-
ters, lI; Die Handschriiten der Nationai-Bíbliothek
in Wien (Sitzungs-Berichte der Heidelberger
Akademie der Wissenschajten, phil.-hist. Klasse,
1925/26, 2), Heidelberg, 1927, p. 40 e ss.
W. UEBERWASSER, Von Mass und Macht der alten
Kunst, Leipzig, 1933.
K. STEINITZ, A Pageant of Proportion in Illustrated
Books of the 15th and ] 6th Century in the Elmer
Belt Library of Vinciana, Centaurus, I, 1950/51,
p. 309 e ss.
K. M. SWOBODA, Geometrische Vorzeichnungen ro-
manischer Wandgemalde, Alte und neue Kunst
(Wiener kunstwissenschaftliche Blãtter}, lI, 1953,
p. 81 e ss.
W. UEBERWASSER, Nach rechtem Mass, em lahrbuch
der preussischen Kunstsammlungen, LVI, 1935,
p. 250 e ss.

Para o Capo 3, "O Abade Suger", ver:


M. AUBERT, Suger, Paris, 1950.
S. McK. CROSBY, L'Abbaye royale de Saint-Denis, Pa-
ris, 1953.

13
L. H. LoOMIS, The Orifflamme of France and the
War-Cry "Monjoie" in the TweIfth Century, em
Studies in Art and Literature for Belle da Costa
Greene, Princeton, 1954, p. 67 e ss.
E. PANOFSKY, Postlogium Sugerianun, Art Bulletin,
XXIX, 1947, p. 119 e ss.

Para o Capo 5, "A Primeira Página do 'Libro' de


Giorgio Vasari", ver:
K. CLARK, The Gothic Revival; An Essay on the His-
tory of Taste, Londres, 1950.
H. HOFFMANN, Hochrenaissance, Manierismus, Früh-
baroek, Leipzig e Zurique, 1938.
P. SANPAOLESI,La Cupola di Santa Maria dei Fiore,
Roma, 1941 (revisto por J. P. Coolidge, Art
Bulletin, XXXIV, 1952, p. 165 e s.).
Studi Vasariani, Atti dei Congresso Internazionale
per il IV Centennaio della Prima Edizione delle r
Vite dei Vasari, Florença, 1952.
R. WITTKOWER, Arehiteetural Principies in the Age
of Humanism, 2. ed., Londres, 1952 (com instru-
tiva "Nota Bibliográfica" à p. 139 e s.).
G. ZUCCIDNI, Disegni antichi e moderni per Ia [acciata
di S. Petronio di Bologna, Bolonha, 1933.
J. ACKERMANN, The Certosa of Pavia and Renaissan-
ce in Milan, Marsyas, V, 1947/49, p. 23 e ss.
E. S. DE BEER, Gothic: Origin and Diffusion of the
Term: The Ideal of Style in Architecture, Journal
of the Warburg and Courtauld lnstitutes, XI, 1948,
p. 143 e ss.
R. BERNHEIMER, Gothic Survival and Revival in Bo-
logna, Art Bulletin, XXXVI, 1954, p. 263 e ss.
J. P. COOLlDGE, The Villa Giulia: A Study of Central
Italian Architecture in the Mid-Sixteenth Century,
Art Bulletin, XXV, 1943, p. 177 e ss.
V. DADDI GIOVANOZZI, I ModeIli dei secoli XVI e
XVII per Ia facciata di Santa Maria del Fiore,
L'Arte Nuova, VII, 1936, p. 33 e ss.

14
L. HAGELBERG, Die Architektur Michelangelos, em
Münehner lahrbueh der bildenden Kunst, nova
série, VIII, 1931, p. 264 e ss.
O. KURZ, Giorgio Vasari's "Libro", em Old Master
Drawings, XII, 1938, p. 1 e ss., 32 e ss.
N. PEVSNER, The Architecture of Mannerism, em The
Mint, Miscellany of Literature, Art and Criticism,
G. 'Gregson, ed., Londres, 1946, p. 116 e ss.
R. WITTKOWER, Alberti's Approach to Antiquity in
Architecture, Journal of the Warburg and Cour-
tauld Institutes, IV, 1940/41, p. 1 e ss.
IDEM, Michelangelo's Biblioteca Laurenziana, Art
Bulletin, XVI, 1934, p. 123 e ss., especialmente
pp. 205-16.

Para o Capo 6, "Dürer e a Antiguidade Clássica",


ver:
A. M. FRIED, Jr., Dürer and the Hercules Borghesi-
Piccolomini, Art Bulletin, XXV, 1943, p. 40 e ss.
K. RATHE, Der Richter auf dem Fabeltier, em Festsch-
riit für Julius Sehlosser, Zurique, Leipzig e Viena,
1926, p. 187 e ss.
P. L. WILLIAMS, Two Roman Reliefs in Renaissance
Disguise, Iournal of the Warburg and Courtauld
Institutes, IV, 1940/41, p. 47 e ss.

Informações adicionais sobre as obras de Dürer


referidas nesse capo podem ser encontradas em A.
Tietze e E. Tietze-Conrat, Kritisches Verzeichnis der
Werke Albreeht Dürers, I, Augsburgo, 1922, n, 1, 2,
Basiléia e Leipzig, 1937, 1938; e em E. PANOFSKY,
Albreeht Dürer, 3. ed., Princeton, 1948 (4. ed., Prin-
ceton, 1955).
Concluindo, desejaria expressar minha gratidão
aos editores dos livros e periódicos nos quais os ensaios
aqui reunidos apareceram pela primeira vez; ao Dr.
L. D. Ettlinger e ao Professor U. Middeldorf por sua
cordial assistência na obtenção das fotografias; e à Sra.
WilIard F. King por sua inestimável ajuda na organi-
zação desta coletânea.
Princeton, 19 de julho de 1955
E.P.

15
LOCAIS ORIGINAIS PE PUBLICAÇÃO

INTRODUÇÃO, publicada com o mesmo título em


The Meaning of the Humanities, T. M. Greene,
ed., Princeton, Princeton University Press, 1940,
pp. 89-118.
1. Publicado como "Introductory" em Studies in lco-
nology: Humanistic Themes in the Art of the Re-
naissance, Nova York, Oxford University Press,
1939, pp. 3-31.
2. Publicado como "Die Entwicklung der Proportions-
lehre aIs Abbild der Stilentwicklung" em Monats-
hejte für Kunstwissenschait, XIV, 1921, pp. 188-
219.

17
3. Publicado como "Introduction" em Abbot Suger
on the Abbey Church oi St.-Denis and lts Art
Treasures, Princeton, Princeton University Press,
1946, pp. 1-3'1-.
4. Publicado (em colaboração com F. Saxl) como
"A Late-Antique Religious Symbol in Works by
Holbein and Titian" em Burlington Maggazine,
XLIX, 1926, pp. 177-81. Ver também Hercules
am Scheidewege und andere antike Bildstoije in
der neueren Kunst (Studien der Bibliothek War-
burg, XVIII), Leipzig e Berlim, B. G. Teubner,
1930, pp. 1-35.
5. Publicado como "Das erste Blatt aus dem 'Libro'
Giorgio Vasaris; eine Studie über der Beurteilung
der Gotik in der italienischen Renaissance mit
einem Exkurs über zwei Fassadenprojekte Dome-
nico Beccafumis" em Stãdel-Iahrbuch, VI, 1930,
pp. 25-72. ,
6. Publicado como "Dürers Stellung zur Antike" em
Jahrbuch für Kunstgeschichte, I, 1921/22, pp.
43-92.
7. Publicado como "Et in Arcadia ego: On the Con-
ception of Transience in Poussin and Watteau"
em Philosophy and History, Essays Presented to
Ernst Cassirer, R. Klibansky & H. J. Paton, eds.,
Oxford, Clarendon Press, 1936, pp. 223-54.
EPíLOGO, publicado como "The History of Art"
em The Cultural Migration: The European Scholar
in America, W. R. Crawford, ed., Filadélfia, Uni-
versity of Pennsylvania Press, 1953, pp. 82-111.

Abreviaturas

B: A. Bartsch, Le Peintre-graveur, Viena, 1803-1821.


L: F. Lippmann, Zeichnungen von Albrecht Diirer in
Nachbildungen, Berlim, 1883-1929 (v. VI e VII,
F. Winkler, ed.).

18
INTRODUÇÃO: A HISTóRIA DA AJr..ífE COMO
UMA DISCIPLINA HUMANlSTICA

I
Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant
recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase
cego, levantou-se da cadeira e ficou em pé, tremendo
de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Fi-
nalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele
não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este
assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua
cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças,
disse: "Das Gefühl für Humanitat, hat mich noch
nicht verlassen" - "O senso de humanidade ainda

19
não me deixou" 1. Os dois homens comoveram-se até
às lágrimas. Pois, embora a palavra Humanitãt apre-
sentasse, no século XVIII, um significado quase igual
a polidez ou civilidade, tinha, para Kant, uma signi-
ficação muito mais profunda, que as circunstâncias do
momento serviram para enfatizar: a trágica e orgulhosa
consciência no homem de princípios por ele mesmo
aprovados e auto-impostos, contrastando com s~a t~tal
sujeição à doença, à decadência, e a tudo o que implica
o termo "mortalidade".
Historicamente, a palavra humanitas tem tido dois
significados claramente distinguíveis, o primeiro oriun-
do do contraste entre o homem e o que é menos que
este; o segundo, entre o homem e o que é mais que
ele. No primeiro caso, humanitas significa um valor,
no segundo, uma limitação.
O conceito de humanitas como valor foi formu-
lado dentro do círculo que rodeava Cipião, o Moço,
sendo Cícero seu tardio, - porém mais explícito, defen-
sor. Significava a qualidade que distingue o homem,
não apenas dos animais, mas também, e tanto mais,
daquele que pertence à espécie H omo sem merecer o
nome de Homo humanus; do bárbaro ou do indivíduo
vulgar que não tem pietas e muõela - ou seja, res-
peito pelos valores morais e aquela graciosa mistura
de erudição e urbanidade que só podemos circunscre-
ver com a palavra, já muito desacreditada, "cultura".
Na ldade Média este conceito foi substituído pela
idéia de humanidade como algo oposto à divindade
mais do que à animalidade ou barbarismo. As quali-
dades mais comum ente associadas a ela eram, portanto,
as da fragilidade e transitoriedade: humanitas [ragilis,
humanitas caduca. .
Assim, a concepção renascentista de humanitas
tinha um aspecto duplo desde o princípio. O novo
interesse no ser humano baseava-se tanto numa reno-
vação da antítese clássica entre humanitas e barbaritas
ou feritas, quanto na aparição da antítese medieval
1. WASIANSKI, E. A. C. lmmanuel Kant in seinen letzten
Lebensjahren (Ueber lmmanuel Kant, 1804, v. lU). Reeditado
em lmmanue! Kant, Sein Leben in DarsteUungen von Ze,tge-
nossen, Berlim, Deutsche Bibliotek, 1912, p. 298.

20
entre humanitas e divinitas. Quando Marsílio Ficino
define o homem como "uma alma racional, partici-
pando do intelecto de Deus, mas operando num cor-
po", define-o como o único ser que é ao mesmo tempo
autônomo e finito. E o famoso "discurso" de Pico,
"Sobre a dignidade do homem", é tudo menos um
documento do paganismo. Pico diz que Deus colocou
o homem no centro do universo para que pudesse ter
consciência de seu lugar e assim ter liberdade para de-
cidir "aonde ir". Não afirma que o homem é o
centro do universo, nem mesmo no sentido comu-
mente atribuído à frase clássica, "o homem é a medida
de todas as coisas".
.:É dessa concepção ambivalente de humanitas que
o humanismo nasceu. Não é tanto um movimento co-
mo uma atitude, que pode ser definida como a con-
vicção da dignidade do homem, baseada, ao mesmo
tempo, na insistência sobre os valores humanos (ra-
cionalidade e liberdade) e na aceitação das limitações
humanas (falibilidade e fragilidade); daí resultam dois
postulados: responsabilidade e tolerância.
Não é de admirar que essa atitude tenha sido
atacada de dois campos opostos, cuja aversão comum
aos ideais de responsabilidade e tolerância os alinhou,
recentemente, numa frente unida. Entrincheirados
num desses campos encontram-se aqueles que negam
os valores humanos: os deterministas, quer acreditem
na predestinação divina; física ou social, os partidários
do autoritarismo e os "insetólatras", que pregam a
suma importância da colmeia, denomine-se ela grupo,
classe, nação ou raça. No outro campo encontram-se
aqueles que negam as limitações humanas; em favor
de uma espécie de libertinismo intelectual ou político,
como os estetas, vitalistas, intuicionistas e veneradores
de heróis. 00 ponto de vista do determinismo, o
humanista é ou uma alma penada ou um ideólogo.
Do ponto de vista do autoritarismo, ou é um herético
ou .um revolucionário (ou um contra-revolucionário).
Do ponto de vista da "insetolatria", é um individua-
lista inútil. E, do ponto de vista do libertinismo, um
burguês tímido.

21
Erasmo de Roterdã, o humanista par excellence,
é um caso típico. A Igreja suspeitava e, em última
análise, rejeitava os escritos desse homem que dissera:
"Talvez o espírito de Cristo esteja muito mais difun-
dido do que pensamos, e haja muitos na comunidade
dos santos que não façam parte de nosso calendário".
O aventureiro Ulrich von Hutten desprezava seu ceti-
cismo irônico e o caráter nada heróico de seu amor
pela tranqüilidade. E Lutero, que insistia em afirmar
que "nenhum homem tem poder para pensar algo de
bom ou mau, mas tudo lhe ocorre por absoluta necessi-
dade", era incensado por uma crença que se manifestou
na frase famosa: "De que serve o homem como tota-
lidade [isto é, o homem dotado com corpo e alma],
se Deus trabalhasse nele como o escultor trabalha a
argila, e pudesse do mesmo modo trabalhar a pedra?" 2

II

O humanista, portanto, rejeita a autoridade; mas


respeita a tradição. Não apenas a respeita, mas a vê
como algo real e objetivo, que é preciso estudar, e, se
necessário, reintegrar: "nos vetera instauramus, nova
11011. prodimus", corno diz Erasmo.
A Idade Média aceitou e desenvolveu mais do
que estudou e restaurou a herança do passado. Copiou
as obras de arte clássicas e usou Aristóteles e Ovídio,
do mesmo modo que copiou e usou as obras dos con-
temporâneos. Não fez nenhuma tentativa de interpre-
tá-Ias de um ponto de vista arqueológico, filosófico
ou "crítico", em suma, de um ponto de vista histórico.
2. Para as citações de Lutero e Erasmo de Roterdã, ver
a excelente monografia Humanitas Erasmiana de R. PFEIFFER,
Studien der Bibliotek Warburg, XXII, 1931. É significativo que
Erasmo e Lutero tenham rejeitado a astronomia judicial ou
fatalistica por razões totalmente diferentes: Erasmo recusava-
-se a acreditar que o destino humano dependesse dos movi-
mentos inalteráveis dos corpos celestes, porque tal crença impor-
taria na negação do livre-arbítrio e responsabilidade humanos;
Lutero, porque redundaria numa restrição da onipotência de
D,:us. Lutero, portanto, acreditava na significação dos terata,
tais como bezerros de oito patas etc., que Deus poderia fazer
aparecer a intervalos irregulares.

22
Isso porque, se era possível considerar a existência
humana como um meio mais do que um fim, tanto
menos poderiam os registros da atividade humana ser
considerados como valores em si mesmos 3.
No escolasticismo medieval, não há, portanto,
nenhuma distinção básica entre ciência natural e o que
chamamos de humanidades, studia humaniora, para
citar de novo uma frase erasmiana. O exercício de
ambas, na medida em que era desenvolvido em geral,
permaneceu no quadro do que era chamado de filo-
sofia. Do prisma humanístico, entretanto, tornou-se
razoável, e até inevitável, distinguir, dentro do campo
da criação, entre a esfera da natureza e a esfera da
cultura, e definir a primeira com referência à última,
i. é, natureza como a totalidade do mundo acessível
. aos sentidos, excetuando-se os registros deixados pelo
homem.
O homem é, na verdade, o único animal que deixa
registros atrás de si, pois é o único animal cujos pro-
dutos "chamam à mente" uma idéia que se distingue
da existência material destes. Outros animais empre-
gam signos e idéiam estruturas, mas usam signos sem
"perceber a relação da. significação" 4 e idéiam estru-
turas sem perceber a relação da construção.
3. Alguns historiadores parecem incapazes de reconhecer
continuidades e distinções ao mesmo tempo. É inegável que o
humanismo e todo o movimento renascentista não surgiram de
repente, como Atená da cabeça de Zeus. Mas, o fato de Lupus
de Ferriêres ter emendado textos clássicos, de Hildebert de
Lavardin ter um sentimento profundo pelas ruínas romanas,
dos eruditos ingleses e franceses do século XII terem revivido
a filosofia e mitologia clássicas, e de Marbod de Rennes ter
escrito um belo poema pastoral sobre sua província natal, não
significa que sua perspectiva fosse idêntica à de Petrarca, sem
falarmos de Erasmo ou Ficino. Nenhum homem do medievo
poderia ver a civilização da Antigiiidade como um fenômeno
completo em si mesmo e historicamente desligado do mundo
de sua época; tanto quanto sei, o latim medieval não possui
equivalente para o termo humanista antiquitas ou sa.crosancta
vetustas. E, assim como era impossível para a Idade Média
elaborar um sistema de perspectivas baseado na percepção de
uma distância fixa entre o olho e o objeto, também era impra-
ticável, para essa época, desenvolver uma concepção de disci-
plinas históricas baseada na percepção de uma distância fixa
entre o presente e o passado clássico, Ver E. PANOFSKY e F.
SAXL,Classical Mythology in Mediaeval Art, em Studies of the
Metropolitan Museum, rv, 2, 1933, p. 228 e ss., sobretudo a p. 263
. e ss., e, recentemente, o interessante artigo de W. S. HECKSCHER,
Relic5 of Pagan Antiquity in Mediaeval Settrngs, Journa! ot
the Warburg Institute, I, 1937, p. 204 e ss.
4. Ver J. MAluTAIN, Sign and Symbol, Journa! ot the War-
burg Institute, I, p. 1 e 5S.

23
Perceber a relação da significação é separar a
i~éia do conceito a ser expresso dos meios de expres-
sao. E perceber a relação de construção é separar
a idéia da função a ser cumprida dos meios de cum-
pri-Ia. Um cachorro anuncia a aproximação de um
estranho por um latido diferente daquele que emite
para dar a conhecer que deseja sair. Mas não utilizará
este latido particular para veicular a idéia de que um
estranho apareceu durante a ausência do dono da casa.
E muito menos irá um animal, mesmo se estivesse, do
ponto de vista físico, apto a tanto, como os macacos
indubitavelmente o estão, tentar alguma vez representar
algo numa pintura. Os castores controem diques. Mas
são incapazes, ao que sabemos, de separarem as com-
plicadíssimas ações envolvidas neste trabalho a partir
de um plano premeditado, que poderia ser posto em
desenho em vez de materializado em troncos e pedras.
Os signos e estruturas do homem são registros
porque, ou antes na medida em que, expressam idéias
separadas dos, no entanto, realizadas pelos, processos de
assinalamento e construção. Estes registros têm por-
tanto a qualidade de emergir da corrente do tempo, e
é precisamente neste sentido que são estudados pelo
humanista. Este é, fundamentalmente, um historiador.
Também o cientista trabalha com registros hu-
manos, sobretudo com as obras de seus predecessores.
Mas, ele os trata, não como algo a ser investigado e
sim como algo que o ajuda na investigação. Noutras
palavras, interessa-se pelos registros, não à medida que
emergem da corrente do tempo, mas à medida que
são absorvidos por ela. Se um cientista moderno ler
Newton ou Leonardo da Vinci no original, ele o faz
não como cientista, mas como homem interessado na
história da ciência e, portanto, na civilização humana
em geral. Em outros termos, ele o faz como humanista,
para quem as obras de Newton e Leonardo da Vinci
possuem Um significado autônomo e um valor dura-
douro. Do ponto de vista humanístico, os registros
humanos não envelhecem.
Assim, enquanto a ciência tenta transformar a
caótica variedade dos fenômenos naturais no que se
poderia chamar de cosmo da natureza, as humanidades

24
tentam transformar a caótica variedade dos registros
humanos no que se poderia chamar de cosmo da
cultura.
Há, apesar de todas essas diferenças de temas e
procedimento, analogias extraordinárias entre os pro-
blemas metódicos que o cientista, de um lado, e o
humanista, de outro, precisam enfrentar 5.
Em ambos os casos, o processo de pesquisa pa-
rece começar com a observação. Mas, quer o obser-
vador de um fenômeno natural, quer o examinador de
um registro não ficam só circunscritos aos limites do
alcance de sua visão e ao material disponível; ao diri-
gir a atenção a certos objetos, obedecem, consciente-
mente ou não, a um princípio de seleção prévia ditado
por uma teoria, no caso do cientista, e por um conceito
geral de história, no do humanista. Talvez seja ver-
dade que "nada está na mente a não ser o que estava
nos sentidos"; mas é pelo menos igualmente verda-
deiro que muita coisa está nos sentidos sem nunca
penetrar na mente. Somos afetados principalmente
por aquilo que permitimos que nos afete; e, assim •
como a ciência natural involuntariamente seleciona
aquilo que chama de fenômeno, as humanidades sele-
cionam, involuntariamente, o que chamam de fatos
históricos. Desse modo as humanidades alargaram,
gradualmente, seu cosmo cultural, e em certa medida
deslocaram o centro de seus interesses. Mesmo aquele
que, instintivamente, simpatiza com a definição sim-
-plista de humanidades como "latim e grego" e consi-
dera essa definição como essencialmente válida desde
que usemos idéias e expressões como, por exemplo,
"idéia" e "expressão" - mesmo tal pessoa precisa
admitir que ela se tornou um pouco estreita demais.
Além do mais, o mundo das humanidades é deter-
minado por uma teoria cultural da relatividade, com-
parável à dos físicos; e, visto que o mundo da cultura
é bem menor que o da natureza, a relatividade cultural
5. Ver E. WIND, Das Experiment und die Metaphysik, Tübin-
gen, 1934, e idem, "Some Points of Contact between History
a«d Natural Science" Philosophy and Histcrry, Essays Presented
to Ernst Cassirer, OXford, 1936, p. 255 e ss. (com uma discussão
muito instrutiva sobre o relacionamento entre os fenômenos,
os instrumentos e o observador, de um lado, e os fatos históricos,
os documentos e o historiador, de outro).

25
prevalece no âmbito das dimensões terrestres, e foi
observada muito antes.
Todo conceito histórico baseia-se, obviamente,
nas categorias do espaço e tempo. Os registros, e
tudo o que implicam, têm que ser localizados e data-
dos. Mas, acontece que esses dois atos são na reali-
dade, dois aspectos de uma e mesma coisa. Se eu
disser que uma pintura data de cerca de 1400, essa
afirmação não teria o mínimo sentido ou importância,
a. menos que pudesse indicar, também, onde foi produ-
zida nessa data; inversamente, se eu atribuir uma pin-
tura à escola florentina, preciso ser capaz de dizer
quando foi produzida por essa escola. O cosmo da
cultura, como o cosmo da natureza, é uma estrutura
espaço-temporal. O ano de 1400 em Florença é total-
mente diferente do ano de 1400 em Veneza, para não
falarmos de Augsburgo, Rússia ou Constantinopla.'
Dois fenômenos históricos são simultâneos ou apresen-
tam uma relação temporal entre si, apenas na medida
em que é possível relacioná-los dentro de um "quadro
de referência", sem o qual o próprio conceito de si-
multaneidade não teria sentido na história assim como
na física. Se soubéssemos, por uma certa concate-
nação de circunstâncias, que uma dada escultura negra
foi executada em 1510, não teria sentido dizer que se
trata de uma obra "contemporânea" ao teto da Capela
Sistina, de Michelangelo 6.
Concluindo, a sucessão de passos pelos quais o
material é organizado em cosmo natural ou cultural
é análoga, e o mesmo é verdade com respeito aos
problemas metodológicos que esse processo implica. O
primeiro passo é, como já foi mencionado, a observa-
ção dos fenômenos naturais e o exame dos registros
humanos. A seguir, cumpre "descodificar" os registros
e interpretá-los, assim como as "mensagens da natu-
reza" recebidas pelo observador. Por fim, os resul-
tados precisam ser classificados e coordenados num
sistema coerente que "faça sentido".
Agora já vimos que mesmo a seleção do material
para observação e exame é predeterminada, até certo

.6. Ver, e.g;, E. PANOFSKY, Ueber die Reihenfolge der vier


Meister von Reírns (Apêndice), em Jahrbuch [iir Kunstwissens-
ctuiit, II, 1927, p, 77 e 5S.

26
ponto, por uma teoria ou por uma concepção histórica
genérica. Isso é ainda mais evidente dentro do próprio
processo, onde cada passo rumo ao sistema que "faça
sentido" pressupõe os precedentes e os subseqüentes.
Quando o cientista observa um fenômeno usa
instrumentos que se acham, por seu turno, sujeitos às
leis da natureza que pretende explorar. Quando um
humanista examina um registro, usa documentos que
são, por sua vez, produzidos no decurso do processo
que pretende investigar.
Suponhamos que eu descubra, nos arquivos de
uma cidadezinha do vale do Reno, um contrato, da-
tado de 1471, e complementado pelos registros de
pagamento, segundo os quais o pintor local "Johannes
qui et Frost" recebeu a incumbência de executar, para
a Igreja de St. James dessa cidade, um retábulo com
a Natividade ao centro, e São Pedro e São Paulo,
um de cada lado; suponhamos, ainda mais, que eu
encontre, na Igreja de St. J ames, um retábulo corres-
pondendo a esse contrato. Este seria O caso em que
a documentação é tão boa e simples quanto se poderia
querer encontrar, melhor e mais simples do que se
precisássemos lidar com uma fonte "indireta", como
uma carta, uma descrição numa crônica, biografia,
diário ou poema. No entanto. ainda assim, muitos
problemas se apresentariam.
O documento pode ser um original, uma cópia
ou uma falsificação. Se for uma cópia, pode ser de-
feituosa e, mesmo se for um original, é possível que
algumas das informações sejam incorretas. O retábulo,
por sua vez, pode ser aquele aludido no contrato; mas
é possível também que o monumento original tenha
sido destruído durante os distúrbios iconoclásticos de
1535 e substituído por outro retábulo pintado com os
mesmos temas, mas executado, por volta de 1550, por
um pintor de Antuérpia.
Para chegar a um certo grau de certeza, teríamos
de "conferir" o documento com outros de data e ori-
gem similar, e o retábulo com outras pinturas executa-
das no vale do Reno por volta de 1470. Mas aqui
surgem duas dificuldades.

27
Primeiro, "conferir" é, obviamente, impossível
sem sabermos o que "conferir"; cumpriria. escolher
certos aspectos ou critérios, como certas formas de
escrita, ou alguns termos técnicos usados no contrato
ou alguma peculiaridade formal ou iconográfica do
r~tábulo. Mas, já que não podemos analisar o que
nao compreendemos, nosso exame pressupõe descodifi-
cação e interpretação.
Segundo, o material com o qual aferimos nosso
problemático caso, não se apresenta, em si, mais au-
tenticado do que o caso em questão. Tornado indivi-
dualmente, qualquer outro monumento assinado e da-
tado é tão duvidoso quanto o encomendado a "Johan-
nes qui et Frost", em 1471. (É por si mesmo evidente
qu~ uma assinatura aposta num quadro pode ser, e
muitas vezes é, tão discutível quanto um documento
a ele relacionado.) Apenas com base em todo um
grupo ou classe de dados é que podemos decidir se
nosso retábulo foi, do ponto de vista estilístico e ico-
nográfico, "possível", no vale do Reno, por volta de
1470. Mas, a classificação pressupõe, é óbvio, a idéia
de um todo ao qual as classes pertencem, - em outras
palavras, a concepção histórica geral Que tentamos edi-
ficar a partir dos nossos casos individuais.
De qualquer lado que se olhe, o começo de nossa
investigação parece sempre pressupor seu fim, e os
documentos que deveriam explicar os monumentos são
tão enigmáticos quanto os próprios monumentos. É
bem possível que um termo técnico do nosso contrato
seja um \ha~À<,yÓP.EMV tão-somente explicável por
este determinado retábulo; e o que um artista diz a
respeito de suas obras deve sempre ser interpretado à
luz das próprias obras. Estamos, aparentemente, num
círculo vicioso. Na realidade, é o que os filósofos
chamam de "situação orgânica" 7. Duas pernas sem
um corpo não podem andar, e um corpo sem as pernas
tampouco; porém, um homem anda. É verdade que
os monumentos e documentos individuais só podem
ser examinados, interpretados e classificados à luz de
um conceito histórico geral, ao mesmo tempo que só
se pode erigir esse conceito histórico geral com base
7. Devo esse termo ao Professor T. M. Greene.

28
em monumentos e documentos individuais; do mesmo
modo, a compreensão dos fenômenos naturais e o em-
prego dos instrumentos científicos dependem de uma
teoria física generalizada e vice-versa. Essa situação,
no entanto, não é, de jeito algum, um beco sem saída.
Cada descoberta de um fato histórico desconhecido,
e toda nova interpretação de um já conhecido, ou se
"encaixará" na concepção geral predominante, enri-
quecendo-a e corroborando-a por esse meio, ou então
acarretará uma sutil ou até fundamental mudança na
concepção geral predominante, lançando assim novas
luzes sobre tudo o que era conhecido antes. Em
ambos os casos, o "sistema que faz sentido" opera
como um organismo coerente, porém elástico, com-
parável a um animal vivo quando contraposto a seus
membros individuais; e o que é verdade nas relações
entre monumentos, documentos e um conceito histó-
rico geral nas humanidades, é igualmente verdadeiro
nas relações entre fenômenos, instrumentos e teoria
nas ciências naturais.

lU

Referi-me ao retábulo de 1471 como "monumen-


to", e ao contrato como "documento"; ou seja, conside-
rei o retábulo como o objeto da investigação ou
"material primário", e o contrato como um instrumento
de investigação ou "material secundário". Assim pro-
cedendo, falei como um historiador de arte. Para um
paleógrafo ou um historiador das leis, o contrato seria
o "monumento", ou "material primário", e ambos po-
deriam usar quadros para documentação.
A menos Que um estudioso se interesse exclusiva-
mente pelo que-é chamado de "eventos" (nesse caso
consideraria todos os registros existentes como "mate-
rial secundário", por meio do qual poderia reconstruir
os "eventos"), os "monumentos" de uns são os "do-
cumentos" de outros, e vice-versa. No trabalho prá-
tico, somos mesmo compelidos a anexar "monumen-
tos" que, de direito, pertencem a nossos colegas.
Muitas obras de arte têm sido interpretadas por filó-
Iogas ou por historiadores de medicina; e muitos textos

29
têm sido interpretados, e só o poderiam ser, por his-
toriadores de arte.
Um historiador de arte, portanto, é um humanista
cujo "material primário" consiste nos registros que nos
chegaram sob a forma de obras de arte. Mas, o que
é uma obra de arte?
Nem sempre a obra de arte é criada com o pro-
pósito exclusivo de ser apreciada, ou, para usar uma
expressão mais acadêmica, de ser experimentada este-
ticamente. A afirmação de Poussin de que "Ia fin
de l'art est Ia délectation" era inteiramente revolucio-
nária 8 na época, pois escritores mais antigos sempre
insistiam em que a arte, por mais agradável que fosse,
também era, de algum modo, útil. Mas a obra de arte
tem sempre significação estética (não confundir com
valor estético): quer sirva ou não a um fim prático
e quer seja boa ou má, o tipo de experiência que ela
requer é sempre estético.
Pode-se experimentar esteticamente todo objeto,
seja ele natural ou feito pelo homem. É o que faze-
'mos, para expressar isso da maneira mais simples,
quando apenas o olhamos (ou o escutamos) sem rela-
cioná-Ia, intelectual ou emocionalmente, com nada fora
do objeto mesmo. Quando um homem observa uma
árvore do ponto de vista de um carpinteiro, ele a
associará aos vários empregos que poderá dar à ma-
deira; quando a olha como um ornitólogo, há de asso-
ciá-Ia com as aves que aí poderão fazer seu ninho.
Quando um homem, numa corrida de cavalos, acom-
panha com o olhar a montaria na qual apostou, asso-
ciará o desempenho desta com seu próprio desejo de
que ela vença o páreo. Só aquele que se abandona
8. A. BLUNr, Poussin's Notes on Painting, Journal of the
Warburg Institute, I, 1937. p. 344 e ss., diz (p. 349) que a afirma-
ção de Poussin "La fin de l'art est Ia délectation" era, de certo
modo, "medieval", pois "a teoria da delectatio como símbolo
ou sinal pelo qual a beleza é reconhecida é a chave de toda a
estética de São Boaventura, e é bem possível que Poussin
tenha tirado daí, provavelmente através de uma versão popula-
rizada, sua definição". Entretanto, mesmo se o teor da frase
de Poussin foi influenciado por uma fonte medieval, há uma
grande diferença entre a afirmação de que delectatio é uma
qualidade característica de tudo o que é belo, quer seja natural
ou feito pelo homem, e a assertiva de que delectato é o fim
(meta) (fin) da arte.

30
simples e totalmente ao objeto de sua percepção po-
derá experimentá-Io esteticamente 9.
Ora, quando nos defrontamos com um objeto
natural, a decisão de experimentá-Ia ou não estetica-
mente é questão exclusivamente pessoal. Um objeto
feito pelo homem, entretanto, exige ou não para
ser experimentado desse modo, pois tem o que os
estudiosos chamam de "intenção". Se eu decidisse,
como bem poderia fazer, experimentar esteticamente a
luz vermelha de um semáforo em vez de associá-Ia à
idéia de pisar nos freios, agiria contra a "intenção" da
luz de tráfego.
Os objetos feitos pelo homem, que não exigem
a experiência estética, são comum ente chamados de
"práticos" e podem dividir-se em duas categorias: veí-
culos de comunicação e ferramentas ou aparelhos. O
veículo ou meio de comunicação obedece ao "intuito"
de transmitir um conceito. A ferramenta ou aparelho
obedece ao "intuito" de preencher uma função (função
essa que, por sua vez, pode ser a de produzir e trans-
mitir comunicações, como é o caso da máquina de
escrever ou da luz do semáforo acima mencionada).
A maioria dos objetos que exigem experiência
estética, ou seja, obras de arte, também pertencem a
essas duas categorias. Um poema ou uma pintura his-
tórica são, em certo sentido, veículos de comunicação;
o Panteão e os castiçais de Milão são, em certo sentido,
aparelhos; e os túmulos de Lorenzo e Giuliano de
Mediei, esculpidos por Michelangelo são, em certo
sentido, ambas as coisas. Mas tenho que dizer "num
certo sentido", pois há essa diferença: no caso do
que se pode chamar de "um mero veículo de comuni-
cação" ou "um mero aparelho", a intenção acha-se
definitivamente fixada na idéia da obra, ou seja, na
mensagem a ser transmitida, ou na função a ser preen-
chida. No caso de uma obra de arte, o interesse na
9. Ver M. GEIGER,Beitr'ãge zur Phãnomenolcgie des aesthe-
tischen Genusses, em Janrbuch [iir PhHosophie, I, Parte 2, 1922,
p. 567 e ss. Também, E. WIND,Aesthetiscner und kunstwissens-
chaftHcher Gegenstand, Diss. phil. Hamburgo, 1923, reeditado,
em parte, como Zur Systematik der kunstlerischen Probleme,
Zeitschrift jür Aesthetik und aHgemeine Kunstwissenscnaft,
XVIII, 1925, p. 438 e ss.

31
idéia é equilibrado e pode até ser eclipsado por um
interesse na forma.
Entretanto, o elemento "forma" está presente em
todo objeto sem exceção, pois todo objeto consiste de
matéria e forma; e não há maneira de se determinar
com precisão científica, em que medida, num caso
dado, esse elemento da forma é o que recebe a ênfase.
Portanto, não se pode e não se deve tentar definir o
momento preciso em que o veículo de comunicação ou
aparelho começa a ser obra de arte. Se escrevo a um
amigo, convidando-o para jantar, minha carta é, em
primeiro lugar, uma comunicação. Porém, quanto
mais eu deslocar a ênfase para a forma do meu escrito,
tanto mais ele se tornará uma obra de caligrafia; e
quanto mais eu enfatizar a forma de minha linguagem
(poderia até chegar a convidá-lo por meio de um
soneto), mais a carta se converterá em uma obra de
literatura ou poesia.
Assim, a esfera em que o campo dos objetos
práticos termina e o da arte começa, depende da
"intenção" de seus criadores. Essa "intenção" não
pode ser absolutamente determinada. Em primeiro
lugar, é impossível definir as "intenções", per se, com
precisão científica. Em segundo, as "intenções" da-
queles que produzem os objetos são condicionadas
pelos padrões da época e meio ambiente em que vivem.
O gosto clássico exigia que cartas particulares, dis-
cursos legais e escudos de heróis fossem "artísticos"
(resultando, possivelmente, no que se poderia deno-
minar falsa beleza), enquanto que o gosto moderno
exige que a arquitetura e os cinzeiros sejam "funcionais"
(resultando, possivelmente, no que poderia ser cha-
mado de falsa eficiência) Enfim, nossa avaliação
l().

10. "Funcionalismo" significa. num sentido estrito, não a


introdução de um novo principio estético. mas uma delimitação
ainda maior do campo da estética. Ao preferirmos o moderno
capacete de aço ao escudo ..de Aquiles, ou acharmos que a
"intenção" de um discurso legal deveria estar definitivamente
enfocado no tema e não deveria ser deslocado para a forma
("mais matéria e menos arte". como diz corretamente a Raínna
Gertrudesl. exigimos apenas que armas e discursos legais não
sejam tratados como obras de arte, quer dizer, esteticamente,
mas como objetos práticos, í.é., tecnicamente. Entretanto, pas-
sou-se a conceber o "funcionalismo" como um postulado em
lugar de um interdito. As civilizações clássica e renascentista,
na crença de que uma coisa meramente útil não podia ser
"bela" ("non puõ essere bellezza e utilità", como declara Leo-

32
dessas "intenções" é, inevitavelmente, influenciada por
nossa própria atitude, que, P9r sua vez, depende de.
nossas experiências individuais, bem como de ,no~sa
situação histórica. Vimos todos, com nos~os propnos
olhos os utensílios e fetiches das tribos afncanas serem
transferidos dos museus de etnologia para as exposi-
ções de arte. .
Uma coisa entretanto, é certa: quanto mais a
proporção de ênfase na "idéia" e "forma" se aproxima
de um estado de equilíbrio, mais eloqüentemente a
obra revelará o que se chama "conteúdo". Conteúdo,
em oposição a tema, pode ser descrito na~ palavras ~e
Peirce como aquilo que a obra denuncia, mas nao
ostenta. É a atitude básica de uma nação, período,
classe, crença filosófica ou religiosa - tudo. isso
qualificado, inconscientemente, por uma personalida~e
e condensado numa obra. É óbvio que essa revelaçao
involuntária será empanada na medida em que um
desses dois elementos, idéia ou forma, for volunta-
riamente enfatizado ou suprimido. A máquina de
fiar talvez seja a mais impressionante manifestação
de uma idéia funcional, e uma pintura "abstrata" talvez
seja a mais expressiva manifestação de forma pura,
mas ambas têm um mínimo de conteúdo.

IV

Ao definir uma obra de arte como "um objeto


feito pelo homem que pede para ser experimentado
nardo da Vinci; ver J. P. RICHTER, The Literary Works of
Leonardo da Vinci, Londres, 1883, n. 1445), carac!er:!am-se pe2a
tendência para estender a atitude estética a cnaçoes. q':le sao
"naturalmente" práticas; nós estendemos a atitude tecm.ca às
criações que são "naturalmente" artísticas. Isso, também, e uma
infração, e no caso do "aerodinâmico", a arte te,ve su~ des-
forra "Aerodinâmica" era, originalmente, um genumo príncípio
funci~nal baseado nos resultados científicoz de pesquisas sobre
a resistê~cia do ar. Seu campo legítimo era, portanto, a área
dos veículos de alta velocidade e das estruturas expostas a
pressões de vento de extraordtnárta Intensídade. Mas, quando
esse dispositivo especial e verdadeIramente ~e~mco passou a ser
interpretado como um princípio geral e est<:tlcO,.expr~~sando ~
ideal de "eficiência" do século XX ("aerOdmamlze-se! ). e fOI
aplicado a poltronas e coqueteleiras, sentiu-se que o aerodina-
mismo científico original precisava ser "embelezado"; e fOI,
finalmente, retransferido para seu devido lugar numa forma
totalmente não-funcional. Como resultado, hoje temos menos
casas e mobílias "funcionalizadas" por engenheIros que carros
e trens "desfuncionalizados" por projetistas.

B1bUoteea Set. ccs 33


esteticamente" encontramos, pela primeira vez, a dife-
rença básica entre humanidades e ciências naturais. O
cientista, trabalhando como o faz com fenômenos na-
turais, pode analisá-los de pronto.
O humanista, trabalhando, como o faz, com as
ações e criações humanas, tem que se empenhar em
um processo mental de caráter sintético e subjetivo:
precisa refazer as ações e recriar as criações mental-
mente. De fato, é por esse processo que os objetos
reais das humanidades nascem. Pois é óbvio que os
historiadores de filosofia ou escultura se preocupam
com livros e estátuas, não na medida em que estes
existem materialmente, e sim, na medida em que esses
têm um significado. E é não menos óbvio que este
significado só é apreensível pela reprodução, e portanto,
no sentido quase literal, pela "realização" dos pensa-
mentos expressos nos livros e das concepções artísticas
que se manifestam nas estátuas.
Assim, o historiador de arte submete seu "mate-
rial" a uma análise arqueológica racional, por vezes
tão meticulosamente exata, extensa e intricada quanto
uma pesquisa de física ou astronomia. Mas ele cons-
titui seu "material" por meio de uma recriação 11 esté-
11. Todavia, quando falamos de "recriação" é importante
enfatizar o prefixo "re". As obras de arte são, ao mesmo tempo,
manifestações de "intenções" artísticas e objetos naturais, às
vezes difíceis de isolar de seu ambiente físico e sempre sujeitas
ao processo físico do envelhecimento. Assim ao experimentar
uma obra de arte esteticamente perpetramos dois atos total-
mente diversos que, entretanto, se fundem psicologicamente um
com o outro numa única Erlebnis: construímos nosso objeto este-
tico recriando a obra de arte de acordo com a "intenção" de seu
autor e criando, livremente, um conjunto de valores estéticos
comparáveis aos que atribuímos a uma árvore ou a um pôr-
do-sol. Quando nos abandonamos à impressão das descoradas
esculturas de Chartres, não podemos deixar de apreciar sua
bela maturidade e pátina como valor estético; mas, esse valor
que implica, tanto o prazer sensual causado por um jogo peculiar
de luzes e cores, como o deleite mais sentimental. devido à
"idade" e "autenticidade", nada tem a ver 'com o valor objetivo
ou artístico com que os autores investiram as esculturas. Do
ponto de vista do entalhador de pedra gótico, o processo de
envelhecimento não era só irrelevante como positivamente inde-
sejável: tentou proteger suas estátuas com uma demão de cor
que, se conservada em seu frescor original, provavelmente estra-
garia boa parte de nosso prazer estético. Justifica-se inteira-
mente que o historiador de arte, como pessoa particular, não
destrua a unidade psicológica do Alters-und-Echtheits-Erlebnis
e Kunst-Erlebnis. Mas. como "profissional", tem que separar,
tanto quanto possível, a experiência recriativa dos valores inten-
cionais dados à estátua pelo artista da experiência criativa dos
valores acidentais dados a um pedaço de pedra antiga pela ação
da natureza. Muitas vezes, essa separação não é tão fácil quanto
se supõe.

34
tica intuitiva, incluindo a percepção e a apreciação da
"qualidade", do mesmo modo que uma pessoa "co-
mum" o faz, quando ele ou ela vê um quadro ou
escuta uma sinfonia.
Como, porém, é possível, erigir a história da arte
numa disciplina de estudo respeitada, se seus próprios
objetos nascem de um processo irracional e subjetivo?
Não se pode responder à pergunta, é claro, tendo
em vista os métodos científicos que têm sido, ou podem
ser introduzidos na história da arte. Artifícios como
análise química dos materiais, raios X, raios ultraviole-
ta, raios infravermelhos e macrofotografia são muito
úteis, mas seu emprego nada tem a ver com o problema
metodológico básico. Uma afirmação segundo a qual
os pigmentos usados numa miniatura pretensamente
medieval não foram inventados antes do século XIX,
pode resolver uma questão de história da arte, mas não
é uma afirmação de história da arte. Baseada, como
é, na análise química e também na história da química,
diz respeito à miniatura não qua obra de arte, mas qua
objeto físico, e pode, do mesmo modo, referir-se a
um testamento forjado. O uso de raios X e macrofo-
tografias, por outro lado, não difere, sob o aspecto
metódico, do uso de óculos ou de lentes de aumento.
Esses artifícios permitem ao historiador de arte ver
mais do que poderia fazê-Io sem eles, porém, aquilo
que vê precisa ser interpretado "estilisticamente" como
aquilo que percebe a olho nu.
A verdadeira resposta es.á no fato de a recriação
estética intuitiva e a pesquisa arqueológica serem inter-
ligadas de modo a formar o que já chama~os ~ntes
de "situação orgânica". Não é verdade que o historiador
de arte primeiro constitua seu objeto por meio de uma
síntese recriativa, para só depois começar a investigação
arqueológica - como se primeiro comprasse o bilhete
para depois entrar no trem. N a realidade, os dois
processos não sucedem um ao outro, mas se interpe-
netram: a síntese recriativa serve de base para a inves-
tigação arqueológica, e esta, por sua vez, serve de.
base para o processo recriativo; ambas se qualificam
e se retificam mutuamente.

3
Quem q~er que se defronte com uma obra de
arte, seja recna~do-a esteticamente, seja investigando-a
raclOnalment~, .e afet~d~ por seus três componentes:
fO?D.a materializada, idéia (ou seja, tema, nas artes
plásticas) e conteúdo. A teoria pseudo-impressionista
segundo a qual "forma e cor nos falam de forma e cor
e.,iss? é tU,d?" é, simplesmente, incorreta. Na expe~
nencia estética realiza-se a unidade desses três ele-
me~~os, e todos três entram no que chamamos de gozo
estético da arte.

A experiência recriativa de uma obra de arte de.


pende, portanto, não apenas da sensibilidade natural
e do preparo visual do espectador, mas também de
sua bagagem cultural. Não há espectador totalmente
'~ingênuo':. O observador "ingênuo" da Idade Média
tinha muito q.ue aprende~ ~ algo a esquecer, até que
pudesse apreciar a estatuana e arquitetura clássicas e
o observador "ingênuo" do período pós-renascenti~ta
tinha muito ~ esquecer e algo a aprender até que
pudesse apreciar a arte medieval, para não falarmos
da primitiva. Ass~m,? obser;ador "ingênuo" não goza
apenas, mas tambem, mconscientemenre, avalia e inter-
preta a obr~ de arte; e ninguém pode culpá-Io se o
~az sem se Importar em saber se sua apreciação ou
mterpretação estão certas ou erradas, e sem compreen-
der que sua própria bagagem cultural contribui, na
verdade, para o objeto de sua experiência.
O observador "ingênuo" difere do historiador de
arte, pOIS o último está cônscio da situação. Sabe que
sua bagagem cultural, tal como é, não harmonizaria
con; a de outras pessoas de outros países e de outros
períodos. Te,nta, portanto, ajustar-se, instruindo-se o
m~xlmo pOSSIVeI sobre as circunstâncias em que os
obJ~t?s, de se~s. est~ldos foram criados. Não apenas
coligirá e verificará toda informação fatual existente
quanto a meio, condição, idade, autoria, destino
etc. " mas comparará também a obra com outras de
mes~a cIas,s~, e examinará escritos que reflitam os
pa~roes estéticos de seu país e época, a fim de conse-
gUir, uma apr~ciação mais "objetiva" de sua qualidade.
!--era .~elhos livros de teologia e mitologia para poder
identificar o assunto tratado, e tentará, ulteriormente,

36
determinar seu lugar histórico e separar a contribuição
individual de seu autor da contribuição de seus ante-
passados e contemporâneos. Estudará os princípios
formais que controlam a representação do mundo vi-
sível ou, em arquitetura, o manejo do que se pode
chamar de características estruturais, e assim construir
a história dos "motivos". Observará a interligação
entre as influências das fontes literárias e os efeitos
de dependência mútua das tradições representacionais,
a fim de estabelecer a história das fórmulas iconográ-
ficas ou "tipos". E fará o máximo possível para se
familiarizar com as atitudes religiosas, sociais e filo-
sóficas de outras épocas e países, de modo a corrigir
sua própria apreciação subjetiva do conteúdo 12. Mas,
ao fazer tudo isso, sua percepção estética como tal,
mudará nessa conformidade e, cada vez mais, se adap-
tará à "intenção" original das obras. Assim, o que o
historiador de arte faz, em oposição ao apreciador de
arte "ingênuo", não é erigir uma superestrutura racio-
nal em bases irracionais, mas desenvolver suas expe-
riências recriativas, de forma a afeiçoá-Ias ao resultado
de sua pesquisa arqueológica, ao mesmo tempo que
afere continuamente os resultados de sua pesquisa
arqueológica com a evidência de suas experiências re-
criativas 13.

12. Para os termos técnicos usados neste parágrafo. ver


"The lntroduction to E. Panofsky", Studies in Iconology, reedi-
tado aqui nas pp. 45-85.
13. O mesmo é válido, por certo, para a h.stórta da lite-
ratura e outras fonnas de expressão artistica. Segundo Dionysius
Thrax· (Ars Grammatica, ed. Uhlig, XXX, 1883, p. 5 e ss.; citado
em GILBERT MURRAY, Religio Grammatici, The Religion oi a ·Man
oi Letters, Boston e Nova York, 1918, p. 15)., rpa~~aTIK~ (histó-
ria da literatura, como diríamos) é uma É~1TE!pía i conhectmento
baseado na experiência) daquilo que foi dito pelos poetas e
escritores de prosa. Ele a divide. em seis partes, sendo possível
encontrar para cada uma delas um paralelo na história da arte:
I) Óvc'ryvc.Jalç lVTPII5i]ÇKO:rà rrpoo oêlcv (leitura técnica em voz
alta segundo <l prosódia): isso é. na verdade, a recriação esté-
tica sintética de uma obra de literatura e comparável à "reali-
zação": visual de uma obra de arte.
2) . l~lÍY'1alç KaTà TOUÇ ÉvvrrÓPxovTaç 1TOI'1TIKOUÇTpó1TOuç
(explanação das fi~uras de lInguagem que apareçam): seria com-
parável à história das fórmulas iconográficas ou "tipos".
3) yÀúXIawv TE Kal lo-ropiôv 1TpÓXElpOÇ árrÓÓOOIÇ (interpretação
imediata ou improvisada de palavras e termos obsoletos): iden-
tificação do tema iconográfico.
4) hu~oÀoyíaç EÚP'1aIÇ (descoberta das etímologías ) : deriva-
ção dos "motivos".
5) CrvaÀoyíaç lKÀoyla~óç (explanação das formas gramaticais):
análise da estrutura da composição.

37
Leonardo da Vinci disse: "Duas fraquezas,
apoiando-se uma contra a outra resultam numa
força" 14. As metades de um arco, sozinhas, não con-
seguem ~e.ma~ter em pé. I?o mesmo modo, a pesquisa
arqueológica e cega e vazia sem a recriação estética
ao passo que esta é irracional, extraviando-se, muitas
vezes, sem a pesquisa arqueológica. Mas, "apoiando-se
uma contra a outra", as duas podem suportar um "sis-
tema que faça sentido", ou seja, uma sinopse histórica.
Como já afirmei antes, ninguém pode ser conde-
nado por desfrutar obras de arte "ingenuamente" ~
por apreciá-Ias e interpretá-Ias segundo suas luzes sem
se importar com nada mais. Mas o humanista verá
c.o~ su,~p*eitaaquilo que se pode chamar de "aprecia-
tivismo . Aquele que ensina pessoas inocentes a
compreender a arte sem preocupação com línguas clás-
sicas, métodos históricos cansativos e velhos, e empoei-
rados documentos, priva a "ingenuidade" de todo o
seu encanto sem corrigir-lhe os erros.
6"
.6.> ,Kpí<1IÇ 1To.''1~áT(~v, Ó KáÀÀ"nóv ÉO'TI rrévrov Tc':>V iv -rij' TÉXVIJ
(cr-ítica Iíterâría. cura parte. mais bela é a .ornpreerrâída pel~
rpa~~aTIKIÍ.): apreciação crítica das obras de arte.
A expr:,ssã.o "apreciação crítica das obras de arte" suscita
uma questao Interessante. Se a história da arte admite uma
e~ca~a. de yalores. ;:tssim como a história da literatura ou a
h.lst~na polítíca a.dmItem uma gradação por "grandeza" ou exce-
le_ncla. co,!,? JustIfIcaremos o fato de os métodos aqui expostos
na~ permttírem, ao que parece. uma diferenOoiação entre pri-
merra, segunda e t~rceira categoria de obras de arte? . Ora, uma
escala de valores e em parte um problema de reações pessoais
e e~ parte um problema de tradição. Esses dois padrões. dos
quais o .segundo e. comparativamente. o mais objetivo. precisam
s<;,r.contmuamente revistos, e cada investigação. por mais espe-
clal!zada que seja. contribui para esse processo. Por essa mesma
ra~ao. o hístoríador de arte não pode fazer uma distinção a
pnon entre seu método de abordar uma "obra-prima" e uma
obra de ar.te "medíocre" ou uinferior" - assim 'Como um estu-
dante de lIteratura clássica é obrigado a' investigar as tragédias
de Sófocles da mesma maneira que analisa as de Sêneca. l!:
verdade que os .métodos da história da arte mostrarão sua efeti-
vI~ade. qua métodos, quando aplicados tanto Melencolia de
à

Durer como a um entalhe anônimo e desimportante. Mas


quando uma "obra-prima" é comparada e vinculada a outra~
tantas obras de "m-;nor i~po!tância:' quantas as que se afigu-
ram no decurso da mvestlgaçao como comparáveis e vinculáveis
a ela. ~ .orlgmahd;:tde de sua invenção. a superioridade de sua
compos~.çao e ,~écmca e todas as demais caracteristicas que a
fazem grande saltam aos olhos imediatamente - não apesar
mas por causa. do fat~ de todo o grupo ter sido submetido ~
um mesmo e umco metodo de análise e interpretação.
14. Il codice atlantico di Leonardo da Vinci nella Biblio-
~~oc~4:':.bros,ana di Milano, Milãp. ed. G. Píumati , 1894-1903.

• Appreciationism no original' não há termo em português


para essa idéia. (N. da T.) .

38
o "apreciativismo" não deve ser confundido com
o conhecimento do "entendido" e a "teoria da arte".
O connoisseur * é o colecionador, curador de museu ou
perito que, deliberadamente, limita sua contribuição ao
estudo da matéria ao trabalho de identificar obras de
arte com respeito à data, origem e autoria, e avaliá-Ias
no tocante à qualidade e estado. A diferença existente
entre ele e o historiador de arte não é tanto uma ques-
tão de princípio, como de ênfase e clareza, comparável
à diferença existente entre o diagnosticado r (ou: clí-
nico) e o pesquisador na área da medicina. O connois-
seur tende a salientar o aspecto recriativo do complexo
processo que tentei descrever, e considera a tarefa de
erigir uma concepção histórica como secundária; o his-
toriador de arte, num sentido mais estreito ou acadê-
mico, tende a reverter essas tônicas. Ora, o simples
diagnóstico de "câncer", se correto, implica tudo o que
o pesquisador poderia nos dizer sobre a doença e pre-
tende, portanto, que é verificável por uma análise cien-
tífica subseqüente; similarmente, o diagnóstico "Rem-
brandt, cerca de 1650", se correto, implica tudo o que
o historiador de arte poderia nos dizer sobre os valores
formais do quadro, sobre a interpretação do tema, sobre
o modo como reflete a atitude cultural da Holanda do
século XVII, sobre a maneira como expressa a perso-
nalidade de Rembrandt; e esse diagnóstico, também
pretende sobreviver à crítica do historiador de arte,
no sentido mais estrito. Ú connoisseur poderia portan-
to ser definido como um historiador de arte lacônico
e o historiador de arte como um connoisseur loquaz.
Na verdade, os melhores representantes de ambos os
tipos contribuíram, enormemente, para o que eles pró-
prios não consideram assunto próprio 15.
• A palavra connoisseur, de origem francesa, tem uso
corrente em nossa língua por não ter equiv.alente exato em
português. Tanto perito, técnico, conhecedor ou entendido não
expressam bem a idéia do termo. (N. da T)
15. Ver M. J. FRIEDLANDER, Der Kenner, Berlim, 1919. e E.
WXND,Aesthetischer und kunstwissenschaftlicher Gegenstand,
loco cito Friedlãnder corretamente afirma que um bom historia-
dor de arte é. ou pelo menos vem a ser, um Kenner wider
WiUen. Inversamente. um bom connoisseur pode ser chamado
de historiador de arte malgré lui.

39
, . Por. outro lado, a teoria da arte - em oposição
a filosofia da arte ou estética - é, para a história da
arte,. o que a poesia e a retórica são para a história
da literatura,
Devido ao fato de os objetos da história da arte
virem à existência graças a um processo de síntese
estética recreativa, o historiador de arte encontra-se
diante. de uma peculiar dificuldade quando tenta ca-
ractenzar o que se poderia denominar de estrutura
estilística das obras com as quais se ocupa. Já que tem
que descrever essas obras, não como corpos físicos
ou substitutos de corpos físicos, mas como objetos de
uma experiência interior, seria inútil - mesmo que
f?sse possível - expressar formas, cores e caracterís-
tícas d.e construção em termos de fórmulas geométricas,
compnmento de ondas, e equações estatísticas, ou des-
crever as posturas de urna figura humana através de
u.~a .an~lise .anatômica. Por outro lado, já que a expe-
nencia ínteríor de um historiador de arte não é livre
nem s~bj.etiva, mas l~e foi esboçada pelas atividades
propositais de um artista, não deve ele cingir-se a des-
crever suas impressões pessoais a respeito da obra de
arte como um. poeta poderia descrever suas impressões
sobre uma paisagem ou o canto de um rouxinol.
Os obj~tos da história da arte, portanto, só podem
ser car~ctenzados numa terminologia que é tão re-
construtiva quanto a experiência do historiador de arte
é recreativa: precisa descrever as peculiaridades esti-
lísticas,. n,ão.como dados mensuráveis, ou, pelo menos,
~etermmavels, nem como estímulos de reações subje-
tívas, mas como aquilo que presta testemunho das
"intenções" artísticas. Ora, as "intenções" só podem
ser formuladas em termos de alternativas: é mister
supor uma situação na qual o fazedor da obra dispunha
de mais de uma possibilidade de atuação, ou seja, em
que ele se viu, frente a frente, com um problema da
escolha entre diversos modos de ênfase. Assim evi-
dencia-se que os termos usados pelo historiador de
arte interpretam as peculiaridades estilísticas das obras
como soluções específicas de "problemas artísticos"
genéricos. Não é esse, apenas, o caso de nossa mo-
derna termínologia, mas também o de expressões como

40
rilievo, sjumato etc. que aparecem em escritos do
século XVI.
Quando chamamos uma figura de um quadro da
Renascença italiana de "plástica", enquanto descreve-
mos uma outra, de um quadro chinês, como "tendo
volume, mas não massa" (devido à ausência de mode-
lagem), interpretamos essas figuras como duas soluções
diferentes de um mesmo problema que poderíamos for-
mular como "unidades volumétricas (corpos) versus
expansão ilimitada (espaço)". Ao distinguir entre o
11510 da linha como "contorno" e, para citar Balzac, o
uso da linha como "le moyen par lequel l'homme se
rend compte de l'effet de Ia lumiêre sur les objets" *
referimo-nos ao mesmo problema, embora dando ên-
fase especial a um outro: "linha versus áreas de cor".
Se refletirmos sobre o assunto, veremos que há um
número limitado desses problemas primários, inter-
relacionados uns com os outros, o que, de um lado,
gera uma infinidade de questões secundárias e terciárias
e, de outro, pode em última análise derivar de uma
antítese básica: diferenciação versus continuidade 16.
Formular e sistematizar os "problemas artísticos"
_ que não são, é claro, limitados à esfera dos valores
puramente formais, mas incluem a "estrutura estilística"
do tema e do conteúdo também - e assim armar um
sistema de Kunstwissenschaftliche Grundbegriffe (No-
ções fundamentais da Teoria da Arte) é o objetivo da
Teoria da Arte e não da História da Arte. Mas aqui
encontramos, pela terceira vez, o que decidimos chamar
de "situação orgânica". O historiador de arte, como
já vimos, não pode descrever o objeto de sua expe-
riência recriativa sem reconstruir as intenções artísticas
em termos que subentendam conceitos teóricos genéri-
cos. Ao fazer isso, ele, consciente ou inconscientemen-
te, contribuirá para o desenvolvimento da teoria da
• o meio pelo qual o homem toma conhecimento do efeito
da luz sobre os objetos. Em francês no original. (N. da T.)
16. Ver ~. PANOFSKY, Ueber das Verhãltnis der Kunstges-
chichte zur Kunsttheorie. Zeitschrift für Aesthetik und aUge-
meine Kunstwissenschaft, XVIII, 1925, p. 129 e ss., e E. WJND,
Zur Systematik der kunstlerischen Probleme, ibidem, p. 438
e ss,

41
arte, que, sem a exemplificação histórica, continuaria
a ser apenas um pálido esquema de universais
abstratos. O teórico da arte, por outro lado, quer
aborde o assunto a partir do ponto de vista da epis-
temologia neoclássica, da Crítica de Kant, ou da Ges-
taltpsychologie 17, não pode armar um sistema de con-
ceitos genéricos sem se referir a obras de arte que
nasceram em condições históricas específicas' mas ao
proceder assim, ele, consciente ou inconscientemente
contribuirá para o desenvolvimento da história da arte:
que, sem orientação teórica, seria um aglomerado de
particulares não formulados.
Quando chamamos o connoisseur de historiador
de arte lacônico, e o historiador de arte de connoisseur
loquaz, a relação entre o historiador de arte e o teórico
de arte pode comparar-se à de dois vizinhos que tenham
o direito de caçar na mesma zona, sendo que um é
o dono do revólver e o outro de toda a munição.
Ambas as partes fariam melhor se percebessem a ne-
cessidade de sua associação. Já foi dito que, se a
t~o.ria não for recebida à porta de uma disciplina em-
pínea, entra como um fantasma, pela chaminé e põe
a mobília da casa de pernas para o ar. Mas, não é
menos verdade que, se a história não for recebida à
porta de uma disciplina teórica que trate do mesmo
conjunto de fenômenos, infiltrar-se-á no porão, como
um bando de ratos, roendo todo o trabalho de base.

v
];: coisa certa que a história da arte mereça um
lugar entre as humanidades. Mas para que servem as
humanidades; como tais? São, admitidamente discipli-
nas não-práticas que tratam do passado. Pode-se per-
guntar por que motivo devemos empenhar-nos em
investigações não-práticas e inter~ssar-nos pelo passado?
A resposta à primeira pergunta é: porque nos
interessamos pela realidade. Tanto as humanidades
quanto as ciências naturais, assim como a matemática
17. Cl. H. SEDLMAYR. "Zu einer stregen Kunstwissenschaft"
Kunstwissenschaftliche FOTschungen, I. 1931, p. 7 e ss. '

42
e a filosofia têm a perspectiva não-prática daquilo que
os antigos chamavam de vita contemplativa, em oposi-
ção a vita activa. Mas, é a vida contemplativa menos
real, ou, para ser mais preciso, é sua contribuição para
o que chamamos de realidade menos importante do que
a da vida ativa?
O homem que aceita uma cédula de um dólar
em troca de vinte e cinco maçãs pratica um ato de fé
e submete-se a uma doutrina teórica, tal como pro-
cedia o homem medieval que pagava por sua indul-
gência. O homem que é atropelado por um automóvel,
é atropelado pela matemática, física e química. Pois
quem leva uma vida contemplativa não pode deixar de
influenciar a ativa, como não pode impedir a vida
ativa de influenciar seu pensamento. Teorias filosó-
ficas e psicológicas, doutrinas históricas e toda a espé-
cie de especulações e descobertas têm mudado e con-
tinuam mudando a vida de muitos milhões de pessoas.
Mesmo aquele que simplesmente transmite sabedoria
ou conhecimento, participa, embora de modo modesto,
do processo de moldagem da realidade - fato este de
que talvez os inimigos do humanismo estejam mais
cientes do que os amigos 18. É impossível conceber
nosso mundo em termos de ação, apenas. Só em Deus
há "Coincidência de Ação e Pensamento", como di-
ziam os escolásticos. Nossa realidade só pode ser en-
tendida como uma interpenetração desses dois fatores.
Mas, ainda assim, por que deveríamos nos inte-
ressar pelo passado? A resposta é a mesma: porque
nos interessamos pela realidade. Não há nada menos
18. Numa carta dirigida ao New statesman and Nation,
XIII, 19 de junho de 1937, um tal senhor Pat Sloan defende a
exoneração de catedráticos e professores na União Soviética
afirmando que "um catedrático que advoga uma filosofia pré-
-cientifica antiquada em detrimento de uma científica pode ser
uma força reacionária tão poderosa quanto um soldado num
exército de ocupação". Verificamos que por "advogar ele pre-
tende também significar a mera transmissão do que chama de
filosofia "pré-cientifica", pois continua assim: "Quantos espl-
ritos, hoje, na Inglaterra, estão sendo impedidos de jamais entrar
em contacto com o Marxismo pelo simples processo de sobre-
carregá-Ios ao máximo com obras de Platão e outros filósofos?
Nestas circunstâncias, tais obras não têm um papel neutro,
mas antimarxista, e os marxistas reconhecem este fato". Não
é preciso dizer que, "nestas circunstâncias", as obras de "Platão
e outros filósofos" também têm um papel antifascista, e os fas-
cistas, por sua vez, "reconhecem este fato".

43
rea1 que o presente. Uma hora atrás, essa conferência
pertencia ao futuro. Dentro de quatro minutos, per-
tencerá ao passado. Quando disse que o homem atro-
pelado por um automóvel o é, na verdade, pela mate-
mática, física e química, poderia também ter afirmado
que o atropelamento se deve a Euclides, Arquimedes e
Lavoisier.
Para apreendermos a realidade temos que nos
apartar do presente. A filosofia e a matemática o
fazem, construindo sistemas num meio que, por defi-
nição, não está sujeito ao tempo. As ciências naturais
e as humanidades conseguem-no, criando aquelas estru-
turas espaço-temporais que chamei de "cosmo da na-
tureza" e "cosmo da cultura". E, aqui, tocamos no
ponto que talvez seja a diferença mais fundamental
entre ciências naturais e humanidades. A ciência na-
tural observa os processos forçosamente temporais da
natureza e tenta apreender as leis intemporais pelas
.quais se revelam. A observação física só é possível
quando algo "acontece", ou seja, quando uma mudança
ocorre ou é levada a ocorrer por meio de experiências.
E são essas mudanças que, no fim, são simbolizadas
pelas fórmulas matemáticas. As humanidades, por
outro lado, não se defrontam com a tarefa de prender
o que de outro modo fugiria, mas de avivar o que, de
outro modo, estaria morto. Em vez de tratarem de
fenômenos temporais e fazerem o tempo parar, pe-
netram numa área em que o tempo parou, de moto
próprio, e tentam reativá-lo. Fitando esses registros,
congelados, estacionários, que segundo disse, "emer-
gem de uma corrente do tempo", as humanidades ten-
tam capturar os processos em cujo decurso esses regis-
tros foram produzidos e se tornaram o que são 19.

19. Para as humanidades, "reviver" o passado não é um ideal


romântico mas uma necessidade metodológica. Só podem expres-
sar o fato de os registros A, B e C serem "ligados" uns aos
outros afirmando que o homem que produziu o registro A devia
estar familiarizado com os registros B e C, ou com registros do
tipo de B e C, ou com um registro X, que seria a fonte de
B e C, ou que devia ter conhecimento de B enquanto o autor
de B 'tinha que conhecer C etc. É tão inevitãvel que 'as huma-
nidades raciocinem e se expressem em termos de "influências",
"linhas de evolução" etc., como é inevitãvel que as ciências
naturais pensem e se exprimam em termos de equações mate-
mátícas.

44
Dotando, assim, os registros estáticos com vida
dinâmica, em vez de reduzir os fatos transitórios a leis
estáticas, as humanidades não contradizem, mas com-
plementam as ciências naturais. Na verdade, ambas se
pressupõem e exigem uma à outra. Ciência - aqui
tomada na verdadeira acepção do termo, ou seja, uma
busca serena e autodependente do conhecimento e não
algo que sirva, subservientemente, a fins "práticos" -
e humanidades são irmãs, suscitadas como são pelo
movimento que foi corretamente chamado de desco-
berta (ou, numa perspectiva histórica mais ampla, re-
descoberta) do mundo e do homem. E, assim como
nasceram e renasceram juntas, morrerão e ressurgirão
juntas, se o destino permitir. Se a civilização antro-
pocrática da Renascença está dirigida, como parece
estar, para uma "Idade Média às avessas" - uma
satanocracia em oposição à teocracia medieval - não
só as humanidades mas também. as ciências naturais,
como as conhecemos, desaparecerão e nada restará,
exceto o que serve às injunções do subumano. Mas,
nem mesmo isso há de significar o fim do humanismo.
Prometeu pôde ser acorrentado e torturado, porém, o
fogo aceso por sua tocha não pôde ser extinto.
Existe uma diferença sutil em latim entre scientia
e eruditio, e em inglês, entre knowledge (conhecimento)
e learning (estudo). Scientia e conhecimento, denotan-
do mais uma possessão mental que um processo mental,
identificam-se com as ciências naturais; eruditio e es-
tudo, denotando mais um processo que uma possessão,
com as humanidades. A meta ideal da ciência seria
algo como mestria, domínio, e a das humanidades algo
como sabedoria. '
Marsílio Ficino escreveu ao filho de Poggio Brac-
ciolini: "A história é necessária, não apenas para tornar
a vida agradável, mas também para lhe dar uma signi-
ficação moral. O que é mortal em si mesmo consegue
a imortalidade através da história; o que é ausente
torna-se presente; velhas coisas rejuvenescem; eum
jovem logo iguala a maturidade dos velhos. Se um
homem de setenta anos é considerado sábio devido à
sua experiência, quão mais sábio aquele cuja vida abran-

45
ge o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade,
pode-se dizer que um homem viveu tantos milênios
quantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimento
de história" 20.

20. MARSfLIo FIemo. "Carta a Glacomo Bracclolini" (MaT-


sitti Ficini OpeTa omnia, Leyden, 1676, I. p. 658): "res ipsa
[scit., historia] est ad vitam non modo oblectandam. verum-
tamen moribus ínstítuendam summopere necessaria. Si quidem
per se mortalia sunt, immortalitatem ab historia consequuntur.
quae absentía, per eam praesentia fiunt. vetera iuvenescunt.
iuvenes cito maturitatem senis adaequant. Ac si senex septua-
ginta annorum ob ipsarum rerum experientiam prudens habetur.
quanto prudentíor, qui annorum mille. et trium milium implet
aetatem! Tot vero annorum milia vixisse quisque videtur quot
annorum acta didicit ab historia".

46
1. ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA: UMA
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA ARTE
DA RENASCENÇA
I

Iconografia é O ramo da história da arte que trata


do tema ou mensagem das obras de arte em contra-
posição à sua forma. Tentemos, portanto, definir a
distinção entre tema ou significado, de um lado, e for-
ma, de outro.
Quando, na rua, um conhecido me cumprimenta
tirando o chapéu, o que vejo, de um ponto de vista
formal, é apenas a mudança de alguns detalhes dentro
da configuração que faz parte do padrão geral de

47
cores, linhas e volumes que constitui o mundo da minha
visão. Ao identificar, o que faço automaticamente,
essa configuração como um objeto (cavalheiro) é a
mudança de detalhe como um acontecimento (tirar o
chapéu), ultrapasso os limites da percepção puramente
formal e penetro na primeira esfera do tema ou men-
sagem. O significado assim percebido é de natureza
elementar e facilmente compreensível e passaremos a
chamá-lo de significado fatual; é apreendido pela sim-
ples identificação de certas formas visíveis com certos
objetos que já conheço por experiência prática e pela
identificação da mudança de suas relações com certas
ações ou fatos.
Ora, os objetos e fatos assim identificados produ-
zirão, naturalmente, uma reação em mim. Pelo modo
do meu conhecido executar sua ação, poderei saber se
está de bom ou mau humor, ou se seus sentimentos
a meu respeito são de amizade, indiferença ou hostili-
dade. Essas nuanças psicológicas darão ao gesto de
meu amigo um significado ulterior que chamaremos de
expressional. Difere do fatual por ser apreendido, não
por simples identificação, mas por "empatia". Para
compreendê-lo preciso de uma certa sensibilidade, mas
essa é ainda parte de minha experiência prática, isto é,
de minha familiaridade cotidiana com objetos e fatos.
Assim, tanto o significado expressional como o fatual
podem classificar-se juntos: constituem a classe dos
significados primários ou naturais.
Entretanto, minha compreensão de que o ato de
tirar o chapéu representa um cumprimento pertence a
um campo totalmente diverso de interpretação. Essa
forma de saudação é peculiar ao mundo ocidental e
um resquício do cavalheirismo medieval: os homens
armados costumavam retirar os elmos para deixarem
claras suas intenções pacíficas e sua confiança nas in-
tenções pacíficas dos outros. Não se poderia esperar
que um bosquímano australiano ou um grego antigo
compreendessem que o ato de tirar o chapéu fosse, não
só um acontecimento prático com algumas conotações
expressivas, como também um signo de polidez. Para
entender o que o gesto do cavalheiro significa, preciso
não somente estar familiarizado com o mundo prático

48
dos objetos e fatos, mas, além disso, com o mundo
mais do que prático dos costumes e tradições culturais
peculiares a uma dada civilização. De modo inverso,
meu conhecido não se sentiria impelido a me cumpri-
mentar tirando o chapéu se não estivesse cônscio do
significado deste ato. Quanto às conotações expressio-
nais que acompanham sua ação, pode ou não ter cons-
ciência delas. Portanto, quando interpreto o fato de
tirar o chapéu como uma saudação polida, reconheço
nele um significado que pode ser chamado de secun-
dário ou convencional; difere do primário ou natural
por duas razões.: em primeiro lugar, por ser inteligível
em vez de sensível e, em segundo, por ter sido cons-
cientemente conferido à ação prática pela qual é vei-
culado.
E finalmente: além de constituir um acontecimen-
to natural no tempo e espaço, além de indicar, natural-
mente, disposições de ânimo e sentimentos, além de
comunicar uma saudação convencional, a ação do meu
conhecido pode revelar a um observador experimentado
tudo aquilo que entra na composição de sua "perso-
nalidade'. Essa personalidade é condicionada por ser
ele um homem do século XX, por suas bases nacionais,
sociaise de educação, pela história de sua vida passada
e pelas circunstâncias atuais que o rodeiam; mas ela
também se distingue pelo modo individual de encarar
as coisas e de reagir ao mundo que, se racionalizado,
deveria chamar-se de filosofia. Na ação isolada de uma
saudação cortês, todos esses fatos não se manifestam
claramente, porém sintomaticamente. Não podemos
construir o retrato mental de um homem com base
nesta ação isolada, e sim coordenando um grande nú-
mero de observações similares e interpretando-as no
contexto de novas informações gerais quanto à sua
época, nacionalidade, classe social, tradições intelec-
tuais e assim por diante. No entanto, todas essas qua-
lidades que o retrato mental explicitamente mostraria
são implicitamente inerentes a cada ação isolada; de
modo que; inversamente, cada ação pode ser inter-
pretada à luz dessas qualidades.
O significado assim descoberto pode denominar-se
intrínseco ou conteúdo; é essencial, enquanto que os

49
outros dois tipos de significado, o primano OU natural
e o secundário ou convencional, são fenomenais. É
poss.ível defini-I? como um princípio unificador que
sublinha e explica os acontecimentos visíveis e sua
significação inteligível e que determina até a forma sob
a qual o acontecimento visível se manifesta. Normal-
mente, esse significado intrínseco ou conteúdo está tão
~cima da esfe~a da vo~tade consciente quanto o signi-
ficado expressional esta abaixo dela.
Transportando os resultados desta análise da vida
cotidiana para uma obra de arte, cabe distinguir os
mesmos três níveis no seu tema ou significado:

I. Tema primário ou natural, subdividido em


[atual e expressional. É apreendido pela identificação
das formas puras, ou seja: certas configurações de
linha e cor, ou determinados pedaços de bronze ou
pedra de forma peculiar, como representativos de obje-
tos naturais tais que seres humanos, animais, plantas,
casas, ferramentas e assim por diante; pela identifica-
ção de suas relações mútuas como acontecimentos; e
pela percep~ão de algumas qualidades expressionais,
como o cara ter pesaroso de uma pose ou gesto, ou a
atmosfera caseira e pacífica de um interior. O mundo
das formas puras assim reconhecidas como portadoras
de significados primários ou naturais pode ser chamado
de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração
desses motivos constituiria uma descrição pré-icono-
gráfica de uma obra de arte.

11. Tema secundário ou convencional: é apreen-


dido pela percepção de que uma figura masculina com
uma faca representa São Bartolomeu, que uma figura
feminina com um pêssego na mão é a personificação
da veracidade, que um grupo de figuras, sentadas a
uma mesa de jantar numa certa disposição e pose, re-
presenta a Ültima Ceia, ou que duas figuras comba-
tendo entre si, numa dada posição, representam a Luta
entre o Vício e a Virtude. Assim fazendo, ligamos os
motivos artísticos e as combinações de motivos artís-
ticos (composições) com assuntos e conceitos. Moti-
vos reconhecidos como portadores de um significado

50
secundário ou convencional podem chamar-se imagens,
sendo que combinações de imagens são o que os anti-
gos teóricos de arte chamavam de invenzioni; nós cos-
tumamos dar-Ihes o nome de estórias e alegorias 1. A
identificação de tais imagens, estórias e alegorias é o
domínio daquilo que é normalmente conhecido por
"iconografia". De fato, ao falarmos do "tema em opo-
sição à forma", referimo-nos, principalmente, à esfera
dos temas secundários ou convencionais, ou seja, ao
mundo dos assuntos específicos ou conceitos manifes-
tados em imagens, estórias e alegorias, em oposição
ao campo dos temas primários ou naturais manifestados
nos motivos artísticos. "Análise formal", segundo
Wõlfflin, é uma análise de motivos e combinações de
motivos (composições), pois, no sentido exato da pa-
lavra, uma análise formal deveria evitar expressões co-
mo "homem", "cavalo" ou "coluna", sem falarmos em
frases como "o feio triângulo entre as pernas de Davi
de Michelangelo" ou "a admirável iluminação das jun-
tas do corpo humano". É óbvio que uma análise ico-
nográfica correta pressupõe uma identificação exata dos
motivos. Se a faca que nos permite identificar São
Bartolomeu não for uma faca, mas um abri dor de
garrafas, a figura não será São Bartolomeu. Além
disso, é importante notar que a afirmação "essa figura
1. Imagens que veiculam a idéia, não de objetos e pessoas
concretos e individuais (tais como São Bartolomeu, Vênus, Mrs.
Jones ou o Castelo de Windsor), mas de noções gerais e abstra-
tas como Fé, Luxúria, Sabedoria etc., são chamadas personifica-
ções ou símbolos (não no sentido cassireriano, mas no comum,
e.g., a Cruz, ou a Torre da Castidade). Assim, alegorias, em
oposição a estórias, podem ser definidas como combinações de
personificações e/ou símbolos. Há, é claro, muitas possibilidades
intermediãrias. Uma pessoa A 'pode ser retratada sob o disfarce
da pessoa B (Andrea Doria de Bronzino como Netuno; Lucas
Paurngãrtner de Dürer como São Jorge), ou na atitude costu-
meira de uma personificação (Mrs. Stanhope de Joshua Reynolds
como "Contemplação"); retratos de pessoas individuais e con-
cretas, tanto humanas como mitológicas, podem combinar-se COm
personificações, como é o caso das incontãveis representações
de caráter eulogistico. Uma estória pode comunicar, também,
uma idéia alegórica, como é o caso das ilustrações do Ovide
MOTalisé, ou pode ser concebida como uma prefiguração de uma
-outra estória, COll·.Ona Biblia Pauperum. ou na Speculum Hu-
manae Salvationis. Tais significados sobrepostos, ou não entram
no conteúdo da obra, como no caso das ilustrações do Ovlide
Momlisé, que são visualmente indistinguíveis das miniaturas não
alegóricas a ilustrar os mesmos temas ovídíanos: ou podem
ocasionar uma ambigüidade de conteúdo que, entretanto, pode
ser ultrapassada ou mesmo transformada num valor adicional
se os ingredientes conflitantes forem fundidos ao calor de um
temperamento artistico ardente como na Galeria dos Mediei,
de Rubens. .

51
é uma imagem de São Bartolomeu" implica a intenção
consciente do artista de representar este Santo, embora
as qualidades expressivas da figura possam perfeita-
mente não ser intencionais.
IH. Significado intrínseco ou conteúdo: é apre-
endido pela determinação daqueles princípios subja-
centes que revelam a atitude básica de uma nação, de
um período, classe social, crença religiosa ou filosó-
fica - qualificados por uma personalidade e conden-
sados numa obra. Não é preciso dizer que estes prin-
cípios se manifestam, e portanto esclarecem, quer
através dos "métodos de composição", quer da "signi-
ficação iconográfica". Nos séculos XIV e XV, por
exemplo (os primeiros exemplos datam de cerca de
1300), o tipo da Natividade tradicional, com a Virgem
Maria reclinada numa cama ou cana pé, foi freqüen-
temente substituído por um outro que mostra a Virgem
ajoelhada em adoração ante o Menino. Do ponto de
vista da composição, essa mudança significa, falando
grosso modo, a substituição do esquema triangular por
outro retangular; do ponto de vista iconográfico, signi-
fica a introdução de um novo tema a ser formulado
na escrita por autores como o Pseudo-Boaventura e
Santa Brígida. Mas, ao mesmo tempo, revela uma
nova atitude emocional, característica do último período .
da Idade Média. Uma interpretação realmente exaus-
tiva do significado intrínseco; ou conteúdo poderia até
nos mostrar técnicas características de um certo país,
período ou artista, por exemplo, a preferência de
Michelangelo pela escultura em pedra, em vez de em
bronze, ou o uso peculiar das sombras em seus de-
senhos, são sintomáticos de uma mesma atitude básica
que é discernível em todas as outras qualidades especí-
ficas de seu estilo. Ao concebermos assim as formas
puras, os motivos, imagens, estórias e alegorias, como
manifestações de princípios básicos e gerais, interpre-
tamos todos esses elementos como sendo o que Ernst
Cassirer chamou de valores "simbólicos". . Enquanto
nos' limitarmos a afirmar que o famoso afresco de Leo-
nardo da Vinci mostra um grupo de treze homens em
volta a uma mesa de jantar e que esse grupo de homens
representa a Última Ceia, -tratamos a obra de arte
como tal e interpretamos suas características composi-

52
cionais e iconográficas como qualificações e proprie-
dades a ela inerentes. Mas, quando tentamos compre-
endê-Ia como um documento da personalidade de
Leonardo, ou da civilização da Alta Renascença ita-
liana, ou de uma atitude religiosa particular, tratamos
a obra de arte como um sintoma de algo mais que se
expressa numa variedade incontável de outros sintomas
e interpretamos suas características composicionais e
iconográficas como evidência mais particularizada desse
"algo mais" . A descoberta e interpretação desses va-
lores "simbólicos" (que, muitas vezes, são desconhe-
cidos pelo próprio artista e podem, até, diferir enfati-
camente do que ele conscientemente tentou expressar)
é o objeto do que se poderia designar por "iconologia"
em oposição a "iconografia".
[O sufixo "grafia" vem do verbo grego graphein,
~"escrever"; implica um método de proceder puramente
descritivo, ou até mesmo estatístico. A iconografia é,
portanto, a descrição e classificação das imagens, assim
como a etnografia é a descrição e classificação das
raças humanas; é um estudo limitado e, como que
ancilar, que nos informa quando e onde temas especí-
ficos foram visualizados por quais motivos específicos.
Diz-nos quando e onde o Cristo crucificado usava uma
tanga ou uma veste comprida; quando e onde foi Ele
pregado à Cruz, e se com quatro ou três cravos; como
o Vício e a Virtude eram representados nos diferentes
séculos e ambientes. Ao fazer este trabalho, a icono-
grafia é de auxílio incalculável para o estabelecimento
de datas, origens e, às vezes, autenticidade; e fornece
as bases necessárias para quaisquer interpretações ul-
teriores. Entretanto, ela não tenta elaborar a interpre-
tação sozinha. Coleta e classifica a evidência, mas
não se considera obrigada ou capacitada a investigar
a gênese e significação dessa evidência: a interação
entre os diversos "tipos"; a influência das idéias filo-
sóficas, teológicas e políticas; os propósitos e inclina-
ções individuais dos artistas e patronos; a correlação
entre os conceitos inteligíveis e a forma visível que
assume em cada caso específico. Resumindo, a icono-
grafia considera apenas uma parte de todos esses ele-
mentos que constituem o conteúdo intrínseco de uma

53
obra de arte e que precisam tornar-se explícitos se se
quiser que a percepção desse conteúdo venha a ser
articulada e comunicável.
~Devido às graves restrições que o uso corriqueiro,
especialmente nesse país *, opõem à palavra "icono-
grafia", proponho reviver o velho e bom termo "icono-
logia", sempre que a iconografia for tirada' de seu
isolamento e integrada em qualquer outro método his-
tórico, psicológico ou crítico, que tentemos usar para
resolver o enigma da esfinge. Pois, se o sufixo "grafia"
denota. algo descritivo, assim também o sufixo "logia"
- denvado de logos, que quer dizer "pensamento"
"razão" - denota algo interpretativo. "Etnologia",
por exemplo, é definida como "ciência das raças hu-
manas" pelo mesmo Oxjord Dictionary que define
"etnografia" como "descrição das raças humanas"; e
o Webster adverte, explicitamente, contra uma confusão
dos ~ois termos, na medida em que a "etnografia se
restnnge ao tratamento puramente descritivo de povos
e raças, enquanto a etnologia denota seu estudo com-
parativo". Assim, concebo a iconologia como uma
iconografia que se torna interpretativa e, desse modo,
converte-se em parte integral do estudo da arte, em
vez de ficar limitada ao papel de exame estatístico
preliminar. Há, entretanto, certo perigo de a iconologia
se portar, não como a etnologia em oposição à etno-
grafia, mas como a astrologia em oposição à astro-
grafia.]
Iconologia, portanto, é um método de interpreta-
ção que advém da síntese mais que da análise. E
assim como a exata identificação dos motivos é o re-
quisito básico de uma correta análise iconográfica,
também a exata análise das imagens, estórias e ale-
gorias é o requisito essencial para uma correta inter-
pretação iconológica - a não ser que lidemos com
obras de arte nas quais todo o campo do tema secun-
dário ou convencional tenha sido eliminado e haja uma
transição direta dos motivos para o conteúdo, como é
o caso da pintura paisagística européia, da natureza
morta e da pintura de gênero, sem falarmos da arte
"não-objetiva" .
• o autor se refere aos Estados Unidos da América do
Norte. (N. da T.)

54
Pois bem, como poderemos conseguir "exatidão"
ao lidarmos com esses três níveis, descrição pré-icono-
gráfica, análise iconográfica e interpretação Iconoló-
gica?
No caso de uma descrição pré-iconográfica, que
se mantém dentro dos limites do mundo dos motivos,
o problema parece bastante simples. Os objetos e
eventos, cuja representação por linhas, cores e volumes
constituem o mundo dos motivos, podem ser identifi-
cados, como já vimos, tendo por base nossa experiên-
cia prática. Qualquer pessoa pode reconhecer a forma
e o comportamento dos seres humanos, animais e plan-
tas, e não há quem não possa distinguir um rosto zan-
gado de um alegre. É claro, às vezes acontece, num
dado caso, que o alcance de nossa experiência não seja
.suficiente, por exemplo, quando nos defrontamos com
a representação de um utensílio obsoleto óu desfarniliar
ou com a representação de uma planta ou animal des-
conhecidos. Nesses casos, precisamos aumentar o al-
cance de nossa experiência prática consultando um livro
ou um perito; mas, mesmo assim, não abandonamos a
esfera da experiência prática como tal, que nos indica,
é desnecessário dizer, o tipo de perito que se deve .
consultar.
Todavia, mesmo nesta área, deparamos com um
problema especial. Pondo de lado o fato de os objetos,
acontecimentos e expressões pintados numa obra de arte
poderem ser irreconhecíveis devido à incompetência
ou premeditação maliciosa do artista, é impossível che-
gar a uma exata descrição pré-iconográfica ou identi-
ficação primária do tema, aplicando, indiscriminada-
mente, nossa experiência prática a uma obra de arte.
Nossa experiência prática é indispensável e suficiente,
como material para a descrição pré-iconográfica, mas
não garante sua exatidão.
Uma descrição pré-iconográfica da obra de Roger
van der Weyden, Os Três Magos, que está no Kaiser
Friedrich Museum, de Berlim (Fig. 1), teria, é claro,
que evitar termos como "Magos" e "Menino Jesus"
etc. Mas seria obrigada a mencionar que a aparição
da criança foi vista no céu. Como sabemos que a
figura da criança é para ser entendida como uma apa-
rição? O fato de estar rodeada de halos dourados não

55
tações contrastantes nos são sugeridas pelas qualidades
"realísticas" da pintura e pelas qualidades "irrealísti-
cas" da miniatura. Mas, o fato de apreendermos essas
qualidades na fração de um segundo, quase automatica-
mente, não nos deve levar a crer que jamais nos seja
possível dar uma correta descrição pré-iconográfica de
uma obra de arte sem adivinharmos, por assim dizer,
qual o seu locus histórico. Embora acreditemos estar
identificando os motivos com base em nossa experiên-
cia prática pura e simples, estamos, na verdade, lendo
"o que vemos", de conformidade com o modo pelo
qual os objetos e fatos são expressos por formas que
variam segundo as condições históricas. Ao fazermos
isso, submetemos nossa experiência prática a um prin-
cípio -corretivo que cabe chamar de história do
estilo 3.
A análise iconográfica,: tratando das imagens, es-
tórias e alegorias em vez de motivos, pressupõe, é
claro, muito mais que a familiaridade com objetos e
fatos que adquirimos pela experiência prática. Pres-
supõe a familiaridade com temas específicos ou con-
ceitos, tal como são transmitidos através de fontes
literárias, quer obtidos por leitura deliberada ou tradi-
ção oral. Nosso bosquímano australiano não seria
capaz de reconhecer o assunto da Última Ceia; esta lhe
comunicaria apenas a idéia de um jantar animado. Para
compreender o significado iconográfico da pintura, teria
que se familiarizar com o conteúdo dos Evangelhos.
3. Corrigir.a interpretação de uma obra de arte individual
por uma "história do estilo" que, por sua vez, só pode ser
construida pela interpretação de obras individuais pode parecer
um circulo vicioso. Na verdade é um círculo, porém não vicioso
e sim metódico (cf. E. WIND, Das Experiment und die Meta-
physik, citado acima p. 23; idem, "Some points of contact between
History and Science", citado ibidem). Quer lidemos com fenô-
menos históricos ou naturais, a observação individual assume o
caráter de um "fato" somente quando for possível relacioná-Ia
com outras observações análogas de tal modo que a série inteira
"faça sentido". Tal "sentido" pode, portanto, perfeitamente ser
aplicado à interpretação de uma nova observação individual
dentro de um mesmo raio de fenômenos. Se, entretanto, essa
nova observação individual se recusar, definitivamente, a ser
interpretada segundo o "sentido" da série, e se se provar a
impossibilidade de erro, dever-se-ã reformular o "sentido" da
série para incluir a nova observação individual. Este circulus
methodicus se aplica, é claro, não apenas ao relacionamento
entre a interpretação dos motivos e a história do estilo, mas
também ao relacionamento entre a interpretação das imagens,
estórias e alegorias e a história dos tipos, e ao relacionamento
entre a interpretação de significados intrinsecos e a história
dos sintomas culturais em geral.

58
Quando se trata da representação de temas outros que
relatos bíblicos ou cenas da história ou mitologia que,
normalmente, são conhecidos pela média das "pessoas
educadas", todos nós somos bosquímanos australianos.
Nesses casos, devemos, também nós, tentar nos fami-
liarizar com aquilo que os autores das representações
liam ou sabiam. No entanto, mais uma vez, embora
o conhecimento dos temas e conceitos específicos trans-
mitidos através de fontes literárias seja indispensável e
suficiente para uma análise iconográfica, não garante
sua exatidão. b tão impossível, para nós, fornecer uma
análise iconográfica correta aplicando, indiscriminada-
mente nosso conhecimento literário aos motivos, quan-
to fornecer uma descrição pré-iconográfica certa apli-
cando, indiscriminadamente, nossa experiência prática
às formas.
Um quadro, de autoria de um pintor veneziano do
século XVII, Francesco Maffei, representando uma bo-
nita jovem com uma espada na mão esquerda e, na
direita uma travessa na Qual está a cabeça de um
home~ degolado (Fig. 3) fôi publicado como o retrato
de Salomé com a cabeça de São João Batista 4. De
fato a Bíblia afirma Que a cabeça de São João Batista
foi ~presentada a Salomé numa bandeja ou prato. Mas,
e a espada? Salomé não decapitou o santo com as
próprias mãos. Pois bem, a Bíblia nos fala de uma
outra bela mulher em conexão com o degolamento de
um homem: Judite. Neste caso, a situação é exata-
mente inversa. A espada no quadro de Maffei estaria
correta, porque Judite decapitou Holofernes com as
próprias mãos, mas a travess~ ?ão concorda com sua
estória, pois o texto diz, explicitamente, que a cabeça
de Holofernes foi posta num saco. Assim, temos duas
fontes literárias aplicáveis à mesma obra, com os mes-
mos direitos e mesma incoerência. Se a interpretarmos
como o retrato de Salomé, o texto explicaria a travessa,
mas não a espada; se a interpretarmos como figuração
de Judite, o texto explicaria a espada, mas não a
travessa. Estaríamos inteiramente perdidos se depen-
dêssemos apenas das fontes literárias. Felizmente, esse
não é o caso. Assim como pudemos suplementar e
4. FIOcco, G. Venetian Painting oi the Seicento and the
Settecento.Florença e Nova York, 1929, pr. 29.

59
corngir nossa expenencia prática investigando a ma-
neira pela qual, sob diferentes condições históricas,
objetos e fatos eram expressos pelas formas, ou seja,
a história dos estilos, do mesmo modo podemos suple-
mentar e corrigir nosso conhecimento das fontes lite-
rárias, investigando o modo pelo qual, sob diferentes
condições históricas, temas específicos ou conceitos
eram expressos por objetos e fatos, ou seja, a história
dos tipos.
No caso presente, teremos que perguntar se havia,
antes de Maffei pintar seu quadro, quaisquer retratos
indiscutíveis de Judite (indiscutíveis porque incluiriam,
por exemplo, a criada de Judite) que apresentassem,
também, travessas injustificadas; ou quaisquer retratos
indiscutíveis de Salomé (indiscutíveis porque inclui-
riam, por exemplo, os pais desta) que apresentassem
espadas injustificadas. Pois bem! Embora não possa-
mos aduzir nenhuma Salomé com uma espada, vamos
encontrar, tanto na Alemanha quanto na Itália do Nor-
te, várias pinturas do século XVI representando Judite
com uma travessa 5; havia um "tipo" ··de "Judite com
a travessa", porém, não havia um "tipo" de "Salomé
com a espada". Daí podemos, seguramente, concluir
que também a obra de Maffei representa Judite e não,
como se chegou a pensar, Salomé.
Caberia ainda, indagar por que os artistas se sen-
tiram no direito de transferir o motivo da travessa de
Salomé para Judite, mas não o motivo da espada de
Judite para Salomé. Esta pergunta pode ser respon-
dida, investigando mais uma vez a história dos tipos,
com duas razões. Uma é que a espada era um atributo
estabelecido e honorífico de Judite, de muitos mártires
e de algumas virtudes, como a Justiça, a Fortaleza etc.;
5. Uma das pinturas do Norte italiano é atribuída a Roma-
nino e encontra-se hoje no Berlin Museum, onde era antes
catalogada como Sa!omé a despeito da aia, de um soldado dor-
mindo e da cidade de Jerusalém ao fundo (n. 155); outra é
atribuída ao discípulo de Romanino, Francesco Prato da Cara-
vaggio (catalogada no Catálogo de Berlim) e uma terceira é de
autoria de Bernardo Strozzi, que nasceu em Gênova mas atuou
em Veneza mais ou menos na mesma época que Francesco
Maffei. É bem possível que o tipo de Judite com uma travessa
se originasse na Alemanha. Um dos primeiros exemplos conhe-
cidos (de autoria de um mestre anônimo de cerca de 1530,
relacionado com Hans Baldung Grien) foi publicado por G.
POENSGEN, Beítr-ãge zu Baldung und seinem Kreis, Zeitschrift
iur Kunstgeschichte, VI, 1937, p. 36 e ss.

61
issím, não poderia ser transferi da, com propriedade,
para uma jovem lasciva. A outra razão é que, durante
os séculos XIV e XV, a bandeja com a cabeça de São
João Batista tornara-se urna imagem devocional isolada
(Andachtsbild) muito popular nos países nórdicos e
no Norte da Itália (Fig. 4); fora extraída da represen-
tação da estória de Salomé do mesmo modo como o
grupo de São João Evangelista descansando no colo do
Senhor viera a ser extraído da Ültima Ceia, ou a Vir-
gem no parto da Natividade. A existência dessa ima-
gem devocional estabeleceu uma associação fixada de
idéias entre a cabeça. de um homem decapitado e uma
travessa, e assim, o motivo da bandeja substituiria mais
facilmente o motivo do saco na estória de Judite que
o motivo da espada poderia se encaixar numa repre-
sentação de Salomé.
Finalmente, a interpretação iconológica requer algo
mais que a familiaridade com conceitos ou temas espe-
cíficos transmitidos através de fontes literárias. Quando
desejamos nos assenhorear desses princípios básicos que
norteiam a escolha e apresentação dos motivos, bem
como da produção e interpretação de imagens, estórias
e alegorias, e que dão sentido até aos arranjos for-
mais e aos processos técnicos empregados, não pode-
mos esperar encontrar um texto que se ajuste a esses
princípios básicos, como João 13: 21 se ajusta à ico-
nografia da Última Ceia. Para captar esses princípios,
necessitamos de uma faculdade mental comparável à
de um clínico nos seus diagnósticos - faculdade essa
que só me é dado descrever pelo termo bastante desa-
creditado de "intuição sintética", e que pode ser mais
desenvolvida num leigo talentoso do Que num estudioso
erudito. -
Entretanto, quanto mais subjetiva e irracional for
esta fonte de interpretação (pois toda abordagem in-
tuitiva estará condicionada pela psicologia e Weltans-
chauung do intérprete) tanto mais necessária a aplica-
ção desses corretivos e controles que provaram ser
indispensáveis lá onde estavam envolvidas apenas a
análise iconográfica e a descrição pré-iconográfica. Se
nossa experiência prática e nosso conhecimento das
fontes literárias podem nos transviar quando aplicados,
indiscriminadamente, às obras de arte, quão mais peri-

62
goso não seria confiar em nossa intuição pura e sim-
ples! Assim, do mesmo modo que foi preciso corrigir
apenas nossa experiência prática por uma compreensão
da maneira pela qual, sob diferentes condições histó-
ricas, objetos e fatos foram expressos pelas formas
(história -dos estilos); e que foi preciso corrigir nosso
conhecimento das fontes literárias por uma compreensão
da maneira pela qual, sob condições históricas dife-
rentes, temas específicos e conceitos foram expressos
por objetos e fatos (história dos tipos), também ou
ainda mais, nossa intuição sintética deve ser corrigida
por uma compreensão da maneira pela qual, sob dife-
rentes condições históricas, as tendências gerais e essen-
ciais da mente humana foram expressas por temas
específicos e conceitos. Isso significa o que se pode
chamar de história dos sintomas culturais - ou "sím-
bolos", no sentido de Ernst Cassirer - em geral. O
historiador de arte terá de aferir o que julga ser o
significado intrínseco da obra ou grupo de obras, a
que devota sua atenção, com base no que pensa ser
o significado intrínseco de tantos outros documentos
da civilização historicamente relacionados a esta obra
ou grupo de obras quantos conseguir: de documentos
que testemunhem as tendências políticas, poéticas, re-
ligiosas, filosóficas e sociais da personalidade, período
ou país sob investigação. Nem é preciso dizer que,
de modo inverso, o historiador da vida política, poesia,
religião, filosofia e situações sociais deveria fazer uso
análogo das obras de arte. É na pesquisa de signifi-
cados intrínsecos ou conteúdo que as diversas disci-
plinas humanísticas se encontram num plano comum,
em vez de servirem apenas de criadas umas das outras.
Concluindo: quando queremos nos expressar de
maneira muito estrita (o que nem sempre é necessário
na linguagem escrita ou falada de todo dia, onde o
contexto geral esclarece o significado de nossas pala-
vras), incumbe-nos distinguir entre três camadas de
tema ou mensagem, sendo que a mais baixa é comu-
mente confundida com a forma e a segunda é o domínio
especial da iconografia em oposição à iconologia. Em
qualquer camada que nos movamos, nossas identifica-
ções e interpretações dependerão de nosso equipamento

63
subjetivo e por essa mesma razão terão de ser suple-
mentados e corrigidos por uma compreensão dos pro-
cessos históricos cuja soma total pode denominar-se
tradição.
Resumi, num quadro sinóptico, o que tentei
explicar até agora. Devemos, porém, ter em mente
que essas categorias nitidamente diferenciadas, que no
quadro sínóptico parecem indicar três esferas indepen-
dentes de significado, na realidade se referem a aspectos
de um mesmo fenômeno, ou seja, à obra de arte como
um todo. Assim sendo, no trabalho real, os métodos
de abordagem que aqui aparecem como três operações
de pesquisa irrelacionadas entre si, fundem-se num
mesmo processo orgânico e indivisível.

11

Saindo dos problemas d 1 iconografiae iconologia


em geral para os problemas da iconografia e iconologia
da Renascença em particular, é natural que nos inte-
ressemos pelo fenômeno do qual derivou o próprio no-
me desse período artístico: o renascimento da Anti-
guidade clássica.

OBJETO DA INTERPRETAÇÃO ATO DA INTERPRETAÇÃO

r. Tema prtmano ou natural Descrição pré-iconogrâjica (e


- (A) fatual, (B) expres- análise pseudoformal).
sional - constituindo o mun-
do dos motivos artísticos.

lI. Tema secundário ou con- Análise lconogrâjica.


vencional, constituindo o
mundo das imagens, estórias
e alegorias.

IH. Significado intrínseco ou Interpretação iconológica.


conteúdo, constituindo o mun-
do dos valores "simbólicos".

64
Os primeiros escritores italianos que se dedicaram
à história da arte, como Lorenzo Ghiberti, Leone Bat-
tista Alberti e principalmente Giorgio Vasari, pensavam
que a arte clássica fora derrubada no começo da era
cristã e não revivera até servir de fundamento para o
estilo da Renascença. As razões para esta derrubada;
julgavam esses escritores, foram as invasões dos povos
bárbaros e a hostilidade dos primeiros padres e eruditos
cristãos.
Tais escritores estavam ao mesmo tempo certos e
errados pensando como pensavam. Errados, na medida
em que não houve uma verdadeira quebra de tradição
durante a Idade Média. Concepções clássicas, literá-
rias, filosóficas, científicas e artísticas sobreviveram
através dos séculos, particularmente depois que foram
deliberadamente revivificadas no tempo de Carlos Mag-
no e seus sucessores. Entretanto, esses primeiros escri-
tores estavam certos na medida em que a atitude geral
para com a Antiguidade se modificou fundamentalmente
quando o movimento renascentista apareceu.
A Idade Média não foi, de modo algum, cega ante
aos valores visuais da arte clássica e interessava-se,

EQUIPAMENTO PARA A PRINCÍPIOS CORRETIVOS DE


INTERPRETAÇÃO INTERPRETAÇÃO
(História da Tradição)
Experiência prática (familia- História do estilo (compreen-
ridade com objetos e eventos). são da maneira pela qual, sob
diferentes condições históricas,
objetos e eventos foram ex-
pressos pelas formas).
Conhecimento de fontes lite- História dos tipos (compreen-
rárias (familiaridade com são da maneira pela qual,
temas e conceitos específicos). sob diferentes condições his-
tóricas, temas ou conceitos
foram expressos por objetos e
el entos).
Intuição sintética (familiari- História dos sintomas cultu-
dade com as tendências essen- rais ou "símbolos" (compre-
ciais da mente humana), con- ensão da maneira pela qual,
dicionada pela psicologia pes- sob diferentes condições his-
soal e Weltanschauung: tóricas, tendências essenciais
da mente humana foram ex-
pressas por temas e conceitos
específicos) .

65
O-
(1)

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(1)
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(1l
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J"
profundamente, pelos valores intelectuais e poéticos da
literatura clássica. Mas é significativo que, precisa-
mente no auge do período medieval (séculos XIII e
XIV), os motivos clássicos não fossem usados para a
representação de temas clássicos, enquanto que, inver-
samente, temas clássicos não fossem expressos por mo-
tivos clássicos.
Por exemplo, na fachada da Catedral de São Mar-
cos, em Veneza, vêem-se dois grandes relevos de mes-
mo tamanho, sendo um obra romana do século III
d.e. e o outro executado em Veneza quase que exata-
mente mil anos depois (Figs. 5 e 6)6. Os motivos são
tão parecidos que somos forçados a supor que o es-
cultor medieval tenha deliberadamente copiado a obra
clássica a fim de fazer uma réplica, mas, enquanto o
relevo romano representa Hércules carregando o java- -
li de Erimanto para o rei Euristeu, o artista medieval,
substituindo a pele do leão por um encapelado drape-
jamento, o rei assustado por um dragão e o javali por
um cervo, transformou' a estória mitológica numa ale-
goria da salvação. Na arte italiana e francesa dos
séculos XII e XIII. encontramos um grande número
de casos similares, ou seja, empréstimos diretos e de-
liberados dos motivos clássicos, sendo que os temas
pagãos eram transformados segundo as idéias cristãs.
Basta citar os mais famosos exemplares do chamado
movimento proto-renascentista: as esculturas de St.
Gilles e Arles; a célebre Visitação da Catedral de
Reims, durante muito tempo considerada como obra
do século XVI; ou a Adoração dos Magos, de Niccolõ
Pisano, na qual o grupo da Virgem Maria com o
Menino Jesus mostra a influência de um Phaedra
Sarcophagus ainda existente no Camposanto de Pisa.
Entretanto, ainda mais freqüentes que tais cópias dire-
tas são casos da sobrevivência contínua e tradicional
de motivos clássicos, alguns dos quais foram usados
sucessivamente para uma grande variedade de imagens
cristãs.
Via de regra, tais reinterpretações eram facilitadas
ou mesmo sugeridas por certas afinidades iconográfi-
6. Ilustrado em E. PANOFSKY e F. SAXL, Classical Mytho-
logy in Mediaeval Art, em Metropo!itan Museum Studies, rv, 2,
1933, p. 228 e 55., p. 231.

67
cas, como, por exemplo, quando a figura de Orfeu foi
empregada para a representar Davi ou quando o tipo
de Hércules puxando Cérbero para fora do Hades foi
usado para retratar Cristo tirando Adão do Limbo 7.
Mas há casos em que o relacionamento entre o protó-
tipo clássico e sua adaptação cristã é apenas compo-
sicional.
Por outro lado, quando um iluminista gótico tem
que ilustrar a estória de Laocoonte, este se torna um
velho calvo e irado, em trajes contemporâneos, que
ataca o touro sacrificial com o que deveria ser um
machado, enquanto os dois meninos flutuam no fundo
da pintura e as serpentes marinhas repentinamente
emergem de uma poça d'água 8. Enéias e Dido são
mostrados como um elegante casal medieval jogando
xadrez ou podem aparecer como um grupo que mais
parece o Profeta Nataniel diante de Davi do que o
herói clássico em face de sua amante (Fig. 7). E
Tisbé espera Píramo sentada numa lápide gótica que
traz a inscrição "Hic situs est Ninus rex", precedida
pela cruz habitual (Fig. 8) 9.
Quando perguntamos a razão para essa curiosa
separação entre motivos clássicos investidos de signi-
ficados não-clássicos e temas clássicos expressos por
figuras não-clássicas num cenário não-clássico, a res-
posta óbvia parece residir na diferença entre a tradi-
ção representacional e textual. Os artistas que usaram
o motivo de um Hércules para a imagem de Cristo, ou
o motivo de um Atlas para as imagens dos Evangelis-
tas (Figs. 9 e 10)1°, agiram sob a impressão dos mode-
7. Ver K. WEITZMANN, Das Evangelion im Skevophylakion
zu Lawra, em Seminarium Kondakovianum, VIII, 1936, p. 83 e ss.
8. Cod. Vat. lato 2761, ilustrado em PANOFSKYe SAXL, op. cit.,
p. 259. .
9. Paris, Bibltothêque Nationale, ms. lato 15158, datado de
1289, ilustrado em PANOFSKY e SAXL, op. cit., p. 272.
10. C. TOLNAY, The Visionary Evangelists of the Reichenau
School, Burlington Magazine, LXIX, 1936, p. 257 e ss., fez a
importante descoberta de que as imponentes imagens dos evan-
gelistas sentados sobre um globo e sustendo a glória celeste (que
aJJarece pela primeira vez no Cod. Vat. Barb. lato 711; nossa
FIg. 9) combinavam as características do Cristo em Majestade
com as dessas divindades 'celestes greco-romanas. Entretanto,
como o próprio Tolnay verifica, os Evangelistas do Cod. Barb. 711
"sustentam com visível esforço uma massa de nuvens que não
lembra em nada uma auréola espiritual e se parece muito mais
com um peso material composto de vários segmentos de círculos,
alternadamente azuis e verdes, cujo contorno total forma um
círculo... É uma representação mal entendida do céu em forma

68
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9. São João Evangelista, Roma, Biblioteca do Vaticano Cod.
Barb. lato 711, f<J 32, ca. 1000. '

10. Atlas e Nimrod, Roma, Biblioteca do Vaticano, Cod.


PaI. lar. 1417, f9 1, ca. 1100.
Ias visuais que tinham diante dos olhos, quer hajam
copiado diretamente um monumento clássico ou imi-
tado uma obra mais recente derivada de um protótipo
clássico através de uma série de transformações inter-
mediárias. Os artistas que representaram Medéia
como uma princesa medieval ou Júpiter como um juiz
medieval traduziram em imagens uma simples descri-
ção encontrada em fontes literárias.
Isso é bem verdadeiro, e a tradição textual através
da qual o conhecimento dos temas clássicos, principal-
mente da mitologia clássica, foi transmitido à Idade
Média e persistiu em seu decurso é da máxima impor-
tância não apenas para o medievalista como também
para o estudioso da iconografia renascentista, Pois,
mesmo no Quatrocentos italiano, foi dessa tradição
complexa e muitas vezes corrompida, mais que das
fontes genuinamente clássicas, que muitos artistas hau-
riram suas noções de mitologia clássica e assuntos
conexos.
Se nos limitarmos à mitologia clássica, os cami-
nhos dessa tradição podem ser delineados da seguinte
de esfera (o grifo é meu). Daí podemos inferir que o protó-
tipo clássico para estas imagens não era Coelus que segura, sem
esforço, um drapejamento ondulado (o We!tenmante!) e sim
Atlas que se esforça sob o peso dos céus (cf. G. THIELE,Antike
Himme!sbi!der, Berlim, 1898,p. 19 e ss.) . O São Mateus no Cod.
Barb. 711 (Tolnay, pr, I, a), com sua cabeça curvada sob o
peso da esfera e a mão esquerda colocada perto do quadril
esquerdo lembra, particularmente, o tipo clássico de Atlas; outro
exemplo impressionante da pose característica de Atlas aplicada
a um Evangelista encontra-se em Clm. 4454, f.o 86, V. (ilustrado
em A. GOLDSCHMIDT, German I!!umination, Florença e Nova York,
1928, v. lI, pr. 40). Tolnay (notas 13 e 14) não deixou de
perceber essa semelhança e cita as representações de Atlas e
Nimrod no Cod. Vat. PaI. lato 1417, s» 1 (ilustrado em F. SAXL,
Verzeichnis astro!ogischer und mytho!ogischer Handschriften des
!ateinischen Mitte!a!ters in romischen Bib!iotheken [Sitzungsbe-
richte der Heide!berger Akademie der Wissenschaften, phil.-
-híst. Klasse, VI, 1915, pr. XX. Fig. 42]; nossa Fig. 10); mas
parece considerar o tipo de Atlas como um mero derivativo do
tipo de Coelus. No entanto, mesmo na arte antiga, as repre-
sentações de. Coelus parecem ter evoluído a partir das de Atlas,
e na arte carolíngia, otoniana e bizantina (particularmente na
Escola Reichenau) a figura de Atlas, em sua forma clássica
genuína, é infinitamente mais freqüente que a de Coelus, tanto
cómo personificação de uma personalidade cosmológica como
uma espécie de cariátide. 'fambém do ponto de vista icono-
gráfico, os Evangelistas são mais comparáveis a Atlas que a
Coelus. Acreditava-se que Coelus governasse os céus; supunha-
-se que Atlas os sustentasse e, num sentido alegórico. os "conhe-
cesse"; pensava-se que tivesse sido um grande astrônomo que
transmitiu a scientia coeli a Hércules (Sérvio, Comm. in Aen,
VI, 395; mais tarde em, e.g., ISIDORO, Etymo!ogiae, IlI, 24, 1;
Mythographus IlI, 13, 4, em G. H. BODE,Scriptorum rerum mythi-
carum tres Romae nuper reperti, Celle, 1834,p. 248). Portanto,

71
maneira: os últimos filósofos gregos já haviam come-
çado a interpretar os deuses e semideuses pagãos
como simples personificações ou de forças naturais ou
de qualidades morais, e alguns deles haviam mesmo
chegado a ponto de explicá-los como seres humanos
comuns deificados subseqüentemente. No último sécu-
lo do Império Romano, estas tendências aumentaram
muito. Enquanto os Pais da Igreja se esforçavam por
provar que os deuses pagãos ou eram ilusões ou demô-
nios malignos (transmitindo assim numerosas informa-
ções valiosas 'sobre eles) o próprio mundo pagão se
alheara de tal modo de suas divindades que o públi-
co culto precisava informar-se a respeito delas em
enciclopédias, em poemas ou novelas didáticas, em tra-
tados especiais de mitologia e em críticas e comentá-
rios aos poetas clássicos. Relevantes, entre esses es-
critos do final da Antigüidade, nos quais as persona-
gens mitológicas eram interpretadas de forma alegórica
ou "moralizadas", para usar a expressão medieval,
eram a Nuptiae Mercurii et Philologiae, de Marciano
CapeIla, a Mitologiae, de Fulgêncio, e, sobretudo, o
admirável comentário de Sérvio sobre Virgílio, que é
três ou quatro vezes maior que o texto deste e que foi
talvez amplamente lido.
Durante a Idade Média, esses escritos e outros
de mesmo tipo foram exaustivamente explorados e
ainda mais desenvolvidos. Assim, a informação mito-
lógica sobreviveu e tornou-se acessível aos poetas e
artistas medievais. Primeiro, através das enciclopédias,
cujo desenvolvimento começou com escritores tão an-
tigos como Bede e Isidoro de Sevilha, continuou com
Hrabanus Maurus (século IX) e chegou ao auge nas
extensas obras do alto medievo de Vicêncio de Beau-
. vais, Brunetto Latini, Bartolomeu Anglicus e assim
por diante. Segundo, nas exegeses medievais de textos
clássicos e do fim da Antiguidade, sobretudo a Nuptiae
era coerente usar o tipo de Coelus para as representações de
~eus (ver Tolnay, pr. I, c) e era igualmente coerente usar o
típo de Atlas para os Evangelistas que, como ele, "conheciam"
o~ céus, mas nã? os governavam. Enquanto que Híbernus Exul
diz que Atlas Siâerá quem coeli cuncta notasse volunt (Monu-
menta Germaniae, Poetarum latinorum medii aevi, Berlim, 1881,
1923, v. I, p. 410), Alcuino apostrofa assim São João o Evan-
gelísta: Scribendo penetras caelum tu mente Johanne; (ibidem
p. 293). '"

72
de Marciano CapeIla, que foi anotado por eruditos
irlandeses como João Escoto Erígena e comentada com
grande autoridade por Remígio de Auxerre (século
IX) 11. Terceiro, nos tratados especiais de mitologia,
tais como os assim chamados Mythographi I e lI, que
datam de muito cedo e foram baseados sobretudo em
Sérvio e Fulgêncio 12. A obra mais importante desse
tipo, a chamada Mythographus IlI, foi tentativamente
identificada com um inglês, o grande escolástico Ale-
xandre Neckham (falecido em 1217)13; seu tratado,
um impressionante apanhado de toda a informação
disponível por volta de 1200, merece a qualificação de
compêndio conclusivo da mitografia da Alta Idade Mé-
dia e chegou mesmo a ser usado por Petrarca quando
este descreve as imagens dos deuses pagãos no seu
poema Airica.
Entre a época do Mythographus III e Petrarca,
foi dado mais um passo para a moralização das divin-
dades clássicas. As figuras da antiga mitologia eram
não apenas interpretadas de uma forma moralista
geral mas eram também, de um modo definitivo, rela-
cionadas com a fé cristã, de modo que, por exemplo,
Píramo era interpretado como Cristo, Tisbé como a
alma humana e o leão como o Mal conspurcando suas
vestes, enquanto que Saturno servia de exemplo no
bom e no mau sentido, para o comportamento dos
clérigos. Exemplos desse tipo de escritos são o fran-
cês Ovide Moralisé 14, Fulgentius Metajoralis 15, de
John RidewaIl, Moralitates, de Robert Holcott, o
Gesta Romanorum, e sobretudo, o Ovidio Moralizado,
em latim, escrito por volta de 1340 por um teólogo
francês chamado Petrus Berchorius ou Pierre Bersuire,
que conhecia pessoalmente Petrarca H,. Sua obra é
precedida por um capítulo especial dedicado aos deu-
11. Ver H. LIEBE5CHÜTZ, Fulgentius Metaforalis ... (Studien
der Bibliothek Warburg, IV), Leípztg, 1926, p. 15 e p. 44 e 55.;
cf., também, PANOF5KY e SAXL,op. cít., especialmente p. 253 e 55.
12. BODE. Op. cit., p. 1 e 55.
13. BODE. Ibidem, p. 152 e 55. Quanto à questão da autoria,
ver H. LIEBESCHÜTZ, op. cít., p. 16 e s. e passim.
14. Editado por C. de BOER,"Ovide Moralisé", Verhandelingen
der kon. Akademie van Wetenschapen, Atd. Letterkunde, série
nova, XV, 1915, XXI, 1920; XXX, 1931-32.
15. Ed. H. LIEBE5CHÜTZ, op. cito
16. "Thomas Walleys" (ou Valeys), Metamorphosis Ovidj,ana
moraliter explanata, aqui usada na edição parísíense de 1515.

73
ses pagãos, baseada em grande parte no Mythogra-
phus lII, mas enriquecida por moralizações especifica-
mente cristãs, e essa introdução, sem as moralizações
que foram cortadas em prol da brevidade, alcançou
grande popularidade sob o nome de Albricus, Libellus
de Imaginibus Deorum 17.
Um novo e sumamente importante passo foi dado
por Boccaccio. Na sua Genealogia Deorum 18, não
apenas efetuou um novo levantamento do material,
grandemente aumentado desde cerca de 1200, como
também tentou, conscientemente, retomar às fontes
genuínas da Antiguidade e confrontá-Ias, cuidadosa-
mente, umas com as outras. Seu tratado assinala o
começo de uma atitude crítica ou científica para com
a Antiguidade clássica e cabe considerá-Ia um precursor
de tratados verdadeiramente eruditos da Renascença
como o De diis gentium . .. Syntagmata, de L.G. Gy-
raldus que, de seu ponto de vista, podia olhar para o
seu popularíssimo predecessor medieval como um "es-
critor proletário e indigno de confiança" 19.
Cumpre notar que até a Genealogia Deorum de
Boccaccio, o foco da mitografia medieval era uma re-
gião muito afastada da tradição mediterrânica direta:
Irlanda, Norte da França e Inglaterra. Isso também
é verdade quanto ao Ciclo Troiano, o mais importante
tema épico transmitido pela Antiguidade clássica à
posteridade; sua primeira redação medieval com auto-
ridade, o Roman de Troie, muitas vezes condensada,
sumariada e traduzida para outras línguas vernáculas,
deve-se a Benoít de Sainte More, natural da Bretanha.
Podemos, na verdade, falar de um movimento proto-
humanista, ou seja, de um interesse ativo por temas
clássicos, independentemente dos motivos clássicos,
centrado na Europa Setentrional, em oposição ao mo-
vimento proto-renascentista, ou seja, um interesse
ativo por motivos clássicos independentemente de te-
mas clássicos, centrado na Provença (França) e na
Itália. É um fato memorável, que devemos ter em
17. Cod. Vat. Reg. 1290. ed. H. LIEBESCHÜTZ,
op. cít .• p. 117 e
55.. com uma série completa de ilustrações.
18. Aqui usado na edição veneziana de 1511.
19. L. G. GYRALDUS, Opera Omnia, Leyden. 1696, v. I. Col.
153: "Ut: scribit Albricus, qui auctor mihi proletarius est, nec
fidus satis".

74
mente para poder compreender o movimento renas-
centista, que Petrarca, ao descrever os deuses de seus
antepassados romanos precisasse consultar um com-
pêndio escrito por um inglês, e que os iluministas ita-
lianos, que ilustraram a Eneida de Virgílio no século
XV tivessem de recorrer às miniaturas de manuscri-
tos 'como o Roman de Troie e seus derivados. Pois
estes, sendo matéria de leitura favorita do leigo nobre,
foram amplamente ilustrados muito antes que. o pró-
'prio texto de Virgílio, lido por eruditos e escolares,
atraíssem a atenção dos iluministas profissionais 20.
Na verdade, é fácil compreender que os artistas
que desde o começo do século XI tentaram traduzir
em imagens esses textos proto-humanistas só conse-
guissem configurá-los de um modo totalmente diferen-
te da tradição clássica. Um dos primeiros exemplos
está entre os mais importantes: uma miniatura de cer-
ca de 1100, provavelmente executada na escola de
Regensburgo, e que representa as divindades clássicas
segundo as descrições do Comentário a Marciano
Cape lia, de Remígio (Fig. H )21. Vê-se Apolo n~~a
simples carroça de camponês, segurando uma especie
de ramalhete com os bustos das Três Graças, Satumo
mais parece uma romântica figura de umbral que o
pai dos deuses olímpicos, e o corvo, d~ Júpite! apr:-
senta uma pequena auréola como a aguia de Sao Joao
Evangelista ou a pomba de São Gregório. . _
Não obstante, só o contraste entre a tradição
representacional e textual, por impor~ante que s~ja,
não pode explicar a estranha dícotomia dos motl~os
e temas clássicos característica da arte do alto medie-
20. O mesmo se aplica a Ovídio: há pouquíssimos ma~~s-
critos de Ovídio em latim ilustrados durante ~ Idade Medl~.
Quanto à Eneida, de Virgílio, pessoalmente so conheço dois
manuscritos latinos realmente "ilustrados" .entre o COdlC'; do
século VI da Biblioteca do Vaticano e o RIcar~:llano do sec?lo
XV: Nápoles, Biblioteca Nacional, Cod. olim ~Iena 58 (trazído
ao meu conhecimento pelo Professor Kurt Wel~z~ann, ao. qual
também devo a permissão de reprodUZIr uma mmíatura (FIg.. 7)
do século X: e Cod. Vat. lato 2761 (cf. R. FOSTER,Laoc.?on 1m
Mittelalter und ín der Reinaissance, em Jahrbuch der Komgltch
Preussischen Kunstsammlungen, XXVII, 1906, p. 149 e ss.) do
século XIV. [Outro manuscrito do século XIV (Oxford, Bo-
dleian Library, ms. Cano Class. lato 52, descrito erIl: F. SAXL e
H. MEIER, Catalogue ot Astrological and M~thol~glCal ~anw:-
cripts oi the Latin Middle Ages, lU, Manuscrtpts tn Engl~~ .L~-
braries, Londres, 1953, p. 320 e ss.) tem apenas algumas InICIaIS
htstorradas.I
21. Clm. 14271, ilustrado em PANOFSKYe SAXL, op. cit.,
p. 260.

75
[1. Os deuses pagãos. Munique, Staatsbibliothek, CImo
14271, f'? I lv., ca. 1100.
vo. Pois, mesmo quando houve uma tradição repre-
sentativa em certos campos das imagens clássicas, essa
tradição representativa foi deliberadamente abandona-
da em favor de representações de caráter inteiramente
não-clássico logo que a Idade Média alcançou estilo
próprio.
Exemplos desse processo encontram-se primeiro
nas imagens clássicas que ocorrem incidentalmente em
representações de assuntos cristãos, como as personi-
ficações das forças naturais no Saltério de Utrecht,
por exemplo, ou o sol e a lua na Crucifixão. Enquan-
to que os marfins carolíngios ainda mostram os tipos
perfeitamente clássicos da Quadriga Solis e Biga
Lunae 22, esses tipos clássicos são substituídos por
não-clássicos nas representações românticas e góticas.
As personificações da natureza tendiam a desaparecer;
apenas os ídolos pagãos, freqüentemente encontrados
em cenas de martírio, preservaram sua aparência clás-
sica durante mais tempo que outras imagens por serem
os símbolos por excelência do paganismo. Em segun-
do lugar, e muito mais importante, genuínas imagens
clássicas aparecem em ilustrações de textos que já ha-
viam sido ilustrados no final da Antiguidade, de modo
que os artistas carolíngios tinham à disposição mode-
los visuais: as comédias de Terêncio, os textos incor-
porados no De Universo, de Hrabanus Maurus, a
Psychomachia de Prudência, e escritos científicos, so-
bretudo os tratados de astronomia, em que as imagens
mitológicas aparecem tanto entre as constelações (tais
como Andrômeda, Perseu, Cassiopéia) como entre os
planetas (Saturno, Júpiter, Marte, Sol" Vênus, Mer-
cúrio, Lua).
Em todos esses casos podemos observar que as
imagens clássicas foram copiadas de maneira fiel, em-
bora às vezes canhestramente, nos manuscritos caro-
língios e mantidas em seus derivados, mas foram
abandonadas e substituídas por outras inteiramente
diferentes nos séculos XIII ou XIV, no mais tardar.
Nas ilustrações do século IX de um texto de as-
tronomia, figuras mitológicas como Boates (Fig. 15),
22. A. GOLDSCHMIDT, Die ELfenbeinskuLpturen aus der Zeit
der karoLingischen und sachsischen Kaiser, Berlim, 1914-26,v. I,
pr. XX, n. 40, ilustrado em PANOFSKY e SAXL, op, cít., p. 257.

77
12. Saturno. Da Cronografia de 354 (Cópia da Renascen-
ça), Roma, Biblioteca do Vaticano, Cod. Barb. lato 2154, f<;> 8.

13. Saturno, l úpiter, Jano e Netuno. Monte Cassino, ms.


132, p. 386, datado de 1023.
14. Saturno, Iúplter, Vênus, Marte e Mercúrio. Munique,
Staatsbibliothek, Clm. 1026R, f9 85, século XIV.
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15. Boates. Leiden, Biblioteca da Universidade. Cod. Vosso


lato 79, f<? 6v'/7, século IX.
Perseu, Hércules ou Mercúrio são representadas de
uma forma perfeitamente clássica e o mesmo se aplica
às divindades pagãs que aparecem na Enciclopédia de
Hrabanus Maurus >". Apesar de toda a sua canhes-
trice, o que se deve principalmente à incompetência
dos pobres copistas do século XI, responsáveis pelas
ilustrações dos manuscritos carolíngios hoje perdidos,
as figuras da obra de Hrabanus não são, evidente-
mente, moldadas apenas com base em descrições tex-
tuais, mas estão ligadas aos protótipos antigos por uma
tradição representacional (Figs. 12 e 13).
Entretanto, alguns séculos mais tarde, essas ima-
gens verdadeiras tinham caído no esquecimento e eram
substituídas por outras - parte inventadas e parte
derivadas de fontes orientais - que nenhum especta-
dor moderno reconheceria como divindades clássicas.
Vênus é mostrada como uma encantadora jovem to-
cando um alaúde ou cheirando uma rosa, Júpiter como
um juiz com as luvas na mão e Mercúrio como um
velho sábio ou mesmo como um bispo (Fig, 14)24.
Foi só na Renascença propriamente dita que Júpiter
reassumiu a aparência do Zeus clássico e que Mercú-
rio readquiriu a beleza jovem do Hermes clássico 25.
Tudo isso atesta que a separação entre os temas
clássicos e os motivos clássicos se deu, não apenas por
falta de tradição representacional mas também a des-
peito dela. Sempre que a imagem clássica, ou seja,
a fusão de um tema clássico com um motivo clássico,
foi copiada durante o período carolíngio de assimila-
ção febril, tal imagem clássica foi abandonada tão
logo a civilização medieval chegava ao seu auge,
para não ser reaproveitada até o Quatrocentos italia-
no. Foi um privilégio da verdadeira Renascença rein-
23. Cf. A. M. AMELLI, Miniature sccre e profane deU'anno
1023, i!lustranti l'encic!opedia medioevale di Rabano Mauro,
Montecassino, 1896.
24. Clm. 10268 (século XIV), ilustrado em PANOFSKY e SAXL,
op. cit., p. 251, e todo um grupo de outras ilustrações baseadas
no texto de Michael Scotus. Sobre as fontes orientais desses
novos tipos, ver ibidem, p. 239 e ss., e F. SAXL, Beitrãge zu
einer Geschichte der Planetendarstellungen In Orient und
Occident, Der Islam, lU, 1912, p. 151 e ss.
25. Sobre um interessante prelúdio dessa reafirmação (reto-
mada dos modelos carolíngios e arcaicos gregos) ver PANOJ'8KY
e SAXL,op. cít., pp. 247 e 258.

81
tegrar os temas com os motivos clássicos depois de
um intervalo que pode ser chamado de hora zero.
Para a mente medieval, a Antiguidade clássica
estava já muito distanciada e, ao mesmo tempo, muito
fortemente presente para ser concebida como um
fenômeno histórico. Por um lado, sentia-se uma tra-
dição contínua, pois o imperador germânico, por
exemplo, era considerado sucessor direto de César e
Augusto, os lingüistas viam Cícero e Donato como
seus ancestrais e os matemáticos traçavam suas ori-
gens até Euclides. Por outro lado, sentia-se que exis-
tia uma brecha intransponível entre as civilizações
pagã e cristã 26. Estas duas tendências não podiam
ainda ser contrabalançadas para permitirem um sen-
timento de distância histórica. Para muitos. o mundo
clássico assumia um caráter remoto, de lenda, como
o Este pagão contemporâneo, de' modo que Villard
de Honnecourt podia chamar um túmulo romano de
"Ia sepouture d'un sarrazin", enquanto que Alexandre
Magno e Virgílio chegaram a ser considerados magos
orientais. Para outros, o mundo clássico era a fonte
última de conhecimentos altamente apreciados e de
instituições sagradas. Porém, nenhum homem medie-
val podia encarar a civilização antiga como um fe-
nômeno completo em si 'mesmo, contudo pertencente
ao passado e historicamente desligada do mundo con-
temporâneo - corno um cosmo cultural a ser inves-
tigado e, se possível, a ser reintegrado, em vez de ser
um mundo de maravilhas e uma mina informativa. Os
filósofos escolásticos podiam usar as idéias de Aris-
tóteles e fundi-Ias com as suas próprias, e os poetas
medievais podiam basear-se livremente nos autores
clássicos, mas nenhum espírito medieval podia pensar
em filologia clássica. Os artistas podiam empregar,
como já vimos, os motivos dos relevos e estátuas clás-
sicas, mas nenhum espírito medieval podia conceber
a arqueologia clássica. Do mesmo modo que era im-
26. Um dualismo semelhante é característico da atitude
medieval relativamente a aera sub lege: por um lado a Sinagoga
era representada como sendo cega e associada com a noite.
morte. demênio e animais impuros; por outro lado, os profetas
judeus eram considerados como inspirados pelo Espírito Santo
e as personagens do Antigo Testamento eram veneradas como
antepassados de Cristo.

82
possível para a Idade Média elaborar um sistema mo-
derno de perspectivas, que se baseia na conscientização
de uma distância fixa entre o olho e o objeto e permi-
te assim ao artista construir imagens compreensíveis
e coerentes de coisas visíveis, assim também lhe era
impossível desenvolver a idéia moderna de história, ba-
seada na conscientização de uma distância intelectual
entre o presente e o passado que permite ao estudioso
armar conceitos compreensíveis e coerentes de perío-
dos idos.
Podemos, facilmente, perceber que uma época
incapaz e sem vontade de compreender que tanto os
motivos quanto os temas clássicos faziam parte de um
todo estrutural, na realidade evitou preservar a união
desses dois. Logo que a Idade Média estabeleceu seus
próprios padrões de civilização e encontrou seus mé-
todos próprios de expressão artística, tomou-se im-
possível apreciar ou mesmo entender qualquer fenô-
meno que não tivesse um denominador comum com
os fenômenos do mundo contemporâneo. O observa-
dor do alto medievo podia apreciar uma bela figura
clássica se apresentada como a Virgem Maria, ou apre-
ciar uma Tisbé retratada como uma jovem do século
XIII sentada numa lápide gótica. Porém, uma Vênus
ou Juno de forma e significação clássicas seria con-
siderada um execrável ídolo pagão, enquanto que uma
Tisbé vestida em roupagens clássicas e sentada num
túmulo clássico seria uma reconstrução arqueológica
inteiramente além de suas possibilidades de aborda-
gem. No século XIII, mesmo a escrita clássica era
tida como algo totalmente "estrangeiro"; as inscrições
explanatórias da obra carolíngia Cod. Leydensis Vosso
lato 79, escritas em belas Capitalis Rustica, foram co-
piadas, para benefício dos leitores menos' eruditos, na
escrita angular do alto gótico (Fig. 15).
Entretanto, a impossibilidade de perceber a "uni-
dade" intrínseca dos temas e motivos clássicos pode
ser explicada, não apenas por uma falta de sentimento
histórico, mas também pela disparidade emocional
entre a Idade Média cristã e a Antiguidade pagã. En-
quanto o paganismo helênico - pelo menos como se
refletia na arte clássica - considerava o homem como

83
16. Rapto de Europa. Lyon, Bibliothêque de la VilIe, ms.

>1742, fe? 40, século XIV.


uma unidade integral de corpo e alma, o conceito
judeu-cristão do homem baseava-se na idéia do "pe-
daço de barro" forçadamente ou mesmo, miraculosa-
mente, unido à alma imortal. Desse ponto de vista,
a admirável fórmula artística que na arte grega e ro-
mana expressara a beleza orgânica e as paixões ani-
mais, pareciam admissíveis apenas se investidas de um
significado mais que orgânico e mais que natural; ou
seja, quando tornadas subservientes aos temas bíblicos
ou teológicos. Nas cenas seculares, ao contrário, tais
fórmulas tinham que ser substituídas por outras, de
conformidade com a atmosfera medieval de maneiras
corteses e sentimentos convencionais, de modo que as
divindades pagãs e os heróis loucos de amor e cruel-
dade apareciam como príncipes e damas elegantes cuja
aparência e comportamento estavam em harmonia
com os cânones da vida social do medievo.
Numa miniatura extraída de um Ovide Moralisé
do século XIV, o Rapto de Europa é representado
por figuras que certamente demonstram pouca agita-
ção apaixonada (Fig 16)27. Europa, vestida à manei-
ra do final da Idade Média, cavalga em seu pequeno e
inofensivo touro como uma jovem fazendo seu calmo
passeio matinal e suas companheiras, ataviadas da
mesma maneira" formam um pequeno e tranqüilo
grupo de espectadoras. É claro que estão ali para se
mostrarem angustiadas e gritarem, mas não o fazem,
ou pelo menos não nos convencem de que o estejam
fazendo, pois o iluminista não era capaz nem estava
propenso a visualizar paixões animais.
Um desenho de autoria de Dürer, copiado de
um protótipo italiano, provavelmente durante sua pri-
meira estada em Veneza, enfatiza a vitalidade emo-
cional que não existia na representação medieval (Fig,
65) . A fonte literária que Dürer usou para seu Rapto
de Europa não é mais um texto em prosa em que o
touro é comparado a Cristo e Europa à alma humana,
mas os próprios versos pagãos de Ovídio, revividos em
duas estâncias deliciosas de Angelo Policiano: "Pode-
-se admirar Júpiter transformado num belo touro pela
27. Lyon, Bibl. de la Ville, ms. 742, f.· 40; ilustrado em
SAXL e PANOFSKY, op. cit., p. 274.

85
força do amor. Foge com sua doce e aterrorizada
carga e ela volta o rosto para a praia perdida, seu
lindo cabelo dourado esvoaçando ao vento que ondula
seu vestido. Com uma das mãos agarra um chifre
do touro enquanto que, com a outra, se agarra às suas
costas. Levanta os pés como se tivesse medo que o
mar os molhasse e assim, curvando-se com a dor e o
medo, chama em vão por socorro. Pois suas doces
companheiras permanecem na praia florida, cada qual
gritando, 'Europa, volte!' Toda a região litorânea
ressoa com 'Europa, volte' e o touro se volta (ou
'continua nadando') e beija-lhe os pés" 28.
O desenho de Dürer dá vida a esta descrição sen-
sual. A posição agachada de Europa, seu cabelo es-
voaçante, suas roupas batidas pelo vento, revelando,
o corpo gracioso, os gestos de suas mãos, o movimen-
to furtivo da cabeça do touro, a praia salpicada pelas
companheiras em pranto: tudo isso é fiel e vivamente
retratado; e ainda mais, a própria praia se mexe com
a vida dos aquatici monstriculi, para usarmos as pala-
vras de outro autor do Quatrocentos 29 enquanto que
os sátiros saúdam o raptor.
Esta comparação ilustra o fato de que a reinte-
gração dos temas clássicos nos motivos clássicos, que
parece ser característica da Renascença italiana em
oposição às numerosas e esporádicas revivificações das
tendências clássicas durante a Idade Média, não é
28. L. 456, também ilustrada em SAXLe PANOFSKY, op. cit.,
p. 275. Damos a transcrição das estâncias de Angelo Policiano
(Giostra, I, 105, 106):

"Nell'altra in un formoso e bianco tauro


Si vede Giove per amor converso
Portarne il dolce suo rícco tesauro
E lei volgere il viso ai lito perso
In atto paventoso: e i be' crin d'auro
Scherzon nel petto per 10 vento avverso:
La veste ondeggia e in drieto fa ritorno:
L'una man tien ai dorso, e l'altra ai corno
"Le ignude piante a se ristrette accoglie
Quasi temendo il mar che lei non bagne:
Tale atteggiata di paura e doglie
Par chiami in van le S'1e dolci compagne;
Le qual rimase tra fioretti e foglie
Dolenti 'Europa' ciascheduna piagne.
'Europa', sona il Iíto, 'Europa, riedi' -
E'I tor nota, e talor gli bacia i piedi."
29. Ver adiante, pp. 314-315, nota 22.

86
somente uma ocorrência humanística como humana,
E um elemento muito importante daquilo que Burck-
hardt e Michelangelo chamavam "a descoberta tanto
do mundo quanto do homem".
Por outro lado, é por si mesmo evidente que a
reintegração não podia ser uma simples reversão ao
passado clássico, O período interveniente modificara
a mentalidade dos homens, de modo que não podiam
retomar ao paganismo; e mudara seus gostos e ten-
dências criativas, de modo que sua arte não podia
simplesmente renovar a arte dos gregos e romanos.
Tinham de lutar por uma nova forma de expressão,
estilística e graficamente diferente da clássica assim
como da medieval, mas no entanto relacionada com
ambas e devedora de ambas.

87
2. A HISTÓRIA DA TEORIA DAS PROPORÇõES
HUMANAS COMO REFLEXO DA HISTÓRIA
DOS ESTILOS

Estudos sobre o problema das proporções são em


geral recebidos com ceticismo ou, na melhor das hi-
póteses, com pouco interesse. Nenhuma das duas ati-
tudes é surpreendente. A desconfiança vem do fato
de que a pesquisa das proporções sucumbe, freqüen-
temente, à tentação de ler no objeto pura e simples-
mente o que ela pôs nele; .a indiferença explica-se
pelo ponto de vista moderno, subjetivo, de que uma
obra de arte é algo irracional ao extremo. Um espec-
tador moderno, ainda sob a influência dessa interpre-
tação romântica da arte, julga desinteressante, se não

89
cansativa, a afirmação do historiador de arte que diz
que um sistema racional de proporções ou até um
esquema geométrico é a base desta ou daquela repre-
sentação.
Não obstante, é bem compensador para o histo-
riador de arte (desde que se limite aos dados positivos
e esteja disposto. a trabalhar com pouco material de
preferência ao material duvidoso) examinar a história .
dos cânones das proporções. :É importante saber não
apenas se determinados artistas ou períodos da arte
aderiam ou não a um sistema de proporções, mas tam-
bém de que modo a aplicação das regras exercia uma
influência real. Pois, seria engano supor que as teorias
das proporções per se sejam sempre as mesmas. Há
uma diferença fundamental entre o método dos egíp-
cios e o método de Policleto, entre o procedimento de
Leonardo da Vinci e o da Idade Média - uma dife-
rença tão grande e, sobretudo, de tal caráter que re-
flete as diferenças básicas entre a arte do Egito e a
da Antiguidade clássica, entre a arte de Leonardo da
Vinci e a da Idade Média. Se, ao considerarmos os
vários sistemas de proporções por nós conhecidos,
tentarmos compreender seu significado em vez de
sua aparência, se rios concentrarmos mais na formu-
lação do problema proposto do que na solução obtida,
eles hão de revelar-se como expressões da mesma "in-
tenção artística" (Kunstwollen) percebida nas cons-
truções, esculturas e pinturas de um dado período ou
artista. A história da teoria das proporções é o refle-
xo da história dos estilos; além do mais, já que pode-
mos nos compreender uns aos outros inequivoca-
mente, quando lidamos com fórmulas matemáticas, ela
pode mesmo ser considerada como um reflexo que,
muitas vezes, ultrapassa a clareza de seu original. Po-
de-se afirmar que a teoria das proporções exprime o
difícil e por vezes desconcertante conceito de Kunst-
wollen de maneira mais clara ou, pelo menos, mais
definida do que a própria arte.

I
Por teoria das proporções, se devemos começar
por uma definição, entendemos um sistema de estabe-
lecer as relações matemáticas entre as diversas partes

90
de uma criatura viva, particularmente dos seres huma-
nos na medida em que esses seres sejam considerados
temas de uma representação artística. A partir desta
definição é possível antever a diversidade de cami-
nhos que se abrem para o estudo das proporções. .A..s
relações matemáticas poderiam ser expressas pela dIVI-
são de um todo , bem como pela multiplicação de uma ,

unidade' o esforço de determiná-Ias poderia ser guia-


do por um anseio de beleza, bem como por um inte-
resse pelas "normas" ou, enfim, por uma necessidade
de estabelecer uma convenção; e, sobretudo, as pro-
porções poderiam ser investigadas COAm .referênci~ à
representação do objeto ou com referência ao objeto
da representação, Há uma grande diferença entre .a
pergunta: "Qual é a relação normal entre o compn-
mento do antebraço e o comprimento do corpo inteiro
de uma pessoa tranqüilamente parada diante de mim?"
e a pergunta: "Como farei a escala do comprimento
que corresponde ao do antebraço com relação ao cor-
po inteiro, em minha tela, bloco ou ~ár~?re7". ~,
primeira é uma pergunta sobre proporçoes . ~bJehvas
- uma questão cuja resposta precede a atividade ar-
tística.· A segunda é uma questão de proporções
"técnicas" - uma pergunta cuja resposta reside no
próprio processo artístico; e ela só pode ser proposta
e resolvida quando a teoria das proporções coincide
com (ou é até subserviente a) uma teoria da cons-
trução.
Havia, portanto, três possibilidades diferentes de
se chegar a uma "teoria das medidas humanas". Essa
teoria poderia visar ao estabelecimento de proporções
"objetivas", sem se incomodar com sua relação com as
"técnicas", ou ao estabelecimento de proporções "téc-
nicas", sem se preocupar com suas relações com as
"objetivas"; ou, finalmente, poderia considerar-se isen-
ta de qualquer uma dessas duas escolhas, ou seja, no
caso de as proporções "técnicas" e "objetivas" coinci-
direm.
Esta possibilidade mencionada por último acon-
, . 1
teceu apenas uma vez de forma pura: na arte egípcia .
1. E, até um certo ponto, nas artes estilisticamente análogas
da Asia e da Grécia arcaica.

91
Há três condições que impedem a coincidência
das dimensões "técnicas" e "objetivas", mas a arte
egípcia - a não ser que circunstâncias especiais criem
exceções efêmeras - anulou fundamentalmente, ou
melhor, ignorou completamente todas as três. Primei-
ro, o fato de que dentro de um corpo organico cada
movimento muda as dimensões do membro que se
move assim como das demais partes do todo; segundo
o fato de o artista, segundo as condições normais de
visão, enxergar o objeto com uma certa redução; ter-
ceiro, o fato de o observador potencial também enxer-
gar a obra terminada em uma certa perspectivação
que, se for considerável (por exemplo, o caso de es-
culturas colocadas acima do nível dos olhos), precisa
ser compensada por uma distorção deliberada das pro-
.porções objetivamente corretas.
A arte egípcia não conta com nenhuma dessas
condições. Os "refinamentos ópticos" que corrigem a
impressão visual do espectador (a temperaturae sobre 1
a qual, segundo Vitrúvio, o efeito "eurrítmico" da obra
depende) são rejeitados como uma questão de princí-
pio. .Os movimentos das figuras não são orgânicos
mas mecânicos, i.é., consistem em mudanças pura-
mente locais nas posições de membros específicos, mu-
danças essas que não afetam nem a forma nem as di-
mensões do resto do corpo. E mesmo a perspectivação
(assim como a modelagem, que consegue por meio
de luz e sombras aquilo que a perspectivação alcança
pelo desenho) foi deliberadamente rejeitada nesta fase.
Tanto a pintura como o relevo - e por esse motivo
um não difere artisticamente do outro na arte egípcia
- renunciaram àquela extensão aparente do plano em
profundidade que o naturalismo óptico ( uK,a/p ••rpia. )
requer; e a escultura fugiu daquele achatamento apa-
rente dos volumes tridimensionais que os princípios da
Relieihaitigkeit de Hildebrand pedem. Na escultura,
como na pintura e no relevo, o tema é assim represen-
tado sob um aspecto que, falando estritamente, não é
aspectus (visão) de modo algum, mas sim plano geo-
métrico. Todas as partes da figura humana são dis-
postas de tal forma que se apresentam ou em projeção
totalmente frontal, ou em puro perfil 2. Isso se aplica
às esculturas em redondo assim como às artes bidimen-
sionais, com a única diferença de que a escultura em
redondo, por operar com blocos multifacetados, pode
nos comunicar todas as projeções na íntegra, embora
separadas umas das outras; enquanto que as artes bi-
dimensionais transmitem-nas de forma incompleta,
mas numa só imagem: retratam a cabeça e as pernas
em perfil puro, enquanto que o peito e os braços são
representados em vista frontal.
Nas obras esculturais acabadas (em que todas
as formas são arredondadas) essa qualidade geomé-
trica, reminiscente de uma planta arquitetônica, não é
tão evidente quanto nas pinturas e relevos; mas, pode-
mos perceber, com base em muitas peças inacabadas,
que mesmo na escultura a forma final é sempre deter-
minada por um plano geométrico subjacente, esboçado,
originalmente, na superfície do bloco. a evidente que
o artista traça quatro desenhos separados nas superfí-
1 cies verticais do bloco (suplementando-os mais tarde
I com um quinto, ou seja, a projeção horizontal usada
para a superfície superior)"; que então desenvolvia a
figura retirando todo o excesso de material da pedra,
de modo que a forma surgia ligada por um sistema de
planos que se encontravam em ângulos retos e se vin-
culavam por um sistema de inclinações; e que, final-
mente, removia as arestas agudas que resultavam do
processo (Fig. 17). Além dessas obras inacabadas,
há um esboço de trabalho de um escultor, um papiro
2. Uma exceção notável pode ser observada, no que diz
respeito à pintura e ao relevo, apenas na porção acima do
quadril; mas, mesmo aqui, não nos defrontl!mos com u~a ge-
nuína perspectivação, isto é, a representaçao naturalfsbca de
uma porção do corpo "em movimento"; na verdade, estamos
diante de uma transição gráfica entre a elevação frontal do peito
e a elevação do perfil das pernas - forma e~sa que aparecia
quase automaticamente quando as duas elevaçoes eram ligadas.
por contornos. Coube à arte grega substit~ir esta confíguração
gráfica por uma forma que expressa a torsao real, ou sela, uma
"mudança" que efetua Uma transição fluida entre dois ."estados":
assim como a mitologia grega apreciava a metamorfose, do
mesmo modo a arte grega sublinhava esses movimentos transi-
tórios . - ou, como diria Aristoxeno, "críticos" - que costu-
mamos designar como contrapposti. Isto se evidencia sobretudo
nas figuras reclinadas; comparar, e.g., o deus-Terra egípcio,
Keb, com figuras atiradas ao chão como os Gigantes que apare-
cem no frontão do "Segundo Templo de Atená".
3. O plano base (ou planta baixa) era necessário quando
as principais dimensões da figura eram horizontais e não verti-
cais, como nas representações de animais, esfinges, humanos
reclinados, e em grupos compostos de várias figuras individuais.

93
17. Estátua egípcia inacabada. Museu do Cairo.
18. Esboço de trabalho de escultor egípcio (papiro). Berlim,
Neues Museurn.
que estava no Museu de Berlim, que ilustra ainda me-
lhor o método de construtor utilizado por esses escul-
tores: como se estivesse erguendo uma casa, o escultor
desenhava plantas para sua esfinge em elevação fron-
tal, projeção horizontal e corte de perfil (apenas uma
porção mínima deste último subsiste) de 'modo que,
mesmo hoje em dia, a figura poderia ser executada
segundo o projeto (Fig. 18)4.
Nestas circunstâncias, a teoria egípcia das pro-
porções podia naturalmente eximir-se da obrigação de
decidir se sua meta era estabelec.er as dimensões "ob-
jetivas" ou "técnicas", se pretendia ser antropometria
ou teoria da construção: era, necessariamente, ambas
ao mesmo tempo, pois determinar' as proporções
"objetivas" de um motivo, i.é., reduzir sua altura, lar-
gura e profundidade a grandezas mensuráveis nada
mais era que determinar suas dimensões em elevação
frontal, lateral e projeção horizontal. E como a repre-
sentação egípcia era limitada a esses três planos (exce-
to que o escultor os justapunha enquanto que o mestre
de uma arte bidimensional os fundia) as proporções
"técnicas" eram necessariamente idênticas às "objeti-
vas" . As dimensões relativas do objeto natural, tal
como contidas na projeção frontal, lateral e horizontal
só podiam coincidir com as dimensões relativas do
artefato: se um artista egípcio presumisse que o com-
primento total de uma figura humana era divisível por
18 ou 22 unidades e, além disso, tivesse conhecimento
de que o comprimento do pé valia 3 a 3,5 dessas uni-
dades e o comprimento da barriga da perna equivalia a
5 5, também saberia quais as grandezas que devia mar-
car na área de sua pintura ou nas superfícies de seu
bloco.
4. Amniche Berichte aus den kõnigtichen Kunstsammlungen,
XXXIX, 1917, colo 105 e ss. (Borchardt).
5. A su.bdivisão em dezoito quadrados caracteriza o "cânone
antigo"; em vinte e dois, o "posterior". Mas em ambos a
parte superior da cabeça (a parte acima do os [rontate no
"antigo cânone" e a parte acima do contorno do couro cabeludo,
no "posterior") não é levada em consideração, visto que a diver-
sidade de estilos de penteados e de .arranjos de cabeça exigia
uma certa liberdade nesse ponto. Ver H. SCHAFER, Von iigyptis-
cher Kunst, Leipzig, 1919, lI, p. 236, nota 105, e o artigo muito
esclarecedor de C. C. EDGAR, Remarks on Egyptian "Sculptors"
Models, em RecueU de travaux relatifs d Ia philologie ... egypti-
enne, XXVII, p. 137 e 55., ver, também, idem, a introdução ao
Ca~alogue Général des Antiquités Egyptiennes du Musée du
Catre, XXV, Sculptor's Studies and Unfinished Works Cairo
1906. ' ,

96
Através dos exemplos que chegaram até nós 6 sa-
bemos que os egípcios. efetuavam essa subdivisão da
pedra ou mural por meio de uma rede finamente
malhada de quadrados iguais; esse método era empre-
gado não apenas para representar seres humanos mas'
também nas figuras de animais. que desempenhavam
papel tão importante na arte egípcia 7. O propósito
desta rede será melhor entendido se a compararmos
. ao sistema de quadrados, ilusoriamente semelhante,
usado pelos artistas modernos para transferirem suas
composições de uma superfície menor para outra
maior (mise au carreau). Enquanto que esse proces-
so pressupõe um desenho preparatório - que em si
mesmo não é ligado a nenhuma quadratura - no qual
as linhas horizr ntais e verticais são sobrepostas subse-
qüentemente, em lugares arbitrariamente escolhidos, a
rede usaca pelo artista egípcio precedia o desenho e
predeterminava o produto final. Com suas linhas mais
significativas permanentemente fixadas em pontos es-
pecíficos do corpo humano, a rede egípcia indicava
imediatamente ao pintor ou escultor como organizar
sua figura: sabia, desde o início, que precisava colo-
car o tornozelo na primeira linha horizontal, o joelho
na sexta, os ombros na décima sexta e assim por dian-
te (Il. 1).
Resumindo, a rede egípcia não tem significação
transferencial mas construtiva, e sua utilidade ia desde
o estabelecimento das dimensões até a definição de
movimento. Já que ações como andar e golpear eram
expressas somente por alterações estereotipadas de
posição e não pela mudança da disposição anatõmica,
até mesmo o movimento podia ser determinado ade-
quadamente por informações puramente quantitativas.
Era aceito, por exemplo, que numa figura considerada
em posição de andamento, o comprimento do passo
(medido da ponta de um pé à ponta do outro) deve-
ria ser de 10,5 unidades, enquanto que essa mesma
6. Especialmente numerosos no Museu do Cairo; ver tam-
bém o interessante ciclo de pinturas murais de Ptolomeu I no
Pelizaeus Museum de Hildesheim.
7. EDGAR', Catalogue, p. 53; ver, também, A. ERMAN,no
AmUiche Berichte aus den kõniglichen Kunstsammlungen, XXX,
l00a, 1'>. 1'97 .e 55.

97
distância numa figura parada era determinada em 4
ou 5 unidades 8. Sem muito exagero pode-se afirmar
que, quando um artista egípcio familiarizado com esse
sistema de proporções era incumbido de representar
uma figura de pé, sentada ou andando,,' o resultado
era fácil -de se prever uma vez determinado o tama-
nho absoluto da figura 9.
Esse método egípcio de empregar uma teoria de
proporções reflete claramente sua Kunstwollen, diri-
gida não à variável, mas à constante, não à simboli-
zação do presente vital, mas à realização da eternida-
de intemporal. A figura humana criada' por um artis-
ta da época de Péricles devia, supostamente, estar
investida de uma vida que era apenas aparente, mas
- no sentido aristotélico - "atual"; era somente
uma imagem, mas uma imagem que espelhava a função
orgânica do ser humano. A figura humana criada por
um artista egípcio devia, supostamente, estar inves-
tida de uma vida real mas - no sentido aristotélico
- apenas "potencial"; reproduzia a forma e não a
função do ser humano, numa réplica mais duradoura.
De fato, sabemos que a estátua tumular egípcia não
era feita com o intuito de simular uma vida própria
mas de servir como substrato material para outra vida,
a. vida do espírito "Kã". Para os gregos, a éfígie plás-
nca comemora um ser humano que viveu; para os
egípcios, é um corpo que espera para ser reanimado.
Para os gregos, a obra de arte existe numa esfera de
idealidade estética; para os egípcios, numa esfera de
realidade mágica. Para os primeiros, a meta do artista
'é a imitação ( JJ.ifJ.11"" ); para os últimos, a recons-
trução.
Voltemos uma vez mais, ao desenho preparatório
para a escultura de uma esfinge. Nada menos que
três diferentes redes são usadas, e tinham que ser
usadas, já que esta esfinge particular, segurando a
8. Cf.. e.g., E. MACKAY, no Journa! oi Egyptian Archae!ogy,
IV, 1917, pr. XVII. Entretanto, em outros aspectos, o artigo de
Mackay não parece atingir a solidez da obra de Edgar.
9. Inversamente, o tamanho absoluto é, sem dúvida deter-
minad.o por um único quadrado da rede tornando assim possível
ao egíptôlogo reconstruir a 'figura inteira a partir de um mero
fragmento desta rede.

98
pequena figura de uma deusa entre as patas, compõe-
se de três partes heterogêneas, cada uma das quais
requer seu próprio sistema de construção: o corpo
de um leão, cujas proporções seguem o cânone ade-
quado a esta raça de animal; a cabeça humana, que é
subdividida segundo um esquema das chamadas Ca-
beças Reais (somente no Cairo estão preservados mais
de quarenta modelos); e a pequena deusa, que se ba-
seia no cânone costumeiro dos 22 quadrados prescri-
tos para 'a figura humana inteira 10. Assim, a criatura
a ser representada é uma pura "reconstrução", COllS-
truída pela junção de três componentes diversos, cada
um dos quais concebido e proporcionado exatamente
como se estivesse sozinho. Mesmo onde precisou com-
binar três elementos heterogêneos numa mesma figura,
o artista egípcio não achou necessário modificar a
rigidez dos três diferentes sistemas de proporção em
favor de uma unidade orgânica que, na arte grega, se
afirma mesmo na Quimera.

11
Pelos parágrafos precedentes, podemos prever
que a arte clássica dos gregos tinha que se libertar,
completamente, do sistema egípcio de proporções. Os
princípios da arte arcaica grega ainda eram similares
aos dos egípcios; o avanço do estilo clássico em detri-
mento do arcaico consistiu em aceitar como valores
artísticos positivos precisamente aqueles fatores que
os egípcios haviam negligenciado ou negado. A arte
clássica grega levou em conta a mudança das dimen-
sões como resultado do movimento orgânico; a pers-
pectivação decorrente do processo visual; e a necessi-
dade de corrigir, em certos casos, a impressão óptica
do espectador através de ajustamentos "eurrítmicos" 11.
10. É esse "desvio peculiar dos outros desenhos baseados
em redes" que dá uma importância especial ao Papiro da ESfinge
de Berlim: o fato de terem sido empregados três sistemas de
proporções - uma anomalia facilmente explicada por ser o
organismo em questão heterogêneo. e não homogêneo - prova.
conclusrvamente, que o sistema egipcio de quadrados iguais não
era um método de transferência. mas um cânone. Para o pro-
pósito de um simples mise au carreau, os artistas sempre usam,
é claro. uma grade uniforme.
11. Cf. a conhecida estória de uma Atená, de autoria de
Fidias. em que a parte inferior do corpo, embora objetivamente
demasiado curta, parecia "correta" quando a estátua era colo-

99
Portanto, os gregos não podiam aceitar um sistema
~e ~!"oporçõ~sque, ao estipular as dimensões "obje-
tívas , tambem colocava, irrevogaveImente, as "técni-
cas". Só ~odiam admitir uma teoria de proporções
que desse liberdade ao artista de variar as dimensões
"objetivas" de caso para caso - em suma, somente
na me~ida em que esta se limitava ao papel de antro-
pometna.
Estamos, pois, muito menos informados sobre a
teoria grega de proporções, tal como se desenvolveu
e ~oi.aplicada na era clássica, do que sobre o sistema
egipcro. Uma vez que as dimensões "objetivas" e "téc-
nicas" deixaram de ser idênticas, o sistema ou sistemas
não mais podia ser percebido diretamente nas Obra;
d 12 .
. e ar te ; por outro lado, podemos colher algumas
mformações de fontes literárias, freqüentem ente liga-
das ao nome de Policleto - o pai, ou pelo menos o
formuIador da antropometria clássica grega 13.
Lemos, por exemplo, na Placita Hippocratis et
Platonis de Galeno:

~~~~' 'bem acima do nf,:el dos olhos (;T. OVERBECX, Die antiken
chen ftlu~llen Zur Geschlchte der bildenden Kunst bei den GTie-
, erpzig, 1868, n. 772). Muito interessante também é a
passagem pouco conhecida do Sofistas, de Pia tão, 235E/236A:
.' O/1"OlJ" &TO! "Ie rtÃi,,_p.ryá.~fIJ" 11'06 r. r"á.r';ol/o.., IfYYflJIf "
"Ip6.tpol/tnlf. el "Iàp elroo,,'o'E" r1}" rfIJ/I """flJIf el"'1I"p1}If tiup.p.erpil1.1l, olufI 5r,
up.t."p6r~pll ,u" roií 6Éonos rà l"fIJ, p.elrtll 6~ rA "á.rfIJ "''''"o.r' a•.
6.A r~
rA".€/I r6p(JflJ8~", rà tllyy60." õ.,,';'p.ii>" lIpiuOIl'. áp' oií••06 ""'~'" r~ 1i"'10es
UUllnes ol 6"p.,ol/P.'rol Pií•• 011 ràs ol1uIIs olJp.p.erpI4s, <i"M ràs 8ofovuIIs aI" •••
,,""às rois eI6':'''01S 1,,4rafYYáraflT<u

Em português, tomando por base a tradução inglesa de H. N.


~O~LZR, (Loeb Classícal Library) n, p. 335, diríamos:
P!ato
Nao apenas aqueles que produzem uma obra importante de
escultura ou pintura [usam a ilusão). Pois se reproduzissem
as verdadeiras proporções das belas formas, as partes superiores,
co~o sabem, pareceriam menores e as ínferíores maiores que o
devido, porque vemos a primeira de uma certa distância e as
ú!timas de perto... Assim, os .artistas abandonam a verdade e
dao às suas figuras, não as proporções reais, mas aquelas
que parecem ser' belas, não é verdade?"
12. O bel1?-conhe~ido "Metrological Relief" d~ Oxford (Jour-
na! ot Hellemc Studles, IV, 1883, p. 335 e ss.) não tem nada a
ver com a teoria das proporções na arte, mas serve apenas
para padronizar- o que se pode chamar de medidas comerciais:
1 braça (dfYY"Ia.) =_
7 pés (r66n) =
2,07m, valendo cada pé
O,296m .. Portanto, nao se faz nenhuma tentativa para dividir
propo.rclOnalmente a figura humana como demonstram essas
medidas.

_ 13. D~s teóri.cos das J?roporçõe~ mencionados por Vitrúvio


. Melânbo, Pólís, DemófIlo, LeOmdas, .Eufranor e assim por
diante - nada sabemos, exceto os nomes. K.u.KMANN (Die Pro-

100
r~ 6E tceínos OU" lI' ri; rtÃi" tTTOI)(ElWI', el"'" I. rjj rtÃi.

p.oplwI' ulJp.p.frpl'lo uu.lurllu9a.. I'op.l~e. [XpÓtTI1l'1ros], 6l1ICTú"olJ .r~s


1Ió."•.u"o. 11'1"01'6•.• "a.I ulJp.rá./I"w/I a.u•.tÃi" rp6s Te p.••. a."ó.prlo" "a.l ,,"pr6.,
"a.l .,.OÚTW/I r~s rjjxu", "a.l ,..'ljxaws r~s {Jpa.)(lopa., "a.l ,..á/lrw/I 1I'~s

1I'Ó.".,.4, "49ó.r.p lI' TW IToÀv"".L;'olJ "",,6,,. "tÉ"fpa.,fr4'\14.

"Crisipo . .. sustenta que a beleza não consiste nos


elementos, mas na proporção harmoniosa das partes,
a proporção de um dedo para o outro, de todos os
dedos para o resto da mão, do resto..da mão para o
pulso, desses para o antebraço, do antebraço para o
braço inteiro, ou seja, de todas as partes entre si,
como está escrito no cânone de Policleto."
Em primeiro lugar, esta passagem confirma o que
ja se suspeitava de antemão: que o cânone de Poli-
cleto tivesse um caráter puramente antropométrico, i.é.,
que seu propósito não fosse facilitar o tratamento
composicional dos blocos de pedra ou das superfícies
.murais, mas apenas, e exclusivamente, determinar as
proporções "objetivas" do ser humano normal; de
modo algum predeterminava as dimensões "técnicas".
O artista que observasse esse cânone não era obriga-
do a deixar de representar as variações anatômicas ou
miméticas, ou de empregar as perspectivações, ou mes-
mo, se necessário, de ajustar as dimensões de sua figu-
ra à experiência visual subjetiva do observador (como
.no caso de um escultor que alonga a porção superior
de uma escultura colocada no alto ou engrossa o lado
oposto de um rosto virado de perfil a três quartos).
Em segundo lugar, o testemunho de Galer,o caracteriza
o princípio da teoria policletiana das proporções como
o que pode ser chamado de "orgânico".
Como sabemos, o artista-teórico egípcio cons-
truía primeiro uma malha de quadrados iguais 15 e
depois inseria nesta' rede o esboço de sua figura -
portionen eles Gesichts in der gTiechischen Kunst. [Berliner
Winckelmannsprogramm, n, 53], 1893, p. 43 e 55.), tentou, entre-
tanto, basear as origens das afirmações de Vitrúvio no cânone
de Eufranor. U:martigo mais recente, de autoria de Foat (no
Jouma! ot He!!enic Studies, XXXV, 1914,p. 225 e 55., não aumen-
tou substancialmente nosso conhecimento da antiga teoria das
proporções.
14. GALZNO, Pbacita. Hippocratis et P!atonis, V, 3.
15. A própria unidade iguala .a altura do pé, da sola até
o limite superior do tornozelo [e foi recentemente definida 'Como
1 "punho" ou 1 1/3 "larguras de mão" (ver lVERSEN, citado na
p. 11»). Entretanto, a relação dessa unidade com as dimensões

101
sem se preocupar em saber se cada linha desta rede
coincidia com uma das junções organicamente signi-
ficativas do corpo humano. Podemos observar, e.g.,
que num "código posterior" (Ilust. 1) as linhas hori-
zontais 2,3,7,8,9,15 passavam por pontos. sem a
menor significação. O artista-teórico grego procedia
de modo totalmente inverso. Não começava por
uma rede construída mecanicamente na qual acomo-
dasse depois sua figura; iniciava, ao contrário, pela
figura humana, organicamente diferenciada em tronco,
membros e partes dos membros e tentava, subseqüen-
temente, determinar como essas partes se relacionavam
en've si e com o todo. Quando, segundo Galeno,
Políclet., descreveu a proporção devida entre dedo e
dedo, dedo e mão, mão e antebraço, antebraço e braço,
e, finalmente, cada parte separada e o corpo inteiro,
isto significava que a teoria clássica das proporções tal
como utilizada pelos gregos abandonara a idéia de
construir o corpo baseada em um módulo absoluto,
como se partisse de pequenos blocos de construção
todos iguais: tentava estabelecer relações entre os mem-
bros, anatomicamente diferenciados e distintos uns dos
outros, e o corpo inteiro. Assim, não é um princípio
de identidade mecânica e sim um princípio de diferen-
ciação orgânica que forma a base do cânone de Poli-
cleto; seria totalmente impossível incorporar suas esti-
pulações numa rede de quadrados. Para termos uma
idéia da teoria dos gregos hoje perdida, devemos nos
voltar, não para o sistema egípcio de proporções, mas
para aquele segundo o qual as figuras do Primeiro
Livro de Albrecht Dürer sobre as proporções humanas
são medidas (Ilust. 7).
As dimensões dessas figuras são todas expressas
em frações ordinárias do comprimento total, e, na ver-
dade, a fração ordinária é o único símbolo matemá-
tico legítimo para "as relações das quantidades co-
mensuráveis". A passagem transmitida por Galeno
mostra que Policleto também expressou, com coerên-
cia, a medida de uma parte menor com a fração ordi-
dos membros, mesmo com o comprimento do próprio pé, varia;
é, de fato, algo duvidoso que se pretendesse ,:st.abelecer tal
relação. No "antigo" cânone, o comprimento do pe e geralmente
igual a três unidades (cf., entretanto, EDGAR, TTavaux, p. 145),
e no "posterior", a cerca de 3,5 unidades etc.

102
11. 1. O "Código Posterior" da Arte egípcia, segundo os
Travaux relatijs à Ia philologie et archéologie égyptiennes,
XXVII, 905, p. 144.

nária de uma quantidade maior - e finalme~te, to~al,


- e que não pensava em expressar as dlmenS?es
como múltiplos de um modulus constante. É precisa-
mente esse método - de relacionar diretamente as
dimensões entre si e expressá-Ias através umas das
outras, de reduzi-Ias separadamente a uma unida~e
neutra (x = y e não x =1, Y =
4) - que realiza
a imediatamente evidente "Vergleichlichkeit Eins gegen
dem Andem"· (Dürer) característica da teoria clássica.
Não é por acaso que Vitrúvio, <? único eS,c~itorantigo
que nos legou alguns dados efetivos numencos a. res-
peito das proporções humanas (dados que denvam
manifestamente de fontes gregas), as formula exclu-
sivamente como frações ordinárias do comprimento do

103
corpo 16, e que se afirma que no próprio Doryphoros
de PolicIeto as dimensões das partes mais importantes
do corpo eram expressáveis em tais frações 17.
Q caráter antropométrico e orgânico da teoria
clássica das proporções -Iiga-se, intrinsecamente, a uma
terceira característica, sua ambição pronunciadamente
normativa e estética. Enquanto a meta do sistema
egípcio é apenas reduzir o convencional a uma fór-
mula fixa, o cânone de PolicIeto pretende capturar a
beleza. Galeno chama-o taxativamente de definição
do que "consiste a beleza interior" C KáÀÀ05 lTuvÚn;a.8a.1 ).
Vitrúvio apresenta sua pequena lista de medidas como
"dimensões do homo bene figuratus". E a única cita-
ção que se pode atribuir; sem sombra de dúvida, ao
próprio Policleto, diz o seguinte-te yáp EÕTropá IllKPÓVf>là
'TfoÀÀwvápl8iJWV,y[yvE08m18, "a beleza aparece, 'pouco a
pouco, através de muitos números". Assim, o câ-
none de Policleto pretendia estabelecer uma "lei" de
estética e é inteiramente característico do pensamento
clássico que só pudesse imaginar tal "lei" sob a forma

16. Este fato foi justamente enfatizado por Kalkmann (op.


cit., p. 9 e ss.) em refutação àqueles que gostariam de deduzir
da passagem de Galeno a descrição de um sistema de m6dulos.
Aparentemente. esses autores enganaram-se com a palavra
õáKTVÀ05'(dedo). que interpretaram "Como unidade de medida,
quando é a menor parte do corpo a ser medida.
Por conveniência, dou aqui as medidas de Vitrúvio:
a). face (da raiz dos cabelos até o queixo) = 1/10 (do
comprimento total);
b) mão (do pulso até a ponta do dedo médio) 1/10;
c) cabeça (do topo até o queixo) = 1/8;
d) centro do pescoço até a raiz dos cabelos = 1/6;
e) centro do pescoço até o topo da cabeça = 1/4;
f) comprimento do pé = 1/6;
g) cúbito = 1/4;
h) largura do peito = 1/4.
Além disso, está especificado que a face é dividida em três
partes iguais (testa, nariz, e parte inferior incluindo boca "e
queixo) e que o corpo inteiro, quando ereto e com os braços
abertos, inscreve-se num quadrado; e quando com os braços e
as pernas estendidos, num círculo descrito em torno do umbigo
[Sobre a origem cosmolôgíca das especifi'cações deste último
termo, ver F. Saxl, citado p. 11].
As afirmações (a) e (c) acham-se, obviamente em contra-
dição com as afirmações Id) e (e) segundo as quais restaria
1/12 e não 1/40 para a parte superior do crânio. Como s6 O
último valor pode estar correto, a adulteração do texto deve
residir nos itens (d) ou (e). É por isso que os teóricos da
Renascença, e.g., Leonardo da Vinci, introduziram aqui várias
correções (ef., adiante, nota 83).
17. KALKMANN. Op. cít., pp. 36-37.
18. DIELs, E. Archêiologischer Anzeiger. 1889, n. I, p. 10.

104
de relações expressáveis em termos de frações. Com
a única exceção de Plotino e seus discípulos, a esté-
tica clássica identificava o princípio da beleza com a
harmonia das partes entre si e com o todo 19.
A Grécia clássica, portanto, opunha ao código
de arte inflexível, mecânico, estático e convencional
dos egípcios, um sistema de relações, elástico, flexível,
dinâmico e esteticamente relevante. E é possível
demonstrar que este contraste já era conhecido da
própria Antiguidade. Diodoro de Sicília conta, no ca-
pítulo noventa e oito de seu Primeiro Livro, a seguin-
te estória: Nos tempos antigos (ou seja, no século
VI a.C.) dois escultores, Telecles e Teodoro, fizeram
19. Talvez convenha neste ponto discutirmos os três con-
ceitos da teoria estética de Vitrúvio: proportto, symmetria e
eurhyhtmia. Desses, a eurhythmia é o que suscita menos difi-
culdades. Como já mencionamos mais de uma vez (cf., também,
KALKMANN, op. cit., p. 9 nota e p. 38, nota) depende da aplica-
ção apropriada dos "refinamentos óptrcos" que, aumentando ou
diminuindo as dimensões objetivamente corretas, neutral'zam as
distorções subjetivas da obra de arte. Portanto, segundo Vi-
trúvio, I, 2, eurhythmia é uma "vetusta species commodusque
aspectus" (I.é., "uma aparência agradável e um aspecto apro-
priado"); é a qualidade caracterlstica daquilo que Filo Mecâ-
nico (citado por Kalkmann) chama de TO óllóÀoyo TQ ópóoci
KOIEÜPU81l0<l>OlVÓiJEVO, ou "aquilo que parece apropriado
e eurrítmico ao sentido da VIsta". Na arquitetura isto significa,
e.g., o engrossamento das colunas dos' cantos dos templos pe-
riptéricos que, devido à irradiação, apareceriam de outro modo
mais delgadas que as outras; ou as curvaturas dos epistilios e
estil6batas. A diferença entre proportio e symmetria é mais
diflcil de se determinar, já que ambos estes termos continuaram
em uso mas assumiram um significado basicamente diferente.
'Parece-me que para Vitrúvio symmetria estava para proportio
assim como definição de normas está para realização de nor-
mas. Symmetria. definida (em I, 2) como "ex ipsius operís
membris convenlens consensus ex partibusque separatis ad
universae figurae speciem ratae partís responsus" ("a harmonia
apropriada resultante dos membros da própria obra e a "Corres-
pondência métrica resultante das partes separadas em relação
ao aspecto global da configuração") é o que pode se chamar de
principio estético: a relação reciproca entre os membros e a
consonância entre as partes e o todo. Proportio. por outro lado,
definida (em lU, 1) como "ratae partis membrorum in omni
opere totiusque commodulatio" ("a coordenação métrica, em toda
a obra, da Tata pars [m6dulo. unidade] e o todo"), é o método
técnico através do qual essas relações harmoniosas são "postas
em prática", para usar uma expressão de Dürer: o arquiteto
usa um m6dulo (rata pars, lJ.LiJár1)$) através de cuja multi-
plicação (IV, 3) obtém as dimensões métricas reais de sua obra
_ como um arquiteto moderno que, tendo decidido construir
uma sala proporcionada numa razão· de 5 :8, determina suas
dimensões como sendo 18'9" por 30'. Portanto, proportio não
é aquilo que determina a beleza, mas apenas algo que assegura
sua realização prática, e Vitrúvio é muito coerente ao caracte-
rizar !proportio como aquilo através do qual symmetria effiei-
tur, enquanto insiste que proportio, por seu turno, deve "se
harmonizar com a simetria" ("universaeque pToportionis ad
symmetriam comparatio"). Resumindo, pToportio, melhor tra-

105
uma estátua de culto em duas partes separadas; en-
quanto o primeiro preparou sua parte em Samos, o
segundo trabalhou em Efeso; e, ao serem juntadas,
cada parte se combinava perfeitamente com a outra.
Esse método de trabalho, continua o relato, não era
comum entre os gregos, mas entre os egípcios, pois
entre estes últimos "as proporções da estátua não
eram determinadas, como entre os gregos, segundo a
experiência visual" ( á.,,-à rij, Karà r~" õpaq," <f>anaq{a, ),
mas assim que os blocos eram extraídos, cortados e
preparados, as dimensões eram "imediatamente" (ro
T11vLKavrc» estabelecidas, desde as maiores até
as menores ~o. No Egito, Diodoro nos diz, a estrutura
total do corpo 21 era subdividida em 211,4 partes
iguais 22; portanto, uma vez decidido o tamanho da
figura a ser produzida, os artistas podiam dividir o
trabalho e mesmo trabalhar em lugares diferentes e'
não obstante chegar a uma correta junção das partes.
duzida como uma "redução a escala" é um método de técnica
arquitetônica que, do ponto de vista clássico, tem pouca im-
portância nas artes figurativas. É perfeitamente compreensível
que Vitrúvio inclua sua pesquisa das proporções humanas não
na exposição de proportio; mas na de symmetria, como quando
as expressa não como múltiplos de um módulo mas como fra-
ções do comprimento total do corpo. Vê o uso do módulo,
cummodulatio, apenas como um método de mensuração prático;
por outro lado, só pode imaginar a "harmonia apropriada" das
dimensões, cuja determinação deve preceder este commoduLa-
tio, em termos de relações (expressâveis em n ações) que deri-
vam da articulação orgânica do corpo (ou, do edifício). Ver
também KALKMANN, op. cit., p. 9, nota 2: "PTOPOTtio afeta ape-
nas a construção, com o auxü:o do módulo, a Tata pcrs. Symme-
tria é um fator adicional: os membros devem relacíonar-se ade-
quada e belamente entre si, postulado este que não é levantado
pela proportio"; também, A. JOLLES,VitTUVS Aesthetik (Diss.,
Friburgo, 1906) p. 22 e ss.
20. Há uma correspondência impressionante entre esta des-
criação e o versículo em Isaías 44:13, no qual a atividade dos
(assírios-babilônios) "fazedores de imagens esculpidas" é descrita
desta maneira: "O carpinteiro (artesão) estendia sua régua;
marcava nela uma linha; construía planos, marcava-os com um
compasso e então produzia a figura de um homem, segundo a
beleza de um homem ... "
21. Cumpre notar que dos falar ao Diodoro, gregos, 'diz
tTup.p.fTp{a ("pruporç;io harrnoruos..") ,mas quando se refere' aos
egípcios usa "c>raLTKfv1Í (".estrutura", "construção").
22. Trata-se de um pequem. erro, na medida em que há
vinte e (luas divisões. Mas o principio é entendido de maneira
bastante- correta, principalmente pelo fato de para o topo da ca-
beça estar reservada uma pequena porção fora da grade. Digno
de nota também é o discernimento de história de arte com que
Dlodoro percebe a afinidade estilística entre a arte egípcia e
a arcaica grega, vendo que as duas podiam ser tratadas como
uma coisa única em contraposição ao estilo cláss.co. Cf. tam-
bém o capitulo anterior onde se discute a figura do pai lendário
da escultura grega: ró" Te iw(J~JI TWV ápxa.lwJI IC4T Ai-yvrTOJ' âJl8ptdllTWJI
P

T~J' avTt\v €lJlcU roi, iJ'KÔ ~at6á.Àoll K4T4«1KflIClO'6'((O"t frapâ. Tois ·'EÀÀ7]O'L.

106
Seja ou não verdadeiro o conteúdo anedótico
desse interessante relato, demonstra uma fina sensibi-
lidade para a diferença existente não apenas entre a
arte grega e a egípcia, mas também entre a teoria
de proporções egípcia e da Grécia clássica. O relato
de Diodoro é importante não tanto por confirmar a
existência de um código egípcio quanto por acentuar
sua significação única para a produção de uma obra
de arte. Mesmo o cânone mais altamente desenvol-
vido não permitiria a dois artistas perpetrarem a fa-
çanha imputada a Telecles e Teodoro caso as propor-
ções "técnicas" da obra de arte começassem a se di-
ferenciar das informações "objetivas" prescritas pelo
cânone. Dois escultores gregos do século V, para
nem falar no IV, mesmo que concordassem plena-
mente sobre o sistema de proporções a ser utilizado
e o tamanho total da figura a ser esculpida, nunca
poderiam ter trabalhado numa parte independentemente
da outra: mesmo se aderissem, estritamente, a um
cânone estipulado de medidas, teriam liberdade quan-
to à configuração formal 23. Portanto, o contraste
que Diodoro quer enfatizar, dificilmente poderá sig-
nificar, como se supôs, que os gregos, em oposição
aos egípcios, não seguiam cânone nenhum e tomavam
suas figuras proporcionais "por golpe de vista" 24 -
além do fato de que Diodoro certamente estava intei-
rado, pelo menos através da tradição, dos esforços de
Policleto. O que procura transmitir é que, para os
egípcios, o cânone das proporções era, por si mesmo,
suficiente para predeterminar o resultado final (e,
23. Deve-se abrir uma exceção a JOLLES, op. cito 91 e ss,
quando relaciona nossa passagem com uma dicotomia suposta-
mente existente dentro da própria arte clássica grega - uma
dicotomia que ele caracteriza como uma oposição entre uma
concepção "simétrica" e "eurritmica" de arte, sendo a última, e
não a primeira, supostamente baseada. na ..... nO: rnv &p<lOUI Ibavrao-i.a. .
O relato de Diodoro sobre Telecles e Teodoro não se refere, de
modo algum ao conceito de qup.p.ErpLa; trã verdade, ,usa a
expressão qup.p.Erpta precisamente com referência .~
estilo clássico - e, em relação a Telecles e Teodoro, mais "mo-
derno" - que, segundo Jolles, marcaria uma concepção de arte
não-vsímétrtca", i.é., "eurrítmica".
24. As sim como procedeu Wahrmund em sua tradução de
Diodoro (1869). Este ponto de vista 'foi corretamente rejeitado
por Kalkmann (op. cít., p. 38, nota) como estando em desa-
cordo com o próprio conceito de CTup.p.E'rpla que por si mes-
mo implica que a obra de arte não é moldada puramente "por
golpe de vista", mas depende do estabelecimento de regras de
mensuração.

107
por essa razão, podia ser aplicado "in loco", assim
que os blocos de pedra eram preparados), enquanto
que, do ponto de vista grego, algo totalmente dife-
rente se fazia necessário além do código: observação
visual. Quer deixar claro que o escultor egípcio, co-
mo um pedreiro, não necessitava de nada mais exceto
das dimensões para fabricar sua obra e, já que de-
pendia totalmente delas, podia reproduzir, - ou, mais
exatamente, produzir - as figuras em qualquer lugar
ou qualquer número de partes; ao passo que o artista
grego, pelo contrário, não podia aplicar diretamente
o cânone ao seu bloco de pedra, mas precisava veri-
ficar, ein cada caso, o KaTà T~V opomv <!>aVTCUf'Cl, i.é.,
o "percepto visual" que leva em conta a flexibilidade
orgânica do corpo a ser representado, a diversidade
de perspectivações que se apresentam ao olho do ar-
tista, e, mesmo, as circunstâncias particulares sob as
quais a obra acabada poderá ser vista. Nem é pre-
ciso dizer que tudo isso subinete o sistema canônico
de medidas a inumeráveis alterações quando é posto
em prática 25.
O contraste que a estória de Diodoro pretende
deixar claro, e o faz com notável nitidez, é o contraste
entre "reconstrução" e "imitação" (, p.iwYJ(fl< ),
entre uma arte totalmente dominada por um código
mecânico e matemático e outra na qual, a despeito
da conformação à regra, ainda 'há lugar para o irra-
tionale da liberdade artística 26,

lU
O estilo da arte medieval (a não ser, talvez, na
fase conhecida como Alto Gótico) em distinção ao
da Antiguidade clássica, é normalmente designado
como "planar" (fliichenhaft). Em comparação com
25. Supor. como faz Kalkmann, que Diodoro pense aqui
exclusivamente nas temperaturae "eurrítmicas" parece-me uma
leitura demasiado estreita.
26. Daí Leone Battista Alberti que. por estranho que pare-
ça, também menciona a possibilidade de se produzir uma está-
tua em duas partes e em dois lugares diferentes (Leone Bathsta
Albertis kleinere kunsttheorische Sctvriiten, H. JANltsCHEK. ed.
[QuelLenschriften fii.r Kunstgeschichte. XI], V:ena. 1877. p. 199)
encarar esta possibilidade apenas em conexão com a tarefa de
duplicar exatamente uma estátua já existente; não a considera
a fim de ilustrar um método de produção artística criativ.a mas
de enfatizar a precisão de um método de transferência que ele
próprio havia inventado.

108
a arte egípcia, entretanto, deveria qualificar-se mera-
mente como "planado" (verfliichigt), pois a diferença
entre a "planaridade" egípcia e medieval é que na
primeira os motivos de fundo são suprimidos, enquan-
to que na última são apenas desvalorizados. As re-
presentações egípcias são planares porque a arte egíp-
cia retrata só o que pode ser apresentado de facto no
plano; as representações medievais parecem planares,
embora a arte medieval represente aquilo que não
pode ser apresentado de facto no plano. Enquanto
os egípcios excluem positivamente o perfil de três
quartos e a direção oblíqua do tronco e pernas, o
estilo medieval, pressupondo o movimento livre do
antique admite tanto um quanto o outro (na verdade,
o perfil de três quartos constitui a regra, enquanto que
o perfil total e a visão frontal constituem as exceções).
Entretanto, essas posições não são mais exploradas
de modo a gerar a ilusão de verdadeira profundidade;
já que os meios opticamente eficazes de modelagem e
sombreamento foram abandonados, essas posições são
expressas, via de regra, pela manipulação de contornos
lineares e áreas de cor 27, Assim, existem na arte
medieval todos os tipos de forma que, de um ponto
de vista puramente técnico, podemos considerar como
"perspectívadas". Porém, já que seus efeitos não se
apóiam em meios ópticos, elas não nos parecem "pers-
pectivações", no sentido em que o termo é em geral
usado. Pés colocados obliquamente, por exemplo,
quase sempre provocam a impressão de estarem pen-
dentes mais do que de estarem sendo vistos de frente;
e a vista em três quartos dos ombros, reduzida a uma
expressão planar, tende a sugerir uma corcunda.
Nessas circunstâncias, a teoria das proporções
precisava ser orientada em novas direções. Por um
lado, o achatamento das formas do corpo era incom-
patível com a antropometria antique que pressupunha
a idéia de que a figura existe como um sólido tridi-
mensional; por outro lado, a irrestrita mobilidade des-
sas formas, legado irrevogável da arte clássica; tor-
nava impossível aceitar um sistema que, semelhante
ao egípcio, predeterminasse as dimensões "técnicas"
27. Na Alta Idade Média até as formas das luzes e som-
bras tendem a se congelar em elementos puramente lineares.

109
assim como as "objetivas". Assim, a Idade Média
enfrentou o mesmo dilema que a Grécia clássica; mas
foi forçada a escolher a alternativa oposta. A teo-
ria egípcia das proporções, identificando as dimen-
sões "técnicas" com as "objetivas", fora capaz de
combinar as características da antropometria com as
de um sistema de construção; a teoria grega das pro-
porções, abolindo esta identidade, vira-se forçada a
renunciar à ambição de determinar as dimensões "téc-
nicas"; o sistema .nedieval renunciou à ambição de
determinar as "objetivas": limitou-se a organizar o
aspecto planar da figura. Enquanto o método egípcio
fora construtivo e o da Antiguidade clássica antropo-
métrico, pode-se dizer que o da Idade Média foi es-
quemático.
Entretanto, dentro dessa teoria medieval das pro-
porções cabe observar duas tendências diferentes. Elas
concordam entre si, a bem dizer, pois se baseiam no
mesmo princípio de esquematização planimétrica, mas
diferem uma da outra já que esse princípio é inter-
pretado de maneiras dessemelhantes: a bizantina' e
a gótica.
A teoria bizantina das proporções que, em cor-
respondência com a enorme influência da arte bizan-
tina, foi, também, de extraordinária importância para
o' Ocidente (ver Fig. 19), ainda denunciava os efeitos
subseqüentes da tradição clássica pelo fato de elabo-
rar seus esquemas tomando a articulação orgânica do
corpo humano como ponto de partida: aceitava o fato
fundamental de que as partes do corpo se realçam
umas das outras pela própria natureza. Mas não era
totalmente não-clássica, já que as medidas dessas par-
tes não eram mais expressas por frações ordinárias e
sim pela aplicação, um tanto grosseira, do sistema de
módulo ou unidade. As dimensões do corpo como
aparecem num plano - tudo o que estivesse fora do
plano não era levado em conta - eram expressas em
comprimentos de cabeça, ou, mais exatamente, de face
(em italiano: viso ou faccia, também freqüentemente
designada como testa) 28, importando comumente o
28, Isso é em si mesmo característíco da índole da época.
Do ponto de vista clássico, os valores métricos da f,ace, pé,
cúbito, mão e dedo tinham igual interesse; agora, o rosto, sede
da expressão espiritual, é tomado como unidade de medida

IJO
19. Madona. Hamburgo, Staats- und Universitâtsbibliothek,
ms. in scrinio 85, f<1 115v., começo do século XIII,
comprimento total 'do corpo a nove dessas unidades.
Assim, segundo o Manual do Pintor do Monte Atos,
uma unidade era destinada ao rosto, três ao torso,
duas a cada parte, superior e inferior, da perna, 1/3
ao topo da cabeça, 1/3 à altura do pé e 1/3 ao pes-
coço 29; a largura de metade do peito (inclusive a
curva dos ombros) era estimada em 1 1/3 unidades,
"devido à sua importância, beleza e divisibilidade", como diria
Averlino Filarete na metade do século XV; ver Antonio Ave1'-
tino Fibaretes Traktat über die Baukunst, W. VONOETTINGEN,
ed., [QueUenschriften für Kunstgeschichte. nova série, III], Vie-
na, 1890, p. 54.
29. Das Handbuch der Materei vom Berçe Athos, Godehard
Schiifer, ed., 1855, p. 82. No comentárío magistral de Julius v.
Schlosser sobre o Commentarii de GmBERTI(Lorenzo Ghibertis
Denkwürdigkeiten. Berlim, 1812, II, p. 35), aparece a declaração
(com um pofilo de interrogação do próprio Schlosser) de que
o cânone do Monte Atos considera a "altura do pé" igual a
uma unidade inteira; trata-se de uma pequena inexatidão, decor-
rente de uma confusão com o comprimentq do pé "do tornozelo
aos dedos" que segundo Cennini, corresponde exatamente a uma
unidade. A altura do pé, também segundo Cennini, é expressa-
mente estabelecida como igual a um comprimento de nariz, ou
seja, 1/3 de uma unidade, e isso, mais o pescoço e o topo da ca-
beça (ambos também ~ 1/3), perfazem a unidade que corres-
ponde ao comprimento total do corpo em nove comprimentos
de face.
O valor documentário das especificações contidas no Ma-
nuat do Pintor do Monte Atos foi, na minha opinião, subesti-
mado na literatura recente. Embora a edição que chegou até
nós seja de data bastante recente (como o Indicam expressões
como TO vCIToupáÀE) e revele influência de fontes italianas, a-
maior parte do conteúdo básíco do documento parece remontar
à prátíca da Alta, Idade Média. Que isso é verdade no tocante
ao capítulo sobre as proporções evidencia-se pelo fato de as
dimensões estabelecidas pelo eânone ' do Monte Atos poderem
ser documentadas pelas obras bizantinas e bizantinescas pro-
duzidas durante os séculos XII e XIII e mesmo antes disso (cf.
adiante) . Isso se aplica também às afirmações cuja origem st:
oode seguir até a Antiguidade clássica, como, por exemplo, a
divisão do corpo inteiro em nove comprimentos de face (se-
gundo Vitrúvio, 10); a afirmação de que o topo da cabeça é
igual a um comprimento de nariz ou 1/27 da altura total
'(segundo Vitrúvio, 1/40); ou ao fato de o comprimento do pé
corresponder apenas a 1/9 (segundo Vitrúvio, 1/6). Assim,
quando as proporções de Cennini concordam com as do cânone
do Monte Atos em todos esses pontos, não se deve concluir
que este se baseia em fontes italianas mas, ao contrárto, que
uma tradição bizantina sobrevive, em Cennini.
Por outro lado, não há como negar' que o Manuat do Pintor
incorpora muitos elementos recentes e ocidentais. Na instrução
para ilustrar o décimo segundo capítulo da Revetaçdo. por
exemplo, o artista é instado a mostrar "o Menino nas alturas
sendo carregado num pano por dois anjos" (ed. Schiifer, p. 251)
e isso, tanto quanto sei, é uma renovação de uma idéia de
Dürer que apareceu, pela primeira vez, na sua xílogravura B. 71.
[Subseqüentemente, L. H. HEYDENREICH, Der Apokalypsen-
zyklus im Athosgebiet und seine Beziehungen zur deutschen
Bibelillustration, Zeitschrift für Kunstgeschichte, VIII, 1939,
p. 1 e ss.. conseguiu provar que o Apocalipse de Dürer tornou-se
familiar aos artistas bizantinos por' intermédio das xilogravuras
de Holbein sobre o Novo Testamento publicadas em Basiléia
(Wolff) em 1523.]

112
enquanto que os comprimentos internos do antebraço
e braço, assim como o comprimento das mãos, eram
considerados como iguais a 1 unidade.
Estas especificações são bastante semelhantes às
transmitidas por Cennino Cennini, o teórico do perío-
do final do século XIII, cujas concepções, na maior
parte, fundaram-se firmemente na arte bizantina. Suas
afirmações concordam com as do cânone de Monte
Atos em todos os particulares, exceto que o compri-
mento do torso (3 comprimentos de face) é subdivi-
dido por dois pontos específicos, a boca do estômago
e o umbigo, e que a altura do topo da cabeça não é
determinada expressamente como 1/3 de uma unida-
de, de modo que - sem ela - resulta um compri-
mento total de apenas 8 2/3 visi. Daí por diante, esse
cânone bizantino de 9 comprimentos de face penetrou
na teoria da arte dos períodos sucessivos, desempe-
nhando um papel importante até os séculos XVII e
XVIII 30 - às vezes, sem nenhuma modificação, co-
mo em Pompônio Gaurico, às vezes com pequenas
modificações, como em Ghiberti e Filarete.
Não tenho dúvidas de que a origem deste siste-
ma, chegando à medida por meio da numeração, por
assim dizer, deva ser procurada no Oriente. :f: ver-
dade que um relato assaz questionável do final da
Renascença (Philander) atribui ao romano Varrão 31
30. Os cânones em questão, que datam do começo da Re-
nascença, são citados num extrato de Schlosser, op. cito Gos-
taria de acrescentar as declarações menos conhecidas que apa-
recem no Trattato di architettura civile e militare de FRAN-
CESCO DI GIORGIO
MARTINI(C. Saluzzo, ed., Turim, 1841, I, p, 229
e ss.) são interessantes por revelarem uma tendência para a
esquematização píanímétríca. Quanto ao período posterior, po-
demos mencionar, entre outros, Mario Equicola, Giorgio Vasari,
Raffaele Borghini e Daniel Barbaro; o último autor mencio-
nado (La pratica della prospettiva, Veneza, 1569, p. 179 e ss.)
transmite - juntamente com o código vitruviano - um cânone
"de sua própria autoria" que, entretanto, difere do tipo bem
conhecido das nove-teste apenas pelo fato de 1/3 de uma testa
(í.é., um comprimento de nariz) ser elevado ao status de um
módulo e chamado de poUice (polegada). Portanto, o topo
da cabeça corresponde a uma polegada, a altura do pé e o
pescoço a 1 e 1/2 polegadas cada. Assim, o resultado final
corresponde a 9 1/3 teste; as outras 8 teste são distribuídas
da maneira usual.
31. SCHLOSSER,op. cit., p. 35, nota. O terço extra é des-
tinado ao joelho, razão pela qual este cânone pseudovarrônico
parece um tanto análogo às determinações de Ghiberti: este
fixa o comprimento da coxa inclusive o joelho, em 2 1/2 uni-
dades, e, sem o joelho, em 2 1/6 unidades; desse modo, também
aqui temos 1/3 de uma unidade destinado apenas ao joelho.

113
um cânone que - dividindo o comprimento total do
corpo em 9 1/2 teste - parece estar intimamente re-
lacionado com os sistemas discutidos até aqui. Mas,
além do fato de a literatura antiga sobre arte não apre-
sentar um traço sequer de tal cânone 32 e das decla-
rações de Policleto e Vitrúvio basearem-se num sis-
tema totalmente diferente (ou seja, o das frações or-
dinárias), pode-se demonstrar que os antecedentes
desta tradição representada pelo Manual do Pintor do
Monte Atos e o Tratado de Cennini existiam na Ará-
bia. Nos escritos dos "Irmãos da Pureza", uma irman-
dade erudita árabe que floresceu nos séculos IX e X,
encontramos um sistema de proporções que antecipa
o sistema ora em consideração, pois expressa as dimen-
sões do corpo por uma unidade ou módulo bastante
grande 33. E embora esse cânone pudesse provir de
fontes ainda mais antigas 34, sua linhagem não parece
ir além do final do período helenístico, ou seja, uma
época em que a visão geral do mundo foi transfor-
mada, não sem influência oriental, à luz do misticis-
mo numérico; e em que, num brusco deslocamento
do concreto para o abstrato, os próprios matemáticos
antigos, culminando e terminando com Diofanto de
Alexandria, sofreram uma "arimetização" 35.
O cânone dos "Irmãos da Pureza" nada tem a
ver com as práticas artísticas. Fazendo parte de uma
cosmologia "harmonística", não se propunha forne-
cer um método para a representação pictórica da fi-
gura humana, mas sua intenção era estudar a imensa
harmonia que unifica as partes do cosmo através de
correspondências numéricas e musicais. Daí por que
os dados transmitidos aqui não se aplicam ao adulto,
32. KALKMANN. Op, cito p. 11.
33. F. DIETERICI, Die Proplideutik der Araber, Leípzig, 1865,
p. 135 e ss. Aqui, entretanto, não é o comprimento da face
que é aceito como unidade, mas a "abertura" da mão, que equi-
vale a 4/5 do comprimento da face.
34. Conforme uma espécie de comunicado do Professor
Helmut Ritter, até agora não foram encontradas em fontes árabes
quaisquer formulações concernentes ao proporcionamento do
corpo humano. Entretanto, conselhos e instruções para o pro-
porcionamento de letras chegaram até nós e estes, também, se
baseiam em um sistema modular e não em um principio de
frações ordinárias. .
35. SIMON, M. Geschichte der Mathematik im A!tertum in
Verbindung mit antiker Ku!turgeschichte. Berlim, 1909, pp. 348,
357.

114
mas à criança recém-nascida, um ser que tem apenas
significação secundária para as artes representativas
mas é de importância capital no pensamento astroló-
gico e cosmológico 36. Não é por acidente, porém,
que a prática bizantina de estúdio adotou um sistema
de medidas formulado para um propósito inteiramente
diverso, acabando por esquecer, totalmente, sua ori-
gem. Por mais paradoxal que pareça, um sistema
numérico ou algébrico de medidas, reduzindo as di-
mensões do corpo a um módulo único é - desde que
o módulo não seja muito pequeno - muito mais
compatível com a tendência medieval para a esque-
matização do que o sistema clássico de frações ordi-
nárias.
O sistema "fracionário" facilitava a apreciação
objetiva das proporções humanas, mas não sua repre-
sentação adequada numa obra de arte: um cânone
transmitindo relações mais do que quantidades reais
provia o artista de uma idéia vívida e simultânea do
organismo tridimensional, mas não lhe dava um mé-
todo para a construção sucessiva de sua imagem bidi-
mensional. O sistema algébrico, por outro lado, com-
pensa a perda de elasticidade e animação por ser
imediatamente "construtível". Quando o artista sa-
bia, através da tradição, que a multiplicação de uma
unidade específica poderia lhe proporcionar todas as
dimensões básicas do corpo, conseguia, pelo uso su-
cessivo de tais moduli, armar, por assim dizer, cada
figura dentro do plano pictórico, "sem mudar a aber-
tura do compasso", com grande rapidez e quase inde-
pendentemente da estrutura orgânica do corpo 37. Na
arte bizantina, este método do domínio esquemático,
gráfico, do desenho planar foi preservado até os tem-
pos modernos: Adolphe Didron, o primeiro editor
36. De fato o recém-nascido é o ser no qual o poder das
forças controladoras do universo, em particular a influência
das estrelas é mais direta e exclusivamente efetivo que no
adulto, que 'é determinado por muitas outras condições.
37. Uma vez estabelecido, o cãnone pode ser satisfatoria-
mente aplicado a figuras em pé ou sentadas (Fig. 19). Neste
exemplo, os "comprimentos de face" não são contados até a raiz
dos cabelos, mas até o topo do lenço de cabeça po.s uma apa-
rência gráfica de estilo basicamente 'não-naturalista é mais im-
portante que os dados anatõmicos. Como manda o cãnone, es~e
comprimento de face determina automaticamente o compri-
mento da mão.

115
do Manual do Pintor do Monte Atos, viu os artistas
monásticos do século XIX empregarem ainda um mé-
todo pelo qual marcavam as dimensões individuais
com um compasso, transferindo-as imediatamente de-
pois para a parede.
Conseqüentemente, a teoria bizantina das pro-
porções ocupou-se em determinar até as medidas dos
detalhes da cabeça em termos do sistema de módulo,
tomando o comprimento do nariz (= 1/3 do com-
primento da face) como unidade. O comprimento do
nariz é igual, segundo o Manual do Pintor do Monte
Atos, não apenas à altura da testa e da parte inferior
da cabeça (no que concorda com o código de Vitrú-
vio e com a maioria dos cânones renascentistas), mas
também à altura da parte superior da cabeça, à dis-
tância entre a. ponta do nariz e o canto dos olhos, e
ao comprimento total do pescoço. Essa redução das
dimensões horizontais e verticais da cabeça a uma
unidade única permitiu um procedimento que mani-
festa com particular clareza o pendor medieval para
a esquematízação planimétrica - um procedimento
pelo qual não apenas as dimensões mas também as
formas podiam ser estabelecidas geometrico more.
Pois, já que as dimensões da cabeça,tanto .horizontais
como verticais, podiam ser expressas como múltiplos
de uma unidade constante, o "comprimento do nariz",
tomou-se possível determinar a configuração inteira
por três círculos concêntricos cujo centro comum es-
tava na raiz do nariz. O círculo interior ...:....-
com um
raio igual a um comprimento de nariz - esquematiza
a testa e as duas faces; o segundo - com um raio
igual a dois comprimentos de nariz - dá as medidas
externas da cabeça (inclusive o cabelo) e define o
limite inferior do rosto. O último - com um raio
igual a três comprimentos de nariz - passa através da
metade do pescoço e geralmente também forma o
halo (Ilust. 2) 38. Esse método resulta, automa-
ticamente, nesse característico exagero da largura
e altura do crânio que, nas figuras deste estilo, dá
38. Além disso, as pupilas dos olhos situam-se usualmente
a meio caminho entre a raiz do nariz e a periferia do pri-
meiro círculo, e a boca divide a distância entre os dois pri-
meiros circulos numa razão de· 1:1 ou (no cânone de Monte
Atos) de 1:2.

116
amiúde a impressão de serem vistas de cima. Tal
peculiaridade pode ser efetivamente explicada pelo uso
do que é chamado "esquema bízantino dos três CÍr-
culos" - um esquema que mostra quão pouco a teo-
ria medieval das proporções, preocupada apenas com
a racionalização cômoda das dimensões "técnicas",

11. 2. O "Esquema de Três Círculos" da Arte bízantina e


bizantinesca.

se importou com a inexatidão "objetiva". O cânone


de proporções aparece aqui, não apenas como um sin-
toma de Kunstwollen, mas quase como o portador de
uma força estilística especial 39.
O "esquema de três círculos" - pará cuja ilus-
tração reproduzimos uma página do mesmo manus-
crito do qual tomamos emprestada a Madona que
aparece na Fig. 199, e que contém, comparativamente,
muitas cabeças construídas (Fig. 20) - foi extrema-
mente popular na arte bizantina e bizantinesca: na
Alemanha 40 assim como na Áustria (Fig. 21) 41, na
39. Na pintura bizantina, mesmo este costume de deter-
minar o contorno da cabeça por meio de um compasso per-
sistiu até os tempos modernos; ver DIDRON, op. cit., p. 83,
nota.
40. Numerosos exemplos, e.g., em P. CLEMEN, Die roma-
nische Wandmalerei in den Rheinlanden, Düsseldorf, 1916,
passim.
41. Ver, e.g., P. BUBERL, Die romanischen Wandmalereien
im Kloster Nonnberg, Kunstgeschichtriches Jahrbuch der K.

117
20.. Cabeça de Cristo, f<? 59.
França 42, assim como na Itália 43, na pintura monu-
mental 44, assim como nas artes menores 45, mas so-
bretudo em incontáveis iluminuras de manuscritos 46.
E mesmo onde - sobretudo em obras de formato
menor - não existe uma construção exata com com-
passo e régua, o próprio caráter das formas indica,
freqüentemente, sua derivação do esquema tradicio-
na147•
Na arte bizantina e bizantinesca, a tendência para
a esquematização planimétrica chegou a ponto de até
as cabeças voltadas a três quartos de perfil serem cons-
truídas de maneira análoga 48. Exatamente como no
caso da face frontal, a face "perspectivada" era cons-
truída por meio de um esquema planar a operar com
módulos e círculos iguais; e este esquema era levado
a produzir a impressão de uma perspectiva efetiva,
embora "incorreta", pela exploração do fato de que,
num "quadro", as distâncias graficamente iguais podem
"significar" as objetivamente desiguais.
K. ZentraL-Kommission ... , 111, 1909, p. 25 e ss., Figs. 61 e 63.
Para melhores ilustrações, ver também H. TIETZE,Die DenkmaLe
des Stiftes Nonnberg in SaLzburg (Oesterreichische Kunsttopo-
graphie, VII), Viena, 1911. Que eu saiba, Buberl foi o, pri-
meiro a observar a existência de um sistema de construção
nos tempos pré-góticos. [Ver o artigo de K. M. Swoboda cita-
do p. 11.]
42. Ver, e.g .. ALbum de Vitlard de Honnecourt, edição au-
torizada da Bíbltotbêque Nationale, pr. XXXII (fortemente bí-
zantinesco até no estilo).
43. Ver, e.g., as cabeças de Pietro Cavallini em Sta. Cecí-
lia em Trastevere bem reproduzidas em F. HERMANN, Le Ga-
Lerie nazionaLi d'ItaHa, Roma, 1902, V, particularmente pr. 11.
44. Inclusive vitrais; ver, e.g., as janelas dos Apóstolos no
coro oeste da Catedral de Naumburg.
45. Ver, e.e., o esmalte reproduzido em O. WULFF,ALt-
,,'~ristliche und byzantinische Kunst, Berlim-Neubabelsberg,
1)14, lI, p. 002, assim como numerosos marfins.
46. Ver especialmente A. HASELOFF,Eine thüringisch-
sichsische Malerschu!e des 13. Jahrhunderis, Estrasburgo, 1897,
particularmente F'igs. 18, 44, 66, 93 e 94.
47. Este esquema (que também ocorre numa forma abrevia-
da com apenas os contornos da cabeça mas não o esboço da
face determinados por meio de um compasso) foi ocasional-
mente modificado de modo a evitar o alteamento "desnatu-
r al" do crânio: a razão dos raios dos três círculos não era
ccnsiderada como sendo 1:2:3, mas 1:1 1/2:2 1/2. Então a altu-
ra do crânio é reduzida a uma unidade e a boca não cai na
i+e« entre o primeiro e o segundo círculo, mas fica neste
úitírno, É o caso das pinturas murais da Igreja do Convento
de Nonnberg em Salzburgo (cf. nota 41 e Fig. 21) e de muitos
outros exemplos, e.g., - aqui particularmente claro devido à
deterioração das pinturas - nos retratos dos Apóstolos do final
do românico que se acham no coro oeste (São Pedra) na Ca-
tedral de Bamberg.
48 Ocorre, e.g., na cabeça da RuceUai Madonna em Santa
Maria Novella, mas não na Madona da Academia de Giotto.

119
Representando, por assim dizer, um suplemento
do "sistema de três círculos" empregado para a face
frontal, essa construção a três quartos de perfil só era
aplicável caso a cabeça, embora virada, não pendesse
para fora, mas se inclinasse apenas para a direita ou
esquerda (Figs. 22 e 23) \49. Assim, como as dimen-
sões verticais permaneciam inalteradas, a tarefa se
limitava a uma perspectivação esquemática das dimen-
sões horizontais e isso podia ser feito sob duas con-
dições: primeiro, a unidade costumeira (um compri-
mento de nariz) deveria continuar válida; e, segundo,
seria preciso que ainda fosse possível, a despeito das
mudanças de quantidade, determinar o contorno da
cabeça por um círculo de raio igual a duas unidades
e o halo (se necessário) por um círculo concêntrico
de raio igual a três unidades. Devido à inclinação
lateral, o centro deste círculo ou círculos não podia
mais, é claro, coincidir coma raiz do nariz mas tinha
que estar dentro dessa metade da face que se volta
para nós; e para que coincidisse com um ponto ca-
raoterístico da fisionomia, tendia a ser transferido ou
para o canto exterior do olho ou sobrancelha, ou para
a pupila. Esse ponto, que chamaremos de A, é, pre-
sumivelmente, o centro de um círculo cujo raio é igual
a duas unidades ou comprimentos de nariz; tal círculo
define a curva do crânio e determina (em C) a lar-
gura do lado oculto do rosto o efeito de "pers-
1j();

pectivação" resulta do fato de a distância AC (que é


de 2 unidades) , que na vista estritamente frontal.
"significava" apenas metade da largura da cabeça,
"significar" mais que isso na vista a três quartos, ou
seja, tanto mais quanto o ponto A for deslocado do
meio da face. Uma ulterior subdivisão das dimensões
horizontais pode, então, ser conseguida através da ge-
nuína esquematização medieval, i.é., seccionando, sim-
plesmente, em dois ou quatro a distância A C (donde se
conclui que a significação objetiva dos pontos I, D, e
49. As cabeças das Madonas aparecem, quase sempre,
inclinadas para a direita (do espectador).
50. Pode-se mostrar que este esquema foi usado de maneira
bastante rudimentar na cabeça românica de Santa Maria do Capi-
tólio, em Colônia (CLEMEN, op. cit., pr. XVII): o circulo defi-
nindo a cabeça é claramente visível, mas o artista não o seguiu
fielmente durante a execução do trabalho.

121
K, difere conforme o centro do círculo se localize
no canto do olho ou na pupila) 51.

Como já notamos, as dimensões verticais perma-


necem inalteradas, o nariz, a parte inferior do rosto
e o pescoço, equivalem, cada um, a uma unidade.
Mas a testa e a parte superior da cabeça devem con-
tentar-se com uma dimensão menor, pois a raiz do
nariz (B), a partir da qual as dimensões verticais são
determinadas, não se encontra mais no mesmo' nível
(como na figura frontal) do centro do círculo que
descreve o contorno do crânio; já que este coincide
com a pupila ou o canto do olho deve, necessaria-
mente, estar mais acima. Por conseguinte, se AE é
igual a duas unidades (ou comprimento de nariz),
BL deve ser um pouco menos que duas unidades.

o cânone bizantino, apesar de toda a sua ten-


dência para a esquematização, baseava-se, ao menos
até certo ponto, na estrutura orgânica do corpo; e a
tendência para a determinação geométrica das formas
ainda era contrabalançada por um interesse nas di-
mensões. O sistema gótico - distanciado ainda mais
um passo do da Antiguidade - servia quase que ex-
clusivamente para determinar o contorno e as dire-
ções do movimento. O que o arquiteto francês, Vil-
lard de Honnecourt, quer transmitir a seus conirêres
como a art de portraicture é um méthode expéditive
du dessin, que tem muito pouco a ver com as medidas
das proporções e, por princípio, ignora a estrutura
natural do organismo. Aqui a figura não é mais "me-
dida" de modo algum, nem mesmo segundo os com-
primentos da cabeça ou face; o esquema quase renun-
ciou, por assim dizer, completamente ao objeto. O
sistema de linhas - às vezes concebido de um ponto
de vista puramente ornamental e por vezes compará-
vel às formas do rendilhado de pedra gótico - é so-
breposto à forma humana como uma moldura de ara-
51. No primeiro caso, D (o ponto médio de AC) designa
o canto interior do olho esquerdo, no último, sua pupila; I
(o ponto médio AD) designa, no primeiro caso, a pupila do
olho direito, no último, seu canto interior. Assim, em ambos
os casos, uma "perspectivação" é sugerida pelo fato de quanti-
dades tecnicamente iguais "significarem" um valor maior no
lado oculto do que na face voltada para nós.

122
me independente. As linhas retas são mais "linhas
condutoras" do que mensuradoras; nem sempre coexten-
sivas com as dimensões naturais do corpo, determi-
nam a aparência da figura apenas enquanto suas po-
sições indicam a direção na qual as pernas suposta-
mente se movem e enquanto os pontos de intersecção
coincidem com locais independentes e característicos
da figura. Assim, a figura masculina de pé (Il
.3) resulta de uma construção que não tem, abso-
lutamente, nenhuma ligação com a estrutura or-
gânica do corpo: a figura (~enos cabeça e braços)
é inscrita num pentagrama verticalmente alongado cujo
vértice superior é cortado e cujo lado horizontal A!1
corresponde a mais ou menos um terço dos lados mais
longos AH e BG 1>2. Os pontos A e B coincidem
com as juntas dos ombros; G e H com os tornozelos;
J, o ponto médio da linha AB determina a localização
do centro do pescoço; e os pontos que dividem os
lados maiores em terços (C,D,E e F) determinam, res-
pectivamente, a localização do quadril e dos joelhos 53.
Mesmo as cabeças (humanas como animais) são
construídas não apenas a partir de formas "naturais"
como os círculos, mas' também do triângulo e do já
mencionado pentagrama que, po~ si mes~o,.é total-
mente alheio à natureza 54. As figuras arumais - se
se tenta alguma forma de articulação - são construí-
52. Assim uma falsa impressão é criada qu.~n?o, com res-
peito a essas figuras de Villard, B. HAENDCKE, .nur~~s Selbst-
bildnisse und konstruierte Figuren", Mcmatshef.e fur ~unst:
wisSenschaft, V, 1912, p. 185 e ss. (p. 188). fala de "uma cons
trução proporcional da figura toda de OItO faces .
53. O significado mágico do pentagrama ~ão desempenha,
por certo, um papel mais importante ~a. portrmcture. de Vllla~d
do que o significado místico e cosrnológtco das m~dldas nume-
ricas desempenha no cânone bizantino das proporçoes humanas.
54. "Desenhos auxiliares" análogos sobreviven:, diga-se de
passagem, na prática ?e estúdio .até os nossos dias: ver, e.g.,
J MEDER Die Handzetchnung Vlena, 1919, p, 254, onde este
hãbito é' corretamente caract~rizado como "mediev~l". Pode-
-se cbservá-Io mesmo em Michelangelo; cf. o de~enho de K. FREY,
Die Handzeichnungen Michelagniolos Buon(trrot~, Berhm, 1!J?9-ll.
n. 290. Um vestígio mais completo da portratcture de V~llard
de Honnecourt pode ser observado num. manuscrito frances ~e
meados do século XVI (agora em Washmgton, De, CongresslO-
nal Library, Departamento de Artes. ms. 1) o~de todos os
tipos de seres humanos e animais são esquemabzados de 'um
modo totalmente villardesco - exceto que, corresp.ondendo à
época. o método planimétrico do séc,ulo XIII é, ?CaSlOnalmente,
combinado ·com a visão estereométnca dos teôrrcos da Renas-
cenca [Ver. agora, PANOFSKY, Codex Huygens (citado p. 11),
p. ns. Figs. 97-99l.

123
das de um' modo totalmente inorgânico, a partir de
triângulos, quadrados e arcos circulares (Ilust, 5) 55.
E mesmo quando parece prevalecer um mero in-
teresse pelas proporções (como' quando a cabeça
de grande porte, reproduzida na Fig. 24, é colocada

n. 3. Construção da Figura Frontal, baseada em ViIlard de


Honnecourt. Paris, Bibliothêque Nationale, ms. fr. 19093, f9 19:

dentro de um grande quadrado subdividido em 16 qua-


drados iguais, sendo que o lado de cada um corres-
ponde a uma unidade - comprimento de nariz -
como no cânone do Monte Atos) 56, um losango, feito
55. Mesmo figuras humanas, quando representadas em po-
sição sentada ou em outras posições diferentes, são por vezes
obtidas por uma combinação de triângulos etc.; ver, e.g.,
VILLARD, pr. XLII.
56. Particularmente marcante é o aIteamento do crânio que,
como no cânone de Monte Atos, equivale a um comprimento
de nariz. O fato de vinte e seis tipos de Dürer também apre-
sentarem o crân:o alterado para um comprimento de nariz
não deve ser interpretado (com V. MORTET, "La mesure de Ia
figure humaine et le canon des proportions dapres les dessins
de Villard de Honnecourt, d'Albert Dürer et de Leonard de
Vlnci", em Mélanges oiierts d M. Emite Chatelain, Paris, 1910,
p. 367 e .ss.) como prova de uma conexão efetiva.

124
24. Villard de Honnecourt,
blíothêque Nationale, ms, ir.

25. Cabeça de Cristo (vitral). Reims, Catedral, ca. 1235.


de diagonais e inscrito em um largo quadrado (como
nas projeções planas típicas dos remates arquitetônicos
góticos) introduz, imediatamente, um princípio plani-
métrico esquematizador que determina mais a forma
que as proporções. Essa mesma cabeça, diga-se de
passagem, nos faz compreender que todas essas coisas
não são, como poderíamos estar tentados a crer, pura
fantasia (por mais que possam aparentemente tocar
as raias disso na maioria das vezes): uma cabeça de
um vitral contemporâneo, de Reims (Fig. 25), corres-
ponde, exatamente, à construção de Villard, não apenas
no que diz respeito às dimensões 57, mas também porque
as feições do rosto são claramente determinadas por
um losango.
Villard de Honnecourt, como os outros artistas
bizantinos e bizantiiiescos, fez uma tentativa interes-
sante de aplicar o esquema inventado para_ a_ constru-
ção da vista frontal à vista de três quartos; mas, ten-
tou construir figuras inteiras, mais do que cabeças e
dispôs-se a fazê-Ia de um modo ainda 'menos diferen-
ciado e mais arbitrário (11. 4). Utilizou o sis-
tema de pentagrama descrito acima, sem nenhuma
alteração, só que transferiu a junta do ombro, que
antes coincidia com o ponto B, para o ponto X, que
correspondia, aproximadamente, à metade da distân-
cia JB. Do mesmo modo que na construção bizan-
tina do perfil a três quartos, a impressão de "pers-
pectivação" é obtida de tal maneira que o mesmo
comprimento passa a "significar", do lado oculto a
nós, tanto quanto a metade da largura total do tronco,
ou seja, a distância do centro do pescoço à ponta ou
junta do ombro (IX), enquanto que, do lado voltado
para nós, representa apenas um quarto da largura
total. Essa construção curiosa talvez seja o exemplo
mais significativo de uma teoria das proporções que
- pour légiêrement ouvrier - tratava exclusivamente
da esquematização das dimensões "técnicas", ao passo
que a teoria clássica, procedendo com base em
princípios totalmente opostos, se restringia a uma de-
terminação antropométrica das dimensões "objetivas".

57, o único desvio consiste num alargamento relativo dos


alóbulos oculares,

126
11. 4. Construção da Figura em Perfil a Três Quartos, baseada
em ViIlard de Honnecourt. Paris, Biblíothêque Nationale, ms.
fr. 19093, f9 19.

IV
A importância prática dos processos que acaba-
mos de explicar era, naturalmente, maior onde o ar-
tista se achava mais firmemente preso à tradição e
ao estilo geral de sua época: na arte bizantina e na ro-
mânica 58. No período seguinte, seu uso parece dimi-
nuir e o gótico em sua última fase, nos séculos XIV
e XV, baseando-se na observação subjetiva e no sen-
timento igualmente subjetivo, parece ter recusado qual-
quer ajuda construcional ".
58. Mesmo aqui, não se deve superestimar essa importân-
cia prática. Figuras construídas de maneira precisa são, em
geral, menos comuns que as desenhadas a mão livre, e mesmo
onde os artistas tomaram o cuidado de traçar linhas con-.
dutoras, amiúde se apartam delas durante a execução (cf.
e,g., Fig. 20, ou a figura da Santa Maria do Capitólio, men-
cionada na nota 50).
59. A indicação bastante freqüente de uma vertical central
que, por assim dizer, sustenta a figura não pode ser vista
como Um auxílio para a construção nem como um' expediente
para se determinar as proporções.

127
A Renascença italiana, entretanto, olhava para a
teoria das proporções com ilimitada reverência; mas
considerava esta teoria, diferentemente da Idade Mé-
dia, não mais como um expediente técnico, mas como
um postuladometafísico.

11. 5. Villard de Honnecourt. Cabeças, Mão e Galgo cons-


truídos. Paris, Bíbliothêque Nationale, ms. fr. 19093, f9 18v.

Na verdade, a Idade Média tinha inteiro conhe-


cimento da interpretação metafísica da estrutura do
corpo humano. Vimos um exemplo desse modo de
pensar nas teorias dos "Irmãos da Pureza", e especula-
ções cosmológicas, centradas nas correspondências por
Deus ordenadas entre o homem e o universo (e, por-
tanto, o edifício eclesiástico) , exerceram um papel
imenso na filosofia do século XII. Nos escritos de
Sto. Hildegardo de Bingen foi assinalada uma longa

128
exposiçao onde as proporções do ser humano são as-
sim explicadas pelo plano harmonioso da criação di-
vina 60. Entretanto, na medida em que a teoria me-
dieval das proporções seguiu a linha da cosmologia
harmonística, não teve relação com a arte; na medida
em que permaneceu relacionada com a arte, degene-
rara num código de regras práticas 61 que perdera toda
conexão com a cosmologia harmonística 62.
Foi somente na Renascença italiana que as duas
correntes se fundiram de novo. Numa época em que
a escultura e a pintura começavam a conseguir a po-
sição de artes liberales e em que os artistas pratican-
tes tentavam assimilar a cultura científica global de sua
era (enquanto que, inversamente, eruditos e literatos
procuravam compreender a obra de arte como mani-
festação de leis mais altas e universais), era bastante
natural que mesmo a teoria prática das proporções
fosse reinvestida de significado metafísico. A teoria
das proporções humanas era vista tanto como um re-
quisito da criação artística quanto como uma expres-
são da harmonia preestabelecida entre o microcosmo
e o macrocosmo; além do mais, era vista como a base
racional para a beleza. Podemos dizer que a Renas-
cença fundia a interpretação cosmológica da teoria
das proporções, corrente nos tempos helenísticos e na
Idade Média, com a noção clássica da "simetria" co-
mo princípio fundamental da perfeição estética 63. Do
60. PATERILDEFoNsHERWEGEN, "Ein mittelalterlicher Kanon
des menschlichen Kõrpers", Repertorium jür Kunstwissenschaft,
XXXII, 1909, p. 445 e ss. Ci.. também. a "Chronicle of 8t.-
Trond" (G. WEISEem Zeitectvrijt: !ür Geschichte der Architektur,
IV, 1910-11.p. 126). Não há quase dúvidas de que uma inves-
tigação mais profunda traria à luz muito mais coisas da mesma
ordem no Ocidente.
61. Ci.. uma vez mais. a frase de Villard "maniere pour
légíêrement ouvrier". É característico da teoria medieval das
proporções que o Manual do Pintor do Monte Atos forneça
informações específicas sobre o quanto a largura da figura ves-
tida deve exceder a de uma despida (1/2 de uma unidade
"deve ser acrescentada" para as roupagens).
62. Em bases históricas. é plausível que tenha havido tal
conexão (ci. acima p. 114 e s.). Mesmo a mudança de um tipo de
dez faces em favor de um tipo de nove faces pode ter sido basea-
da em misticismo numérico ou' em linhas cosmológicas de pensa-
mento (teoria das esferas?). [Ver F. 8AXL.citado p. 11.1
63. J'ulius von 8chlosser demonstrou que um dos primei-
ros campeões pós-clássicos dessa doutrina. Ghiberti. a derivou
- possivelmente através de um intermediário ocidental. a cujo
respeito ver abaixo - de uma fonte árabe. a Optica de Alhazen.
Entretanto. ainda mais interessante é o fato de Ghiberti. embora
abeberando-se em Alhazen, ter promovido a idéia da propor-

129
mesmo modo que se procurou uma síntese entre o es-
pírito místico e o racional, entre o neoplatonismo e
o aristotelismo, assim também a teoria das proporções
foi interpretada, quer do ponto de vista da cosmologia
harmonística, quer da estética normativa; parecia trans-
por a brecha existente entre a fantasia do final do
helenismo e a ordem clássica de Policleto. Talvez a
teoria das proporções parecesse tão infinitamente valiosa
para o pensamento da Renascença precisamente porque
apenas essa teoria - matemática e especulativa ao
mesmo tempo, - poderia satisfazer as diversas necessi-
dades espirituais da época.
Assim dupla e triplamente santificada (devemos
considerar, como valor adicional, o interesse histórico
que os "herdeiros da Antiguidade" eram obrigados a
alimentar pelas alusões esparsas dos autores clássicos
pela única razão de esses autores serem clássicos) 64 a
cionalidade a um status completamente diferente. Alhazen não
encara a proporção como "o" princípio fundamental da beleza;
ao contrário, menciona-o en passant. Em seu admirável excurso
sobre o que chamaríamos de estética, enumera nada menos
que vinte e um princípios ou critérios de beleza porque, se-
gundo ele, não há categoria de percepção óptica (como luz, cor',
tamanho, continuidade etc.) que não possa operar como cri-
tério estético sob certas condições; e no contexto dessa longa
lista aparece, inorganicamente ligado às outras "categorias", o
"relacionamento das partes". Ghiberti, então, ignorou todas as
outras categorias e - com um instinto admirável para tudo
o que é clássico - reteve apenas a passagem em que aparece
a palavra "proporcionalidade".
A estética de Alhazen é admirável, não apenas pela divi-
são do belo em tantos critérios quantas são as categorias da
experiência visual, mas, sobretudo, por seu penetrante rela-
tívísmo, A distância pode conduzir à beleza pois abranda as
imperfeições e irregularidades; mas o mesmo vale para a pro-
ximidade, pois esta ressalta os refinamentos do desenho etc.
(cf., como contraste, o absolutismo dos estóicos [AÉCIO,Stoico-
rum veterum Fragmenta, J. ab Armin, ed., Leipzig, II, 1903,
p. 299 e ss.]. "a" mais bela cor é o azul-profundo, "a" mais
bela forma é o círculo, etc.) No conjunto, a passagem per-
tinente da Optica (que foi tomada, palavra por palavra, e não
seletivamente, por um escritor medieval como Vitélio) merece
a atenção dos orientalistas quando mais não seja pela aborda-
gem tão puramente estética da beleza ser estranha a outros
pensadores árabes; ver, por exemplo, IBN CHALDÜN (Khaldoun)
Prolegomena (trad. franco em Notices et Extraits de Ia Biblio-
thêque Impériale, Paris, 1862-65, XIX-XX), v. lI, p. 413: " ... e
isso (ou seja, a proporção correta, aqui usada num sentido
moral além de estético) é o que se quer significar pelo termo
belo e bom".
64. Vitrúvio, tão zelosamente explorado e interpretado
pelos autores da Renascença, não era desconhecido pela Idade
Média (cf. SCHLOSSER, op. cit., p. 33 e agora H. Koch, citado
p. 11); mas, justamente as especificações das proporções foram.
em geral, negligenciadas pelos escritores medievais. Via de
regra, transmitem, além da divisão da face em dois terços, ape-

130
teoria das proporções alcançou um prestígio inaudito
na Renascença. As proporções do corpo humano
eram louvadas como uma realização visual da harmo-
nia musical ~5; foram reduzidas a princípios aritméti-
cos e geométricos gerais (sobretudo a "secção de
ouro" à qual este período de culto platônico atribuía
uma importância bastante extravagante 66; foram vin-
culadas aos diversos deuses clássicos, de modo que
pareciam estar investidas de uma significação arqueo-
lógica e histórica, bem como mitológica e astrológi-
ca 67. E novas tentativas foram feitas - em conexão
com uma observação de Vitrúvio - de identificar as
proporções humanas com as das construções e partes
nas a declaração familiar acerca da possibilidade de se inscre-
ver a figura humana num quadrado e num círculo (uma afir-
mação que se prestava a interpretações cosmológicas) e não
se fez nenhuma tentativa de provar as informações de Vitrúvio
por via empírica ou de corrigir a adulteração óbvia de seu
texto (ver notas 16 e 83); Ghiberti propõe que se descreva um
círculo em torno da figura, não do umbigo, mas do ponto em
que as pernas se destacam do corpo; CESARE CESARIANO, M. Vi-
truvio Pollione, De Archittetura Libri Decem, Como, 1521, f.o
XLIX e I, utilizou a divisão vítruvíana da face em três partes
iguais, cada uma delas correspondendo a 1/30 do comprimento
total, construindo uma "grade calibrada" que compreende a
figura inteira etc.
65. Cf., e.g., POMPÔNIO GAURICO,De sculptura (H. Brockhaus,
ed., Viena, 1886, p. 130 e ss.). Sobre este aspecto, há uma obra
que vai ainda além, publica da em Veneza em 1525, Francisco
Giorgii . Veneti de harmonia mundi totius cantica tria. Que o
escritor (o mesmo Francesco Giorgi que fornece o conhecido
relato sobre S. Francesco della Vigna em Veneza) infira da
possibilidade de se inscrever a figura humana dentro de um
círculo - cujo centro é, como o faz Ghiberti, transferido para
a articulação da coxa - uma correspondência entre micro-
cosmo e macrocosmo não é inusual. Mas. ele também faz uma
ligação entre as relações de altura. largura e profundidade do
corpo humano com as dimensões da Arca de Noé (300:50:301
e. muito seriamente, iguala proporções particulares com os in-
tervalos musicais da Antiguidade, por exemplo:
Comprimento total: comprimento menos a cabeça = 9:8 (tonus:
Comprimento do tronco: comprimento das pernas = 4:3 (diates-
saron)
Peito (do centro do pescoço até o umbigo): abdômen = 2:1
(dia.pason) etc.
O autor deve seu conhecimento ao livro de Francesco Gio-
gí que, embora quase nunca citado na literatura de história
da arte, não é desimportante devido à sua possível conexão
com a teoria das proporções de Dürer (cf., adiante, p. 140,
nota 92) ao que era antigamente a Biblioteca Warburg de
Hamburgo e é hoje o Warburg Institute of London University.
66. Cf. e.g. LUCAPACIOLI,La divina proportione, C. Win-
terberg, ed. (Quellenschriften [iir Kunstgeschichte, nova série,
lI) Viena, 1889, p. 130 e 55. Também: MARIOEQUICOLA, Libro
di natura d'amore, aqui citado na edição veneziana, 1531, f.o 78.
67. LOMAZZO, Giovanni Paolo. Trattato de!l'arte della
pittura. Milão, 1584 (reímpresso em Roma, 1844) Livro IV, Cap.
3; Livro I, Capo 31.

131
das construções, para demonstrar a "simetria" arqui-
tetônica do corpo humano e a vitalidade antropomé-
trica da arquitetura 68.
Esta alta consideração pela teoria das propor-
ções nem sempre vinha, entretanto, acompanhada de
presteza em aperfeiçoar os métodos dessa teoria.
Quanto mais entusiastas eram os autores renascentis-
tas a respeito da significação metafísica das propor-
ções humanas, tanto menos propensos pareciam, via-
de regra, ao estudo empírico e à verificação. Na ver-
dade, o que produziam era, em geral, pouco mais que
uma recapitulação do sistema de nove unidades já
conhecido por Cennini. Apenas ocasionalmente. ten-
tavam especificar as medidas da cabeça por um novo
método 69 ou, para acompanhar as conquistas da ter-
ceira dimensão, procuravam suplementar as formula-
ções sobre o comprimento e largura com outras sobre
profundidade 70. Sente-se a aurora de uma nova era
principalmente no fato de que os teóricos começaram
a verificar as informações vitruvianas medindo as es-
tátuas clássicas - donde constataram, a princípio, que
elas se confirmavam em todos os aspectos 71, porém
chegaram mais tarde, por vezes, a resultados diver-
gentes 72, e de que alguns deles, com referência à mi-
tologia clássica, insistiam amiúde numa certa diferen-
ciação do cânone ideal.
A coexistência das tradições vitruvianas e pseudo-
varrônicas implicava, per se, dois tipos diferentes, um
compreendendo nove comprimentos de face, o outro
dez; e quando esses tipos foram suplementados por
68. Assim, e.g., FILARETE, op. cit.; também, L. P. ALBERTI,
De re aedificatoria, VII, Capo 13; depois dele, GIA.l'1NOZZOMANETTI.
(ed. Muratori, SS. rer. Ita!. IH, Parte lI, p. 937); LOMAZZO,
op. cít., Livro I, Capo 30 etc, Tais correspondências são par-
ticularmente dignas de nota quando há uma tentativa de ilus-
trá-Ias pictoricamente como sucede, por exemplo, no "Codex
Angelo da Cortina", agora na Stadtbibliothek de Budapeste, ou
por Francesco di Giorgio Martini (tratado citado acima, nota
30), volume de ilustrações, pr. I.
69. Ver GHIBERTI, loco cit., que, incidentalmente, repete o
cânone vitruviano além do seu próprio; ver também LUCA
PACIOLI,loco cito
70. Isso se aplica a Pompônio Gaurico que - certamente
sob a influência de Leonardo da Vinci, perceptível também sob
outros aspectos - dá, comparativamente falando, mais infor-
mações detalhadas que os demais autores.
71. PACIOLI,Luca. Op. cito pp. 135-36.
72. CESARIANO, Cesare. Op. cito f.o XLVIII.

132
um outro ainda menor, os teóricos chegaram a uma
tríade que podia ser relacionada, conforme a vontade,
com deuses específicos 73, com os três estilos da arqui-
tetura clássica 7\ ou com as categorias de nobreza,
beleza e graça 75. É significativo, porém, que nossa
esperança de ver esses tipos elaborados em pormenor
seja quase sempre baldada. Sempre que se trata de
medidas exatas, individuais, os autores ou silenciam,
ou, embora reconhecendo a pluralidade de tipos, es-
colhem um que, à segunda vista, resulta ser igual a
um dos antigos esteios - os cânones de Vitrúvio e
Cennini 76. E se o Primeiro Livro do Trattado delta
Pittura de Lomazzo se sobressai, tanto pela grande
variedade de tipos, como pela especificação exata de
suas medidas, deve esta distinção ao simples fato de
que Lomazzo, escrevendo em 1584, teve predecesso-
res aos quais pôde explorar de uma forma atrevida:
o homem de nove cabeças de comprimento (Cap. 9)
é igual ao "Tipo D" de Dürer; o de oito cabeças de
comprimento (Cap. 10) ao "Tipo B" de Dürer; o de
sete cabeças de comprimento (Cap. 11) ao "Tipo A"
de Dürer; o homem muito magro (Cap. 8) com o
"Tipo E" de Dürer etc.
No que diz respeito a conhecimento sólido e
processo metodológico, apenas dois artistas-teóricos
da Renascença italiana deram passos decisivos para
desenvolver a teoria das proporções além dos padrões
medievais: Leone Battista Alberti, o profeta do "no-
vo, grande estilo" na arte, e Leonardo da Vinci, seu
inaugurador 77.
73. Ver LOMAZZO,op. cit., IV, 3. Sua identificação dos deu-
ses pagãos com personagens cristãs foi antecipada por Dürer.
74. FILARETE,loco cit.; cf. também Francesco Giorgi, op.
cit., I, p. 229 e ss., onde um tipo de nove cabeças é distingui-
do de outro de sete cabeças.
75. Assim, FEDERIGO ZUCCARI(cf, SCHLOSSER,
Die Kunst!ite-
ratur, Viena, 1924, p. 345 e s.).
76. Idêntico ao último é, e.g., o homem "dórico" de Fi-
larete que. curiosamente, é mais esguio que o "jôrrico" e o
"coríntío" .
77. Temos esperanças de que os estudos das proporções
feitos por Bramante, cuja existência é atestada por diferentes
fontes literárias, sejam descobertos no futuro.

133
Ambos concordam na determinação de elevar a
teoria das proporções ao nível de uma ciência empí-
.rica. Insatisfeito com os dados inadequados de Vi-
trúvio e de seus próprios precursores italianos, descon-
sideraram a tradição em favor de uma experiência
apoiada na observação acurada da natureza. Italia-
?os como eram, não tentaram substituir o tipo único,
Ideal, por uma pluralidade de tipos "característicos".
Porém, deixaram de determinar este. tipo ideal com
base numa metafísica harmonística ou aceitando os
dados de autoridades santificadas: aventuraram-se a
arrostar a própria natureza e abordaram o corpo hu-
mano vivo com compasso e régua, sendo que de uma
enormidade de modelos selecionaram aqueles que, a seu
próprio juízo e na opinião de conselheiros competentes,
foram considerados os mais belos 78. A intenção deles
era descobrir o ideal numa tentativa de definir o nor-
mal e em vez de determinar as dimensões apenas
grosseiramente e somente enquanto fossem visíveis no
plano, procuraram aproximar-se do ideal através de
uma antropometria puramente científica, apurando-as
com grande exatidão e muito cuidado quanto à estru-
tura natural do corpo, não somente em altura mas
também em largura e profundidade. '
Alberti e Leonardo suplementaram, pois, a prá-
tica artística que havia se libertado das restrições me-
dievais com uma teoria das proporções que fazia mais
que prover o artista com um esquema planimétrico
do projeto - uma teoria que, baseada em observa-
ções empíricas, era capaz de definir a figura humana
normal em sua articulação orgânica e em tridimensio-
nalidade total. Esses dois grandes "modernos" diver-
giam, entretanto, num ponto importante: Alberti ten-
tou atingir a meta comum aperfeiçoando o método;
Leonardo, expandindo e elaborando o material. Com
a largueza de vistas que caracteriza sua aproximação,
mesmo do antique 79, Alberti se libertou, no que diz
respeito ao método, de toda a tradição. Imaginou-
78. ALBERTI, op, cít., p. 201. LEONARDO (Leonardo da Vinci,
d~s Buch 'von der MaLerei, H. Ludwig, ed. [Que!Lenschriften
fur Kunstgeschichte, XV-XVII] Viena, 1881, artigos 109 e 137)
chegt;t a admitir a validade da opinião pública geral (cf. PLATÃO,
PoUttco, 602b).
79. Ver, também, e.g., DAGOBERT FREY, Bramantestudien.
I, Viena, 1915, p. 84.

134
ligando apenas vagamente seu processo à afirmação
de Vitrúvio de que o pé é igual a um sexto do com-
primento total do corpo - um novo e engenhoso sis-
tema de medidas que chamou "Exempeda" *: dividiu o
comprimento total em seis pedes (pés), sessenta un-
ceolae (polegadas), e seiscentas minuta (minutas, uni-
dades menores) 80 - disso resultando que podia obter
e tabular fácil apesar de acuradamente as medidas
tomadas do modelo vivo (lI. 6) ; as quantidades podiam
até ser somadas e subtraídas como frações decimais -
que, na verdade, são. As vantagens desse novo sistema
são óbvias. As unidades tradicionais - teste ou visi
- eram grandes demais para a mensuração detalhada 81.
Expressar as medidas em frações ordinárias do com-
primento total era extremamente trabalhoso, porque é
impossível determinar quantas vezes um comprimento
desconhecido está contido em outro comprimento co-
nhecido sem longas e demoradas experiências (era
mister a unica et [inita diligentia de um Dürer para
operar dessa maneira sem perder a paciência). E
aplicar padrões comerciais de medidas (tais como, por
exemplo, o "cúbito florentino" e a "canna romana")
e suas subdivisões seria infrutífero quando o propósito
da empresa era apurar as dimensões relativas, se não
absolutas, do objeto; o artista podia apenas beneficiar-se
com o uso de um cânone que lhe permitisse representar
a figura em qualquer escala desejada.
Os resultados alcançados pelo próprio Alberti
são, precisamos admitir, um tanto fracos; consistem
numa única tábua de medidas que Alberti, todavia,
pretende ter verificado investigando um número con-
siderável de pessoas diferentes 82. Leonardo, em lugar
de refinar o método de mensuração, concentrou-se em

• ou "Hexempeda". (N. da T.)


80. ALBERTI,op, cít., p. 178 e ss. Acredita-se que o termo
"Exempeda" derive do verbo grego EEtiJ.7r'~ó", ("observar estri-
tamente"); segundo outros, signif'caria, num grego bastante
questionável, a idéia de "um sistema de seis pés".
81. Por outro lado, o sistema. de Alberti era, sob muitos
aspectos, por demais intricado parà .o uso corrente. Na prática,
a maioria dos artistas recorria à unidade de uma testa dividi-
da em metades ou em terços; cf. o· conhecido desenho de Mi-
chelangelo, Thode 532 (iot. Braun 116). Segundo suas próprias
palavras, os interesses de Michelangelo eram, de fato, menos
dirigidos para a compilação de medidas numéricas que para a
observação dos atti e gesti.
82. ALBERTI,op, cit., p. 198 e ss.

135
alargar o campo de observação. Quando tratava das
proporções humanas - em oposição às eqüinas -
fazia uso, a exemplo de Vitrúvio e em agudo contraste
com todos os outros teóricos italianos 83, do método
das frações ordinárias, sem, entretanto, rejeitar total-
mente a divisão "ítalo-bizantina" do corpo em nove
ou dez comprimentos de face 84. Podia satisfazer-se
com esses métodos relativamente simples porque in-
terpretava a prodigiosa quantidade de material visual
que coletou (sem, infelizmente, jamais sintetizá-Io) de
um ponto de vista totalmente original. Identificando
o belo com o natural, procurou determinar, não tan-
to a excelência estética como a uniformidade orgânica
da forma humana; e para ele, cujo pensamento cien-
tífico era largamente dominado pela analogia 85, o cri-
tério para esta uniformidade orgânica consistia na
existência de "correspondências", tantas quanto pos-
sível, embora por vezes totalmente díspares, entre as
partes do corpo 86. Assim, a maioria de suas afirma-
ções apresenta esta fórmula: "da x e y simile a 10 e
spatio che e infra vez" ("a distância xy é igual à
distância vz"). Acima de tudo, entretanto, estendeu
as próprias metas da antropometria em nova direção:
lançou-se a uma investigação sistemática daqueles pro-
cessos mecânicos e anatômicos pelos quais as dimen-
83. Que ele resumiu e corrigiu (RICHTER.The Literary
Works ot Leonardo da Vinci, Londres, 1883, n. 307, pr. XI). O
fato de Lomazzo usar o método das frações ordinárias baseia-se
em sua dependência direta de Dürer (cf. p. 133).
84. Nos estudos de Leonardo, ambos os tipos - um cor-
respondendo às proporções vitruvianas, o outro ao cânone de
Cennini-Gaurico - coexistem sem diferenciação, de modo
que muitas vezes é difícil ou impossível ligar uma dada afir-
mação com um dos dois. Sobre o sistema de Leonardo, bem
mais elaborado, para se medir as proporções do cavalo, ver
E. PANOFSKY, The Codex Huygens and Leonardo da Vinci's Art
Theory (Estudos do Instituto Warburg, XIII) Londres, 1940, p.
51 e ss.
85. Cf. L. OLSCHKI, Geschichte der neusprachlichen wissens-
chaftlichen Literatur, I, Heidelberg, 1919, p. 369 e ss. Entre-
tranto, não concordo inteiramente com a interpretação de
Olschki sobre Leonardo.
86. Cf. E. PANOFSKY, Dürers Kunsttheorie, Berlim, 1915, p.
105 e ss. O método de "determinar analogias" foi adotado por
Pompônio Gaurico e, entre outros, Africano Colombo, que jun-
tou ao seu pequeno livro sobre os planetas (Natura et incli.-
natione delle sette Pianeti) uma teoria de proporções para
pintores e escultores (totalmente baseada em Vitrúvio sob todos
os aspectos). Sua fusão das doutrinas astrológicas com a teoria
das proporções é uma tentativa característica de reinterpretar
o naturalismo científico de Leonardo com o espírito do mis-
ticismo cosrnológtco,

136
n. 6. Discípulo de Leonardo da Vinci. Figura proporcionada
segundo o "Exempeda" de L.B. Alberti. Desenho do Codex
Vallardi. Foto Giraudon, p<?260; a subdivisão da secção su-
perior foi incluída por este autor.

sões objetivas da figura humana ereta em repouso


são alterados em cada caso particular, fundindo, assim,
a teoria das proporções humanas com a teoria do mo-
vimento humano. Determinou o engrossamento das
juntas flexionadas ou a expansão e contração dos
músculos responsáveis pelos movimentos dos joelhos
e cotovelos e conseguiu, finalmente, reduzir todos os
movimentos a um princípio geral que pode ser des-
crito como o princípio do movimento circular contí-
nuo e uniforme 87,
87. Trattato de!!a pittura, item 267 e SS. Alber'tí já tinha
observado que a largura e a espessura (op. cit., p. 203) do
braço varia segundo seu movimento; mas não havia ainda

137
Estes dois desenvolvimentos esclarecem aquilo
que talvez seja a diferença mais fundamental entre a
Renascença e todos os outros períodos de arte prévios.
Vimos repetidamente que havia três circunstâncias ca-
pazes de compelir o artista a fazer uma distinção
entre as proporções "técnicas" e as "objetivas": a in-
fluência do movimento orgânico, a influência da pers-
pectivação e o cuidado com a impressão visual do
espectador. Estes três fatores têm uma coisa em co-
mum: todos pressupõem o reconhecimento artístico da
subjetividade. O movimento orgânico introduz no cál-
culo da composição artística a vontade e as emoções
subjetivas da coisa representada; a perspectivação, a
experiência visual subjetiva do artista; e aqueles ajus-
tamentos "eurrítmicos" que alteram aquilo que está
certo em favor daquilo que parece certo, a experiên-
cia visual subjetiva do espectador em potencial. E é a
Renascença que, pela primeira vez, não apenas afirma
mas formalmente legitima e racionaliza essas três for- .
mas de subjetividade.
Na arte egípcia somente o objetivo tinha valor
porque os seres representados não se moviam por vo-
lição própria e consciência, mas pareciam, em virtude
de leis mecânicas, estar eternamente detidos nesta ou
naquela posição; porque não ocorriam perspectivações
e porque não se faziam concessões à experiência visual
do espectador 88. Na Idade Média, a arte abraçou,
por assim dizer, a causa do plano contra a do sujeito
bem como a do objeto e produziu aquele estilo no
qual, embora se verificasse um movimento "atual" -
em oposição ao "potencial" -, as figuras pareciam
agir sob a influência de um poder superior e não por
livre e espontânea vontade; e no qual, embora os cor-
pos se volvam e se torçam de várias maneiras, não
se atinge nem se pretende atingir uma impressão real
de profundidade. Apenas na Antiguidade clássica
tentado determinar a extensão dessas mudanças em termos
numéricos. [Para a teoria do movimento circular de Leonar-
do, ver PANOFSKY, The Codex Huygens, p, 23 e ss., 122 e ss.•
Figs. 7-13.]
88. Pondo de lado todas as considerações estil!stlcas,
cumpre ter em mente que as mais importantes obras de arte
egípcias não eram criadas com o propósito de serem vistas;
eram colocadas em túmulos escuros, inacessíveis, afastadas de
toda vista.

138
esses três fatores subjetivos, o movimento orgânico,
a perspectivação, e o ajustamento óptico, lograram
reconhecimento; porém, e aí está a diferença funda-
mental, tal reconhecimento não era, por assim dizer,
oficial. A antropometria de Policleto não era acom-
panhada por uma teoria igualmente desenvolvida do
movimento nem por uma teoria igualmente desenvol-
vida da perspectiva; qualquer perspectivação que por-
ventura se encontre na arte clássica não resulta da
interpretação da imagem visual como uma projeção
central construtível por métodos geométricos estritos;
e os ajustamentos destinados a retificar a visão do
espectador eram, tanto quanto sabemos, manipulados
pela "lei do polegar" *. Foi, portanto, uma inovação
fundamental quando a Renascença suplementou a an-
tropometria com uma teoria fisiológica (e psicológica)
do movimento e uma teoria matematicamente exata da
perspectiva 89.
Aqueles que gostam de interpretar os fatos his-
tóricos em termos simbólicos podem reconhecer nisso
o espírito de uma concepção especificamente "moder-
na" do mundo que permite ao sujeito se afirmar em
relação ao objeto como algo independente e igual; ao
passo que a Antiguidade clássica não permitia ainda
a formulação explícita deste contraste e que a Idade
Média achava que tanto o sujeito como o objeto se
submergiam numa unidade superior.
A transição real da Idade Média para a Renas-
cença (e, num certo sentido, além dela) pode ser
observada, como que em condições de pesquisas de
laboratório, na evolução do primeiro teórico alemão
das proporções humanas: Albrecht Dürer. Herdeiro
das tradições nórdicas e góticas, encetou por um es-
quema planimétrico de superfície (no começo sem mes-
• "by rule of thumb". (N. da T.)
89. Na Renascença, mesmo as alterações "eurritmicas" das
dimensões às quais era preciso sujeitar obras colocadas acima
do nível dos olhos (ou, por exemplo, em superfícies aboba-
dadas) eram determinadas por meio de uma construção geo-
métrica exata. Ver as diretrizes de Leonardo para a pintura
de objetos sobre paredes curvas (RICHTER, op. cit., pr. XXXI;
Trattato, Item 130) ou os conselhos de Dürer para o propor-
cionamento de letras que, embora colocadas em níveis dife-
rentes, parecessem de igual tamanho (Underweysung der M,es-
sung ... 1525, f.o K.I0); o método de Dürer, transposto das ins-
crições murais para as pinturas murais, é repetido em BARBARO,
op. cit., p. 23.

139
mo incorporar os dados vitruvianos) que, como o
"retratismo" de Villard, se propunha determinar a
postura, o movimento, o contorno e as proporções,
tudo ao mesmo tempo (Fig. 26)90. Entretanto, sob a
influência de Leonardo e Alberti, deslocou suas metas
para uma ciência puramente antropométrica que acre-
ditava ter um valor mais educacional que prático:
"Nas posturas rígidas em que estão desenhadas nas
páginas anteriores", diz num de seus elaborados e nu-
merosos paradigmas, "as figuras não têm a menor uti-
lidade" 91. N a sua busca disciplinada e sem recom-
pensa do conhecimento pelo conhecimento, Dürér
empregou o método clássico e leonardesco das frações
ordinárias (Il. 7) no Primeiro e Segundo Livro, e o do
"Exempeda" de Alberti (cuja unidade menor, 1/600,
subdividiu ainda em três partes). 92 no Terceiro. Mas
sobrepujou os dois grandes italianos não apenas pela
variedade e precisão de suas medidas, mas também
por uma auto-limitação genuinamente crítica. Renun-
ciando, firmemente, à ambição de descobrir um câno-
ne ideal de beleza, entregou-se à tarefa infinitamente
mais laboriosa de estabelecer vários tipos "característi-
cos" os quais - cada um a seu modo - "evitassem a
feiúra grosseira". Acumulou nada menos que vinte e
seis conjuntos de proporções, além de um exemplo de
corpo de criança e as medidas detalhadas da cabeça,
90. ~ essa afinidade estrutural mais que a ·correspondên-
cia fortuita observa por Mortet (cf. atrás. nota 56) que
constitui uma relação intrinseca entre Dürer e a Idade Média.
especialmente Villard de Honnecourt. H. WOLFFLIN (em Mo-
natshefte für Kunstwissenschaft, VIII. 1915. p. 254) pareceria.
portanto. exagerar o caso quando diz que Mortet reconhecera
corretamente a conexão entre os primeiros estudos de Dürer
sobre as proporções humanas e a tradição gótica. Cabe men-
cionar aqui que o Dr. Edmund Schilling conseguiu descobrir
arcos circulares. traçados com um compasso no desenho de Se-
bastian L. 190 que este escritor atribuiu às séries de desenhos
construidos que começam com L. 74/75 (nossa Fig. 26).
91. "Dann die Bilder dõchten 60 gestrackt, wie sie worn
beschrieben smd, nichts zu brauchen". Cf. PANOFSKY. Dürers
Kunsttheorie,p. 81 e ss. e especialmente p. 89 e ss. e 111 e ss.
92. Há um grande debate em torno da questão de se saber
como Dürer teria tomado conhecimento do "Exempeda" de
Alberti. já que o De Statua, no qual é descrito. só foi publica-
do muitos anos após a morte de Dürer. É possível que se
possa identificar a fonte de Dürer como sendo a Harmonia
mundi totius de Francesco Giorgi (ver atrás nota 65); esta
obra contém (f.o C.I) uma descrição circunstancial do método

140
n. 7. Albrecht Dürer. "Homem D". Do Primeiro Livro do
Vier Biicher von menschlicher Proportion. Nuremberg, 1528.

de Alberti que - à parte um engano terminológico - é bas-


tante acurada e chega a apresentar uma citação direta: "Atten-
dendum est ad mensuras, quibus nonnuIli mícrocosmographí
metiuntur ipsum humanum corpus. Dividunt enim id per sex
pedes ... et mensuram unius ex iis pedibus hexipedam r!] VQ-
canto Et hanc partiuntur in gradus decem, unde ex sex hexí-
pedis gradus sexaginta resultant. gnadum vero quemlibet in
decem ... minuta". ("Deve-se prestar atenção às medidas que
certos microcosmógrafos aplicam ao próprio corpo humano. Di-
videm-no em seis pés ... e a medida de um desses pés é cha-
mada por eles de exempeda (ou hexempeda). Dividem esta
medida em 10 partes [gradus, chamados de unceolae por Aberti];
de modo que seis pés totalizam sessenta partes. e cada uma
dessas partes ainda é dividida em dez unidades menores [mi-
nuta, é o termo usado por Albertil.") O autor. entretanto. pre-
fere a divisão em 300 e não em 600 minuta, para preservar as cor-
respondências já mencionadas (nota 65) entre o corpo humano
e a Arca de Noé. A data de publicação da obra de Francesco
Giorgi. 1525. concorda com nossa hipótese. já que se pode provar
(ver PANOFSKY. Dürers Kunsttheorie, p. 119) que Dürer tomou

141
pé e mão 93. Não satisfeito com isso, indicou maneiras
e modos de variar ainda mais esses vários tipos para
captar mesmo o grotesco e o anormal por métodos
estritamente geométricos (11. 8) 94

11. 8. Albrecht Dürer. Quatro perfis caricaturados. Do Ter-


ceiro Livro do Vier Bücher von menschlich er Proportion,
Nuremberg, 1528.

Também Dürer tentou complementar sua teoria


da medida com uma teoria do movimento (que, no
entanto, se mostrou bastante desarticulada e mecânica
devido à sua falta de conhecimento anatômico e fisio-
lógico) e com uma teoria da perspectiva 96 _ Já que ele,
conhecimento do "Exempeda". pela primeira vez. entre 1523 e
1528. [Pode ser que Agripa de Nettesheim tenha se baseado na
mesma fonte. pois se refere ao sistema do "Exempeda" numa
edição de sua De occulta philosophia, publicada em 1531. lI, 27.
mas não na versão original de 1509.]
93. DÜRER. Albrecht. Vier Bücher von menschlicher Pro-
portion. Nuremberg, 1528, Livros I e lI.
94. Ibidem, Livro nr ..
95. Ibidem, Livro IV.
96. DÜRER, Albrecht. Underweysung der Messung mit dem
Zirckel und Richtscheyt. Nurernberg, 1525, f.o P.L. v. e ss.

142
tal como o grande pintor-teórico italiano, Piero della
Francesca, queria ver a perspectiva aplicada a figuras
humanas assim como a objetos inanimados, tentou fa-
cilitar este processo muito complicado reduzindo as
superfícies irracionais do corpo humano a formas de-
finíveis por simples planos 97, e é extraordinariamente

n. 9. Erhard Schi::in(?). Esquematização do Movimento Hu-


mano (esboço). Nuremberg, Stadtbibliothek, Cod. Cent. V. Ap.
34aa, f9 82.

informativo comparar estes esquemas, elaborados nos


anos vinte com as construções de c. 1500 (Fig.
26) . Em lugar de interferir com a representação
final, o Dürer dessa última época apenas a prepara;
em vez de definir os contornos por arcos circulares,
97. DÜRER, Vier Bücher ... , Livro IV, e numerosos desenhos.
Refiro-me ao famoso "sistema de cubos" que, segundo Lomazzo,
or ígma-se com Foppa e é mais tarde usado e desenvolvido
por Holbein, Altdorfer, Luca Cambiaso, Erhard Schõri e outros
(ci. MEDER, op. cit., p. 624, Figs. nas pp. 319, 619 e 623). Este
sistema é relacionado com os desenhos de Dürer cuj as cabeças
são reduzidas a polígonos (ilustrado em MEDER,op. cit., p. 622),
um artifício cujas origens este escritor tentou pesquisa r em
fontes italianas (Kunstchronik, nova série, XXVI, 1915, colo
514 e ss.) e em cujo favor Meder (p. 564, Fig. 267) apresentou
uma analogia mais conclusiva.

143
.

'.-- .,.(,
.' • J.
--,4
inscreve unidades plásticas em sólidos estereométricos;
a uma esquematização do desenho linear opõe uma
clarificação matemática dos conceitos plásticos (Fig.
27) 98

v
o Vier Bücher von menschlicher Proportion, de
Dürer, marca um clímax que a teoria das proporções
jamais atingira antes e jamais atingiria depois, Entre-
tanto, marca, também, o começo de seu dec1ínio. O
próprio Dürer sucumbiu, até certo ponto, à tentação
de desenvolver o estudo das proporções humanas
como um fim em si mesmo: por força da exatidão e
complexidade suas investigações foram cada vez mais
além dos limites da utilidade artística, e, por fim, per-
deram todo contacto com a prática artística. Em sua
própria obra, o efeito dessa técnica antropométrica
superdesenvolvida é menos perceptível do que o de
suas primeiras tentativas imperfeitas. E, se lembrar-
mos que a menor unidade de seu sistema métrico, a
chamada "partícula" (Trümlein), valia menos que um
milímetro, então o hiato entre a teoria e a prática se
torna óbvio.
O trabalho de Dürer com respeito à teoria das
proporções humanas como um ramo da teoria da arte,
portanto, é seguido, de um lado, por uma série de
produções coletivas insignificantes, todas mais ou me-
nos dependentes de sua opus maius, como os livretos
de Lautensack 99, Beham 100, Schõn 101, van der
98. De outra maneira, igualmente não mais planimétrica. a
figura em movimento é esquematizada numa série de dese-
nhos, atribuídos a Erhard Schõn, um exemplo do qual é re-
produzido na Il. 9 (reproduções também em Fr. W. GmLLANY,
lndex raTissimoTum aliquot librorum, quos habet biblioteca
publica NoTibergensis, 1846, p. 15). Sobre o método seguido
nesses desenhos. cf. a ilustração no Trattato de Leonardo da
Vinci, item 173.
99. LAuTENsAcK, H. Des Circkels und Richtscheyts, auch der
Perspectiva und Proportion der Menschen und Rosse kurtze
âocb. gTÜndliche Underweisung. Nuremberg, 1564.
100. BEHAM,H. S. Dies Büchlein zeyget an... ein Mas:!
oder PToportion des Rass. Nuremberg, 1528; -. Kunst und Lere
Büchlein... Frankfurt, 1546 (e freqüentemente depois disso);
ver também suas gravuras, pp. 219-21.
101. SCHON,E. Underweysung der Proportion und Stellung
der Possen. Nuremberg, 1542 (edição fac-similada, L. Baer, ed.,
Frankfurt, 1920).
.:
145
Heyden 10'2 OU Bergmilller 103; e, de outro, por obras
dogmáticas e áridas como a de Schadow 104 ou de
Zeising 105. Mas, embora seus métodos não tenham
servido, como esperava, à causa da arte, mostraram-se
de grande valia para o desenvolvimento de novas
ciências como a antropologia, a criminologia e - sur-
preendentemente - a biologia 106.
Esta evolução final da teoria das proporções en-
tretanto, corresponde à evolução geral da própria
arte. O valor e o significado artístico de uma teoria
preocupada, exclusivamente, com as dimensões obje-
tivas dos corpos contidos dentro de limites definíveis
só poderiam depender do fato de a representação de
tais objetos ser reconhecida ou não como meta essen-
cial da atividade artística. É compreensível que sua
importância devesse forçosamente diminuir quando o
gênio artístico começou a enfatizar a concepção subje-
tiva do objeto de preferência ao próprio objeto. Na
arte egípcia, a teoria das proporções significava quase
tudo porque o sujeito não significava quase nada; esta-
va destinado a afundar na insignificância assim que es-
sa relação se invertesse. A vitória do princípio subjetivo
foi preparada, como sabemos, pela arte do século XV
que afirmava a mobilidade autônoma das coisas repre-
sentadas e a experiência visual autônoma do artista
assim como do espectador. Quando, após ter dimi-
nuído o ímpeto do "renascimento da Antiguidade clás-
sica", essas primeiras concessões ao princípio subjetivo
passaram a ser exploradas plenamente, o papel da teo-
ria das proporções humanas como um ramo da teoria
da arte estava terminado. Os estilos possíveis de se
agrupar sob o título de subjetivismo "pictórico" -
estilos mais eloqüentemente representados pela pintura
holandesa do século XVII e pelo impressionismo do
século XIX - nada podiam fazer com uma teoria das
102. HEYDEN,J. van der. Reissbüch!ein.... Estrasburgo, 1634.
103. 'BERGMÜLLER, J. G. Anthropometria oder Statur des
Menschen. Augsburgo, 1723.
104. SCHADOW,G. Po!yc!et odar von den Massen der Mens-
chen. Berlim, 1834, (11.' ed., Berlim, 1909).
105. ZEISING, A. Neue Lehre von den Proportionen des
Kõrpers. Leipzig, 1854; -. Aesthetische Forschungen. Frank-
furt, 1855.
106. Refiro-me ao renascimento muito sério da doutrina
de Dürer sobre a "variação geométrica" (Vier Bücher ... , Li-
vro III) no famoso livro de D'Arcy W. THOMPSON, On Growth
and Form, primeiramente publicado em 1917.

146
proporções humanas, porque, para eles, os objetos só-
lidos em geral e as figuras humanas em particular
pouco significavam em comparação com a luz e o ar
difusos no espaço ilimitado 107. Os estilos que podem
ser agrupados sob o título de subjetivismo "não-pictó-
rico" - maneirismo pré-barroco e "expressionismo"
moderno - não tinham uso para uma teoria das
proporções humanas porque, para eles, os objetos só-
lidos em geral e a figura humana em particular, só
significavam algo na medida em que pudessem ser
arbitrariamente aumentados e diminuídos, torcidos e,
finalmente, desintegrados 108.
Nos tempos "modernos", pois.. a teoria das pro-
porções humanas, abandonada pelos artistas e teóricos
da arte, foi entregue aos cientistas - exceto nos círcu-
los fundamentalmente opostos ao desenvolvimento pro-
gressivo que tendiam para a subjetividade. Não é por
acaso que o Goethe da maturidade, havendo abando-
nado o romantismo de sua juventude em favor de uma
concepção essencialmente classicista da arte, devotou
um cálido e ativo interesse ao que fora a disciplina
favorita de Leonardo e Dürer: "Trabalhar num câ-
107. Para a arte setentrional, isto é válido para uma época
ainda anterior (séculos XV e XVI), exceto para artistas como
Dürer e seus seguidores que caíram sob a influência das ten-
dências clássicas.
108. Cf..a declaração de Michelangelo referida na nota 8l.
Mesmo na literatura teórica sobre arte que, como tal, é atraída
necessariamente para um classicismo "objetivista", podemos no-
tar em certos lugares e em 'Certas épocas exemplos do interes-
se pela teoria científica das proporções. Vicenzo Dantí, o
epígono de Michelangelo, planejava uma obra (publicada apenas
em pequenos excertos) que, apesar do título De!!e perfette
propoTtioni, não procede matematicamente mas aborda o tema
de um ponto de vista anatõmico, mímico e patognômico (ver J.
VON SCHLOSSER,Die Kunst!iteratur, p. 343 e ss., 359, 396); e o
holandês Carel van Mander tratou o problema das proporções
com uma indiferença extraordinária (ver SCHLOSSER,'ibidem)
[Cf. também, E. PANOFSKY, Idea (Studien der Bibliothek War-
burg, V), Leipzig e Berlim, 1924, p. 41 e ss.; na tradução
italiana de Florença, 1952, p. 57 e ss.) Tanto mais espantoso
é o fato de Rembrandt, que certamente não nutria qualquer
interesse especial pela teoria das proporções, ter desenhado,
certa vez, um vitruviano homem-num-qudarado; mas o disfarçou
tão bem que não foi reconhecido como tal: desenhou-o como um
oriental, esboçado a partir de um modelo e vestido com roupas
longas e turbante, sendo que a postura é casual e não rígida, a
cabeça virada um pouquinho para o lado. Se não fosse pelo qua-
drado e as linhas da rede que dividem o tronco, o desenho (C.
HOFSTEDEDE GROOT, Die Handzeichnungen Rembrandts, Haarlem,
1906, n. 631) sería aceito como um estudo de costume ao vivo,
e os braços abertos seriam interpretados como um gesto ex-
oressívo.

147
••

none de proporções masculinas e femininas" escreve a


l.H. Meyer, "procurar as variações a partir das quais
surge o caráter, examinar mais de perto a estrutura
anatômica e buscar as belas formas que expressam a
perfeição anterior - para essas difíceis pesquisas gos-
taria que contribuísse com a sua parte assim como eu,
de meu lado, já fiz algumas investigações prelimi-
nares" 109.

109. GOETHE, Carta para Meyer, de 13 de março de 1791


(edição Weimar, IV, 9, p. 248).

148
3. O ABADE SUGER DE S. DENIS

Raramente - de fato quase nunca - um grande


patrono das artes viu-se motivado a escrever uma re-
trospectiva de suas intenções e feitos. Homens de
ação, desde Césares até simples médicos do interior,
registraram as ações e experiências que, a seu ver, não
obteriam a merecida permanência a não ser por obra
da palavra escrita. Também os homens de expressão,
dos escritores aos poetas, dos pintores aos escultores
(uma vez que a mestria artística foi promovida a arte
pela Renascença), apelaram para a autobiografia e
auto-interpretação, sempre que temeram que suas
obras sozinhas, sendo apenas produtos isolados e cris-
talizados de um processo contínuo de criação, não

149
transmitissem uma mensagem viva e unificada à poste-
ridade. O mesmo não acontece com o patrono, o
homem cujo prestígio e iniciativa possibilitam a reali-
zação das obras de outros homens: o princípe da Igre-
ja, o governador secular, o aristocrata e o plutocrata.
Desse ponto de vista, a obra de arte deveria render
homenagens ao patrono, mas não este à obra de arte.
Os Adrianos e Maximilianos, os Leões e Júlios, os
Jeans de Berry e Lorenzos de Mediei decidiam o que
queriam, selecionavam os artistas, tomavam parte na
preparação do programa, aprovavam ou criticavam sua
execução e pagavam - ou não pagavam - as contas.
Mas deixavam a seus cortesãos e secretários o encargo
de levantar seus inventários, e a seus historiógrafos,
poetas e humanistas o de escrever as descrições, ele-
gias e explicações.
Uma concatenação especial de circunstâncias e
uma mistura única de qualidades pessoais eram neces-
sárias para o aparecimento dos documentos produzi-
dos por Suger, Abade de S. Denis, e preservados
misericordiosamente pelo tempo.

Como o cabeça e reorganizador da abadia, cuja


importância política e riqueza territorial sobrepujava
muitos bispados, como Regente da França durante a
Segunda Cruzada e como o "amigo leal e conselheiro"
de dois reis franceses, numa época em que a Coroa
começava a reafirmar seu poder após um longo perío-
do de fraqueza, Suger (nascido em 1081 e Abade de
S. Denis de 1122 até sua morte em 1151) é uma figura
importante na história da França; não sem razão, foi
chamado de pai da monarquia francesa que iria culmi-
nar no Estado de Luís XlV. Combinando a astúcia
de grande negociante com um senso natural de eqüi-
dade e uma retidão pessoal (fidelitas), reconhecida
mesmo por aqueles que não gostavam dele, espírito
conciliador e avesso à violência, porém sempre firme
nos própositos e de grande coragem física, de uma ati-
vidade incessante embora fosse um mestre consumado
na arte de esperar pelo momento certo, um gênio no

150
detalhe, capaz, no entanto, de ver as coisas em pers-
pectiva, colocou esses dons contraditórios a serviço de
duas ambições: queria fortalecer o poder da Coroa de
França e engrandecer a Abadia de S. Denis.
Em Suger, essas ambições não entravam em con-
flito entre si. Ao contrário, se lhe afiguravam como
aspectos do mesmo ideal, que ele acreditava correspon-
der tanto à lei natural quanto à Vontade Divina. Pois,
tinha convicção de três verdades básicas. Primeiro,
um rei e principalmente o rei de França, era um "vi-
gário de Deus", "trazendo e dando vida à imagem d.e
Deus em sua pessoa"; mas, esse fato, longe de impli-
car que o rei jamais poderia errar, acarretava o postu-
lado de que o rei não deveria cometer o mal ("tran-
gredir a lei desgraça um rei, pois o rei e a lei ~ rex
et lex - são receptáculos de um mesmo poder supre-
mo de governo"). Segundo, todo rei de França, mas
especialmente o amado mestre de Suger, Luís VI, o
Gordo, que durante sua coroação em 1108 despojara-
se da espada secular e fora cingido com a espada
espiritual "para defesa da Igreja e dos pobres", tinha
o direito e sagrado dever de aniquilar todas as forças
que conduzissem à discórdia interna e obstruíssem sua
autoridade central. Terceiro, essa autoridade. central
e, portanto, a unidade da nação estava simbolizada e
até investida na Abadia de S. Denis que arvorava as
relíquias do "Apóstolo de toda a Gália", o "protetor
especial e, depois de Deus, o único protetor do reino".
Fundada pelo Rei Dagoberto em honra a S. Denis
e seus lendários companheiros, S. Rústico e Sto. Eleu-
tério (aos quais Suger, normalmente, se sefere como
"os Santos Mártires" ou "Nossos Santos Patronos"), S.
Denis fora a abadia real durante muitos séculos. "Co-
mo se por um direito natural" abrigava os túmulos dos
reis franceses; Carlos,' o Calvo, e Hugo Capeto, o
fundador da dinastia reinante, tinham sido seus abades
titulares; e muitos príncipes de sangue haviam ali re-
cebido sua primeira educação (foi, na verdade, na
escola de Saint-Denis-de-l'Estrée que Suger, ainda me-
nino, forjou a amizade duradoura com o futuro Luís,
o Gordo). Em 1127, São Bernardo resumiu correta-
mente a situação ao escrever: "Esse lugar tem sido

151
importante e de dignidade real desde os tempos anti-
gos; costumava servir para os negócios legais da Corte
o~ para a sol?adesca ~o rei; sem hesitação ou engodo
a~I eram rendIda~ a Cesar as coisas que lhe eram de-
vidas, mas as COIsas de Deus não Lhe eram rendidas
com a mesma fidelidade".
Nesta carta muito citada, escrita no sexto ano do
abadado de Suger, o Abade de Clairvaux, congratula-
se com o conirêre * mais mundano por ter "reforma-
do", com êxito, a Abadia de S. Denis. Mas, essa "re-
forma", longe de diminuir o prestígio político da Aba-
d!a, conferiu-lhe ?~a independência, prestígio e prospe-
ndade que permítíram a Suger fortalecer e formalizar
seus laços tradicionais com a Coroa. Reforma ou não
refo~ma, nunca cessou de promover os interesses de S.
Denis e da Casa Real da França com a mesma ingê-
n~a,_ e em seu caso não inteiramente injustificada, con-
vicçao de que esses coincidiam com os da Nação e com
a Vontade de Deus, assim como um moderno magnata
do aço ou do petróleo pode promover uma legislação
favorável à sua companhia e ao seu banco corno algo
favorável ao bem-estar do país e ao progresso da hu-
manidade* *. Para Suger, os amigos da Coroa eram
e permaneciam os "partidários de Deus e de S. Denis",
assim como um inimigo de S. Denis era e permanecia
"um homem sem consideração pelo rei dos Francos e
pelo Rei do Universo".
~mante da paz por índole, Suger tentava alcançar
s~us fins não pela força militar, mas, sempre que pos-
sível, por meio de negociação e arranjos financeiros.
Desde o início de sua carreira, trabalhara incessante-
mente pela melhoria das relações entre a Coroa de
França e a Santa Sé, que haviam sido mais do que
abaladas durante o reinado do pai e predecessor de
Luís, o Gordo, Filipe r. Muito antes de sua elevação
à dignidade abacial, Suger já fora incumbido de várias
missões especiais a Roma; foi durante uma dessas
missões que recebeu a notícia de sua eleição ao cargo.

• Em francês no original: conrrade, (N. da T.)


** [Esta sentença foi escr.ta quase dez anos antes de um
famoso ir,>dustr!.aldecIa~ar. às vésperas de sua transformação
em estadista: O que e bom para a General Motors é bom
para os Estados Unidos".] •

152
Devido às suas hábeis manobras, as relações entre a
Coroa e a Cúria desenvolveram-se numa aliança firme
que não somente fortaleceu a posição interna do rei
mas também neutralizou seu inimigo externo mais pe-
rigoso, o Imperador germânico Henrique V.
Nenhuma diplomacia poderia impedir a série de
conflitos armados de Luís com seu outro grande inimi-
go, o orgulhoso e dotado Henrique I BeaucIerc da
Inglaterra. Um dos filhos de Guilherme, o Conquista-
dor, Henrique, muito naturalmente, recusava-se a re-
nunciar à sua herança continental, o Ducado da Nor-
mandia, enquanto que Luís, não menos naturalmente,
tentava transferi-Io para seus vassalos menos poderosos
e mais dignos de confiança, os Condes de Flandres.
No entanto, Suger (que alimentava uma genuína admi-
ração pelo gênio militar e administrativo de Henri-
que I) manobrou miraculosamente, até conseguir e
reter sua confiança e amizade pessoal. Muitas vezes
agiu como intermediário entre este e Luís, o Gordo;
e foi devido a esse fato que o protegido especial e
'devotado biógrafo de Suger, o monge WilIelmus de S.
Denis (relegado ao priorato de St.-Denis en-Vaux logo
que seu protetor morreu) apresentou uma dessas feli-
zes formulações que, por vezes, se devem mais à afei-
ção pura do que à intelectual: "Pois Henrique, o
poderoso Rei da Inglaterra", escreve ele, "não se or-
gulhou da amizade desse homem e apreciou sua com-
panhia? Não o escolheu como seu mediador junto
a Luís, Rei de França, e como um laço de paz?"
Mediator et pacis vinculum: essas quatro palavras
compreendem quase tudo o que se pode dizer sobre
as metas de Suger como estadista, com respeito tanto
à política externa como interna. Thibaut IV (o Gran-
de) de BIois, um sobrinho de Henrique I da Inglaterra,
tomava em geral o partido de seu tio. Mas, com ele
também Suger manteve-se em excelentes termos e por
fim conseguiu promover uma paz duradoura entre ele
e o Rei de França, que era então Luís VII, sucessor
de seu pai em 1137; o filho de Thibaut, Henrique,
haveria de tornar-se um dos mais moços e mais fiéis
servidores de Luís VII. Quando este, cavalheiresco
e temperamental, brigou com seu Chanceler Algrin, foi

153
Suger que conseguiu a reconciliação dos dois. Quando
Geoffroy de Anjou e Normandia, segundo marido da
única filha de Henrique Beauclerc, ameaçou deflagrar
guerra, foi Suger que logrou evitá-Ia. Quando Luís
VII teve boas razões para querer divorciar-se de sua
mulher, a bela Leonor de Aquitânia, foi Suger quem im-
pediu o pior enquanto viveu, de modo que a desastro-
sa ruptura política só se converteu em fato em 1152.
Não é por acaso que as duas grandes vitórias da
vida pública de Suger foram conseguidas sem derra-
mamento de sangue. Uma foi a supressão de um
coup d' état * tentado pelo irmão de Luís VII, Roberto
de Dreux, a quem Suger, então Regente e homem de
sessenta e oito anos, "venceu em nome da justiça e
com a confiança de um leão". A outra e ainda maior
vitória foi a derrota da invasão tentada pelo Imperador
Henrique V da Alemanha. Este, sentindo-se suficien-
temente forte após a Concordata de Worms, preparou
um ataque poderoso mas foi forçado a bater em reti-
rada frente a "uma França cujas forças se haviam
unido". Por uma vez, todos os vassalos do rei, mes-
mo os maiores e mais recalcitrantes, puseram de lado
suas quisílias e desavenças para ouvir o "chamado da
França" (ajuracio Franciae}: um triunfo tanto de Su-
ger como de sua especial vocação. Enquanto os
exércitos se reuniam, as relíquias de S. Denis e seus
Companheiros eram colocadas sobre o altar principal
da Abadia para serem devolvidas, mais tarde, à cripta,
"nos ombros do próprio rei". Os monges oravam dia
e noite. E Luís, o Gordo, aceitou das mãos de Suger
e "convidou toda a França a seguir" a bandeira de S.
Denis, proclamando assim o rei de França como vas-
salo da Abadia, feudatário de uma das possessões des-
te, Le Vexin. E, após a morte de Luís, não demorou
muito para que essa bandeira fosse identificada à fa-
mosa "Oriflamme" que permaneceria o símbolo visível
da unidade nacional durante quase três séculos.
Só em uma contingência Suger aconselhou o uso
de forças contra seus compatriotas, insistindo mesmo
nesse sentido quando "rebeldes" se puseram a violar
• Em francês no original: golpe de estado. (N. da T.)

154
o que Luís, o Gordo, prometera proteger, os direitos
da Igreja e dos pobres. Suger podia olhar com defe-
rência para Henrique Beauclerc, e com sério respeito
para Thibaut de Blois que se opunha ao rei em termos
quase iguais; mas era incansável em seu ódio e des-
prezo por "serpentes" e "bestas selvagens" como Tho-
mas de MarIe, Bouchart de Montmorency, Milon de
Bray, Matthieu de Beaumont ou Hugues du Puiset
(muitos deles membros da nobreza menor), que se
haviam estabelecido como tiranos locais e regionais,
atacando seus leais vizinhos, saqueando as cidades,
oprimindo os camponeses e se apoderando de proprie-
dades eclesiásticas - inclusive de possessões de S.
Denis. Contra esses, Suger recomendava e ajudava a
impor as medidas mais enérgicas, favorecendo os opri-
midos não apenas por questões de justiça e humani-
dade (embora fosse, por instinto, um homem justo e
humano) mas também por ser suficientemente inteli-
gente para saber que um comerciante falido não paga
impostos e que um vinicuItor sujeito a pilhagens cons-
tantes e extorsões provavelmente irá abandonar seus
campos e vinhas. Quando Luís VII retomou da Terra
Santa, Suger pôde lhe devolver um país unificado e
pacificado como raramente fora antes; e, ainda mais
miraculosamente, um tesouro bem Iornído. "Daí em
diante", escreve WilIelmus, "o povo e o príncipe cha-
mavam-no de Pai da Pátria"; e (com referência espe-
cial à perda da Aquitânia devido ao divórcio de Luís
VII) : "Assim que ele foi retirado de nosso meio, o
cetro do reino sofreu grande perda devido à sua
ausência". .

II

Aquilo que Suger pôde realizar apenas em parte


no macrocosmo do reino, realizou plenamente no mi-
crocosmo da Abadia. Mesmo se abatermos um pouco
da orgulhosa condenação de São Bernardo que com-
parava S. Denis antes da reforma a uma "oficina de
Vulcano" ou "sinagoga de Satã" e se dermos um des-
conto às amargas invectivas do pobre e arrasado Abe-

155
lardo que fala de "obscenidades intoleráveis" e chama
o predecessor de Suger, Adam, de "um homem tão
mais corrupto de hábitos e renomado por sua infâmia
quanto superior aos outros por sua prelazia", mesmo
assim não podemos deixar de ver que as condições da
Abadia de S. Denis antes de Suger estavam longe de
ser satisfatórias. Com muito tato, Suger evita fazer
qualquer crítica a Adam, seu "pai espiritual e adoti-
vo". Mas nos fala de grandes brechas nas paredes,
de colunas estragadas e torres que "ameaçam. ruir",
de lustres e outras peças do mobiliário caindo aos pe-
daços por falta de conserto, de mármores valiosos
"estragando sob as arcas do tesouro"; de vasos do
altar "jogados como panelas"; de obrigações com ben-
feitores de estirpe principesca que não eram cumpri-
das; de dízimos pagos a leigos; de possessões afasta-
das que, ou não eram cultivadas pelo arrendatário, ou
então eram abandonadas por estes devido à opressão
dos senhores e barões vizinhos; e, pior que tudo, de
problemas constantes com os "bailios" (advocati) que
detinham o direito hereditário a receber certas rendas
dos domínios da Abadia dispensando-lhe em troca
proteção contra inimigos externos (advocationes), mas
que muitas vezes eram incapazes ou relutavam em
exercer esta função e até mesmo abusavam dela com
taxações arbitrárias, conscrições, e corvéias.
Muito antes de se tornar o responsável por S.
Denis, Suger já tivera em primeira mão uma" experiên-
cia dessas infelizes condições. Tendo servido cerca de
dois anos como preposto do abade (praepositus) em
Berneval-le-Grand, na Normandia, onde lhe fora dado
familiarizar-se com as inovações administrativas de
Henrique Beauclerc que o impressionaram muito,
foi transferido, na mesma qualidade, aos vinte e oito
anos, para uma das herdades mais preciosas da Aba-
dia, Toury-en-Beauce, perto de Chartres. Mas encon-
trou-a evitada pelos peregrinos e comerciantes e quase
sem arrendatários, devido às perseguições de sua bête
noire *, Hugues du Puiset: "Os que haviam permane-
cido mal podiam viver sob o fardo de tão nefanda
opressão". Depois de conseguir o apoio moral dos

* Em francês no original: ovelha negra. (N. da T.)

156
bispos de Chartres e Orléans, e o auxílio manual dos
paroquianos e dos padres da região, pediu a proteção
do próprio rei e lutou, com bastante bravura e sucesso
variável, até que o castelo de Le Puiset sucumbiu ao
último dos três assédios feitos no espaço de dois anos,
sendo destruído, ou, pelo menos, posto fora de comba-
te em 1112. O perverso Hugues conseguiu manter
suas terras durante mais dez ou quinze anos, mas pare-
ce que deixou o castelo a cargo de um preboste e por
fim desapareceu na Terra Santa. Suger, entretanto,
começou a restaurar o domínio de Toury "da esterili-
dade para a fertilid.ide", e logo que foi eleito abade
estabilizou a situação de uma vez por todas. Cons-
truiu casas fortes e "defensáveis", fortificou toda a
praça com paliçadas, um sólido forte e uma nova torre
acima do portão de entrada; prendeu, "quando se en-
contrava na redondeza com uma força armada", o pre-
baste de Hugues, que começara "a vingar-se pelos
infortúnios passados"; e resolveu a questão da advo-
catio de uma maneira totalmente característica. Acon-
teceu que a advocatio, por herança, coube a uma
jovem, neta de um certo Adam de Pithiviers, o que
poderia causar muito dano no caso de ela se casar
com a pessoa errada. Assim, Suger trabalhou para
"dar a moça juntamente com a advocatio" a um bom
rapaz de seu próprio séquito, destinou cem libras para
serem divididas entre os recém-casados e os pais, que
aparentemente não eram muito prósperos, e todo mun-
do ficou feliz: a moça recebia um dote e um marido;
o rapaz, uma esposa e uma renda modesta porém
constante; os pais, uma parte das cem libras de Suger;
"a inquietação foi afastada do distrito"; e a renda anual
da Abadia de Toury aumentou de vinte libras para
oitenta.
O modo de agir nesse domínio é característico de
toda a administração de Suger. Onde se fazia neces-
sária a força, o abade a aplicava com energia e ,s~m
se preocupar com o perigo pessoal; ele fala de vanos
outros casos em que teve de recorrer às armas, "nos
seus primeiros tempos de abade". Porém, é mais que
hipocrisia profissional - embora não seja possível
omitir uma certa dose desse elemento - quando pro-

157
fessa ~risteza a esse respeito: se dependesse dele, re-
solvena todos os problemas como resolveu o da neta
de Adam Pithiviers.
Além de obter numerosas doações e privilégios
reais (os mais importantes foram o aumento da juris-
dição local da Abadia e a permissão de uma grande
feira anual chamada "Foire du Lendit") e de conseguir
benefícios particulares de todos os tipos, Suger tinha
um faro especial para descobrir velhos e esquecidos
direitos feudais e de terras. "Na dócil época de minha
juventude", diz ele, "costumava manusear os docu-
mentos de nossas possessões guardados nos armários
e consultar as cartas de nossas imunidades em vista
da desonestidade de muitos caluniadores". Não hesi-
tava em promover tais reivindicações em nome dos
Santos Mártires, mas parece que agiu, na maioria dos
casos, "sem chicana" (non aliquo malo ingenio), com
a única exceção, talvez, da expulsão das freiras do
convento de Argenteuil. O despejo foi requerido não
só em bases legais mas também morais (o que lança
alguma dúvida quanto à validade do mesmo), e sus-
peitou-se até que a ação de Suger tivesse sido influen-
ciada pelo fato de a Priora de Argenteuil ser Heloísa de
Abelardo. É certo, porém que, que as reinvidicações
de S. Denis foram apoiadas por um sínodo no qual
se encontrava um dos defensores mais ferrenhos dos
direitos de Abelardo, como foi Geoffroy de Leves,
Bispo de Chartres; e, de tudo o que sabemos sobre
Suger, parece bastante duvidoso que tivesse sequer pen-
sado no velho escândalo em conexão com este caso.
Em todas as outras circunstâncias Suger parece
ter agido em perfeita boa fé. As novas propriedades
eram compradas e alugadas a preço justo. Obriga-
ções incômodas mas legítimas eram abolidas mediante
o pagamento aos portadores dos títulos, mesmo que
fossem judeus. Aos advocati indesejáveis era dada a
oportunidade de renunciarem a seus privilégios em
troca de uma compensação previamente combinada
entre as partes ou fixada por processo canônico. . E
assim que a estabilidade física e legal ficava assegura-
da, Suger embarcava num programa de reconstrução
e reabilitação, que, como em Toury, se mostrava van-
tajoso para o bem-estar da tenência e para os cofres

158
da Abadia. Construções e implementos dilapidados
eram substituídos e providenciavam-se outros novos.
Novos foreiros eram instalados em muitos lugares para
transformar em trigais e vinhas o que antes era terra de-
voluta. As obrigações do arrendamento eram cons-
cienciosamente revistas, havendo cuidadosa distinção
entre o "costume" legal e a "exação" arbitrária, bem
como o devido respeito pelas necessidades e capacida-
des individuais. E tudo isso era feito sob a supervisão
pessoal de Suger que, além de todos os seus deveres
como "príncipe da Igreja e do reino", percorria os
domínios abaciais como um torvelinho, traçando pla-
nos para novas povoações, indicando as melhores áreas
para as searas e as vinhas, cuidando dos menores de-
talhes e aproveitando toda oportunidade. No domínio
de Essones, por exemplo, quase nada restava depois
das contínuas depredações dos Condes de Corbeil,
exceto uma pequena capela em ruínas conhecida como
Notre-Dame-des-Champs, "onde ovelhas e cabras vi-
nham pastar sobre o próprio altar coberto de vegeta-
ção". Um belo dia, Suger foi notificado de que foram
vistas velas queimando no santuário deserto e que pes-
soas doentes foram curadas de forma miraculosa.
Percebendo, imediatamente, a oportunidade enviou para
o local o Prior Hervée - "um homem de admirável
santidade e admirável simplicidade, embora não muito
erudito" - com doze monges, restaurou a capela,
construiu os edifícios do claustro, plantou vinhas, pro-
videnciou arados, lagares, vasos para o altar, paramen-
tos e até uma pequena biblioteca; dentro de poucos
anos o lugar tornara-se o equivalente medieval de um
sanatório próspero e auto-suficiente.

III

Aumentando e desenvolvendo assim os domínios


afastados da Abadia, Suger criou as bases para uma
reorganização completa do próprio convento.
Em 1127, como já sabemos, S. Denis foi "refor-
mada", e essa "reforma" suscitou a famosa carta de
felicitações de S. Bernardo que já- mencionamos duas
vezes. Esta carta, entretanto, é mais do que uma sim-

159
pIes expressão de satisfação piedosa. Marca o fim de
uma campanha de murmurações - ou melhor, clamo-
rosa - aparentemente desencadeada pelo próprio S.
Bernardo, sela um armistício e oferece termos de paz.
Ao retratar o estado de coisas em S. Denis em cores
sinistras e descrever a indignação dos "santos" S. Ber-
nardo deixa perfeitamente claro que Suger, sozinho,
era o objeto dessa reprovação: "Era aos vossos erros
- aos de vossos monges, que o zelo dos santos dirigia'
nao
suas crít~~as. E, por vossos excessos, não pelos deles,
essas cntícas se inflamavam. Era contra vós, não
contra a Abadia, que o murmúrio de vossos irmãos se
levantava. Somente vós éreis o objeto de sua conde-
nação. Se emendásseis vossos caminhos, nada mais
restaria que pudesse ficar aberto às calúnias. Enfim,
se chegásseis a mudar, todo o tumulto amainaria e todo
clamor se calaria. Essa foi a única coisa que nos mo-
veu: que, se continuásseis assim, essa vossa pompa
e aparência poderiam parecer um pouco insolentes de-
mais. . .. Finalmente, entretanto, satisfizestes vossos
críticos e até ajuntastes o que podemos elogiar com
justiça. Pois, que há de ser encomiado apropriada-
mente nos negócios humanos (embora, na verdade seja
obra de Deus), se essa simultânea e tão súbita mudança
de tantos homens não fosse julgada digna do mais
alto louvor e admiração? Haverá muita alegria no
céu_ pela conversão de um só pecador - que dizer,
entao, de toda uma comunidade?"
Assim, t~do p~r.e~ia correr bem para Suger, que
- um trocadilho dificilmente perdoável, mesmo para
um santo - aprendera a "chupar" (sugere) os seios
da Divina Sabedoria em lugar dos lábios dos bajula-
dores. Mas, depois de tantas amenidades S. Ber-
nardo insinua, fortemente, que a continuação de sua
boa ~ontade depende da conduta de Suger no futuro e,
po.r fim, chega a seu objetivo: deseja a eliminação de
EtIen?e de Garlande, Senescal de Luís, o Gordo, que,
c?mb!nando ~ua alta posição na Igreja a uma influên-
CIa ainda maior na Corte, era a barreira mais impor-
tante entre o Abade de Clairvaux e a Coroa.
Não sabemos o que Suger - mais velho nove
anos que S. Bernardo - respondeu a este espantoso
documento; mas os acontecimentos subseqüentes nos

160
indicam que o compreendeu. No final desse mesmo
ano, 1127, Etienne de Garlande caiu em desgraça.
Embora tenha mais tarde voltado ao favor, não voltou
nunca mais ao poder. E, a 10 de maio de 1128, "o
Abade de Clairvaux se encontrou, pela primeira vez,
em relação direta e oficial com o rei de França": Su-
ger e S. Bernardo haviam chegado a um acordo. Dan-
do-se conta de quanto poderiam se prejudicar um ao
outro como inimigos - um o conselheiro da Coroa
e o maior poder político da França, e o outro, o men-
tor da Santa Sé e o maior poder espiritual em toda a
Europa - decidiram tornar-se amigos.
Daí por diante só se ouvem louvores a Suger de
parte de S. Bernardo (embora conservasse uma certa
tendência a responsabilizar Suger pela conduta ques-
tionável de outros e tenha, numa dada ocasião, pedido,
um tanto maliciosamente, que o "rico abade" prestasse
assistência a "um pobre"). Dirigiam-se um ao outro
como vestra Sublimitas, vestra Magnitudo ou até, Sane-
titas vestra. Pouco antes de sua morte, Suger expres-
sou o desejo de ver a "angélica face" de S Bernardo
e foi confortado por uma carta edificante e um lenço
precioso; e, sobretudo, tentavam, cuidadosamente, não
interferir nos negócios um do outro. Suger manteve
a mais estrita neutralidade quando S. Bernardo per-
seguiu seus heréticos ou quando designou, quase à von-
tade, bispos e arcebispos, e nada fez para impedir a
Segunda Cruzada, embora fosse suficientemente previ-
dente para desaprová-Ia. Por outro lado, S. Bernardo
se absteve de novas fulminações contra S. Denis e nun-
ca voltou atrás na sua apreciação otimista da conversão
e reforma de Suger, sem se importar com a realidade
dos fatos.
Não há dúvida de que Suger era um homem te-
mente a Deus como qualquer outro fiel membro da
Igreja em seu século, e manifestava as devidas emo-
ções nas devidas ocasiões, "inundando o chão de lá-
grimas" ante a tumba dos Santos Mártires (coisa não
demasiado excepcional numa época em que reis caíam
de joelhos, chorando, frente a relíquias sagradas e se
desfaziam em lágrimas em funerais oficiais) e mos-
trando-se "devotamente festivo, festivamente devoto"
nas alegres festas do Natal e da Páscoa. Mas, dificil-

161
mente passou por uma conversão comparável à do
clérigo germânico, Mascelino, que S. Bernardo atraiu
do serviço do Arcebispo de Mogúncia para o mosteiro
de Clairvaux, ou do próprio irmão do santo, Guy, a
quem arrancou da companhia de sua amada mulher
e de seus dois filhos. Não há dúvida de que Suger
aboliu todo tipo de irregularidades da Abadia. Mas,
certamente, não a transformou num lugar onde, "ne-
nhuma pessoa secular tinha acesso à Casa de Deus",
em que "curiosos não são admitidos -à presença dos
objetos sagrados" e onde "o silêncio e uma perpétua
distância de todo o turbilhão secular impelem a mente
a meditar sobre coisas celestes".
Em primeiro lugar, a reforma de S. Denis deve-se,
não tanto a uma súbita mudança de opinião por parte
dos membros da confraria, como de sua sábia e pro-
gramada reeducação. Onde S. Bernardo fala de "con-
versão de toda uma congregação", Suger, caracteristi-
camente, congratula-se por haver "restabelecido os
propósitos da Santa Ordem de forma pacífica, sem
protestos ou distúrbios da parte dos irmãos, embora
não estivessem a isso acostumados". Em segundo lu-
gar, essa reforma conquanto terminasse com o flagran-
te desperdício e a desordem reinante, estava longe de
conseguir, ou mesmo visar a algo parecido como o aus-
te~o idea~ de vida monástica de S. Bernardo. Como já
fOI mencionado antes, S. Denis continuou a dar a Cé-
sar o que era de César, e isso tanto mais efetivamente
quanto mais seguros se tornavam suas possessões,
quanto mais forte e mais firme o pulso do Abade so-
bre sua comunidade; e a vida dos monges, embora
provavelmente supervisionada com maior rigor, foi feita
o mais agradável possível.
S. Bernardo concebia o monaquismo como uma
vida de obediência cega e total renúncia ao conforto
r~ssoal, alimentação e sono; dizem que ele próprio
jejuou e permaneceu em vigília ultra possibilitatem hu-
manam. Suger, por sua vez, era absolutamente parti-
dário da moderação e disciplina, mas totalmente con-
trário à sujeição e ao ascetismo. Para o espanto
admirado de seu biógrafo, não aumentou de peso de-
pois de sua elevação ao poder. Mas também não
fazia muito empenho em mortificar-se. -"Declinando

162
de ser conspícuo de um ou outro modo" gostava de que
sua comida fosse "nem muito refinada, nem muito
simples"; sua cela media, se tanto, três metros por
quatro e meio, porém seu leito não era "nem muito
duro nem muito macio" e era - um detalhe muito
simpático - "coberto por bonitas fazendas durante o
dia". E o que não exigia de si mesmo pedia ainda
. menos de seus monges. Sustentava que as relações
entre prelados e subordinados eram prefiguradas pelas
dos sacerdotes do Antigo Testamento com a Arca da
Aliança: como fora o dever destes proteger a Arca
com peles de animais para que não fosse danificada
pelo vento ou pela chuva, assim era o dever do abade
prover o bem-estar físico de seus monges, "para que
não desfaleçam no caminho". Assim, os gélidos assen-
tos do coro, feitos de cobre e mármore - uma prova-
ção no inverno - foram trocados por outros bem mais
confortáveis, de madeira. A dieta dos monges era
constantemente melhorada (com a especial condição
de que os pobres recebessem seu justo quinhão); e,
foi com evidente entusiasmo que Suger reviveu uma
antiga prática, a celebração em memória de Carlos, o
Calvo, e que constava de um jantar excepcionalmente
bom a cada mês, em honra "de tão grande Imperador
e amigo tão íntimo e cordial do abençoado S. Denis".
Enquanto S. Bernardo cultuava o silêncio, Suger era
o que um estudioso francês chama de causeur iniatiga-
ble *. "Muito humano e cordial (humanus satis et jo-
cundus), gostava de ter a companhia de seus monges
até a meia-noite, contando-lhes fatos memoráveis que
tivera ocasião de viver ou ouvir falar" (e vira e ouvira
muitos), narrando os feitos de qualquer príncipe ou
rei francês cujo nome mencionassem, ou, recitando de
memória longas passagens de Horácio.
A reforma de S. Denis, realizada por Suger, dife-
ria assim muito da imaginada por S. Bernardo; e, num
aspecto essencial, além de uma diferença havia um
contraste irreconciliável entre as duas. Nada podia
estar mais longe do espírito de Suger do que manter
os leigos fora da Casa de Deus: desejava acomodar
aí o maior número possível de pessoas e só queria que
isso se desse sem distúrbios - precisava, portanto, de
• Em francês -no orig.: conversador infatigável. (N. da T.)

163
uma igreja maior. Não via justificativa para não per-
mitir a presença de curiosos junto aos objetos sagra-
dos: desejava expor as relíquias tão "nobre" e "cons-
picuamente" quanto pudesse, evitando, ao máximo,
confusões e conflitos - para tanto transferiu as relí-
quias da cripta e da nave para aquele magnífico coro
superior, que se tornaria o modelo insuperável do
chevet * da catedral gótica. Não haveria pecado de
omissão mais grave, julgava ele, do que privar o servi-
ço de Deus e de seus santos daquilo que Ele habilitara
a natureza a dar e o homem a aperfeiçoar: vasos de
ouro e pedras preciosas, adornados de pérolas e gemas,
candelabros de ouro e painéis de altar, esculturas e
vidros coloridos, trabalhos de mosaico e esmalte, ves-
tirnentas e tapeçarias resplandecentes.
Era exatamente o que o Exordium. Magnum Or-
dinis Cisterciensis condenara e contra o que S. Ber-
nardo trovejara na Apologia ad Willelmum Abbatem
Sancti Theodorici. Nenhuma pintura figurativa ou es-
cultura, exceto crucifixos de madeira, era tolerada; pe-
dras preciosas, pérolas, ouro e sedas eram proibidos;
os paramentos tinham que ser de linho ou fustão, os
castiçais e turíbulos de ferro; apenas os cálices podiam
ser de prata ou prata dourada. Suger, no entanto,
nutria franca .paixão pela beleza e esplendor sob todas
as formas possíveis; poder-se-ia dizer que sua reação
ao cerimonial religioso era, em grande parte, estética.
Para ele, a bênção da água-benta é uma dança mara-
vilhosa, com os inúmeros dignitários da Igreja "no
decoro de seus brancos paramentos, esplendidamente
ataviados com suas mitras pontificais e preciosos
báculos embelezados por ornamentos circulares", dan-
do "voltas e voltas em tomo da pia batismal", "como
um coro mais celestial que terrestre". A celebração
simultânea' das primeiras vinte missas no novo chevet
é "uma sinfonia mais angélica que humana". Assim,
se a primazia espiritual de S. Denis era convicção de
Suger, o embelezamento material do santuário era sua
paixão: os Santos Mártires, cujas "sagradas cinzas"
só podiam ser carregadas pelo próprio rei e que tinham
precedência sobre qualquer outra relíquia, por mais

• Em francês no ortg.: charola (corredor semicircular em


igrejas, situado atrás do altar). (N. da T.)

164
reverenciada que fosse, precisavam dispor da mais bela
igreja da França. , . .
Desde os primeiros anos de seu exerctcio abacI~I,
Suger começara a levantar fundos para a reconstruçao
e redecoração da basílica e, quando morreu, estava
"renovada desde as próprias fundações" e repleta de
tesouros, superados apenas pelos da Hagia (Santa)
Sofia. Ao programar suas procissões, transladações,
cerimônias de fundação e consagrações, Suger anteci-
pava a habilidade teatral do moderno p~odutor de c~-
nema ou promotor de feiras internacionais e, ao a.dq~l-
rir pedras preciosas e pérolas, vaso.s raros, .VItrms,
esmaltes e tecidos, prefigurava a rapacidade desmteres-
sada do diretor de museu contemporâneo; até nomeou
os primeiros antepassados conhecidos de nossos curado-
res e restauradores.
Em suma, efetuando concessões ao zelo de S.
Bemardo em assuntos de moral e de alta política ecle-
siástica, Suger conseguiu paz e liberdade sob todos os
outros aspectos. Não sendo molestado pelo Abade de
Clairvaux ,
fez de sua igreja a mais esplendorosa do A •

mundo ocidental e elevou a pompa e as aparencias ao


nível das belas-artes. Se S. Denis deixara de ser uma
"sinagoga de Satã", não há dúvida de que se tomou,
mais que nunca, "uma oficina de Vulcano".

IV
Depois de 1127, portanto, Suger não tinha mais
S. Bernardo no seu calcanhar; mas, tinha-o constante-
mente no pensamento, e essa é uma das várias razões
pelas quais ele se tornou a grande exceção à regra, o
patrono que se converteu em littérateur *. .
Não há dúvida de que os documentos reeditados
neste volume são, em parte, propositalmente apologé-
ticos, e que essa apologia é em grande parte dirigida
contra Citeaux e Clairvaux. De vez em quando Suger
interrompe suas descrições entusiásticas de ouro cinti-
lante e jóias preciosas para responder ~aos, ataque~ de
um inimigo imaginário, que, de fato, nao e nada Ima-
ginário mas idêntico ao homem que escreveu: "Mas
nós que, por amor a Cristo, condenamos como ex~re-
mento tudo o que brilha com beleza, encanta o ouvido,
• Em francês no orig.: literato. (N. da T.)

165
delicia pela fragrância, favorece o paladar, agrada aI)
toque - devoção a quem, pergunto, pretendemos in-
citar por meio dessas mesmas coisas?"
Enouanto S. Bernardo, nas palavras do "pagão
Pérsio" exclama, indignado: "Que tem o ouro a fazer
no santuário?" Suger pede que, em seu aniversário,
todos os paramentos e adornos de altar adquiridos du-
rante sua administração sejam exibidos na igreja ("pois
estamos convictos de que é útil e conveniente procla-
mar e não esconder os benefícios divinos"). Lamen-
ta, profundamente, que sua Grande Cruz, um dos mais
suntuosos objetos jamais concebido pelo homem, care-
ça ainda de seu complemento de pérolas e pedras
preciosas; e fica vivamente desapontado por ser obri-
gado a revestir a nova tumba dos Santos Mártires com
. mero cobre dourado, em lugar de ouro puro ("pois
nós, miseráveis homens. .. deveríamos considerar dig-
no de nosso esforço cobrir as santíssimas cinzas da-
queles cujos espíritos veneráveis - fulgindo como o
sol - fazem companhia a Deus Todo-poderoso, com
os materiais mais preciosos. possíveis").
Ao fim da descrição do altar principal - a cujo
frontal adicionara mais três painéis, "de modo que todo
o altar parecesse dourado visto de qualquer posição"
- Suger passa à ofensiva: "Se jarras douradas, fras-
cos dourados e pequenos almofarizes dourados serviam
antigamente, pela vontade de Deus ou por ordem do
Profeta para coletar o sangue dos bodes ou bezerros,
ou da novilha vermelha, com muito mais razão os vasos
de ouro, as pedras preciosas e tudo o que houver de
mais valioso entre as coisas criadas, deve servir, com
reverência contínua e plena devoção, como receptáculo
para o sangue de Cristo!. .. Se, numa nova criação,
nossa substância fosse trocada com a dos querubins e
serafins, ainda assim ofereceria uma assistência insufi-
ciente e indigna para vítima tão inefável. .. Os de-
tratores também objetam dizendo que uma mente santa,
um coração puro, uma intenção reta deveriam bastá r
para esta sagrada função; e nós, aqui, também afir-
mamos, explícita e especialmente, que são essas, na
verdade, as qualidades que mais importam. Porém,
professamos a idéia de que é também necessário prestar
homenagem através dos ornamentos exteriores dos va-

166
SOs sagrados. .. Pois, é seguramente apropriado ser-
virmos nosso Salvador em todas as coisas que há no
universo - Ele Que não se recusou a prover para
nós em todas as coisas do universo, sem nenhuma
exceção".
Admirável em declarações como essas é o uso
que Suger faz de passagens das Escrituras como evi-
dência contra os cistercienses. No Hebreus, S. Paulo
comparava o sangue de Cristo ao dos animais sacriíi-
ciais do Antigo Testamento (apenas para ilustrar a
superioridade da santificação espiritual sobre a mera-
mente mágica): dessa comparação Suger conclui que
os cálices cristãos deveriam ser mais esplendorosos que
os frascos e jarras dos judeus. Pseudo-André descre-
vera a Cruz do Gólgota como sendo adornada pelos
membros de Cristo "como se com pérolas"; dessa após-
trofe poética, Suger infere que o crucifixo litúrgico
devia brilhar numa profusão de pérolas verdadeiras.
E quando termina a descrição de seu novo chevet com
uma magnífica citação dos Éiesos que contém esta
frase: "em Quem toda edificação floresce num único
templo no Senhor", qualifica a palavra "edificação"
pelo parêntese "quer espiritual ou m~terial", to~ce~d.o
a metáfora de S. Paulo para convertê-Ia numa justifi-
cação de arquitetura superesplendorosa.
Isso não significa que Suger tenha, deliberada-
mente, "falsificado" a Bíblia e os Apocrypha. Como
todos os autores medievais, citava de memória e não
estabelecia uma distinção exata entre o texto e sua
interpretação pessoal, de modo que suas próprias ci-
tações - e essa é a recompensa por verificá-Ias
nos revelam sua filosofia pessoal.
Pode parecer surpreendente falarmos da filosofia
de Suger. Sendo ele um dos que, para citar sua pró-
pria frase, "são homens de ação por virtude de suas
prelazias" (cuja relação com a vida "contemplativa"
é apenas de benevolente patrocínio), Suger não tinha
ambições como pensador. Apreciador dos clássicos e
dos cronistas, estadista, soldado e jurisconsulto, perito
em tudo o que Leone Battista Alberti resumiria sob
o título de La Cura delta Famiglia, e aparentemente
interessado em ciência, era mais um proto-humanista
que um escolástico primitivo. Em nenhuma ocasião

167
d.emonstr31.o menor interesse pelas grandes controvér-
sias .teolo~Icas e epistemológicas de sua época, como
as discussões entre os universalistas e nominalistas a
amarga polêmica sobre a natureza da Trindade Divina
e, so!'retudo, a questão de maior impacto então, o caso
d~ fe contra a razão; e suas relações com o protago-
rnsta desse drama intelectual, Pedro Abelardo eram
caracteristicamente, de natureza estritamente dficial ~
completamente impessoal.
~~elardo era um gênio, mas um gênio desse tipo
par~nOlco que .repele a afeição pela arrogância, que
atrai a perseguição efetiva pela suspeita constante de
conspirações imaginárias, e que, sentindo-se oprimido
por qualquer tipo de débito moral, costuma converter
a gratidão em ressentimento. Depois dos horríveis
ac~n~ecimentos que arruinaram sua vida, encontrou
~efu.gI.Oem S. Denis, durante a administração alegre e
ineficiente do Abade Adam. Desde logo ele se pôs
a f~zer críticas que, justificadas ou não, raramente
SUSCItam, numa comunidade, estima para com um re-
cém-chegado e, por fim, anunciou uma descoberta
que, do ponto de vista de S. Denis importava em cri-
me de lêse-maiesté *: topara, por acaso, com uma pas-
sagem em S. Beda segundo a qual o santo titular da
~badia não era o famoso Dionísio, o Areopagita, men-
c:onado nos Atos dos Apóstolos e tido como o primeiro
bISpO de Atenas, mas sim um outro santo, mais re-
cente e menos famoso: Dionísio de Corinto**. Abe-
lardo foi acusado de traição à Coroa e jogado numa
prisão :d~ .onde co~seguiu escapar, procurando abrigo
no terntono de Tnbaut de Blois. Era essa a situação
quando Suger sucedeu a Adam, resolvendo então o
problema. Após algumas hesitações deliberadas con-

* Em francês no original: lesa-majestade. (N. da T.)


•• Há ~a grande controvérsia em torno do assunto. Na
reali~ade e':Istuam três santos diferentes: São Dinis, mártir
cr.stão do seculo I; São Dionísio de Corírrto, do século n· e o
~aIs famoso, São Dionísio, o Areopagita, bispo de Aten~s do
secul<? I, ao qual parece que a Abadia de S. Denis foi dedica da
No seculo VI, apareceram alguns tratados em grego que' se pen~
~ava ser de Sua autoria. Mais tarde verificou-se que tal
Julgamento era errôneo, e hoj~ o autor dessas obras é chamado
de Pseud?-AreopagIta. Prererímos manter o nome da Abadia
em frances para evitarmos maiores confusões. (N. da T.)

168
sentiu em esquecer o caso, dando a Abelardo permissão
para viver em liberdade onde bem lhe aprouvesse,
com a única condição de que não entrasse para outro
mosteiro - cláusula esta imposta, segundo Abelardo,
porque "a Abadia não queria perder a glória que
obtinha através de minha pessoa", mas, bem mais pro-
vavelmente, porque Suger, embora desejando que bons
ventos levassem Abelardo, relutava, entretanto, em ver
um ex-monge de S. Denis sujeito à autoridade de outro
abade que seria, .na sua opinião, sempre inferior. Não
se opôs ·quando Abelardo, dois ou três anos depois,
se tornou ele mesmo abade (e muito infeliz); não to-
mou parte no selvagem ataque, cuidadosamente pre-
parado por S. Bernardo, que resultou na condenação
de Abelardo pelo Sínodo de Sens, em 1140; e ninguém
mesmo sabe se Suger ao menos chegou a abrir um
daqueles livros nos quais o Abade de Clairvaux detec-
tara puro paganismo, temperado com as heresias com-
binadas de Ario, Nestório e Pelágio.
O que Suger leu, entretanto, foram os escritos
atribuídos àquele mesmo homem cuja personalidade
semilendária causara o atrito entre Abelardo e S. De-
nis. Esse Dionísio, o Areopagita, de quem nada se
sabe a não ser que "se apegou a S. Paulo e teve fé",
fora identificado, não só com o verdadeiro S. Denis,
Apóstolo dos Gauleses, mas também com um autor
teológico dos mais importantes - um sírio anônimo de
cerca de 500 - cujas obras haviam por isso se tornado
parte do patrimônio da Abadia e eram tão reveren-
ciadas quanto a bandeira de Le Vexin e as relíquias
dos Santos Mártires. Um manuscrito dos textos gre-
gos, obtidos por Luís, o Pio, do imperador bizantino
Miguel, o Gago, fora imediatamente depositado na
Abadia de S. Denis; após uma primeira e não muito
bem sucedida tentativa,esses manuscritos foram ma-
gistralmente traduzidos e comentados por João Escoto,
o estimado hóspede de Carlos, o Calvo; e foi nessas
traduções e comentários que Suger descobriu - fato
algo irônico, em vista do destino de Abelardo - não
apenas sua mais poderosa arma contra S. Bernardo,
mas também uma justificação filosófica para toda sua
atitude com respeito à vida e à arte.

169
Fundindo as doutrinas de Plotino e, mais preci-
samente, de Proclo com as crenças e dogmas do Cris-
tianismo, Dionísio, o Pseudo-Areopagita - cuja "teo-
logia negativa", definindo o Ser Superessencial como
escuridão eterna e silêncio eterno, identificando desse
modo conhecimento total com ignorância total, só nos
interessa aqui na medida do interesse de Suger _
combinava a convicção neoplatônica da unidade fun-
damental e vitalidade luminosa do mundo com os
dogmas cristãos do Deus trino e uno, do pecado origi-
nal e da redenção. Segundo o Pseudo-Areopagita, o
univ~rs~ é criado,. animado e unificado pela perpétua
continuidade daquilo que Plotino chamou de "o Uno"
a Bíblia de "Senhor" e que ele chama de "Luz superes-
sencial" ou mesmo "o Sol invisível" - sendo Deus
Pai designado como "o Pai das luzes" (Pater lumi-
num), e Cristo (numa alusão a João 3:19 e 8:12)
como "primeira radiância" ( q,wToóoula, claritas)
que "revelou o Pai ao mundo" (Patrem cIarificavit
mundo"). Há uma distância imensa entre a mais
alta, puramente inteligível, esfera de existência e a
mais baixa, quase totalmente material (quase porque
nem sequer se pode dizer que exista a matéria pura,
sem forma); mas não há uma brecha intransponível
entre as duas. Existe uma hierarquia mas não
uma dicotomia. Pois mesmo as coisas mais inferiores
participam, de algum modo, da essência de Deus ~
humanamente falando, das qualidades de bondade, ver-
dade e beleza. Portanto, o processo pelo qual as ema-
nações da Luz Divina descem até quase se afogarem
na matéria, rompendo-se no que parece ser uma con-
fusão sem sentido de grosseiros corpos materiais, pode
sempre ser invertido num ascenso da poluição e multi-
plicidade para a pureza e unidade; por conseguinte, o
homem, anima immortalis corpore utens, não precisa
envergonhar-se pelo fato de depender de sua percepção
sensorial e imaginação controlada pelos sentidos. Em
lugar de dar as costas ao mundo físico, pode alimentar
a esperança de transcendê-Io absorvendo-o.
Nossa mente, diz o Pseudo-Areopagita no come-
ço mesmo de sua obra principal, De Caelesti Hierarchia
(e conseqüentemente João Escoto bem no início de
seus comentários), só pode elevar-se até aquilo que

170
não é material sob a "orientação manual" do que é
material (materiali manuductione). Até para os pro-
fetas a Divindade e as virtudes celestiais só podiam apa-
recer em alguma forma visível. Mas isso é possível
porque todas as coisas visíveis são "luzes materiais"
que espelham as "inteligíveis" e, finalmente, a vera lux
da própria Divindade: "Toda criatura, visível ou in-
visível, é uma luz cuja existência se deve ao Pai das
luzes. .. Para mim, esta pedra ou aquele pedaço de
madeira é uma luz. . . Pois percebo que é bom e
bonito; que existe segundo suas próprias regras de
proporção; que difere em gênero e espécie dos outros
gêneros e espécies; que é definido por seu número, em
virtude do qual é "uma" coisa; que não transgride sua
ordem; que procura seu lugar de acordo com sua gra-
vidade específica. Ao perceber tais coisas e out.ras
similares nesta pedra, elas se tornam luzes para mim,
ou seja, elas me iluminam (me illuminant). Pois co-
meço a pensar por que a pedra foi investida de tais
propriedades ... ; e logo, sob o domínio da razão, sou
levado através de todas as coisas até a causa de todas
as coisas, que as dota de lugar e ordem, de número,
espécie e gênero, de bondade, beleza e essência, e de
todos os outros dons e qualidades".
Assim, todo o universo material torna-se uma
grande "luz" composta de milhares de outras menores,
como milhares de lanterninhas ( ... "universalis hujus
mundi fabrica maximum lumem fit, ex multis partibus
veluti ex lucernis compactum"); cada coisa perceptí-
vel" feita pelo homem ou natural, torna-se um símbolo
do que não é perceptível, um degrau na estrada do
Céu· a mente humana, abandonando-se à "harmonia
e radiância" (bene compactio et claritas), que é o
critério de beleza terrestre, é então "guiada para cima",
em direção à causa transcendente dessa "harmonia e
radiância" que é Deus.
Essa ascensão do mundo material para o imate-
rial é o que o Pseudo-Areopagita e João Escoto des-
crevem - em contraste com o costumeiro significado
teológico desse termo - como a "abordagem anagó-
gica" (anagogicus mos, traduzido literalmente: "o
método que leva para cima"); e isso era o que Suger
professava como teólogo, proclamava como poeta, e

171
praticava como patrono das artes e organizador de es-
petáculos litúrgicos. Uma vitrina mostrando temas de
caráter mais alegórico que tipológico (e.g., Os Profetas
Carregando Trigo para um Moinho Tocado por São
Paulo, ou A Arca da Aliança, Encimada por uma Cruz)
"nos insta a ir do material para o imaterial". As doze
colunas que suportam as altas abóbadas do novo chevet
"representam o número dos Doze Apóstolos", enquanto
que as colunas da galeria, também doze, "significam
os Profetas [menores]". E a cerimônia de consagração
do novo nártex foi cuidadosamente planejada para
simbolizar a idéia da Santíssima Trindade: havia uma
"gloriosa procissão de três homens" (um arcebispo e
dois bispos) que executava três movimentos distintos,
deixando o edifício por uma porta única, passando em
frente dos três portais principais e, em "terceiro lugar",
penetrando de novo na igreja por outra porta única.
Esses exemplos podem ser interpretados como
simbolismo medieval normal sem conotações "dionisía-
cas" específicas. Mas, a justamente famosa passagem
em que Suger relata sua experiência ao contemplar as
pedras preciosas que brilhavam no altar principal e em
seus ornamentos, a "Cruz de Santo Elias" e o Escrinio
de Carlos Magno, está cheia de reminiscências diretas:
"Quando - extasiado pela beleza da Casa de Deus -
o encanto das pedras multicoloridas afastou-me dos
cuidados externos, e a meditação valiosa induziu-me
a refletir, transferindo aquilo que é material para o
imaterial, pela diversidade das virtudes sagradas: en-
tão, parece que eu me vejo habitando, por assim dizer,
uma estranha região do universo, que nem existe total-
mente na alma da Terra, nem na pureza do Céu; e que,
pela graça de Deus, posso ser transportado desse mun-
do inferior para o superior de um modo anagógico".
Aqui, Suger descreve, num retrato vivo, o estado quase
de transe que é possível induzir pela contemplação
de objetos brilhantes como bolas de cristal e pedras
preciosas. Mas ele o descreve, não como uma experi-
ência psicológica mas religiosa, e sua descrição é feita,
principalmente, com as palavras de João Escoto. O
termo anagogicus mos, explicado como a transição do
mundo "inferior" para o "superior", é uma citação li-
teral assim como a frase de materialibus ad immateria-

172
lia transierendo; e a "diversidade das sagradas virtu-
des", que se revelam nas propriedades diversas das
gemas preciosas, nos lembram as "virtudes ceIestiais"
que aparecem aos Profetas "numa forma visível" e a
"iluminação" espiritual a ser derivada de todo objeto
físico. .
Porém, mesmo esse esplêndido exemplo de prosa
nada é em comparação à orgia de metafísica neoplatô-
nica a que Suger se entrega em algumas de suas poesias.
Gostava imensamente de gravar tudo o que fora reali-
zado sob a sua administração, desde as partes do
próprio edifício até os vitrais, altares e vasos, com o
que chamava de versiculi: hexâmetros ou parelhas ele-
gíacas, nem sempre muito clássicos na métrica mas
cheios de conceitos originais, às vezes muito engenho-
sos, beirando mesmo, em certas ocasiões, o sublime. E,
quando suas aspirações eram as mais elevadas, recor-
ria, não apenas à linguagem ainda neoplatônica dos
tituli dos mosaicos dos primórdios do Cristianismo,
mas também à fraseologia de João Escoto:
Pars nova posterior dum jugitur anteriori,
Aula micat medio c1arificata suo.
Claret enim c1aris quod c1are concopulatur,
Et quod perfundit lux nova, c1aret opus
Nobile ... *

Interpretada literalmente, essa inscrição, comemo-


rativa da consagração do novo chevet e descrevendo
seu efeito sob o resto da igreja, uma vez concluída a
reconstrução da "parte central", parece parafrasear
uma experiência puramente "estética": o novo e trans-
parente coro, que substituíra a velha e opaca abside
carolíngia, seria acompanhado por uma nave igual-
mente "clara", e todo o edifício seria penetrado por
uma luz mais brilhante que antigamente. Mas as pa-
lavras são deliberadamente escolhidas de modo a se-
rem inteligíveis em dois níveis diferentes de significado.
A fórmula lux nova faz sentido perfeito com referência
à melhoria das condições reais de iluminação trazidas
pela "nova" arquitetura; mas, ao mesmo tempo, lem-
bra a luz do Novo Testamento em oposição à escuridão
• Logo que a parte detrás é juntada. à parte da. frente(
A Igreja brilha com sua parte central claríftcada. / P<.>IS
claro
é aquilo que claramente se une com o claro / E claro e o novo
edifício invadido pela nova luz. (N. da T.)

173
ou cegueira das leis judaicas. E o jogo Insistente com
palavras como clarere, clarus, clarificare, que quase
hipnotizam a mente na busca de uma significação ocul-
ta por trás de suas implicações puramente perceptivas,
revela-se não menos significativa do ponto de vista me-
tafísico, se nos lembrarmos que João Escoto, numa ad-
mirá.vel discussão sobre os princípios que se propunha
seguir na sua tradução, havia explicitamente escolhido
a palavra claritas como a mais adequada transposição
d?s numerosas expressões gregas que o Pseudo-Areopa-
gíta usa para denotar a radiância e esplendor que ema-
nam do "Pai das luzes". ,
Noutro poema Suger explica as portas do portal
central de oeste que, brilhando com relevos de bronze
dourado, exibiam a "Paixão" e a "Ressurreição ou
Ascensão" de Cristo. N a realidade, esses versos cons-
tituem uma declaração condensada de toda a teoria da
iluminação "anagógica":
Portarum quisquis attollere quaeris bonorem,
Aurum nec sumptus, operis mirare laborem.
Nobile c1aret opus, sed opus quod nobile claret
Clarificet mentes, ut: eant per lumina vera
Ad verum lumen, ubi Christus janua vera.
Quale sit intus in bis determinat aurea porta:
Mens bebes ad verum per materialia surgit,
Et demersa prius hac visa luce resurgit. *

Esse poema enuncia explicitamente o que o outro


apenas implica: a "claridade" física da obra de arte
"clarificará" a mente, dos espectadores por iluminação
espiritual. Incapaz de alcançar a verdade sem o auxí-
lio do que é material, a alma será guiada pelas "ver-
dadeiras", embora meramente perceptíveis, "luzes"
(lumina vera) dos relevos resplendentes, para a "Ver-
dadeira Luz", que é Cristo (verum Zumen); e será,
assim, "elevada", ou melhor, "ressurrecta" (surgir, re-
surgit) da sujeição terrestre, como Cristo é visto ele-
vando-se na Ressurrectio vel Ascensio retratada nas
• Quem quer que sejais, se pretendeis exaltar a glória des-
sas portas.! Maravilhai-vos não com o ouro ou o custo, mas
com a, habilidade do trabalho'; Clara é a obra nobre; mas,
sendo claramente nobre, a obra/ Deveria clarificar as mentes
a fim de poderem viajar através das verdadeiras luzes/ Para
a Verdadeira Luz onde Cristo é a verdadeira porta'; De que
maneira se entra nesse mundo, a porta de ouro determina:/
A ,mente embotada eleva-se à verdade através do que é ma-
teríal/ Vendo essa luz, ressurge de sua antiga submersão.

174
portas. Suger não se aventuraria a designar os relevos
como lu mina se não lhe fossem familiares aquelas
passagens que procuram demonstrar que toda coisa
criada é "uma luz para mim"; sua "Mens hebes ad
verum per materialia surgit" nada mais é que uma
condensação métrica da " ... impossibile est nostro ani-
mo ad immaterialem ascendere caelestium hierarchia-
rum et imitationem et contemplationem nisi ea, quae
secundum ipsum est, materiali manuductione utatur"
(" ... é impossível para nossa mente elevar-se à imita-
ção e contemplação das hierarquias celestes sem se ba-
sear no auxílio daquela orientação material que lhe é
proporcional") de João Escoto. E é de frases como:
"Materialia lumina, sive quae naturaliter in caelestibus
spatiis ordinata sunt, sive quae in terris humano artificio
'efficiuntur, imagines sunt intelligibilium luminum, su-
per omnia ipsius verae lucis" ("As luzes materiais,
tanto aquelas dispostas pela natureza no espaço dos
céus quanto as produzidas na terra pelo engenho hu-
mano, são imagens das luzes inteligíveis e, sobretudo,
da Verdadeira Luz") que derivam estas linhas: "
ut eant per lumina vera/ Ad verum lumen ... "
Pode-se imaginar o enlevado entusiasmo com que
Suger absorveu essas doutrinas neoplatônicas. Ao
aceitar aquilo que tomou pelo ipse dixits de S. Denis,
não apenas homenageou o santo patrono de sua aba-
dia, como também encontrou uma confirmação das
mais autorizadas para suas próprias crenças e pro-
pensões inatas. O próprio S. Denis parecia sancionar
a convicção de Suger (que encontrou sua expressão
prática no papel de mediaior et pacis vinculum) de
que "o admirável poder de uma razão única e supre-
ma iguala a disparidade entre as coisas humanas e
divinas"; e que "aquilo que parece conflitar mutua-
mente, pela inferioridade de origem e contrariedade de
natureza, é unido pela simples, maravilhosa concor-
dância de uma harmonia superior, bem temperada".
O próprio S. Denis parecia justificar a parcialidade de
Suger para com as imagens, e sua insaciável paixão
por tudo que fosse resplandecentemente belo, por
ouro e esmalte, por cristal e mosaico, pelas pérolas
e pedras preciosas de todas as descrições, pela sardô-
nica na qual "a nuança vermelha do sárdio, variando

175
suas propriedades, tão agudamente compete com o pre-
to do ônix que uma propriedade parece tentar trans-
passar a outra", e pelos vitrais desenhados "pelas mãos
refinadas de muitos mestres de diferentes regiões".
Os panegiristas contemporâneos de S. Bernardo
nos asseguram - e seus biógrafos modernos parecem
concordar - que era simplesmente cego para o mundo
visível e suas belezas. Dizem que passou um ano
inteiro no noviciado de Citeaux sem notar se o teto
do dormitório era liso ou arredondado, ou se a capela
recebia luz de uma janela ou de três; e contam que
cavalgou um dia inteiro pelas margens do lago de Ge-
nebra sem lançar um só olhar para a paisagem. En-
tretanto, não foi um homem cego e insensível que
escreveu a Apologia ad Willelmum: "E além do mais,
nos claustros, sob os olhos dos irmãos entretidos em
ler, que tem a fazer ali essa surpreendente deformada
formosura e formosa deformação? Esses macacos su-
jos? Esses leões ferozes? Esses tigres pintados? Es-
ses guerreiros em luta? Esses caçadores tocando suas
trompas? Esses seres semi-humanos? Vêem-se aqui
vários corpos sob uma cabeça; lá muitas cabeças sobre
um só corpo. Aqui um quadrúpede com o rabo de
uma serpente; ali um peixe com a cabeça de um qua-
drúpede. Ali um animal sugere um cavalo na frente
e metade de um bode atrás; aqui uma besta com chi-
fres exibe a traseira de um cavalo. Em suma, de todas
as partes aparece tão rica e surpreendente variedade
de formas que é mais agradável ler os mármores que
os manuscritos, e passar um dia inteiro a admirar
essas coisas, uma a uma, do que meditar sobre as Di-
vinas Leis".
Um historiador de arte moderno agradeceria de
joelhos a Deus pela graça de compor uma descrição
tão exata, gráfica e verdadeiramente evocativa de um
conjunto decorativo "à maneira Cluniacense"; só a fra-
se deformis formositas ac formosa deiormitas nos diz
mais sobre o espírito da escultura românica do que
muitas páginas de análise estilística. Mas, além disso,
a passagem inteira revela, principalmente na sua notá-
vel conclusão, que S. Bernardo desaprovava a arte,
não porque não percebesse seus encantos, mas justa-
mente porque os sentia o suficiente para perceber seu

176
perigo. Baniu a arte, como Platão (só que este o fez
"pesarosamente"), porque ela pertencia ao lado errado
de um mundo que só compreendia como um_a revolta
sem fim do temporal contra o eterno, da razao huma-
na contra a fé dos sentidos contra o espírito. Suger
teve a boa sorte de descobrir, nas próprias palavras
do três vezes abençoado S. Denis, uma filosofia cristã
que lhe permitiu saudar a beleza material co~o um
meio para a beatitude espiritual, em vez ?e fugir dela
como de uma tentação; e conceber o umverso moral
assim como o físico, não como um monocro~o em
branco e preto, mas como uma harmonia multicor.
Não foi só contra o puritanismo cisterciense que
Suger precisou se defender ~m seus esc~itos. Parte ~a
oposição, ao que parece, vinha do meio de seus pro-
prios monges.
Em primeiro lugar, havia os fastidiosos que obje-
tavam quanto ao gosto de Suger ou, se "gosto" f~r
definido como um senso de beleza temperado com reti-
cência, falta de gosto. Tanto na qualidade de escritor
quanto na de patrono das artes: s~a meta ~ra a suntuo-
sidade e não o refinamento sobno. Assim como seu
ouvido se deliciava num tipo de eufuísmo medieval,
complicado mas nem sempre gramatical, cheio de jo-
gos de palavras, citações, ~etáfora~ e al~sõe~, e tro,ve-
jante de oratória (o quas~ intraduzível pr~m.eIroc~pI1~-
10 do De Consecratione e como um prelúdio de orgao
enchendo o recinto de sons magníficos antes da apa-
rição de um tema discerníve.l), t~~bém seus olhos
pediam o que seus amigos ma~s sofisticados, ap~rente-
A

mente consideravam ostentaçao e extravagancia. Es-


cuta-se o eco de um leve e inútil protesto quando
Suger se refere ao mosaico incongruamente combi~~do
com a escultura já pronta de um portal protogótico
como algo que fora ali colocado "por ordem sua e
contrariando o costume moderno". Quando exorta
o admirador dos relevos de sua porta, "Maravilhai-vos
não com o ouro ou o custo, mas com a habilidade do
trabalho", parece fazer uma afável alusão ~o~ que não
paravam de lembrá-Io de que, segundo OVldIO, a per-
feição da "forma" tem valor mais alto que o P!eço
dos materiais. Suger dirige-se aos mesmos críncos,
_ e aqui bem claramente, num espírito de ironia ami-

177
ga - ao admitir que o novo fundo dourado do altar
principal fora de fato algo extravagante (principalmen-
te, pretende ele, por ter sido executado por estrangei-
ros) mas se apressa a acrescentar que seus relevos -
assim como o frontal. do novo "Autel des Reliques"
- eram admiráveis por seu artesanato como por seu
baixo custo; de modo que "certas pessoas" poderiam
estar em condições de aplicar a citação que lhes era
favorita; Materiam superabat opus.
Em segundo lugar, havia uma insatisfação mais
séria de parte daqueles que objetavam contra os em-
preendimentos de Suger em nome das tradições sagra-
das. A igreja carolíngia de S. Denis era tida, até bem
pouco tempo, como tendo sido construída pelo fun-
dador original da Abadia, Rei Dagoberto; segundo a
lenda, fora consagrada pelo próprio Cristo; e pesquisas
modernas confirmaram a tradição de que a antiga es-
trutura nunca fora tocada até a ascensão de Suger ao
poder. Mas, quando Suger escreveu seu relatório sobre
"O que havia sido feito sob sua administração" tinha
posto abaixo a antiga abside e a velha fachada de oeste
(inclusive o pórtico que protegia o túmulo de Pepino,
o Breve), reconstruído o novo nártex e o novo chevet,
e acaba de iniciar reformas que eliminariam as partes
remanescentes da antiga basílica: a nave. Era como
se o presidente dos Estados Unidos mandasse Frank
Lloyd Wright reconstruir a Casa Branca.
Ao justificar essa iniciativa destrutivamente cria-
tiva que determinaria o rumo da arquitetura ocidental
por mais de um século - Suger bate, incansavelmente,
em quatro pontos. Primeiro, tudo o que fizera, fizera-o
depois de longas deliberações com os irmãos "cujos
corações ardiam por Jesus enquanto Este lhes falava",
e muitos o haviam solicitado até explicitamente. Se-
gundo, a obra obtivera manifestadamente graça aos
olhos de Deus e dos Santos Mártires que revelaram
miraculosamente a existência de material adequado
para construção lá onde não se julgava que existisse
nada do gênero, que protegeram os arcos interminados
de uma terrível tempestade e promoveram a obra de
muitas outras maneiras, de modo que o chevet pode
ser construído no espaço incrivelmente curto '-- e sim-
bolicamente significativo - de três anos e três meses.

178
Terceiro, tomara todo cuidado possível com as velhas
pedras sagradas, "como se fossem relíquias". Quarto,
a reconstrução da igreja era uma necessidade indiscu-
tível devido ao seu estado de ruína e, mais ainda, de-
vido à sua dimensão relativamente exígua que, aliado
a um número insuficiente de saídas, ocasionava desor-
dens desenfreadas e perigosas nos dias de festas; Suger
livre de "qualquer desejo de uma glória oca" e com-
pletamente desinteressado de "qualquer recompensa de
louvor humano ou compensação transitória" nunca
"se atreveria a começar tal obra, nem mesmo nela
pensar, se tão grande, necessária, útil e honrosa oca-
sião assim não o exigisse".
Todas essas afirmações são inteiramente corretas
_ até onde vão. Não há dúvida de que Suger discu-
tiu seus planos com aqueles irmãos que julgou inte-
ressados e cooperativos e que tomou o cuidado de
submeter suas decisões à aprovação formal do capí-
tulo geral. Mas a falta de unanimidade transparece,
por vezes, até em seus próprios escritos (é o que
acontece quando nos conta como, depois de comple-
tada a construção do nártex e do chevet, "algumas
pessoas" o persuadiram a acabar primeiro as torres
antes de remodelar a nave, mas então uma "inspiração .
Divina" o instara a reverter o processo); e a aprova-
ção formal do capítulo geral parece que foi obtida
ex post facto e não previamente (como aconteceu
. quando a construção e consagração do novo nártex,
e o lançamento das fundações para o novo chevet fo-
ram solenemente registradas numa Ordinatio promul-
gada a posteriori).
Não há dúvida de que os trabalhos transcorriam
com velocidade e tranqüilidade incomuns. Mas, até
que ponto a descoberta de pedra e madeira em luga-
res insuspeitados e a sobrevivência dos "arcos isolados
e recém-acabados a oscilar soltos em pleno ar" reque-
riam a intercessão pessoal dos Santos Mártires além
da própria ingenuidade de Suger e a perícia de seus
trabalhadores é uma questão de conjetura.
Não há dúvida de que Suger reconstruiu a basí-
Iica aos poucos, salvando, assim, as "pedras sagradas",
ao menos provisoriamente.

179
Mas o fato é que no fim nada mais restava delas,
a não ser as subestruturas remodeladas do novo chevet:
seus próprios encomiastas louvavam-no por ter refeito
a igreja "de alto abaixo".
Não há dúvida de que a velha edificação estava
gasta pelo tempo e não podia mais acomodar sem gra-
ves inconvenientes as multidões atraídas pela feira e
pelas relíquias. Mas, não se pode evitar a sensação
de que Suger é um tanto superenfático ao descrever
tais atribulações, tanto mais que as estórias apavorantes
de mulheres piedosas que só conseguiam chegar ao
altar "passando sobre as cabeças dos homens, como
se fosse um assoalho" ou que tinham de ser carregadas
para dentro do claustro "quase mortas", são contadas,
alternadamente, para provar a necessidade de um novo
nártex e a necessidade de um novo chevet. Uma coisa
é certa: o principal incentivo para a atividade artís-
tica de Suger - e de seus escritos sobre ela - deve
ser procurado dentro dele mesmo.

VI

Não há como negar, a despeito (ou, melhor, por


causa) de seus persistentes protestos contrários, que
Suger era animado por uma vontade apaixonada de
autoperpetuação. Para dizê-I o de maneira menos
acadêmica: era imensamente vaidoso. Pedia a honra
de um aniversário - não sem uma séria admoestação
aos futuros Despenseiros que não se zangassem com a
despesa adicional de comida e bebida e lembrassem
que fora ele, Suger, que aumentara a verba do depar-
tamento deles - colocando-se assim em pé de igual-
dade com o Rei Dagoberto, Carlos, o Calvo e Luís, o
Gordo, as únicas pessoas que antes recebiam tal home-
nagem. Agradecia francamente a Deus por haver
reservado a tarefa de reconstruir a igreja à "sua vida
e obras" (ou, como diz em outra passagem: "a um
homem tão pequeno que foi o sucessor da nobreza de
tão grandes reis e abades"). Pelo menos treze dos
versiculi com os quais cobriu todo espaço vago nas
paredes e nos objetos litúrgicos, mencionam seu nome;
e numerosos retratos seus como doador foram estrate-
gicamente dispostos ao longo do eixo principal da ba-

180
sÍlica: dois na entrada principal (um no tímpano e
o outro sobre as portas), um terceiro ao pé da Grande
Cruz que comandava o arco de abertura do novo coro
superior e podia ser visto de quase todos os pontos
da igreja, e um ou dois mais nas janelas que adorna-
vam a capela central da galeria. Ao lermos as enor-
mes letras douradas da inscrição de Suger que enci-
ma o portal de oeste ("Que não seja obscurecida!"),
ao vê-lo constantemente preocupado com à memória
das gerações futuras e alarmado com a reflexão de
que é o "Esquecimento o rival ciumento da Verdade",
ao ouvi-lo falar de si mesmo como o "chefe" (dux)
sob cuja direção a igreja fora aumentada e embeleza-
da, pensamos escutar algum testemunho de Jacob
Burckhardt quanto à "forma moderna da glória" e não
as palavras de um abade do século XII.
No entanto, há uma diferença fundamental entre
a sede de fama do homem da Renascença e a vaidade
colossal, mas, em certo sentido, profundamente humil-
de, de Suger. O grande homem da Renascença afirma-
va sua personalidade centripetamente, por assim dizer;
engolia o mundo que o rodeava até que todo o seu
meio ambiente fosse absorvido por seu próprio eu. Su-
ger afirmava sua personalidade centrifugamente: pro-
jetava seu ego no mundo que o rodeava até que todo
este eu fosse absorvido por seu meio ambiente.
Para compreender esse fenômeno psicológico,
cumpre lembrar duas coisas acerca de Suger que o
colocam novamente em posição diametralmente con-
trária à do converso de alta linhagem, S. Bernardo.
Primeiro, Suger entrou no! mosteiro não como um
noviço que se dedicasse à vida monástica por livre e
espontânea vontade, ou, pelo menos, com a. compre-
ensão de uma inteligência relativamente madura, mas
como um oblata dedicado a S. Denis com a idade de
nove ou dez anos. Segundo, Suger, colega de escola
de jovens da nobreza e príncipes de sangue, nascera -
ninguém sabe onde - de pais muito pobres e de baixa
extração.
Em tais circunstâncias, muitos meninos teriam se
tornado pessoas tímidas ou amargas. A extraordiná-
ria vitalidade do futuro abade recorreu ao que se chama
de supercompensação. Em vez de se apegar ansiosa-

181
mente a seus parentes ou romper drasticamente com
eles, Suger manteve-os a uma distância cortês e, mais
tarde, fê-los participarem, em pequena escala, da vida
da Abadia 1. Em lugar de esconder seu nascimento
humilde ou ressentir-se dele, Suger quase se glorifi-
cava com o fato - embora só para glorificar tanto
mais sua adoção por S. Denis. "Pois quem sou eu e
qual é a casa de meu pai?", exclama com o jovem
Davi. E suas obras literárias, como seus documentos
oficiais, estão cheios de frases como estas: "Eu, insu-
ficiente seja com respeito à família seja ao conheci-
mento"; ou: "Eu, que cheguei à administração dessa
igreja contra os prospectos de mérito, caráter e famí-
lia" ou (nas palavras de Hannah, mãe de Samuel):
"Eu, o mendigo, que a mão forte de Deus levantou
do estrume". Mas a mão forte de Deus operara atra-
vés da Abadia de S. Denis. Ao tirá-Ia de seus pais
naturais, Ele dera a Suger uma outra "mãe" - uma
expressão freqüente em seus escritos - que o trans-
formara no que ele era. Fora a Abadia de S. Denis
que o "amara e exaltara"; que "mui ternamente o
adotara desde o leite matemo até a velhice"; que "com
afeição maternal o amamentara quando criança, ampa-
rado quando jovem trôpego, fortalecido sobremanei-
ra quando homem maduro e. colocado, solenemente,
entre os príncipes da Igreja e do reino".
Assim, Suger, considerando-se o filho adotivo de
S. Denis, passou a empregar na Abadia todo o acúmu-
10 de energia, inteligência e ambição que a natureza
lhe outorgara. Fundindo, completamente, suas aspira-
ções pessoais com os interesses da "mãe Igreja", po-
de-se dizer que gratificou seu ego renunciando à iden-
tidade própria: expandiu-se até tornar-se idêntico à
Abadia. Ao espalhar suas inscrições e retratos por
1. os nomes do pai de Suger, Helinandus, de um de seus
irmãos e uma cunhada, Radulphus e Emmelina, figuram no
obituário da Abadia. Outro irmão, Pedro, acompanhou Suger
numa viagem à Germânia em 1125. Um de seus sobrinhos,
Gerard, pagava à Abadia a soma anual de quinze shiUings,
cinco shillings de renda .e os outros por razões desconhecidas.
Outro sobrinho, João, morreu durante uma missão junto ao Papa
Eugênio IH, que escreveu a Suger uma carta de condolências
muito cordial. Um terceiro, Simon, assistiu a uma ordenação de
seu tio em 1148,e envolveu-se, mais: tarde, com o sucessor deste
último, Odon de Deuil (que era um protegido de S. Bernardo
e via com maus olhos tudo que lembrasse Suger). Nenhuma
dessas circunstâncias deixa pressupor favoritismo ilegítimo.

182
toda a igreja, tomou posse dela, mas, ao ~l':.sm? tempo,
despiu-se, até certo ponto, de sua exístência como
indivíduo privado. Diz-se que, quando Pedro,. o Ve-
nerável abade de Cluny, viu a pequena e estreita cela
de Sug~r, exclamou com um suspiro: "Esse home~l
faz com que todos nós nos envergonhemos; constrói,
não para si, como nós fazemos, mas apenas para
Deus". Porém, para Suger, não havia diferença entre
um e outro. Não precisava de muito espaço e luxo
porque o espaço e luxo da basílica er~m t.ão seus co~o
o modesto conforto de sua cela; a Igreja da Abadia
pertencia-lhe porque ele lhe pertencia.
E esse processo de auto-afirmação, através da
auto-obliteração, não terminava nas fro~tei~as .d.a Aba-
dia de S, Denis. Para Suger, S. Denis significava a
França, e assim desenvolveu um ~acionali~~o violento
e quase místico, aparentemente tao anacromco quanto
sua vanglória. Ele, que todos os autores de seu tem-
po louvavam como homem de letras, à vontade c<?m
todos os assuntos, alguém capaz de escrever de maneira
arrojada, brilhante e "quase tão depr~s~a quanto po-
dia falar", nunca se sentiu levado a utilizar esse dom,
a não ser em honra da Abadia da qual era o chefe, e
dos dois reis franceses a quem servira - segundo seus
eulogistas, a quem governara. Em a Vida ~e Luís, o
Gordo encontramos sentimentos que prenunCIam a for-
ma específica de patriotismo melhor caracterizada p~la
palavra francesa chauvinisme: Segund? Suger, os m-
gleses estão "por leis naturais e morais destinados a
serem sujeitos aos franceses, e não ao contrário"; e o
que pensava dos germânicos, que gostava de descrever
como "rangendo os dentes com fúria teutônica" , reve-
la-se no que se segue: "Atravessemos ousadamente
suas fronteiras para que, retirando-se, suportem com
impunidade o que arrogantemente presumiram contra
a França, senhora da Terra. Que sintam a recompensa
por sua afronta, não em nosso país, mas no seu que,
freqüentem ente conquistada, é vassalo dos francos,
pelo direito real dos francos".
No caso de Suger, esse impulso de crescer por
metempsicose, se assim se pode dizer, era ainda in-
tensificado por uma circunstância aparentemente irre-
levante que ele próprio não chega a mencionar (talvez

183
houvesse até deixado de ter consciência do fato) mas
que pareceu digno de nota a todos os seus admiradores:
era um homem de estatura inusualmente baixa. "Foi-
lhe dado um corpo curto e pequeno", diz Willelmus,
e maravilha-se como uma "compleição pequena e fra-
ca" (imbecille corpusculum) podia agüentar o esforço
de "mente tão viva e vigorosa". E um panegirista anô-
nimo escreve:
Espanto-me com tão imenso espírito em tal corpo,
E que tantas e tão grandes qualidades achem acomodação
nesse pequeno barco.
Mas por este homem a natureza quis provar
Que a virtude podê se esconder sob qualquer pele.

Um físico excepcionalmente pequeno parece in-


significante aos olhos da história mas, no entanto, tem
sido um fator essencial na determinação do caráter de
muitas figuras históricas inolvidadas. Mais do que
qualquer outro handicap pode converter-se numa van-
tagem se a vítima dessa desvantagem for capaz de
compensar sua inferioridade física com o que se pode
talvez chamar de "garra" e se conseguir romper as
barreiras psicológicas que a separam do grupo dos ho-
mens de estatura média com quem convive pela apti-
dão e vontade mais do que médias de identificar seus
interesses próprios com os deles. É essa combinação
de "garra" e vontade de associação a outrem (aliadas
muitas vezes a uma vaidade ingênua, inócua) que co-
loca esses "pequenos grandes homens" como Napoleão,
Mozart, Lucas van Leyden, Erasmo de Roterdã ou o
General Montgomery, numa classe à parte, dotando-os
de um fascínio e encanto especiais. As provas pare-
cem evidenciar que Suger possuía um pouco desse en-
canto peculiar e que a pequenina estatura era, assim
como a baixa extração, um incentivo para suas grandes
ambições e feitos. Um cônego regular de São Vítor
que trazia o curioso nome de Simon Chêvre d'Or (Si-
mon Capra Aurea), mostrou notável compreensão do
caráter de seu amigo morto, ao incluir no obituário
deste o seguinte dístico:
Corpore, gente brevis, gernina brevitate coactus,
In brevitate sua noluit esse brevis.
(Pequeno de corpo e família, constrito por uma pequenez dupla
Recusou-se, em sua pequenez, a ser um pequeno homem.)

184
~ divertido e, às vezes, quase patético, ver até
que ponto chegava o altruísta egoísmo ~e Suger quan-
do o prestígio e o esplendor de S. Denis estavam em
jogo. Como montou uma pequena e. ~stuta encena-
ção para provar a todo mundo a autenticidade ~e uIIl:as
relíquias doadas por Carlos, o Calvo: Co~o. induziu,
"por seu exemplo", os visitantes reais, pnncIpescos"e
episcopais da Abadia a doarem as pedras de seus aneis
para o embelezamento do novo frontal do altar (apa-
rentemente desprendendo-se de seu próprio anel à
vista de todos forçando-os a procederem do mesmo
modo). Corno os membros dessas ordens injudicio-
sas que não tinham como usar pérolas e gemas exceto
convertendo-as em dinheiro para esmolas,puseram-nas
à venda e, como ele, agradecendo a Deus este ':!eliz
milagre", deu-lhes quatrocentas libras pelo ~ote, em-
bora valessem muito mais". Como pressionava os
viajantes vindos do Orien~e até qu~ lhe assegurassem
que os tesouros de S, Denis sobr,epujavam os de Cons-
tantinopla; como tentava encobnr seu desapontam~nto
quando um visitante mais obtuso. ou ~enos amav:I
deixava de lhe proporcionar tal satJsfaççao; e como, fi-
nalmente se consolava com a citação de São Paulo:
"Que cada homem sobeje em seu próprio sentido",
que ele interpreta (ou finge interpretar) como: "Que
cada homem se julgue rico".
Como um "mendigo erguido do monturo" Suger,
naturalmente não estava livre da arquifraqueza do
parvenu; esn~bismo. Espoja-~e ~~s ,nomes ~ }í~los dos
reis, príncipes, papas, altos dignitários ecleSI~StICOS
q~e
visitaram a Abadia e lhe demonstraram estima e afei-
ção pessoal. Olha com certa _condescendê~~ia os sim-
ples condes e nobres, para nao falar das tropas co-
muns de fidalgos e soldados", que se congregaram pa!a
a Grande Consagração de 11 de junho de 1144; e nao
é sem uma certa jactância que enumera, por duas
vezes, os nomes dos dezenove bispos e arcebispos ql~e
conseguira reunir nesse dia glorioso: se apen~s mais
um tivesse podido comparecer, cada um. d~s, v,mte.al-
tares novos seria consagrado por um dignitário diíe-
rente, - enquanto 9ue assi~, o bi~po de Meau~ l?re-
cisou oficiar em dOIS. Porem, mais uma vez, e Im-
possível traçar uma nítida linha divisória entre a auto-

185
sat~sfaç~o pessoal e o que se pode chamar de auto-
satIsfaça~ ínstitucional. Quando fala de si próprio,
Suger nao estabelece nenhuma diferença, inclusive
numa me~~~ ~,entença, entre o "eu" e o "nós"; por ve-
z~s usa o nos como um soberano o faria, mas, a maio-
na das v~7es, o ~a~n?,s t~r~os de um sentimento genuí-
n~~ente pluralístíco'': nos, a comunidade de S. De-
rus. Embora colhes~e um orgulho imenso com os pe-
quenos presentes partIculares que recebia, às vezes, da
r.ealeza, ofereCIa-os sempre mais tarde aos Santos Már-
tI.r~s; e sua dignidade abacial não o impedia de super-
visionar pessoalmente a compra de comida para as
grandes ocasiões ou de vasculhar arcas e armários à
procura de objets d'art * que ali pudessem estar esque-
cidos. '
Apesar de seus ares, Suger nunca perdeu o con-
t~cto com o "homem comum" que viera a conhecer
ta~ beI? nos. anos de Bemeval e Toury, e cujas ma-
neiras imortais de pensar e falar esboça, ocasional-
mente, em algumas poucas pinceladas magistrais. Po-
demos, q~ase, escutar os boiadeiros na pedreira, perto
de Pontoise, resmungando por "f.alta do que fazer" e
"os trabalhadores parados à volta, perdendo tempo"
quando parte do pessoal se dispersara devido a um
forte temporal. Quase podemos ver o sorriso encabu-
lado porém altivo dos lenhadores na Forêt de Ram-
bouillet quando. o gr~n~e Abade lhes perguntou algo
que lhes parecia estúpido. Algumas vigas excepcio-
nalmente longas eram necessárias para a talhadura da
nova ala oeste e não houve modo de achá-Ias na vizi-
nh~nça. "Mas, uma certa noite, de volta a casa, de-
pOISde celebrar ",asmatinas, comecei a pensar, na cama,
se eu mesmo nao deveria percorrer todas as florestas
por estas. ba~das. .. Resolvendo rapidamente as de-
~als obngaçoes e apressando-nos de manhã bem ce-
dinho, fomos com nossos carpinteiros e as medidas das
VIgas para uma floresta chamada Iveline. Depois de
atravessarmos nossa propriedade no Vale de Chevreuse
convocamos. .. os guardas de nossas próprias flores-
tas b:m como os que conheciam os outros bosques
e os mte~og~m~s, sob Juramento, se poderíamos en-
contrar ali, nao Importa com que sacrifício, madeiras
• Em francês, no original: objetos de arte. (N. da T.)

186
com aque1as medidas. Ouvindo isso, sorriram, ou me-
lhor, teriam rido de nós se ousassem; espantavam-se
que ignorássemos totalmente o fato de que não seria
possível achar algo dessa ordem em toda região ...
Mas, nós... começamos, com a coragem de nossa
fé, por assim dizer, a procurar pelas matas; e por volta
da primeira hora havíamos descoberto uma tora com
as medidas adequadas. Para que dizer mais? Pela
nona hora ou mais cedo, tínhamos, através dos mais
densos, profundos e espinhosos emaranhados das flo-
restas, marcado doze troncos (pois tantos eram os ne-
cessários) . . . "
Há algo atraente, até tocante, na imagem desse
homenzinho, mais próximo dos sessenta que dos cin-
qüenta, que não consegue dormir depois do serviço de
meia-noite, preocupado com suas vigas; no modo como'
lhe vem a idéia de que deveria providenciar ele mesmo
as coisas; como ele sai apressado, de manhã cedinho,
à frente de seus carpinteiros e com as medidas no
bolso; como ele se mete pelo mato com "a coragem
de sua fé" - e por fim obtém precisamente aquilo
que deseja. Entretanto, pondo de lado todo "interesse
humano", esse pequeno incidente nos dá, talvez, a res-
posta final à nossa pergunta inicial: Por que é que
Suger, em contraste com tantos outros patronos de
arte, sentiu-se compelido a registrar seus feitos no
papel?
Como já vimos, um dos motivos foi o desejo de
autojustificação, aguçado possivelmente pelo fato de
ele, ao contrário dos papas, príncipes e cardeais dos
séculos seguintes, ainda sentir uma espécie de respon-
sabilidade democrática por seu capítulo e ordem. O
segundo motivo foi, inquestionavelmente, sua vaidade
pessoal e, como a denominamos, institucionaI. Mas
ambos esses impulsos, por fortes que fossem, poderiam
deixar de articular-se não fosse a bem fundada con-
vicção de Suger de que seu papel fora totalmente di-
ferente daquele que, para citar a definição de "patro-
no" do Oxjord Dictionary, "favorece ou protege ou
digna-se a empregar uma pessoa, causa ou arte".
Um homem que conduz seus carpinteiros às flo-
restas em busca de vigas e escolhe, pessoalmente, as
árvores certas, um homem que cuida para que seu

187
novo chevet seja devidamente alinhado com a velha
nave por meio de "instrumentos matemáticos e georné-
trico~~', .está muito mais perto do arquiteto amador
eclesiástico do começo da Idade Média - e também
do cavalheiro arquiteto não-eclesiástico da' Améric~
colonial ---: ?o que dos grandes patronos dos períodos
do ~lto Gótico e da Renascença, que nomeariam um
arquiteto-chefa, examinariam seus projetos deixando
os detalhes técnicos a seu cargo. Devotando-se ele
próprio às sua~, empreitad~s artísticas "tanto de corpo
c~mo de alma P?de-se dizer que Suger as registrou,
nao tanto na qualidade de uma pessoa que "favorece
ou protege ou digna-se a empregar", mas sim na de
quem supervisiona ou dirige ou conduz. Cabe aos
outros decidir até que ponto ele foi responsável ou
co-responsável pelos próprios desenhos de suas estru-
turas. Mas, parece que bem pouco foi feito sem ao
menos sua participação ativa. Que selecionava e con-
vi?ava artífices individuais, que mandava pôr um mo-
saico .onde aparentemente ninguém queria pô-Io, e que
planejou a iconografia de suas janelas, crucifixos e
paineis dos altares, é atestado por suas próprias pa-
lavras; mas também uma idéia como a de transformar
um. vaso rom~no de pórfiro numa águia sugere muito
mais um capncho do Abade que uma invenção de um
ourives profissional.
. Ser~ que Suger percebeu .que, ao concentrar
artI~tas. d~ todas as partes do reino", inaugurava, na
enta~ relatIvam~nte deserta Ile-de-France, aquela gran-
de síntese seletiva de todos os estilos regionais fran-
ceses qu~ chamamos qe gótico? Será que suspeitou
que sua Janela em rosacea da fachada de oeste _ ao
que saibamos, a primeira aparição desse motivo neste
lugar - era uma das grandes inovações da história
da arquitetura, destinada a desafiar o engenho de inú-
mer~s mestre,s até Bernard de Soissons e Hugues Li-
be~gIer? .Sera que sabia, ou pressentia, que seu en-
tusíasmo imoderado pela leve metafísica do Pseudo-
Areopagita .e de J~ão Escoto, o situava na vanguarda
de um movimento intelectual que resultaria nas teorias
protocientíficas de Robert Grosseteste e Roger Bacon,
de. um lad.o, e, de outro, num platonismo cristão que
vai de Guilherme de Auvergne, Henrique de Ghent e

188
Ulric de Estrasburgo até Marsílío Ficino, e Pico deIla
Mirandola? Estas perguntas também terão de ficar sem
resposta. Entretanto, é certo que Suger possuía aguda
consciência da diferença existente entre suas estruturas
"modernas" (opus novum, ou mesmo, modernum) e a
antiga basílica earolíngia (opus antiquum). Enquanto
continuaram a subsistir partes da antiga construção,
percebeu, claramente, o problema de harmonizar
(adaptare et coaequare) a obra "moderna" com a
"antiga". E tinha plena consciência das qualidades es-
téticas distintivas do novo estilo. Sentiu, e nos faz
sentir, sua amplitude espacial quando fala de seu novo
chevet como sendo "enobrecido pela beleza de com-
primento e largura"; seu sublime verticalismo quando
descreve a nave central desse chevet como sendo "re-
pentinamente lançada para o alto" pelas colunas de
apoio; sua transparência luminosa quando pinta sua
igreja como "transpassada pela maravilhosa e ininter-
rupta luz das mais radiosas janelas".
Já foi dito que Suger é mais difícil de visualizar
como indivíduo do que os grandes cardeais do século
XVII de que foi o antepassado históricó. No entanto,
parece emergir das páginas da história como uma fi-
gura surpreendentemente viva e surpreendentemente
francesa: um patriota destemido e um bom dono-de-ca-
sa; um pouco retórico e bastante enamorado da gran-
deza, no entanto totalmente realista nos problemas prá-
ticos e equilibrados em seus hábitos pessoais; trabalha-
dor e companheiro, cheio de bom humor e bom sens * ,
vaidoso, engenhoso e irreprimivelmente vivaz.
Num século extraordinariamente produtivo em
matéria de santos e heróis, Suger se destaca por ser
humano, e morreu a morte de um homem de bem
depois de uma vida bem vivida. Na primavera de
1150 caiu doente com malária, e já antes do Natal
não havia mais esperanças. À maneira efusiva e algo
teatral de sua época, pediu para ser levado para o con-
vento e chorando implorou aos monges que o perdoas-
sem em tudo o que pudesse ter falhado para com a co-
munidade. Mas, também pediu a Deus que o poupasse
até o fim da época das festas "para: que a alegria dos
irmãos não se transformasse em tristeza por sua causa".
• Em francês no original: bom senso. (N. da T.)

189
Também este pedido lhe foi concedido. Suger morreu
a 13 de janeiro de 1151, na oitava da Epifania que
termina os feriados do Natal. "Não tremeu com a apro-
ximação do fim", diz Willelmus, "pois consumara sua
vida antes de sua morte; nem abominara morrer por-
que gostara de viver. Partiu de bom grado, pois sabia
que melhores coisas lhe estavam reservadas após o pas-
samento, e não achava que um homem de bem devesse
partir como alguém que é expulso, que é posto fora
contra a sua vontade".

190
4. A ALEGORIA DA PRUD"ENCIA DE
TICIANO: UM PÚS:.ESCRITO

Há exatamente trinta anos atrás, meu falecido ami-


go Fritz Saxl e eu, então jovens Privatdozenten na
Universidade de Hamburgo, recebíamos uma carta
acompanhada de duas fotografias; uma mostrava um
entalhe em metal pouco conhecido, de autoria de
Holbein (Fig, 39), e a outra uma pintura de Ticiano,
recentemente publicada, cujo dono era então o fale-
cido Sr. Francis Howard, de Londres (Fig. 281. A
1. D. VONHADELN. Some Little-Known Works by Titian.
Burlington Magazine, XLV, 1924, p. 179. As medidas do quadro
(em tela) são 76,2 cm por 68,6 cm. Devo várias outras re-
ferências bibliogrãficas aó Dr. L. D. Ettlinger, do Warburg Ins-
titute, de Londres. Este quadro foi recentemente vendido, no
Christie, ao Sr. Leggatt.

191
28. Ticiano. Alegoria da Prudência. Londres, Francis Ho-
ward Collection.
carta era de Campbell Dodgson, Guardião da Seção
de Gravuras do British Museum e a maior autoridade
em artes gráficas na Alemanha. Observara que as duas
composições compartilhavam dos traços mais caracte-
rísticos e intrigantes e nos perguntava se seríamos ca-
pazes de lançar alguma luz sobre sua significação
iconográfica.
Muito contentes e lisonjeados, respondemos o me-
lhor que pudemos; e Campbell Dodgson, com a gene-
rosidade impulsiva que era a própria essência de sua
natureza, replicou que, em vez de utilizar nossa expo-
sição para seu uso particular, traduzira o trabalho para
o inglês e propunha-se a oferecê-Io ao Burlington Ma-
gazine para publicação. Ali apareceu em 19262 e
quatro anos mais tarde incluí no meu livro Hercules
at the Crossroads and Other Classical Subjects in
Postmediaeval Art (Hércules na Encruzilhada e Outros
Temas Clássicos na Arte Pós-Medieval) 3 uma versão
posterior em alemão, revista e ampliada. Entretanto,
como parece que mesmo então alguns pontos cruciais
me escaparam, posso ser perdoado por agir segundo o
conselho do Mefistófeles de Goethe: "Du musst es drei
Mal sagen" *.

I
A autenticidade da pintura pertence ao Sr. Ho-
ward (que provém da coleção de Joseph Antoine
Crozat, o amigo e patrono de Watteau) não pode ser
- e que eu saiba nunca foi - discutida. Brilhando
com a magnificência da ultima maniera de Ticiano,
deve ser incluída entre as últimas obras deste pintor
e pode ser datada, com bases puramente estilísticas,
de um período situado entre 1560 e 1570, provavel-
2. PANOFSKY, E. & SAXL, F. A Late-Antique Religious
Symbol in Works by Holbein and Titian. Burlington Magazine,
XLIX, 1926, p. 177 e 55.
3. E. PANOFSKY, Hercules am Scheidewege und andere
antike Biuistofie in der neueren Kunst. Para outras referên-
cias, ver H. TIETZE, Tizian, Leben und Werk, Viena, 1936, p. 293,
pr. 249 (também em inglês, 1937); Catalogue, Exhibition 01
Works by Holbein and Others Masters ot the Sixteenth and
Seventeenth Centuries, Royal Academy, Londres, 1950, 1951, n.
209; J. SEZNEC, The Survival of the Pagan Gods, Nova York,
1953, p. 119 ~ 55., Fig. 40.
• Deves dízê-Io três vezes. (N. da T.)

193
mente menos de dez anos antes da morte do mestre 4
Vista no contexto geral da oeuvre (obra) de Ticiano,
-
nao e-'. apenas excepcional mas única. :É seu único tra-'
balho que se pode chamar de "emblemático" em vez
de meramente "alegórico": uma máxima filosófica ilus-
tr.ada por uma imagem visual -em vez de uma imagem
visual revestida de conotações filosóficas.
Quando confrontados com as Alegorias de Ti-
ciano. - a assim chamada Educação de Cupido, na
Galena Borghese, a Alegoria do Marquês D'Avalos
no Louvre, o Culto de V ênus e a Bacanal, ambos no
Prado, a Apoteose de Ariadne na National Gallery de
Londres e, sobretudo, o Amor Sagrado e Profano -
somos convidados, mas não forçados, a buscar um
significado geral e abstrato atrás do espetáculo con-
creto e particular que encanta nossa vista e que pode
ser entendido como a figuração de um fato ou situa-
ção representados em atenção a eles mesmos. Com
efeito, foi apenas recentemente que o Culto de Vênus,
a Bacanal e a Apoteose de Ariadne revelaram seus
conteúdos neoplatônicos 5; inversamente há os que in-
terpretam o Amor Sagrado e Profano como uma ilus-
tração não-alegórica, direta, inspirada por um incidente
específico da Hypnerotomachia Polyphili de Francesco
Colonna 6.
No quadro de Howard o significado conceitual
~os dados perceptíveis é tão impertinente que parece
SImplesmente não fazer sentido até que descobrimos seu
significado ulterior. Tem todas as características do
"emblema" que, segundo a definição de alguém a par
do assunto 7, participa da natureza do símbolo (só que
4. Prefiro a data proposta por TIETZE, loco cito à de
cerca de 1540 proposta pelo Catalogue de 1950-1951,de Londres.
A primeira data, provável por razões puramente estilísticas
pode ser confirmada pelas feições do homem idoso (que são:
como veremos, do próprio Ticiano) assim como pelo fato de a
provável fonte iconogrãfica do quadro, a. Hieroglyphica de
PIERIOVALERIANO, só ter sido publicada depois de 1556.
5. WIND,E. Bellini's Feast of the Gods. Cambridge, Mass.,
1948, p. 56 e ss.
6. FRIEDLANDER, W. La Tintura delle Rose (Sacred and Pro-
fane Love). Art Bulletin, XX, 1938, p. 320. Cf., entretanto, R.
FREYHAN, The Evolution of the Caritas Figure, Joumal of the
Warburg and Courtauld Institutes, XI, p. 68 e ss., prrncípal-
mente p. 85.
7. Ver a introdução de Claudio Mino para a Emblemata de
Andrea Alciati: yublicada pela pr-imeira vez nas edições Lyons
de .15.71j na edição Lyons de 1600, p. 13 e ss. Uma boa e breve
definição de emblemas - aqui chamados "artifícios" - é dada

194
é particular em vez de universal), da adivinhação (só
que não é tão difícil), do aforismo (só que é mais
visual que verbal), e do provérbio (só que é erudito
em lugar de vulgar). Esta pintura é, portanto, a única
obra de Ticiano - que normalmente se limitava às
letras de seu nome ou às do modelo de seu quadro -
a apresentar um motto ou titulus genuínos 8: EX
PRAETERITO /PRAESENS PRVDENTER AGIT/
NI PVTVRA ACfIONE DETVRPET, "Do (da ex-
periência do) passado, o presente age prudentemente
para não estragar a ação futura" 9.

II
Os elementos desta inscrição estão arranjados de
modo a facilitar a interpretação tanto das partes quan-
to do todo: as palavras praeterito, praesens e [uturã
servem de rótulos, por assim dizer, para as três faces
humanas da zona superior, ou seja, o perfil de um
homem muito velho voltado para a esquerda, o retrato
de face inteira de um homem de meia-idade ao cen-
tro, e o perfil de um jovem imberbe voltado para a
direita; ao passo que a oração praesens prudenter
agit dá a impressão de sumarizar o conteúdo total, co-
mo se fosse um "cabeçalho". :É-nos sugerido, assim, que
as três faces, além de tipificarem os três estágios da
vida humana (mocidade, maturidade e velhice) pre-
tendem simbolizar os três modos ou formas do tempo
pelo Maréchal de Tavanes, o conhecido general e almirante de
FRANCISCO I (Mémoires de M. Gaspard. de Saulx, Maréchal de
Tavanes, Chãteau de Lagny, 1653, p. 63): "Hoje os artifícios
diferem dos brasões, pois se' compõem de corpo, alma e espí-
rito; o corpo é a pintura, o espírito, a invenção e a alma, o
mote ("en ce temps les devises sont separées des armolries,
composées de corps, d'âme et d'esprit: le corps est Ia peinture,
l'esprit l'invention, l'ãme est le mot").
8. A inscrição no retrato alegórico de Filipe II e seu filho
Fernando do Museu do Prado. (MAIORA TIBI) não é um
motto ou um titulus mas uma parte integrante da própria pin-
tura. Inscrito num pergaminho oferecido por um anjo, desem-
penha um papel comparável à AVE MARIA do Anjo Gabriel
nas representações da Anunciação.
9, Nas publicações prévias de autoria; de Saxl e minha. os
sinais de abreviação sobre o A de FVTVRA e o E de ACTIONE.
que eram invisíveis nas fotografias que dispúnhamos na oca-
sião, foram omitidos. Tal omissão foi retificada no Catalogue de
1950-1951,de Londres; mas aqui, o NI claramente legível antes
de FVTVRA foi editado como NE. O sentido da frase não é
afetado por nenhuma dessas correções.

195
em geral: passado, presente e futuro. Somos também
convidados a ligar esses três modos ou formas de tem-
po com a idéia de prudência ou, mais especificamente,
com as três faculdades psicológicas em cujo exercício
essa virtude consiste: memória, que lembra e aprende
do passado; inteligência, que julga e age no presente;
e previdência, que antecipa e provê para ou contra
o futuro.
Essa coordenação dos três modos ou formas do
tempo com as faculdades de memória, inteligência e
previdência, com a subordinação das últimas ao con-
ceito de prudência, representa a tradição clássica que
preservou sua vitalidade mesmo quando a teologia
cristã elevou a prudência ao nível de virtude cardeal.
"Prudência", lemos no Repertorium morale de Pe-
trus Berchorius, uma das enciclopédias mais populares
do fim da época medieval, "consiste na recordação do
passado, na ordenação do presente, na meditação do
futuro" ("in praeteritorum recordatione, in praesentium
ordinatione, in futurorum meditatione"), e a origem
dessa fórmula rimada - citação de um tratado tradi-
cionalmente imputado a Sêneca, embora, na verdade,
seja de autoria de um bispo espanhol do século VI
d.e. 10 - pode ser seguida até a máxima pseudoplatôni-
ca segundo a qual "oconselho sábio" (oupf30uÀin)leva em
consideração o passado, que fornece os precedentes, o
presente, que propõe o problema, e o futuro, que pre-
vê as conseqüências 11.
A arte medieval e renascentista encontrou muitos
modos de expressar essa tripartição da prudência numa
imagem visual. A prudência é mostrada segurando
um disco cujos três setores trazem as inscrições "Tem-
pus praeteritum", "Tempus praesens" e "Tempus fu-
10. Berchorius (ver antes p. 195 e s. e adiante nota 31) refe-
re-se ao Ltber de morlbus de Sêneca; mas a fórmula aparece
num tratado intitulado Formula vitae honestae ou De qucttuor
virlutibus cardinalibus, também atribui do a Sêneca e normalmente
impresso junto com o Liber de moribus (cf. Opera Senecae,
Joh. Gymnicus, ed., Colônia, 1529, f.o IIv.) O verdadeiro autor
do tratado é, no entanto, o Bispo Martim de Bracara.
11. DI6cENES LAtRCIO, De vttis, dogmrltibus et apophthegmrl-
tibus drlrorum phHosophorum, III, 71. Para o ressurgimento
da conexão original dos três modos do tempo com Consilium
em lugar de Prudentta na Iconologta de CESARE RIPA, ver adiante
p. 227 e 55.

196
29. Escola de Rossellino. Prudência. Londres, Victoria and
Albert Museum.
30. Alegoria da Prudência. Roma, Biblioteca Casanatense,
ms. 1404, f9 10, começo do século XV.

31. Prudência. Siena, Catedral, fins do século XIV.


turum" 12, OU um braseiro do qual saltam três chamas
analogamente rotuladas 13. Ela aparece entronada
sob um pálio com a inscrição "Praeterita recolo, prae-
sentia ordino, futura praevideo", enquanto olha para
a própria imagem refletida num espelho triplo 14. É
personificada num clérigo que segura três livros com
as admoestações apropriadas (Fig. 30) 15. Ou, final-
mente, é retratada - ao modo daquelas Trindades que,
sendo de origem pagã, não eram vistas com bons olhos
pela Igreja, embora nunca tivessem perdido a popu-
laridade 16 _ como uma figura de três cabeças a exi-
bir, além do rosto de meia-idade visto na parte cen-
tral, que representa o presente, uma face jovem e outra
velha, voltadas de perfil, que simbolizam respectivamen-
te o futuro e o passado. Essa Prudência de três ca-
beças aparece, por exemplo, num relevo do Quatrocen-
tos que está no Victoria and Albert Museum, de Lon-
dres, hoje atribuído à escola de Rossellino (Fig. 29) 17;
e - a significação da imagem tricéfala ainda mais
esclarecida aqui pelo símbolo tradicional da sabedoria,
a serpente (Mateus 10: 16) - numa das nigelas do
final do século XIV da Catedral de Siena (Fig. 31) 18.
12. Ver a miniatura publicada por J. VONSCHLOSSER, Gius-
tos Fresken in Padua und die Vorlãufer der Stanza della Seg-
natura, em Jahrbuch der kunsthistorischen Sammlungen des Alter-
héichsten Kaiserhauses, XVII, 1896, p. 11 e ss., pr. X.
13. Ver o afresco de Ambrogio Lorenzetti no Palazzo Pub-
blico de Siena.
14. Ver uma tapeçaria de Bruxelas de cerca de 1525, pu-
blicada no Wandteppiche de H. Gõbel, Leipzig, 1923-34, I, 2,
(Paises Baixos), pr. 87.
15. Roma, Biblioteca Casanatense, Cod. 1404, f.o 10 e 34.
16. Sobre o problema desse tipo de iconografia ver, além
da literatura já mencionada, nas demais publicações de F. Saxl
e minhas: G. J. HOOCEWERFF, Vultus, Trifons, Emblema Dia-
bolico, Imagine Irnproba della SS. Trinità, em Rendiconti delta
Pontifica Accademia Romana di Archeologia, XIX, 1942/3, p. 205
e ss.; R. PENTAZZONI, The Pagan Origins of the three-headed
Representation of the Christian Trinity, Journal ot the War-
burg and Courtauld Institutes, IX, 1946, p. 135 e ss.; e W.
KIRFEL,Die dreikéipfige Gottheit, Bonn, 1948 (cf. também a
revisão por A. A. BARB,Oriental Art, lU, 1951, p. 125 e s.)
17. Ver agora Victoria and Albert Museum, Catalogue of
Italian Sculpture, E. Maclagan e M. H. Longhurst, eds., Londres,
1932, p. 40, pr. 30d.
18. Ver Annales Archéologiques, XVI, 1856, p. 132. Dentre
outros exemplos, cabe mencionar uma figura do Batistério de
Bérgamo (A. VENTURl, Storia del Arte Italiana, IV, Fig. 510);
a página de rosto de GREGORlUS REISCH,Marglarita Philosophica,
Estrasburgo, 1504 (ilustrada em SCHLOSSER, op. cít., p. 49); uma
miniatura em ms. 87, t» 3, da Biblioteca da Universidade de
Innsbruck (Beschreibendes Verzeichnis der illuminierten Hands-
cnritten. in OesteTTeich, I [Die illuminierten Handschriften in
Tirol, H. J. Hermann, ed.], Leipzig, 1905, p. 146, pr. X); e, corno

199
lU

Assim, pode-se derivar a parte "antropomórfica"


do quadro de Ticiano dos textos e imagens transmi-
tidos ao século XVI por uma tradição contínua e pu-
ramente ocidental. Entretanto, para compreendermos
as três cabeças de animais, precisamos voltar à esfera
escura e remota das religiões de mistérios do Egito
ou pseudo-egípcias; uma esfera que desaparecera com-
pletamente de vista durante a Idade Média Cristã,
emergindo tenuemente acima do horizonte com o co-
meço do humanismo renascentista da metade do
século XIV, e tornando-se o objeto de um interesse
apaixonado após a descoberta da Hieroglyphica de
Horapolo, em 1419 19.
Um dos maiores deuses do Egito helenístico foi
Serápis, cuja estátua - tradicionalmente atribuída a
Briaxis, famoso por sua contribuição para a decoração
do Mausoléu - era admirada no principal santuário
do deus, o Serapeion de Alexandria. Conhecido por
nós através de inúmeras descrições e réplicas
(Fig. 34) 20 mostrava Serápis entronado com majes-
tade jupiteriana, com o cetro na mão e o atributo ca-
racterístico, o modius (módio = medida para trigo)
sobre a cabeça. Seu traço distintivo, entretanto, era
a presença constante de seu companheiro: um mons-
tro tricéfalo enleado por uma serpente, que tinha sobre
os ombros as cabeças de um cachorro, um lobo e um
leão, - ou seja, as mesmas três cabeças de animais
que o apreciador da Alegoria de Ticiano pode observar.
um anacronismo curioso, uma pintura do pintor barroco de Ham-
burgo Joachim Luhn (Hamburgo, Museum für Hamburgische
Geschichte), sobre o qual ver H. RaVER, Otto Wagenfe!t und
Joachim Luhn, Diss., Hamburgo, 1926. Em alguns casos, como
num relevo do "Campanile" de Florença (VENTURI,loco cit.,
Fig. 550), no afresco de Rafael na Stanza ciella Segnatura e no
mode!!o de Rubens de uma Biga Triunfal, no Museu de Antuérpia
(P. P. Rubens [Klassiker der Kunst, V, 4. ed. Stuttgart e Berlim]
p, 412), o número de cabeças é reduzido para dois, indicando
apenas o passado e o futuro.
19. Ver agora SEZNEC, loco cit., p. 99 e 55., com mais literatura.
20. Ver A. ROSCHER, Ausfiihrliches Lexikon der griechischen
und romischen Mythologie, S.V. Sarapis, Hades, und Kerberos;
PAULY-WISSOWA, Realencyclopaedie der klassischen Altertumswis-
senscnaft, S.V. Sa1'CIlpis; THIEME-BECKER, Allgemeines Kiinstter-
lexikon, S.V. Bryaxis.

200
32. O companheiro tricéialo de Serápis. Estatueta greco-
-egípcia segundo L. Begerus, Lucernae :«, iconicae. Berlim,
1702.

33. O companheiro tricéjaio de Serápis. Est~tueta ~rec?·


-egípcia. segundo B. de Montfaucon, IrAntiquíté expliquée,
Paris, 1722 e ss.

34. Serápis. Medalha de Caracalla.


o
significado original dessa estranha criatura _
que apelava tão intensamente para a imaginação po-
pular. que era reproduzida separadamente em estatue-
tas de terracota compradas pelos fiéis como lembran-
ças devotas (Figs. 32, 33) - coloca uma questão que
nem mesmo um grego do século IV d.C. ousava res-
ponder: em seu Romance de Alexandre, Pseudo-CaIís-
tenes fala apenas de "um animal polimorfo cuja es-
sência ninguém pode explicar" 21. Mas, já que Serápís,
por mais que seu poderes tenham se estendido mais
tarde, parece haver iniciado sua carreira como um deus
do mundo ínfero (referiam-se a ele como "Plutão" ou
"Júpiter Estígio") 22 é bem possível que seu compa-
nheiro tricéfalo nada mais seja que uma versão egípcia
do Cérbero de Plutão, mas com duas das três cabeças
de cachorro do último substituídas pelas das divinda-
des fúnebres nativas, a cabeça de lobo de Upnaut e a
de leão de Sakhmet; Plutarco pode estar essencialmen-
te certo ao identificar o monstro de Serápis simples-
mente como "Cérbero" 23. A serpente, entretanto,
parece ser uma encarnação original do próprio
Serápis u.
Embora tenhamos de admitir que desconhecemos
o que o extraordinário companheiro de Serápis signi-
ficava para o Leste helenístico, sabemos sua significa-
ção para o Oeste latino e latinizado. Esse monumen-
to da polimatia do fim d~ Antiguidade e do refina-
mento exegético, a Saturnalia de Macróbio (na ativa
como alto oficial romano de 399 a 422 d.C.) 25, con-
tém, entre inumeráveis outros itens de interesse crítico
e antiquário, não apenas uma descrição, mas uma in-
terpretação elaborada da famosa estátua do Serapeion
na qual se lê: "Eles (os egípcios) acrescentaram à
estátua (de Serápis) a imagem de um animal de três
cabeças, sendo que a cabeça central e maior é seme-
< 21. Cf. R. REITZENSTEIN. Das. iranische Erlilsungsmysterium,
Bonn. 1921. p. 190.
22. Ver ROSCHER e PAULY-WISSOWA. s.v. Sarapis.
23. PLUTARCO. De Iside et Osiride. 78.
24. Ver REITZENSTEIN. op. cit.; cf. H. JUNKER. "ttber iranische
Quellen der hellenistischen Aton-Vorsteljungv", VOririige der
Bibliotek Warburg, 192111922. p. 125 e ss.
25. Sobre Macróbío, ver E. R. CURTIUS. Europiiische Literatur
und lateinisches M,ttelalter, Berna. 1948. pasSir, especialmente
p. 442 e ss. .

202
lhante a um leão; à direita aparece a cabeça de um
cão tentando agradar com uma expressão amiga, en-
quanto que a parte esquerda do pescoço termina com
a cabeça de um lobo voraz; e uma serpente liga essas
formas animais com suas espiras (easque formas ani-
malium draco conectit volumine suo), tendo a cabeça
voltada para trás, em direção da mão direita do deus
que pacifica o monstro. Assim, a cabeça do leão re-
presenta o presente, o estado que, entre o passado e
futuro, é forte e ardoroso em virtude da ação presente;
o passado é mostrado através da cabeça do lobo por-
que a lembrança das coisas pertencentes ao passado
é devorada e levada embora; e a imagem do cão, ten-
tando agradar, significa o desenlace do futuro, do qual
a esperança, embora incerta, sempre mostra um re-
trato agradável" 26.
Macrôbio, pois, interpretou o companheiro de
Serápis como um símbolo do Tempo - uma tese a
corroborar sua convicção básica de que a maioria dos
deuses pagãos, em geral, e Serápis, em particular, eram
divindades do sol sob nomes diferentes: "Serápis e o
sol têm uma única natureza indivisível" 27. Natural-
mente, o espírito da época pré-copernicana inclinava-
se a conceber o tempo como sendo governado. ou
mesmo engendrado, pelo movimento uniforme e per-
pétuo do sol; e a presença de uma serpente - que,
tentando supostamente devorar sua própria cauda, era
um símbolo tradicional do tempo, e/ou de um período
recorrente no tempo 28 - parecia dar apoio adicional à
interpretação de Macróbio. Por força de sua exegese,
a posteridade acatou como' verdade a suposição de
26. MAcn6B1o.SatunuUia. I. 20. 13 e ss.: "uel dum simulacro
sígnum tricipitis anímantís adíungunt, quod exprimit medio
eodemque maximo capite leonis effigiem; dextra parte cap~t
canis exoritur mansueta specie blandientis. pars uero laeua cerui-
cis rapacis lupí capite fini.tur. easque formas~nimalium draco
conectit uolumine suo capíte redeunte ad dei dexteram, qua
compescítur rnonstrum, ergo leonis capite monstratur praesens
ternpus, quia condi cio eius inter praeteritum .futurumque actu
praeserrtí ualida furuensque est. sed et praeterttum tempus lupí
capíte sígnatur, quod memoria rerum transactarum rapitur et
aufertur. item canis blandientis effigies futuri temporis desígnat
euentum, de quo nobis spes, licet incerta. blanditur".
27. MA:nóBlo.loc. cit.: "Ex his apparet Sarapis et solis unam
et indiuiduam esse naturam".
28. Sobre a serpente como símbolo do tempo ou de um pe-
rlodo recorrente de tempo. ver. por exemplo. HORAPOLO. Hiero-
glyphicia (agora também encontrada nwna tradição inglesa tradu-

203
!

que as três cabeças de animais do monstro alexandrino


expressassem a mesma idéia que as cabeças humanas
de idades diferentes encontradas em representações
ocidentais da Prudência, tais como o relevo rosseIlinesco
do Victoria and Albert Museum ou a nigela de Siena:
a tripartição do tempo em passado, presente e futuro,
os domínios da memória, inteligência, e previsão. Do
ponto de vista macrobiano, a tríade zoomórfica era
assim equivalente à antropomórfica, e podemos facil-
mente pressupor a possibilidade de substituir ou com-
binar uma com a outra - tanto mais que a Prudência
e o Tempo eram ligados, na tradição iconográfica, pelo
denominador comum da serpente. Isso foi o que acon-
teceu na Renascença; mas foi por um longo e tortuoso
caminho que o monstro Serápis viajou da Alexandria
helenística até a Veneza de Ticiano.

IV

Durante mais de novecentos anos, os manuscri-


tos de Macróbio conservaram a fascinante criatura
prisioneira. Significativamente, foi Petrarca - o ho-
mem que mais que nenhum outro pode ser conside-
rado o responsável pelo que chamamos de Renascença
- que a redescobriu e libertou. No terceiro canto
de sua Airica (composta em 1338) descreve as re-
presentações esculpidas dos grandes deuses pagãos que
adornavam o palácio do Rei Sifax, da Numídia, o amigo
- e, mais tarde, inimigo - de Cipião, o Africano. Nes-
tas "ecfrases" o poeta torna-se mitógrafo, por assim
dizer, trabalhando com fontes medievais e clássicas;
mas, seus belos hexâmetros, isentos de todas as "mo-
ralizações" e vitalizando um aglomerado de caracte-
rísticas e atributos particulares em imagens vivas e
zída por G. BOAs, The Hieroglyphics ot Horapollo, Nova York,
1950), r, 2; SÉRVIO,Ad Vergilii Aeneadem, V. 85; MARTIANUS CA-
PELLA, De nuptiis Mercurii et Philologiae, r, 70. Cf. F. CUMONT,
Textes et Monument.ç figurés relatifs aux mystéres de Mytra,
Bruxelas, 1896, r, p. 79. A serpente mordendo a própria cauda
é assim mencionada, e em parte ilustrada como atributo de
Saturno, o deus do tempo, nas mitografias de Mythographus III
e PETRARCA(Africa, IIr. 147 e s.) até VINCENZOCARTARI. lmagini
dei Dei degli antichi (1." edição em 1556; na ed. de 1571, p. 41)
e G. P. LOMAZZO,Trattato della pittura (1.' publicação em 1584),
VII, 6 (na reedição de 1844, v. III, p. 36).

204
coerentes, sobressaem entre os textos do Mythogra-
phus III e Berchoriuscomo uma peça precoce de poe-
sia renascentista entre dois espécimes da prosa medie-
val. E foi por meio desses hexâmetros que o animal
tricéfalo descrito por Macróbio retomou ao palco da
literatura e representações ocidentais:
Junto ao deus está sentado um imenso estranho monstro
Cuia cabeça tripartida se volta para ele de maneira amiga.
A direita parece um cão e à esquerda um lobo rapace;
A do meio um leão. E uma serpente enrolada
Reúne as três cabeças: significam o tempo que passa 2\1.
Entretanto, o deus ao qual esses versos associam
o triceps animans de Macróbio não é mais Serápis.
Petrarca podia sucumbir ao encanto da besta fantás-
tica composta de quatro entidades ferozes, no entanto
submissas e de bom temperamento, repleta de signifi-
cado metafísico, no entanto totalmente viva e agindo
como personagem de direito próprio mais do que ser-
vindo de mero atributo; mas não tinha uso para seu
mestre estrangeiro. Proclamando incansavelmente a
supremacia de seus ancestrais romanos sobre os gre-
gos, para nem falar nos bárbaros, substitui o Serápis
egípcio pelo Apoio clássico - uma substit~1Í?ão du-
plamente justificável, pois a natureza de Serápis, teste
Macrôbio, não é menos solar que a de Apolo, mesmo
porque este também dominava as três formas o~ mo"
dos do tempo supostamente expressas pelas tres ca-
beças de animal: não era apenas um deus solar mas
também o cabeça das Musas e o protetor dos videntes
e poetas que, graças a ele, "sabem tudo o que é, tudo
o que será, tudo o que foi" 30.
Assim, foi mais em conexão com a imagem de
ApoIo do que com a de Serápis que nosso monstro
foi revivida nas descrições literárias subseqüentes e,
29. PETRARCA,Atriea, III, 156 e ss.:

proximus imberbi specie crinítus Apollo ...


At iuxt(1 monstrum ignotum immen~mque tri~aUci
Assidet ore sibi placidum blandumque tuentt.
Dextra canem, sed laeva lupum [eri atra rapacem,
Parte leo media est, simul haec serpente reflexo
Iuguntur capita et fugientia tempora signant.

30. HOMERO, Ilíada, I, 70, com referência a Caleas iôs ~O1)


rã r'
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7rópe <1>0,60' 'A7ro""wv.
Sobre a transferência cessas linhas do vidente e do poeta para
o médico, ver p. 214.

205
através delas, em estampas e iluminuras de livros.
Porém, devido a uma ambigüidade lingüística tanto na
fonte original como em seus principais intermediários
ou seja, Macróbio e Petrarca, podemos observar um
desenvolvimento curioso. Ambos descrevem as três
cabeças de animal como "conexas" ou "coligadas" por
uma serpente enrodilhada (Macróbio: easque for-
mas. .. draco conectit volumine suo; Petrarca: ser-
pente rellexo/Lunguntur capita). Para uma mente
ainda familiarizada com o verdadeiro aspecto de Será-
pis, e seu companheiro, estas frases, conjuraram auto-
maticamente a imagem de um quadrúpede tricéfalo _
o Cérbero original - que usasse a serpente como
uma espécie de colar (Figs. 32, 33). Para o leitor
medieval, todavia, poderiam sugerir igualmente três ca-
beças nascendo de um corpo de serpente, em outras
palavras, um réptil tricéfalo. Para evitar essa ambi-
güidade (e, como acontece tantas vezes quando se joga
uma moeda para tirar a sorte, apostando em "coroa"
q~ando o c~rto seria escolher "cara"), o primeiro mi-
tografo que Incorporou a descrição de Petrarca decidiu
pelo corpo de réptil. "A seus (de ApoIo) pés" escreve
Petrus Berchorius (e, depois dele, o autor anônimo do
Libellus de imaginibus deorum), "era configurado um
monstro horrível cujo corpo parecia com o de uma
serpente (corpus serpentinum); e tinha três cabeças,
a saber, a de um cão, um lobo e um leão, que, embora
separadas umas das outras, convergiam em um só corpo
com uma única cauda de serpente" 31.
Sob essa forma de réptil - mais estranha ainda
do que a do quadrúpede original e transformando-a,
por pura coincidência, na antiga imagem do que se
pode chamar de "serpente do tempo" 32 - nosso
monstro aparece sempre que os artistas do século XV
foram chamados a apresentar uma imagem de ApoIo
. 3L o texto de BERCHORIUS (Repertorium Morale, Livro XV)
fOI edlt~do separadame.tüe sob o nome de Thomas Valeys (Thomas
Wallensís) num Iívro mtitulado Metamorphosis Ovidiana mora-
ltter.:. _ explanata, Paris. 1511 (na edição de 1515, f.o VI), e a
descnçao de Apelo diz o seguinte: "Sub pedibus eius depictum
erat m~mstrum. píctum Ciuoddam terrificum, cuius corpus erat
serpentmum, tríaque capita habebat, caninum, lupinum et leo-
mnum. Que. quamvis mter se essent diversa. in corpus tamen
unum ~ohI~ebant, .et unam solam caudam serpentinam habebant".
A explicação alegorica do monstro é tirada de Macróbio.
32. Ver nota 28.

206
que coincidisse com os padrões gerais da época e, no
entanto, satisfizesse a uma classe intelectual superior.
Encontramo-lo nas páginas do Ovide moralisé em
prosa 33 e .nas do Libellus de imaginibus deorum
(Fig. 35) 34; na Epitre d'Othéa de Christine de Pisan ar,;
nas Chroniques du Hainaut 36; nos comentários sobre
os Echecs amourex (Fig. 36) 37; e, finalmente, na
Practica Musicae de Franchino Gafurio, datada de
1497 (Fig. 38) 38, onde o corpus serpentinum se es-
tende, através das oito esferas celestes, dos pés de
Apolo, no alto, até a terra silenciosa.
Foi necessária a "reintegração da forma clássica
com o tema clássico", conseguida durante o Cinque-
cento, para quebrar o encanto dessa tradição persis-
tente. Só depois da segunda metade do século XVI,
foi que Giovanni Stradano, evidentemente sob a im-
pressão direta de algum exemplar genuíno do fim da
Antiguidade, devolveu ao nosso monstro seu autêntico
corpo canino 39 e ao mesmo tempo reinvestiu o seu
amo - desempenhando aqui o papel de Sol numa
série de planetas - de sua verdadeira beleza apolínea
(Fig. 42). Cumpre notar, entretanto, que esse deus-
33. Enquanto que os textos latinos completos de Berchorius
não eram ilustrados, suas traduções francesas (editada~ em 1484
por Colard Mansion, de Bruges, e em 1493 por A. Ve!ard. em
Paris, sob o titulo de Ovide métamorphose moraltsee) eram
muitas vezes acompanhadas por ilustrações. O ApoIo encontra-se
num manuscrito de cerca de 1480, Copenhague, Roya! Líbrary,
ms. Thot 399, f.· 7 v. O texto lr.ancês não difere substancial-
mente do latino.
34. O texto do Libellus de imaginibus deorum (ver aqui
SEZNEC. op. cit .. pp. 170-79) difere do texto de Berchorius princi-
palmente porque a explanação alegórica é apagada. 1: !ransmI-
tida através de um manuscrito ilustrado existente na Bibhoteca
do Vaticano, Cod. Reg. lato 129Ó. Ver H. LIEBESCHÜTZ, Fulgentiu.s
MetCLjoralis; Ein Beitrag zur Geschichte der antiken Mytholo~ie
im Mittelalter (Studien der Bib!iotek Warburg, IV, Leipztg-
-Berlim, 1926) p. 118. Nossa Flg. 35 (Llebeschütz. Fig. 26) repre-
senta Cod. Reg. lato 1290. 1.° 1 v.
35. Bruxelas, Bíbhothêque Royale, ms. 9392, t» 12 v.
36. Bruxelas. Bíbhotêque Royale. ms. 9242, f.o 174 V.
37. Paris, Bíbfíotêque Natlonale, ms. fr. 143, f.o 39.
38. Ver aqui SEZNEC.loco cit., p. 140 e s., e A. WARBURG .
Gesammelte Schrijten, Berlim e Leipzlg, 1932, I, p. 412 e ss.
39. Inversamente. o Ilustrador do manuscrito de Copenhague,
Ovide moralisé, f.· 21 v., aparentemente por pura inadvertência,
deu ao autêntico Cérbero de Plutão as três diferentes cabeças de
animais pertencentes. de direito, apenas ao monstro de Ser'áprs.
IsIDORODE SEVILLE, Origines, XI, 3. 33, por outro lado transferiu
a interpretação alegórica de Macróblo sobre o monstro de Serápis
para o Cérbero totalmente canino de Plutão. que. segundo ele,
significa "tres aetates, per quas mors hominem devorat, id est,
infantlam, iuventutem et senectutem".

207
35. Apolo, Roma, Biblioteca do Vaticano. Cod. Reg. lat.
1290. f<? Iv., ca, 1420.
36. Apoio e as três Graças. Paris, Bibliothêque Nationale,
ms. fr. 143. f<? 39. fins do século XV.

37. Giovanni Zacchi Fortuna. Medalha do Doge Andrea


Gitti, datada de 1536.
sol apolíneo foi moldado segundo o Cristo Ressurreto
de Michelangelo, em Santa Maria sopra Minerva.
Numa época em que os artistas, segundo a expressão
de Dürer, tinham aprendido a plasmar a imagem de
Cristo, "o mais belo dos homens" à semelhança de
ApoIo, a imagem de ApoIo também podia ser plasma-
da à semelhança de Cristo: na opinião de seus con-
temporâneos e seguidores, Michelangelo e a Antigui-
dade haviam se tornado equivalentes 40.

v
o ano de 1419, como sabemos, aSSIstIUà desco-
berta da Hieroglyphica de Horapolo, e esse fato não
apenas suscitou enorme interesse por tudo o que fosse
egípcio ou pseudo-egípcio, mas também produziu -
ou, ao menos promoveu imensamente, --' esse espírito
"emblernático' tão característico dos séculos XVI e
XVII. Um conjunto de símbolos, cercado por um
halo remoto de Antiguidade e constituindo um voca-
bulário ideográfico independente de diferenças lingüís-
ticas, expansível ad libitum e compreensível apenas
por uma elite internacional, não poderia deixar de
captar a imaginação dos humanistas, seus patronos e
os artistas seus amigos. Foi devido à influência da
Hieroglyphica de Horapolo que surgiram os numerosos
livros de emblemas, introduzidos pela Emblemata de
Andrea Alciati, datada de 1531, cujo propósito era
complicar o simples e empanar o óbvio, enquanto que
a ilustração medieval tentara simplificar o complexo
e esclarecer o difícil 41.
Esse surto simultâneo de egiptomania e emble-
mática resultaram no que se pode chamar de emanci-
pação iconográfica do monstro de Serápis. Ao passo
que a paixão pelas coisas egípcias levava à dissolução
de sua recente e um tanto ilegítima aliança com Apoio,
a procura de novos "emblemas" - destinados a evitar
personagens históricas e mitológicas - impedia o re-
40. Ver adiante p. 376.
41. Para uma boa caracterização das ilustrações emblemá-
tícas, ver W. S. HECKSCHER, "Renaissance Emblems: Observations
Suggested by Some EmbIem-Books in lhe Princeton Uriiversity
Library", The Princeton University Library Chronic!e, XV, 1954,
p. 55.

210
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encontro com seu legítimo amo, Serápis. Tanto
quanto sei, é somente nas ilustrações de Imagini dei
Dei degli Antichi (primeira edição em 1571) de Vin-
cenzo Cartari, que o monstro, aqui ainda em sua forma
de réptil, aparece como companheiro de Serápis na
arte renascentista (Fig. 40) 42. Em todas as outras
representações procedentes do final do século XN
ao final do século XVII, aparece apenas como um hie-
róglifo ou ideograma - até que o século XVIII o
arquivou, se podemos dizer assim, como um espécime
arqueológico curioso embora às vezes mal compreen-
dido (Figs. 32, 33) 43 •
Na já mencionada Hypnerotomachia Polyphili de
1499, serve como bandeira ou estandarte emprestando
um toque "egípcio" um tanto gratuito ao Triunfo de
Cupido 44. No entalhe em metal de Holbein de 1521,
ao qual também já nos referimos antes, uma mão gi-
gantesca o segura bem alto por sobre uma bela paisa-
gem (Fig. 39), de modo a dar a idéia de que o passado,
presente e futuro estão, literalmente, "na mão de
Deus" 45. A medalha de Giovanni Zacchi em honra
do Doge Andrea Gritti, datada de 1536, simboliza
esse tempo natural ou cósmico que controla o curso de
um universo aparentemente dominado pela Fortuna,
mas que, na realidade, como aprendemos pelo dístico

42. Sobre a Imagini dei Dei degli Antichi de CARTARI. ver


SEZNEC, op. cit., p. 25 e ss. Nossa Fig. 40 representa a gravura
da edição de Pádua de 1603, p. 69.
43. Ver, por exemplo, L. BEGERUS, Lucernae .veterum seput-
chralis iconicae, Berlim, 1702,II, pr. 7 (nossa Fig. 32) ou A. BANIER,
Erlauterung der Giitterlehre, trad. ale:nã de J. A. Schlegel, lI,
1756,p. 184. Vale notar que uma autoridade tão eminente quanto
B. DEMONTFAucON, L'Antiquité expliquée, Paris, 1722 e ss., Supl.,
II, p. 165, pr. XLVIII (nossa Fig. 33), embora classificando cor-
retamente o monumento, esqueceu por completo o texto de
Macróbio e, enganando-se com a aparência antropomórfica do
leão e simiesca do lobo, confundiu a identidade das cabeças:
"li n'est pas rare de voir Serapis ave c Cerbere ... on en voit
aussi trois ící. Mais une d'homme, une de chien, une de singe".
44. FRANCESCO COLONNA, Hypnerotomachia POlyphili, Veneza,
1499, f.o yl e y2; o texto diz apenas que uma das ninfas do
TTiunfo de Cupido trazia, com grande reverência e obstinada
superstição, "a imagem dourada de Serápis, adorado pelos egíp-
cios" e descreve as cabeças de animais e a serpente sem maiores
explicações. Uma cópia do entalhe em madeira do f.O yl, apa-
rentemente sem ligação com o texto, pode ser vista num manus-
crito da Biblioteca Ambrosiana de Milão, Cod. Ambros. C. 20 inf.,
t» 32.
45. O entalhe em metal de Holbein foi usado como um fron-
tispício para o De PTimatu PetTi libTi tres de JOHANNECK,
Paris, 1521.

213
(DEI OPTIMI MAXIMI OPE), governado pelo Cria-
dor de todas as coisas (Fig, 37)~. Na literatura em-
blemática e "iconológica", finalmente, tornou-se o que
ainda é na Alegoria de Ticiano: um símbolo erudito
da Prudência.
A Hieroglyphica de Pierio Valeriano, de 1556, -
um tratado baseado em Horapolo, mas acrescido de
inúmeros adendos, antigos e modernos - menciona
o monstro Serápis duas vezes: primeiro, sob o título
de "Sol", onde a passagem de Macróbio é citada in
extenso e a divindade solar é retratada, se assim se
pode dizer, como uma personagem uItra-egípcia, tra-
zendo as três cabeças de animal sobre os ombros de seu
próprio corpo nu 47; e, segundo, sob o título "Pruden-
tia". Aqui Pierio explica que a prudência "não só
investiga o presente, como também reflete sobre o pas-
sado e o futuro, como se examinasse um espelho, à
semelhança do médico que, segundo Hipócrates, "co-
nhece tudo o que é, o que foi, o que será"; e essas
três formas ou modos do tempo, acrescenta, são hiero-
glyphice expressos por uma cabeça tripla (tricipitium)
que combina a cabeça de um cão com as de um lobo
e um leão 48.
Cerca de trinta ou quarenta anos mais tarde, essa
"cabeça tripla" - agora, como devemos notar, um
grupo de cabeças divorciado de qualquer corpo, ofídio,
canino ou humano - estava firmemente estabelecida
como símbolo independente, símbolo este que se pres-
tava à interpretação poética (ou afetiva) ou então
racionalística (ou moral), conforme o elemento enfa-
tizado fosse "tempo" ou "prudência".
Na mente de Giordano Bruno, sempre preocupado
com as implicações metafísicas e emocionais da infini-
dade espacial e temporal, a "figura tricéfala conjurada da
Antiguidade egípcia", desenvolveu-se numa terrífica apa-
rição, assomando seus componentes individuais suces-
siva e recorrentemente de modo a representar o tempo

46. Ver G. HABICH. Die MedaiUen der ita!ienischen Renais-


sanee, Stuttgart, 1922. pr. LXXV. 5.
47. PIERIO VALERIANO. Hierog!yphiea. edição de Frankfurt de
1678. p. 384.
48. Ibidem, p. 192.

214
como uma seqüência infinita de arrependimento fútil,
sofrimento real e esperanças imaginárias. No seu
Eroici Furori, de 1585 (Livro lI, Capo 1), o filósofo
racional, Cesarino, e o "amante enlevado", Maricondo,
discutem a natureza cíclica do tempo. Cesarino ex-
plica que, assim como o inverno sempre é seguido pelo
verão todos os anos, também os longos períodos histó-
ricos de declínio e miséria - como o presente -
cederão o lugar ao renascimento espiritual e intelectual.
Maricondo responde dizendo que, embora aceite uma
sucessão ordenada das fases da vida humana assim
como da natureza e da história, não pode partilhar a
visão otimista que o outro tem dessa sucessão: o pre-
sente, julga ele, é sempre pior que o passado, e os
dois só são suportáveis pela esperança de um futuro
que, por definição, nunca acontece. E continua: isso
foi bem expresso pela figura egípcia na qual, "sobre
um busto colocavam três cabeças, uma de um lobo
olhando para trás, a segunda de um leão visto de
frente, e a terceira de um cão olhando para frente",
e isso para mostrar que o passado aflige a mente com
as lembranças, o presente a tortura, ainda mais dura-
mente, na realidade e o futuro promete, mas não traz
melhorias. Conclui com um sonetto codato ("soneto
de cauda" ou estramboto) que, num crescente de de-
sespero, empilha metáfora sobre metáfora para des-
crever o estado de uma alma para a qual os três
"modos do tempo" nada significam, exceto formas de
sofrimento ou desapontamento.

Um lobo, um leão e um cão aparecem


N a aurora, ao meio-dia e ao entardecer
O que gastei, guardo e talvez adquira
O que tinha, tenho agora ou venha a ter
Pelo que fiz, faço e hei de fazer
No passado, no presente e no futuro,
Me remôo, me entristeço, me asseguro,
N a perda, no sofrimento e na incerteza
Com o acre, com o amargo, com o doce
A experiência, os frutos, a esperança
Me ameaçam, me afligem e me amolecem
A idade que vivi, que vivo e que avança
Me faz tremer, me sacode, me fortalece

215
Na ausência, presença e distância
Suficiente, demais, bastante
Tem-me o "então", o "agora" e o "logo"
Arrasado pelo temor, tortura e esperança 49.

o outro aspecto, menos poético porém mais en-


corajador do tricipitium, é representado por aquela
summa da iconografia que, abeberando-se em fontes
tanto clássicas e medievais como contemporâneas, foi,
justamente, chamada de "a chave das alegorias dos
séculos XVII e XVIII" 50 e explorada por artistas e
poetas tão ilustres quanto Bernini, Poussin, Vermeer,
e Milton: a Iconologia de Cesare Ripa, publicada em
1593, reeditada muitas vezes depois e traduzida em
quatro línguas. Ciente do fato de que a idéia da pru-
dência como combinação de memória, inteligência e
previdência se originara ,na definição pseudoplatônica
do "sábio conselho" J aV!,-,6ovÀia) 51, o cultíssimo
Ripa inclui o "tricéfalo" dePierio Valeriano entre os
vários atributos do Buono Consiglio, "Bom Conselho"
(Fig. 41).
O "Bom Conselho" é um homem idoso (pois "a
velhice é muito útil é nas deliberações"); na destra se-
gura um livro sobre o qual uma coruja está empolei-

49. GIORDANO BRUNO,Opere itaZiane, G. Gentile, ed., Bari, lI,


1908, p. 401 e ss.
Un alan, un leon, un can appare
AlI'auror, aI di chiaro, al vespr'oscuro
Quel che spesi, ritegno, e mi procuro
Per quanto mi si díê, si dà, puó dare.

Per quel che feci, faccio ed ho da fare,


AI passato, aI presente ed aI futuro
Mi pento, mi tormento, m'assicuro
Nel perso, nel soffrir, nel'aspettare
Con l'agro, con l'amaro, con il dolce
L'esperienza, i frutti, Ia speranza,
Mi minaccíõ, m'affligono, mi molce
L'età che vissi, che vivo, ch'avanza
Mi fa tremante, mi scuote, mi foIce
In absenza, presenza, e lontananza
Assai, troppo a bastanza
Quel di gia, quel di ora, quel d'appresso
M'hanno in timor, martir e spense messo.
50. Sobre Cesare Ripa, cf. especialmente E. MÂLE,La Clef
des alIegories peintes et sculptées au XVII- et au XVIII- síécles,
Revue des Deux Mondes, 7." série, XXXIX, 1927, p. 106 e ss. e
375 e ss.; E. MANDOWSKY, Untersuchungen zur IconoZogie des Ce-
sare Ripa, Dissert., Hamburgo, 1934.
51. Ver acima nota 11.

216
42. Jan CoIlaert segundo Giovanni Stradano. ApoIo-Sol.
Gravura.
rada (ambos, desde muito atributos aceitos da sabe-
doria); pisa num urso (símbolo da raiva) e num
golfinho (símbolo da pressa) ; em volta do pescoço traz
um coração suspenso por uma corrente (porque, na
"linguagem hieroglífica dos egípcios", o bom conselho
vem do coração) 52. E, finalmente, na sinistra, traz
"três cabeças, a de um cão, voltado para a direita, a
de um lobo, para a esquerda, e no centro a de um
leão, todas ligadas a um único pescoço". Essa tríade
significa, diz Ripa, "as principais formas do tempo,
passado, presente e futuro"; é, portanto, "segundo Pie-
rio Valeriano" um símbolo della Prudenza; e a prudên-
cia não é só, "segundo S. Bernardo" uma condição
prévia do bom conselho, mas também, "segundo Aris-
tóteles", a base de uma vida sábia e feliz: "o bom
conselho requer, além da sabedoria representada pela
coruja sobre o livro, prudência, representada pelas três
cabeças já mencionadas" 53.
Assim, com Pierio Valeriano, "o monstro serápico
en buste", como podemos chamá-lo para abreviar, tor-
nou-se um moderno substituto "hieroglífico" para todas
as representações antigas da "Prudência tripartita".
Quando os cidadãos de Amsterdã erigiram seu Stad-
Huys, essa magnífica Prefeitura que hoje, orgulhosa-
mente, preenche as funções de um palácio real, o gran-
de escultor, Artus Quellinus decorou a Câmara do
Conselho com um friso encantador onde todos os atri-
butos do Buono Consiglio de Ripa, inclusive a "cabeça
tripla", aparecem como um arranjo de motivos inde-
pendentes, emancipados da figura humana mas dina-
micamente ligados uns aos outros pelo ritmo unificador
de um magnífico rinceou" de acanto e pelas atividades
dos esportivos puttí* * (Fig. 43). A cabeça de lobo
do tricipitium, agora brotando de uma luxuriante planta
de acanto, uiva em resposta a uma pergunta de uma
digna esfinge, o único detalhe não antecipado por Ripa,

52. Isso parece referir-se a HORAPOLO, Hierog!yphica, lI, 4:


"O coração de um homem pendurado em sua goela significa a
boca de um homem bom".
53. " ... al consiglio, oltre Ia sapienza figurata con Ia civetta
sopra il libro, e necessaria Ia prudenza figurata con le tre teste
sopradette" .
• Em francês no original: termo de arquítetura-eguírlanda.
(N. da T.)
•• Em italiano no original: anjinhos decorativos. (N. da T.)

218
43. Artus Quellinus, O Velho. Alegoria do t;pm Conselho.
Amsterdã, Paleis (segundo I. van Campen, Aibeelding van't
Stad-Húys van Amsterdam, 1664-68).
mas que concorda com o espírito "egípcio" do con-
junto 54. Putti cavalgam o golfinho, seguram o urso
pela argola de seu nariz enquanto o ameaçam com
um cacete e exibem o coração com a corrente. Apenas
a coruja permanece sozinha e distante com seu livro
e sua dignidade, uma imagem irônica da "sabedoria"
teórica em oposição à "prudência" prática.

VI

Depois dessa longa digressão, os antecedentes da


Alegoria de Ticiano estão bastante claros. Como Gior-
dano Bruno, parece dever seu conhecimento do tricipi-
tium egípcio e Pierio Valeriano, cuja Hieroglyphica
foi publicada, como já sabemos, em 1556; porém, ao
contrário de Giordano Bruno, aderiu à interpretação
racional e moralista do símbolo, de Pierio Valeriano.
Do ponto de vista iconográfico, o quadro de Ho-
ward nada mais é que uma antiga imagem da Prudên-
cia sob a aparência de três cabeças humanas de idades
diferentes (Figs. 29, 31), sobreposta a uma imagem
moderna da Prudência sob a forma do "monstro serápi-
co en buste". Mas, justamente essa sobreposição -
nunca tentada antes por nenhum artista - apresenta um
problema. Que poderia ter levado o maior de todos
os pintores a combinar dois motivos heterogêneos, di-
zendo, aparentemente, a mesma coisa, e a complicar
assim a complicação pelo que parece redundar, não
apenas numa concessão à moda passageira da emble-
mática de inspiração egípcia, mas também numa recaída
na escolástica e, ainda pior, na redundância? Em
outras palavras: qual era o propósito do quadro de
Ticiano?
Seu descobridor, intrigado por esta mesma per-
gunta, sugeriu que poderia ter servido como timpano,
isto é, uma cobertura decorada a cobrir outra pin-
54. JACOB VAN CAMPEN. Afbeelding van't S;tad-Huys van Ams-
terdam, 1644-68.pr. Q. A explicação impressa concorda com Ripa
em todos os pontos. exceto pelo fato de que o coração acorren-
tado não é mais interpretado como uma referência ao fato de
que o bom conselho emana de um bom coração. mas da mesma
maneira como os animais arreados representam pressa e raiva:
"het Haert moet gekeetent syn" ("o coração [ou seja. o senti-
mento subjetivo] precisa ser acorrentado (= domado) ").

220
44. Ticiano. Auto-retrato. Madri, Prado.
tura 55. Mas, é difícil imaginar como seria essa outra
pintura. Não poderia representar um tema religioso,
pois o tema da pintura de Howard é secular. Não
poderia representar um tema mitológico, porque a
mensagem do quadro de Howard é uma espécie de má-
xima moralista. E não poderia ser um retrato, pois
o quadro de Howard - ou, mais precisamente, sua
parte dominante - é em si mesmo uma série de re-
tratos.
Esse próprio fato, entretanto, pode responder à
nossa questão. Não há dúvida (embora eu mesmo só
chegasse a compreender o fato recentemente) de que o
perfil de falcão do velho, personificando o passado, é
do próprio Ticiano. É o rosto que aparece no ines-
quecível auto-retrato do Prado (Fig. 44), que data
exatamente da mesma época que o quadro de Howard,
ou seja, do final dos anos sessenta *, quando Ticiano
contava mais de noventa, ou, se os céticos modernos
estiverem com a razão, pelo menos quase oitenta 56.
Esse foi o período em que o velho mestre e patriarca
achou que era tempo de prover o futuro de seu clã.
E não é muito arriscado supor que sua A lego ria da
Prudência - um tema muito apropriado para tal pro-
pósito ~ era para comemorar as medidas legais e fi-
nanceiras tomadas nessa ocasião; se fosse permitido
entregar-se a especulações românticas, poderíamos até
imaginar que se destinava a esconder um pequenino ar-
mário encaixado na parede (repostiglio) onde eram
guardados documentos importantes e outros valores.
Com uma insistência penosa para os sensitivos, o
idoso Ticiano arrecadou dinheiro de todos os lados e,
por fim, em 1569, persuadiu as autoridades de Veneza
a transferirem sua senseria - a patente de corretor
que lhe fora outorgada há mais de cinqüenta anos e
que lhe trazia um estipêndio anual de cem ducados bem
como apreciável isenções de impostos - a seu devo-
tado filho, Orazio que - em agudo contraste com o

55. VON HADELN. Op. cito


• Refere-se à decada de 1560-70 (N. da T.)
56. Sobre a discussão inconclusiva acerca da data de nasci-
mento de Ticiano, ver o artigo judicioso de Hetzer no Thieme-
-Becker, op. cit., XXXIV, p. 158 e ss., e (defendendo a primeira
data) F. J. MATTHER JR., When was Titian born?, em Art Bu.!letin,
XX, 1938, p. 13 e 58.

222
45. Ticiano (e discípulos).
Florença, Palazzo Pitti,
desprezível irmão mais velho, Pompônio - fora o leal
ajudante do pai durante toda a vida e o seguiria mes-
mo na morte. Orazio VeceIli, que contava então com
quarenta e cinco anos, foi, assim, declarado formal-
mente "sucessor" em 1569, o "presente" para o "passa-
do" de Ticiano. Isso, por si só, levaria à conjetura
de ser a sua face que aparece - "mais forte e ardoro-
sa", como Macróbio dissera do presente em relação
ao passado e ao futuro, mais real com suas cores
vigorosas e modelagem enfática, como o grande pintor
interpretou esta frase - no centro do quadro de Ho-
ward; e encontramos uma. confirmação visual dessa
conjetura na Mater Misericordiae, no Palazzo Pitti,
de Florença, uma das últimas obras de Ticiano, onde
a mesma personagem, uns cinco anos mais velha, mas
mostrando feições indiscutivelmente idênticas, aparece
ao lado do próprio mestre (Fig. 45) 57.
Se o rosto de Ticiano representa o passado e o
de seu filho Orazio o presente, poderíamos esperar que
o terceiro, um rosto jovem significando o futuro, per-
tencesse a um neto seu. Infelizmente, Ticiano não
tinha nenhum neto vivo nessa época. Mas havia aco-
lhido em sua casa, e instruído cuidadosamente em sua
arte, um parente distante "a quem amava particular-
mente" 58: Marco VeceIli, nascido em 1545, e portanto
com vinte e poucos anos na época em que, segundo
O que se presume, a Alegoria da Prudência foi pintada.
É, penso eu, o belo perfil desse neto "adotivo" (seu
retrato também reaparece, possivelmente, na Mater

57. Sobre .a Mater Misericordiae do Palazzo Pitti, ver E.


TIETZE-CONRAT, Titian's Worshop in His Late Years, em Art Bul-
letin, XXVIII, 1946,p. 76 e ss., Fig. 8. A Sra. Tietze, considerando
a pintura (encomendada em 1573) como obra autêntica executada
com o auxílio de seus assistentes, reconheceu corretamente Ti-
ciano como sendo o homem idoso que aparece ao fundo, mas
preferiu identificar o homem maduro de barba preta com o
irmão do pintor, Francesco, e não 'com o filho, Orazio, Entre-
tanto, como Francesco morreu em 1560 (depois de deixar a
pintura em 1527, dedicando-se a um negócio de madeiras em
Cadore até o fim da vida), já que não sabemos como era seu
rosto, e já que a face da personagem em questão é manifesta-
mente idêntica à da figura central do quadro de Howard, parece
não haver razão válida para se presumir que a "segunda perso-
nagem" da Mater Misericordiae seja o irmão falecido do pater
famitias em lugar de seu filho vivo e herdeiro. Esse fato foi
generosamente admitido pela própria Sra. Tietze, in littens.
58. Ver C. RroOLFI,Le maraviglie dell'arte, Veneza, 1648 (D.
von Hadeln, ed., Berlim, 1914-24, lI, p. 45).

224
M isericordiae) 59 que completa as três gerações dos
VeceIli. Seja como for, o semblante do moço e do
velho tem menos corporeidade que o do rosto viril ao
centro. a futuro, como o passado, não é tão "real"
quanto o presente. Mas é ofuscado por um excesso
de luz em vez de obscurecido pelas sombras.
N a verdade, o quadro de Ticiano - combinando
as três cabeças de animal recém-ligadas à idéia da
prudência com os retratos de si mesmo, de seu her-
deiro aparente e de seu herdeiro presuntivo, - é o
que o apreciador moderno tende a pôr de lado como
uma "alegoria abstrusa". Mas isso não impede que
seja um comovente documento humano: a orgulhosa
e resignada abdicação de um grande rei que, como
outro Ezequias, fora solicitado a "pôr sua casa em
ordem" e o Senhor então lhe dissera: "Eu acrescen-
tarei aos teus dias". E é duvidoso que esse documento
humano tivesse revelado totalmente para nós a beleza e
propriedade de sua dicção se não tivéssemos a paci-
ência de decifrar seu obscuro vocabulário. Numa obra
de arte, não se pode divorciar "forma" de "conteúdo":
a distribuição de cores e linhas, luzes e sombras, volu-
mes e planos, por aprazível que seja como espetáculo
visual, precisa também ser compreendida como carre-
gada de um significado mais que visual.

59. Refiro-me ao jovem na armadura, ajoelhado diretamente


atrás de Orazio Vecelli. Suas feições são bastante similares às
do jovem do quadro de Howard, a não ser pelo fato de estar
embelezado por um bigode (que Marco Vecelli poderia facilmente
ter deixado crescer entre cerca de 1569 e 1574); nem a armadura
exclui, necessariamente. uma identificação com Marco, pois a
tradição iconográfica pedia a presença tanto de civis como mili-
tares nos grupos que representassem cenas da crucifixão (cf.
também as chamadas "pinturas de Todos os Santos" e as
representações da Irmandade do Rosário). No entanto, não estou
tão seguro ao identificar o terceiro membro do grupo familiar
na Mater Misericordiae com Marco Vecelli como estou ao iden-
tificar o segundo com Orazio.

225
5. A PRIMEIRA PÁGINA 00 "LmRO" DE
GIORGIO VASAR!

1. Um estudo sobre o estilo gótico segundo o julga-


mento da Renascença Italiana com um apêndice sobre
dois desenhos de fachadas de Domenico Beccaiumi

Na Bibliothêque de I'Ecole des Beaux-Arts de Paris,


há um esboço feito a bico-de-pena que mostra nume-
rosas cenas e figuras pequeninas nos dois lados da
página, que é - ou era, quando esse ensaio foi origi-
nalmente publicado - catalogado como "Cimabue"

227
(Figs. 46 e 47)1. O conteúdo hagiográfico dos esbo-
ços tem, até agora, desafiado qualquer identificação 2
e também é difícil situá-los do ponto de vista estilístico.
À parte a técnica simples e delicada, o que cha-
ma imediatamente a atenção do espectador é a tendên-
cia pronunciadamente clássica que lembra, de pronto,
composições dos séculos IV e V d.C. A freqüência
dos movimentos paralelos, a presença de motivos arqui-
tetônicos tão típicos do período final da Antiguidade,
como o anfiteatro clássico na área inferior da página
de frente ilustrada na Fig. 46 - contrastando, entre-
tanto, com o tabernáculo indiscutivelmente gótico da
segunda área - a modelagem e as proporções dos nus,
os movimentos contrapposti dos so1dados e as formas
das armas - tudo isso nos faz lembrar obras como os
murais, preservados apenas em cópia, de São Paulo
Fora dos Muros 3 e, principalmente, de Joshua RolI.
Entretanto, todos esses motivos classicizantes fo-
ram transformados segundo um espírito que, de um
modo geral, pode ser caracterizado como "Trezentos
inicial". Falando morfologicamente, nosso desenho
reflete um estilo menos monumental e pesado que o
de Giotto, mas também menos etéreo e lírico que o
de Duccio - um estilo mais compatível com a "Escola
Romana", que, através de Pietro Cavallini, estendeu
sua influência a Nápoles, Assis e Toscana. Para tomar
1. Aquisição n.v 34777;papel sem marca de água. Dimensões
do esboço: ea. 19,6 em X 28 em; da moldura, ca. 34 cm X 53,5
cm. A moldura está um pouquinho desgastada e foi preciso
renovar as tiras que a mantinham unida. O desenho vem da
coleção de W. YOUNG OTTLEY, que o discutiu em seu livro Ita!ian
Sciiool: of Design, Londres, 1823, p. 7, n. 5, onde aparece em
reprodução a página direita sem a moldura. Desde então apa-
rentemente não atraiu muita atenção.
2. Mesmo o ilustre bibliotecário da Société des Bollandistes,
Hippolyte Delehaye, que teve a amabilidade de examinar o
desenho e mostrá-Io a outros peritos, não chegou a uma conclu-
são convincente. Por falta de melhor explicação, podemos con-
tinuar identificando o herói que aparece na página direita como
São Potito (Aeta Sanctorum, 1.0 de jan., p. 753 e ss., especial-
mente p. 762) [Foi com esse jovem mártir que um homem como
Leone Battísta Alberti começou e encerrou uma série de "Vidas
dos Santos" (cf. G. A. GUARINO, Leon Battista Alberti's "Vita
S. Politi", Renaissanee News, VIII, 1955,p. 86 e 55.) 1
• 3. J. GARBER, Die Wirkung der fTÜhchristLiehen GeméildezykLen
der alten Peters- und Paulsbasiliken in Rom, Berlim, 1918. Cf.
especialmente o Jacó levantando a pedra, Garber, Fig. 9, e o
José de Garber, Fig. 12, com o torturador de nossa Fig. 46, no
alto à esquerda; ou o homem de saia curta na Fig. 15, de
Garber, com o companheiro do Santo na nossa Fig. 46, no alto
ao centro.

228
46. Desenho anteriormente atribuído a Cimabue emoldura-
do por Giorgio Vasari, frente. Paris, Ecole des Beaux-Arts.
consciência dessa transformação estilística, basta com-
parar o drapejamento e o pé dó homem que se retrai,
num movimento de pavor (Fig. 47, centro superior),
postura agachada dos soldados acampados (mesma fi-
gura, esquerda inferior), ou os grupos de magistrados
nas cenas de anfiteatro, com motivos análogos das,
digamos, pinturas à Cavallini de 'Santa Maria di Donna-
regina ou dos discutidos afrescos da Capela Velluti
na Santa Croce 4.
Coino poderemos explicar essa inusitada união de
elementos do fim da Antiguidade com outros do come-
ço do Trezentos? Seria mais fácil atribuir o esboço
de Paris - considerado ou como uma representação
substancialmente fiel de um ciclo de pinturas do início
da era cristã, ou como uma série de desenhos originais
que lembram modelos do final da Antiguidade Q -
senão ao próprio Cimabue, pelo menos a um de seus
contemporâneos? De fato, sabemos que a reassimila-
ção direta de protótipos dos primórdios da Cristandade,
iniciando-se na virada do século XIII, foi tão impor-
tante para a formação do estilo do Trezentos quanto
a "onda bizantina" que varreu o Ocidente cerca de
um século antes do nascimento da maniera greca na
Itália e do estilo gótico ao Norte. .
Entretanto, a presunção de uma cópia direta ba-
seada nas pinturas dos séculos IV e V pressuporia a
existência de ciclos cristãos primitivos de mártires, fato
que, tanto quanto sei, não é possível substanciar. A
hipótese de um projeto original não explicaria nem a
incoerência do todo, nem a anomalia do tabernáculo
gótico. E ambas as suposições estão em desacordo
com a circunstância de que a execução manual dos
esboços de Paris - em oposição à morfologia - não
coincide com uma data tão antiga como cerca de 1300.
Tais esboços só são concebíveis no contexto dos de-
senhos de contorno tais como os encontrados, por
4. Para o último, ver A. VENTURI, Storia deU'Arte Italiana,
V, p. 217 e SS.; R. VAN MARLE, Development ot the Italian Schools
01 Painting, Haia. 1923-36,I, p. 476 e SS. Van Marle atribui o
Combate com o Dragão à escola de Cimabue, enquanto que o
Milagre do Monte Gargano a um pintor desconhecido treinado
quer por Cimabue quer por Giotto.
5. Essa opinião foi pessoalmente expressa pelos Professores
W. Kõhler e H. Beenken e foi esse último que chamou minha
atenção para os afrescos da Capela Velluti.

231
exemplo, na História Troiana de Milão (Bibl. Amb.
Cod. H. 86, sup.) e os Handzeichnungen "ilusionistas",
totalmente desenvolvidos, do período PisaneIlo-Ghi-
berti; em outras palavras, devem ser atribuídos, não a
Cimabue ou a qualquer outro artista ativo por volta
de 1300, que tenha participado pessoalmente da "re-
nascença cristã primitiva" desta época, mas sim a um
artista ativo por volta de 1400, que tenha copiado um
cicIo de pinturas produzidas cerca de um século antes.
Dificilmente pode-se esperar que esse cicIo seja jamais
identificado; mas é possível afirmar que a interpreta-
ção dos esboços de Paris como cópias posteriores de
tal cicIo é muito mais compatível com suas caracterís-
ticas composicionais e técnicas.
Assim interpretado, o esboço perde um pouco do
interesse estilístico que teria se fosse um documento
original da arte dos primórdios do Trezentos. Por
outro lado, ganha em importância, de um ponto de
vista histórico. Foi pouco antes de 1400 que Filippo
Villani escreveu estas frases famosas em louvor a Ci-
mabue (que até então era apenas "famoso"), saudan-
do-o como inaugurador de uma nova fase na evolução
geral da arte: "Johannes, cujo cognome era Cimabue,
foi o primeiro a restaurar, por sua arte e gênio, a veros-
similhança para uma arte antiquada; puerilmente des-
viadora desta verossimilhança devido à ignorância dos
pintores e, por assim dizer, dissoluta e errante" 6. Se
é correto atribuir os esboços de Paris à geração de
VilIani, então se pode entender como um paralelo pic-
tórico da concepção de história formulada nestas sen-
tenças: como prova de que a idéia de um "renasci-
cimento artístico" surgindo com Cimabue não era
uma "construção puramente literária", mas se baseava
numa experiência artística imediata; ou, pelo menos,
era acompanhada por tal experiência imediata. O fato

6. FILIPPOVILLANI,De origine- eivitatis F!orentiae et e!usdem


[amosis civibus: "Primus Johannis, eui eognorr;e.nto._CIm~bue
nomen fuit, antiquatam pieturam et a nature sImIlIt.udIne p.'eto-
rum inseieia pueriliter discrepantem cepit ad nature sImIlItudmer;;r
quasí lasciuam et vagantem longius arte et mgem~. r,:uoeare .
Ver J. VON SCHLOSSER, Lorenzo Ghibertis Denkürd igkeí ten;
Prolegomena zu einer künftigen Ausgabe, em Jahrbuch der K. K.
Zentra!kommission IV 1910, principalmente p. 127 e ss., 163 e
ss.; ainda, E. BE~KAR~,Das !iterarische Portriit des Gio,,:anni
Cimabue Munique, 1917, p. 42 e ss. Há um extrato convem ente
do artig~ de Schlosser no seu Prii!udien, Berlim, 1927,p. 248 e ss.

232
de um artista ativo por volta de 1400 tentar copiar
uma série de pinturas produzidas, se não por Cima-
bue, ao menos por um de seus contemporâneos, parece
mostrar que, tanto os humanistas, propensos ideologi-
camente, como os artistas, intuitivamente perspicazes,
começavam a reconhecer, nas obras dos primórdios do
Trezentos, as bases de sua própria atividade, e. que se
aproximavam dos trabalhos desse período com um
interesse especificamente "artístico" 7. O próximo gran-
de passo seria a reversão de Masaccio a Giotto.

II

Assim, no fim de contas, há uma certa razão para


a atribuição dos esboços de Paris a Cimabue; mas seu
nome dificilmente seria lembrado em conexão com eles
se não fosse a: existência de uma prova definitiva. Esta
evidência é fornecida pela moldura ou enquadramento.
Decorada a bico-de-pena e bistre, consiste em quatro
pedaços de papel encorpado e amarelado,. junta?~s ?e
tal forma que os dois lados da folha sejam visrveis.
Nessa moldura, a autoria de Cimabue é atestada duas
vezes: no verso, por uma inscrição manuscrita GIO-
V ANNI CIMABVE PITTOR FlORE, e, no lado di-
reito, por um retrato em xilogravura ", em c~ja _cártula
se podem ler as mesmas palavras (sem abreviações).
Não é preciso que se diga ao historiador de ~rte
que essa xilogravura foi tirada de uma das ~atn~es
feitas para a segunda edição da obra Vida~ do~ Plntore~,
Escultores e Arquitetos Ilustres, de Giorgio Vasan.
Suspeitará, imediatamente, que os desenhos .de "Cima:
bue" procedem da própria coleção de Vasan e que fOI
ele, segundo um velho hábito cuja existência já ates-
tamos repetidamente, quem deu aos esboços a moldu-

7. o desenho Albertina, reproduzido em Die Handzeichnung,


de J. Meder. Viena, 1919, Fig. 266, e atribuído, antertorrnerrte .. a
Ambrogio Lorenzetti, é provavelmente um caso paralelo. Assim
como nosso esboço parece datar de pouco antes de 1400 e repre-
sentar um modelo anterior. Cf. também as conhecídas copias
baseadas na Navice!!a perdida de Giotto, que datam dos primor-
dios do Quatrocentos.
8. Também reproduzída em KARLFREY,Le Vite ... di.M. Gior-
gio Vasari, Munique, I, I, 1911, p. 388 (doravante refendo como
"Frey").

233
48. Desenho anteriormente atribuído a Vittore Carpaccio,
emoldurado por Giorgio Vasari. Londres, British Museum.
ra feita à mão 9. Tal suspeita pode ser confirmada.
Primeiro, a impressão do retrato - cuja inclusão deve
ter sido prevista desde o começo, já que o desenho da
moldura deixa um espaço livre para ele - foi, eviden-
temente, tirado de uma cópia impressa de Vidas; como
indica seu verso branco, é uma prova de impressão
igual às que Vasari usava em casos semelhantes (cf.
a moldura, reproduzida na Fig. 48, cercando um dese-
nho umbro-florentino que Vasari atribuía a "Vittore
Scarpaccia" porque talvez lhe sugerissem "os nus vigo-
rosos e escorçados" do Martirio dos Dez Mil de Car-
paccio )1Q. Segundo, sabemos pelo próprio Vasari, que
possuía um croquis que considerava como sendo obra
de Cimabue, e que por isso o colocara bem no começo
de seu famoso álbum (Libro) 11 de desenhos, agora
dispersos - uma folha de rascunho que exibia "muitas
imagens pequeninas,' executadas como miniaturas":
"Sobre Cimabue falta-me dizer que no começo de nosso
livro, onde juntei os desenhos do próprio punho da-
queles que desenharam de seu tempo até o nosso, serão
vistas algumas pequenas coisas, feitas à mão ao modo
de miniaturas onde, embora hoje pareçam mais rudes
que outra coisa, vemos quantas coisas excelentes fo-
ram legadas por seu trabalho à arte de desenhar" 12.
9. Isso já era reconhecido por Ottley que, no entanto, não
reproduz as molduras.
10. Vasari Society, Série H, Parte VIII, n. 1. Neste caso, o
fato de ter sido utilizada uma prova é tanto mais evidente quanto
a cártula difere da usada na edição impressa (v. II, p. 517; Vasari
só tinha cinco cártulas para seus retratos gravados, cada uma
das quais foi usada repetidamente). Cabe mencionar que Vasari
considerava as flâmulas que enfeitavam a moldura do desenho
"Carpaccio" como um motivo peculiar .a esse pintor (ver, por
exemplo, seu famoso ciclo de rrrsuia) e digno de especiais elogios.
11. Sobre a coleção de desenhos de Vasari, ver JENOLÁNYI,
Der Entwurf zur Fonte Gaia in Siena, Zeitschritt Nr bildende
Kunst, LXI, 1927-28,p. 265 e ss. [e, mais recentemente, o ensaio
de O. Kurz. antes citado].
12. FREY,p. 403: "Restami a dire di Cimabue, che nel prin-
cipio d'un nostro Iíbro, doue ho messo insieme disegni di propria
mano di tutti coforo,' che da lui qua hanno dísegnato, si vede
di sua mano alcune cose piccole fatte a modo di minio, nelle
qualí, . come 'Ch'hoggi forse paino anzi goffe che altrimenti, si
vede, quanto per sua opera acquistasse di bontã il dísegno", [A
tradução inglesa das passagens de Vasari segue, com algumas
modificações, a tradução de Gaston du C. de Vere, publicada
pela Mediei Society, Londres, 1912-15]. Nosso esboço também é
mencionado na Vida de Gaddo Gaddi; ver G. VASARI, Le Vite .... ,
G. Milanesi, ed., Florença, 1878-1906(doravante citado como "Va-
sari"), I, p. 350: "E nel nostro libro detto di sopra é una carta
.dt mano di Gaddo, fatta a uso di minio come quella di Cimabue,
nella quale si vede, quanto valesse nel dísegno" ("E no nosso
livro já mencionado, há um desenho a mão de Gaddo, feito ã

235
Podemos até determinar a época em que Vasari
- cuja frase fatte a modo di minio (executadas como
miniaturas) expressa uma sensibilidade admirável pelos
antecedentes do estilo de desenho pós-medieval - viu
e adquiriu seu estudo de "Cimabue". Deve ter entrado
sua coleção entre 1550 e 1568, pois parece que Cima-
bue, como desenhista, só chamou a atenção de Vasari
depois que a primeira edição de Vidas... já estava
completa. Na edição Giunti da Vida de Cimabue, de
1568, não somente anuncia seu precioso achado como
inicia a sentença conclusiva do Prefácio geral com estas
palavras: "Mas, agora é tempo de chegarmos à Vida
de Giovanni Cimabue, e já que foi ele quem iniciou o
novo método de desenho e pintura, é justo e oportuno
que também inicie as Vidas. .. Na edição Torentino
de 1550, entretanto, o desenho não é mencionado e o
Prefácio fala apenas de "novo método de pintura ... " 13
A decoração da moldura coloca um problema não
menos notável do que o próprio desenho. Como os
outros enquadramentos preparados por Vasari para
seu Libro, simula arquitetura, mas, ao contrário desses,
imita estruturas de um estilo pronunciadamente gótico.
maneira de miniatura, como o de Címabue, donde se vê quanto
valia como desenhista"). Os termos a uso di minio e a modo di
minio, não implicam, é claro, que os desenhos fossem executados
a cores ou sobre pergaminho. Na Vida de Giotto (VASARI,I,
p. 385), Vasari diz, falando do pintor de miniaturas Franco
Bolognese (que Dante tornou famoso): " ... Iavorõ assai cose
eccellentemente in quella maniera ... , come si puõ vedere nel
detto libro, dove ho di sua mano disegni pitture e di minio ... "
Aqui é feita uma distinção explícita. entre os desenhos di pitture
e di minio, o que só pode significar desenhos feitos em pre-
paração para pinturas e iluminuras de livros.
13. FREY,p. 217. A edição Giunti, de 1568,traz: "Ma tempo
e di uenire hoggi maí a Ia uíta di Giouanni Cimabue, il quale,
si come dette principio al nuouo modo di disegnare e di diprg-
nere, cosi ê gíusto, e conueniente che e'lo dia ancora alle uite".
A edição Torrentino apenas traz: " .... si come dette principio all
nuouo modo deI dipignere ... " A passagem da Vida de Nicco!o
and Giovanni Pisani, onde 'é discutido disegno com respeito a
Cimabue (FREY,p. 643), também pertence ao período posterior a
1550,já que a - Vida dos Pisani não aparece na primeira edição.
Uma vez que a primeira edição não faz pois menção alguma a
Cimabue como artista, precisamos abandonar a concepção de
que ele deve seu lugar de honra no início das Vidas à convicção
de Vasari de que o disegno é o "pai comum" das três artes
visuais, e que, portanto, as Vidas tinham de começar com a
biografia de alguém que "transformara a arte do desenho em
algo especifi"camente italiano" (E. BENKARD, op cit., p. 73). Por
mais importante que a teoria do disegno de Vasari seja (cf.
adiante p. 279 e s.), a idéia de abrir a série dos artistas "moder-
nos" com Cimabue não necessitou de uma fundação sistemática
visto que sua posição como Pai da Renascença florentina estava
solidamente estabelecida pelos historiógrafos.

236
A moldura no verso assemelha-se a um tabernáculo
incrustado, cujo frontão triangular é decorado com
ornatos geométricos; a do lado direito imita um portal
magnífico com capitéis tachonados, pináculos decora-
dos com folhas recurvadas e um arco agudo no qual a
xilogravura, investida de uma aparência semi-escultu-
ral devido ao bistre, serve como uma espécie de chave
de abóbada um tanto incôngrua. Mesmo a inscrição
do verso tenta reproduzir os caracteres da escrita do
começo do Trezentos com uma fidelidade quase paleo-
gráfica: detalhes, como as cruzes iniciais e finais, os
pontos que separam as palavras, as ligaduras e os sinais
de abreviação são copiados com tal cuidado que um
amigo, experiente nesses assuntos, pensou que a inscri-
ção fosse uma obra do século XIX até se convencer
pelas Vidas que o conhecimento epigráfico de Vasari
era bastante extenso para permitir tal façanha 14.
Que Vasari fosse capaz de desenhar uma arqui-
tetura e uma inscrição de estilo tendente ao gótico não
é de surpreender; o que é difícil de compreender é que
quisesse assim proceder - ele cuja famosa filípica
contra o estilo gótico (Introdução, I, 3) imputa todos
os abusos à "horrível e bárbara" maniera tedesca e
considera o arco agudo, o girare le volte con quarti
acuti, o mais desprezível absurdo dessa "abominação
de arquitetura".
"Chegamos, por fim, a outro tipo de trabalho",
diz depois de discutir as regras clássicas, "chamado
germânico, que seja na ornamentação seja na propor-
ção difere muito tanto' do antigo quanto do moderno.
Nem é adotado mais pelos melhores arquitetos, mas sim
evitado como monstruoso e bárbaro, faltando-lhe tudo
o que se chama ordem. Na verdade deveria ser cha-
mado de confusão e desordem. Em seus edifícios,
tão numerosos que estragaram o mundo, pórticos são
adornados com colunas finas e torcidas como um para-
fuso, e não podem ter força para agüentar um peso,
por mais leve que seja. Também em todas as facha-
das, e onde quer que haja um enriquecimento, cons-
troem uma maldição de pequenos nichos, uns sobre os

14. o imitador se trai. porém. omitindo o "e" em "pittore"


e colocando um sinal de abreviação sobre "Giovanni". embora
os dois "nu estejam escritos.

237
outros, com um nunca acabar de pináculos, pontas e
folhas de modo que, para não falarmos que toda a
construção parece insegura, é incrível que as partes não
desmoronem a qualquer momento. Parecem, na ver-
dade, feitos de papel, em vez de mármore ou madeira.
Nesses !rabalhos fazem intermínâveis projeções, que-
bras, mísulas e floreados que lançam as obras total-
mente fora de proporção; e, freqüentem ente, com uma
coisa posta sobre a outra, chegam a tal altura que o
topo das portas alcança o teto. Essa maneira. foi in-
ventada pelos godos, isto porque, depois de haverem
arrasado as construções antigas e matado os arquite-
tos nas guerras, os que restaram construíram as edifi-
cações neste estilo. Modificaram os arcos com seg-
mentos pontudos e encheram toda a Itália com essas
construções abomináveis, de modo que para não se ter
mais desses horrores, o estilo foi completamente aban-
donado. Possa Deus proteger todos os países contra
tais idéias e modo de construção! São tamanhas defor-
mações, se comparadas com a beleza de nossas edifi-
cações, que não vale a pena perder tempo com elas
e, portanto, passemos a falar das abóbadas" 15. Como
se explica que o mesmo homem que escreveu estas frases,
projetasse nossas molduras "góticas"?

111

Para os países nórdicos, sobretudo a Alemanha,


não havia um verdadeiro "problema gótico" até já
bem a metade' do século XVIII. Os teóricos da arqui-
tetura, dependentes dos modelos italianos e em grande

15. FREY,p. 70: "Ecci un altra specíe di lavori che si chia-


mano Tedeschi, i quali sono di ornamenti e di proporzioni molto
differenti da gli antichi et da'moderni. Ne hoggi s'usano per
gli eccelenti, ma son fuggiti da loro come mostruosi e barbari,
dimentIcando ogni lor cosa di ordine, che píú tosto confusione o
disordine si puõ chiamare: auendo fatto nelIe lor fabriche, che
son tante ch'hanno ammorbato il mondo, le porte ornate di
colonne sottili et attorte a uso di vite, le quali non possono
auer forza a reggere il peso di che leggerezza si sia. Et cosi
per tutte le facce et altri loro ornamenti faceuano una male-
dizione di tabernacolini, l'un sopra l'altro, con tante piramidi et
punte et foglie, che non ch'elIe possano stare, pare impossible,
ch'elle si possino reggere; et hanno píú il modo da parer fatte
di carta che di pietre o di marmi. Et in queste opere faceuano
tanti risalti, rotture, mensoline et viticci, che sproporzionauano
quelle opere che faceuano, et spesso con mettere cosa sopra cosa

238
parte vitruvianos, na visao, tendiam a rejeitar, com
altivo desdém, o que François BIondel chama "esse
estilo monstruoso, intolerável, que nos dias de nossos
pais era comumente chamado de 'gótico'" 16 e, por
essa mesma razão, não podiam ver grandes problemas
em sua atitude para com esta monstruosidade. Os
profissionais, por outro lado, tendo adotado os acessó-
rios decorativos do novo estilo italiano mais do que
seus princípios estruturais básicos e sua nova percep-
ção do espaço, estavam ainda por demais ligados ao
passado medieval para perceberem o antagonismo fun-
damental existente entre o estilo gótico e o renascentista;
mesmo Blondel, aparentemente tão hostil ao gótico
em todas as suas manifestações, limita de fato suas
críticas aos ornamentos "bárbaros" ao mesmo tempo
que considera as edificações em si mesmas como
"obedecendo essencialmente às regras da arte, de modo
que sob o caos monstruoso de sua decoração, pode-se
notar uma bela simetria" 17. O suposto gótico "pós-
tumo" de um Christoph Wamser e de todos os demais
goticistas jesuítas, representa, não tanto uma revivifica-
ção inconsciente de um estilo irrevogavelmente morto,
andauano in tanta altezza, che Ia fine d'una porta toccaua loro
il tetto. Questa maniera fu trouata da i Gothi, che per hauer
ruinate le fabriche antiche, et morti gli architetti per le guerre,
fecero dopo coloro che rimasero le ~abrich.e di questa maniera, le
quali girarono le volte con quartd acutí et ríemprerono tutta
Italia di questa maledizione di fabriche, che per non h~uern~
a far píú, s'e dismesso ogni modo loro. Iddío scampi ogrn
paese da venir tal pensiero et ordinio di lauo~i, che per esseICe
eglino talmente difformi alla bellezza delle fabnche nostre: meri-
tano, che non se ne fauelli píú che questo; et pero passiamo a
dire delIe volte".
Para outra vigorosa passagem, ver adiante nota 89. Além
disso, cf. SCHLOSSER,Kunstliteratur, p. 171e ss. (discutindo a afini-
dade entre o julgamento de Vasari e de Giovanni Battista Gelli
sobre o estilo gótico, assim como a influência de Vasari sobre
os escritores posteriores).
16. BLONDEL,François. Cours d'Architecture. Paris, 1675,
Prefácio.
17. Ibidem, V, 5, 16. É a essa passagem que Goethe, já
idoso, se refere numa tentativa de justificar ex post facto, o
ensaio "anfigúrico" no qual louvara o estilo gótico, em sua
juventude (tiber Kunst und Altertum, edição Weimar, v. IV,
parte 2, 1823). Mesmo as famosas linhas de MOLIERE do Gloire
de Val-de-Grdce (citadas, por exemplo, na Histoire de Part, de
MrcHEL,VI, 2, p. 649) são dirigidos diretamente apenas contra o
o estilo gótico de decoração:
Ce fade goüt des ornements gothiques,
Ces monstres odieux des siécles ígnorants,
Que de Ia barbarie ont produit les torrents ...

239
como uma adesão consciente a um estilo ainda vivo 18
- exceto que essa adesão consciente implica, em época
tão tardia, um certo afastamento da maniera moderna
adotada pelos contemporâneos mais progressistas, for-
çando-lhes, destarte, o estilo para uma espécie de pu-
rismo ou arcaísmo.
Sempre que a necessidade de restaurações e acrés-
cimos (quer no interior como no exterior) levou a um
confronto direto do novo com o velho, os mestres
nórdicos ou "continuavam a aplicar o velho estilo des-
preocupadamente, sem pensarem nas dependências e
oposições estilísticas" (Tíetze) , como nos aditamentos
à torre setentrional da fachada da igreja do Colegiado
de Nuremberg, ou então, trabalhavam, com a mesma
despreocupação, obedecendo ao novo estilo, como
aconteceu em numerosas ocasiões em que cúpulas e
cúspides barrocas foram colocadas sobre torres góticas,
ou em que altares e galerias barrocas foram implanta-
das em interiores góticos. No primeiro caso, não há
nenhuma consciência de qualquer diferença fundamen-
tal de estilos em geral; no último, essa diferença é
solucionada com a mesma segurança e inevitabilidade
com que foram unidos, nos primeiros séculos do góti-
co, a nave do penado do alto gótico da Catedral de
Paderbom com um transepto do começo do români-
co, ou o coro do final da época gótica de S. Sehald,
em Nuremberg com uma nave dos primórdios do góti-
co. Mesmo onde se verificou que havia uma dispari-
dade de estilos, o fato não exigiu, via de regra, uma
decisão baseada em príncipios teóricos e gerais. Os
problemas individuais eram resolvidos segundo o caso,
quer a dicotomia estilística fosse abrandada ou, ao con-
trário, explorada como estimulante.
Quando, .nas primeiras décadas do século XVIII,
essa aceitação irrefletida do estilo gótico começou a
desaparecer (embora persista, em muitos casos, até
nossos dias) o "problema gótico" não se transformou
de pronto numa questão de princípios, mas foi resol-
vido por uma síntese magistral, subjetiva, dos elemen-
tos conflitantes. Numa penetrante investigação do
18. Cf. J. BRAUN, Die be!gischen Jesuitenkirchen, volume
suplementar do Stimmen aus Maria Laach, XCV, 1907,principal-
mente p. 3 e ss.

240
49. Catedral de Mogúncia vista de oeste.
gótico vienense do século XVIII - válida, mutatis
. mutandis, para toda a área da arte germânica 10 -
Hans Tietze mostrou que, durante o reinado de José 11,
o barroco "combinou tão livre e efetivamente esses
elementos da arquitetura medieval com os da contem-
porânea que uma nova forma de arte nasceu .. , Ele-
mentos goticizantes foram propositalmente desenvolvi-
dos de modo a produzirem uma impressão moderna;
não havia preocupação com fidelidade histórica; os
arquitetos buscavam superar o que parece ser seus pro-
tótipos. .. A intenção era plasmar os elementos góti-
cos - ou, mais precisamente - medievais, numa
criação nova, sem precedentes, cujo espírito artístico
era, indubitavelmente, moderno".
A reconstrução do Deutschordenskirche de Viena,
o domo da Igreja do Convento de Kladrub, e, na Ale-
manha, as soberbas torres oeste da Catedral de Mo-
gúncia, de F.J.M. Neumann (Fig. 49, 11. 10, 1767-'
74), constituem evidências monumentais dessa atitude
arquitetural que, embora já nitidamente retrospectiva,
ainda se inclinava e era capaz de efetuar uma mistura
não-histórica do novo com o velho - atitude que
logo resultaria num amplo universalismo que colocou
o gótico quase em pé de igualdade com o chinês e o
árabe. Em 1721, Bernhard Fischer von Erlach pu-
blicou seu Plano para uma Arquitetura Histórica. Na
verdade, aqui, nenhum edifício gótico é apresentado
como ilustração 20; mas o prefácio oferece ao arquiteto
a possibilidade de escolher, por assim dizer, entre vá-
rios "estilos", do mesmo modo como um pintor como
Christian Dietrich primava por imitar vários "grandes
mestres". Fischer explica essa variação pelas peculia-
ridades nacionais e ao final chega até a uma apreciação
moderada do estilo gótico: "Os projetistas verão aqui
que os gostos das nações diferem não menos na arqui-
19. Em Kunstgeschichtliches Jahrbuch der K. K. Zentralkom-
mission, III, 1909, p. 162 e ss. (daqui por diante citado como
"Tietze"); idem, "Das Fortleben der' Gotik durch die Neuzeit",
Mittéilungen der kunsthistoTischen Zentralkommission, 3.' série.
XIII, 1914, p. 197 e 55. O importante artigo de autorta de A.
Neumeyer sobre a revivescência gótica na arte alemã do final do
século XVIII (no Repertorium für Kunstwissenschaft, XLIX,
1928. p. 75 e ss.) só! chegou ao conhecimento do escritor depois
de terminado este artigo. [Para literatura bem mais recente. ver
atrás p. 12 e s.I,
20, Alguns castelos medievais, como 0$ de Meissen, aparecem
apenas no contexto dos projetos de paisagismo.

242
11. 10. Bernhard Hundeshagen. A torre oeste da Catedral de
Mogúneia (ver Fig, 49). Antes da Purificação. Desenho
de 1819.
tetura do que na maneira de vestir-se ou de preparar
a comida, e comparando um com outro poderão esco-
lher judiciosamente. Finalmente poderão perceber que
os hábitos permitem uma certa bizarrerie na arte
das construções, tais como os ornamentos, arcobotantes
e arcos agudos do gótico ... " 21
Aproximadamente na mesma época, começaram
na Inglaterra esses dois movimentos - desenvolvidos
ou promovidos em parte pelas mesmas pessoas - que
visavam, de um lado, a uma reforma do paisagismo,
dentro do espírito do cenário "natural" paisagístico, e
de outro, a uma revivescência deliberada do estilo gó-
tico da arquitetura. Não foi por acaso que esses dois
movimentos estiveram tão ligados no tempo e espaço,
e que antes de a arquitetura séria, monumental, poder
expressar-se em formas "góticas", já o estilo "gótico"
era usado para pavilhões, casas de chá, locais de des-
canso e ermidas dos novos parques "ajardinados".
Desde que a teoria da arte começara a considerar as
diferenças existentes entre a arquitetura antiga, medie-
val e moderna, o gótico fora encarado não apenas co-
mo um estilo "desregrado", mas também especifica-
mente "naturalístico": como um tipo de arquitetura
proveniente da imitação das árvores vivas (ou seja, da
técnica atribuída pelos teóricos clássicos aos ancestrais
primitivos do homem civilizado), ao passo que o siste-
ma clássico começou com a junção tectônica de tábuas
de madeira (ver a "Notícia sobre as Ruínas da Roma
Antiga", originalmente atribuída a Raíael e hoje em
dia a Bramante ou Baldassare Peruzzij ê'.
Não é de admirar que o gosto por essa espécie
"primitiva" de arquitetura se desenvolvesse em conjun-
to com uma preferência marcada por um estilo de
jardins que trocava a fonte pelo lago, o canal pelo
21. B. FISCHERVONERLACH,Entwurff einer historischen Archi-
tektur Prefácio: "Les dessinateurs y verront que les goüts des
nation~ ne díffêrent pas moins dans I'architecture que dans Ia
maníêre de s'habiller ou d'aprêter les viandes, et en les com-
parant les unes aux autres, ils pourront en faire un choix judi-
cieux. Enfin ils reconnoitront qu'à Ia vérité l'usage peut autho-
riser certa ines bizarreries dans I'art de bâtir, comme sont les
ornements à jour du Gothique, les voütes d'ogives en tiers point".
Cito com base na edição de Leipzig de 1742.
22. Sobre esse relatório, ver SCHLOSSER,Kunstliteratur, pp.
175 e 177 e ss.

244
riacho, o canteiro pelo gramado, a avenida prevista
para carruagens e cavalos de muitos visitantes pela
vereda serpente ante muitas vezes chamada "passeio
do filósofo" e a rígida disciplina dos bosquets * pelo
emaranhado de árvores pitorescas. Aquilo que um
homem como Lenôtre rejeitara taxativamente "que be-
los jardins se parecessem com florestas" 23 - era agora
desejado como um auto-engano meio sério, meio jocoso.
Essa acentuação sentimental da "naturalidade" criou
uma afinidade íntima entre os "jardins ingleses" e as
inúmeras capelas, castelos e ermidas "góticos" com
que se começou a inundá-Ias e, que, segundo a teoria
de sua origem há pouco mencionada, tendiam a ser
construídos com ramos e raízes de árvores não aplai-
nados (Fig. 50) 24. Uma ilustrativa antecipação desse
gosto, que hoje sobrevive apenas nos parques das esta-
ções de águas e nos jardins das mansões suburbanas,
encontra-se numa gravura do século XV, pertencente
ao chamado grupo Baldini, onde o caráter rústico da
Sibila helespôntica é enfatizado por um assento de -ra-
mos e gravetos (Fig, 51) 25. Cumpre acrescentar que
tais estruturas "góticas" também aparecem com freqüên-
• Em francês no orig.: grupos de árvores ou arbustos.
(N. da T.)
23. GUIFFREY, J. André !e Nostre. Paris, 1913. p. 123.
24. Extraído da Gothic Architecture! de PAUL DECKER, L~m-
dres, 1759, que é significativamente dedícada apenas a arqUl~e-
turas de jardins. Deve-se notar que e~sa' peque~a publicaçao,
assim como seu paralelo, a Chinese Archttecture, llao e, de modo
algum, uma tradução parcial de PAUL DECKER, Fursthcher Bau-
meister oder Architectura Civi!is, Augsburgo, 1711-1718 (como
até mesmo Schlosser supôs: Kunstliteratur, pp. 572 e 588). O
autor dessa última obra é um Paul Decker mais velho, aluno
de Schlüter, e ela não contém nada de similar. O aviso "Im-
presso para o autor" permite-nos concluir que o autor de Gothtc
Architecture ainda estava vivo em 1759, enquanto que o Paul
Decker mais velho morreu em 1713.
25. Publicado na Internationa! Cha!cographic Soci~ty, 1886,
nr, n. 8. Nos Textos Sibilinos (convenientement: reedttados no
L' Art re!igieux de !a fin du Moyen-Age, E. Male, Paris, 1922,
p. 258 e 55.) a Sibila helespôntica é assim descrita: "In ~gro
Troiano nata ... veste ruraili induta" e sua profecia diz o seguinte
"De excelsis coelorum habitaculo prospexit Deus humiles suos".
Era, portanto, vista como uma filha da natureza e. p~esumia-se
que vivesse no nível de civilização igual ~o dos primitivos que
construíam suas habitações de troncos nao aplainados (cf .. as
ilustrações do tratado de arquitetura de Filarete, reproduzi das
em Filarete de M. LAZZARONIe A. MUNOZ, Roma, 1908, pr. I,
Figs. 3 e 4): Parece, pois, que o desejo de exatidão "histórica"
ou alegórica podia produzir algo semelhante ao sty!e rust'que
posterior (cf. E. KRIs, no Jahrbuch der kunsthtstoT1.schen Sam-
m!ungen in Wien, I, 1926, p. 137 e ss.) . [Sobre as teorías clássícas
das civilizações pril1litivas e so;u renascímento, ver PANOFSKY"
studies: in Icono!ogy (citado atrás) , p. 17" p. 44, F'igs. 18, 21-23.]

245
da em ruínas artificiais, para demonstrar o triunfo do
tempo sobre o esforço humano 26.
Nos países nórdicos, portanto, a primeira "revivifi-
cação" consciente do estilo gótico resultou, não tanto
de uma preferência por uma forma particular de arqui-
tetura, como do desejo de evocar uma atmosfera pe-
culiar. Estas estruturas do século XVIII não se
, avassalam a um estilo objetivo, mas se propõem a
. operar como um estimulante subjetivo a sugerir a
liberdade natural em oposição ao cerceamento da
civilização, o contemplativo e idílico em oposição à
febril atividade social e, finalmente, o sobrenatural e
o exótico. Sentiam uma atração pelo sofisticado de
certo modo análoga ao da refeição do caçador de peles
americano que, segundo Brillat-Savarin, em dadas
circunstâncias iguala, se não ultrapassa, ao do rebus-
cado repasto parisiense. Para tomar consciência de
que o gótico não era só um gosto mas tambérri um
estilo, ou seja, que expressava um ideal artístico esta-
belecido por princípios autônomos mas determináveis,
o público nórdico teve que ser educado por duas expe-
riências aparentemente - mas só aparentemente -"-
contraditórias: de um lado, foi preciso que adotasse
um ponto de vista estritamente clássico, a partir do
qual o estilo gótico, assim como o barroco, pudessem
ser vistos "a certa distância", e portanto, em perspec-
tiva (como Tietze justamente observou: "o mais se-
vero classicista da Viena de José II foi também seu
26. H. HOME (Lord Kames), Elements oi Criticism. Londres,
1762,p. 173. O autor prefere as ruínas góticas às clássicas, por-
que as primeiras demonstram o triunfo do tempo sobre a força,
e, as últimas, o triunfo do barbarismo sobre o gosto - talvez não
tanto por desprezo ao gótico como devido à noção de que as
ruínas gregas sugerem destruição violenta por mãos humanas,
enquanto que .as ruínas góticas evocam a idéia de decadência
natural; a 'chave da antítese é o contraste entre "tempo" e
"barbarismo", e não entre "força" e "gosto". Seja como for, a
afirmação de Home ilustra uma preocupação nova com "estados
de ânimo" mais que com uforma". A Renascença inclinava ...se
t

a admirar nas ruínas, não tanto a grandeza das forças destru-


tivas, como a beleza dos objetos destruidos. "Pelas ruínas ainda
vísíveís em Roma inferimos a divindade daquelas mentes clás-
sicas", diz a "Noticia sobre a Roma Antiga" (ver atrás, nota 22); e
um desenho' de Marti van Heemskerck traz a seguinte inscrição:
"Roma quanta fuit ipse ruina docet", frase' que faz lembrar um
conhecido poema de Hildebert de Lavardin. Sobre o gosto
romântico e as ruínas góticas na Inglaterra, cf., além da litera-
tura citada por Tietze, L. HAFERKORN, Gotik und ,Ruine in der
englischen Dichtung des 18. Jahrhunderts, 1924 (Bettrâge zur
'englischen Philologle, v. 4).

247
mais estrito goticista" 27); de outro, foi preciso que
se tornasse suscetível - em certos casos, como no dos
primórdios do romantismo germânico, em bases alta-
mente emocionais - ao significado histórico e nacio-
n.aI ~os ~.onument?s m~~ievais de arte. Uma reapre-
ciaçao sena do estilo gótico pressupunha as atividades
de homens como Félibien e Montfaucon na França 28.
Willis, Bentham, Langley e Walpole, n~ Inglaterra 29;
Christ, Herder e Goethe, na Alemanha. Apenas uma
combinação do Classicismo e Romantismo poderia le-
var o Norte a tentar uma apreciação e uma recons-
trução "arqueológicas" do estilo gótico, e somente tal
combinação poderia suscitar a convicção, que logo se
cristalizaria num dogma destrutivo, de que qualquer
acréscimo planejado para uma velha igreja, "se não
fosse feito segundo o estilo gótico de arquitetura, não
poderia harmonizar-se adequadamente com o velho
edifício gótico" 30; e que era um "pecado" artístico se
"ao reparar velhos monumentos e construções, o res-'
27. TIETZE,p. 185.
28 .. SCHLOSSER,
Kun.stliteratur, pp. 430, 442 e Priiludien, p.
288. HIstoriadores Iocaís e regionais (e.g., Dom U. PLANCHER na
sua Histoire générale et particuliere de Bourgogne Dijon 1739-
-1787) revelam, é claro, um interesse reverente pel;s mon~men-
tos medievais em época muito anterior à dos teóricos da arqui-
tetura. Isso também vale para a Alemanha, onde o admirável
H .. CRUMBACH (Primitiae Gentium sive Historia et Encomium SS.
TTtum Magorum, Colônia, 1653, 1654, lU, 3, 49, p. 799 e ss.) enal-
teceu entusiasticamente a beleza da Catedral e 'chegou mesmo a
publicar os planos medievais a fim de pô-los à disposição do
acabament? fl;'Íuro (!). _Entretanto o mesmo Crumbach (para o
qual volteí mmha atençao graças a Miss Helen Rosenau) estava
perfeItamente familiarizado com Vitrúvio e os teóricos italianos
de arquitetura, e esse me~mo conhecimento fez com que ele,
tr,ansformando a condenaçao em louvor, interpretasse o estilo
gótico de uma maneira surpreendentemente moderna: "Utar hoc
capite vocibus ~rtis Architectonicae propriis e Vitruvio petrtís,
quas operr GOthlCOconabor accomodare... Operis totius et par-
tíum symmetna nullam certam regulam Ionici Corinthiaci vel
compositi moris, sed Gothicum magís institutu~ seouitur unde
quicquid coJlibitum fuerat, faberrime sic expressit -ars, ~t curr:
naturts rerum certare videatur, habita tamem partíum omnium
peraequa proportione: neque enim in stylobatis, columnis et
capitulis vel in totius structurae genere vetus ltalorum archi-
tecturae ratio fertur; sed opus hac fere solidius firmius et
cum res ex.gít, interdium ornatius apparet". Cru~bach adota:
pois, da teoria. italiana da arquitetura o ponto de vista, agora
bastante farnífíar, segundo o qual o estilo gótico segue apenas
as regras da natureza, mas pretende que isso já dá às estru-
turas góticas os valores de liberdade, totalidade, força e, "onde
necessário", exuberância decorativa.
29. SCHLOSSER. Kunstliteratur. pp. 431, 444.
3D. Relatório do ano de 1783 a respeito de um "Stêickel" para
Santo Estêvão, em Viena, citado por TIETZE,p. 175.

248
taurador não seguisse o estilo e o método segundo os
quais foram construídos", ou se "um altar de estilo
romano fosse erguido numa igreja gótica" 31.

IV

Segundo Tietze, foi o gravador e competente


teórico da arte, Nicholas Cochin, quem - por ocasião
do projeto irrealizado de Miguel Slodtz para a deco-
ração do coro de St. Germain d'Auxerre - primeiro
levantou o "problema da pureza estilística" com res-
peito ao estilo gótico 32. Mas isso é verdade, corno
provavelmente pretendia ser, apenas para o Norte.
Na Itália, o aparecimento desse problema que, nos
países transalpinos só podia tornar-se agudo após um
longo processo de dissolução e reconsolidação, era ine-
vitável desde o começo; pois aqui, o próprio movi-
mento renascentista estabelecera, de um só golpe, essa
distância entre o gótico e a arte contemporânea, de
que o Norte, como já vimos, virtualmente desconhecia
até o advento simultâneo do Romantismo e Classicismo.
Desde os tempos de Filippo Villani, os italianos
tinham como certo que a arte bela e grandiosa da
Antiguidade, destruída pelas hordas de conquistadores
selvagens e suprimida pelo zelo religioso dos primór-
dios da Cristandade, dera lugar, durante a escura
Idade Média (le tenebre), a uma arte ou bárbara e
incivilizada (rnaniera tedesca), ou ossificada por um
afastamento da natureza (maniera greca); e que o
presente, tendo descoberto o caminho de volta para
a natureza e os modelos clássicos, criara, felizmente,
uma antiga e buona maniera moderna 33. Assim, a
31. J. G. MEUSEL,Neue Miscellaneen, Leipzig, 1795-1803, cita-
do por TIETZE,ibidem. Foi exatamente nessa mesma época que
surgiu o que os irmãos Grimm caracterizaram como "purismo
irritante" - purismo esse que difere dos esforços anteriores de
um Philipp Zesen, do mesmo modo que do "Gótico jesuitico de
Meusel". Sobre a conexão entre a apreciação "romântica" e
histórica" da Idade Média, ver as interessantes observações de
G. SWARZENSKI no Katalog Ausstellung mittelalterlicher Glasma-
lerein im Stiidelschen Kunstinstitut, Frankfurt, 1928, p. 1.
32. Citado por TIETZE,ibidem. Ao contrário dos autores que
acabamos de mencionar, Cochin não chega a uma decisão positiva.
33. A esse respeito, cf. especialmente SCHLOSSER, Priiludien,
loco cito

249
Renascença se colocava, desde o início, numa posição
intensamente contrastante com a Idade Média em geral
e o estilo gótico, em particular - contraste esse reco-
nhecido tanto na teoria quanto na prática. Não é
de admirar que num período em que um homem como
Filarete escreveu todo um tratado de arquitetura para
convencer seus patranos da Itália do Norte da indis-
cutível superioridade da arquitetura da "Renascença"
florentina sobre a repreensível arte da Idade Média,
e em que a palavra "gótico" ou "tedesco" equivalia
quase a um insulto 34, deixasse de perceber a subcor-
rente gótica existente já no final do Quatrocentos e no
início da arte "maneirista", ou então - quando, corno
em Pontormo, essa subcorrente aflorava sob a forma
de empréstimos manifestos - a desaprovasse seve-
ramente 35.
Entretanto, precisamente esta oposição à Idade
Média compeliu e capacitou a Renascença a "enfren-
tar" realmente a arte gótica, e, destarte, ainda que
através de uma óptica tingida pela hostilidade, permitiu
que a visse pela primeira vez; viu-a como estranha
e desprezível, ainda que, por isso mesmo, como um
fenômeno verdadeiramente característico que não po-
dia ser levado muito a sério. Por paradoxal que possa
parecer, o fato é que enquanto o Norte, por falta de
distância, precisou de longo tempo para vir a apreciar
as obras góticas como estimulantes de uma experiência
34. Cf. nota 36. Sobre Vasari ver, por exemplo, a Introdução,
I, 3 (FREY,p. 69): "Le quali cose non considerando con buon
giudicio e non le imitando, hanno a'tempi nostri certi archí-
tetti plebei... fatto quasi a caso, senza seruar decoro, arte o
ordine nessuno, tutte le cose Ioro mostruose e peggio che le
Tedesche" ("Na nossa época, alguns arquitetos plebeus, sem con-
siderar as coisas judiciosas e sem ímítá-Ios [os esplêndidos tra-
balhos de Michelangelol trabalharam ... como que por acaso, sem
observar o decoro, a arte ou alguma ordem, sendo todas as suas
coisas monstruosas e piores que as góticas"); ou suas críticas
ao modelo de Antônio da Sangallo para São Pedro (VASARI, V,
p. 467) que, com seus inúmeros motivos e ornatos dá a idéia
de que o arquiteto "imiti piu Ia maniera ed opera Tedesca che
I'antica e buona, ch'oggi osservano gli architetti migliori" ("imi-
tou o estilo e a maneira dos germânicos, em lugar da boa
maneira antiga, hoje seguida pelos melhores arquitetos"). As
duas passagens são citadas em J. Burckhardt, Geschichte der
Renaissance in ltalien, 7 ed., Stuttgart, 1924, p. 31.
35. Ver W. FaIEDLAENDER, Der antíklassísche StH, em Reperto-
rium filr Kunstwissenschaft, XLVI, 1925, p. 49. E mais, F. ANTAL,
Studien zur Gotik im Quattrocento, em Jahrbuch der preussischen
Kunstsaytmlungen, XLVI, 1925, p, 3 e S5.; idem, Gedanken zur
Entwicklung der Trecento- und Quatrocento-malerei in Siena und
Florenz, em Jahrbuch filr Kunstwissenschaft, lI, 1924/25, p. 207
e ss.

25()
emocional peculiar, e ainda mais tempo para entendê-
Ias como manifestações de um grande e sério estilo,
na Itália, a própria animosidade contra o gótico esta-
beleceu as bases para seu reconhecimento.
A comparação das construções de abóbadas em
arco agudo com as intersecções de árvores vivas, re-
petida, mais tarde, ad nauseam pelos próprios parti-
dários do gótico, remonta, como já foi dito, ao auto
do relatório do pseudo-Rafael sobre a arquitetura
ramana 36. Se despojarmos as observações de Vasari
do intuito depreciativo e da fraseologia, elas emergem
como uma caracterização estilística, impossível na
Idade Média e possível no Norte somente séculos mais
tarde, que, de certo modo, ainda é válida hoje ~m
dia 37. Vasari diz: "Freqüentemente, com uma coisa
posta sobre a outra, atingem tal altura que' o topo de
uma porta alcança o teto" 38. Falamos de repetição
de forma (rima em oposição à métrica!) e verticalis-
mo. Vasari também diz: "E em todas as fachadas
onde quer que haja enriquecimento, constroem uma
maldição de pequenos nichos uns sobre os outros, com
um nunca acabar de pináculos, pontas e folhas, de
modo que, para não falarmos que toda a ed~icação
parece insegura, é inacreditável que as partes nao des-
moronem a qualquer momento. .. Nesses trabalhos
fazem intermináveis projeções, quebras, mísulas e flo-
reados que lançam as obras totalmente fora de pro-
porção" 39. Falamos de absorção da massa na estru-
tura e do desaparecimento da superfície !Dural p~r
trás de uma cortina de ornamentos. DIZ Vasan:
"Pois não observavam aquela medida e proporção das
colunas que a arte requer, nem distinguiam uma Ordem
da outra, fosse dórica, coríntia, jônica ou toscana, mas
36. Como todos os teóricos da Renascença, de Alberti a Paolo
Frisi (SCHLOSSER, Kunsttiteratur, p. 434 e passírn) , o autor do
relatório prefere naturalmente o arco redondo (romano) ao agu-
do, e baseia sua opinião em fatores não apenas estétrcos co~o
também estáticos. Chega a afirmar .q~e o entablaII?-ento estre~to
(cuja fraqueza foi francamente admrtída por VasarI, Introduçao,
I, 3, FREY,p. 63) possuía mais estabilidade que. o arco aguc;Io,
FlLARETE (Trak tat ilber die Baukunst, W. von Ottmgen, ed., VIe-
na, 1890, p. 274) era suficientemente aberto para questionar .a
superioridade estática do arco redondo ~obre o agudo e preferrr
o primeiro por razões puramente estéticas.
37. Cf. SCHLOSSER, Kunstliteratur, p. 281, e Priiludien, p. 281.
38. Citado atrás, p. 238.
39. Citado ibidem.

251
m~sturavam:,nas todas juntas segundo uma regra pró-
pna que nao era regra, dando-Ihes um feitio muito
grosso ou muito fino, como melhor lhes aprouvesse" 40.
Falamos de um tratamento livre, "naturalístico" das
formas decorativas e de uma proporção "absoluta" em
vez de "relativa" 41. Vasari continua: "Na verdade,
elas [as construções] têm mais a aparência de serem
feitas de papel do que de madeira ou mármore" 42.
Falamos da desmaterialização da pedra.
Assim, a Renascença italiana- numa primeira
e grande retrospectiva que ousou dividir o desenvolvi-
mento da arte ocidental em três grandes períodos -
definiu por si mesma um locus standi a partir do qual
lhe era permitido apreciar a arte da Antiguidade clás-
sica (alheia no tempo mas afim no estilo) e também
a dá Idade Média (afim no tempo mas alheia no esti-
10) : cada uma dessas duas artes podia, por assim
dizer, ser medida por e contra a outra. Por mais
que esse método de avaliação nos pareça injusto, signi-
ficava que, daí para a frente, era possível entender os
períodos de civilização e arte como individualidades
e totalidades 43.
40. VASAR!, lI, p. 98 (Prefácio da Segunda Parte): "Perchê
nelle colonne non osservarono quella misura e proporzione che
richiedeva l'arte, ne dístínsero ordine che fusse piú Dorico, che
Corinthio o Ionico o Toscano, ma a Ia mescolata con una loro
rego Ia senza regola faccendole grosse grosse o sottili sottili, come
tornava lor meglio". Ao descrever o modelo de Sangallo, que
censurou dizendo que era quase-gótico (VASAR!, V, p. 467), Vasari
instintivamente - e de modo característico - emprega a mesma
terminologia: "Pareva a Michelangelo ed a molti altri ancora ...
che il componimento d'Antonio venisse troppo sminuzzato dai
risalti e dai membri, che sono piccoli, siccome anco sono le
colonne, archi sopra archi, e" cornice sopra cornice" ("Parecia
a Míchelangelo e a muitos outros mais ... que a composição de
Antonio era demasiado recortada por frisos e partes que são
pequenas demais como são as colunas, os arcos sobre arcos e as
cornijas sobre cornijas").
41. NEUMANN,C. Die Wahl des Platzes für Michelangelos
David in Florenz im Jahr 1504; Zur Geschichte des Masstabpro-
blems". Repertorium !ür Kunstwissenschaft, XXXVIII, 1916, p.
1 e ss.
42. "Et hanno [as construções] píú il modo de parer fatte
di carta che di pietre o di marmi" (citado à p. 238).
43. Tem sido freqüentemente afirmado, e será discutido em
detalhes em outro lugar, que essa individualização e totalização,
possíveis graças à consciência da distância histórica, distingue
a atitude da Renascença italiana para com a Antiguidade dás-
síca, da Idade Media. Mas a ,atitude da Renascença italiana a
respeito da Idade Média pressupõe, a despeito de seu caráter
essencialmente negativo, uma consciência similar de distância:
nos séculos XV e XVII, o Norte encarava o estilo gótico com a
mesma ingenuidade com que encarava o antique durante os
séculos XII, XIII e XIV.

252
Essa mudança de atitude teve importante conse-
qüência prática. Com o reconhecimento de uma dife-
rença fundamental entre o passado gótico e o presente
moderno, a ingenuidade com a qual a Idade Média
podia justapor e fundir o velho e o novo - ingenui-
dade essa que, como já vimos, o Norte preservou até
o século XVIII - foi-se para sempre. E já que a
Renascença, ao revivificar a teoria de arte clássica, bem
como a própria arte clássica, adotara aquele axioma
fundamental segundo o qual a . beleza é quase sinô-
nimo daquilo que os antigos chamavam ápiJ.DI'ia
ou concinistas, toda a vez que um arquiteto "moderno"
se defrontava com uma estrutura medieval carente de
acabamento, restauração ou aumento, surgia um pro-
blema de princípios. O estilo gótico era indesejável;
mas não menos indesejável era a violação daquilo que
Alberti, o próprio fundador da teoria da arte, chamava
convenienza ou coniormità: "Primeiro de tudo, é pre-
ciso verificar se todas as partes se harmonizam entre
si; e estarão em harmonia se se corresponderem, de
modo a formar uma só beleza, com respeito a tamanho,
função, tipo, cor e outras qualidades similares" 44.
Seria absurdo se o atleta Milo fosse representado com
coxas frágeis ou Ganimedes com os membros de um
carregador e "se as mãos de Helena ou Ifigênia fossem
nodosas e velhas".
E se, em lugar de Helena, tivéssemos à nossa
frente uma santa gótica? Neste caso, não seria igual-
mente absurdo se apresentasse as mãos de uma Vênus
grega? Ou, falando em termos de problemas práticos
e prementes, não seria um pecado contra a arte e a
natureza terminar duas fileiras de pilares góticos com
uma abóbada "moderna", i.e., classicizante? A maio-
ria dos peritos respondeu a essa pergunta, mesmo na
teoria, com um "sim" ressonante e declarou que seria
uma esorbitanza se "um chapéu italiano fosse posto
sobre um traje germânico" 45.
44. L. B. Albertis kleinere kunsttheoretische Sctiriiten, H.
Janitschek, ed. Viena, 1877, p. 111: "Conviensi imprima dare
opera che tutti i membri bene convengano. Converranno, quan-
do et di grandezza et d'offitio et di spetie et di colore et d'altri
simili cose corresponderanno ad uma bellezza".
45. Relatório de Terribilia sobre a abóbada de San Petronio,
G. GAYE, Carteggio inedito d'artisti, Florença, 1839-1840, lU, p.
492, citado na nota 78. Outras afirmações de natureza aná-
loga são citadas adiante, p. 264.

253
Os italianos, portanto, quando chegavam a com-
por-se com os monumentos góticos, não podiam escapar
d~ uma decisã.o básica, enquanto que os nórdicos po-
diam prosseguir sem complicações. Rejeitando, cons-
cientemente, a maniera tedesca em favor da maniera
moderna, mas comprometidos com o princípio da con-
[ormità, tiveram, já no começo do século XV, que
enfrentar o "problema da unidade estilística". E, po-
demos bem compreender, por mais paradoxal que pa-
reça, que a própria alienação com respeito à Idade
Média levasse o arquiteto renascentista a construir num
estilo gótico muito mais "puro" que o que F.J.M.
Neumann e Johann von Hohenberg iriam empregar,
trezentos anos mais tarde.
Pondo de lado a possibilidade de esquecer com-
pleta e intencionalmente - ao contrário do costume
nórdico - a estrutura existente (como na maioria dos
projetos de fachadas florentinos e romanos), o proble-
ma da conjormitã podia ser resolvido por um dentre
três únicos caminhos: primeiro, era possível re-
modelar a estrutura dada de acordo com os princípios
da maniera moderna (ou, de um modo ainda mais
efetivo, envolta em um revestimento contemporâneo);
segundo, a obra podia ser prosseguida num estilo cons-
cientemente goticizante; terceiro, podia haver um com-
promisso entre duas alternativas.
O primeiro desses métodos, nem sempre aplicável,
porém mais consentâneo com o temperamento da épo-
ca, foi introduzido por Alberti no seu Tempio Mala-
testiano (S. Francesco) de Rimini, e aplicado pelo
próprio Vasari quando redecorou o refeitório do mos-
teiro napolitano 46;foi explicitamente recomendado por
Sebastiano Serlio para a modernização dos palácios
46. VASARI,VII, 674 (citado em BURCKHARDT, loco cit.). No
com~ço Vasari não queria aceitar a encomenda, que lhe fora
con~Iada em 1544, porque o refeitório era construido à maneira
antiga de. arq1:litetur!, ':~om as abóbadas em arcos agudos, baixas
e pouco ítumínadas (e con le volte a quarti acuti e basse e
cieche di lumi"). Então, descobriu que podia "remodelar todas
a~ a!>óbadas do refeitório com estuque, de modo a tirar a apa-
rencia antiquada dos arcos, enriquecendo-os com ornatos arte-
sanaís novos, ao estilo moderno" ("a fare tutte le volte di esso
r~fettor~o lavorate di stucchí per levar via con richi partimenti
di ma~Iera moderna tutta quella vecchiaia e gofezza di sesti");
a. facIlI~.ade com que era possível faltar o tufo calcário permi-
tia-lhe cortar ornatos quadrados, ovais e octogonais no tufo e
também reforçá-Io e repará-to por· meio de pregos" ("tagliando,

254
medievais 47; e foi seguido, em larga escala, em três
serviços de remodelação mundialmente famosos: a
Santa Casa de Loreto, de Bramante, ("que era gótica
mas se tomou uma obra bela e graciosa quando aquele
sábio arquiteto lhe aplicou uma bela decoração") 48, a
Basílica de Vicenza, de Andrea Palladio, e São João
de Latrão, de Borromini.
O segundo método - submissão à coniormità -
foi proposto por Francesco di Giorgio Martini e Bra-
mante em seus projetos e memoriais para a torre prin-
cipal (tibúrio ) da Catedral de Milão, para a qual
pediam, como fato lógico, que "a decoração, as cla-
rabóias e os detalhes ornamentais fossem feitos de mo-
do a se harmonizarem com o estilo de toda a estrutura
e do resto da igreja"49; depois de alguma vacilação 50,
foi de fato erigida em estilo gótico que, em comparação
com o domo da Igreja da Abadia de Kladrub, na Boê-
di fare sfondati di ·quadri, ovati e ottanguli, ringrossando con
chiodi e rimmettendo de' medesimi tufi") e assim reduzir esses
arcos a "buona proporzione".
47. S. SERLIO,Tutte l'opere d'architettura ... , Veneza, 1619,
VII, pp. 156-57, 170-71 (citado em SCHLOSSER, Kunstliteratur, p.
364; cf. também adiante, p. 297 e Fig. 61) Serlio, caracteristi-
camente, se dirige aos proprietários desejosos de modernizar
seus palácios góticos a fim de não parecerem inferiores a seus
vizinhos mais progressistas ("che vanno pur fabbricando con
buono ordine, osservando almeno Ia simetria"), mas que não
podem ou não querem gastar dinheiro com uma estrutura to-
talmente nova. Um desses casos de reconstrução particular-
mente interessante por causa do artista em questão, é discutido
no Excurso, p. 367 e ss.
48. Carta de Andrea Palladio, em GAYE,Op. cit., III, p. 397:
"qual era pur Tedescho, ma con lhaver quel prudente architetto
agiontovi boni ornamenti rende l'opera bella et gratiosa".
49. Relatório de Francesco di Giorgio Martini, de 27 de junho
de 1490 (G. MlLANESI, Documenti per la Storia del!'arte senese,
Siena, 1854-1856,lI, p. 429, mencionada, e.g. por BURCKHARDT, loc.
cit.): "di fare li ornamenti, lanterna et fiorimenti conformi a
l'ordine de lo hedi1icici et resto de la Chiesa". O relatório de
Bramante (não há quase razão para se duvidar de sua autoria)
vai ainda mais longe, frisando o principio da con1ormitd. Tendo
sido determinado cJ lugar e a forma básica do turibio pela estru-
tura existente, este deveria ser quadrado, para não se "desviar"
do projeto original, e os detalhes" deveriam mesmo ser moldados
de acordo com os velhos desenhos arquitetõnicos preservados nos
arquivos da Catedral: "Quanto a li ornamenti, come sone scale,
corridoi, finestre, mascherie, pilari e anterne, quello che e facto
sopra Ia sagrestia, bona parte ne da intendere, e meglio se ínten-
de anchora per a1cuni disegni che ne Ia fabrica se trouano facti
in quello tempo, che questo Domo fu edificato" (reimpresso,
e. g. em H. VONGEYMÜLLER, Die urspTÜnglichen EntwüTfe tur
St. Peter in Rom, Paris, 1875, p. 117 e ss.) . Sobre os planos
"góticos" de Leonardo para o Tibúrio, ver L. H. HEYDENREICH,
Die Sakralbaustudien Lionardo da Vincis, (Diss. Hamburgo), 1929,
p. 25 e ss. e p. 38 e ss.
50. BURCKHAJmT. Op. cit., p. 33.

255
mia ou a torre do lanternim de Mogúncia, construída
por Neumann, parece quase arqueologicamente corre-
ta (Fig. 52). A mesma política foi aconselhada pela
maioria dos artistas que, entre 1521 e 1582, examina-
ram o problema da fachada da San Petronio, em Bo-
lonha 51; e, mais tarde, pelo arquiteto barroco desco-
nhecido que propôs estender o princípio da coniormità,
da estrutura individual ao sítio todo, acrescentando um
imenso palácio gótico às construções diante da Catedral
de Siena 52.
A terceira solução - compromisso é exem-
plificado, por volta de 1455, pela fachada de Santa
Maria NoveIla, de Alberti. Tal solução também foi
encarada nos criticadíssimos planos de Vignola para
San Petronio (Fig, 55) 53 e num modelo extrema-
mente interessante apresentado por Gherardo Silvani,
em 1636, quando, pela segunda vez, houve um con-
curso para a fachada da Catedral de Florença
(Fig. 56). Numa imitação consciente do Campanile
(Campanário) que fica rente à fachada, esse modelo
mostra uma composição barroca normal, enriquecida
por torrinhas góticas octogonais e entremeada de de-
talhes góticos tais como pilastras incrustadas ao lado
de outras caneladas, um motivo incrustado no frontão
e uma balaustrada composta de hexafólios no pavimen-
to superior; sua intenção artística - ajustamento de-
liberado do novo com o antigo - foi explicitamente
detalhada por Baldinucci: "Silvani, então, produziu
este modelo, compondo-o de duas ordens; e nos can-
tos propôs construir duas torres redondas, semelhan-
tes a campanários, não apenas como um traço termi-
nal do sistema gótico, com o qual a igreja é incrusta-
51. Sobre isso e o seguinte, ver o famoso estudo de A.
SPRINGER"Der gotische Schnetder von Bologna" (Bilder aus der
neueren Kunstgeschichte, Bonn, 1867, p. 147 e ss.) . Cf. também
LUDWIG WEBER, "Baugeschichte von S. Petronio in Bologna" nos
Beitriige zur Kunstgeschichte, nova série, XXIX, 1904, p. 31 e
ss., especialmente p. 44 e ss.; H. WILLICH, Giacomo Barozzi da
Vignola, Estrnsburgo, 1906, p. 23 e ss.; G. DEHIo, Untersuchungim
über das gleichseitige Dreieck aIs Norm gotischer Baupropor-
tionem, Stuttgart, 1894. [Ver agora a monografia de Zucchírn,
citada antes.]
52. Ver KURT CASSIRER,Zu Borominis Umbau der Laterans-
basilika, Jahrbuch der preussischen Kunstsammlungen, XLII,
1921, p. 55 e ss. Figs. 5-7.
53. WILLICH. Op. cit., pr. I, e p. 26.

256
da, mas também para evitar um súbito afastamento
do antigo estilo" 54.
Tal solução de compromisso, ou mesmo a con-
tinuação de urna estrutura existente em formas gó-
ticas resultam entretanto no endosso estético do estilo
gótico. Escolhendo a alternativa "gótica", os arqui-
tetos apenas se sujeitavam ao postulado da coniormità;
e, sempre que possível, decidiam em favor da maniera
moderna. Contra um plano de compromisso proposto
por 'Gherardo Silvani, houve outros oito nos quais não
se faz a menor concessão ao caráter gótico da igreja ou
do campanário (sete desses submetidos em 1587). De
todos os projetos goticistas discutidos até então, ape-
nas o do tibúrio da Catedral de Milão foi executado;
enquanto que o problema algo análogo de instalar um
lanternim no domo gótico da Catedral de Florença
foi resolvido de maneira diametralmente oposta
(Fig. 53). Esse lanternim começado por Brunelleschi
em 1446 - com seu princípio estereométrico e es-
trutural é fundamentalmente mais próximo do espírito
gótico que o caprichoso tibúrio de Milão, onde os pris-
mas octogonais, encaixados uns nos outros, são essen-
cialmente tão pouco góticos quanto os arcobotantes
invertidos que pendem como grinaldas. No lanternim
de Brunelleschi, as pilastras coríntias servem de dis-
farce clássico para o que é, na verdade, um pilar com-
posto gótico, e esse moderno símbolo da força, a vo-
luta espiral (que aqui aparece pela primeira vez), é
realmente um arcobotante gótico disfarçado 55.
Que o tibúrio de Milão tenha sido construído con-
forme os planos ao passo que o lanternim de Bru-
nelleschi esconde sua essência gótica sob uma aparên-
cia moderna - ou seja, de inspiração clássica - não
é acidental. O princípio de conformità só podia im-
por a execução efetiva de um projeto gótico no caso
de já contar com o amparo de uma preferência real -
54. F. BALDINUCCI, Notizie âe'Projessori de! Disegno, 1681,
(na edição de 1767. XIV, p. 114): "face adunque il Silvani il
suo model1o, componendolo di due ordini; e neU'estremità
de'lati intese di fare due tondi pilastri a foggia di campanili,
non solo per termine dell'ordine gottico, con che e incrostata
Ia chiesa, ma eziandio per non discortarsi di subito dal vecchio".
55. Em ambos esses casos temos uma clara distinção entre
principios antitéticos: no Tibúrio de Milão, sintaxe moderna e
vocabulário gótico; no lanternim de Brunelleschi, sintaxe gótica
e vocabulário moderno. Por outro lado. em Mogúncia e KIa-
durb temos uma fusão desses elementos.

258
se não puramente estética - pelo estilo gótico. B
essa preferência, parece, só existia na parte setentrio-
nal da Itália, separada do resto pelos Apeninos. Aqui,
a separação entre os estilos modernos e medieval de
arquitetura era menos abrupta que na Toscana, para
não falar em Roma, onde quase nenhuma igreja ro-
mânica e só uma gótica foram construídas durante
toda a Idade Média; é significativo 'que o "trifório ex-
terno" permanecesse um motivo favorito da arquite-
tura renascentista norte-italiana (cf., e.g., a Certosa
di Pavia, S. Maria delle Grazie, de Milão, o modelo
de Cristoforo Rocchi para a Catedral de Pavia, em
1486, ou mesmo a igreja de peregrinos, S. Maria della
Croce, perto de Crema, só executada por volta de
1500, cujo trifório externo consiste em genuínos arcos
trilobulados góticos). Ao recorrer a um Comentário
sobre Vitrúvio 56 como trampolim para discutir o pro-
blema essencialmente gótico da triangulação versus a
quadrangulação, Cesariano deu expressão involuntária
a uma atitude por demais italiana para não participar
da vivificação geral da Antiguidade clássica, e, por
outro lado, nórdica demais para renunciar completa-
mente aos antigos métodos .medíevais de arquitetura.
Nesta fronteira artística poderia surgir uma "facção
gótica" genuína, e sua oposição aos "modernistas" po-
deria explodir numa amarga discussão de princípios,
algo que seria impossível quer na França ou na Ale-
manha como em Roma ou Florença.
É, entretanto, ilustrativo que essa discussão
. de
.
princípios - a atingir caracteristicamente sua íntensi-
dade máxima num ponto muito próximo do que se
pode chamar de "próprio da Itália" ~ fosse baseada
não tanto numa diversidade de gostos como em anta-
gonismos culturais, sociais e políticos. A famosa dis-
puta sobre a fachada de San Petronio 57 enyolvia tan-
to a excelência do estilo gótico de arquitetura em
comparação com o moderno, quanto os méritos do
mestre nativo em oposição ao "estrangeiro" 58 (Bo-
56. Cf. SCHLOSSER, Kunsttiteratur, pp. 220, 225; DEmo, op; cito
57. Ver 'as referências bibliográfica~ da nota 51:
58. Esse Gia:como Ranuzzi, um arquiteto .local ~ importante
oponente de Vignola, é responsável pelo projeto nao-~ótIco re-
produzido por Weber, pr. I; esse fato foi posto e~ dúvida por
WILLICH(op, cít., p. 29). Dá a impressão de ter SIdo feIto por
um amador.

259
lanha sempre considerou Roma e Florença como "po-
deres hostis" e achava mais fácil honrar Dürer do que
Michelangelo ou Rafael) 59; e, ademais, envolvia a pre-
servação de uma concepção democrática de vida e arte,
baseada no sistema medieval de corporações e simbo-
lizada portanto, por assim dizer, pelo estilo gótico, em
contraposição às ambições da aristocracia em ascensão
e de uma classe de artistas desconhecidos na Idade
Média. Aliados Íntimos da nova aristocracia, esses
virtuosi se consideravam gentis-homens educados, re-
presentantes de uma profissão liberal mais do que
artesãos, e membros de corporação, sendo que seu
estilo era tido não apenas como "modernista", mas
também como uma arte para "as classes superiores".
É o caso do Conte Giovanni Pepoli, que insistiu com
Palladio para que ele apresentasse seus projetos c1assi-
cizantes para a fachada de San Petronio 60 e "resolu-
tamente defendeu os planos" 61 de um arquiteto que,
desde o começo, se dirigira apenas àqueles que "com-
preendiam a arquitetura como profissão" 62 e, cujo
c1assicismo mesmo poderia eventualmente ser interpre-
tado como uma forma de protesto contra a arte na-
tiva de seu torrão norte-italiano.
59. Não é por acaso que o mesmo Malcasia que chamava
Rafael de boccalaio Urbinate, louva Dürer como o maestro di
tutti e chega até a afirmar que todos os "grandes" (scít., os
florentinos e os romanos) seriam mendigos se fossem devolver
a Dürer tudo o que lhe tomaram emprestado (citado por A.
WEIXGARTNER, "Alberto Duro", Festsctirijt für Julius Schlosser,
Zurique, Leipzig e Viena, 1926, p. 185). Num "Plano de Estu-
do", inédito, mas altamente instrutivo, destinado aos membros
jovens da Academia de Bolonha, Roma está colocada abaixo
de Veneza e Parma, como lugares dignos de visita; Florença
é completamente omitida; e a Dürer é atribuído o mérito de
ter sido o primeiro a devolver a "nobreza aos drapejados" (la
nobilità di piegatura) e vencer a "secura dos antigos" (la seccaç-
gine, ch'hebbero gli Antichi, aqui, obviamente, os medievais).
Ver Bolonha, Biblioteca Universitari, Cod. 245: Punti per re-
golare l'esercitio studioso deUa gioventú neU'accademia Cle-
mentina deUe tre arti, pittura, scultura, architettura.
60. GA YE, op. cit., III, p. 316 [Deve-se notar que nos de-
nhos teatrais de Serlio, as "cenas trágicas", destinadas a peças
que, até o advento da "tragédia burguesa" do século XVIII,
versavam exclusivamente sobre a realeza e os príncipes, con-
sistem unicamente de edifícios reriascentístas, (Libro primo
[= quinto] d'architettura, Veneza, 1551, f.o 29 v; nossa Fig. 57)
enquanto que as "cenas cômicas", destinadas a peças sobre
gente do povo, (ibidem, f.o 28 v., nossa Fig. 58), mostra uma
mistura de estruturas góticas e renascentistas.]
61. GAYE. Op. cít., III, p. 396.
62. Ibidem, p. 317.

260
54. Francesco Terribiíia, Projeto para a fachada de San
Petronio. Bolonha, Museo di S. Petronio.
55. Giacomo Barozzí da Vignola. Projeto para a fachada
de San Petronio. Bolonha, Museo di S. Petronío,
56. Gherardo Silvani, Modelo para a fachada da Catedral
de Florença, Museo di S. M. dei Flore.
Assim, até no Norte da Itália, a preferência cons-
ciente pelo estilo gótico permanecia restrita à classe
média, influenciada pelo patriotismo local e o precon-
ceito político (do mesmo modo que o interesse con-
cedido aos primitivos flamengos pelos círculos semi-
protestantes que rodeavam Occhino e Valdes e, mais
tarde, pelos autores da Contra-Reforma, como Gio-
vanni Andrea Gilio, se fundava mais em convicções
religiosas que estéticas) 63. Esses reacionários pro-
vincianos não se batiam pela maior heleza de maneira
tedesea; defendiam suas posições ou com considera-
ções técnicas e financeiras, ou como a reverência devi-
da aos antepassados, ou ainda - particularmente es-
clarecedor, do nosso ponto de vista - com o princí-
pio da coniormitã. Contra os planos de Peruzzi, em-
bora incluíssem até um projeto "gótico" 64, o arquiteto
local, Ercole Seccadanari, levantou a objeção de "que
eles não se harmonizam com a forma desta estrutura"
("che non ano coniormitã con Ia forma deso edifí-
cio") 65. Os projetos de Palladio foram rejeitados
porque parecia "impossível reconciliar esse projeto
clássico com o gótico, já que diferem tanto um do
outro" ("parea cosa impossibile accomodar sul todes-
co questo vecchio essendo tanto discrepanti uno deI
altro") 66 e que seus frontões "não se coadunam, de
jeito algum, com as portas" ("non hanno conformità
alcuna con esse porte") 67. E quando Vignola tentou
resolver :o problema com o plano de compromisso já
mencionado (Fig. 55), objetou-se, primeiro, que dei-
xara de seguir as intenções do fundador (Ia volontà
63. Sobre a argumentação de Gilio de que a arte dos "Pri-
mitivos" é mais "revererite" que a dos modernos, cf. SCHLOSSER,
Kunstliteratur, p. 380, e a observação - caracteristicamente
atribuída a Vittoria Colonna - de que a pintura dos Palses
Baixos é mais "devota" que a italiana (Francisco de Hollanda,
citado por SCHLOSSER, Kunstliteratur, p. 248). A apreciação 'da
píntura nórdica pelos colecionadores e connoisseurs (principal-
mente no século XV) é outra estória, embora ambos os pontos
de vista possam coincidir em certos casos; o Professor Warburg
chama minha atenção para uma carta de Alessandra Macinghi
- Strozzi, na qual ela se recusa a vender uma Santa Face,
holandesa, em tela, por ser "una figura divota e bella"
(Lettere ai Fi(lliuoli, G. Papini, ed., 1914, p. 58).
64. Museo di San Petronio, n. 1; os dois planos "modernos",
n. 2 e 3. Vasari (IV, p. 597) fala somente de um plano gótico
e outro "moderno",
65. GAYE. Op. cit., lI, p. 153.
66. Ibldem, 111, p. 396.
67. lbidem, 111,p. 398.

264
dei primo fondatore) sob certos aspectos; e, segundo,
que colocara colunas redondas sobre bases angulares e
um entablamento dórico sobre capitéis clássicos 68.
Para os arquitetos "estrangeiros", é claro, qual-
quer proposta de coexistência pacífica com o estilo
gótico era profundamente repugnante. Quais os sen-
timentos de Giulio Romano ao desenhar sua fachada
"gótica", nós não sabemos; porém, não cabe duvidar
que a simpatia de Peruzzi se voltava para seus dois
planos clássicos e não para o único "gótico". E Vi-
gnola e PaIladio, quando provocados, expressavam-se
com toda a clareza que poderíamos desejar. À cen-
sura de que convertera as janelas altas em oculus cir-
culares e vice-versa, respondeu: "Se se tentar dispor
todo o sistema da fachada em proporção, como re-
quer uma boa arquitetura, elas [as janelas] não estão
corretamente colocadas porque as janelas oculares ...
irrompem pelo primeiro andar da fachada. .. Similar-
mente, a janela sobre a grande porta de entrada da
nave corta o segundo andar da igreja e mesmo seu
frontão. .. Acredito que, se o Fundador estivesse vivo,
seria possível, sem muito trabalho, fazê-lo ver e admi-
tir os erros que cometeu devido à sua época e não
por culpa própria; pois, nesse tempo a boa arquitetu-
ra ainda não viera à luz, como é o caso de nossa
própria era" 69.
PaIladio, é verdade, fez todo o tipo de bem pon-
deradas concessões aos sentimentos dos bolonheses;
mas não pode deixar de revelar sua verdadeira opinião
desde o princípio. Respondeu, oralmente, ao inqué-
rito preliminar de um primo de Pepoli, que todos os
68. lbidem, lI, p. 359 e s. O texto reza: "Ch'io pongo
architrave, freggio e cornice doriche sopra li moderni"; sobre
o uso de moderno por "medieval" em coritraposíção a "clãs-
sico" (jã obsoleto nesta época), cf. SCm.OSSER, KunsUiteratur,
p. 113.
69. GAYE,op, cit., lI, p. 360: "che a voler metter in propor-
tione tutto l'ordine della facciata, come ricerca Ia buona archí-
tettura, non sono al luoco suo, percioche glí occhi... rompeno
il primo ordine deIla facciata [principalmente quando a facha-
da é articulada, à maneira clássíea, em três andares hortzon-
tais!] ... ; similmente Ia finestra sopra Ia porta grande nella
nave deI mezzo scavezza il secondo ordine et píú scavezza el
frontespicio della chiesa... ío credo, s'esso fondatore fosse in
vita, com manco fatica se li farebbe conoscer et confessar li
errori che per causa deI tempo l'a commesso, e non di Iuí,
percio che in quel tempo non era ancora Ia buona architettura
in luce come aIli nostri secoli". É significante que Vignola
tente frisar o horizontal, mesmo ao igualar a altura dos oitões.

265
desenhos à disposição não valiam nada; o melhor, re-
lativamente, ainda era o projeto "gótico" de Terribilia
(Fig. 54), que era o arquiteto-chefe desde 1568. No
conjunto, Palladio julgava que seria bem melhor, mes-
mo do ponto de vista financeiro, continuar a obra num
estilo completamente diferente, - ou seja, não-gótico
- e ou pôr abaixo ou remodelar tudo o que existisse,
inclusive a parte inferior do muro (imbasamento) 70.
Quando lhe foi dado a entender que não deveria fazer
exigências muito radicais e deveria satisfazer-se com
melhorias sensíveis 71, compôs um memorial que é uma
obra-prima de diplomacia: . inspecionara o edifício e
achara os desenhos de dois arquitetos locais, Terribilia
e "Teodaldi" (Domenico Tibaldi), bastante bons, con-
siderando-se o fato de que também tiveram de se haver
com o imbasamento gótico que, no fim de contas,
existe, e, na verdade, merece ser preservado porque
fora dispendioso para construir e também porque mos-
trava "certos aspectos dos mais belos pelos padrões
de sua época" ("belissimi avertimenti come pero com-
portavana quei Tempi, nelli quali egli fu edifficato").
Em vista dessas circunstâncias, Palladio continua, am-
bos os planos são louváveis e, "já que o estilo tinha
que ser gótico, não se podia fazer de outra maneira"
("che per essere opera todesca, non si poteva far al-
trimenti"). Há, acrescenta num espírito de indulgente
superioridade, uns poucos edifícios góticos existentes:
San Marco, de Veneza (que era tido como "gótico"
até o século XVIII), a Certosa de Pavia, o Duomo
de Milão, o Santo de Pádua, as catedrais de Florença,
Siena e Orvieto, o Palácio Ducal, o Salone de Pádua
("considerado o maior interior de toda a Europa e,
no entanto, é uma opera todesca") e o Palazzo Com-
munale de Vicenza. Em resumo, nessas circunstân-
cias o próprio Palladio não podia ter feito melhor e
recomendava apenas maior economia com respeito aos
ornatos entalhados (intagli) e pináculos (piramidi).
Depois disso, entretanto, chega ao objetivo: mesmo no
imbasamento dever-se-iam efetuar algumas mudanças,
deslocando-se os elementos um pouquinho ("mover
qualque parte di quello luoco a luoco"), e uma solu-
70. Ibidem, nr, p. 316.
71. Ibidem, lU, p. 319.

266
ção realmente perfeita só seria possível se se pudesse
ir adiante sem levar em conta o imbasamenio e tudo
o mais. Então, e só então, estaria ele pronto a fazer
um desenho; mas este seria bastante dispendioso 72.
No final, Palladio consentiu em colaborar com
Terribilia e preservar a estrutura inferior como estava,
esperando, é claro, conseguir, mais tarde, diversas al-
terações 73; chegou mesmo a mandar um desenho e
logo depois, dois outros, bem mais ousados (l1s. 11 e
12) 74. No entanto, pagaria caro esta atitude con-
ciliatória. Logo que seu plano começou a ser po~to
em execução houve, além de inúmeras outras obje-
ções protesto furioso, já mencionado antes, contra
,
a combinação do tedesco com o vecch'lO. 75 E em
sua resposta indignada, na qual cita constantemente
Vitrúvio e a Antiguidade clássica, PalIadia, finalmente,
dá vazão a sua cólera longamente reprimida contra o
gótico e seus praticantes (admitindo, inadvertidamen-
te, que as mudanças do imbasamento por. ele preten-
didas eram muito mais radicais do que deixara trans-
parecer) . À acusação de ter so~repo~t~ uma ordem
coríntia e uma composta ao estilo gotico, responde
que seu projeto previa uma rede:oraçã.o tão total do
pavimento inferior que não podena mais ser chamado
de "gótico" - certamente não mais do que a Casa
Santa de Loreto depois de ter sido "envolta em bons
ornamentos". No que dizia respeito à composição
como um todo entretanto, os críticos mostraram, se-
gundo Palladio: uma deplorável falta de entendjmento
da arquitetura: "Não sei e~ 9~e autor a~emao eles
[os críticos] acharam uma definição de arquitetura que
[na realidade] nada mais é que a simetria dos mem-
bros dentro de um corpo, sendo cada um tão bem
proporcionado e combinado com os outros e vice-ver-
72. Ibidem, III, p. 322 e ss.
73. Ibidem, lU, p. 332 e ss.
74. Reproduzido em Les bâtiments et !es desseins de André
Pa!ladio, de O. BERTOTTI SCAMOZZI, Vicenza, 1776/83, IV, pr.
18-20. O quarto desenho, que mostra o pavimento térreo sem
mudanças, mas acrescido de andares. superiores r~m?delados !,O
estilo de Palladio, não deve ser atnbuido ao. proprro Palladl?;
na verdade, é uma das propostas acomo~a.tlc~a~que Palfadío
aprovou num esforço para mostrar-se co,:,clllatono. . Isso explt-
caria a inscrição: "10, Andrea Palladío, laudo li presente
disegno".
75. GAYE. Op. cito IH, p. 395.

267
I
-n. O. . 'O__ .r: J_I -Q #-_
,p1/f:P"D m eqrr_ U",,", & fW4VD TTU1IW "" 7*/1411I
li. 11. Andrea Palladio. Primeiro projeto para a fachada de
San Petronio (impressão de contorno). Bolonha, Museo di
San Petronio.

11. 12. Andrea Palladio. Dois antigos projetos para a fachada


de San Petronio {impressão de contorno). Bolonha, Museo
di San Petronio
sa, que, por sua harmonia, dão a impressão de majes-
tade e decoro; o estilo gótico, entretanto, deveria ser
chamado confusão e não arquitetura e deve ser este
tipo que tais críticos aprenderam, não o bom" 76.
Depois dessa declaração de guerra, ainda houve
muita discussão de ambos os lados, mas nenhuma ação
positiva 77, e um cessar-fogo providencial nessa bata-
lha das fachadas 78 é assinalado por um "relatório final"
dos mais interessantes, apresentado a 25 de setembro
de 1582, pelo arquiteto milanês Pelegrino de' Pelle-
grini. Um modelo de clareza, esse relatório final co-
meça dividindo os planos existentes em três grupos
("alguns tentam seguir, do melhor modo possível, a
ordem gótica segundo a qual a obra foi iniciada, outros
pretendem mudar essa ordem em favor de uma arqui-
tetura clássica, e alguns deles representam UI19acom-
binação dessa bárbara arquitetura pós-clássica com a
76. Ibidem, III, p. 396 e ss.: "ne so in che autori tedeschi
habino mai veduto descrita l'architettura, qual non e altro che
una proportione de membri in un corpo, cussi ben l'uno con gli
altri e gli altri con l'uno simetriati et corispondenti, che armo-
nicamente rendino ma esta et decoro. Ma Ia maniera tedescha
si puõ chiam are confusione et non architettura et quelle dee
haver questi valenthuomoni ímparata, et non Ia buona",
77. Sobre o plano apresentado por Girolamo Rainaldi em
1626, ver WEBER,op. cit., p. 43. Weber não menciona o plano,
muito historicizado, de Mauro Tesi, do século XVIII (Museo
.di San Petronio, n. 27), um paralelo para o projeto de fachada
para o Duomo de Milão, de Vidoni (reprOduzido por TIETZEno
Mitteilungen der kunsthist. Zentr.-Komm. 1914, p. 262). No
conjunto, o malogro de Palladio mostrava a derrota dos mo-
dernistas; ver o desenho anônimo de cerca de 1580 (WEBER,
pr. IV) e todos os planos do século XIX (Museo di San Pe-
tronio, n. 22-24, 39-43, 47), para os quais verificar WEBER,p. 60.
No final, nada foi realmente feito.
78. No começo dos anos oitenta, como a discussão sobre a
fachada ainda continuasse, iniciou-se então uma querela igual-
mente famosa, e, de certo modo, análoga, sobre a abóbada da
nave inacabada. Em 1586, a Idéia de "certas pessoas" colocar
um friso e uma arquitrave sobre os pilares góticos foi unani-
memente rejeitada (por ser "non conveniente a questa opera
todescha") e as abóbadas ogivais de arcos agudos foram consi-
deradas como a única solução possível, "poi che non si crede,
che questi Todeschi in simil tempi di buona maniera habbino
fatte volte daltra forma" (GAYE,op. cit., III, p. 477 e ss. e 482
e s.). Assim, Terribilia fechou um vão em 1587-89; porém,
como seguia os principios de proporção clássicos e não-góticos,
sua abóbada foi criticada - não sem alguma razão - pelos
goticistas como "muito baixa". O porta-voz dessa facção gótica
era o alfaiate Carlo Carazzi, chamado "II Cremona", que é
tratado como uma figura cômica por SPRINGER e SCHLOSSER
(Kunstliteratur, p. 360); (cf. porém, suas reivindicações em
WEBER,op. cit., p. 47 e ss., com reproduções das petições de
CARAZZI na p. 76 e ss.). Invocando todas as autoridades pos-
síveis, especialmente a teoria da triangulação de Cesariano, Ca-
razzi pedia cúpulas mais altas, e por fim, o conseguiu. Dois
fatos são dignos de nota: primeiro, o de 'se conceder uma ên-

269
ordem clássica") 79 e termina com uma forte decla-
ração em defesa da "pureza estilística". Em princípio,
Pellegrino acolheria de bom grado uma remodelação
completa da igreja "no estilo clássico" (a forma di ar-
chitettura antica), que é a única a combinar beleza e
decoro com força. Se, entretanto, os bolonheses
achassem de todo impossível dizer adeus ao gótico en-
tão, "preferiria de longe observar as regras dessa ar-
fase especial ao êxito de Carazzi, que triunfa sobre muitos
membros da aristocracia ("multi genti!homini principali della
città" , GAYE, IH, p. 485); segundo, o de ambas as facções con-
cordarem completamente num ponto: que uma igreja começa-
da no estilo gótico deveria ser terminada dentro do mesmo
estilo. "Se adunque l'arte ad imitatione della natura deve con-
dure l'opere sue afine", diz Carlo Carazzi, "Ia chiesa di San
Petronio si deve continuare et finire sopra li principii ed fon-
damenti, sopra li quali e comminciata" ("Tão certamente
quanto a arte deve completar sua obra à imitação da natureza
[ou seja, evitando a mistura de gêneros diferentes], do mesmo
modo precisamos continuar e concluir a Igreja de San Petronio
conforme as máximas e princípios segundo os quais sua cons-
trução começou"); ou sej,a, segundo a "ordine chiam ata da
ciascuno ordine thedesco". Nesse ponto, pelo menos, contava
com o apoio incondicional de Terribilia que escreve (GAYE, llI,
p, 492): "Questa volta dovea essere d'ordine Tedesco et di
arte composito, per non partorire l'esorbitanza di ponere un
capello Italiano sopra un habito Tedesco" ("Essa abóbada deve
seguir a ordem tedesca, para que não se produza a exorbitância
de se colocar um chapéu italiano sobre uma roupa tedesca").
A única diferença era que Carazzi, numa justa percepção das
proporções góticas, acreditava que a triangulação proporcionava
uma regra estrita de construção; enquanto, segundo Terribilia,
o estilo gótico dividia com os outros estilos apenas as regole
n.aturali (que ditavam linhas retas para os esteios, janelas, tor-
res, e fundações), mas não possuía, de modo algum, regole
trovate dal'uso e dal'arte. Assim, com respeito às "regras da
natureza" mesmo a estrutura gótica precisa obedecer às pres-
crições de Vitrúvio; com respeito às alterationi particulares,
deve seguir os melhores exemplos do estilo gótico ou então
"daI proprio edifficio, che si dovrà continuare o emendare"
Numa passagem - naquela em que fala de chiese tedesche
ben fatte - Terribilia chega a admitir ao menos uma regra
de proporção definida (GAYE, op. cit., llI, p. 493): "perchê si
vede in tutte le chiese tedesche ben [aiie, ed ancor delle antí-
che, le quali hanno píú d'una andata, che sempre dove ter-
mina I'altezza deI una delle andate piú basse, ivi comincia Ia
imposta della volta piú alta" ("observa-se nas igrejas gerrnã-
nicas bem construídas, assim como nas antigas (italianas) com
mais de uma ala, que a cúpula da parte central mais alta,
começa ao nível marcado pela altura total das alas laterais").
.. 79. GAYE, op, cit., IH, p. 446: "Parte atendano a seguire
pru che hano saputo l'o.rdine Todesco, con il quale e incaminato
l'opera, et altri quasi intendano a mutar detto ordine et seguire
quello deU'architettura antica et parte de'detti dísegní sono uno
composito di detta architettura moderna barbara con il detto
ordine antico". É óbvio que o "catálogo" dos planos existen-
tes de Pellegrini corresponde aos três tipos de soluções pos-
síveis definídas à p. 254 e s. Além do mais, frisa que os
bons arquitetos, que verdadeiramente compreendiam a "ragione
di essa fabricha Tedesca", tomavam um cuidado especial "para
evitar confusão" quando empregavam este estilo.

270
quitetura [gótica] (que afinal são mais razoáveis do
que muitos pensam) e não misturar uma ordem com
a outra como alguns têm feito" 80.

v
Em algumas das observações que acabamos de
mencionar e, caracteristicamente, mesmo naquelas que
são desfavoráveis ao estilo gótico, percebemos um
curioso meio-tom que não devemos deixar escapar no
meio desse ruidoso debate. O mesmo Terribilia que
nega à arquitetura gótica qualquer "regra" estética fixa,
fala de "igrejas góticas bem feitas" (chiese tedesche
ben fatte) e portanto admite a existência de estrutu-
ras dignas de louvor dentro do que considera um es-
tilo objetável. Pellegrino de' Pellegrini, preferindo
uma remodelação completa all'antica e caracterizando
a arquitetura gótica como "bárbara", expressa entre-
tanto a opinião judiciosa de que "afinal, as regras da
arquitetura gótica são mais razoáveis do que muitos
pensam". Andrea PaUadio, que não hesita em julgar
toda a arquitetura medieval uma coniusione, descobre,
no imbasamento existente "certas idéias admiráveis, na
medida em que o período de construção permitia". E
até Vignola, amargo como era, declara que os muitos
erros cometidos pelo velho mestre gótico de San Pe-
tronio (que este último admitiria sem hesitação, em
1547) eram "culpa da época e não dele próprio, pois
nesse tempo a boa arquitetura ainda não era conhe-
cida, como é o caso de nossa era",
Observações como essas - e é por isso que de-
votei algum tempo ao debate acerca da fachada de
San Petronio - anunciam, apesar de todo o antago-.
nismo dogmático contra o gótico, o aparecimento do
que podemos chamar de um ponto de vista histórico
- histórico no sentido de que os fenômenos não são
apenas ligados no tempo, mas também avaliados segun-
do "sua época". E isso nos leva de volta, finalmente,
a Giorgio Vasari.
80. Ibidem: "A me piaceria osservare piú li precetti di
essa architettura che pur sono piú raggionevoli de quello che
altri pensa, senza corpore uno ordine con l'altro, come aItri
fano".

271
Vasari, também, era na realidade um representan-
te, um pioneiro de um modo de pensar histórico _
um modo de pensar que em si próprio precisa ser jul-
gado "historicamente". Deixaríamos de fazer justiça
à natureza e significado da maneira de proceder de
Vasari se a igualássemos, sem quaisquer reservas,
àquilo que nós, homens do século XX, entendemos
por "método histórico" 81; mas estaríamos igualmente
errados se, outra vez do ponto de vista do século XX,
persistíssemos em enfatizar apenas sua inadequação
histórica, ou mesmo em negar sua intenção histórica 82.
É característico da concepção de história de Va-
sari, compartilhada por seus contemporâneos e "com-
panheiros de viagens", o fato de ela ser dominada por
dois princípios essencialmente heterogêneos que só se-
riam separados no curso de um longo e laborioso de-
senvolvimento (um processo, incidentalmente, que po-
demos observar em todas as esferas do esforço inte-
lectual). De um lado, sentiu-se a necessidade de uma
exposição dos fenômenos quanto às suas conexões tan-
gíveis no tempo e espaço; de outro, sentiu-se a neces-
sidade de uma interpretação dos fenômenos quanto ao
seu valor e significado. Hoje fomos além da separa-
ção desses dois princípios (separação conseguida ape-
nas nos séculos XVIII e XIX) e acreditamos sincera-
mente que a abordagem "histórica" e "teórica" da arte
representem dois pontos de vista dissimilares no to-
cante ao método, mas necessariamente inter-relaciona-
dos e interdependentes com respeito à sua meta últi-
ma. Distinguimos uma "história da arte", limitada à
compreensão das relações que ligam as criações indi-
viduais, de uma "teoria da arte" que se preocupa, de
modo crítico ou fenomenológico, com os problemas
gerais propostos e resolvidos por eles. E justamente
porque temos consciência dessa distinção somos capa-
zes de considerar uma síntese que pode, em última
81. Essa é a opinião de U. SCOTI-BERTINELLI,
Giorgio Vasari
Scrittore, Pisa, 1905, p. 134.
82. Isso foi asseverado, contra Scoti-Bertinelli, por L.
VENTURI, n gusto dei primitWi, Bolonha, 1926, p. 118 e ss. Re-
centemente, R. KRAUTHEIMER, Die Anfânge der Kunstgeschi-
chtsschreibung in Italien, em Repertorium [iir Kunstwissenschaft,
L, 1929, p. 49 e 55., discutiu o lugar de Vasari dentro do de-
senvolvimento da história da arte; mas seu valioso artigo apa-
receu tarde demais para poder ser aqui considerado.

272
análise, interpretar o processo histórico com o devido
respeito pelos "problemas artísticos" e, inversamente,
apreciar os "problemas artísticos" de um ponto de vista
histórico.
A concepção vasariana, por outro lado, equivale
- encarada do nosso ponto de vista - a uma fusão
de dois princípios antitéticos, ainda não reconhecidos
como antitéticos: combina o pragmatismo que tenta
explicar cada fenômeno individual como efeito de uma
causa e ver todo o processo histórico como uma su-
cessão de fenômenos, cada um deles "motivado" pelo
precedente, com um dogmãtismo que acredita numa
"regra de arte" perfeita ou absoluta (perfetta regala
dell' arte) 83 e considera cada fenômeno individual
como uma tentativa mais ou menos bem sucedida de
cumprir esta regra. Como resultado desta fusão, a
construção histórica de Vasari deveria ser uma teleo-
logia. Era forçado a interpretar toda a sucessão de
realizações individuais como uma seqüência de tenta-
tivas para chegar, mais ou menos perto, desta perfeita
regala dell'arte, o que significa que era obrigado a
lançar culpa ou louvor sobre cada realização individual
de acordo com o grau de periezione obtido por ela.
, Não podemos esperar que tal concepção de his-
tória da arte, quando aplicada a "períodos" e "esti-
los", resolva o contraste entre "bom" e "mau" como
simples diferença de espécie; que abandone a quebra
brusca entre arte "medieval" e "renascentista" em
favor de um conceito moderno de diferenças dentro
da moldura de continuidade; e que compreenda cada
fenômeno individual com base em suas próprias pre-
missas em vez de medi-lo pelo estalão absoluto da
perjetta regala. No entanto, a interpretação vasariana
de história era necessária para que viesse a existir -
embora de modo um tanto indireto - o que estamos
acostumados a chamar de conceito de justiça histó-
rica, pois a dualidade oculta dos motivos que impede
uma visão clara da distinção entre os métodos de abor-
83. VASAR!,lI, p. 95: " . .. non si puõ se non dirne bene
e darle un po' píú gloria, che, se si aV2sse a giudicare con
Ia perfetta rego Ia deZZ'arte, non hanno meritato l'opere s~esse"
("... 'cumpre falar bem deles e dar-Ines um pouco mais de
glória que as obras taríam merecido por si mesmas, se fôssemos
;ulgá-las segundo o padrão de perfeição da arte").

273
dagem histórico e teórico estava destinada a resultar
numa contradição aberta. Se, de um lado, o valor de
cada realização artística era medido pelos padrões da
perfetta regola enquanto, de outro, a consecução final
dessa "perfeição" pressupunha uma sucessão contínua
de realizações individuais, cada um deles representando
um passo numa estrada predeterminada, tornou-se ine-
vitável avaliar cada um desses passos como "melhoria"
(miglioramento) 84 mais ou menos significativa. Em
outras palavras, o nível geral de consecução de uma
dada época (por exemplo, na opinião de Vasari, o zero
absoluto marcado pela Idade Média) tinha que ser re-
conhecido como um segundo padrão de avaliação pelo
qual a obra de arte individual, embora ainda longe da
"perfeição", fosse, relativamente falando, meritória. O
padrão da perfetta regola veio a ser, inevitavelmente,
suplementado pelo da natura di quei tempi: foi preciso
. levar-se em conta que uma dada condição histórica
impunha limitações intransponíveis a cada artista e
que portanto, cumpria atribuir um valor positivo à sua
obra do ponto de vista histórico, ainda que fosse mis-
ter condená-lo pelo ângulo dos dogmas estéticos.
Desse modo podemos compreender o que, à pri-
meira vista, parecia surpreendente: que os oponentes
mais radicais .do estilo gótico fossem os primeiros a
perceber a necessidade de reconhecer valores relativos
no que parecia não ter valoralgum; e que a própria
hostilidade que, como já vimos, produziu a primeira
caracterização estilística da arte medieval, produzisse,
também, sua primeira avaliação histórica. Mas po-
demos também entender que a primeira avaliação his-
tórica do estilo gótico tendesse a assumir a forma de
apologia: uma apologia do pobre artista que não po-
dia elaborar coisa melhor devido à época e uma apolo-
gia do pobre historiador que devia estar preparado
para considerar, na verdade reconhecer, esses imper-
feitos edifícios, pinturas e estátuas.
Mesmo Vasari, cujo antagonismo com o gótico
não poderia ser mais forte, elogia calorosamente toda
uma série de monumentos de arte e arquitetura do
84. Cf.. em lugar de inúmeras outras, a passagem citada
na nota 126.

274
meio e fim da era medieval 85. Por isso, foi acusado
de "surpreendente incongruência" que só poderia ex-
plicar-se por -seu patriotismo local 86; mas ele é incon-
gruente apenas na medida em que os próprios funda-
mentos de seu pensar artístico-histórico, se visualiza-
do sob nossa perspectiva, são contraditórios. Quan-
do aprova certos edifícios góticos ao mesmo tempo
que desaprova a arquitetura gótica em geral, não é
mais incoerente do que ao declarar, a respeito de mui-
tos pintores e escultores anteriores, que as obras deles
- embora "nós, modernos, não as possamos mais
chamar de belas" - eram "admiráveis para sua épo-
ca" e haviam contribuído com isso ou aquilo para a
revivescência da arte 87. O caso é que suas estimativas,
quando não se referem às grandes produções de sua
própria época, são relativas e absolutas ao mesmo
tempo; e quando, excepcionalmente, reconhece uma
obra anterior como "insuperada", a saber, o domo e
o lanternim da Catedral de Florença, tem o cuidado
de frisar que se trata de um caso especial: "não deve-
mos, entretanto, deduzir a excelência do todo da bele-
za e perfeição de um único detalhe" 88. Apenas do
nosso ponto de vista, e não no do século XVI, é uma
contradição quando, o mesmo autor que numa passa-
gem elogia o modelo de Arnolfo di Cambio para a
Catedral como algo que (segundo os padrões da época)
não "se podia louvar o suficiente", em outra, acusa o
mesmo Arnolfo, assim como seu contemporâneo mais
moço, Giotto, de toda a confusão de estilos e corrup-
ção das proporções (segundo a perjetta regola dell'arte)
em que consiste a natureza do gótico. Essa confusão
e corrupção só podia dissipar-se depois de o "gran
Filippo Brunelleschi" ter redescoberto as medidas e
85. FREY,p. 486: ••... fece Arnolfo il disegno et il modello
dei non mai abbastanza lodato tempio di Santa Maria dei Fio-
re .. ." Cf., também, por Exemplo, FREY,p. 199, sobre S. M. in
sul Monte, ou FREY,p. 196, sobre SS. Apostolí e sua relação
com Brunelleschi.
86. FREY,p. 71, nota 48.
87. Ver, por exemplo, a passagem sobre a arte de Cimabue
(citada à p. 235), ou as passagens sobre a melhoria da
arquitetura devida a Arnolfo di Cambio (citado adiante, notas
124 e 126).
88. Citado na nota 90.

275
proporções clássicas 89. E mesmo Brunelleschi não
pode, segundo Vasari, reivindicar a qualidade da
periezione, pois a arte atingiu ainda graus mais altos
de excelência depois deles 90.
Vasari - e este é o ponto mais importante -
reconhecia esse tipo peculiar de relatividade. No Pre-
fácio da Segunda Parte, por exemplo, lemos: "Portan-
to, esses mestres que viveram nessa época, e que co-
loquei na Primeira Parte do livro, são dignos de elo-
gios e crédito por suas obras, se se considerar - o
que também vale para as obras dos arquitetos e pin-
89. VASAR!,II, 103: "Perchê prima con 10 studio e con Ia
diligenza deI gran Filippo Brunelleschi I'architettura ritrovó le
misure e le proporzioni deglí antichi, cosi nelle colonne
tonde, come ne' pilastri quadri e nelle cantonate rustiche e
pulite, e allora si distinse ordine per ordine, e fecesi vede:-e. Ia
differenza che era tra loro" ("Assim, com o estudo e a drlígên-
cia do grande Filippo Brunelleschi, a arquitetura primeiro
recuperou as medidas e proporções dos antigos, nas colunas
redondas e nos pilares quadrados, assim como nas cantoneiras
rústicas e lisas; e depois uma ordem foi diferenciada da outra,
de modo que a diferença existente entre elas se tornou eVI-
dente"). Em sua própria Vida (VASARI, lI, p. 328), afirma que
antes de sua época a arquitetura perdera-se por completo e
que muitas pessoas tinham gasto dinheiro à toa "facendo fa-
briche senza ordine, con mal modo, con tríste dísegno, con
stranissime invenzioni, con Ia disgraziatissima gr.azia, e con
peggior ornamento" ("fazendo edifícios sem ordem, com mau
método, péssimo desenho, invenções estranhíssírnas, graça des-
graciosíssima e ornatos horrendos"), Mais adiante, louvando
Brunelleschi uma vez mais por sua redescoberta da ordem antí-
ga, Vasari acrescenta que a obra de Brunelleschi foi ainda
maior pois "ne' tempi suoi era Ia maniera Tedesca m vene-
razione per tutta Italia e dagli ,artefici vecchi exercitata" ('.'na
sua época, a maneira germânica era venerada, e~ toda ,a_Italta
e praticada pelos velhos artistas"), Na primerra edição de
Vidas, a lista dessas abominações ainda incluía a Catedral d:e
Florença e a Santa Croce (VASAR!,!I, p, 383); na segunda. edi-
ção, esses edifícios foram transterídos para o novo capítulo.
"Vida de Arnolfo di Cambio" (ver adiante p. 286) e, portanto, rrs-
cados da lista negra,
90. VASAR!,lI, p. 105: "Nondimeno elle si possono sícura-
mente chiamar beIle e buone. Non le 'chiamo giã perfette,
perchê veduto poi meglío in quest'arte, mi pare poter ragío-
nevolmente affermare, che Ia mancava qualcosa. E sabbene
e'v'e quaIche parte míracolosa, e della quale ne', tempí nostri per
ancora non si é fatto meglío, ne per avventura SI fara m, quer che
verranno, come verbígrazía Ia lanterna deIla cupola dí ::;. Ma-
ria deI Fiore, e per grandezza essa cupofav . . : pur S1, parIa
universaltnente In genere, e non si debbe dalla perfezíone e
bontã d'una cosa sola argumentare I'eccellenza deI tutto" ("En-
tretanto elas (as obras da geração de Brunelleschi) podem
segura~ente ser consideradas belas e boas, Não as chamo ainda
perfeitas, porque depois houve uma coisa ainda melhor na
arte, e parece-me que havia algo faltando nelas, E, embora
haja nessas obras partes tão miraculosas que nada melhor foi
feito em nossa época, nem será, porventura, nos tempos que
virão, como, por exemplo, o lanterni~ da cúpula de Santa
Maria deI Fiore, e, em grandeza, aproprIa cúp ufai • porém.
• :

estamos falando genérica e universaltnente, e não devemos de-


duzir a excelência do todo da perfeição de uma única coisa").

276
tores desses tempos - que não contaram com qual-
quer ajuda das eras precedentes e tiveram que achar
o caminho por si mesmos; e um começo, por menor
que seja, é sempre digno de louvor" 91. E, talvez
ainda mais claramente: "Nem quero que ninguém
pense que sou tão tolo ou fraco de julgamento que
não saiba que as obras de Giotto, Andrea Pisano, Nino
e todos os outros que coloquei juntos na Primeira
Parte devido à semelhança de maneira, se compara-
das com os homens que trabalharam depois deles, não
merecem extraordinários nem medíocres elogios; ou
que não vi isso quando os elogiei; mas, quem quer
que pondere as características da época, a escassez de
artesãos e a dificuldade de encontrar boa assistência,
há de considerá-los não apenas belos, como os chamei,
mas miraculosos ... " 92
No final de sua própria Vida, finalmente, depara-
mos algumas sentenças que, em vista do lugar em que
ocorrem, devem ser consideradas como uma declara-
ção conclusiva de convicção: "Àqueles aos quais possa
parecer que tenha supervalorizado algum arte~ão, quer
antigo ou moderno, e que, comparando os antigos com
os de agora, possa se rir deles não sei o 9ue responder
a não ser que minha intenção sempre foi a de louvar,
não absolutamente, mas, como se costuma dizer, rela-
tivamente (non semplicemente, ma, come s'usa dire,
secando chê) quanto ao tempo, lugar e outra~ circuns-
tâncias semelhantes; e, na verdade, embora Giotto, por
exemplo, fosse muito gabado em sua época, não sei o
91 VASAR!,II, p. 100: "Laonde que' maestrt che furono
in qu'esto tempo e da me sono stati messí neIla prima parte,
meriteranno queIla lode, e d'esser tenuti in, quel conto que
meritano le cose fatte da loro, purché si consíderi, come anche
queIle deglí architetti e de' pittori de que' tempí, che no,:,
ebbono innanzi ajuto ed ebbono a trovare Ia VIa d~ per loro,
e il principio, ancora che piccolo, e degno sempre di lode non
píccola",
92, VASAR!,II, p. 102: "Ne voglio che alcuno creda che ío
sía si grosso, ne di si poco giudicio, che io non c:;onosc:;a,ch,e
le cose di Giotto e di Andrea Pisano e Nino e degh altr'í tuttí,
che per Ia similitudine deIle maniere ho mes,si insieme nel!a
prima parte, se el!e si compareranno a quelle dí ,colo.r, che dopo
loro hanno opera to, non merieranno lode straordínarta ~e a~che
medíocre. Ne ê che io non abbia cio veduto, quan~o 10 gh ho
laudati. Ma chi considerarà Ia qualitã di que' tempí , Ia carestia
degli artefici, Ia difficultã de' buoni ajuti, le, terrã non bel!e,
come ho detto io, ma miracolose". A respeIto da expressao
miracolose, cf., por exemplo, a passagem CItada na nota 90.

277
que seria dito dele, e de outros grandes mestres, se
vivesse nos tempos de Buonarroti; enquanto que os
homens dessa era, que se situa no topo da perfeição,
não estariam na posição que estão se aqueles outros
não tivessem sido o que foram antes de nós" 93.
'Demorou algum tempo para que esse reconheci-
mento apologético se desenvolvesse num postulado po-
sitivo de justiça histórica 94. No entanto, a clara di-
ferenciação de Vasari entre "belo" e "miraculoso", e
seu apelo insistente em favor do histórico secondo chê
- o termo, nem é preciso dizer, é tomado da distin-
ção escolástica entre simpliciter ou per se e secundum
quid, a "afirmação absoluta" e "a afirmação em re-
lação a algo" - permitiu-nos ver que sua moldura
gótica é um pouco menos paradoxal do que parecia
à primeira vista. Para compreendê-Ia completamen-
te, entretanto, precisamos ir um pouco além. :É, no
fim de contas, um passo considerável o que vai da
aceitação relutante das antiguidades góticas até a pro-
dução espontânea de uma obra à maneira gótica, e
mesmo o princípio da conjormitã não basta para ex-
plicar nosso pequeno monumento.
93. VASARI,VII, p. 726: "A coloro, ai quali paresse che ío
avessi alcuni o vecchi o moderni troppo lodato e che, facendo
comparazione da essi vecchi a quelli di questa età, se ne rides-
sero non so che altro mi rispondere; se non che intendo avere
sempre lodato, non semplicemente, ma! come s'usa d~re! se~on?o
chê, e avuto rispetto ai Iuoghí, tempí ed altre somtglíantí crr-
constanze. E nel vero, come che Gío'tto fusse, poruamo caso,
ne' suoi tempi lodatissimo: non so quello, che di lui e d'altri
antichi si fusse detto, se fussi stato aI tempo deI Buonarroto
oltre che gli uomini di questo secolo, i1 quale é nel colm~
delIa perfezione non sarebbono nel grado che sono, se quellt
non fussero pri~a statí tali e quel, che furono, innanzi a noi"
(citado em L. VENTURI,op. cit., p. 118).
94. O postulado de just:ça histórica é formulado, explici-
tamente, na Introdução de GroVANNICINELLI,do livro Le
Be!!ezze de!la Città di Firenze de FRANcEscoBOCCHI, Florença,
1677, p. 4: "Onde per i1 fine stesso delIa Legge, cíoé di dare
'ius suum unicuique', siccome non istírnerõ bene le cose ordi-
narie doversi ín estremo Iodare, cosi io non potro anche sentir
biasimare il disegno di Cimabue benchê lontano dal vero, ma
devesi egli molto nondimeno commendare per esser stato il
rinuovatore della pittura" ("Assim, em vista da própria razão
de ser da Lei, dar ius suum unicuique, não penso que seja
certo louvar extremamente coisas comuns; mas, pelo mesmo
postulado, não posso concordar com os que criticam o desenho
de Cimabue, embora esteja longe da perfeição; é necessário
elogiá-Io muito por ter sido o renovador da J)intura"); Que
seu pedido de justiça focalizasse a pessoa de Cimabue e expli-
cável pelas mesmas considerações que levaram Vasari a desenhar
uma moldura "histórica" para o que acreditava ser um estudo
de Cimabue.

278
Ao construírem o Tibúrio de Milão, os artistas
defrontaram-se com o problema de preservar a uni-
dade estilística ao acrescentar uma nova torre a uma
dada nave, ou seja, de harmonizar dois elementos, um
novo e outro antigo, mas homogêneos quanto ao
meio. Vasari colocou-se o problema de produzir
a unidade estilística mediante o acréscimo de uma
nova moldura a um desenho dado, ou seja, de harmo-
nizar dois elementos, um novo, outro antigo, mas hete-
rogêneos no tocante ao meio. No caso do Tibúrio,
o problema era, como sabemos pelas fontes, apenas
um caso de correspondência formal; o estilo do novo
Tibúrio deveria ser tão "gótico" quanto o da velha
nave. A arte de Cimabue, entretanto, era, segundo
Vasari, não gótica mas "bizantina" ("embora ele (Ci-
mabue) imitasse esses gregos, adicionou muita perfei-
. ção à arte") 95; e que Vasari não estava primordial-
mente preocupado com a coniormitã estilística se
evidencia pelo simples fato de haver decorado o arco
de seu portal medievalizante com uma de suas próprias
xilogravuras, posta numa cártula tão moderna quanto
era capaz de fazer.
A idéia de que um desenho de Cimabue combine
com uma moldura gótica difere, portanto, fundamen-
talmente da que uma igreja gótica deveria receber uma
torre gótica: não implica o postulado da uniformidade
óptica no âmbito de uma certa obra de arte, mas no
postulado da uniformidade espiritual dentro de um
dado período - uma uniformidade que transcende
não apenas à diversidade de meios (representação fi-
gurativa e decoração arquitetônica) mas também à
diversidade dos estilos ("gótico" e "bizantino"). Esse
postulado - mais histórico que estético - foi, de
fato, o princípio básico das Vidas de Vasari, onde
arquitetura, pintura e escultura são mostradas, pela
primeira vez, desenvolvendo-se pari passu, reduzidas a
um denominador comum. Foi Vasari quem primeiro 96
95. FREY,p. 392: ••... se bene imito quei greci, aggiunse
moIta perfezione alI'arte ... "
96. A idéia de que a escultura e a pintura, a despeito de
suas diferenças, eram "artes irmãs" e deveriam tentar acomo-
dar suas desavenças familiares, data desde Alberti e foi de-
fendida por Benedetto Varchi (o destinatário da carta citada
na nota 99) e pelo próprio Vasari. Mas ninguém antes de
Vasari frisara, - e explicara a esse ponto - .a unidade inerente
dessas três "ar tes visuais", ou as tratara num livro.

279
afirmou que essas três artes eram filhas do mesmo
pai, a "arte do desenho", eommune padre delle tre
arti nostre, architettura, seultura et pittura 97, pelo que
ele não só investe a noção de "desenho" de um halo
ontológico (ao qual seus sucessores, como Federico
Zuccari e os porta-vozes de várias academias acrescen-
tariam um outro, metaíísico) 98 mas também estabe-
leceu o que tendemos a tomar por certo: a unidade
interior do que chamamos artes visuais ou, ainda mais
concisamente, Belas-Artes.
Vasari aceita, é claro, urna certa hierarquia den-
tro dessa tríade. Para ele, como para a maioria dos
seus antecessores e contemporâneos, a arte não-imita-
tiva da arquitetura tem precedência sobre as artes re-
presentativas; e, como pintor, sentiu-se na obrigação
de decidir a velha disputa entre pintura e escultura
em favor da primeira 99. Mas nunca vacilou em sua
convicção de que todas as Belas-Artes se baseiam no
mesmo princípio criativo e são, portanto, sujeitas a
um desenvolvimento paralelo. Fiel ao espírito de sua
Introdução - onde arquitetura, escultura e pintura
são, pela primeira vez, tratadas numa mesma disser-
tação - refere-se constantemente a elas como queste
tre arti, dedica atenção igual a seus respectivos repre-
sentantes e nunca se cansa de frisar a uniformidade de
seu destino histórico. A moldura "gótica" de Vasari
tornar-se-ia totalmente compreensível se pudéssemos
demonstrar que o estilo figurativo de um desenho de
Cimabue e o estilo arquitetônico usado em sua mol-
dura ocupam o mesmo loeus dentro da concepção his-
tórica de Vasari.
97. FREY,p. 103 e 55. Toda a passagem sobre o disegno
(FREY,pp. 103-07) não estava incluída na primeira edição de
1550 e foi inserida (segundo Frey, às instâncias e com a assis-
tência de Vincenzo Borghini) na Introdução da segunda edição
de 1568. Entretanto, Vasari caracterizava o desenho como "pai"
das três artes já em 1546 (Carta a Benedetto Varchi, citada na
nota 99).
98. Cf. E. PANOFSKY, Idea (Studien der Bibliotek Warburg,
V), Leipzig e Berlim, 1924, p. 47 e 55. e p. 104.
99. G. BOTTARI e S. TICOZZI,Racco!ta di !ettere su!!a pittura,
scu!tura ed architettura, Milão, 1822-25, p. 53 (arquitetura su-
perior à pintura e escultura) e p. 57: "E perché il disegno e
padre di ognuna di queste arti ed essendo il dipingere e di-
segnare píú nostro che loro"; tradução alemã em E. GUHL.
Künst!erbriefe, 2. ed., Berlim, 1880, p. 289 e 55.

280
Como se sabe, essa concepção histórica baseia-se
numa teoria da evolução segundo a qual o "progresso"
histórico da arte e cultura passa através de três fases
(età) predeterminadas - e portanto, típicas 100 -: a
primeira, estádio primitivo em que as três artes se
acham na infância 101 e existem, por assim dizer, ape-
nas em "esboço grosseiro" (abozzo) 102; a segunda,
estádio de transição, comparável à adolescência, em que
se fizeram progressos consideráveis, mas que não pode
ainda atingir a absoluta perfeição 103; e finalmente, um
estádio de plena maturidade, no qual a arte "subiu tão
alto que se pode temer uma recessão em lugar de es-
perar maiores progressos" 104.
Foi uma idéia cara aos historiógrafos clássicos -
uma idéia, diga-se de passagem, que sobreviveu atra-
vés de toda a Idade Média em numerosas variações
- de que a evolução de um Estado ou nação corres-
pondiam às idades do homem 105. Para chegar ao seu
100. VASARI,lI, p. 96: ••... giudico che sia Una proprietà
ed una particolare natura di queste ~rti, le quaU da uno umUe
principio vadano a poco a poco míglíorando, e fmalmente per-
vengano al colmo della perfezione.. E questo me ~o fa. credere
11 vedere essere intervenuto quasl questo medesímo m altra
facultá; che per essere fra tutte le Arti liberl!l~ un ce;,to ••chê
di parentado, e non piccolo argumente. che e sia . vero ( ...
Julgo que seja parte da natureza peculiar e particular de~sas
artes irem melhorando pouco a pouco, de um começo humílde
para atingirem. finalmente, o auge da perfeição; disso estou
persuadido por ver que quase a mesma COlSaocorre com as
outras faculdades, o que é um argumento a favor de sua ver-
dade, já que há um certo parentesco entre todas as artes
liberais") .
101. VASARI,lI, p, 103: "Ora poi che noi abbiamo levate
da balia, per un modo di dir cosi fatto, queste tre Artí, «:
cavatele dalla fanciullezza, ne viene Ia seconda età, dove :51
vedrà infinitamente migliorata ogni cosa" ("Agora que, por
assim dizer, desmamamos essas três artes, e as criamos até ul-
trapassarem o estágio da infância, surge a segunda idade delas,
onde se verão melhorias infinitas em todas as coisas").
102. VASARI,lI, p. 102.
103. VASARI, n. p. 95.
104. VASARI,lI, p. 96.
105. Cf. SCBLOSSER, Kunstliteratur, p. 227 e S5. Uma inves-
tigac;;ão sistemática das várias formas em que 05 períodos his-
tóricos foram comparados às idades do homem é extremamente
necessária. já que a dissertação de J. A. Kr.En!SORGE, Beitrage
ZU1' Geschichte der Lehre vom Para!le!ismus der Individua!-und
Gesarntentwick!ung, Iena, 1900, é bastante inadequada. Os his-
toriadores clássicos aplicam essa comparação (já aceita por
Critolau) ao Estado romano; 05 autores cristãos (na medida
em que falam por si mesmos em vez d«:, com,? Lactânci?, se
referirem aos escritores romanos com mtenc;;oes polêmícas) ,
aplicam-na ao mundo 'Como um todo, à "Cristandade" (por
exemplo, a "World Chronicle" saxôníca, Mon. ,Ger Dtsch. C.hro-
niken, lI, p. 115) ou à Igreja. Assim, Opicmus de Cam.stns
(ver agora R. SALOMON. ()piclnus de Canistris, Weltbild und

281
sistema de periodização, Vasari precisava apenas subs-
tituir o conceito de Estado ou nação pelo de cultura
intelectual, e, particularmente, artística; e mesmo sob
este aspecto, os historiadores romanos ofereciam um
ponto de partida 106. Podemos até citar o autor ao
qual Vasari parece dever mais: L. Annaeus Florus,
cuja Epitome rerum Romanarum foi publicada numa
tradução italiana em 1546. Florus divide a história
romana da seguinte forma: "Se fôssemos considerar
o povo de Roma como que um ser humano e exami-
nar sua vida inteira, como começaram, cresceram, atin-
giram, por assim dizer, a flor da juventude e como,
subseqüentemente, envelheceram, poder-se-iam desco-
brir quatro estágios ou fases. Sua primeira idade fOI
a dominada pelos reis, durando cerca de duzentos e
cinqüenta anos, quando lutaram com os vizinhos por
causa da própria mãe. Essa seria sua infância. O
próximo período também se estende por duzentos e
cinqüenta anos, desde o Consulado de Bruto e Colatino
até o de Ápio Cláudio e Quito Flávio, durante os
quais conquistaram a Itália; essa foi uma época de
vida das mais intensas com homens e armas, razão pela
qual se pode chamá-Ia de sua adolescência. Então
se seguem os duzentos anos até Augusto, durante os
quais conquistaram o mundo inteiro; é a juventude do
Império e, na verdade, sua vigorosa maturidade. Desde
Augusto até nossos dias, pouco menos de . duzentos

Bekenntnisse eines Avignonesischen Klerikers des 14 Jahrhun-


derts, Londres, 1936. p. 185 e S5. e 221 e ss.) sustenta que du-
zentos papas haviam governado, desde São Padro até o ano
do Primeiro Jubileu, constituindo os cinqüenta primeiros a
pueritia da Igreja; os segundos cinqüenta. a iuventus; os ter-
ceiros cinqüenta, a senectus. e os últimos, a senium. Essa
divisão da vida humana em quartos, preferida, geralmente. por
causa de sua correspondência com as estações do ano. os ele-
mentos e os humores (ver F. BOLL, "Die Lebensalter",
Jahrbücher für das Klassische Altertum, XVI, 1913, p. 89 e ss.) ,
só pode ser realizada pela subdivisão da meia-idade em ado-
lescentia e maturitas ou iuventus, ou então, da velhice em
seneçtus e senium.
106. VELLEIUS PATERCULUS, por exemplo, observa, na con-
clusão da primeira parte de sua Historia Romana, (I, 17).
onde comenta a brevidade do estado de eflorescência: "Hoc
idem evenisse gr arnmatics. plastis, pictoribus, sculptoribus,
quisquís temporum institerit notis, reperiet, eminentiam cuius-
que operis artissimis temporum claustris circundatam" ("Quem
prestar atenção nas características distintivas dos períodos, verá
que as mesmas são verdadeiras para os filólogos, escultores,
pintores e entalhadores, ou seja, para qualquer tipo de ativi-
dade em que grandes empreendimentos estejam confinados a
limites de tempo extremamente restritos").

282
anos se passaram. Durante esse tempo [O povo roma-
no] envelheceu e desfez-se, por assim dizer, devido à
falta de energia dos imperadores - exceto quando
exerceram sua força sob a chefia de Trajano, de modo
que, a velhice do Império, contra todas as expectati-
vas revive como se recuperasse a mocidade" 107.
Entretanto, ao compararmos as opiniões de Va-
sari com as de Florus (e outros historiadores roma-
nos, desde Salústio até Lactâncio) 108, percebemos que
há uma diferença crucial. Onde Florus e Salústio per-
mitem, com muita lógica, que a robusta maturitas do
homem se esvaia na decrepitude da velhice, e onde Lac-
tâncio chega mesmo a ver essa velhice seguida de uma
segunda infância e finalmente da morte, Vasari con-
duz o paralelo entre o processo histórico e as idades
do homem somente até a "perfeição" da maturidade;
dos quatro estádios de vida de Florus, (iniantia, ado-
lescentia, maturitas, senectus), reconhece apenas os
três ascendentes.
Tal evasão das amargas conseqüências da com-
paração com as idades humanas também aparece em
outros autores; mas, sempre que ocorre, pode-se expli-
107. Epitome rerum Romanarum, Prefácio; cf. SCHLOSSER,
KunstUteratur, p. 277: "Siquis ergo populum Romanum quasi
hominem consideret totamque eius aetatem percenseat, ut
coeperit, utque adoleverit, ut quasi ad quendam iuventae florem
perveniret, ut postea velut consenuerit, quattuor gradus pro-
cessusque eius inveniet. Prima aetas sub regibus fuit, prope
ducentos quinquaginta per annos, quibus circum ipsam matrem
suam cum finitimis luctatus est. Haec erit eius infantia. Se-
quens a Bruto Collatinoque consulibus ín Appium Claudium
Quintum Flavium consules ducentos quinquaginta annos patet:
quibus Italiam subegit. Hoc fuit tempus viris armisque incí-
tatissimum: ideo quis adolescentiam dixerit. Dehinc ad Caesa-
rem Augustum ducenti anni, quibus totum orbem pacavit.
Haec iam ipsa iuventa imperii et quaedam quasi robusta ma-
turitas. A Caes.are Augusto in saeculum nostrum haud multo
minus anni ducenti: quíbus inertia Caesarum quasi consenuit
atque decoxit, nisi quod sub Traiano principe movet lacertos
et praeter spem omnium senectus imperii, quasi reddita
iuventute, revirescit".
108. Div. Inst., VII, 15, 14 e ss. (Corp. Script. Ecc!es. Lat.,
IX, 1890, p. 633). Lactâncío baseia-se em Sêneca para sua perio-
dização (como talvez tambêm Florus); mas não há dúvida de
que sofreu maiores influências de Salústio, segundo o qual o
decllnio do Impêrio Romano data da queda final de Cartago.
Essa teoria explica o fato de Lactâncio, embora colocando -
como Sêneca - o "começo da maturidade" no fim das Guerras
Púnicas, afirmar que a prima senectus também teve seu inicio
no mesmo acontecimento. 1: claro que ele não está interessado
no problema da periodização como tal; preocupa-se unica-
mente em demonstrar que os próprios historiadores pagãos
tinham reconhecido o declinio inevitável do Império Romano.
Cf. o óitmo artigo de F. KLINGNER, Ueber die Einleitung der
Historien Sallusts, Hermes, LXIII, 1928, p. 165 e ss.

283
cá-Ia por motivos especiais. Quando, por exemplo,
Tertuliano e Santo Agostinho se abstêm de prolongar
o paralelo biológico além da fase da maturidade, o
primeiro o faz I?orque considera o período "paraclé-
tico" como a perfeição eterna; e Santo Agostinho por-
que não pode admitir que o desenvolvimento da Ci-
dade de Deus possa jamais levar à velhice ou mesmo
à morte 109.
Então, baseado em que Vasari negou - ou, pelo
menos, ignorou, - o declínio exigido pela natureza?
A resposta é que sua visão histórica também estava
ligada a um dogma, embora não teológica. Ligava-se
à inabalável convicção humanista de que a civilização
clássica fora destruída por violência física e repressão
intolerante mas, cerca de mil anos mais tarde, "renas-
cera" na renovação espontânea da età moderna. Para
Vasari e seus contemporâneos era impossível conciliar
essa convicção com a noção do envelhecimento e morte
natural - do mesmo modo que para eles era impos-
sível admitir a idéia de uma alternação cíclica entre
grandes períodos de ascensão e decadência (idéia essa
que apareceria, de um modo quase visionário, no es-
pírito de Giordano Bruno 110 e que cristalizaria numa
teoria acabada na famosa doutrina do corsi e ricorsi
de Giovambattista Vico) 111. Tivessem a civilizaçã~
clássica em geral e a arte clássica em particular encon-
trado seu fim, não por catástrofe, mas devido ao pró-
prio envelhecimento, seria tão absurdo deplorar sua
destruição quanto exultar com sua ressurreição.
Assim, testemunhamos esse fato notável: que o
dogma teológico dos Pais da Igreja e o dogma huma-
nístico dos historiógrafos da Renascença levavam a re-
sultados análogos - em ambos os casos só era pos-
sível manter a comparação dos períodos históricos com
109. Cf. KL!:mSORGE, op. cit., pp. 5 e 9.
110. 1: característico de Bruno que sua concepção de um
movimento cíclíco na história - longe de reclamar o status
de uma "lei histórica" objetiva - permaneça dentro de uma
esfera mística e intensamente emocional. Profundamente ra-
dicada no seu pessimismo pessoal, é ligada a obscursos sím-
bolos eglpclos (Eroici Furori, lI, I, cf. p. 214) e profecias "hermé-
ticas" (Ibldem, 11. 3 e Spaccio della Bestia tsionfante [Opere
italiane, G. Gentlle, ed.], III, p. 180 e 55.).
~11. C.f., em particular, B. CROCE, La Filosofia di Giovam-
batttsta VlCO, Barl, 1911, p. 123 e 55. (tradução inglesa de R. G.
Collingwood, Nova York, 1913, Capo 11) e M. LONGO, G. B. Vico,
Turim, 1921, p. 169 e ss.

284
as diferentes idades do homem sob a condição de que
o paralelismo parasse na fase da maturidade. Destarte,
Vasari podia subordinar a idéia de crescimento e de-
cadência biológicos à idéia de um "progresso" espiri-
tual que pode ser promovido por fatores externos (por
exemplo, pelo ambiente natural ou pela redescoberta
de antiguidades romanas) 112, mas depende essencial-
mente da "natureza" das próprias artes 113. Esse oti-
mismo, não mais baseado na religião, tem, entretanto,
algo de inquietantemente frágil. Como podemos de-
preender da observação acima citada, segundo a qual
o desenvolvimento atingira um ponto em que "se teme
uma recessão mais do que se espera progressos ulte-
riores", Vasari tinha uma premonição trágica do de-
clínio iminente. E atrás de seu famoso panegírico de
Michelangelo - onde diz que as pinturas de Miche-
langelo, se fosse possível compará-Ias com as mais
famosas pinturas gregas e romanas, mostrar-se-iam não
menos superiores do que suas esculturas 114 - esprei-
ta a pergunta constante: depois da obra realizada por
esse divino, o que se pode esperar dos outros, artistas
menores? Talvez não fosse de todo desagradável para
Vasari - representante típico de uma época que, em-
bora na aparência confiante em si, era profundamen-
te insegura e muitas vezes beirava o desespero - o
fato de não ser obrigado a responder a essa pergunta.
Ele, que lançava a responsabilidade pelo declínio da
civilização clássica sobre as migrações e o iconoclas-
mo, é poupado da necessidade de diagnosticar a doen-
ça de sua própria época como congênita.
Quaisquer que fossem seus motivos para reduzir
os quatro estádios de crescimento e decadência para
um movimento ascendente de três fases, Vasari con-
seguiu incorporar a idéia de um desenvolvimento semi-
biológico, presumivelmente válido para todos os pro-
cessos históricos, nessa teoria da catástrofe, que ex-
plicava um acontecimento específico - por exemplo,
o declínio cultural da "época das trevas" - pela des-
trutividade das tribos bárbaras e pela oposição do
Cristianismo às imagens. Segundo esta fórmula aco-
112. SCHLOSSER. Kunstliteratur. p. ,283.
113. Citado na nota 100.
114. VASARI, IV, p. 13 e ss.

285
modatícia, a ascensão em três "etapas" (età) verifica-
se duas vezes na história da arte européia: primeiro,
na Antiguidade clássica; segundo, no começo do Tre-
zentos, na era "moderna". Na Antiguidade (em que
Vasari não dispunha de quaisquer nomes de arquite-
tos, a primeira età é representada apenas pelos escul-
tores Canaco e Calamis, e os pintores "monocromáti-
cos"; a segunda, pelo escultor Miron e os pintores de
"quatro cores", Zêuxis, Polignoto e Timanto; a ter-
ceira, finalmente, por Policleto, pelos "outros esculto-
res da idade de ouro", e pelo grande pintor Apeles lU'.
Nos tempos modernos, a primeira età começa com
Cimabue, os Pisani, Giotto, e Arnolfo di Cambio 116.
a segunda, com Jacopo deIla Quercia Donatello Ma~
sacio e BruneIleschi; a terceira, a qual se distingue
pelo aparecimento do "artista universal", que prima em
todas as três "artes baseadas no desenho", é introduzi-
da por Leonardo da Vinci, para atingir o ápice com
Rafael e, sobretudo, Michelangelo.
Essa arrojada e bela estrutura, entretanto, não
estava livre de fissuras, a marcar justamente os lu-
gares onde a teoria da ascensão e decadência naturais
autônomas, entra em choque com a da catástrofe ex~
terna. Uma dessas falhas aparece quando Vasari con-
cede que o declínio da arte clássica se deveu a condi-
ções internas existentes antes mesmo do advento dos
bárbaros 117; outra, quando percebe que a súbita in-
versão da tendência descendente, o rinascimento pós-
-medieval, só podia explicar-se pela aparição inesperada
de determinados indivíduos, surgidos, por assim dizer
por um ato divino. E é nessa segunda conjuntura
que nos defrontamos com Giovanni Cimabue que, "por
vontade de Deus, nasceu no ano de 1240 para lançar
a primeira luz sobre a arte da pintura" 118. Ele, "é
verdade, ainda copiava os gregos"; mas, "aperfeiçoou
a arte em muitos aspectos, pois, ele a libertou em
. 115: o arranjo da Kunstliteratur de SCHLOSSER,
p. 283, não
e ínteíramente correto. Segundo Vasari, Polignoto pertence à
segunda etd.
. 116. Extremamente importante é a Introdução da Vida de
Ntccolo e Giovanni Pisani (FREY, p. 643; citado em BENKARD.
op, cít., p. 68).
117 FREY,p. 170, linha 23 e ss.
118. FREY,p. 389.

286
grande parte, de sua maneira rude" 119. E, embora
coubesse a Giotto "abrir as portas da verdade para
as gerações futuras" 120 e a Masaccio e Paolo Uccello
serem os libertadores finais e verdadeiros "condutores
ao pico mais alto" 121, ainda assim era preciso honrar
Cimabue como "a primeira causa da renovação da pin-
tura" (ia prima cagione della rinouazione dell' arte della
pittura) 122.

Nessa mesma oportunidade, sobressai - como


arquiteto - Arnolfo di Cambio. Assim como Vasari
diz que o estilo de Cimabue, embora ainda pertença à
maniera greca, merece louvor porque representa "uma
grande melhora em muitas coisas", afirma, quase com
as mesmas palavras, que Arnolfo di Cambio, embora
ainda bem distante de Brunelleschi, o verdadeiro ven-
cedor do dragão gótico 123, "merece, entretanto ser ce-
lebrado. com reminiscência carinhosa porque, numa
época de tamanha escuridão, mostrou o caminho da
perfeição àqueles que vieram em sua esteira" 124.
Isso significa que, na opinião de Vasari, Arnolfo di
Cambio e Cimabue, cada um deles "uma voz claman-
do no deserto", assinalam o mesmo ponto de progres-
so em suas respectivas profissões e, em uma passagem,
formula esse paralelo entre o não-mais-totalmente-
-gótico Arnolfo 125 e o não-mais-totalmente-bizantino
Cimabue no que redunda quase em uma equação ma-
119. FREY,p. 392, citado p. 279.
120. FREY,p. 401 e s.
121. VASAIU, lI, p. 287. Cabe notar que, mesmo aqui, Vasari
encara as três artes como uma unidade: Brunelleschi, Donatello,
Ghiberti, Paolo Uccello e Masaccio, "eccellentissimi. ciascuno
nel genero suo", Iíbertaram a arte de seu estilo cru e infantil.
122. FREY,p. 402.
123. Ver nota 89.
124. FREY, p. 492: "Di questo Arnolio hauemo scritta con
quella breuità che si e potuta maggíore, Ia vita: perchê se
bene l'opere sue non s'appressano a gran prezzo alla perfezzione
delle cose d 'hoggi, egli merita nondimeno essere con amoreuole
memoria celebrato, hauendo egli fra tante tenebre mostrato a
quelli che sono stati dopo se Ia via di caminare alla perfezzio-
ne" ("Escrevemos a Vida desse Arnolfo com a maior brevidade
possível, porque, embora suas obras nem de longe se apro-
ximem da perfeição das coisas de hoje, merece, no entanto,
ser celebrado com carinho, pois mostrou, entre tantas trevas, o
caminho para atingir a perfeição aos que viveram depois dele").
125. 1: característico que Vasari (talvez para coloc.ar a arte
de Arnolfo um pouquinho acima do estilo gótico "real") cite
como contemporâneos, ou mesmo anteriores, uma série de mo-
numentos que, na realidade, são posteriores à época de Arnolio.
Ao considerá-los anteriores .a Arnolio, Vasarl se sente com
liberdade para dizer que "não são feitos de uma maneira nem

287
t~mática: "Amolfo", diz ele, "incrementou o desenvol-
vimento da arte da arquitetura tanto quanto Cimabue
promoveu o da pintura" 126. No fim, vemo-lo con-
densar este paralelismo histórico numa relação direta
de mestre-discípulo 127, chegando mesmo a uma cola-
boração efetiva na Catedral de Florença 128.
Para Vasari, portanto, Amolfo é um Cimabue
construtor, e Cimabue, um Amolfo pintor; e isso dá
a resposta final à nossa questão. Se Vasari pretendia
colocar seu desenho de "Cimabue" numa moldura "es-
tilisticament.e correta" (e. é perfeitamente compreensí-
vel que estivesse ansiosíssimo para fazê-lo, dado seu
eno!me respeito pelo "renovador da arte"), precisava,
entao, projetar uma "moldura de Amolfo" e não um
enquadramento gótico, puro e simples.
Nem é preciso dizer que a arquitetura assim con-
cebida por Vasari está cheia de anacronismos não
intencionais. O arco agudo do "portal", - um mo-
tivo que por certo desenhou com a maior relutância
- é privado de seu ápice efetivo pelo revestimento
de entalhes em madeira. Os pináculos, a despeito de
seus ornatos de folhas e remates, assumiram uma apa-
rência muito pouco medieval, pois uma pirâmide foi
assentada sobre uma pilastra toscana e ligada a ela
por meio de uma imposta ligeiramente curva. Em lu-
gar d~s colunet~s góticas, temos pilastras realçadas por
uma tíra de ogivetas na parede. O friso, finalmente,
moldado à maneira clássica ortodoxa e vigorosamente
quebrada e projetada sobre os capitéis, dá mais a im-
pressão de uma arquitrave "moderna" que a de uma
moulure medieval. Vasari não conseguia decidir-se a
estender o ornamento foliado dos capitéis além destes,
bela. nem boa, apenas vasta e magnificente". A Certosa di
Pavía, por exemplo, foi iniciada em 1396, a Catedral de Milão
em 1386 e a igreja de San Petronio, em Bolonha, em 1390.
Ver FREY, p. 466 e ss.
126. FREY, p. 484: "Fl quale Arnolio, della cui v.rtú non
manco hebbe m!glioramento l'architettura. che da Cimabue Ia
~llttu~a hau,:,to s hauesse ... " Sobre essa equação - que, como
Já .f~l mencíonado, s6 foi perfeitamente esclarecida na segunda
edição d.e Vtdas e, foi posteriormente alongada para incluir
os Pisam como escultores e Andrea Tafi, como mosaicista _
ver BENKARD, op. cít., p. 67 e ss.
127. FREY, p. 484, linha 4 e ss.
128. FREY, p. 397, linha 34 e ss.

288
concebendo um capitel como algo que pertence ex-
clusivamente ao suporte, e não como algo que faz parte
em conjunto tanto do suporte como do friso adjacente.
Todavia, pondo de lado esses anacronismos, o que
resta de "gótico" no portal simulado de Vasari - que,
embora emoldurado, como ocorre na primeira pági-
na de seu Libra, pode ser interpretado como uma en-
trada triunfal ao Tempio dei disegno Fioremino - é
tomado daqueles edifícios que o próprio Vasari atri-
buiu a Arnolfo di Cambio: da Catedral, aBadia Fio-
rentina, a Igreja de Santa Croce.
Assim, a irrelevante moldura "gótica" de Vasari
testemunha, numa época relativamente prematura, o
advento de uma nova atitude para com a herança da
Idade Média: ilustra a possibilidade de interpretar as
obras de arte medievais, independentemente do meio ou
maniera, como exemplares de um "estilo de período".
Quando Vasari estendeu seus esforços imitativos até
a própria inscrição, o que o atraía não era, evidente-
mente, a inscrição gótica de um ponto de vista esté-
tico (como era o caso de Lorenzo Ghiberti ao escre-
ver "Cassa di San Zanobi" com lettere antiche) 129,
mas julgou que mesmo a forma das letras expressa o
caráter e o espírito de uma determinada fase histórica.
Sem ser influenciada por predileções pessoais, comple-
tamente desvinculado dos problemas práticos de aca-
bamento e remodelação e portanto totalmente diversa
dos projetos goticizantes para a fachada de San Petro-
nio ou para o Tibúrio da Catedral de Milão, a moldura
de Vasari marca o começo de uma abordagem estri-
tamente histórica de arte que (em contraste com o es-
tudo dos documentos políticos, legais ou litúrgicos)
é focalizada nos remanescentes visuais e, para valer-se
de uma frase de Kant, procede de uma maneira "de-
sinteressada". Algumas centenas de anos depois, essa
nova abordagem, tratando exclusivamente da preser-
vação, classificação e interpretação da evidência, re-
sultaria nas plantas incrivelmente exatas levantadas nos
preparativos para a remodelação de São João de
129. Loretizo GhibeTtis Denkwiirdigkeiten, ed. J. Schlosser,
Berlim, 1912, I. p. 48: "Euui dentro uno epitaphyo intaglato
di lettere antiche in honore dei sancto".

289
Latrão l:iO. Produziria frutos na obra dos grandes his-
toriadores dos séculos XVIII e XIX. E daria, final-
mente; uma diretriz às nossas próprias atividades.
A Itália nunca transcendeu uma avaliação pura-
mente histórica do estilo gótico - afora, talvez, aquele
momento memorável em que a apreciação histórica
consciente se fundiu com as preferências inconscien-
tes de artistas como Borromini e Guarino Guarini. Um
movimento "neogótico", gerado por impulsos emocio-
nais e que aspirava produzir um estilo sui juris, ou a
tentativa heróica de Carl Friedrich Schinkel 131 a fim
de realizar uma síntese criativa entre o gótico e o
ontique eram coisas possíveis somente no Norte, que
via a maniera barbara ovvero tedesca como sua ver-
dadeira herança artística e a melhor parte de sua na-
tureza espiritual. Aí, particularmente na Inglaterra e
nos países gerrnânicos, deparamos com uma genuína
"revivescência gótica" - revivescência esta, porém, que
tentou recapturar o passado, não com um espírito de
esperança confiante, como a Renascença, e sim com
um espírito de anseio romântico.

130. Ver CASSlRER, op. cito Temos que concordar com F.


HEMPEL(Francesco Boromini, Viena, 1924, p. 112) em atribuir
os desenhos para o 'tabernãculo de São João de Latrão
(CASSIRER,Figs. 2 e 4) a Felice della Greca. Por outro lado,
vai longe demais ao afirmar que o grande desenho da pare-
de da nave com seus murais (CASSlRER, Fig. 8) nada mais era
que um estudo corriqueiro. Cassirer argumenta corretamente
que uma reprodução dos afrescos do começo do século XV -
reprodução essa tão' acurada que nos permite datá-Ia com uma
margem de erro de dez a quinze .anos - seria totalmente des-
necessãria para a remodelação arquitetõnica e só pode ser ex-
plicada por um interesse genuíno pelo tema. E, embora esse
interesse, enquanto consciente, pudesse ser meramente "histó-
rico", não há dúvida de que artstas como Borromini e Guarini
sentiam uma simpatia inconsciente pelo estilo gótico. A torre
espiral de Santo Ivo, os tetos do Palazzo Falconieri e o domo
de S. Lorenzo em Turim, não são góticos, do ponto de
vista morfológico, mas muito góticos no sentimento. Em mes-
tres como esses, o interesse "histórico" e a apreciação "artística"
- bem balanceados - operavam separadamente, segundo a
ocasião.
131. Cf. AUGUST GRISEBACH, Carl Friedrich Schinkel, Leipzig,
1924, p. 134 e ss.

290
51. Sebastiano Serlio. Cena trágica. ilogravura do Libro
Primo ... d'architettura. Veneza, 1551, f9 29v:

Cena cômirjJ.. 'ilogravura de. Libra


Veneza, 1551, f<1 28v.
59. Domenico Beccafumi. Projeto para a remodelação da
Casa dei Borghesi. Londres, British Museum. '
2. Excurso: dois desenhos de fachada por Domenico
Beccajumi e o problema do maneirismo na
arquitetura

Logo após seu retorno de Roma onde se crê que


tenha permanecido cerca de dois anos, Domenico Bec-
cafumi, cognominado Meccherino, decorou a fachada
da Casa dei Borghesi, em Siena, enquanto que Sodoma
fazia um trabalho similar no Palazzo Bardi: "Abaixo
do telhado, num friso de chiaroscuro", diz Vasari,
"executou algumas figuras pequeninas que foram mui-
to admiradas; e no espaço entre as janelas travertinas
que adornam o palácio, pintou muitos deuses antigos e
outras figuras, em imitação de bronze, em chiaroscuro
e em cores, que eram superiores à média, embora o
trabalho de Sodoma fosse mais louvado. As duas fa-
chadas foram executadas em 1512" 132.
Esse relato, repetido por vários escritores locais
e aceito, normalmente, pelos estudiosos de Beccafu-
mi 133, é confirmado em essência por um documento,
exceto num particular: embora Sodoma haja, realmen-
te, decorado o Palazzo Bardi na época em questão, só
começou a executá-Io (com a condição de terminar em
8 meses) a partir de 9 de novembro de 1513134•
Assim, se aceitarmos a premissa de que os dois pa-
lácios foram decorados simultaneamente, como que em
competição, os afrescos de Beccafumi também deve-
riam datar de 1513-14, e não de 1512.
Como quase todas as pinturas desse tipo e pe-
,ríodo, a decoração da Casa dei Borghesi está comple-
tamente destruída, Mas, o edifício em si, identificado
132. VASARI,V, p. 635: "Sotto il tetto fece in un fregio di
chiaroscuro alcune figurine molte lodate e nei spazi fra tre
ordini di fenestre di trevertino, che ha questo palagio; fece e
di color di bronzo di chiaroscuro e colorite molte figure di
Di! antichi ed altrt, che furoni piú, che ragionevoli, sebbene
fu píú Iodata quella deI Sodoma. E I'una e I'altra di queste
facciate fu condotta nell' anno 1512".
133, Ver L. DAM!, Domenico Beccafumi, em Bollettino
d' Arte, XIII, 1919, p. 9 e 5S. [M. GIBELLINo-KRASCENNlNICOWA, n
Beccaiumi, Siena, 1933].
134. G. Mn.ANESI,Documenti per Ia StoTia delt'arte senese,
nr, p. 69.

293
pelas armas dos Borghese, ainda existe (Fig. 60) 135;
esse fato, mais o relato de Vasari, permitem-nos ligar
a decoração de Beccafumi a um desenho, preservado
no British Museum, que traz uma inscrição antiga
("Micarino") e que se pode aceitar seguramente como
trabalho seu. O desenho mostra, como era costume,
apenas parte do plano proposto; mas, o que represen-
ta corresponde, exatamente, à estrutura ainda existen-
te: um edifício bastante estreito de quatro andares
(deve-se acrescentar um andar térreo, contendo a en-
trada ou entradas, aos três níveis que aparecem no
desenho), com quatro janelas em cada nível, e carac-
terizado pelo fato de essas janelas emergirem direta-
mente das principais molduras e serem menores que
o comprimento do espaço mural acima. As propor-
ções gerais concordam com as do edifício atual na me-
dida que se pode esperar de um pensiero, que, via de
regra, não era desenhado segundo escalas: "Não é cos-
tume dos arquitetos"; escreve Vignola, "traçar um de-
senho menor escalonado a tal ponto que se possa trans-
feri-Ia do pequeno para o grande por meio de um mó-
dulo; normalmente são feitos apenas para mostrar a
invenção" 136.
Justifica-se a aplicação dessa observação ao de-
senho de Beccafumi, pois representa, não somente um
plano para a decoração pictórica da fachada, mas tam-
bém um projeto de reforma arquitetônica. O palácio
Borghese era originalmente uma construção gótica,
"modernizada" no século XVI, crê-se, em conexão di-
reta com o trabalho de Beccafumi. Só então poderia
ter recebido sua alta cornija (que vai além da margem
superior do desenho londrino), ou ter suas janelas gó-
ticas, cujos arcos agudos são ainda perceptíveis, mo-
dernizadas, como pedia Serlio 137 com molduras e din-
135. Expresso meus sinceros agradecimentos ao Professor
A. Warburg e à Dra. Gertrude Bing por sua amável ,ajuda em
identificar o Palazzo e obter sua fotografia.
136. GAYE,op, cit., lI, p. 359 (Carta de Vignola aos funcio-
nários de San Petronio): "Non e consuetudine d'architetti dar
un picol d.segno talmente in proportione, che s'habbia a ri-
portare de piccolo in grande per vigor de una piccola mísura,
ma solamente si usa far li disegni per mostrar l'inventione".
137. Ver acima, p. 254 e s. Ao: discutir as propostas de mo-
dernização de Serlio, SCHLOSSER, Kunst!iteratur, p. 364, parece
superestimar as condições da França. Como vemos pela Casa dei.
Borghesí, o problema de remodelar palácios góticos também
era bem real na Itália.

295
D .:8 '. A.
,!'tt.

61. ,~bas~i~o Serlio, Sugestão para a remodelação dos


palãcios góticos, Xilogravura de Tutte I'opera d'architettura,
Veneza, 1619, vn, p. 171.
téis retangulares, coiocadas no eixo (Fig. 61) .. Origi-
nalmente havia, para usar a expressão de Serlió, qual-
che disparitã, pois as [anelasdos dois pavimentos su-
periores eram .bem mais próximas dos cantos que as
do inferior.
Mas, o dono do palácio não seguiu todas as su-
gestões de Beccafumi que aparecem no desenho lon-
drino. Houvesse o pintor feito o que pretendia, os
frisos seriam fortalecidos; as janelas não seriam aumen-
tadas na largura total e, sobretudo, as dos dois pavi-
mentos superiores teriam sido deslocadas para dentro
em vez das do inferior o serem para fora. Resumin4°,
o artista desejaria obter 0' máximo de superfície para
as pinturas, enquanto que o proprietário, como é nor-
mal, preferiria um máximo de iluminação interna e
um mínimo de custos la8.
A despeito dessas pequenas discrepâncias, o de-
senho londrino nos dá uma visão bastante clara do
que Beccafumi planejara fazer e só podemos admirar
sua habilidade em ocultar a realidade de uma fachada
ainda medieval, com a aparência da quadratura mo-
derna.
Primeiro de tudo, reduziu a superfície da parede
acima das janelas, introduzindo cornijas simuladas
compostas de uma arquitrave fasciculadae um friso lar-
go, de modo que as divisões horizontais, originalmente
bastante tênues, parecem transformadas em poderosos
entablamentos clássicos. As faixas verticais da parede,
entre as janelas e os cantos, são articuladas para dar
apoio a esse entablamento: pares de pilastras, varian-
do do dórico ao jônico e coríntio, sustentam a arqui-
trave, e cada um desses pares emoldura um nicho,
formando reentrâncias que abrigam as "figure di Dii
138. o desenho londrino não dá nenhuma pista quanto às
idéias de Beccafumi para a remodelação do pavimento térreo.
Mas, podemos presumir que seu projeto seria substituir as
quatro entradas em arcos por um único portal no centro. Nessa
época, em Florença e em Roma, observa-se um desenvolvimento
bastante coerente de converter o esquema de vários portais no
de um só (ver, em Florença, os PaláciOS Pazzi-Quaratesi, Gua-
dagní, Strozzi e Bartolini-Salimbeni em oposição aos Pitti, Bic-
cardi, Rucellai; em Roma, o Palazzo Giraud-Torlonia e o Pa-
lazzo Farnese em oposição à Cancelleria). SERLlO, p. 171, con-
sidera a colocação central do portal como idiomática: "et
mettere Ia porta nel mezzo, 'Come ê dovere".

297
antichi ed altri", mencionadas na descrição de Vasari 139
- figuras em que a impressão das esculturas de Mi-
chelangelo e Sansovino se mistura com a das estátuas
de nicho pintadas por Rafael na Escola de Atenas 140.
Assim, a parede vazia é disfarçada por um siste-
ma ilusório de entablamentos e elementos de apoio.
E o efeito dessa arquitetura simulada (sua decoração
que lembra, novamente, os túmulos de Sansovino em
S. M. deI Popolo) é intensificado pelo uso inteligente
da perspectiva: os nichos flanqueados pelos pilaretes e
os entablamentos, vistos debaixo, numa perspectivação
aguçada a distância da vista, parecem projetar-se além
da parede "real"; em outros termos, a verdadeira pa-
rede como que retrocede atrás da arquitetura simula-
da. Assim, acreditamos - ou, espera-se que acredi-
temos - estar vendo um conjunto de três andares so-
brepostos, emoldurados, por assim dizer, pelos enta-
blamentos e nichos. Daí resulta que as molduras das
janelas não mais parecem projetar-se da parede "real"
e sim de um fundo imaginário, decorado com motivos
marciais e cenas de combate eqüestre; e quem olha ten-
de a atribuir a infeliz falta de sacadas a um efeito óptico
que as faz desaparecer atrás das cornijas protuberantes.

11

o mesmo Beccafumi que redecorou assim a fa-


chada da Casa dei Borghesi, deixou-nos outro dese-
nho de fachada que, produzido ud's quinze anos mais
tarde, revela um conceito totalmente diferente de arqui- .
tetura (Fig. 62). Esse segundo desenho, guardado no
139. A íconograría do desenho londrino não é clara. mas
parece inspirada na Eneida de Virgllio, pois a estátua de um
jovera armado, no nicho mais alto, traz a inscrição MARCELLVS
e corresponde à descrição deste último na Eneida, VI, 861:
Egregium forma iuvenem et fulgentibus arrnís,
Sed frons laeta parum et deiecto lumina voltu.
140. A estátua do segundo andar. pode ser descrita como
uma síntese do Davi, de Michelangelo, e do Apelo, de Rafael,
na Escola de Atenas. A figura sentada, entre as janelas do
pavimento superior, que pressagia o Isaías do teto da Capela
Sistina, faz lembrar o São Paulo no trono, de Beccafumi, 1515;
os putti, que lembram em parte as crtanças-carráttdes de Mi-
chelangelo e parte, o Menino Jesus michelangelesco da Madona
di Foligno de Rafael - são estilisticamente parentes dos putti
das obras anteriores de Beccafumi (cf., além do São Paulo, a
obra um pouco anterior, A Estigmatização· de Santa Catarina
de Siena).

298
62. Dornenico Beccafumi, Projeto para a decoração de urna
fachada. Windsor, Royal Library.
I I

Castelo de Windsor 141, é um plano de decoração para


uma casa muito mais modesta, de apenas dois pavi-
mentos. A impressão enganadora de três andares é
criada pelo fato de uma mão imprudente ter unido
duas folhas de papel desconexas. O que parece ser
o térreo nada tem a ver com os outros andares e o
que aparenta ser o segundo pavimento é, na realidade,
o térreo com a loja 142. O balcão dessa loja é deco-
rado com uma representação da Embriaguez de Noé
- talvez porque a loja pertencesse a um comerciante
de vinhos; as secções laterais da fachada formam ni-
chos que abrigam estátuas dos profetas. No segundo
pavimento, localizado diretamente sob o telhado e,
como os andares superiores de inúmeros palácios, ilu-
minado apenas por uma pequena janela em arco vemos,
à esquerda, a Apresentação de Jesus no Templo (os
degraus possivelmente sugeridos pela xilogravura de
Dürer, B.20); e, à direita, uma cena enigmática que
poderia ser interpretada como a Aparição dos Três
Anjos a Abraão, se as figuras que se aproximam não
fossem femininas (talvez a Visita da Rainha de Sabâ e
suas Servas?)
Há uma diferença enorme entre esse desenho e
o projeto para a Casa dei Borghesi. A fachada pin-
tada proposta para esta última - sua organização
rítmica que reflete a impressão de prédios como a
Cancelleria e o Palazzo Giraud-Torlonia - obedece
aos ideais da Alta Renascença ou, para usar a expres-
são de Wõlfflin, do estilo "Clássico" (em oposição a
"classicista" * - ou seja, sua composição é dominada
por quatro princípios de articulação: 1) isonomia
axial dos elementos (sem desvios do vertical); 2) in-
tegridade formal dos elementos (nenhuma interliga-
ção ou interpenetração de andares); 3) inter-relação
.proporcional dos elementos, no sentido que, nas partes
genericamente relacionadas, como molduras de janelas
e pilaretes de nichos, uma relação similar impera entre
largura e altura, sendo que o todo aproximadamente
é

141. Windsor. Royal Library. n. 5439. Agradeço.ao Profes-


sor H.. Kauffmann por chamar minha atenção para o desenho.
142. Ver, e.g., as lojas análogas nos palácios Raffaelo-Bra-
mante, Bresciano e dell'Aquila (Th. HOFMANN, Raffael in seiner
Bedeu.tung uts Architekt, Zittau, 1909-1911, TIl, pr. lU. XIV).
• No original: "the Classic style as opposed to ctassical·~.
(N. da T.)

300
determinado pela fórmula a:b = b:c (por exemplo,
a largura total dos nichos está para a largura das ja-
nelas, como a largura das janelas está para o intervalo
entre eles; a altura da janela está para a altura da
parede superior como a altura da parede superior es-
tá para o entablamento etc.); 4) diferenciação estrutu-
ral e consolidação dos elementos, no sentido de que
tudo quanto combina do ponto de vista estrutural tam-
bém se une esteticamente. A fachada toda é composta
de várias "camadas de relevo" que - claramente se-
paradas umas das outras e claramente unificadas den-
tro de si mesmas - expressam uma diferença de fun-
ção estrutural por uma estratificação em profundidade:
primeira camada, o sistema estrutural independente
composto de entablamentos e nichos laterais; segunda
camada as estátuas entre as janelas; terceira camada,
as molduras das janelas; quarta camada, o muro acima
das janelas, aparentemente transformado numa super-
fície de fundo.
Um conceito totalmente diverso de arquitetura é
proclamado pelo desenho de Windsor. Aqui, os nichos
do térreo não têm nenhuma relação axial com a divisão
do andar superior; o arco da loja irrompe pelo friso]
sobrepondo-se sua arquivolta às molduras desta; ha
pouca evidência de relações proporcionais fixas (o
artista intenta cobrir a fachada com uma ornamenta-
ção rica e variada mais do que organizá-Ia por meio
de articulação rítmica), menos ainda do que chamei
de estratificação em profundidade. Não houve nenhu-
ma tentativa de contrastar um sistema estrutural inde-
dependente; ao contrário, a substância da parede, mais
articulada, permanece uma :.thá<popov - (uma "coisa
indiferenciada") com respeito à estrutura. Corroída,
por assim dizer.. par todos os ti~os de cavidades "e ~u-
racos, -e cravejada por todos os tipos de protuberâncias
e saliências, a fachada não parece estar dividida em
camadas separadas, mas sulcada em sua totalidade.
Portanto, a fachada do desenho de Windsor é,
evidentemente, "não-clássica". Mas, também não exibe
as características que, segundo a formulação conclu-
siva de Wõlfflin, marcam o estilo barroco: agiganta-
mento, solidez, animação orgânica e subordinação das
partes a um motivo dominante. Somos forçados a

301
aplicar à arquitetura um conceito que, até agora, ten-
dia a ser reservado às artes representativas: a fachada de
Beccafumi deve ser descrita como "arquitetura manei-
rista". Na verdade, todos os pontos que a diferenciam
do plano para a Casa dei Borghesi - o relaxamento
das relações axiais, o entrelaçamento de formas, a falta
de proporção e, enfim, a substituição da substância ho-
mogênea, inarticulada, por uma estrutura nitidamente
estratificada - são igualmente válidos para as pin-
turas de Pontormo, Rosso, Bronzino ou Jacopo dei
Conte e, sobretudo, para as do próprio Beccafumi.
E, assim como o maneirismo nas artes representativas
resultou (embora não exclusivamente) de uma reativa-
ção do que tem sido chamado de gótico do Quatrocen-
tos 143, do mesmo modo que o maneirismo na arqui-
tetura resultou, até certo ponto, do recrudescimento de
tendências medievais dentro do quadro do estilo clás-
sico; é significativo que o projeto Windsor de Becca-
fumi, não apenas retenha, mas enfatize o arco segmen-
tado, um verdadeiro anátema, pelos padrões "clássicos".
É impossível definir aqui, quanto mais discutir,
todo o problema da arquitetura maneirista 144. Apenas
uma questão é importante para nós, pois nos leva de
volta ao nosso tópico inicial: a obra e as opiniões
de Giorgio Vasari. Será que a perspectiva histórica,
corrente até 1920, que supõe um desenvolvimento cons-
tante da Renascença "clássica" para o barroco, e con-
sidera tudo o que é maneirista como uma linha lateral
ou subproduto - será que é preciso rever essa opinião
histórica com respeito à arquitetura do mesmo modo
que foi mister reformulá-Ia quanto às artes representa-
tivas? Duvido que isso seja necessário. Ao contrário,
foi, talvez, uma confiança excessiva na crença de um
paralelo perfeito e desenvolvimento sincronizado da
arquitetura, pintura e escultura, a principal causa da
apreciação inexata do maneirismo nos antigos escritos
de história da arte. No todo, a arquitetura central
italiana, e sobretudo a romana, evoluiu de modo con-
tínuo e corrente da Alta Renascença "Clássica" para
os primórdios do Barroco. Se foi incorreto presumir
143. Ver os artigos de Friedlaender e Antal citados na
nota 35.
144. Ver a bibliografia referida atrás. p. 12 e s.

302
um curso idêntico na esculture e pintura (presunção
esta decorrente do velho hábito de converter a arqui-
tetura na --medida de todas as coisas" em matéria de
esenvolvimento estilístico), cometeríamos um erro
análogo se, em deferência à recente reavaliação do ma-
neirismo, invertêssemos apressadamente nossas idéias
quanto à evolução da arquitetura. Nas artes represen-
tativas da Itália Central, incluindo Roma, a corrente
maneirista reunira tanto impulso que foi necessário o
advento de novas forças do Norte da Itália e uma rea-
tivação deliberada das tendências da Alta Renascença
para assegurar a vitória do barroco. No domínio da
arquitetura entretanto, temos, na mesma Roma, uma
seqüência contínua que leva de Bramante, Rafael e ,
SangalIo, a Vignola, deIla Porta, os Lunghi e Fontana,
daí para Madema e desta para os grandes mestres do
Alto Barroco. Esta seqüência ainda constitui o que
se pode chamar de corrente principal da evolução e
sua importância não é diminuída pela existência de
edifícios maneiristas. O maneirismo, que é regra na
pintura da Itália Central, é a exceção da arquitetura
da mesma região.
Vista dentro do contexto geral da história da Re-
nascença, essa situação não é surpreendente. A arqui-
tetura da Itália Central havia, desde o começo,
rompido definitivamente com esse gótico cuja sobrevi-
vência ou existência é, pelo menos, uma das condições
para a predominância do maneirismo. Enquanto a
pintura toscana e úmbria do Quatrocentos - não há
pintura romana do Quatrocentos a mencionar - pode
ser definida, grosso modo, como arte renascentista
em bases góticas, é possível definir, também superficial-
mente, a arquitetura toscana e úmbria do Quatrocentos
como uma arte renascentista de bases românticas. O
estilo vivo de Botticelli, Filippino, Piero di Cosimo ou
Francesco di Giorgio que infunde o sentimento gótico
no antique, ou, para explicar de outra maneira, dá
ao estilo gótico a vitalidade clássica, difere intrinseca-
mente de uma arquitetura tão firmemente ancorada em
Brunelleschi e Alberti que no podia ser "arrebatada
de suas amarras" pela vaga maneirista.
Daí, dois fatos importantes se tomam evidentes.
Primeiro, podemos entender. que no Norte da Itália,

303
em Gênova e sobretudo nos países transaIpinos, a
arquitetura da Renascença nunca alcançasse um estilo
verdadeiramente clássico; era, se assim podemos dizer,
maneirista ab ovo. Sua produção quase inteira con-
sistia em "corpos góticos com roupagens modernas";
e, o caminho excepcional que levou o grande Elias
Holl de Augsburgo, da Beckenhaus, através da Zeu-
ghaus, até o Town Hall não representa uma evolução
do germânico para o italiano, ou, como já foi sustentado
uma evolução do. estrangeiro para o nacional, mas sim
uma auto-evolução do maneirismo para o Barroco ini-
cial que seria impossível na Itália 145. Segundo, podemos
compreender que, onde a arquitetura maneirista invadiu
os territórios de Florença e Roma, os seus prédios não
foram desenhados por arquitetos profissionais, mas por
artistas que entendiam de artes decorativas e represen-
tativas. WaIter Friedlaender reconheceu, explicitamen-
te, que o estilo que revelou seu clímax no Casino de
Pio IV (Fig. 63), que ele deriva corretamente do
Palazzo dell'Aquila, representa "uma reação contra o
arquitetural" 146. Compreendemos, agora, que se tra-
tava, na verdade, de uma rebelião dos não-arquitetos:
Rafael, o projetista do Palazzo dell'Aquila era um pin-
tor, do mesmo modo que Pirro Ligorio, o construtor
do Casino de Pio IV (cujos edifícios mostram quão
pouco um interesse pelo Antigo ou mesmo uma pers-
pectiva definitivamente arqueológica conflitam com o
estilo maneirista) 147; Giolio Mazzoni, o criador do Pa-
lazzo Spada, era um pintor e stuccaiore. Em Florença,
os principais expoentes do maneirismo arquitetônico
são: e escultor Bartolommeo Ammanati, o pintor e
cenógrafo Bernardo Buontalenti e, enfim, o pintor
Giorgio Vasari.
Vasari imaginava, indubitavelmente, que, como
arquiteto, seguia as pegadas de Michelangelo. Mas era,
na verdade, o que este nunca fora: um maneirista 148.
145. Sobre a posição de Palladio, ci. p. 265 e ss.
146. W. FRIEDLAENDER, Das Casino Piu.s des Vienen, Leipzig,
1912, p. 16.
147. Cf. também, B. SCHWEITZER, Zum Antikenstudium des
Angelo Bronzino, em Mittei!ungen des deutschen archiio!ogischen
Instituts, Réimische Abtei!ung, XXXIII, 1918, n. 45 e S5.
148. Sobre o lugar de Michelangelo na história da arqui-
tetura, ver K. TOLNAY,Zu den spãten archttektoníschen Pro-
jekten Michelangelos, em Jahrbuch der preussischen Kunstsam-
m!ungen, LI, 1930,p. 1 e ss. Este escritor compartilha a opinião

304
I

\\
\
o desenho de Beccafumi guardado em Windsor difere
de seu plano para a Casa dei Borghesi exatamente da
. mesma maneira que o Uffizi de Vasari (Fig. 64) di-
fere do Palazzo Pandolfini ou do Palazzo Vidoni.
Parece até ironia que as invectivas de Michelangelo -
e de Vasari - contra o projeto de Antonio da Sangallo
para São Pedro possam aplicar-se, ainda com maior
razão, aos próprios esforços arquitetônicos de Vasari
(embora sejam, como este diria, "bastante louváveis,
considerando-se a natureza da época"): "a composi-
ção. .. é cortada em demasia por projeções e partes
demasiado pequenas, como também o são as colunas,
os arcos sobre arcos e as cornijas sobre cornijas" 149.

de Tolnay de que não se pode classificar o estilo arquitetônico de


Míchelangelo sob os títulos uRenascença", "Barroco" ou "manei-
rísmo", mas é preciso considerá-Ia como um "periodo estilístico
em si mesmo". Apenas nos edüícios de sua fase florentina
(1517-34) é possível - segundo as observações feitas por Walter
Friedlaender sobre os desenhos e esculturas desses anos -
observar uma influência (não muito grande) da corrente
maneirista.
149. Ver nota 40.

306
6. ALBRECHT DüRER E A ANTIGUIDADE
CLÁSSICA

ALBRECHT DÜRER: "Os livros antigos mos-


tram a que ponto esta arte era honr~da e
estimada pelos gregos e romanos. Depois de-
les, porém, foi completamente esquecida .e
permaneceu escondida por mais de ~m mi-
lênio' e apenas há duzentos anos foi nova-
ment~ t~azida à luz pelos italianos".

As obras produzidas por Albrecht Dürer na vir~da


do século XV, marcam o início do estilo ren.ascen~lsta
no Norte. No final de uma era totalmente dl.stanctada
da arte clássica, um. artista alemão redescobriu-a para
si e seus compatriotas. Talvez fosse uma necessidade

307
histórica que essa alienação total da "arte dos gregos
e romanos" devesse preceder sua redescoberta, A arte
italiana podia encontrar o caminho de volta para o An-
tigo por via da afinidade, por assim dizer; o Norte euro-
peu só podia recapturá-la através da antítese. E, para
este fim, todos os fios que ligavam a arte dos primór-
dios da Idade Média e do passado clássico tinham que
ser cortados.
Dürer foi o primeiro artista do Norte a sentir esse
"pathos da distância". Sua atitude em face da arte
clássica não era a do herdeiro nem do imitador, mas
sim do conquistador. Para ele, a Antiguidade não era
nem um jardim onde flores e frutos ainda desabrocha-
vam, nem um campo em ruínas, cujas pedras e colu-
nas ainda podiam ser reutilizadas: era um "reino" per-
dido que se fazia mister reconquistar através de uma
campanha bem organizada. E, já que, a seu ver, a arte
nórdica só poderia assimilar os valores da Antiguidade
caso houvesse uma reforma de princípios, resolveu pro-
mover, ele mesmo esta reforma - tanto na teoria
quanto na prática. Segundo seu próprio testemunho,
suas obras teóricas - um substituto para os perdidos
"livros dos antigos" - pretendiam ajudar "a arte da
pintura a atingir, com o tempo, sua perfeição primiti-
va" 1. E, quando tentou, quase três décadas antes da
publicação de sua Teoria das Proporções Humanas, re-
presentar figuras clássicas em movimentos clássicos, ele
o fez, não para embelezar suas obras com detalhes
acumulados aqui e ali, mas a intenção sistemática (tal-
vez mais sentida intuitivamente que compreendida
conscientemente na época) de educar a si mesmo e a
seus colegas alemães para uma atitude "clássica" quan-
to ao poder expressivo e beleza inerentes ao corpo hu-
mano.
A idéia de uma idade de ouro da arte, "completa-
mente perdida e escondida por mais de um milênio" 2,
que deveria ser agora revivida, ou para usar a expres-
são de Dürer (Wiedererwachsung) 3, provinha da Itá-
lia 4; e também italianas são as fontes de onde o mestre
1. LANGE, K. & FUHSE, F. Dürers schrift!icher Nach!asse, Haia,
1893. p. 207, linha 7 e ss.
2. Ibidem, p. 181, linha 25.
3. E.g. ibidem, p. 344, linha 16.
4. Cf. a seção precedente deste volume.

308
de Nuremberg tirou o conhecimento e a experiência
com os quais pretendia levar a cabo seu próprio pro-
grama renascentista. Assim como seus interesses teó-
ricos foram despertados pelas informações casuais de
um italiano, e o levaram de volta, constantemente, ao
estudo dos teóricos italianos 5, do mesmo modo tomou
emprestado dos "nus" (nackete Bildery dos pintores
italianos, tão decantados por ele 6, tudo o que podia
assimilar de forma e movimento clássicos.
Seria desnecessário enfatizar o papel intermediário
da Renascença italiana, se não fossem 'as freqüentes
tentativas de explicar o "estilo clássico" de Dürer
(antikische Art) por um contato direto com a esta-
tuária greco-romana. Recentemente esse ponto de vista
foi defendido, de uma maneira nova e cativante, por
um autor que vai ainda mais longe que seus predeces-
sores no desejo de emancipar o artista alemão da Itália.
Não apenas supõe que Dürer se inspirou diretamente
nos originais clássicos como afirma que teve acesso a
esses mesmos modelos em Augsburgo 7, em vez de Bo-
lonha, Pádua ou Veneza.
Pode parecer relativamente desimportante saber se
o protótipo do Adão de Dürer foi um desenho italiano
baseado no Apolo de Belvedere ou um relevo provin-
cial romano, se a postura de seu Hércules retesando
o arco teve sua origem numa obra de Pollaiuolo ou
numa estátua clássica. Mas há nisto uma questão de
princípio: devemos nos perguntar, não tanto se essas
obras de Dürer surgiram sob o impacto de originais
clássicos, e sim, se poderiam ter surgido sob um tal
impacto se, à luz da conjuntura histórica, é possível
presumir uma influência direta da Antiguidade sobre
um artista alemão do século XV. E, para se tomar
uma posição nesta questão de princípios, vamos rever
as questões de fato.

5. Ver E. PANOFSKY, Dürers Kunstheorie, Berlim, 1915, passim;


cf. também, capítulo II deste volume.
6. LANGE. & FUHSE. Op. cit., p. 254, linha 17.
7. HAuTTMANN, M. Dürer und der Augsburger Antiken-
besitz, em Jahrbuch der preussischen Kunstsamm!ungen, XLII, p.
34 e 55., 1921.

309
I. "Pathos" Clássico

Poder expressivo e beleza do corpo humano -


foram os dois ideais que a Renascença encontrou reali-
zados na arte clássica. Mas, do mesmo modo que o
Quatrocentos italiano se impressionou e excitou com
"inquietação trágica" do antique antes de poder apre-
ciar a sua "calma clássica" e se lhe abandonar 8, assim
também o jovem Dürer, se viu arrebatado pelas cenas
apaixonadas de morte e raptos antes de conseguir acesso
a beleza do ApoIo de Belvedere. A Morte de Orfeu,
o Rapto de Europa, Os Trabalhos de Hércules e uma
batalha de enfurecidos monstros marinhos - essa esco-
lha de temas mostra, claramente, o que Dürer enten-
dia, a princípio, por aniikische Art; até no Apolo ele
via, nesta época, não tanto uma imagem de repouso
triunfante quanto de esforço tenso: representava-o
não na pose eurrítmica do grande deus-sol, mas num
movimento de luta sugerida por uma famosa estátua
clássica que representa o pequeno Cupido tentando re-
tesar o arco de Hércules 9.
Todas essas obras se baseiam em modelos italia-
nos, quer conhecidos quer inferíveis com certeza. Já
foi demonstrado há muito tempo que a Morte de Orieu
(Desenho L.159), uma composição cujo motivo cen-
tral Warburg pôde retrogradar até a época de Péri-
eles 10, deriva de um protótipo mantegnesco, transmi-
tido através de uma gravura da Itália do Norte e foi
provavelmente inspirado por uma fonte poética como
o Orieu de Policiano 11. Que o "Cupido-Apolo" há
8.WARBURG, A. "Der Eintritt des antikisierenden Idealstils in
die Malerei der Frührenaissance"; ver agora, A. WARBURG,
Gesammelte Scnrijten, Leipzig e Berlim, 1932, I, p. 175 e s.
9. WICKHOFF, F. "Dürers antikische Art". Mitteilungen des
Instituts [iir osterreichische Geschichtsforschung, I, p.: 413 e ss.
10. A. WARBURG, "Dürer und die italienische Antike"; ver
agora op. cit., lI, p. 443 e ss. Cf. também, J. MEDERNeue
Beítr'ãge zur Dürer-Forschung, em Jahrbuch der kunsthistdrischen
Sammlungen des AHerhochsten Kaiserhauses, XXX, 1911, p. 183
e ss., prmcipalmente p. 211 e 5S. A ascendência do motivo pode
ser remontada até o terceiro milênio; ver, e.g., o pequeno relevo
da Vitória de Mentuhotep, no Cairo.
11. Ver as referências em M. THAUSING, Albrecht Dürer
Leípzíg, 2. ed., 1884, p. 226 (trad. íngl, F. A. Eaton, ed. Londres:
1882, v. L, p. 221). A tendência atual é ligar o desenho de
Dürer não diretamente à gravura que chegou até nós mas a
um protótipo presumivelmente superior desta gravura (ver MEDER.
op. cit., p. 213).

310
pouco mencionado (Desenho L.456, nossa Fig. 65)
foi copiado não do original clássico, mas de uma pará-
frase quatrocentista desse original, surge com evidência
de características não-clássicas tais como a angularí-
dade preciosa da postura, a flexão amaneirada dos
dedos, as rendas e fitas esvoaçantes e drapejamentos e
as botas demasiado elegantes 12. É ainda mais óbvio
que o Rap.to de Europa, representado na mesma folha,
deriva de um desenho ou pintura italiana.
Para começar, a representação de Dürer corres-
ponde, em todos os pontos essenciais, às admiráveis
estâncias da Giosira de Policiano, citadas e analisadas
na primeira secção desse volume 13. Com exceção dos
sátiros e das criaturas marinhas - que eram comuns
durante toda a Renascença e que, como personificações
de lito e mare, mal requerem explicação - os versos
de Policiano contêm todas as características da repre-
sentação de Dürer: o coro das virgens pranteantes, o
drapejamento "que se encapela e esvoaça para trás";
12. W. WEISBACH, Der junge Dürer. Leipzig, 1906, p. 47 e s.; e
mais, MEDER,op. cit., p. 214 e HAUTTMANN, op. cit., p. 34. Uma
breve discussão sobre a iconografia talvez seja necessária. Face
ao Apelo está um homem barbado, vestido com garbo oriental e
segurando um crânio, com um livro e um caldeirão a seus pés.
A inscrição desse caldeirão LVTV.S, foi desenvolvida por WICK-
HOFF(op. cit., p. 417) em lutum sacrum, "vapor sagrado", e daí
por diante pensou-se que tanto o caldeirão quanto o oriental
barbado tinham qualquer conexão com os oráculos de ApoIo,
onde os vapores desempenhavam um papel considerável. A
palavra lutum ("lama, lodo, argila, barro"), entretanto, nunca
poderia significar "vapor". A leitura correta é lutum sapientiae,
e esse é um termo técnico de alquimia, designando a massa
especial com a qual se selavam os utensílios e objetos (ver E. O.
VONLIPPMANN,Die Entstehung und Ausbreitung der Alchem~e.
Berlim, 1919, p. 43); a matéria que dá origem ao Homunculus
de Goethe ainda é "in einen Kolben verlutiert". Assim, a cena
representa uma operação de alquimia, o que concorda com os
hábitos fantásticos, o livro, a caldeira fervente e a caveira, de
modo que EPHRUSSI(A!bert Dürer et ses dessins, Paris, 1887,
p. 121) pôde alcançar uma interpretação correta sem decifrar o
LVTV.S. A única dúvida é se o ApoIo, tão ligado à alquimia do
ponto de vista composicíonal, também o é iconograficamente.
Isso não é certo, porém não impossível. ApoIo-Sol, o sol, repre-
senta, para o alquimista, o metal precioso que tenta produzir:
"Die Sonne selbst, sie ist ein lautres Gold" ("O próprio Sol é
ouro puro"). Assim, a figura de ApoIo pode ser interpretada
como um símbolo do ouro procurado pelo operador, ou, mais
concretamente, como urna estátua sob cujos auspicíos a operação
tem lugar. Rabelais, por exemplo, ridiculariza as ciências ocultas
em sua soberba descrição de um templo da mágica adornado com
as imagens de todos os deuses planetários, entre elas uma estátua
de Febo feita do "mais puro ouro" (Gargdntua e Pantagru€!,
V, 42).
13. Ver atrás, p. 84.

311
65. Albrecht Dürer. R ap to de E uropa e outros esboços
(desenho L. 456). Viena, Albertina.
o touro "atento" que vira a cabeça 14 e, sobretudo, a
postura e o movimento da heroína. A postura dessa
Europa apreensiva- dificilmente pode ser melhor des-
crita do que nas palavras de Policiano: chamando
suas "doces companheiras" que ficaram atrás, apega-se
ao dorso do touro com uma das mãos, enquanto que,
com a outra, agarra-se ao chifre, ~ "encolhe os pés des-
calços como se temesse que o mar os molhasse" 15.
Assim, o desenho de Europa está ligado à Itália
por uma associação literária. Mas, devemos presumir
também uma fonte figurativa de origem italiana: vê-se,
por sua Grande Fortuna (Gravura B. 77) quão cabal-
mente nórdico seria o resultado se Dürer houvesse
trabalhado apenas com base numa descrição textual,
pois esta obra, com respeito ao tema, também deriva
de um poema de Policiano 16, mas é surpreendente-
mente não-italiana na aparência. No desenho da
Europa, porém, a influência da arte do Quatrocentos
manifesta-se também nos aspectos visuais: os putti
14. Em outras representações quase contemporâneas (e.g., na
gravura B.4 do "Mestre I.B. 'Com o Pássaro" ou nas xilogravuras
da Hy.pnerotom.achia de Francesco Colonna, Veneza, 1499,f.o K IV
ou K V v.) o touro olha direto em frente e a postura de Europa
é completamente diferente.
15. A descrição de Policiano é, obviamente, baseada em
Ovídio; mas é impossível derivar a interpretação de Dürer dire-
tamente de Ovfdio. Em primeiro lugar, a versão de Policiano
não só se baseia no locus classicus (Met., II, 870 e ss., já citado
por WICKHOFF, op. cit., p. 418 e s.) como é uma compilação de
passagens diversas. Assim, "o drapeado que ondula atrás" vem
do Met., I, 528; e o encolhimento dos pés do Fast., V, 611 e S.,
onde é, além do mais, retratado 'Como uma ação freqüente e
repetida ("saepe puellares subducit ab aequore plantas") en-
quanto Policiano o descreve, por assim dizer, como uma pose
fixa. Em segundo lugar, o desenho de Dürer concorda com a
descrição de Policia no também nos motivos não encontrados em
Ovídio e tirados, em parte, de outras fontes: o lamento das
companheiras e - se nota significa "olhar em torno" - a "aten-
ção" do touro. Em terceiro lugar, a mão direita de Europa
deveria segurar o chifre do animal enquanto sua esquerda repou-
saria nas costas do touro, enquanto que na obra de Dürer o
'Certo é o oposto. Isso se deve talvez ao fato de Policiano falar
somente em "l'una" e "!'altera mano". Além do mais, o texto
de Policia no explica a postura peculiar de Europa que Wickhoff
propõe derivar de um "Nike Tauroktonos". A conjectura de
Hauttmann de que uma escultura; então preservada em Augs-
burgo, que representava um "taurus qui vehebat nudam puellam
tensis bracchiis auxilium implorantem", pudesse ter servido de
modelo de Dürer é, por certo, insustentável, exatamente devido
à posição dos braços da moça, "estendidos em súplica", que
difere da composição de Dürer.
16. GIEHLOW,K. "Poliziano und Dürer". MitteilU1}gen der
Gesellschaft für ve-nvielfêiltigende Künste, XXV, 1902.p. 25 e ss.

313
trombeteando longos cornos 17, os amoretti com suas
pequenas cabeças globulares 18, as companheiras las-
timosas, puxando os cabelos e levantando os braços
com gritos de horror 19 - todos esses são motivos
italianos clássicos; e as pequeninas figuras ao fundo
(cujos gestos hiperbólicos de medo reaparecem na gra-
vura de A mímone) 20 são indiscutivelmente moldadas
segundo o padrão daquelas "ninfas" de roupas diáfanas
e pés ligeiros que eram quase indispensáveis nas re-
presentações pretensamente clássicas do Quatrocen-
tos 21.
No Rapto de Europa como na Morte de Orieu,
portanto, Dürer logrou acesso ao Antigo (antique)
refazendo o que se pode chamar de duplo desvio: um
poeta italiano - talvez Policiano em ambos os casos
- traduzira as descrições de Ovídio no vernáculo lin-
güístico e emocional da época 22, e um pintor italiano
17. Cf. por exemplo, a chamada Alegoria da Providência de
BeIlini, na Academia de Veneza. Os putti do desenho de Dürer,
mais tarde desenvolvidos nas gravuras B.66 e B.67, também pa-
recem derivar da escola veneziana; comparar, por exemplo, o
gênio com o globo na B.66 com o pequeno flautista da Alegoria
da Fortuna, de BELLINI,também preservada na Academia de
Veneza. E. TIETZE-CONRAT ("Dürer-Studien", Zeitschritt fii.r
bildende Kunst, LI, 1916, p. 263 e ss.) tentando seguir a origem
das gravuras B.66 e B.67 até o típico relevo clássico mas, judicio-
samente, avaliando a situação histórica, postula: "um elo inter-
mediário entre elas e o original clássico".
18. Cf., por exemplo, WOLFFLIN, Die Kunst Albrecht Diirers,
2. ed., 1908, Munique, p. 170.
19. Cf., por exemplo, a segunda figura a partir da esquerda
da gravura de Mantegna, O Sepultamento, B.3.
20. E. TIETZE-CONRAT (op. ·cit.); sua interpretação de um
tema como "Aquelôo e Perimele" discorda do fato de que o pai
que aparece na praia não mostra nenhum traço dessa feri tas
paterna que impiedosamente condena uma filha à morte. Ao
contrário, lança-se para a praia (cf. o soldado correndo na xilo-
gravura B.131) a fim de socorrer a vítima, ou pelo menos, já que
chega tarde, para lamentá-Ia. O fato de Ovidio descrever, expli-
citamente, Aquelôo como tomando a forma de uni touro (IX,
80 e s.) e um de seus chifres como urna cornucópia, impediria,
por si mesmo, confundi-Ios com "galhadas".
21. WARBURG, "Botticellis Geburt der Venus ... ", op. cit., I,
passim, especialmente pp. 21 e s. e 45 e ss., onde a extraordinária
importância da ninfa é ilustrada por muitos exemplos literários.
A palavra era usada sempre que se buscava uma paráfrase clás-
sica para "virgem" ou "amada".
22. É bastante natural que os autores interessados em temas
mitológicos muitas vezes se fiassem nos autores contemporâneos
a escrever no vernáculo. A influência de Policiano é evidente,
por exemplo, no Nascimento de Vênus, de Botticelli, na Galatéia
de Rafael e nas representações de Orfeu do Norte da Itália (ver
A. SPRINGER, Raffiael und Michelangelo, 2. ed., Leipzig, 1883,'II,
p. 57 e ss.; WARBURG, op. cit., I, p. 33 e ss., II, 446 e ss.). Tam-
bém é desnecessário derivar de Luciano ou Moschus as inúmeras
pequenas criaturas marinhas que aparecem no desenho de Europa
feito por Dürer (se é necessário que sejam explicadas por para-

314
visualizara os dois eventos pondo em movimento todo
o aparato da mise-en-scêne do Quatrocentos: sátiros,
nereidas, cupidos, ninfas, drapejamentos esvoaçantes e
tranças soltas 23. Somente depois dessa dupla trans-
formação é que Dürer pode apropriar-se do material
clássico. Apenas os elementos paisagísticos - árvo-
lelos literários). Em vez de apresentar outros exemplos, podemos
citar a deliciosa descrição de um relevo imaginário da Hypne-
rotomachia, f.• D II V.: " ... offeriuase ... caelatura, piena con~
cinnamente di aquatice monstriculi. Nell'aqua simulata & neglí
moderati plemmyruli semi-homini & foemine, cum spirate code
pisciculatie. Sopra quelle appresso il dorso acconciamente se-
deano alcune di esse nude amplexabonde gli monstri cum mutuo
inexo: Tali Tibicinarii, altri cum phantastici instrumenti. Alcuni
tracti nelle extranee Bige sedenti dagli perpeti Delphini, dil
frigido fiore di nenupharo incoronati... Alcuni cum multiplici
uasi di fructi copíosi, & cum stipate copie. Altri cum fascicull
di achori & di fiori di barba Silvana mutuamente se perco-
teuano ... " (as abreviações foram ampliadas e a pontuação, mo-
dernizada). Na medida em que se pode entender o encantador
idioma macarrônico de Colonna, isso diz o seguinte: "Ofere-
cia-se aos olhos ... um relevo harmoniosamente cheio de peque-
nos monstros aquáticos. Na água simulada e nas ondas calmas
[eram vistos] meios-homens e meias-mulheres com rabos de peixe
serpeantes. Sobre estes, presas a seus dorsos, elas sentavam-se
graciosamente, algumas das mulheres nuas a abraçar os m~nstros
num mútuo amplexo. Alguns tocavam flautas, outros, Instru-
mentos fantásticos. Outros ainda, sentados em estranhos carros,
eram puxadas por golfinhos ágeis, coroados com a. beleza fria
dos nenúfares... Alguns seguravam vasos de muitas formas,
cheios de frutos, e esplêndidas cornucópias. Outros lutavam
entre si com ramos de íris e barba silvana ... "
23. Cf. a esse respeito, WARBURG, "Botticellis Geburt der Ve-
nus", passim. O Professor Carl Robert (Haia) informou-me,
bondosamente, que apenas as mênades eram representadas com
os cabelos esvoaçantes na Antiguidade clássica, e assim mesmo
por um período limitado. Nos primórdios da Renascença ita-
liana esse motivo foi tão geral e entusiasticamente adotado que
se t~rnou a marca registrada da maniera antiga; mesmo em
cópias relativamente acuradas das obras clássicas, cabelos soltos e
tranças esvoaçantes eram gratuitamente acrescentadas pelos co-
pistas da Renascença (cf.. e.g, o desenho discutido por WARBURG,
op. cit., p. 19 e s.) ou a conhecida gravura Baco e Artadne
(Catalogue ot the Early Italian Engravmgs m the BTtttsh Mu-
seum, vol. de texto, p. 44, Fig. A.V, 10) onde a f'igura no canto
direito deveria ser comparada com a figura correspondente num
relevo, em Berlim, (reproduzido no Beschretbung der anttken
Skulpturen, de R. KEKULÉVONSTRADONITZ, 1891, n. 850). Essa
curiosa idiossíncrasia, observada e enfatIzada por. Warburg, se-
para os primórdios da Renascença ta~to da arte .nordIca contem-
porânea como "Clássica. A arte clássica, como ja VImos, gostava
de expressar o movimento físico, mas reforçava seu efeI!o com
o acréscimo de cabelo esvoaçante apenas no caso das menades.
A arte do fim do gótico, por outro lado, se deliciava tanto com
o jogo animado das linhas qua linhas que outorgava cabelos
"esvoaçantes" mesmo às figuras que não mostravam nenhum
sinal de movimento físico; ver, por exemplo, as repou~antes
Virgens Prudentes de SCHONGAUER (B,n, 78, 81, 84) ou as Igual-
mente tranqüilas Wildendame do Mestre. do Jogo de. Cartas .. O
Quatrocentos italiano, entretanto, generalIzava um motivo restrito
a um tema especial na Antiguidade clásstca mas, por outro ,lado,
restringia seu uso às figuras representadas em movirnerrto fISICO:
a predileção do final do gótico pelo mOVImento lmear recebia

315
res e relvados, colinas e edifícios - são independentes
dos protótipos italianos; e a maneira como o espaço
é preenchido, do começo ao fim, com tiitig k1ei':len
Dingen é exclusivamente nórdica 24*, embora muitas
dessas "coisinhas irrequietas" sejam sátiros, ninfas e
tritões clássicos.
Em 1500, seis anos após a Morte de Orieu e o
Rapto de Europa, Dürer produziu a única pintura em
que trata de um tema mitológico (Fig. 66). ~epre-
senta Hércules matando as aves de rapina de Estiníale
e pode-se considerá-Ia como a confirmação final da
reação inicial de Dürer à Antiguidade clássica: signi-
ficava, para ele nessa época, nudez heróica, modelagem
vigorosa a representar expressivamente a estrutura
anatômica, movimento poderoso, paixão animal. De
um modo geral, foi guiado por um dos quadros de Hér-
cules de PolIaiuolo, particularmente H ércules matando
Nessus, da Jarves Collection, de New Haven (Fig.
67)25. Mas, embora pareça curioso, o estilo desse
protótipo italiano é mais severamente limitado pelas
convenções e modismos do Quatrocentos que seu "de-
i rivado" alemão. Na pintura de Dürer, a esbeltez .ele-
I i gante cede lugar à vigorosa robustez; uma postura
I
agitada mas indecisa (a meio caminho entre um ata-
que e uma retirada) a uma inequívoca posição forçada
de assalto, os braços tensos, uma perna firmemente
colocada à frente, a outra plantada contra o solo.
Parece que a figura de Pollaiuolo forneceu apenas um
esboço que Dürer preencheu com volume plástico e
energia funcional. Acho que o Professor Max Hautt-
mann teve uma idéia feliz ao procurar as fontes dessa
concepção mais nobre, e se podemos dizer assim, mais
clássica do corpo humano no próprio antique. Entre-
tanto, não foi o original clássico mas sua cópia italiana

vazão total, porém apenas onde pudesse contribuir para a aspi-


ração clássica do movimento orgânico corpóreo. Comprimindo as
tranças individuais de cabelo numa .massa compacta, a Alta Re-
nascença, exemplificada pela Galatéta de Rafael, traduzia, assaz
Iogicamerrte, o "motivo do cabelo esvoaçante" de um modo de
expressão linear em outro, plástico.
24. Assim, também, MEDER,op. cit., p. 215, como WEISBACH,
op, cít., pp. 36 e 63; cf. também abaixo p, 352 e ss.
'". "Norte" e "nórdico" são usados nesta obra sempre com
referência à Alemanha, e por vezes aos Países Baixos. Nada têm
a ver com os países escandínavos. (N. da T.)
25. Ver WEISBACH,
ibidem, p. 48 e ss., com reprodução.

316
que permitiu a Dürer "melhorar. a matri~:'.. E, coinci-
dência interessante, o papel de intermediário coube ao
próprio Pollaiuolo. , . .
Em 1495 Dürer realizou uma copia parcial de
um desenho de' Pollaiuolo, agora perdido, mas que fazia'
parte, originalmente, de uma série da qual existem
hoje ainda algumas partes e que representava o Rapto
das Sabinas. O desenho de Dürer (L.347 ou nossa
Fig. 68) mostra dois homens muscul?s_os - ou me-
lhor, a não ser pela diferença de posiçao, um mesmo
homem representado de frente e de costas - carre-
gando ~ada qual uma mulher nos ombros. _Essa figura
de Pollaiuolo é baseada numa representaçao extrema-
mente popular na escultura clássica: mais inten~amen-
te agitados, elaborados de acordo com os 7st~oes do
primeiro pictore anatomista e - caracteristicamente
:...- transplantados da espera do pathos ago~ístico para
o erótico, os enamorados romanos de Pollaiuolo repe-
tem em duas perspectivas o Hércules carregando o
javali de Erimanto tão conhecido e~tr~ nós de~ido a~s
numerosos relevos 26 e estátuas 27 clássicas. FOI atraves
dessa versão de Pollaiuolo'" e não do contacto direto
com o original romano que se supôs ter estado, mas de
fato nunca esteve, em Augsburgo (Figs. 69 e 70)29,
que Dürer travou contacto co~ esse tipo clás~ico. 00
mesmo modo que usou o nu VIsto de costa no desenho

26. Ver C. ROBERT, Die Antiken Sarkophagreliefs, III, I, Ber-


Iim, 1897, pr. XXVIII e ss., especialmente pr. XXXI. .
27. Ver e.g., CLARAC, Musée de Sculpture c~mparee, n. 2009.
28. Outra p.ntura antes atribuída a Pollamolo e b~seada
numa estátua clássica, o Davi da National G~llery de W~shmgton
(WARBURG, "Dürer und die italienische Antlke" , op, CIt.,. ~I, p.
449) é' hoje consignada a Andrea Castagno (ver WARBURG, íbídem,
p. 625). di tát
29. HAUTTMANN, op. cit., p, 38 e ss., acre íta que a es. ;ta
de Hércules reproduzida - de frente e de costas - na Inscrtptto-
nes sacrosanctae vetustatis de Petrus Apianus ... Pet~ Apianus
Mathematicus Ingolstadiensiset Bartholomaeus Amanttus Poeta
DED., Ingolstad, 1534, pp, 170 e 171, p~r~encia aos I!:uggers de
Augsburgo embora admita que a descrição da Coleção Fugger,
por Beatu~ Rhenanus (1531), não faça menção de nenhuma estátua
de Hércules, e que a lenda das xilogravuras de Apíanus possa
bem significar, (significa, na verd.ade), que um do~ Fuggers,
Raimundo, haja permitido que o objeto fosse repr?dUZIdo de ~ua
coleção de desenhos. Entretanto, para ter um Hercules clá~SI'CO,
pronto para a inspeção de Dürer, em Augsburgo de 15?0, Hautt-
mann propõe identificar a estátua reproduzída por Apíanus com
uma imago marmorea que pertencia originalmente a Peutinger.
Mencionada por este, em 1514, como "estando em sua casa" e
"recentemente trazida de Roma", podia, segundo Hauttn:ann, ter
passado às mãos dos Fuggers entre 1531 e 1534 .. Essa hrpótese é
pouco prováveL Primeiro, se a estátua reproduzída por Apianus

317
66. Albrecht Diirer. Hércules matando as aves do IlIgo
Estinia!e (detalhe). Munique. Alte Pinakothek, datado de
1500.

67. Antonio Pollaiuolo. Hércules matando Nessus (deta-


lhe). New Haven, Yale University Art Gallery, Cortesia
da Yale University Art Gallery.
68. Albrecht Dürer. Rapto das Sabtnas (desenho L. 347).
Bayonne, Musée Bonnat, datado de 1495.
de 1495 para a gravura Der Hercules de ca. 1500-
1501 (B.73), assim também o utilizou para o Hércu-
les da pintura de 150030; e essa dupla e quase con-
temporânea reconversão poderia indicar que Dürer
conhecia o significado mitológico original da figura.
Sob certos aspectos, a pintura é ainda mais fiel ao
desenho que a gravura. Observar, por exemplo, a
posição das pernas e detalhes tão significativos como
a diminuição do pé direito e as características fisionô-
micas: a acentuada depressão acima do nariz aqui-
lino, forte; a testa arredondada,' protuberante, e as
sobrancelhas arqueadas que criam a impressão de
tensão e esforço.
Numa xilogravura desenhada, porém, provavel-
mente não executada, por Dürer por volta dessa mes-
ma época - uma das ilustrações em xilogravura para
o Libri amorum de Conrad Celtes, publicado em 1502
- podemos observar um uso análogo da outra figura
do desenho de 1495, sendo que o nu é visto agora de
frente. Essa gravura (11. 13) representa ApoIo perse-
guindo Dáfnis e baseia-se, de um modo geral, numa
miniatura atribuída a Liberale da Verona 31. Dürer
porém desenvolveu. esse protótipo italiano do mesmo
modo e com a mesma intenção que no caso da figura
de Hércules 32; e, também aqui, o modelo que permi-
pertencia aos Fuggers na época da publicação, por que deixou
de dízê-Io, de maneira inequívoca? Segundo, mesmo se se admi-
tir uma mudança de dono - pouco provável durante a vida de
Peutinger - como acreditar que a estátua mencionada como
nuper al!ata, em 1514,já estava em seu poder desde 1500? Ter-
ceiro, a obra reproduzi da por Apianus aparece sob o título de
"antiguidades italianas". Infere-se que o Hércu!es de Peutinger,
mencionado em 1514 não era o mesmo da estátua reproduzida
por Apianus e que o Hércu!es de Fugger nunca existiu.
30. O lansquenete da gravura B.88 também foi corretamente
derivado do desenho L.347 (Ausstel!ung von A!brecht Dürers
Kupferstichen, Kunstha!!e zu Hamburg, 21 de maio, 1921, G.
Pauli, ed., p, 7.) Em ambos esses casos, a figura aparece, é
claro, ao inverso. Que o mesmo seja verdade com respeito ao
Hércules pintado, onde a inversão não se deve à mecãnica do
processo de gravar, pode ser explicado pela necessidade de colo-
car o arco na mão esquerda do arqueiro.
31. MS. em Wolfenbüttel, reproduzido por PAOLOD'ANCONA,
"Di alcuni codici miniati" (Arte, X, 1907, p. 25 e ss., p. 31) e
mencionado por HAUTTMANN, op. cít., p. 38. O ApoIo da xilogra-
vura do Parnasso, que aparece na Me!opoiae e no Guntherus
Ligurinus de CELTES(ambos publicados em 1507) baseia-se num
protótipo correlacionado. Ver uma miniatura, no mesmo manus-
crito, reproduzida por Paolo d'Ancona, p, 30.
32. O movimento hesitante do modelo de Dürer (o ApoIo
na miniatura de Wolfenbüttel), onde a figura magra, angular,
toca o solo, com apenas a ponta do pé direito, foi mudada para

321

/
13. Albrecht Dürer (Oficina). Apoio e Daine. Xelo-
gravura de Conrad Celtes, Quatuor Libri Amorum, Nurern-
berg, 1502.

tiu essa melhoria foi uma cópia do Rapto das Sabinas,


de PoIlaiuolo. Não é de espantar, como já observou
Thausingê", que o ApoIo da xilogravurá pareça com
"o Hércules pintado em reverso".
Em todos esses casos, pode-se dizer que Dürer
esposou a causa da Antiguidade clássica contra a do
Quatrocentos. Seus modelos italianos exibiam, por um
lado, figuras delicadas, graciosas, delimitadas por con-
uma posição de força, de investida, com o pé direito firmemente
assentado no chão, e o esquerdo, com toda sua extensão exposta,
recolhendo-se atras (HAUTTMANN, op. cit., p. 38).
33. THAUSINC. Op. cit., p. 279 (trad. ingI., I, p. 272).

322
tomos caligráficos, movendo-se com animação nervosa,
o que condizia, perfeitamente, com o gosto do Qua-
trocentos; por outro, figuras que por sua construção
sólida, modelagem plástica e energia ponderosa se
aproximavam do estilo de estatuária clássica. Dürer
percebeu e enfatizou essas qualidades' clássicas - no
caso do Hércules a ponto de lançar o PolIaiuolo clás-
sicista contra o PalIaiuolo protomaneirista. Mas isto
não nos deve cegar para o fato de que o estilo Clássico
que Dürer pôde assim opor ao do Quatrocentos, se
lhe tomara acessível graças ao próprio Quatrocentos.
E, se foi possível ao artista alemão retraduzir o idioma
dos italianos para a linguagem do antique, deveu essa
possibilidade aos próprios italianos a quem "corrigira".
O próprio Quatrocentos ensinou a Dürer como ultra-
passá-Ia 34.

11. Beleza Clássica

A pintura de Hércules de 1500 representa o clí-


max do esforço de Dürer em sua busca de pathos
heróicos; mas, o mesmo ano de 1500 também marca
o começo' da tentativa de recapturar o outro aspecto
desse "duplo Hermes" 35 sob cuja aparência a Antigui-
dade era adorada pela Renascença: o apolíneo ..
Sabemos que foi o veneziano Jacopo de' Barbari que
34. É espantoso ver quão perto Hauttmann esteve da ver-
·dade. Observa, corretamente, que tanto as xilogravuras de Celtes
como o óleo de Hércules pressupõe a influência da estatuária
clássica além de seus protótipos italianos diretos; e presume,
também acertadamente, que Dürer tivesse à sua disposição um
desenho de um Hércules clássico carregando o javali de Erimanto
"visto de frente.e de costas". Mas, esqueceu-se de uma coisa,
devido à qual, justamente, esse desenho chegou até nós: é o
desenho L. 347 que representa um Hércules assim numa "tra-
dução" de Pollaiuolo. Mesmo de um ponto de vista estritamente
estilístico, esse desenho é muito mais próximo das versões finais
de Dürer que as xilogravuras de Apianus. Comparando, por
exemplo, a vista de "Costas do Hércu!es de Apianus (Fig. 70)
com o óleo de Dürer (Fig. 66), podemos notar que o torso não
é tão jogado para frente; que a perna que avança é menos
dobrada; que a outra não é tensa no joelho; que o pé em
perspectiva é desenhado de maneira totalmente diferente; e que
a parte mais importante das costas é coberta pela pele do leão.
Precisamos concluir que, primeiro, Dürer não foi influenciado
pela estátua de Hércules reproduzida nas duas gravuras de
Apianus; segundo, que não se pode responsabilizá-Io por essas
ditas gravuras, Que isso também é verdade no tocante às outras
gravuras de Apianus a ele atribuídas será demonstrado num
Excurso (p. 367 e ss.) ,
35. Tomo esta frase feliz a WARBURC, op. cit., p. 176.

323
chamou a atenção de Dürer para o "problema da bele-
za", mostrando-lhe alguns estudos sobre as proporções
humanas; também sabemos que foi nas gravuras deste
que Dürer procurou apoio no início de seus estudos
teóricos. Começando sem conhecimento de Vitrúvio
e continuando por um método geométrico, essencial-
me~te. gótico, pürer se limitou, a princípio, a figuras
femininas, utilizando os nus classicizantes de Barbarí
como padrões; somente um pouco mais tarde é que
estendeu seus esforços às proporções e pose do "corpo
masculino perfeito".
Essa~ figuras de homem assinalam um novo passo
na conquista da Antiguidade clássica por Dürer: suas
proporções se baseiam no cânone vitruviano que lhe
foi provavelmente dado a conhecer por um' de seus
amigos humanistas, e que o levou, por algum tempo,
a rever também as proporções de suas representações
de mulher 36. A postura dessas figuras é moldada
segundo o Apolo de Belvedere, de modo que são co-
mumente conhecidas como "o grupo dos ApoIos" 37.
Como os atributos originais do Apoio de Belvedere _
qu~, descoberto em Roma por volta de 1496, só po-
dena chegar ao conhecimento de Dürer através de
um desenho italiano - não podiam ser determinados
na época, ele o interpretou a princípio não como um
ApoIo "normal", conquistando o mal por meio de seu
arco ou égide, mas como um deus da saúde, identifi-
cado como tal pelo simbolismo da cobra e da taça,
que tanto pode ser chamado de Apoio Médico como

33' Acerca da prioridade ..dos estudos de Dürer sobre as pro-


porçoes femmmas e a subsequente (mas temporária) modificação
destes a =v= do cãnone de Vitrúvio, ver PANOFSKY, Dürers
Kunsttheone, p. 84 e ss. A pose do Nu Reclinado (desenho
L. 466, datado de 1501) baseia-se na da chamada Amímone (gra-
vura B. 71) sendo, portanto, familiar a Dürer antes que pudesse
~omar conhecImento. de. uma Circe clássica, agora perdida que,
nuda mcu,!,bebat rnmxa dextro bracchio", data, aproximada-
mente esta mtrusão deste código vitruviano - acarretando um
prop~rcionamento mais quadrado que retangular do busto - em
relaçao ao SIstema estabelecido em trabalhos anteriores como os
desenhos L ... 37/38, L. 225/226 (datado de 1500); ver também
R. BRUCK,Durers Dresdner Skizzenbuch Estrasburgo 1905 pr
74/75.' " , .
3~. E., PANOFSKY, Dürers Darstellungen des Apollo und ihr
Verhâltníss zu Barbarí , em Jahrbuch der preussischen Kunstsamm-
lungen, XLI, 1920, p. 359 e ss. [A interpretação do desenho
~. 181 como "Apolo Médico" em lugar de "Esculápio" foi suge-
rída por K. T. PARKER,"Eine neugefundene ApolIzeichung Dü-
rers", ibidem, XLIV, 1925, p. 248 e ss.].

324
de Esculâpio (Desenho L.181, nossa Fig. 75). Trans-
fo rmou, então este deus da saúde num deus Sol, ma-
jestático, com cetro e disco solar (Desenho L.233,
nossa Fig. 76), o qual pretendia originalmente repre-
sentar como uma figura isolada numa gravura. Antes
de levar a cabo seu intento, entretanto, tomou conhe-
cimento da gravura de Barbari, Apoio e Diana, sob
cuja influência converteu o Sol num ApoIo "normal"
e colocou uma Diana a seu lado 38. No fim, desistiu
de todas essas idéias e utilizou a figura clássica a ser-
viço de um tema bíblico; o resultado final foi a Queda
do homem de 1504 (Gravura B.l, nossa Fig. 80)
onde os exemplos de beleza masculina e feminina per-
feita são justapostos numa composição paradigmática.
O "grupo dos ApoIos" de Dürer, portanto, come-
ça com Esculâpio ou Apoio Médico e termina com
A dão. Mas, não há razão para se negar, como fez
Hauttmann, a influência do Apoio de Belvedere em
favor da de um Mercúrio romano, que fora descoberto
em Augsburgo, pouco antes ou depois de 1500, e tor-
nara-se propriedade de um conhecido humanista, Con-
rad Peutinger (Fig. 71 )39.
A questão de saber se foi esse Mercúrio de Augs-
burgo (hoje no Maximiliam-Museum de Augsburgo) ou
o Apoio de Belvedere que serviu de protótipo para o
"homem ideal" de Dürer não pode, evidentemente, ser
respondida por cotejo com o Adão da Queda do ho-
mem que, como lembramos, marca o final de uma
evolução e, como Wõlfflin observou 40, funde a postura
das figuras prévias de Dürer com a do Apoio de Bar-
bari 41. Devemos antes começar pelo princípio, ou
seja, com o desenho do "Sol" L.233 ou, melhor ainda,
com o do "Esculápio ou do Apoio Médico" (L. 181),
que temos razões para considerar como o mais antigo
38. A transformação do Sol (cabelos curtos, com cetro e
disco solar) num ApoIo "normal" (com cachos soltos, arco' e
flechas) é registrada num "autodecalque" corrigido a mão livre
(Desenho L. 179). Em 1505, Dürer retornou ao tema de Apoio
e Diana numa base inteiramente diversa, na gravura B. 68; cl.
PANOFSKY, ibidem.
39. HAUTTMANN. Op. cit., p. 43 e ss.
40. WOLFFLIN.Op. cit., p. 366.
41. Portanto, a "posição firme" do Adão não é prova contra
a influência do ApoIo de Belvedere a mais do que o fato de sua
cabeça estar voltada para o outro lado. Sobre a relação entre
o Adão e a xilogravura reproduzida nas lnscriptiones de Apíanus,
p. 422, ver o Excurso, p. 367 e ss.

325
membro de toda a série. :B preciso comparar esse de-
senho, de um lado com o Mercúrio de Augsburgo, e
do outro, com o Apoio de Belvedere; e, ao examinar-
mos o último, deveríamos consultar, em vez de uma fo-
tografia moderna, uma representação contemporânea,
tal como o que poderia ter chamado a atenção de Dü-
rer - não, é claro, uma vista de perfil como a que
aparece no fólio 53 do Codex Escurialensis 42, mas uma
de frente, como a do fólio 64 do mesmo manuscrito
(Fig. 77) 43.
Desta comparação, evidencia-se o fato de que as
figuras "pré-adâmicas" de Dürer, quer consideremos o
Esculápio ou o Sol, são tão semelhantes ao Apoio de
Belvedere como são diferentes do Mercúrio de Augs-
burgo. Têm em comum com Q Apoio de Belvedere,
primeiro, o balanço característico dos braços - a sus-
pensão do esquerdo correspondendo ao abaixamento
do direito; depois, a cabeça voltada para o lado da
perna livre; enfim, e sobretudo, a postura, que é dado
descrever como um andar gracioso de preferência a
uma pose estática 44; a esse respeito, o movimento das
figuras de Dürer se assemelha mais ao desenho Escuria-
lensis do que à estátua original. Não cabe objetar
que lhe seria possível tomar essa pose de empréstimo
a qualquer outra figura clássica plasmada no que se
chama atitude contraposta: por estranho que pareça,
I
I
o Apoio de Belvedere é positivamente único e não pode
II ser substituído ao acaso, por assim dizer, - e muito
I menos pelo Mercúrio de Augsburgo. Nesse trabalho,
antes medíocre, ambos os braços apresentam-se abaixa-
dos; a cabeça está voltada mais para o lado da perna de
apoio do que da perna livre; e, em lugar da pernada
ativa, temos uma postura apática de descanso, a perna
livre movendo-se apenas um pouquinho para o lado e
nada para trás. As coxas, enfaticamente divergentes
42. ECCER,H. Codex Escuria!ensis, Viena, 1906.
43. Essa segunda representação não foi, aparentemente, leva-
da em consideração por Hauttmann, o qual sustenta que um
desenho baseado no Apo!o de Be!vedere, que pudesse ter forne-
cido a Dürer um modelo para suas figuras ideais "teria que ser
fundamentalmente diferente de todas as antigas representações
conhecidas da estãtua" - afirmação essa, diga-se de passagem,
que podia ser refutada, além do Codex Escuria!ensis, pela gra-
vura de Nicoletto da Modena (B. 50, ca. 1500).
44. Que essa posição dos pés era importante para Dürer é
evidente pelo fato de havê-Ia acentuado com o uso de sombras
no desenho L. 233.

328
15. Albrecht Dürer.
nho L. 181). Berlím,

76. Albrecht Dürer. ARolo-Sol e Diana (desenho L. 233).


Londres, Britísh Museum.

77. Apolo Belvedere, Desenho do Codex Escurialensis,


f9 64.
nas figuras de Dürer assim como no Apoio de Beive-
dere, encontram-se quase paralelas; e os pés, dispostos
em ângulos aproximadamente idênticos com respeito
ao plano frontal, não diferem muito quanto à sua po-
sição relativa no solo. É impossível que Dürer tenha
interpretado o Mercúrio de A ugsburgo de uma maneira
tal que sua interpretação discorde desta precisamente
naquelas características em que concorda com o Apoio
de Belvedere.
Em certos aspectos, a bem dizer, o Esculápio e o
Sol de Dürer diferem do Apolo do desenho Escuria-
lensis: na posição frontal estrita do peito, no método
de indicar os músculos, na perspectiva dos pés e numa
certa desaceleração do movimento rítmico (o contorno
direito, por exemplo, segue um curso quase reto, ver-
tical, em vez de ondular em curvas suaves). Essas
diferenças - que, é bom lembrar, existiriam também
em relação ao Mercúrio de Augsburgo - não são,
todavia, inexplicáveis. A frontalidade do peito é um
resultado obrigatório do esquema geométrico de cons-
trução usado por Dürer em todas as figuras em ques-
tão 45, e as outras diferenças podem ser explicadas,
acho eu, pela influência de uma gravura que sabemos
ter sido utilizada por Dürer nessa época: a Bacanal
com o tonel, de Andrea Mantegna (B. 19, nossa Fig.
79) . Essa gravura mostra, perto da margem esquerda,
a figura de um bacante segurando uma cornucópia na
mão direita e tentando alcançar um cacho de uvas
com a esquerda. Parece que a impressão dessa figura
fundiu-se na imaginação de Dürer com a do Apoio de
Belvedere. Do mesmo modo que Dürer julgou neces-
sário aprimorar o protótipo italiano do seu quadro de
Hércules e de sua xilogravura de ApoIo e Dáfnis 46 com
base no Rapto das Sabinas de Pollaiuolo, assim tam-
45. Sobre este ponto, cf. L. JUST!, Konstruierte Figuren und
Kopfe unter den Werken ALbrecht Dürers, Leipzig, 1902, e
acima p. 140.
46. Esses "estímulos duplos" não são incomuns na obra de
Dürer. Ver, e.g., a relação da sua Amímone com o grupo da
esquerda da Batalha dos Monstros Marinhos de Mantegna (copia-
do por Dürer no desenho L. 455) e com a gravura Vitória, de
Barbari; ou .a relação de sua gravura B. 75 (as Quatro Bruxas)
com a; gravura de Barbari, Vitória e Fama, e seus próprios estu-
dos do natural, reunindo no desenho L. 101 (E. SCHILLING, "Dürers
vier Hexen", Repertorium für Kunstwissenschaft, XXXIX,
p. 129 e 55.).

330
78. Hellos Pantokrator (ou Sol Pantocrator). Medalha
de Aizenis na Frígia.

79. Andrea Mantegna. Bacanal com o tonel (detalhe). Gra-


vura B. 19.
bém resolveu melhorar a cópia italiana do Apoio de
Belvedere que dispunha, com base no esplêndido nu
de Mantegna (que por sua vez reflete a impressão da
estatuária clássica) 47. Já que nas representações "ar-
queológicas" dos monumentos clássicos, não se dá,
nessa época, muita atenção ao detalhe anatômico ne-
nh~ma cópia do Apoio de Belvedere poderia fo~ecer
mais que um schema, por assim dizer, que tinha de ser
suplementado com outras fontes. Nos detalhes ana-
tômicos tais como as articulações dos joelhos, a técni-
ca dos contornos e, principalmente, o desenho dos pés
Dürer seguiu, portanto, a gravura de Mantegna que:
c0IIl:0 sua companheira a Bacanal com Sileno 48, já
devia conhecer desde 1494 ou 1495, e quelhe ocupava
.o pensamento justamente na época em que trabalhava
no "grupo dos ApoIos". Usou a cornucópia do ba-
c~nte e.m três lugares diferentes: no ex-libris para
Pirckheimer (gravura B. ap. 52), na página de dedi-
catória do Libri amorum 49 e num de seus estudos sobre
P!oporções femininas 50 - ou seja, em obras produ-
zidas por volta de 1500 e uma das quais é particular-
mente próxima de um dos primeiros membros do
"grupo dos ApoIos" tanto no tema quanto na época 51.
Entretanto, se as primeiras tentativas de raciona-
lizar a postura e as proporções do "homem perfeito"
se baseiam numa cópia do Apoio de Belvedere, por
que não aparece este sob a forma de um ApoIo "nor-
mal"? Por paradoxal que possa parecer, a resposta é:
porque se baseava, justamente, numa cópia do Apoio
de Belvedere. Com ambas as mãos faltando no origi-
47. Talvez um Dionísio (cf. partiCUlarmente CLARAC. op. cit ..
N. 1619b). O Professor Fischel chamou minha atenção para um
mural da Casa de'Vetti, em Pompéia, que partilha com a bacante
de ~antegna até o motivo da cornucópia; é possível que outra
versao dessa figura fosse conhecida na Renascença.
48. Gravura B. 20; cf. o desenho L. 454 de Dürer.
49. Xilogravur.~ pr. 217; cf. A. LrCHTWARK, Der Ornamentstich
der deutschen Fruhrenaissance, Berlim, 1888, p. 9.
50. BRUCK,op. cit., pr. 70/71; sobre a data desse desenho
cf. PANOFSKY, Dürers Kunsttheorie, p. 90, nota 1. '
51. O São Jorge do retábulo do altar de Paumgãrtrier de
autor~a . de Dürer, outra figura que Hauttmann tenta deriva; do
MercuTto de Augsburgo, pode também proceder do sãtíro de
Mantegna, que tem tudo o que Dürer talvez pudesse aprender
com a_escultura de Augsburgo; do ponto de vista composicional
o dragão do santo é, certamente, mais próximo da cornucópia d~
sátíro que do marsupium de Mercúrio. Cf., adiante p, 363
nota 125. '

332

I
nal e aljava irreconhecível em qualquer representação
frontal ~2, o Apoio de Belvedere, que Dürer e seus con-
selheiros humanistas podiam conhecer, era identifica-
do por apenas um atributo: a serpente escorregando
conspicuamente tronco acima da árvore atrás dele. E
nem Dürer, nem seus amigos, podem ser criticados por
terem interpretado mal essa serpente - que sabemos
agora ser a Píton de ApoIo, acrescentada pelos antigos
copistas 53 - confundindo-a com o conhecido símbolo
da saúde pertencente com igual direito ao Apoio
Médico e ao Esculâpio M.
Assim, até a iconografia das primeiras figuras
"ideais" de Dürer parece depor a favor, e não contra,
sua derivação do Apoio de Belvedere 55. Dürer não foi
ao encontro do antique, mas o antique é que foi ao
encontro de Dürer - através de um intermediário
italiano 56.

52. Ver, por exemplo, nossa Fig. 77.


53. AMELUNG, W. Die Sculpturen des vatikanischen Museums,
lI. Berlim, 1908. p, 257.
54. Sobre um desentendimento ainda mais sério de uma
serpente, ver o Apêndice das Inscriptiones de Apíanus (f.. 6),
onde um Hércules menino estrangulando as Serpentes é inter-
pretado como "O Segundo filho de Laocoonte".
55. É bem verdade que Dürer só representou um ApoIo
"normal" relativamente tarde; mas não representou nenhum
Mercúrio, exceto no caso dos desenhos L. 420 e L. 652, que deri-
vam, não da escultura de Augsburgo, mas de um desenho de
Hartmann Schedel, baseado em Ciriaco de Ancona. Que o pró-
prio ApoIo de Be!vedere não apareça na publicação de Apianus
explica-se pelo fato de sua obra ser, essencialmente, uma cole-
tânea de inscrições, cuja ilustração, que não tinha pretensão de
completude, se limitava ao material encontrado à mão (ver a
própria observação de Apianus, p. 364).
56. Também discordo da suposição de Hauttmann de que a
xílogravura B. 131 deriva de uma pedra tumular romana que até
1821 continuava à vista numa pequena rua de Augsburgo e é
ilustrada no Rerum Augustanarum !ibri VIII, de MARXWELSER,
Augsburgo, 1594, p. 226 (HAUTrMA:NN, op. cit., p. 40). Mesmo
se esse monumento, não mencionado antes de 1594, fosse aces-
sível cem anos antes, sua correlação com a xilogravura de Dürer
não seria aceitável. A gravura, é verdade, parece supor um
modelo cuja direção foi invertida (embora o fato de o cavaleiro
segurar as rédeas com a mão esquerda não seja, por si só, mu-
sual); porém esse modelo encontra-se numa das próprias obras
de Dürer. No centro de um desenho conhecido como Os Pra-
zeres do Mundo, (L. 644), vemos um 'Cavaleiro num movimento
quase idêntico, também acompanhado por um cão e um homem
correndo que, embora vestido e equipado de maneira diversa,
se assemelha imensamente à segunda figura da xílogravura, Não
há dúvida de que a gravura foi desenvolvida a partir deste pe-
queno trio que Dürer escolheu para uma representação indepen-
dente antecipadora dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Além
disso, todos os critérios supostamente próprios da xilogravura de
Dürer são, na realidade, típicos da arte nórdica (ver, por
exemplo, além de inúmeras representações em gravuras, óleos e
selos, o pequeno relevo de São Jorge, de Adam Krafft, reprodu-

333
lU. Antiguidade Clássica e Idade Média
Helios Pantokrator e Sol Iustitiae. A situação
peculiar de Dürer no tocante à Antiguidade clássica
entra em foco quando consideramos suas representa-
ções do deus-sol planetário *. Antes mesmo de ter
pensado em pintá-lo como um membro do Panteão
pagão, resplendente de beleza apolínea (Fig. 76), retra-
tara-o numa gravura de ca. 1498 (B. 79, nossa Fig.
82) que expressa a crença cristã na redenção e retri-
buição. E enquanto a imagem pagã - clássica na
forma e no conteúdo - baseia-se numa cópia do Qua-
trocentos do Apolo de Belvedere, que parece ter caído
nas mãos de Dürer em Nuremberg, a imagem cristã
- totalmente medieval sob todos os aspectos - re-
flete a impressão de uma escultura gótica que atraíra
a atenção de Dürer em Veneza. Assim, curiosamente,
Dürer trouxe da Itália consigo, onde tantos originais
gregos e romanos estavam a sua disposição, a inspira-
ção para uma obra medieval; em casa, dependendo
apenas de cópias renascentistas de modelos clássicos,
penetrou no significado do antique e produziu um tra-
balho impregnado de verdadeiro sentimento clássico.
zido, e.g., em Geschichte der deutschen Kunst, de G. DEHIO, H,
1921, Berlim e Leipzig, n. 340). Mesmo o gesto do braço esten-
dido para trás tem paralelos mais próximos nas representações
nórdicas do que na pedra tumular romana (onde aparece não
como um gesto expressivo mas como mera ação eqüestre). En-
contramo-lo, em particular, em representações da Lenda dos
Três Vivos e dos Três Mortos (cf. adiante p. 394 e ss.) ; para um
exemplar quase contemporâneo, ver, por exemplo, uma miniatura
no Berlin Kupferstichkabinett (reproduzida na obra de K. Künstle,
Die Legende der drei Lebenden und der drei Toten, Friburgo,
1908, pr. llIa) , onde um dos três jovens, barrados a meio caminho
pelos três horríveis cadáveres, galopa com um gesto similar de
medo e repugnância. É bem possível que a invenção de Dürer
tenha se originado de representações desse tipo que eram muito
populares por volta do fim do século XV; seu desenho E'nsina a
mesma lição que a Lenda dos Tr~s Vivos e dos Três Mortos,
salvo que os jovens despreocupados nem fogem da Morte, nem
são levados por ela a um diálogo filosófico mas, - sem se darem
conta - são ameaçados por sua presença oculta.
Afora tudo isso, a afirmação de Hauttrnann é ínscertável
por motivos 'cronológicos. A gravura B. 131 não pode, de modo
algum, provir de uma data posterior a ca. 1197 - o desenho de
Oxford é até um ou dois anos anterior - enquanto que a suposta
visita de Dürer a Augsburgo, segundo a própria cronologia de
Hauttmann, só pode ter ocorrido depois de 1500 (op. .:t;;., p. 37).
Essa primeira viagem a Augsburgo, íncidentalmente. é pura con-
jectura: o Ret"ato de Jacob Fugger deve ser excluído desta dis-
cussão, pois é obra dos anos 1518-20; ver, além de todas as
considerações estilísticas, a data inscrita (1518) no estudo preli- ,
minar da Berlin Kupferstichkabinett (L. 826).
• O Sol era considerado como planeta, e não estrela.
(N. da T.)

334
o deus-sol, Hélio ou Sol, na medida em que se
distingue de Apolo, não desempenhava um papel muito
importante na religião grega da época de Péricles ou
Pia tão. . Mas, sob a influência egípcia ou asiática, ascen-
deu a uma suprema magnitude na era helenística. As
artes rendiam-lhe homenagem através de templos mara-
vilhosos e inúmeras imagens, e preces fervorosas lhe
eram dirigidas : "HÀLe llaVTOKpáTOp, K6(JiJ.OU 7rv,üiJ.a. KÓ(JiJ.0ll

õ{lpap"cs, KÓUIlOV t:/>wr;.

("Supremo Legislador, Espírito do Mundo, Poder


do Mundo, Luz do Mundo") 57. Era o clímax natu-
ral de uma evolução que se desenvolveu durante séculos
quando Aureliano proclamou o "Sol Invicto" ("mlO'
civdK'1TO', Sol lnvictus) como divindade suprema
do Império. Romano 58.
:É nessa interpretação que o deus-sol, justaposto
a Diana, aparece no desenho de Dürer L. 233 (Píg.
76): orgulhosamente ereto, nobremente proporciona-
do, numa bela postura, dignificado pelo cetro - um
verdadeiro Pantocrator. Esse deus-sol é totalmente
clássico, até na iconografia; na verdade, é em seus
aspectos iconográficos - e apenas em seus aspectos
iconográficos - que o desenho de Dürer parece re-
fletir uma influência direta do antique. Como já vimos,
não era uma coisa comum para ele interpretar o Apolo
de Belvedere como uma divindade solar; nem podia
ele saber, sem informação especializada, a diferença
entre um cetro do final da era medieval e um clássico
( (JK1)7rrpOV ) que é, por definição, um "bastão"
e não o objeto intricado usado pelos governantes da
própria época de Dürer. E eu gostaria de propor que
tanto a idéia geral de representar o ApoIo de BeIvedere
como "Helios Pantokrator" quanto o conceito específico
de um cetro com a forma de um bastão longo e liso,
coroado com uma espécie de romã foram sugeridos a

57. CUMONT, F. Mithra ou Sarapis kosmok~ator, em Comptes


Rendus des Séances de I'Académie des Inscnpttons et Belles-
-Lettres, 1919, p. 322.
58 Idem Textes et Monuments figurés relatifs aux Mystéres
de Mithra, Bruxelas, l, 1899, p. 48 e ~s. Também, H. USENER,
"Sol invictus", Rheinisches Museum fur Phl1ologle, LX, 1905,
p. 465 e ss.

335
,

Dürer pelas moedas clássicas 59. Nas moedas do


período imperial o deus-sol ocorre em inúmeras varia-
ções: em forma de busto, como condutor de quadriga,
e sob a forma de uma estátua cerimonial. Quando é
especialmente designado como Sol Invictus, levanta
a destra em bênção solene 60, enquanto que na sinistra
segura o orbe, o chicote ou o feixe de raios 61; e nas
moedas da Asia Menor, principalmente nas da Frígia
ou Capadócia, traz, também, um cetro coroado com
uma esfera ou fruto. Quando Dürer abandonou a
versão de "Esculápio" ou "ApoIo Médico" e pergun-
tou a seus amigos eruditos sobre outra possível interpre-
tação, estes poderiam, facilmente, ter-lhe indicado uma
moeda como esta; até mesmo quatrocentos anos de-
pois, um grande estudioso alemão, Hermann Usener,
comentou a grande "semelhança familiar" existente en-
tre as representações do Sol Invictus e o Apolo de
Belvedere. Reproduzo uma moeda da cidade de Aize-
nis (Fig. 78) 62 que corresponde ao desenho de Dürer
em todos os aspectos, - com exceção do fato de que
este, seguindo a tradição medieval 63, substituiu o disco
solar pelo orbe solar: a atitude imperatória do anti-
que não estava mais ao seu alcance 64.
59. Gostaria de agradecer ao Dr. Bernhard Schweitzer por
chamar minha atenção para este campo.
.. 60. Sobre o significado deste gesto, ver F. DOLGER, Sol salutis,
Munster, 1920, p. 289.
61. Sobre os vários tipos de Sol em moedas, ver USENER, op.
cit., p. 470 e ss.
62. British Museum, Catalogue oi the Greek coins ot Phrygta
Barclay V. Head, ed., 1906, pr. V, 6 (Texto, p. 27); ver també~
as moedas de Ce~aréia e Ca~adócia (BTitish Museum, Catalogue
ot the Greek COtns oi Galatta, Cappadocia and SyTia, Warwick
Wroth, ed., 1893, pr. VII, 12; IX, 6, 7; X, 6, 14; XI, 11; XII, 3).
63. Ver, e.g., o Sol reproduzido em nossa Fig. 83' também
F. SAXL,"Beítrãge zu einer Geschi·chte der Planetendarstellun-
gen", Der ISlam, III, p. 151 e ss., Fig. 15 direita ao alto.
64. Quando o deus-sol é representado juntamente com o
Imperador, é este que recebe o cetro e o orbe, ao passo que o
deus que o coroa deve se contentar com o chicote: cf. a moeda
de Constantino, o Grande, reproduzida na Numismatische Biblio-
th.~k, de HmSCH,XXX, 1910, n. 1388. Não é surpreendente que
Durer pudesse entrar em contacto com moedas ainda mais raras
Devi~o ao seu i~teresse histórico e epigrâfico e a'cessibilidad~
relativamente rácn. as moedas clássicas eram os objetos favoritos
dos ~olecionadores humanistas alemães. Acerca da coleção de
Peutmger, ver Hauttmann, p, 35. Que Pirckheimer também pos-
suía uma "considerável coleção de moedas gregas e romanas" é
a~estado em sua biografia (composta, principalmente, por seu
bisneto Hans Imhoff III) que forma a Introdução da Opera de
PIRCKHEIMER, M. Goldstad, ed., Frankfurt, 1610. Pirckheimer com-
pôs um tratado de numismática De pTiscorum numismatum ad
Norimb. monetae vaIarem aestimatione (Opera, p. 223 e 55.) e

336
,

A experiência religiosa do fim da Antiguidade


estava de tal modo ligada ao misticismo astral e tão
totalmente imbuída da crença na onipotência do deus-
-sol, que nenhuma idéia religiosa nova obtinha aceitação
a não ser que estivesse investida de conotações sol~res
desde o início - como era o caso do culto de Mitra
ou que adquirisse tais conotações ex post facto - como
era o caso do Cristianismo. Cristo deveria triunfal
sobre Mitra; mas esse triunfo só se daria depois - ou
melhor, porque - Seu culto absorveu algumas das
características vitais da adoração do sol, desde a data
de Seu nascimento (25 de dezembro l'", até a tempes-
tade que O leva para o céu (na Ascensão) 66. A
própria Igreja sancionou esta união entre Cristo e o
sol desde o começo; mas, ao fazê-Ia, contrapôs e, fi-
nalmente, substituiu, o deus-sol cosmológico 67 por um
deus moral: o Sol lnvictus tornou-se o Sol Iustitiae,
ou seja, o "Sol Invicto" passou a ser o "Sol da Jus--
tiça" 68.
Não foi difícil realizar esta substituição. Primeiro,
o próprio paganismo tendera a espiritualizar o sol físico
num "Hélio inteligível" 69; segundo, o deus-sol fora,
desde há muito, dotado do caráter de "juiz" 70; ter-
ceiro, e mais importante, esta equação de "sol" e "~us-
tiça" era confirmada por um dito do profeta MalaqUla~:
"Et orietur vobis timentibus nomem meum Sol Iusti-
tiae" ("Porém, em vós que temeis meu nome, o Sol
da Justiça aparecerá"). Hoje tendemos a interpretar
essa sentença metaforicamente; nos séculos anteriores
planejou publicar uma lista completa dos imperadores desde Júlio
César até Maximiliano I que Dürer deveria ilustrar com base nas
moedas desses imperadores (Opera, p. 252 e ss.) . .
65. Ver H. USENER,"Sol invictus", p. 465 e 55.: idem, Das
Weihnachtsfest, Bonn, 1899 (e 1911), passim. . ..
66. Ver F. BOLL,Aus der Offenbarung Johannts, Leípzrg e
Berlim, 1914, p. 120. . . .
67. Cf. a invocação dos sacerdotes de Hehópohs, Citada
à p. 335. T t t
68. USENER,"Sol ínvíctus", p. 480 e ss.; CUMONT, ex es e
Monuments, I, p, 340 e ss., especialmente p. 355 e s. . .
69. Sobre o "inteligível" Hyloc, ver O. GRUPP~,GTtechtsche
Mythologie (Handbuch der klassischen Altertumswtssenschaft, V,
2), lI, 1906, p. 1467. ·1' .
70. A função de juiz já era atribuída ao deus-sol babi omco
Samas· daí se explica que o planeta sol venha por vezes acom-
panhado de uma espada nas representações árabes (cf., F. SAXL,
op. cit., p. 155, Fig. 4) Esse tipo reaparece de quando em quando,
mesmo na Alemanha (e!. A. SCHRAMM, Der Bilde~schmuck deT
Frühdrucke, 111, Die DTucke von Johannes Baemler tn Ausgsburg,
Leipzig, 1921, n. 732).

337
80. Albrecht Dürer. Queda do homem. Gravura B. 1, da-
tada de 1504.
81. Albrecht Dürer. Ressurreição. Xilogravura B. 45.-
I
e
• seu nexo era entendido de um modo perfeitamente lite-
ral. O "Sol da Justiça" representava, não tanto a idéia
impessoal de justiça, e sim um deus-sol - ou demônio
solar - pessoal na sua capacidade de julgar 71. Santo
Agostinho teve de advertir com vigor contra o perigo
da identificação de Cristo com o Sol levar a uma re-
caída no paganismo 72. Mas, essas mesmas implica-
ções pagãs da fórmula do Sol lustitiae dotavam-no de
um impacto emocional irresistível; a partir do século
III, era uma das metáforas mais populares e efetivas
da retórica eclesiástica 7:l; desempenhou um papel pre-
ponderante em sermões e hinos 74; e, até os nossos
dias, ocupa ainda seu lugar na liturgia 75; para os pri-
meiros adeptos do Cristianismo, era uma "invocação
triunfante", pela qual eram levados "quase ao êxtase
embriagado" 7«.
Do mesmo modo que o conceito cristão do Sol
Iustitiae - cristão apesar de se basear em astrologia
babilônica, mitologia greco-rornana e profecias hebrai-
cas - competia com o conceito pagão do Sollnvictus
no pensamento do fim da Antiguidade, assim também
esses dois conceitos competiam na imaginação de
Albrecht Dürer. Porém, na era do recém-nascido Cris-
tianismo, o Sol bíblico substituiu o pagão, enquanto
que, na época da Renascença, o Sol pagão desalojou
o bíblico, até que por fim se concretizou a fusão dessas
duas idéias - o que aconteceu quando Dürer, depois
de ter convertido o deus-sol apolíneo em Adão, o trans-
formou num Cristo ressurreto em inúmeras gravuras
(e.g., a xilogravura B. 45, nossa Fig. 81) e permitiu
que a analogia entre o Salvador e Febo fosse enfatiza-
da num poema impresso no verso de uma das gra-
vuras 77.
71. "Será tão surpreendente assim que a multidão devota não
observe sempre .as sutis dístmcões dos Doutores e. obedecendo
a um costume pagão, rendam à brilhante estrela do dia a home-
nagem que a ortodoxia reserva a Deus?" (CUMONT,Textes et
Monuments, p. 340).
72. Ibidem, p. 356.
73. Ibidem, p. 355. Também J. F. DOLGER, op. cit., p. 108.
74. Exemplos em DOLGER, ibidem, pp. 115 e 225.
75. USENER."Sol invictus". p. 482.
76. Ibidem, p. 480.
77. [Ver também a gravura B. 17 e a xilogravura B. 15. O
verso da xtlogravura B. 45 traz o poema (composto por Bene-
dictus Schwalbe, chamado Chelidonius) 'citado no texto'
Haec est illa dies, orbem qua condere coepit
Mundifaber, sanctam quam relligione perenni

340
82. Albrecht Dürer. Sol l ustitiae, Gravura B. 79.

1
A gravura B. 79 (nossa Fig. 82) é conhecida,
normalmente como O Juiz ou Justiça 78. A "justiça",
entretanto, era em geral representada sob a forma de
uma mulher, às vezes alada. Como podemos então
explicar o leão, o halo resplandecente, e as três chamas
que irrompem dos olhos do "Juiz"?
Todas essas perguntas são respondidas tão logo
compreendemos que o tema da gravura de Dürer é o
I~ Sol lustitiae concebido como o vingador apocalíptico
e não como o juiz misericordioso, sendo essa mesma
a razão pela qual seduz tão fortemente o espírito do
final do século XV. Podemos até determinar qual a
fonte literária que inspirou essa interpretação a Dürer:
o Repertorium morale de Petrus Berchorius (Pierre
Bersuire), cujo Ovidio moralizado já foi mencionado
em duas ocasiões anteriores. Após uma longa exposição
sobre a identidade agora já familiar entre Cristo e o
sol, este dicionário teológico, um dos livros mais popu-
lares do fim da Idade Média, dá uma descrição do
Sol lustitiae que poderia parecer uma paráfrase literal
da gravura de Dürer, se não datasse de um século e
meio antes - uma descrição que Dürer, com toda pro-
babilidade, conheceu, tanto mais que a obra de Ber-
chorius fora impressa por seu próprio avô, Anton
Koberger, em 1489, e aparecera numa segunda edição
( 1499) exatamente na mesma época em que surgiu a
gravura: "Além disso, digo desse Sol [o "Sol da Justi-
ça"] que deverá estar inflamado quando em exercício do
poder supremo, ou seja, quando estiver julgando, por-
que então será estrito e severo... pois há de estar
todo fervente e sangüíneo por força da justiça e rigor.
Pois, assim como o Sol, quando no centro de sua órbi-
ta, ou seja, ao meio-dia, está em seu ponto mais quente,
Esse decet domino coeli Pheboque dicatam.
Qua sol ornnrtuens cruce nuper fixus et atro
Abditu~ occasu moríens, resplenduit ortu
("Esse é o dia no qual o Criador começou a fazer o mundo
dedicado, segundo crença perene. ao Senhor dos Céus e Febo.
Nesse dia. o Sol onisciente. fixado na cruz. morrendo e desapa-
recendo quando o sol se punha na escuridão. reapareceu esplen-
doroso quando este surgiu") J.
78. Desenho preparatório L. 203. A tentativa de Thausing de
explicar a gravura como um aglomerado desconexo de motivos
individuais do Apocalipse (op. cít., I, p, 319 [trad. irigl., I. p. 310])
não faz justiça à intenção de Dürer.

342
assim também estará Cristo quando aparecer no centro
do céu e da Terra, ou seja, no JUÍzo (notar a igua-
lação da noção astrológica, medium coeli, com a noção
teológica, medium coeti et terrae, presumível trono do
Juiz!) ... No verão, quando se encontra em Leão, o
Sol faz murchar, com seu calor, as plantinhas que cres-
ceram na primavera. Assim também Cristo, no fervor
da justiça, surgirá como um homem ardente e leonino;
queimará os pecadores e destruirá a prosperidade da-
queles que gozaram nesse mundo" 79.
Essas palavras nos mostram como a imaginação
do final da Idade Média, perturbada por visões apo-
calípticas c, ao mesmo tempo, insuflada pelas noções
trazidas pela poderosa e crescente influência da astro-
logia árabe e helenística, reativou a velha imagem do
Sol lustitiae com uma vitalidade terrificante. O sol,
que os primeiros cristãos ainda estavam em condições
de visualizar como beleza apolínea, assumiu os poderes
de um demônio planetário enquanto adquiria a ma-
jestade do Juiz Supremo: era concebido como o judex
in iudicio, mas também como o sol in leone (a "casa"
zodiacal do sol em que este atinge o "auge de seu
poder"), "ardente e inflamado" como a estrela resplen-
dente e "sangüíneo e severo" como o deus apocaIíptico
da vingança.
Somente o poder de Dürer poderia traduzir em
imagem esse conceito. Podia fazê-lo porque, como nos
casos do Apocalipse e Agonia no Jardim das Olivei-
ras 80, teve a coragem de ser literal dentro da moldura
de um estilo que aspira ao sublime. Representou o
injlammaius do texto de Berchorius com as mesmas
chamas palpáveis que usara para ilustrar a frase bíblica
79. P. Berchorii dictionarium seu repertorium mora!e, pri-
meira impressão em Nuremberg, 1489e 1499,freqüentemente, da!
por diante sob "Sol": "Insuper dico de isto sole [sic!. iustitiael,
quod iste erit inflammatus, exercendo mundi praelatarum, se. in
íudicío, ubi ipse erit rígídus et severus ... quia iste erit tunc totus
fervidus et sangurneus per iustitiam et rigorem. Sol ením, quan-
do est in medio orbís, sic. ni puncto meridei, solet esse ferven-
tíssimus, sic Christus. quando in medio coeli et terrae, se. in
iudicio apparebit ... Sol enim fervore suo in aestate, quando est
leone, solet herbas síccare, quas tempore veris contigeat revivere.
Sicut Christus in illo fervore iudicii vir ferus et leoninus appare-
bit, peccatores siccabit, et virorum properitatem, qua in mundo
viruerant, devastabit".
80. Desenho L. 199, xilogravura B. 54.

343
"e seus olhos como labaredas de fogo" 81. Interpretou
a localização astronômica quando est in leone como
indicativa de uma figura sentada num leão como sen-
taria num trono; e, para caracterizar o Cristo-Sol como
um homo ferus ac leoninus, transformou-O, para usar
sua própria expressão, num "homem leonino" 82:
dotou-O de uma expressão feroz e atemorizante que
infunde a Seu semblante uma estranha semelhança com
a fisionomia aflita - por sua vez, um tanto antropo-
mórfica - do animal. Sol Iustitiae, portanto, "Cristo
como deus-sol e juiz supremo", seria o título que faz
justiça aos atributos iconográficos assim como à inten-
ção da gravura de Dürer. Pois, que maior tributo po-
.deríamos render ao poder expressivo desta pequena
estampa que identificar seu conteúdo com um conceito
que funde a grandeza do juiz apocalíptico com o pode-
rio da maior força da natureza?
Considerando-se a gravura puramente do ponto
de vista da história da arte, podemos derivar sua
iconografia, por um lado, de uma tradicional repre-
sentação medieval do "juiz que, segundo o costume,
administra justiça sentado, com as pernas cruzadas" 83;
de outro, como já foi sugerido, de uma peça de escul-
tura que o artista viera a conhecer na Itália (Fig. 83).
Normalmente, na arte ocidental, as divindades plane-
tárias são representadas de pé, num trono, a cavalo ou
81. Ver a xilogravura B. 62, onde o número de chamas é
reduzido a apenas dois, pois somente os olhos, e não o rosto
todo, são descritos "tamquam flamma ignis" (Revelação 1: 14).
As plantas secas aos pés do juiz na gravura podem aludir às
"ervas queimadas pelo deus-sol como os pecadores são queimados
por Cristo".
82. LANGEe FUHSE, op. cit., p. 371, linha 22: "Wie wohl man
zu Zeiten spricht, der Mensch schit lewisch oder aIs ein Bar,
Wolf, Fuchs, oder ein Hund, wie wohl er nicht 4 Füss hat als
dasselb Tier: aus solchem folgt nit dass solche Gliedmass do sei,
sondr dass Gmüt gleicht sích darzu" ("Diz-se, às vezes, que um
homem parece leonino, ou como um urso, lobo, raposa ou cão,
embora não possua quatro patas como o animal em questão.
Mas isso não quer dizer que tenha tais membros: pretendemos
dizer que seus caracteres se assemelham"). Dürer muda assim,
a interpretação da correspondência entre humanos e animais (cf.
Leonardo da Vinci e Giovanni Battista della Porta) de fisionõ-
mica para psicológica.
83. Para nos limitarmos à própria obra de Dürer: ver a
figura da xilogravura B. 11 e O imperador da gravura B. 61.
A posição sentada com as pernas cruzadas é expressamente reco-
mendada aos juizes na Reclttsordnung da cidade de Soest (N.
BEETS, Zu Albrecht Dürer, Zeitscltritt [iir bildende Kunst,
XLVIII, 1913. p. 89 e ss.) ,

344
'"
------~----------~
O
o
guiando uma biga 84, mas não como aqui sentadas so-
bre seu respectivo signo. Este costume era típico do
Este islâmico 85 e só poderia se enraizar na Europa em
lugares em que a influência oriental fosse grande, como
em Veneza. Aqui, bem na esquina da Piazzetta com
a Riva degli Schiavoni, dois dos capitéis do Palácio
dos Doges mostram os sete planetas representados de
tal maneira que tanto quanto possível estão sentados
em seus signos zodiacais: Vênus no touro Marte no
carneiro e Sol no leão 86. Não temos razões para du-
vidar que Dürer se lembrou dessa obra isolada 87 mas
conspícua, ao desenhar sua gravura, que concorda com
os capitéis venezianas não apenas de um modo geral
mas também nos detalhes, como a postura do leão
passant guardant, o halo flamejante cercando a cabeça
do deus-sol e o braço esquerdo levantado que na
gravura aparece como direito 88.
Não diminui em nada a grandeza de Dürer o
fato de se poder descobrir em fontes anteriores as ori-
gens, .seja no tocante ao tema, seja no tocante aos
motivos composicionais, de uma de suas mais impressio-
nantes criações. Apenas Dürer e somente o Dürer
84. Ver F. LIPPMANN •. The Seven Planets (trad, por FLo-
RENCESIM"';ONDS:Internatto!,al. Chalcographic Societs), 1895);
S:"XL, op, CIt.;. Idem, Verzetchms astrologischer und mytholo-
!iJ1sch~r. tllustTtet~r . HandschTiften des lateinischen Mittelalters
m romt~chen Bt~ltoteken (SitzungsbeTichte der Heidelbergen
Akademte der W1;Ssensc!,alften, phil.-hist. Klasse TV), 1915; A.
HAUBER, Planetenkmderbtlder und Sternbilder, Estrasburgo, 1916.
85._ Ver SAXL,"Bertrãge", p. 171. A mais conhecida repre-
sentaçao do Sol montado no leão encontra-se num manuscrito
árabe, em Oxford, Co!iex Bodleianus Oro 133 [Uma cópia turca
deste ma~uscrito, feita no século XVI, pode ser consultada na
Morgan Líbrary, em Nova York, ms. 788].
86. Reproduzido em DIDRON,Annales Archéologiques XVII
1857, prancha seguinte à p. 68. ' ,
87. Há dois tipos de representações que não devem ser
confundidos 'Com os que estamos discutindo aqui:
1. O Planeta sobre um trono composto de dois animais
zodíacaís s:metncamente dispostos (cf., e.g., os afrescos de
Guanento em Pádua, reproduzídos na L' Arte, XVII, 1914,p. 53).
Ess~ tipo pode ter surgído devido à incorporação dos signos
zodíacaís na sella curults costumeira. Cf. também, a Venetia
no Palácio dos Doges ou os Anjos da Justiça no capitel pert~
da Porta della Carta.
. 2: O ~lan.eta sentado sobre um animal com o qual tem uma
Iígação mItologIca. mas não astrológica: por exemplo, Júpiter
sentado numa águia no manuscrito Tübingen mencionado acima
(~~UBER,op cít., n. 24). Este tipo deriva diretamente da tra-
díção clássíca : cf. SAXL, Verzeichnis ... , Fig. VIII.
.88. O fato de a .gravura estar invertida em relação ao
capítel pode ser constderado como mais uma prova de sua
conexao.

346
do Apocalipse, poderia carregar uma figura singular
mas relativamente insignificante de um conteúdo tão
nobilitado e, inversamente, moldar uma idéia tão gran-
diosa mas insubstancial em uma forma visível.

IV. A Questão Fundamental

Numa das irônicas invectivas que Goethe ocasio-


nalmente dirigiu contra os realistas românticos que
zombavam do antique, ele se expressou da seguinte
forma: "Die Antike gehõrt zur Natur, und zwar, wenn
sie anspricht, zur natürlichen Natur; und diese edle
Natur sollen wir nicht studieren, aber die gemeine?" 90
("A arte clássica é parte da natureza e, na verdade,
quando nos comove, da natureza natural; será que
se espera que não estudemos esta natureza nobre, mas
somente a comum?")
Por essa terminologia peculiar, quase impossível
de se reproduzir em português, Goethe substitui a no-
ção de "idealismo", aplicada normalmente à arte clás-
sica, por um conceito especial de "naturalidade". Há,
segundo ele, uma distinção entre natureza "comum"
(ou seja, natureza "em bruto") e natureza "nobre".
89. Do mesmo modo que a Melancolia de Dürer foi copia-
da por inúmeros artistas posteriores sem que nenhum a tenha
captado em toda a sua complexidade, assim a gravura B. 79 era
apropriada para o século XVI, porém apenas com uma com-
preensão fracionada: o Sol Que aparece no Calendário de Frank-
furt de 1547, ilustrado na nossa F'ig. 84 (G. PAULI,Hans Sebald
Beham, Estrasburgo, 1901, p. 49; para outras ocorréncias em
cartazes, ver Saxl, "Beitr ãge", p. 171, nota 1) nada mais é
que uma xilogravura parafraseada do Sol Iustitiae de Dürer
(Fig. 82) e o empréstimo é tanto mais óbvio quanto nenhum
dos outros planetas está sentado sobre seu signo zodiacal;
aparecem sob sua forma ocidentalizada comum. Os sím-
bolos da Justiça, entretanto, perderam-se no processo de adap-
tação: em lugar de assumir a "postura do juiz", com as
pernas cruzadas, o governador planetário senta 'Com as pernas
apartadas; em lugar da espada, segura o cetro costumeiro; em
vez da balança, um orbe imperiaL Mas, ainda assim, o simples
fato de uma gravura de Dürer ser adaptada para uma repre-
sentação do planeta Sol no século XVI tende a confirmar a inter-
pretação aqui proposta.
[Embora esta xilogravura reduza o Sol Iustitiae de Dürer
a um deus-sol privado de sua significação judicial, muitas
outras representações do século XVI reduzem-no, notadamente
um grupo entalhado por Hans Leinberger e preservado no Ger-
manisches Nationalmuseum de Nuremberg, a um juiz despro-
vido de suas implicações solares; ver o excelente artigo de
Kurt Rathe, citado acima, p. 13].
90. Goethe, Maximen und Reflexionen, M. Hecker, ed. 1907
(SchTiften der Goethe-Gesellschaft, v. XXI) p. 229.

347
A última, entretanto, não difere da primeira em essên-
cia e sim apenas por um grau maior de pureza e, por
assim dizer, de inteligibilidade. É, ao contrário, uma
natureza mais "natural" e, ao repudiar a "comum" em
favor da "nobre", a arte clássica não repudia, segundo
Goethe, a natureza, mas sim revela suas intenções
mais profundas.
Reformulando desse modo a doutrina acadêmica
do beau-idéal (solucionando, portanto, a antítese na-
tural entre "naturalismo" e "idealismo" em dois tipos
de naturalismo: "nobre" e "comum") 91, Goethe usa,
evidentemente, as palavras "natureza" e "natural" no
que se entende por sentido implícito, ("natureza" e
"natural" em oposição a "realidade" e "real") 92. Nisso
parece ter seguido a conhecida definição de Kant:
"Natur ist das Dasein der Dinge, soíern es nach allge-
meinen Gesetzen bestimmt ist" 93 ("Natureza é a exis-
tência das coisas na medida em que é determinada por
leis gerais"). E se limitarmos, cuidadosamente, nos-
sa concepção de arte clássica àquelas suas manifes-
tações que costumamos considerar "clássicas" na
acepção estrita do termo (falando em geral, suas ma-
nifestações do Templo de Olímpia, e o Partenon ao
Mausoléu e ao Altar de Pérgamo, - e tudo que delas
dependa), podemos compreender muito bem - e até
certo ponto aceitar - o que Goethe quis dizer.
Assim como o mundo do médico ou do entomo-
logista abrange a soma total de eventos ou espécimes
especiais, cada um dos quais é considerado apenas
enquanto exemplifica ou uma lei ou uma classe, do
mesmo modo o mundo do artista clássico compreende
a soma total de tipos, cada um dos quais representa um
91. Mesmo na nossa linguagem cotidiana usamos a palavra
"natural" não apenas para descrever aquilo que diz respeito à
natureza, mas também num sentido profundo e, ao mesmo
tempo, laudatório, que significa a mesma coisa que "simplici-
dade nobre" e "harmonia". Por "gesto natural", por exemplo,
entendemos um ato que não é nem desajeitado nem afetado,
mas resulta de um acordo perfeito entre o que se quer expres-
sar e a forma de expressão.
92. Assim, o estilo da Antiguidade clássica pode ser carac-
terizado como "idealismo naturalístico". Sem essa qualificação,
o 'Conceito de "idealismo" caracterizaria, não apenas o estilo
"clássico" que, "enobrecendo" o que Goethe chama de "natureza
comum", espera fazer justiça à natureza como tal, mas tam-
bém outros estilos que não se preocupam absolutamente com
este ponto.
93. KANT. Prolegomena. 14.

348
certo número de casos individuais U4 - "particulares"
reduzidos a "universais" não por abstração discursiva
mas por síntese intuitiva 95,
Esse typenpriigende Krait ("poder de cunhar ti-
pos") da arte clássica - que poderia até prover pro-
tótipos para a representação de Cris~o .homem-Deus
porque revestiu todos os temas possrveis ,de forma~
universalmente válidas e saturadas de reahdade - e
evidente em todos os seus veículos, Assim como o
sistema da arquitetura grega infunde expressão exem-
plar às propriedades e funções da matéria inanima?a,
também o sistema da pintura e escultura gregas define
formas típicas do caráter e comportamento d_as c~ia-
turas vivas, principalmente o homem. E, nao so a
estrutura e o movimento do corpo humano mas tam-
bém as emoções ativas e passivas da alma humana
foram sublimados de acordo com os preceitos da "si-
metria" e "harmonia" em nobre postura, furiosa bata-
lha, passamento triste e doce, dança apaixo~ada, calma
olímpica e ação heróica, tristeza e alegna, m~do .e
êxtase, amor e ódio. Todos esses estados emOCIOnaIS
foram reduzidos, para usar uma expressão fa~orita de
Aby Warburg, a "fórmulas de pathos", destinadas a
manter sua validade por muitos séculos, e que nos
94. A chamada teoria da seleção", dramatizada na lenda
incessantemente repetida, e muitas vezes r~dlc,:lanzad~; de
Zêuxis tentando chegar à perfeição pela COmbl:laça.odas "?-a~s
belas partes" de cinco (ou sete) virgens (cf. tambem a estona
da "fraw Florentina" no capo 47 da Gesta Romanorum, que
indubitavelmente deriva desta antiga anedota) pode ser aSSIm
considerada como uma racionalização m'lterlal1stlca de um prm-
cípio estético que em si foi corretamente observado. .
95. O contraste entre "natureza" e "realidade" fOI mal
interpretado, creio eu, por W. WORRINGER (Gemus, I,,, 1~19,. p.
226). Em sua conhecida aritf patia por toda a_arte clássico-
-orgânica" esse autor refuta que a transformaçao da real1dade
em natu reza seja um ato de "'cognição racional", defmmdo
"realidade" como "natureza não ainda penetrada pela com-
'preensão em termos de leis naturais, não ain~a digenda e. po-
lida pelos processos habituais da ratto visando as Ieís naturals ...
não maculada ainda pc-to pecado original ("S~nde~all.") da
cognição racional". Na verdade, a transformaçao clássica ~a
"realidade" em unatureza" não é nem menos 1l;m ato de criaçao
intuitiv.a, nem mais um ato de mero connecímento. mas sim,
a subordinação moderna da "realidade" a um estado ou emo-
ção "Realidade" é a soma total de objetos encarados de. um
poO:to de vista particular; "natureza", a soma total de ~bJetos
encarados de um ponto de vista general1z,,:do:. Mas,. no campo
da atividade artística, um ponto de vista e tao crtatívo quant~
o outro. Como Gustav Pauli disse, acertadamente, uma vez.
.•A ratio da arte clássica é ínstíntív=".

349
parecem "naturais" justamente porque são "ideaJiza-
~os"e~ comparação com a realidade - porque uma
nqueza Imensa de observações particulares foi conden-
sada e sublimada numa experiência universal.
Assim, o fato de haver capturado e ordenado a
multidão dos fenômenos constitui, pois, a glória eterna
da arte clássica; ao mesmo tempo, entretanto, foi a sua
barreira intransponível. Tipificação implica, necessa-
riamente, moderação, pOIS onde o "particular" é
aceito apenas até onde corresponder a essas "leis gerais"
que, segundo Kant e Goethe, definem o "natural", não
há lugar para extremos. De Aristóteles e Galeno
Luciano e .Cícero, a estética clássica insiste em har-
monia ( ""J.I.!J.fTpia., àpuovlo: ) e no meio-termo
( "à J.I.€IJOV ); e toda a época que aspirou ao desme-
dido foi ou mdiferente ou hostil ao antique. A arqui-
tetura grega era incapaz de evocar uma visão de espaço
preternatural (seja preternatural no sentido de suspen-
são imponderável, como nas igrejas bizantinas, seja no
de verticalismo gótico) em vez de expressar o balanço
orgânico das forças da natureza; e a fórmula grega para
representar a figura humana teve que ser rejeitada on-
de era necessário rigidez hierática ou movimento ilimi-
tado. Pois, como a postura da "beleza" clássica é
repouso temperado com movimento, assim o motivo
do "pathos" clássico é o movimento temperado com
o repouso. De modo que, na arte clássica, tanto a
ação como a inação aparecem sujeitas a um único e
mesmo princípio, desconhecido antes: o contrapposto.
Nietzsche tinha razão ao afirmar que a alma grega,
longe de ser "edle Einfalt und stille Grõsse ("simpli-
cidade nobre e grandeza calma") é dominada por um
conflito entre o "dionisíaco" e o "apolíneo". Mas, na
arte grega esses princípios não são inimigos nem mes-
mo divisíveis; são unidos através de "um milagre da
vontade helênica". Nela não há nem beleza sem mo-
vimento, nem "pathos" sem moderação: pode-se
dizer que o "apolíneo" é "dionisíaco" in potentia en-
quanto o "dionisíaco" é o "apolíneo" in actu.
Assim podemos ver por que o movimento renas-
centista alemão não estava em condições de absorver,
diretamente, a arte clássica: não tanto porque não
houvesse suficientes monumentos clássicos, mas por-

350
que antique não era ainda um "objeto passível de expe-
riência estética" do ponto de vista do século XV nór-
dico. Pois, quando a tradição internacional da Idade
Média perdeu seu poder e as propensões nacionalistas
se afirmaram mais livremente, o Norte desenvolveu uma
atitude tão diametralmente oposta à arte clássica que
qualquer contacto direto se tomou impossível.
Essa "arte clássica no sentido mais estrito", que
se inclina para o típico, pode ser explicada, a par de
outras considerações, pelo fato de que é fundamental-
mente plástica - de que sua visão é limitada a corpos
tangíveis, que, se não combinados em grupos co?~í;1U~S,
mantêm um isolamento completo e auto-suficiência.
Conseqüentemente, o princípio da coordenação ou
unificação sobre o qual toda a produção artística se
baseia, precisa operar dentro dos próprios corpos plás-
ticos. Isoladas de seu ambiente cada figura deve conter
em si mesma tanto a unidade como a multiplicidade e
isso só é possível se ela exemplificar e tipificar nume-
rosos casos.
A arte nórdica do século XV, por outro lado, é
pintural e particularista. Observando o fenômeno da
luminosidade produzido por uma interação de corpos
tangíveis e limitados com um espaço intangível e il~-
mitado, procura fundir ambos num quantum conti-
nuum 1)6 homogêneo e produzir - preferivelmente
através da pintura e das artes gráficas, mas também,
por um tour de force, no campo da escultura .e da
arquitetura - imagens pictóricas reunidas pela umdade
de um "ponto de vista" subjetivo e de um "estado de

96. Cf. sobre isso, A RIEGL, Die spatriímische Kunstindustrie,


Viena, 1901, e Das hollandische Gruppenportralt.. em Jahrbuch
der kunsthistorischen Sammlungen des Allerhochsten Katser-
hauses, XXIII, 1902, p. 71 e ss. Segundo este grande estudícso.
foi na arte dos Países Baixos germânicos, representando _a
Kunstwollen nórdica em sua forma mais pura, que a unírícaçao
dos corpos sólidos 'com espaço in~órporeo foi desejada mais
ardentemente e realizada mais efetIvament<; que em qualquer
outra parte. É interessante notar que fOI Arnold Geulmcx.
nativo de Antuérpia e imigrante para a Holanda, que protesto?
mais veementemente contra qualquer distinção entre quanti-
dades corpóreas e incorpóreas; na sua opinião, o esp,aço "lIvre"
não é menos corpóreo que aquele tomado pelos objetos mate-
riais, já que ambos são parte de um corpus generahter sump-
tum homogêneo.

351
,
~I
I

. ânimo" igualmente subjetivo n. Onde a arte clássica,


separando os objetos particulares do espaço universal,
podia atingir a unidade na multiplicidade somente dan-
do a cada um deles uma significação representativa
ou típica, a arte nórdica do século XV, incorporando
os'" objetos particulares ao espaço universal e assegu-
ràndo assim uma multiplicidade a priori, podia aceitá-
Ias' como particulares: não era necessário encarar o
caso individual como uma pars pro tato, quando des-
frutava o status de uma pars in. tato.
Esse espírito subjetivo e particularizante da arte
nórdica do século XV (que Dürer caracterizou em sua
conhecida observação segundo a qual todo artista ale-
mão quer "um modelo novo, de um tipo nunca
visto") ns podia operar em duas esferas, arnbas fora
da natureza "natural" ou "nobre" de Goethe -e, por
essa razão, complementares entre si: as esferas do
realistico e do fantástico, o domínio do estilo do re-
tratismo íntimo, natureza morta e paisagismo, de um
lado, e o domínio do visionário e fantasmagórico, do
outro. O mundo da mera realidade, acessível à per-
cepção sensorial subjetiva, fica, por assim dizer, aquém
da natureza "natural"; o mundo visionário e Iantas-
magórico, criado, igualmente pela imaginação subje-
tiva, encontra-se além da natureza "natural". Não é
de admirar que Dürer pudesse produzir, na mesma
época, o Apocalipse e gravuras de gênero como o

97. o contraste entre a concepção clássica e nórdica de


arte é comparável - para usar a expressão de Windelband _.
ao contraste entre os sistemas de 'conhecimento "nomotéticos"
e "ideográficos". A arte clássica corresponde ás Ciências Na-
turais que vêem as le's abstratas (quantitativas) e universais
realizadas num caso individual (por exemplo, a lei da gravi-
dade na queda da maçã); a arte nórdica corresponde às dis-
ciplinas humanísticas, ou seja, históricas, que vêem o caso indi-
vidual como um elo num escopo maior, porém ainda 'concreto
(qualitativo) e, dentro deste escopo maior, ainda existe uma
"seqüência" individual (por exemplo, a mudança dos estatutos
de uma corporação particular como uma instância do "pro-
cesso evolutivo" da Idade Média aos tempos modernos). Quando
as Ciências Naturais procedem ideograficamente (e.g., quando
um geógrafo descreve uma determinada montanha) pode-se
dizer que ele não considera essa montanha como parte da
natureza em geral, mas 'como um fenômeno sui iuris, como algo
que evoluiu e não como algo que foi causado. Inversamente,
quando um humanista procede nomoteticamente (e.g., quando
um estudante de História Econômica tenta estabelecer certas
leis para as quais se reivindica validade universal), pode-se
dizer que opera como um pretenso cientista.
98. LANGE& FUHSE. Op. cit., p. 183, linha 29.

352
Casal rústico e o Cozinheiro e sua mulher 99; e, uma

comparação. entre um demônio de Grünewald e a Me-


dusa Rondanini torna perfeitamente claro que a arte
clássica outorgava beleza, ou, para usar essa outra
expressão, naturalidade, até mesmo ao demoníaco.
Assim, mesmo se a Alemanha e os Países Baixos
tivessem sido inundados com originais clássicos, os ar-
tistas desses países não fariam qualquer US? deles: não
lhes dariam importância ou os desaprovanam da mes-
ma forma que a Renascença italiana não deu impor-
tância ou então desaprovou os monumentos bizantinos
ou góticos. Verdade é que do século XV em diante:
os nórdicos também devotaram um grande esforço a
revivescência da Antiguidade clássica e o século XVI
foi uma época de humanismo na Alemanha, Fran~a e
Países Baixos como o foi na Itália. Os humanistas
alemães pesquisaram a fundo a história antiga e a
mitologia escreveram em I·atim cI"assico e b om grego 100,
verteram ,seus sobrenomes para grego ou Iatrm . 101, e
coligiram assiduamente os remanescentes físicos do que
era caracteristicamente designado como Sacrosancta
Vetustas. Mas o objeto de toda essa diligência era
mais o tema clássico que a forma clássica.

99 Na gravura B. 94 de Dürer, O Jovem Par e a Morte,


pode-~e perceber um encontro das duas tendências numa mesma
obra. . .
100. Ver, e.g., G. DOUTREPONT, La Littérature [rançaise a
Ia cour de Bourgogne, Paris, 1909, p. 120 e ss..
101 Este costume humanista explica a difícil passagem da
carta de Dürer (Lange e Fuhse, op. cit;, Jl' 30, Iínha 24 e ss) .
Numa maravilhosa mistura de I.atim .e. Italiano, .Durer. expres~
sua admiração por um feito diplomático de ~lrc~elmer que,
corajosamente, se opôs aos SChottischen, ou seja, as tropas do
barão usurpador, arquiinimigo de Nuremberg: "EI my t~ar~-
weio, como eU possibile star uno homo cusy wn contr", an o
sapientissimo Tiraybuly milytes". [A ortografia fOI re~ls~a ;m
base em E. REICKE.Wilibald Pirckhetmers BT1.efwechse, , u-
nique, 1940, p. 386. Cumpre notar que este competente est~-
dioso que ainda desconhece o meu ensaio publrcado em 1912,
considera a passagem como inexplicáv<;l (p. 388).] Ttr~~~ ~
é compreensível apenas como nome propr~o (o que tam t
indicado pela letra maiúscula) e nada mais e que uma rans-
crição humoristicamente "grecizada" do nome Kunz, p~~~eli
mente encetada por Pirckheimer:
("Conselho atrevido") = Thrasybulus.
~~nz=:=Ko~r~d= ~. ra
ASapientissimc
buly milytes" é conseqüentemente, smommo de Schotttsc ~n
ts:
e pode-se assim' traduzir a sentença inteira: "E me adrr;lro e
que um homem como você possa fazer frente aos mumeros
soldados do mui manhoso Kunz (Schott) ". Que era ;~mum
a resentar durante o século XVI, o nome Konrad como rasy-
b~lus evidencia-se, e.g., pelo fatoI de o tjU~!s(t;oc~~r~del~~~~~
empregar o pseudônimo "Thrasybu us Lep us ,
lexikon, Pt. lI, col. 130).

353
No Norte, o rinascimento dell'antichità era, no
começo, uma questão essencialmente literária e arqueo-
lógica. Os artistas permaneceram, até Dürer, total-
mente à parte; e os expoentes originais do movimento,
os estudiosos, eram aparentemente incapazes ou não
tinham vontade de considerar os monumentos clássicos
de um ponto de vista estético. Mesmo nos humanistas
nórdicos mais sábios e perspicazes, a falta de interesse
nos aspectos artísticos da "Sagrada Antiguidade" é
verdadeiramente espantosa. Peutinger foi, provavel-
mente, o maior colecionador e arqueólogo alemão, mas
o que o interessava de fato era a epigrafia, a icono-
grafia, a mitologia e a história cultural clássica. Sa-
bemos que o melhor amigo de Dürer, Willibald Pirck-
heimer, possuía uma importante coleção de moedas
gregas e romanas; mas explorou-a apenas para um tra-
tado comparativo sobre o poder aquisitivo da moeda
romana e de Nuremberg 102. Nos rascunhos de prefácios
que Dürer solicitava de seus amigos humanistas (mas,
afortunadamente, nunca usava), encontramos as cos-
tumeiras referências aos grandes artistas da Antiguidade
cujos nomes eram conhecidos através de Plínio, mas
nunca uma palavra sobre os méritos artísticos ou edu-
cacionais dos monumentos preservados 103.
A descoberta desse Mercúrio de Augsburgo, que
avulta tanto neste ensaio, interessou de tal maneira a
Peutinger (que, como nos lembramos, chegou a com-
prar para si o objeto) que este lhe devotou uma notícia
de muitas páginas. Comparemos o início dessa des-
crição com a passagem de uma carta na qual um ita-
liano, Luigi Lotti, descreve um fato semelhante: a des-
coberta do que era, ao que parece, uma pequena ré-
plica do grupo de Laocoonte, em 1488. Na notícia
de Peutinger, lemos: "Conrad Morlin, Abade, ouviu
falar de uma pedra, descoberta por trabalhadores e
entalhada numa imagem de Mercúrio, sem inscrição.
[O deus] tinha a cabeça alada e coroada com um
diadema circular, os pés alados e estava quase nu a
102. Ver p. 336, nota 64.
103. LANGE e FUHsE,op. cít., pp. 285-87, 329-35. É caracterís-
tico que Dürer presuma que Pirckheimer só esteja interessado
na arte italiana enquanto esta trate de "estórias" (temas)
"particularmente divertidas em conexão com seus estudos"
(LANGEe FUHsE,p. 32, linha 26).

354
não ser por um manto que lhe caía pelo lado esquerdo.
Aqui [ou seja, à esquerda de Mercúrio], havia també~
um galo, olhando para ele: e do seu outr? !ado hav~a
um boi ou touro sobre cuja cabeça Mercuno estendia
sua bolsa com a mão direita; na esquerda segurava o
caduceu [adornado com] serpentes ou cobras que na
parte superior se dobravam para trás formando um
círculo, enquanto que no meio enlaçavam num nó e
finalmente viravam suas caudas em direção à ponta do
caduceu" 104. Luigi Lotti escreve o seguinte: "Ele
achou três belos pequenos sátiros, montados numa
pequena base de mármore, todos os. três pr~s~s n~s
anéis de uma grande serpente. Em minha opmiao sao
lindíssimos e a pessoa chega a acreditar que ouve suas
vozes; parecem respirar, gritar e se defender com certo~
gestos magníficos; o do meio, quase que a gente ve
cair e morrer" 105.
A diferença é extraordinária. O italiano demo~s-
tra uma indiferença marcada pelo tema e detalhes hIS-
tóricos: porém tanto mais aguda é sua sensibilidade
artístic~ ("na' minha opinião são lindíssimos") _para
os valores emocionais e principalmente a expressao do
sofrimento físico 106. O autor alemão concentra-se nos
problemas puramente arqueológicos; satisfaz-se em
estabelecer que a figura escavada representa um Mer-
cúrio corretamente dotado de asas na cabeça e nos
pés, bolsa e caduceu e acompanhado dos animais con-
104 Epistola Ma.rgaritae Velseriae ad Cnristopnorum fratrem,
H A Mertens,ed. 1778. p. 23 e 55., citada em parte em H~utt-
m'an~, op. cit., p. 43: "Chuonradus Morlinus, abbas ... Iapídem
illic ab operaris effossum Mercuri~que Imagine sculptum, sme
!iterarum notis comperit, hunc sefli'cet, capite alato et ~orona
rotunda eíncto, pedibus alatis et corpore to~o nud.um, msi quod
a latera sinistro ipsi pal'líurn pendebat, hinc etíam ad pedes
gallus 5uspiciens stabat, et ad latus aliud subsidebat bos, .slUe
taurus, super cuius caput manu dextra .Mercu~lUs marsuP.lUm,
sinistra vero tendebat caduceum d.rac<?mbus, srue serpenbbus,
parte superiori ad circulum reflexls, ~n medío caduceo ~odo
conligatis, et demum caudis ad c.aduc~' cap~lum revocatis .
105. G. GAYE, Carteggio inedtto d arttstt, I! Florença, 1839,
p. 285 (freqüentemente citada e .igualmen.te mterpretada po~
Warburg): "Et ha trovati tre bellI faunettl ín suna bas«;tta. c:I'
marmo, cinto tutti a tre da una grande serpe, e qualí m~o lUdlC~O
sono belissimi, et tali che deI udire Ia voce in f:rora,. m gete.~5
pare che spirino, gridino et si fendino co~ cer~,' gestí mirabífí:
quello del mezo videte quasi cadere et expirare". Cf., também,
as numerosas e muitas vezes excelentes apreclaçoes sobre o .g~upo
de Laocoonte do Vaticano,' compiladas por K. SITTL, Emptrtscne
Studien iiber die Laokoongruppe, Würzbu~g, 1895, p. 44. e ss.
106. A impressão de espontaneida~e .e aumentada, e claro,
pelo fato de Luigi Lutti escrever em Italiano.

355
I,
l
sagrados a ele (embora o "boi ou touro" seja, na
verdade, um bode). A primeira questão levantada diz
respeito à inscrição, e a parte mais circunstancial da
descrição é devotada ao caduceu. E, depois disso, o
relatório se alonga numa discussão interminável sobre
o significado simbólico dos atributos e sobre a própria
genealogia do deus; sua origem é traçada até o deus
egípcio Tot e finalmente ligada ao germânico Votã
(aqui chamado "Godan", supostamente o antigo nome
germânico para o deus).
Essa passagem é característica da reação inicial
da Europa do Norte em face do antique. Uma obra
de arte clássica é considerada enormemente importante
para a erudição em todos os aspectos, mas não é expe-
rimentada como um objeto de beleza; e não podia
ser experimentada como tal porque o Kunstwollen
nórdico não tinha nenhum ponto de contacto com a
Ant~g~Iidade clássica. O livro de esboços de Jacopo
Bellini, o Codex Escurialensis, a Crônica da Imagem
Florentina, as gravuras de Nicoletto da Modena, Mar-
cantonio Raimondi e Marco Dente da Ravenna só
encontram paralelos na Alemanha nas compilações
arqueológicas de Hartmann Schedel e Huttich, e nas
Inscriptiones de Peutinger e Petrus Apianus. Assim,
nas xilogravuras que ilustram tais trabalhos 107 preva-
lecia um espírito puramente arqueológico mesmo se as
gravuras eram feitas com a intenção confessa de "re-
produzir" esculturas clássicas originais. Dava-se aten-
ção, primeiro, àqueles monumentos que, em si, já con-
tinham uma inscrição; segundo, àqueles que serviam
para ilustrar um nome ou conceito que ocorresse numa
inscrição; terceiro, àqueles que se pensava serem de
interesse devido às suas características iconográficas
específicas. O que se pedia dessas inscrições era, por-
tanto, não uma reprodução adequada do efeito artísti-
e
C?,:nas uma representação clara acurada do que pare-
CIa Importante do ponto de vista epigráfico e histórico.
Verdade é que, mesmo na Itália, os ilustradores
das obras de arte clássicas não conseguiam deixar de
alterar o caráter estilístico dos originais. Mas não o
107. As ilustrações nas obras de HARTMANN SCHEDEL ColLecta-
nea e World Chronic!e não são. obviamente.
desenho~ baseados
em monumentos originais mas sim em outros desenhos.

356
ignoravam: viam suas qualidades estéticas pelos olhos
de seu próprio período, mas as viam. Desde o começo
da Renascença, toda representação italiana de um ori-
ginal clássico, boa, má ou indiferente, aprese~ta urr:a
relação estética direta com seu modelo, e sua intenção
primordial é fazer justiça à sua aparência formal. A
xilogravura nórdica, ao contrário, tenta ser, não tanto
a reprodução de uma obra de ~rt~ clássica, como .0
registro de um exemplar arqueológico. Mesmo depois
de Dürer ter aberto os olhos nórdicos para o movi-
mento e as proporções clássicas, os estudiosos alemães
_ e também muitos artistas alemães - permaneceram
tão desfamiliarizados com a fisiognomonia das obras de
arte clássicas, quanto, por exemplo, o europeu moderno
o é com os negros ou mongóis, nos quais logra per-
ceber características gerais mas não peculiaridades
individuais. Mostrarei que o ilustrador das Inscriptio-
nes de Apianus, compilado pelos mais competentes
classicistas alemães, podia fazer passar um desenho de
Dürer, mudando apenas os acessórios iconográficos
por uma representação do Atleta clássico (Figs. 85-87)
e podia apresentar ao mundo o "Adão" de Dürer, não
menos superficialmente adaptado a um propósito ar-
queológico, como sendo o Mercúrio de Peutinger (Fig.
74) 108. Como na Crônica de Nuremberg, de Hartmann
Schedel, de 1493, a curiosidade do público continuava
a ser satisfeita com ilustrações que eram parcial ou
totalmente imaginárias. Em questões iconográficas, as
ilustrações precisavam ser corretas e explicit as (enquan-
to a Crônica de Nuremberg podia ainda empregar a
mesma gravura para cidades totalmente diferentes) e os
leitores que Apianus pediam algo como "beleza clássi-
ca". Por-ém, e essa é a questão, não se interessavam em
saber se esta beleza era ou não a do original 109.

108. Ver abaixo p. 371 e ss. . .


109. É por isso que as ilustrações dos livros de eplgraf:a
mostram tamanha falta de apreço pelo estilo clássico qua. estilo.
Ver. como espécimes particularmente extravagantes. as xílogra-
vuras nas Inscriptiones de Apianus, pp. 364 e 503. Partes faltantes
eram restauradas sem hesitação sempre que parecessem essen-
ciais e tudo o que tinha significação apenas formal o:ra deSCUIda-
damente omitido. E com uma bem fundada exceçao (Apíanus,
p. 507), as xilogravuras em Huttich, Peutinger e Apíanus nunca
indicam o estado de fragmentação da escultura. A mao esquer-
da do Mercúrio de Augsburgo foi acrescentada. ao passo que o
nicho, importante para o efeito artistico, foi omitido. DU1l:S
gerações mais tarde, quando Marx Welser mandou gravar a f i-

357
85. Albrecht Dürer. Guerreiro nu (desenho L. 351)
Bayonne, Musée Bonnat.

86. Atleta de Helenenberp; Viena, Kunsthistoriscbes Mu-


seum.

87. Atleta de Helenenberg. Xilogravura baseada na Fig. 86,


de Inscriptiones sacrosanctae vetustatis, p ... 413, de Petrus
Apianus,
Para se aproximar da arte qua arte, portanto, o
Norte dependia de um intermediário; e esse era a arte
do Quatrocentos que conseguira reduzir esses dois ele-
mentos não somáveis a um denominador comum. Por
um lado, a arte italiana, herdeira do antique, estava
congenitamente propensa a acentuar mais o plástico
e o típico que o pictórico e particular. O Quatrocentos
italiano subscreveu - ao menos em teoria, e até certo
ponto na prática - todos os postulados clássicos como
a harmonia qualitativa e quantitativa 110, o decoro e
o movimento apropriado 111 e a expressão mimética
inequívoca 112; até mesmo a luz tendia a ser explorada
mais para a modelagem e clara dissociação dos volumes
plásticos do que para um efeito de chiaroscuro que
unificasse esses volumes com o espaço ambiental. Por
outro lado, entretanto, o Quatrocentos italiano parti-
lhou, com o século XV nórdico, uma premissa básica
que não se aplica à Idade Média: dos dois lados dos
Alpes a arte tomou-se uma questão de contacto direto
e pessoal entre o homem e o mundo visível.
O artista medieval, trabalhando a partir do exem-
plum mais do que da vida 113, tinha primeiramente de
chegar a um acordo com a tradição, e apenas secun-
dariamente com a realidade. Entre ele e a realidade
pendia, por assim dizer, uma cortina sobre a qual
gura para o seu Rerum Augustanarum tibri VIII (op. cit., p. 209,
impresso por engano na 109, nossa Fig. 72) a situação mudara
completamente. Agora o ilustrador tenta fazer justiça à verda-
deira aparência do monumento, desde a postura até os danos
causados por quebra ou corrosão; e, se omite alguma coisa, o
faz às custas do significado iconogrãfico e não do efeito artís-
tico: embora 'cônscio da importância do nicho, esquece das asas
da cabeça. Para um estudo mais detalhado das ilustrações de
Apíanus, ver, adiante, p. 367 e ss. [e, sobretudo, o artigo de
Phyl1is Wi11iams, citado acima, p. 13.]
110. Ver o locus dassicus em L. B. ALBERTI, Trattato delta
pittura (Kleinere kunsttlteorisclte Scltri[ten, H. Janitscheck, ed.
[Queltenscltriften jür Kunstgesclticltte, XI], Viena, 1877) p. 111
111. Ver, por exemplo, ALBERTI, ibidem, p. 113. Igualmente
LEONARDO DA VINCI, Trattato delta pittura (Das Buclt von der
Malerei, H. Ludwig, ed., [Quenenscltriften für Kunstgesclticltte,
XV-XVII], Viena, 1881), Art. 283.
112. ALBERTI, ibidem, p. 121. Alberti, Leonardo (principal-
mente op. cit., Art, 380 e ss.) e LOMAZZO (Trattato den' Arte delta
Pittura, Milão, 1584, li, 3 e ss.) desenvolveram uma teoria siste-
mática onde uma expressão definida é atribuída a cada estado
de alma, mesmo às "emoções mistas"; isso resulta, é claro, numa
redução do individual a favor do típico. .
113. Cf. a esse respeito, J. VONSCHLOSSER, Zur Kenntnis der
künstlerischen Ueberlieferung im spâten MittelaIter, em Jaltrbuclt
der kunsthistorisclten Sammlungen des Alterltocltsten Kaiser-
Itauses, XXIII, 1902, p. 279 e SS., principalmente p. 280.

359
I
I
gerações previas haviam delineado as formas dos ho-
men.s e animais, edifícios e plantas, uma cortina que
P?dla ser levantada de vez em quando mas não remo-
vida. ~ortanto, na Idade Média, a observação direta
da realidade era normalmente limitada a detalhes su-
plerr,te?tan.do mais que suplantando o uso de esqu~mas
~;adlcI~~aI~." A Renascença, porém, proclamou que a
expenencia , ia bona sperienza era a raiz da arte:
esperava-se que todo o artista confrontasse a realidade
"sem preconcepções" e a dominasse - sempre em
c.ada obra - espontaneamente 114. A inovação deci-
siva da p;rs,!ectiva foc~lizada 115 resume uma situação
que a propna perspectiva focalizada ajudara a formar
e perpetuar: uma situação em que a obra de arte se
tornara um segmento do universo como este é observado
-, ?u 'p~lo meno~, como podia ser observado - por
um ~ndlvlduo particular, a partir de um ponto de vista
particular, num momento particular 116. "Primeiro é
o. olho. que vê; segundo, o objeto visto; terceiro, a
dI.stancla entre um e outro", diz Dürer parafraseando
Piero deIla Francesca 117.
. Es~a nova atitude colocava a arte italiana e nór-
dica, nao ob.stante todas as diferenças, numa base
comum; e.' foi pre.cisamente o método da perspectiva,
desenvolvido e aceito com zelo igual por ambos os lados
dos Alpes, que selou esta união. A perspéctiva, con-

. 114. A t~oria de arte desenvolvida na Renascença pretendia


ajudar o artIs.ta a chegar a um acordo com a realidade numa
base observacional: os tratados medievais de arte ao contrário
Iírnitavam-se quase sempre, ao enunciado de código~ e regras que'
poupariam ao artista o tra~a!ho de observar diretamente a rea-
lIdade (ver, e.g., as prescrrçoes de Cennini para a aplicação de
sombras a um rosto).
. 115. No conte~to deste ensaio é relativamente sem importân-
CIa saber_se o metodo de perspectiva empregado pelos artistas
era ou nao baseado numa construção matemática exata
" 116. E~te processo reflete um desenvolvimento ge;al A
babertura mtel~ctual" dos cientistas e estud+osos pós-medi~vais
aseada em meto dos experimentais e filológicos e sem cornpr o-
mlSSOcom uma "autoridade", pode ser comparada à independên-
f~':'dcom. ~ qual o artista pós-medieval escolhe - e, tendo esco-
11 1 O. SIS. en:',abca~e~t~ adere a ela - seu ponto de vista na
perspectiva .: Nao e a to:,- que a época presente, que, na arte,
se opoe apalx~m~damente a perspectiva focalizada (mesmo onde
s,:u emprezo e tao pouco matemático como no impressionismo)
poe e.m .,duvIda o valor da ciência "exata" e do estudo IIracio~
nalístíco - duas formas de conhecimento intelectual análogas
a u,!,a forma perspectiva de percepção artística. [Esta nota foi
escr ita no .auge do expressionismo e antiintelectualismo alemão
quer marxista ou protonazista.] ,
117. LANCE& FUHSE. Op. cit., p. 319, linha 14.

360
iigurando como faz o espaço ao redor e entre as figuras,
postula, por mais "plástica" que possa ser a intenção
de quem a utiliza, ao menos um mínimo de realismo
pintural, de atenção à luz e ar, e até à disposição de
ânimo. Assim, o relacionamento dos artistas dos pri-
mórdios do Renascimento com a Antiguidade clássica
foi dominado por dois impulsos antitéticos: embora
desejando revivê-la, eram compelidos a transcendê-Ia.
Nem é preciso dizer que eram inigualáveis no seu en-
tusiasmo pela antichità que festejavam não só como
o legado de um passado glorioso mas também como
um meio de alcançar um futuro também glorioso; é
significativo que os grandes mestres da primeira geração
_ Donatello, Ghiberti, J acopo della Quercia - se es-
forçassem em imitar as formas clássicas mesmo en-
quanto seu material temático ainda era predominante-
mente cristão. Por outro lado, entretanto, o Quatro-
centos simpatizava bastante com as aspirações e
realizações do Norte. Assim como os nórdicos "pin-
turalizaram" o relevo, convertendo-o num tipo de
cenário teatral, do mesmo modo Ghiberti e DonateIlo
"pinturalizaram-no submetendo-o às regras da pers-
pectiva. E os pintores e gravadores italianos tomaram-
se tão dependentes dos "flamengos" (que, de seu ponto
de vista, incluíam os alemães) que, no campo da arte,
a balança das influências pendeu, indiscutivelmente, a
favor do Norte durante todo o século XV 118. O
mesmo PoIlaiuolo que, incansavelmente, repetia a
fórmula de pathos clássica, pintava paisagens alia
[iamminga e vestia seu Davi com roupas cujas peles e
veludos eram representados com o carinho e precisão
dos holandeses; freqüentemente, numa mesma pintura,
aspira-se a uma combinação do "idealismo" classici-
zante com o "realismo" nórdico 119. Como vemos, a
arte da Renascença italiana representa um ajustamento
de duas tendências antitéticas. Durante o século XV
estas duas tendências coexistiram, por assim dizer, e
suas reconciliações deviam-se quase sempre a con-
cessões mútuas; no começo do Cínqüecento harmoni-

118. Sobre a avaliação positiva da pintura holandesa no Qua-


trocentos italiano, ver SCHLOSSER. Kunstliteratur, p. 95 e s.; WAR-
BURC,op. cit., I, pp. 177-216.
119. Cf. por exemplo, WARBURC. "Francesco Sassettis letztw-
illige Verfügung" op. cit., I, p. 127 e ss.

361

ri
zaram-se numa união efêmera .I~O; essa urnao ma rom-
per-se no século XVII. Os pontos finais da evolução
que começa no Quatrocentos são marcados, de um
lado, pelos seguidores do "realista" "não-intelectual e
não-inventiva", Caravaggio 121, e do outro, pelo Classi-
cismo 122.

Devido a esse dualismo inerente o Quatrocentos


i~~lia~o qU,a~ificava-se como "mediad~r" entre a expe-
nencra estética do Norte e o antique. Traduzia como
n.ão poderia deixar de fazer, a linguagem da arte clás-
sica num idioma que o Norte podia entender: as ver-
sões renascentistas das estátuas clássicas não são tanto
cópias como reinterpretações - reinterpretações essas
q.ue, por um lado, retêm o caráter "ideal" dos protó-
tipos, mas, por outro, modificam-no num espírito de
realismo comparativo. Mesmo quando nos defronta-
mos" com uma, ~e,~resentaçã~ luramente arqueológica
- documentana, como diríamos - de um exem-
plar específico da estatuária clássica (em oposição a
estudos ou interpretações livres de modelos posando à
maneira clássica) , podemos observar uma mudança
fundamental. Postura e expressão são alteradas ao
gosto d~ época ,e mesmo ao de cada artista 1:2S. O jogo
dos musculos e detalhado com base nas experiências
g~nhas através de desenhos ao vivo ou estudos anatô-
mICOS. A superfície lisa do mármore é animada por
métodos colorÍsticos e pictóricos. O cabelo parece
esvoaçar ou se enrolar; a pele parece respirar· a íris
e as pupilas são devolvidas aos olhos cegos. '

120.. Cf., e.g., a "Libertação de São Pedro" ou "Expulsão


de HeIlOdoro" de Rafael.
121. Segundo uma observação de Bernini (R. F. de CHANTELOU,
Jou:nal du voyage du Cavalier Bernin... E. Lalanne ed 1885
Parrs, p. 190.) " . ,
. 122. Os teóricos da Renascença, escrevendo num período
a:nd~ capaz. ,?~, pelo m<;nos, desejoso de harmonizar essas ten-
den.cIas antítétícas, c.?ns~derav~m a verossimilhança como com-
pahve!, .com a deyoçao a mamera antica se não sinônima desta
Os t<;!orlcos do seculo XVII, tendo tomado consciência de ~
conf!Ito entre. o escultural e o pictórico, entre o universal e o
pa;tJc,;:lar, nao mais podiam fechar os olhos ao fato de ue
lI~lltaçao do. a;ttique e imitação da realidade eram dois pri:!ci-
pIOS <:on~r~dItorlOs; Bernini (ibidem, p. 185) chega a proíbír que
os pnI?-clplantes trabalhem a partir de um modelo vivo, já que
a realIdade, comparada com O antique era "fraca e ínsígntrt-
. cante".
123. Ver F. WICHERT, barstellung und Wirklichkeit 1907 I
paSSlm. I t

362
Dessa forma, e apenas dessa forma, podia o anti-
que tornar-se acessível ao Norte como uma experiên-
cia estética: uma vez que a própria arte nórdica não
estava preparada para encarar os monumentos clássicos
com olhos renascentistas, poderia apreendê-Ias somente
através de uma transformação italianizada. O Norte
só poderia avançar em duas direções: de uma tradição
já penneada de elementos ítalo-clássicos para o antique
original ou, de uma tradição não tão infiltrada para
o que pode ser chamado de antique do Quatrocentos.
E isso nos faz ver que Dürer, o primeiro a construir
esse caminho para o antique, não estava ainda em
condições de trilhá-Ia. Se jamais um grande movimento
artístico pode ser considerado como obra de um único
indivíduo, então o Renascimento nórdico foi trabalho
de Albrecht Dürer. Michael Parcher chegou a adotar
certas realizações importantes do Quatrocentos italiano;
mas somente Dürer foi capaz de perceber, através do
Quatrocentos italiano, o antique. Foi ele que infundiu
na arte nórdica um sentimento profundo pela beleza
clássica, pathas clássico, força clássica e luminosidade
clássica 124. Se o pobre ilustrador Apianus, no esforço
para representar as esculturas clássicas num estilo par-
ticularmente belo e genuíno, não pode pensar eP1 algo
melhor do que recorrer às gravuras e desenhos de
Dürer, este fato presta testemunho de que todos os
artistas nórdicos do começo do século dezesseis - ele
assim como um Beham ou mesmo um Burgkmair 125 -
viam-se forçados a apelar para Dürer do mesmo modo

124. Não cabe ao historiador decidir se Dürer, reformando


assim a arte alemã, "envenenou-lhe as raizes". Quem deplora
o fato de Dürer haver imbuído a arte nórdica com sua anti-
kiscl,e Art ou de Rubens ter sido influenciado por Michelangelo
e Ticiano, 'é tão ingênuo e dogrnático quanto aqueles críticos ra-
cionalistas dos velhos tempos, que não perdoavam a Rembrandt
por este não ter ido à Itália (Outra vez é preciso lembrar que
o presente artigo foi escrito por volta de 1920).
125. Segundo HAUTTMANN (op. cit., p. 49). o São Sebastião
de Hans Burgkmair, de 1505, (Nuremberg, Germanisches Mu-
seum) também deriva do Mercúrio de Augsburgo. Entretanto,
embora isso fosse possível do ponto de vista prático, Burgkmair
preferiu a orientação de Dürer à do antique: na posição das
pernas, na postura da cabeça e na modelagem enfática (ver,
sobretudo, os músculos da perna) seu São Sebastião deriva, cla-
ramente, do Adão de Dürer (como já notou H. A. SCHMID em
THIEME-B>:CKER,Allgemeines Lexikon der bildenden Künst!er, V,
p. 253). Quando se colocam lado a lado fotografias do São
Sebastião, do Adão e do Mercúrio, (no original, é claro, e não
na versão de Apianus), a realidade dos fatos fala por si mesma.

363
I,
I
que Dürer tivera de recorrer a Pollaiuolo ou Mante-
gna. Podemos observar como sua antikische A rt se
alastrou, não só por toda a Alemanha mas também pela
Holanda. Só há pouco foi provado que Jan Gossart,
afamad.o como s~ndo o primeiro "romanista" flamengo,
na realidade devia a Dürer sua primeira introdução ao
"mundo da forma sulista" 126.
Os seguidores de Dürer podiam aproximar-se do
antique diretamente porque já eram artistas da Renas-
~e.n9a; Dürer n,ão. podia fazer tal coisa, pois teve que
InICIar, ele propno, o movimento renascentista. A
Martin van Heemskerck ou Marten de Vos era dado
arrostar o mundo clássico, por assim dizer, na posição
de romanos. Para Dürer, o verdadeiro antique era
inacessível porque se lhe impunha, primeiro, absorver
o antique italianizado. Esses epígonos podiam come-
ça~ de Dürer; o próprio Dürer precisou começar de
Michael Wolgemut e Martin Schongauer; e a partir
deles não havia caminho que levasse diretamente à
Antiguidade. Não se deve esquecer que Dürer, apesar
de todo seu "anseio pelo sol" era, e sob muitos as-
pectos permaneceu um artista nórdico do final do
período gótico. Seu extraordinário dom para a forma
plástica era igualado por uma percepção também notá-
vel do pintural, sua intensa preocupação com a pro-
porção e. a claridade, a beleza e a "correção", por um
Impulso Igualmente forte para o subjetivo e irracional,
para o realismo microscópico e a fantasmagoria. É

verdade que Dürer foi o primeiro artista nórdico a


produzir nus corretos e cientificamente proporcionados;
mas também foi o primeiro a produzir paisagens ge-
nuínas. :f: o autor da Queda do homem e de Hércules
ma~ também da Grande paisagem de turfa e do Apo-
calipse. Mesmo nos anos de maturidade, Dürer nunca
se tornou um puro artista da Renascença 127, e quão
pouco foi um puro artista da Renascença nos seus anos
de mocidade é indicado pelo modo com que reteve sua

126: F., WINKLER, Die Anfânge Jan Gossarts, em Jahrbuch der


preusSlschçn Kunstsammlung, XLII, 1921, p. 5 e ss. Pode-se até
est~belecer um itinerár ío para o antique durante a Renascença:
os talianos traduzem-no _do grego e latim para o italiano, Dürer
í

do taliano para o alemao, Gossart do alemão para o holandês.


í

127. Comparar, por exemplo, sua Melancolia I com a de


Hans Sebald Beham (gravura B. 144). '

364
independência como paisagista, mesmo quando copiava
diretamente as pinturas e gravuras italianas 128; e, ainda
mais, pela maneira com que explorava seus estudos
antikische em obras destinadas à publicação como gra-
vuras ou xilogravuras. A forma estatuesca do Apoio
de Belvedere ou viu-se exposta à "luz contraditória" de
um nevoento céu noturno refletindo a luminosidade inde-
cisa de um disco solar ou viu-se realçada contra a pe-
numbra de uma floresta 129. E onde os gestos e posturas
clássicos foram usados sem uma mudança cabal de
forma, foram investidos de um conteúdc totalmente
diferente. A beleza pagã do Apoio de Belvedere foi ou
alçada à esfera da religião cristã, ou baixada, por assim
dizer, ao nível da vida cotidiana. Sua pose foi utilizada,
lembramos, para o Adão da Queda do homem (Fig.
80) assim como para o Cristo Ressuscitado (Fig. 81)
e também para o Porta-estandarte (gravura B,45),
onde seu passo olímpico, serenado numa dignidade su-
pernatural na Ressurreição, apresenta-se carregado com
o ímpeto da ação física.
:f: possível efetuar observações análogas sobre o
emprego que Dürer fez do "motivo do pathos", exem-
plificado pelo Orjeu moribundo. Esperaríamos en-
contrá-Io sempre dentro do mesmo contexto para o
qual foi inventado, em cenas de violência e morte onde
a vítima, bela mesmo in extremis, tenta defender-se
contra a destruição. Entretanto, esse não é o caso.
Onde as pessoas realmente morriam - no Assassinato
de Abel ou no cataclismo do Apocalipse - Dürer
apela para posturas completamente diferentes, contor-
cidas e horríveis, ou aquiescentes e devotas mas não
"belas". Na série do Apocalipse, a pose de Orfeu apa-
rece apenas uma vez numa figura fantasticamente ves-
tida, tão pequena que foi esquecida pela maioria dos
observadores (inclusive este escritor) até 1927, e que
representava, não um homem morrendo, mas um da-
queles "que se escondiam nas grutas e nas pedras das
montanhas" (Rev. 6: 15) 1(10. Mais tarde - quando o
128. Ver acima p. 316. .0

129. Ver, de um lado, o desenho L. 233 (Fig. 76); de outro,


a gravura A Queda do Homem (Fig. 80).
130. As "figuras de pathos" clássicas, ainda podem ser carac-
terizadas pelas palavras de Lessing (Laokoon, capo II): "Es gíbt
Leídenschaften, und Grade von Leidenschaften, die sich im Ge-
sichte durch die hãsslíchste Verzerrung ãussern, und den ganzen

365
Apolo de Belvedere fOI transformado no Cristo ressus-
citado - o Orieu moribundo foi convertido num Cristo
carregando a Cruz (xilogravura B.10). Num caso
Dürer chegou tão longe a ponto de inverter completa-
mente o significado original da figura: no desenho co-
nhecido como Madona com uma multidão de ani-
mais UI1, um dos "pastores dos campos", num gesto de
alegre surpresa, cai de joelhos e levanta o braço como
que para se proteger da radiação celeste dos anjos,
precisamente da mesma maneira que Orfeu, abatido
pelas mênades, tenta sem êxito aparar seus golpes
mortais 1(12.
Concluindo: não há um único caso em que se
possa mostrar que Dürer se baseou diretamente no
antique, seja na Alemanha, Veneza ou Bolonha 133.
Encontrou o antique apenas - segundo seu próprio
testemunho - onde esse já fora revivido durante ge-
rações 134: na arte do Quatrocentos italiano, onde o
deparou sob uma forma alterada segundo os padrões
da época, mas, por isso mesmo, compreensível para
ele. Se nos é dado falar por meio de um símile: de-
Kõrper in 50 gewaltsame Stellungen setzen, dass die schõnen
Linien, die ihn in einem ruhigeren Stande umschreiben kõnnen
verloren gehen. Dieser enthielten sich also die alten Künstle~
entweder ganz und gar, oder setzten sie auf geringere Grade
h~ru.nter, i',; welchen sie eines ~asses von Schõnheit fãhig sind".
( Ha emoçoes, e graus de emoçoes, que se expressam pelas mais
f«;ias contorções da face e forçam o corpo todo a posições tão
VIOlentas que as belas linhas capazes de descrevê-Io numa ati-
tu?e maísjaacíftca se perdem. Os artistas antigos, ou evitavam
tais emoçoes, ou reduziam-nas a um grau menor em que ainda
eram suscetíveis de uma certa medida de beleza").
131. Desenho L. 460.
. 132. Também o .cão deriva de uma grande composição, ou
sela, o Sto. Eustáquto (gravura B. 57) ou, mais acuradamente
do desenho preparatório usado para esta gravação. '
133. O caso das três cabeças de leão no desenho de Europa,
L. 456 (excepcIOnal em SI, pOIS estamos preocupados principal-
mente com fIguras humanas) é, na melhor das hipóteses, duvidoso.
Se em geral foram copiados de alguma estátua é assunto discuti-
ve~, (ver, por ~m lado, H. DAVID,Die Darstel!ung des Lowen
bet Albrecht Durer, Diss. Halle, 1909. p. 28 e ss.; e. por outro.
S. ~LERMAN. Albrecht Dürers Tier- und Pflanzenzeichnungen
und thre Bedeutung !.ür die Naturgeschichte, 1910. p. 73). Mas.
11!.esmono cas? de Durer ter copiado uma escultura, seu modelo
nao pode mais ser determinado. e não era. necessariamente
uma obra clássica. Os Leoncini, muito citados na literatura mo~
derna. devem ser postos de lado por serem obras do século XVIII
(Ep~ussr. op, cit., p. 122). A tentativa de O. Hagen de ligar
o Sao Sebastião de Dürer (gravura B. 55) com uma Marsias
romana ("War Dürer in Rom?" Zeitschrift für bildende Kunst
;.n. 1917,_ p. ~55 e ss.) nem deve ser levada em consideração:
lá que nao ha nenhuma prova da estada de Dürer em Roma.
134. LANaE& FUHSE. Op. cit., p. 181, linha 25.

366
frontou a arte clássica da mesma maneira que um
grande poeta, que não entenda grego, pode encarar as
obras de Sófocles. Também o poeta terá de confiar
numa tradução; mas isso não o impedirá de apreender o
significado de Sófocles mais amplamente que o próprio
tradutor.

Excurso: As Ilustrações das Inscriptiones de Apianus


em relação a Dürer

Como já foi observado no começo, qualquer in-


vestigação sobre a evolução do "grupo dos ApoIos"
de Dürer, deveria começar com o Apoio Médico ou
Esculápio (desenho L. 181, nossa Fig. 75) e o Sol
(desenho L. 233, nossa Fig. 76) ambos datáveis de
cerca de 1500, 1501. Na sua tentativa de derivar
toda essa série do Mercúrio de Augsburgo (Fig. 71),
Hauttmann começa com o Adão de 1504 (Fig. 80).
Mesmo assim, dificilmente teria formado essa sua
teoria se houvesse comparado as figuras de Dürer com
o original clássico (Fig. 71) e não com a xilogravura,
que visava representá-Ia, nas Inscriptiones Sacrosanc-
tae Vetustatis, de Apianus, de 1543 (Fig. 74). Nessa
xilogravura, o mensageiro dos deuses apresenta de
fato notável semelhança com o Adão de Dürer. Em
ambas as figuras, a perna esquerda (livre) inclina-se
incisivamente para o lado e para trás; o contorno do
ombro direito desce numa curva elegante; a mão es-
querda é alçada à altura do ombro e dobrada, nitida-
mente, para a frente no pulso, segurando o caduceu,
no caso de Mercúrio, e o ramo, no caso de Adão.
Entretanto, todas essas semelhanças existem
apenas entre a gravura de Dürer e a xilogravura de
Apianus, e não entre a obra de Dürer e a escultura de
Augsburgo. Na última, a atitude da figura é totalmen-
te diferente: a mão direita não está levantada nem
claramente virada no pulso, mas suavemente abaixa-
da,e segura o caduceu, não no meio, mas pela parte
inferior, como é o caso em todos os monumentos ro-
manos comparáveis. :f:, evidentemente, impossível que

367
a gravura de Dürer, datada de 1504, fosse influencia-
da pela xilogravura de Apianus, publicada em 1534.
Hauttmann, porém, põe ambas a crédito de Dürer.
Segundo ele, foi o próprio Dürer quem fez uma cópia
do Mercúrio de Augsburgo - desenho este usado
subseqüentemente tanto para o Adão, em sua própria
gravação, quanto para o Mercúrio, na xilogravura de
Apianus. Hauttmann presume que, neste desenho hi-
potético, Dürer haja remodelado a postura e o con-
torno da figura, e, com respeito à posição do braço
esquerdo, tenha ficado tão confuso a ponto de inter-
pretar "a parte do manto que cai entre o braço e o
corpo como um braço abaixado e curvado", e confun-
dido "seu canto angular com um cotovelo", Isso,
pede-nos que acreditemos, forçou-o a levantar e cur-
var o braço esquerdo, sendo que desta série de erros
resultou o Adão visto na gravura de 1504.
Para começar, não é boa idéia tentar explicar
um motivo inusual e um tanto intrigante por um pro-
tótipo onde este motivo não ocorre. Mas, mesmo
pondo-se isto de lado, a hipótese de Hauttmann com-
plica e não resolve a questão. Segundo ele Dürer
conhecia a verdadeira posição do braço esquerdo no
relevo de Augsburgo quando pintou o retábulo do altar
de Paumgârtner, onde o braço de São Jorge aparece
abaixado e não levantado. Assim, a gravura de 1504
de Dürer seria baseada num erro de interpretação já
evitado numa pintura de 1502 aproximadamente. Su-
ponhamos que Dürer, como um arqueólogo, houvesse
hesitado entre as duas interpretações; como artista,
teria liberdade para decidir entre elas. Que o força-
ria a escolher a variante de Apianus que, aplicada ao
Adão, produziria, nas próprias palavras de Hauttmann,
um resultado tão "forçado" e "inatural"?
Na verdade, a posição do braço direito do Adão
- que corresponde, é claro, ao esquerdo em todos
os desenhos preliminares - pode ser explicada pela
história intrínseca da própria gravura. Foi desenvol-
vida, se bem nos lembramos, a partir do desenho do
"Sol" L. 233 (Fig. 76) que antecipa o resultado.final,
mesmo com respeito à iluminação. Quando Dürer
decidiu combinar o "homem ideal" com a "mulher

368
ideal" numa representação da Queda do homem, natu-
ralmente quis que a figura de Adão retivesse todo. o
movimento belamente ritmado prefigurado no Apoio
de Belvedere - o braço do lado da perna de. apoio,
abaixado' , o outro , do lado da perna livre, levantado
, 1
- e quis, também, preserv~r, tanto quan~o. possive ,
a escrita frontalidade requenda de um especime para-
digmático das proporções humanas. E~ . dois dese-
nhos intermediários (L. 475 e L. 173, o último datado
Ele 1504 e precedendo, imediatamente, a gravura) a
forma final da pose é estabelecida. Nesses desenhos,
os antebraços de Adão são indicados apenas por um
contorno mas é evidente que Dürer, já nesse ponto,
, , (
fora compelido a acrescentar uma segund~ arvore se-
gunda, isto é, além da Árvore da Sabedona, que se~a-
ra Adão de Eva): já que um dos braços de Adao
precisava ficar levantado e não mais podia segurar
alguma coisa (como no caso dos desenhos do "Sol"
ou "Esculápio"), então tinha que se segurar em
algo 135, e isso só poderia ser um galho de árvore.
É verdade, porém, que, como diz Hauttmann, á
posição do braço direito de Adão "não foi inventada
para que, ele pudesse se apoiar no. galho"; P?rém,
isso não significa que tenha sido denvada, em VIrtude
de uma interpretação errônea do Mercúrio de Augs-
burgo. Ao contrário, o ramo - a bem dizer, toda a
árvore - foi inventado para motivar a posição reque-
rida para o braço direito do Adão 136. [Posso acrescen-
tar que Dürer tomou o cuidado de justificar o acréscimo
dessa segunda árvore em bases iconográfic~s ~fato que'
desconhecia ao publicar este artigo pela pnmeira vez):
ao caracterizá-Ia como um freixo, em contraste com a
figueira ao centro, designou-a com? Árvore _da Vida,
em oposição à Árvore da Sabedona - a Arvore da
135. Depois de alguma hesitação. Dürer resolveu deixar a
mão abaixada do Adão completamente vazra,
136. Essa posição foi estudada no desenho L. 234,bll;se~.donum
modelo que se apresenta segurando uma vara. É difícil enten-
der por que Hauttmann considerou essa vara como um d~ct.0em
favor do argumento de que Dürer conhecia :'. Mercuno de
Augsburgo. A vara é uma estaca comum de estúdio (cf. e.g. os
próprios desenhos de Dürer no "Dresdner Skizzenbuch", BRUCK.
op. cít., pr. 11 e 12) que nada têm a ver' com o caduceu de
Mercúrio.

369
Vida, à qual Adão se segura enquanto ainda tem liber-
dade para aceitar ou não o fruto fatal 137.]
Como, portanto, explicaremos a semelhança que
existe entre a gravura de Dürer e a obra de Apianus?
Na minha opinião, não pela suposição de que Dürer
moldou seu Adão segundo o Mercúrio de Augsburgo,
e sim pela tese de que o ilustrador de Apianus remo-
delou o Mercúrio de Augsburgo, influenciado pelo
Adão de Dürer.
Como bem se sabe, as Inscriptiones de Apianus são
amplamente baseadas em material compilado pelos hu-
manistas da geração precedente - Choler, Pirkhei-
mer, Peutinger, Celtes, Huttich - e, em parte, já
publicadas em forma de livro; os monumentos da dio-
cese de Augsburgo haviam sido publicados em Peu-
tinger; os da diocese de Mogúncia por Huttich 138.
Apianus funcionava assim como uma espécie de reda-
tor-chefe, e o desenhista de xilogravuras que empre-
gou tinha apenas que rever o material ilustrativo já
existente, em lugar de traçar desenhos baseados em
monumentos originais. Em nenhum caso - a não ser,
talvez, no de objets d'art pequenos e facilmente trans-
portáveis _. trabalhou com base nos originais; tudo
137. o freixo era venerado (ou. como quase sempre. em casos
semelhantes. visto com medo supersticioso) na Idade Média nór-
dica - talvez porque lembrassem vagamente que. segundo o
Eda, ? primeiro homem fora feito de um freixo. enquanto a
prímeíra mulher procedia· de um olmo. As noções Iconográficas
de Hauttmann são. sinto dizer, ainda menos sustentãvels que
seus argumentos estl1fsticos. Pressupondo que o animal com a
galh~da. atrás do Adão de Dürer. seja um veado. propõe uma
ligaçao deste com a cabra de Mercúrio: já que o último. se-
gundo Horapolo e outros. simboliza o poder procriativo mascult-
no e o veado contém Implicações semelhantes. "salacitas era
um denominador comum" entre Adão e Mercúrio. Entretanto.
em primeiro lugar. o animal que aparece na gravura de Dürer
não é um veado. mas um alce. conhecido por sua apatia e não
por suas proezas sexuais (ver H. DAVID.Zwel neue Dürer-
-Zeichnungen. em Jahrbuch der kõniglícn preussiscnen Kunst-
sammlungen, XXXIII. 1912. p. 23 e ss.). Em segundo lugar sa-
bemos que os próprios peritos de Augsburgo confundira~ a
cabra aos pés de Mercúrio com um "boi ou touro" (ver
p.. 354). [No que tange ao possível verdadeiro significado dos
a~~mais na Queda do Homem, de Dürer. ver PANO!'SKY, A!brecllt
Durer, I. p. 85; 11. p. 21. n. 108.]
138. Inscrlptiones vetustae Romanae et eorum fragmenta
in Augusta Víndelicorum et eíus dioe~esi cura et ditigentia
C~uonrandi Peutingerl... antea impressae nunc denuo revisae
Mogúnca (Schõffer). 1520 (combinada com HUTTICmus' Co!~
lectanea antiquitatum in urbe atque agro Moguntno repertàrum)
A primeira edição da obra de Peutinger (publlcada em 1506
por Ratdolt. em Augsburgo) não é ilustrada.

370
que lhe cumpria fazer era desenvolver as xilogra-
vuras encontradas nas publicações de Huttich e Peu-
tinger e redesenhar os trabalhos ainda mais canhes-
tros, até então inéditos, que eram fornecidos por estu-
diosos itinerantes. Para alcançar este melhoramento,
e, ao mesmo tempo, uma uniformidade maior de es-
tilo 139 - o autor das xilogravuras recorreu a Dürer,
não apenas no tocante a técnicas puramente gráficas,
como o sistema de hachuras, ou o tratamento do ca-
belo e drapeados, mas também com respeito a pos-
tura, gestos e anatomia. Pesquisava, sistematicamen-
te, os desenhos e gravuras de Dürer que pudessem
ajudá-lo a "modernizar" suas ilustrações.
Na página 451, por exemplo, há uma xilogra-
vura que se propõe ilustrar um camafeu pretensa-
mente antigo descoberto por Conrad CeItes; uma
dessas figuras, entretanto, é literalmente duplicada
numa das xilogravuras de Dürer no Libri amorum de
Celtes. Já que este livro foi publicado em 1502, en-
quanto o camafeu só foi encontrado em 1504; o mes-
tre de Apianus deve ter se baseado na ilustração do
Libri amorum para melhorar seu modelo direto -
presumivelmente um esboço feito pelo descobridor -
segundo os padrões de 1534.
O mesmo processo pode ser observado no caso
do chamado Atleta de Helenenberg, hoje guardado no
Museu de Viena, que foi encontrado em 1502 e adqui-
rido pelo Cardeal Arcebispo Lang, de Salzburgo (Fig.
86). A xilogravura nas lnscriptiones de Apianus é
o espelho exato de um desenho de Dürer (L. 351
ou nossa Fig. 84) 140, a não ser na inscrição, nos atri-
butos e na posição do antebraço erguido. A figura
construída de Dürer, membro regular do "grupo dos
ApoIos", nunca poderia ser copiada do original de
bronze. Só podemos presumir que o desenhista das
xilogravuras, tendo de trabalhar com base num esbo-
ço inadequado, recorreu ao desenho de Dürer que,
139. As demais diferenças estlUstlcas no contexto das xtlo-
gravuras não são devidas. em minha opinião. a uma pluralidade
de desenhistas; podem explicar-se pelo caráter heterogêneo do
material à disposição.
140. FRIMMEL."Dürer und dle Ephebenflgur vom Helenen-
berge". Buttter filr Gemitldekunde, 11. p. 51 e ss.

371
de um modo ou de outro - talvez através dos bens
de Pirckheimer - acabou em poder de Apianus e
p~receu ade9-u~do pois representava um nu que se
afigurava clássico. O copista se trai pelo desenho
gro,sseiro do machado colocado na mão esquerda da
estatua e, sobretudo, pela alteração canhestra do an-
tebraço direito que, para corresponder ao menos apro-
ximadamente ao original, devia apresentar-se esten-
dido, em lugar de segurar uma clava. Ao fazer esta
alteração, o desenhista esqueceu de pôr o antebraço
em perspectiva, que parece assim longo demais em
comparação com a parte superior do braço; aparen-
temente ele o tomou de empréstimo, sem os ajustes
necessários, ao Tratado das Proporções Humanas de
Dürer 141.
Neste caso, o próprio Hauttmann entendeu a si-
tuação de maneira bastante correta: " ... ao compa-
rar o desenho L. 351", diz ele, "com o Atleta de He-
lenenberg, como ilustrado em Apianus, somos força-
dos a reconhecer a estilização düreresca da xilogra-
vura, mais do que a pressupor uma influência da
estátua sobre Dürer". Tais palavras, entretanto, são
válidas não só para esta xilogravura específica, mas
para todas as ilustrações "dürerescas" encontradas nas
Inscriptiones;e são particularmente verdadeiras para a
xilogravura que representa o Mercúrio de Augsburgo
em relação ao Adão de Dürer.
Isso pode ser demonstrado, comparando-se a
xilogravura das Inscriptiones de Apianus, de 1534
(Fig. 74) com a das Inscriptiones de Peutinger, de
1520 142 (Fig. 73). Segundo Hauttmann, ambas se
baseiam num mesmo modelo - em sua opinião, um
desenho de Dürer - que foi distorcido numa pri-
meira gravura mas apresentado adequadamente numa
outra, posterior. Esta opinião é, porém, insustentá-
vel. Duas xilogravuras, baseadas no mesmo desenho,
podem, como muitas vezes o fazem, diferir uma da
outra; essas diferenças, 'contudo, são sempre cons-
tantes e uniformes. Aqui, ao contrário, temos uma
141. Ver, por exemplo, DÜRER.Vier Bücher von mensch!icher
Proportion. Nuremberg, 1528, f.· H. IV ou G V b.
142. PEUTINGER. Op. cito f.· B I.

372
divisão nítida. Na postura e modelagem do tronco
e pernas, as duas versões diferem tão radicalmente
quanto possível em duas representações de um mes-
mo objeto; na inclinação da cabeça, nas feições, no
cabelo, no caduceu e elmo alado 143, entretanto, con-
cordam perfeitamente. Daí cumpre concluir que a
xilogravura de 1534 não pode, de modo algum, ba-
sear-se no mesmo desenho que a de 1520; isto pres-
supõe um novo desenho, produzido ad hoc, no qual
os motivos encontrados na xilogravura de 1520 foram
combinados com outros, dados por outra fonte. E
esta segunda fonte foi a Queda do homem, de Dürer.
O Mercúrio, como aparece na xilogravura de
1520, nada tem em comum com o Adão de Dürer,
precisamente porque essa xilogravura, malgrado todo
seu canhestrismo, é de fato mais próxima ao original
que a de 1534. Tem a postura calma, quase pre-
guiçosa da figura romana, seus ombros angulares (que
faz lembrar a frase de Plínio: figura quadrata) e, so-
bretudo, sua modelagem quase indistinta. Enquanto
a gravura de 1534, assim como a Queda do 'homem
de Dürer, mostra os músculos concentrados em fir-
mes e bem determinadas convexidades, a obra de 1520
exibe superfícies relativamente unificadas, indiferen-
ciadas. Foi o Mestre de Apianus que assimilou o
Mercúrio do Adão de Dürer, ex post facto, por assim
dizer; foi ele que contrapôs uma perna de apoio qua-
se vertical com uma outra, livre, virada para o lado
e para trás (ao passo que as pernas na xilogravura
de 1520 são quase paralelas, o quadril curvado para fora
e o pé enorme colocado quase no mesmo plano); que
alongou e afirmou as proporções lH; que formou o con-
torno articulado a enfatizar o contraste entre a barriga
da perna e o joelho, entre o antebraço e o cotovelo; que
pôs em perspectiva o pé, exatamente da mesma for-
143. Cf., em contraste, outro Mercúrio, guardado em Roma
e ilustrado em APIANUS,op. cit., p. 230. As duas xilogravuras
que representam o Mercúrio de Augsburgo também concordam
ao mostrar a perna esquerda da cabra numa posição frontal;
no original, como numa gravura posterior da Monumenta de
Marx Welser (nossa F'ig. 72) aparece em perspectiva.
144. A não ser pelo fato de que as asas da cabeça foram
redesenhadas a fim de concordar com a posição da cabeça
em vez de serem apresentadas em vista frontal simétrica. Os
outros dois atributos estão apenas um pouco melhorados, quan-
to ao desenho e proporções.

373
ma que aparece na gravura de Dürer, e tentou imitar
este artista até na iluminação, sombreando bastante
o lado direito da figura mas escurecendo também a
parte inferior da perna esquerda.
Infere-se que Dürer não era responsável por ne-
nhuma das duas xilogravuras de Mercúrio. A de 1520
não lhe pode ser atribuída por não ter relação algu-
ma com seu estilo; a de 1534, não lhe pode ser atri-
buída porque partes consideráveis dela foram copia-
das, mecanicamente, de outra xilogravura anterior 145.
Resumindo, o Mercúrio de 1534 é uma mistura do
de ] 520 e do Adão de Dürer 146, e podemos ver onde
as peças desse quebra-cabeças foram juntadas no pes-
coço, onde o músculo cervical, copiado da gravura de
Dürer, não se une corretamente à cabeça tirada da
gravura anterior.

A lição a ser extraída dessa discussão um tanto


tediosa é que Dürer não estava envolvido pessoalmen-
te na preparação das pesquisas arqueológicas que re-
sultaram, finalmente, na publicação das Inscriptiones
de Apianus e, mais especificamente, não foi o respon-
sável pela interpretação errônea do braço esquerdo
do Mercúrio de Augsburgo 147; também nos faz ver,
145. Que o trabalho do ilustrador de Apianus se baseou
na publicação impressa de Huttich e Peutíriger, e não, como
se poderia supor, nos desenhos preparatórios evidencia-se pelo
fato de ele, ocasionalmente, haver se poupado o trabalho de
inverter o modelo, de modo que suas xilogravuras mostram o
objeto ao contrário; ver, e.g., a chamada Acorn Stone (Huttich,
f.o C I = Apíanus, p. 474) e o túmulo de Cúrio Sabino (Huttich,
t» D IV v. = Apianus, p, 482).
146. Deve-se notar que o ilustrador de Apianus recorreu ao
Adão de Dürer pelo menos em dois outros casos: o Netuno,
p. 456, e outro Mercúrio, p. 464.
147. O artista responsável por esta interpretação errõnea
foi o ilustrador das Inscriptiones de Peutinger de 1520. Tra-
balhando, presumivelmente em Mogúncia, dependia de um es-
boço enviado de Augsburgo, razão pela qual pode-se perdoá-Ia
por ter reconstruído o braço direito do Mercúrio à maneira
mais comum na estatuária clássica (e posterior); é possível. na
realidade, que se pautasse por um monumento romano, então
conservado em Mogúncia, que ele próprio desenhou para a pu-
blicação de Huttich: a lápide de um soldado chamado Atio
(HUTTICH, op, cit., f.O B lI, repetido em APIANUS,op. cit., p. 470).
Essa lápide está hoje desaparecida; mas que. pelo menos neste
caso, o artista não cometeu engano é demonstrado por um
estudo independente. preservado na Biblioteca Ambrosiana, em
Milão, Cod. D. 420, inf., fase. 1.
Portanto, nada sustenta a suposição de que o próprio Dürer
tenha trabalhado na preparação da obra de Apíanus. Seu
ilustrador explorou os desenhos de Dürer ex post facto, e isso

374
88. Relevo pseudoc1ássico produzido em Veneza por volta
de 1525-30. Viena, Kunsthistorisches Museum.
num átimo, como a antikische Art de Dürer era vista
por seus contemporâneos nórdicos. [Quando o mestre
de Apianus corrigiu a reprodução de um Mercúrio
clássico baseando-se no Adão de Dürer, agiu, mutatis
mutandis, como aquele escultor veneziano, hábil mas
pouco consciencioso, que, por volta da mesma época,
produziu o que era supostamente um original grego
do século V a.c., combinando duas figuras vestidas
tomadas de uma stele pericleana com dois nus impressi-
vos, copiados de Michelangelo, do Davi e do Cristo
ressuscitado de Santa Maria sopra Minerva (Fig.
88) 148. Aos olhos do desenhista de xilogravuras ale-
mão uma figura de Dürer era o mesmo que uma figura
de Michelangelo era para o falsário veneziano (e, inci-
dentalmente, também para Vasari}: uma obra tão clás-
sica - de fato, mais clássica que - um produto
genuíno da Antiguidade greco-romana.]

também é válido para o frontisp!cio que mostra uma Alegoria


da Eloqüência (Hercules Ga!!icus) e baseia-se no desenho L. 420,
de Dürer. Há mesmo razões para pensar que este fronttspício,
assim como as iniciais e margens, não foi feito especialmente
para o volume de Apianus. Do ponto de vista temático, se ade-
qua tanto, nem mais nem menos, ao conteúdo desta obra quan-
to ao de qualquer outra, e parece antes apagado até em cópias
em que as outras ilustrações efetivas se apresentam claras e
fortes; infere-se que foi impresso com uma matriz já muito
usada.
148. [Sobre este relevo, conservado no Kunsthistoriche Mu-
seum de Viena e que eu desconhecia quando o presente ensaio
foi publicado pela primeira vez, ver PANOFSKY,Hercules am
Scheideweige (citado à p. 193, nota 3), p. 32, Fig. 26.J

376
7. ET IN ARCADIA EGO: POUSSIN E A
TRADiÇÃO ELEGIACA

I
Em 1756, Sir Joshua Reynolds mostrou ao seu
amigo Dr. Johnson, seu último quadro: o r~trato d~-
pIo da Sr~ Bouverie e da Sr~ Crewe, que ainda hoje
pode ser visto no Crewe Hall, na Inglaterra 1. M?s~ra
duas lindas senhoras sentadas diante de uma lapide
cuja inscrição as torna sentimentais: ?ma apon~a o
texto para a outra, que medita a respeito, assumindo

1 LESLIEC. R. & TAYLOR, Tom. Life and Times oi sir Joshua


Rey~olds. Londres, 1865, I, p. 325.

377
I1
I
• a ~ose, então em voga, das Musas Trágicas e Melan-
cohas~. O texto da inscrição reza o seguinte: Et in
Arcadia ego.
- Que significa isso? - exclamou o Dr. John-
sono - Parece-me inteiramente absurdo. - Existo na
Arcádia.
- O rei poderia lhe explicar - replicou Sir
Joshua. - Ele o viu ontem e disse, imediatamente:
"~h, há uma lápide ao fundo: sim, sim, a morte
existe mesmo na Arcádia" 3.
O leitor moderno não pode entender o irado em-
baraço do Dr. Johnson, mas não menos intrigante é
a rápida compreensão de Jorge Hl que captou ins-
tantaneamente o propósito da frase latina, mas a in-
t,erp.retou de ma~ei~a difer~nte daquela que parece
óbvia para a marona de nos. Ao contrário do Dr.
J ohnson, não ficamos mais perplexos com a frase Et
in Arcadia ego. Porém, em contraste com Jorge Hl,
est~mos. acostumados a encontrar nela um significado
muito diverso, Para nós, a fórmula Et in. Arcadia ego
tornou-se sinônimo de paráfrases como "Et tu in Ar-
cadia vixisti", "Eu também nasci na Arcádia" "Ego
fui in Arcadia" 4, "Eu, também, nasci na Ar~ádia"
:'Auch ich war in Arkadien geboren" 5, "Moi, aussi:
je fus pasteur en Arcadie" 6; todas essas e outras ex-
pressões similares resultam no que a Sr~ Felicia He-
. 2. Ver .E. WIND, "Humanitãtsidee und heroisiertes Portrãt
m. d~r englischen KuItur des 18. Jahrhunderts", Vortriíge der
B,bltothek Warburg, 1930-1931, p. 156 e ss., especialmente p 222
e= .
3. LESLIE& TAYLoR.Loc. cito
. 4. Esta forma da frase é encontrada no quadro de Richard
WIlson (da coleção do Conde de Strafford) citado anterior-
mente na p. 405.
5. E~te é o começo do famoso poema de FRIEDRICH S'tHILLER,
~e.s,gnaça? (citado, por exemplo, no Geflügelte Worte de
UCHMANh,27. ed., p. 441 e s., Juntamente com muitos outros
exemplos da literatura alemã) onde o herói frustrado que
renunciou ao Prazer e à Beleza pela Esperança e Verdade re-
clama, ~ebalde, uma compensação. Nos dicionários ingleses
de. citações, esta passagem é, muitas vezes, erroneamente atrt-
buída a Goeth,:, (devId<? a uma confusão com o mote inscrito
no seu Italtemsche Re,se, sobre o qual ver, abaixo, p. 409);
cf., e.g., BURTSTEVENSON, The Home Book ot Quotations Nova
York, 1937, p. 94; A New Dictionary ot Quotations, H. L: Men-
c!.ten, ed., Nova York, 1942, p. 53 (aqui também com a afirma-
çao ~rrada de que: "a frase começa a aparecer em pinturas
do seculo XVI"); Familiar Quotations de BARTLETTBoston
1947, p. 1043. '"
.. 6. JACQUESDELILLE, Les Jardins 1782 citado eg em
BUCHMANN,loco cit., e STEVENSON, Ioc.' cito ' , .. ,

378
mans expressou nas palavras imortais: "Eu, tam-
bém, pastores, vivi na Arcádia" 7 *. Evocam a visão
retrospectiva de uma ventura insuperável, desfrutada no
passado, nunca mais atingível, mas que permanece viva
na memória: uma felicidade passada, terminada pela
morte, e não, como implica a paráfrase de Jorge lU,
uma felicidade presente ameaçada pela morte.
Tentarei mostrar que a interpretação real - "A
morte existe mesmo na Arcádia" - é gramaticalmen-'
te correta e, na verdade, a única gramaticalmente cor-
reta das interpretações da frase latina "Et in Arcadia
ego", e que nossa maneira moderna de ler essa men-
sagem - "Eu, também, nasci ou vivi na Arcádia" -
é, na realidade, um erro de tradução. Depois tentarei
mostrar que esse erro de tradução, embora seja inde-
fensável do ponto de vista filológico, não surgiu ape-
nas por "pura ignorância", mas, ao contrário, expres-
sava e sancionava, às custas da gramática, mas no
interesse da verdade, uma mudança básica de inter-
pretação.Por fim, tentarei atrib- .•ir a responsabili-
dade última por esta mudança, que foi de suma im-
portância para a literatura moderna, não a um escri-
tor, mas a um grande pintor.
Antes de nos lançarmos a nossa empreitada, en-
tretanto, temos que nos colocar uma questão preli-
minar: por que foi que essa região particular da Gré-
cia Central, não muito opulenta ou fecunda, a Arcádia,
passou a ser aceita, universalmente, como o domínio
ideal da beatitude e beleza perfeitas, um sonho encar-
nado de felicidade inefável, rodeado, no entanto, de
uma auréola de "doce e triste" melancolia?
Houve, desde o começo da especulação clássica,
duas opiniões contrastantes sobre o estado natural do
homem, sendo cada uma delas, é claro, uma Gegen-
-Konstruktion às condições em que foi formada. Um
ponto de vista, chamado primitivismo "suave" num
livro esclarecedor de Lovejoy e Boas 8, concebe a vida
primitiva como uma era de ouro, cheia de inocência
e felicidade - em outras palavras, como uma vida
7. The Poetical Works 0'1 Mrs. Felicia Remans, Filadélfia,
1847, P.. 398. Ver também, adiante p. 406, nota 49.
• "r, too, shepherds, in Arcadia dwelt". (N. da T.)
8. LOVEJOY,A. O. & BOAS,G. Primitivism and Related Ideas
in Antiquity. Baltimore, r, 1935.

379
civilizada purgada de seus VICIOSo O outro, a forma
"dura" de primitivismo, concebe a vida primitiva qua-
se como subumana, cheia de incríveis dificuldades e
.destituída de todo conforto - em outras palavras,
como a vida civilizada despida de todas as suas vir-
tudes.
A Arcádia, como a encontramos em toda a lite-
ratura moderna e como a mencionamos em nossa con-
versa diária, cai sob a rubrica de primitivismo "suave"
ou da "era de ouro". Mas, da Arcádia que existiu na
realidade e de que falam os escritores gregos, quase
o oposto é verdade.
Na verdade, a Arcádia real era o domínio de
Pã, cuja avena era audível sobre o monte Maenalus 9,
e seus habitantes eram famosos por seus feitos musi-
cais, assim como por sua linhagem antiga, hospitali-
dade rústica e virtude inflexível; mas eram também
famosos por sua grande ignorância e baixo padrão de
vida. Como Samuel ButIer em sua primeira fase
sumarizaria na sua conhecida sátira contra o orgulho
ancestral:
The old Arcadians that could trace
Their pedigree from race to race
Before the moon, were once reputed
Of ali the Grecians the most stupid,
Whorn nothing in the world could bring
To civil life but fiddleing 10 *

E do ponto de vista puramente físico, essa terra


não dispunha de nenhum dos encantos que se costu-
ma associar à terra da beatitude pastoral perfeita.
PoIíbio, o mais famoso filho da Arcádia, embora faça
justiça à piedade simples e amor pela música reinantes
em sua terra natal, descreve-a como uma região pobre,
desolada, pedregosa e gelada, destituída de todas as
amenidades da vida e quase incapaz de produzir o
alimento para umas poucas cabras 11.
9. PAUSÂNIAS, Periegesis, VIII, 36, 8: "O monte Menalus era
consagrado especialmente a Pã, e o povo afirmava que ali se
podia ouví-Io tocando sua flauta".
10. SAMUELBUTLER,Satires and Misce!!aneous Poetry and
Prose, R. Lamar, ed. Cambr'idge, 1929. p. 470.
• Os antigos árcades, que podiam traçar/Sua origem de
raça em raça/ Ante a lua. foram outrora considerados os mais
estúpidos de todos os gregos.Z Que nada poderiam trazer I A
civilização a não ser a futilidade. (N. da T.)
11. POLiBIO,Historiae, IV. 20. Quanto a outros autores que
enfatizem os aspectos negativos da simplicidade primordial. ver.

380
Não é, pois, de admirar que os poetas gregos evi-
tassem usar a Arcádia para palco de suas pastorais.
A ação da mais célebre delas, os Idilios, de Teócrito,
passa-se na Sicília, que nesse tempo era tão dotada
desses prados verdejantes, bosques sombreados e bri-
sas calmas que faltavam tão conspicuamente aos "ca-
minhos desérticos" (William Lithgow) da verdadeira
Arcádia. O próprio Pã precisou viajar da Arcádia
para a Sicília, quando o Dáfnis de Teócrito, vendo a
morte chegar, quis devolver ao deus sua flauta 12.
Foi na poesia latina, e não na grega, que a gran-
de mudança se deu, e que a Arcádia penetrou no
palco da literatura mundial. Porém, mesmo aqui, po-
demos distinguir duas maneiras opostas de aborda-
gem, uma representada por Ovídio e outra por Virgí-
lio. Os dois basearam sua concepção da Arcádia, até
certo ponto, em PoIíbio; mas usaram-no de modo diâ-
metralmente oposto. Ovídio descreve os árcades co-
mo selvagens primitivos, representando ainda aquele
período "anterior ao nascimento de Júpiter e à cria-
ção da Lua", ao qual Samuel Butler alude:
Ante Jovem genitum terras habuisse feruntur
Arcades, et Luna gens prior illa fuit.
Vita ferae similis, nullos agitata per usus;
Artis adhuc expers et rude volgus erat 13.

"Crê-se que os árcades habitaram a Terra antes


do nascimento de Júpiter; sua tribo era mais antiga
que a Lua. Sua vida, ainda não modificada pela dis-
por exemplo. Juvenal. que caracterizava um orador particular-
mente maçante como um "jovem árcade" (Saturae, VII. 160) e
FILOSTRATO, Vita Apo!!onii, VIII. 7. que chama os árcades de
"porcos come dores de bolotas"; até mesmo suas qualidades mu-
sicais foram menosprezadas por FULGÊNCIO. Expositio Virgilianae
continentiae, 748. 19 (R. Helm, ed., Leípzig, 1898. p. 90) que por
Arcadicae aures (a forma Arcadicis auribus é portanto prefe-
rível a arcaicis auribus) queria significar "ouvidos não susce-
tíveis à verdadeira beleza". A questão. muito debatida. de
saber se existiu na Arcádia uma poesia bucólica ou pastoral
genuína antes do Idítios de Teócrito. parece agora ter sido resol-
vida de maneira negativa. Além da literatura citada na
obra de PANOFSKY."Et in Arcadia ego; On the Conception of
Transience in Poussin and Watteau". Phi!osophy and History,
Essays presented to Ernst Cassirer, R. Klibansky e H. J. Paton,
eds .• Oxford, 1936. p. 223 e ss.. ver também B. SNELL."Arkadien.
die Entstehung einer geistigen Landschaft". Antike und
Abend!and, I. 1944. p. 26 e ss. Um artigo de M. PETRICONI.
"Das neue Arkadien". ibidem. lII. 1948. p. 187 e ss.• não con-
tribui muito para a questão debatida nesse ensaio.
12. TEÓCRITO.Idílios. I. 123 e ss.
13. OViOIO. Fasti. H, 289 e ss.

381

ri
ciplina e educação, era semelhante à dos animais; era
uma gente grosseira, que ignorava a arte.': Ovídio
não faz menção do único aspecto positivo ~ sua mu-
sicalidade; fez a Arcádia de PoIíbio ainda pior do que
era.
Por outro lado, Virgílio a idealizava: não apenas
enfatizava as virtudes que a verdadeira Arcádia pos-
suía (inclusive o som eterno de cânticos e flautas,
não mencionado por Ovídio); acrescentava também
encantos que esta nunca possuíra: vegetação luxurian-
te, primavera eterna e tempo inexaurível para o amor.
Resumindo, transplantou as pastorais de Teócrito para
o que decidiu chamar de Arcádia, de modo que Are-
tusa, a ninfa-fonte de Siracusa, precisava vir em seu
auxílio na Arcádia 14, enquanto que o Pã de Teócrito,
como já dissemos antes, fora solicitado a viajar na
direção oposta.
Ao proceder assim, Virgílio realizou muito mais
que uma mera síntese do primitivismo "suave" e "du-
ro", dos pinheiros selvagens da Arcádia com os pra-
dos e bosques sicilianos, da virtude e piedade arcá-
dicas com a doçura e sensualidade sicilianas: transfor-
mou duas realidades numa Utopia, num reino suficien-
temente afastado da vida cotidiana de. Roma para
poder desafiar uma interpretação realista (os próprios
nomes dos personagens, assim como dos animais e
plantas, sugerem uma atmosfera irreal, distante, quan-
do as palavras gregas aparecem no contexto do verso
latino), porém bastante impregnado de concretude
visual para fazer apelo direto à experiência interior de
cada leitor.
Foi então que, na imaginação de Virgílio, e de
Virgílio somente, que o conceito da Arcádia, como o
conhecemos, nasceu - que uma região árida e gélida
da Grécia se transfigurou num reino de completa
beatitude. Porém, assim que surgiu essa nova e utópica
Arcádia, notou-se uma discrepância entre a perfeição
sobrenatural de um ambiente imaginário e as limitações
naturais da vida humana como ela é. É bem verdade
que as duas tragédias fundamentais da existência hu-.
mana, o amor frustrado e a morte, não se encontram
de maneira alguma ausente dos Idilios de Teócrito;
14. VmGÍLlo. i:clogas. X, 4-6.

382
ao contrário são fortemente acentuados e retratados-
com intensid~de obsedante. Nenhum leitor de Teócrito
poderá esquecer as monótonas e desesperadas invo~a-
ções de Simeta abandonada, que, na calada da noite,
fia sua roca mágica para reconquistar seu amante 15;
ou o fim de Dáfnis, destruído por Afrodite, porque
ousou desafiar o poder do amor-::'. 16 M as em T"t eocn o
essas tragédias humanas são reais - tão reais quanto
a paisagem siciliana - e são coisas do presente: . C.he-
gamos a testemunhar o desespero ~a bela feiticeira;
podemos na realidade OUVIr as ul!!ll!as. palavras ~,e
Dáfnis embora façam parte de um cãntico pastoral .
Na Sicília real de Teócrito, as alegrias e tristezas do
coração humano se complementam umas com as outras
um modo tão natural e inevitável quanto o sol e a
chuva o dia e a noite, na vida da natureza.
Na Arcádia ideal de Virgílio, o sofrimento hu-
mano e o ambiente sobrenaturalmente perfeito geram
uma dissonância. Tal dissonância, uma vez sentida,
tinha que ser solucionada, e o foi, ...a~ravés dessa mis-
tura de tristeza vespertina e tranqu!ll~ad;: q~e tal~ez
seja a contribuição mais pessoal de Virgílio a poesia.
Com pouquíssimo exagero pode-se dizer que, eI~ "des-
cobriu" a noite. Quando os pastores de Teocnto ter-
minam suas melodiosas conversas ao cair ~a no~te,
gostam de despedir-se com uma pequena brincadeira
sobre o comportamento dos bodes e cabras 17. No
final das Eclogas de Virgílio, sentimos a noite descen-
do silenciosamente, sobre o mundo: "lte domum
,
saturae, venit Hesperus, ite cape 11ae "18 ,ou "M ajores-
. res
que cadunt altis. de mon tib I us um b"rae 19 .
15. TEÓCRITO. Id!lios. n,
16. TEÓCRITO.Idílios. lI. .
17. TEÓCRITO.Idílios. I, 151 e s.: V, 147 e ss. .'
18. VIRGÍLIO, Éclogas, X, 77: HVenh~m para casa, Já tlvera;n
o bastante; a estrela da noite está aqui; venham, venham, mi-
nhas cabras". Cf. também Éclogas, VI, 84 e ss.:
Ille canit (pulsae referunt ad sidera valles),
Cogere donec ovís stabulis numerumque referre
Iussit et invito processit Vesper Olympo.
H[Silen01 canta, os vales ecoantes levam o som. até as estre-
las, até que Héspera ordena que os rebanhos sejam. recolhidos
aos estábulos e contados e, contra a vontade do Oltmpo, l?ros-
segue seu curso." O invito Olympo ("Olimpo" usado aqur e~
lugar de "os Olfmpíanos", como usamos "Krernltn" para Slg~U-
f;car o governo russo) tem que ser construido como um ablatívo
absoluto: os deuses lamentam que o progresso implacável da
estrela vespertina ponha fim ao canto de Sileno.
19. VIRGÍLIO,Éclogas, I, 83: "E lentamente caem as trevas
do alto das montanhas".

383
Virgílio não exclui a morte nem o amor frustra-
do; .mas os despoja, por assim dizer, de sua realidade.
~roJeta a tragédia, quer para o futuro, quer, preferen-
cialmente, para o passado, transformando assim a ver-
dade mítica num sentimento elegíaco. :É, justamente
esta des~oberta da elegia, abrindo a dimensão do pas~
sado e maugurando assim aquela longa linha de poe-
sia que culminaria em Thomas Gray, que torna as
pastorais de Virgílio, apesar de sua grande dependên-
cia do~ modelos gregos, uma obra de um gênio origi-
nal e Imortal. O motivo de Dáfnis, por exemplo, foi
usado por Virgílio em duas Éc!ogas, a Décima e
a Quinta. Porém, nos dois casos, a tragédia não mais
se nos. apresenta como realidade crua, mas é vista
através da suave, colorida névoa do sentimento ou
antecipatória ou retrospectiva. '

Na Décima Êcloga, o Dáfnis moribundo é arro-


jadamente - e não sem certo humor - transformado
numa pessoa real, o amigo e companheiro de Virgílio,
o poeta. E, enquanto o Dáfnis de Teócrito está mor-
rendo, realmente, porque se recusou a amar, o Galo
de Virgílio anuncia a um grupo de pastores e divin-
dades silvestres simpatizantes que morrerá porque sua
amante, Lícoris, o abandonou por um rival: ela ha-
bita o Norte lúgubre, mas está feliz nos braços de seu
belo soldado, Antônio; ele, Galo, está rodeado por
todas as beldades da Utopia, mas se perde em triste-
zas, confortando-se apenas com o pensamento de que
seus tormentos e desaparição final vão servir de tema
para uma nênia arcádica.
Na Quinta Ecloga Dáfnis conserva sua identida-
de; mas, e esta é a novidade - sua tragédia nos é
apresentada somente através das reminiscências ele-
gíacas de seus companheiros, que preparam uma ceri-
mônia em sua memória e estão erguendo uma lápide
para ele:

A lasting monument to Daphnis raise


With this inscription to record his praise:
"Daphnis, the fields' delight, the shepherds' love,

384
Renown'd 011 earth and deifi'd above;
Whose fIocks exceIled the fairest on the plains,
But less than he himself surpassed the swains" 20 *.

11

Portanto, aqui aparece, pela primeira vez, o "Tú-


mula na Arcádia", esta característica quase indispen-
sável da Arcádia na poesia e arte posteriores. Porém,
com a morte de Virgílio, este túmulo, e com ele .toda
a Arcádia do poeta, cairia no esquecimento por mui-
tos séculos. Durante a Idade Média, quando se pro-
curava a felicidade no além, e não em alguma região
da terra, por mais perfeita que fosse, a poesia pastoral
assumiu um caráter realístico, moralizador, e distin-
tamente não-utópico 21. As dramatis personae eram
"Robin" e "Marion" * * em lugar de "Dáfnis" e "Cloé";
e a cena do Ameto de Boccaccio, onde, pelo menos o
nome da Arcádia, reaparece depois de quase mil e
trezentos anos de esquecimento, passa-se perto de
Cortona, na Toscana. A Arcádia é representada ape-
nas por um emissário, por assim dizer, e este emis-
sário - chamado Alcesto di Arcadia - limita-se a
defender, segundo o costume dos "debates" conven-
cionais (concertationes ou conflictus), o ideal polibia-
no ou ovidiano de frugalidade simples e sadia contra
os encantos da riqueza e conforto decantados por seu
rival, Achaten di Achademia, da Sicília 22.
Entretanto, na Renascença, a Arcádia de Virgí-
lia - e não a de Políbio ou Ovídio - emergiu do
passado como uma visão encantada. Apenas, para o
pensamento da época, esta Arcádia não era tanto uma
utopia de felicidade e beleza distante no espaço, como

20. VIRGÍLIO, Éclogas, V. 42 e ss., aqui citado segundo a


tradução de Dryden.
• Em tradução livre: "Um último monumento a Dáfnis se
levanta/ Com esta inscrição para lembrar sua glória:/ "Dãfnis,
o deleite dos campos, o amor dos pastores.! Renomado na terra
e deificado no céu/ Cujos rebanhos eram os mais lindos da
planície/ Mas, menos que ele próprio, que era mais belo que
os cisnes". (N. da T.)
21. Para um breve sumário da evolução, ver L. LEVRAUT,
Le Genre .pastoral, Paris, 1914.
•• De "Robin Hood". (N. da T.)
22. BOCCACCIO. Ameto. V (ed. florentina de 1529, p, 23 e 55.).

385
I1
I
I
uma utopia de felicidade e beleza distante no tempo.
~omo toda a esf~r~ clássica, da qual se tomara parte
íntegrante, a Arcádia se tornou objeto dessa nostalgia
que distingue a verdadeira Renascença de todas as
outras pseudo ou proto-Renascenças que surgiram
durante a Idade Média 23: transformou-se num refú-
gio, não apenas de realidade truncada, mas também
e principalmente de um presente duvidoso. No auge
do Quatrocentos, houve uma tentativa para transpor
a brecha entre o presente e o passado através de uma
ficção alegórica. Lorenzo, o Magnífico, e Policiano
identificaram a villa dos Mediei, em Fiesole, com a
Arcádia, e seu próprio círculo com os pastores arcá-
dicos; e é nesta lenda cativante que se baseava o fa-
moso quadro de Signorelli - hoje, infelizmente, des-
truído - que era conhecido sob o título de Reino
de Pã24•

Logo, entretanto, o reino visionário da Arcádia


foi restabelecido como um domínio soberano. No
Ameto de Boccaccio fora configurado como um lar
distante, de rústica simplicidade, e os poetas da famí-
lia Mediei o usaram apenas como um disfarce clás-
sico de sua própria vida rural. Na Arcadia de Jacopo
Sannazzaro 25, de 1052, a ação se passa na própria
Arcádia, e esta é glorificada por si mesma; é revivida
como uma experiência emocional sui generis e sui
juris, em lugar de servir de pseudônimo clássico para

23. Cf. E. PANOFSKY, Renaissance and Renascences,


Kenyon Review, VI, 1944, p. 201 e ss.
24. Para uma análise da pintura de Signorelli, ver F. SAXL.
Antike Gõtter. in der Spiitrenaissance, Studien der Bibliothek
Warburg, VIII, Leipzig e Berlim, 1927, p. 22 e ss.
25. Sobre a Arcadia de .Tacopo Sannazzaro, ver a esclare-
cedora introdução de M. Scherillo para sua edição de 1888. O
poema de Sannazzaro - publicado primeiramente em Veneza,
em 1502 - baseia-se tanto em fontes italianas como clássicas
(Petrarca e Boccaccio de um lado, Virgílio. Políbio, Catulo,
Longo, Nemésio etc., de outro) ressuscitando, portanto, a con-
cepção virgiliana da Arcádia dentro dos limites de uma
Weltanschauung moderna, mais subjetiva. A obra de Sannazzaro
é a primeira pastoral pós-clássica a se passar realmente na
Arcádia, e é bem significativo que as poucas alusões à cena
contemporânea, a corte de Nápoles, foram acrescentadas ou,
pelo menos, tornadas explícitas apenas na segunda edição de
1504.

386
o próprio ambiente do poeta ou de seus patronos. A
Arcádia de Sannazzaro é, como a de Virgílio, um reino
utópico. Mas, além disso, um reino irrecuperavel-
mente perdido,visto através de um véu de melanco-
lia reminiscente: "La musa vera del Sannazzaro e Ia
malinconia", como diz um estudioso italiano 26. Re-
fletindo o sentimento de uma época que, pela primeira
vez, compreendera que Pã morrera, Sannazzaro cha-
furda nessas cerimônias e hinos fúnebres, nesses ane-
lantes cânticos de amor e lembranças melancólicas que
só apareciam ocasionalmente em Virgílio; e sua grande
predileção por rimas triplas, conhecidas tecnicamente
como drucciolo (algumas linhas deste gênero serão
melancólico. Foi por seu intermédio que este senti-
citadas mais tarde) dá a seus versos um lamento doce,
mento elegíaco - presente, mas, por assim dizer, pe-
riférico às Eclogas de Virgílio - tomou-se a quali-
dade essencial da esfera arcádica. Um passo a mais e
esse anseio nostálgico, mas ainda impessoal, por um
passado ideal de paz e inocência, aguçou-se numa
acusação amarga, pessoal, contra o presente real. A
famosa "O bell'età de 1'oro", na Aminta de Torquato
Tasso (1573) não é tanto um elogio da Arcádía quan-
to uma invectiva contra o espírito limitado e cons-
trangido da própria época de Tasso, o período da
Contra-Reforma. Os cabelos soltos e os corpos nus
são atados e escondidos, a conduta e o comportamen-
to perdem qualquer contato com a natureza; a pró-
pria fonte do prazer é poluída, a própria dádiva do
Amor é pervertida em roubo 27. Eis aqui o arroubo
de um ator a se apresentar diante das luzes da ribalta
e contrastando na presença de todos a miséria de sua
existência real com o esplendor de seu papel.

11I

Quase meio século mais tarde, Giovanni Fran-


cesco Guercino - e não Bartolommeo Schidone, como
26. A. SAlNATI,La lhica latina deI Rinascimento, Pisa, 1919,
!, p. 184, citado por SAXL, ibidem.
27. TASSO,Aminta, I, 2. (E. Grillo, ed., Londres e Toron-
to, 1924, p. 90 e ss.).

387
mencionam todos os "Dicionários de Citações Familia-
res" - elaborou a primeira representação pictórica
da Morte no tema da Arcádia (Fig. 90); é nesse qua-
dro, pintado em Roma entre 1621 e 1623 e hoje con-
servado na GalIeria Corsini, que encontramos, pela
primeira vez, a frase Et in Arcadia ego 28. Há razões
para se acreditar que o assunto fosse de especial inte-
resse para Giulio Rospigliosi (mais tarde Papa Clemente
IX), cujo palácio de família, que abrigava a Aurora
de Guido Reni, deve ter sido freqüentem ente visitado
por Guercino quando compôs sua própria e mais mo-
derna Aurora, no Casino Ludovisi; e é mesmo possível
que Giulio Rospigliosi - humanista, amante das artes
e poeta de não pequenos méritos - fosse o inventor
da famosa frase, que não é clássica e parece não ocorrer
na literatura antes de ter aparecido no quadro de Guer-
cino 29. Qual é, portanto, o sentido literal desta frase?
Como já foi mencionado no início, inclinamo-nos
hoje a traduzi-Ia como "Eu, também, nasci ou vivi na

28. o quadro de Guercino é mencionado. assim como o de


Schidone. por exemplo, em BÜCHMANN, loco cit.; BARTLETT,loco
cito (onde a inscrição da obra de Poussin que está no Louvre
é erroneamente mencionada como Et ego in ATcadia vixi); e
a New Cyclopedia of Poetical Quotations de HOYT (que traz
o texto certo mas o traduz como "Eu, também, estíva na
ArcAdia"). Sobre a atribuição correta da pintura, ver H. Voss,
Kritische Bemerkungen zu Seicentisten in den rõrníschan Ga-
lerien, em Repertorium !ür Kunstwissenschaft, XXXIV, 1911, p.
119 e ss. (p. 121).

29. Sobre Giulio Rospigliosi, ver L. VONPASTOR,The History


of the Popes, E. Graf, pr. XXXI, Londres. 1940, p. 319 e ss.;
a respeito de suas obras poéticas, G. CAVENAZZI, Papa Clemente
IX Poeta, Módena, 1900. Nasceu em Pistóla, em 1600; foi edu-
cado no colégio jesuíta de Roma, estudou subseqüentemente na
Universidade de Pisa, e ensinou Filosofia ali de 1623 a 1625 (o
que, é claro, não o impedia de visitar Roma de vez em quan-
do). Parece ter se estabelecido logo após em Roma (em 1629
compôs poemas sobre um casamento Barberini-Colonna) e obtrdo
altos cargos na Cúria em 1632. Depois de passar nove anos
como núncio papal 11a Espanha (1644-53), tornou-se governador
de Roma (1655), foi elevado a cardeal em 1657, eleito Papa
em 1667 e morreu em 1669. Que este culto e magnânimo prín-
cipe da Igreja - que foi o patrono da primeira "EXibição. dos
Antigos Mestres", organizada por seu irmão, no último ano de
seu papado (PASTOR,p. 331) - estivesse de algum modo envol-
vido com o tema Et in Arcadia ego é sugerido por uma pas-
sagem da Le vite de' pittOri, seultori, et arcltitetti moderni, de
G. P. EELLORI,Roma, 1672, p. 447. Depois de descrever a obra
de Poussin, Bailo della vita humana, hoje na Wallace Collection
de Londres, Bellori nos informa que o tema dessa morale poesia

388
89. Francesco Traini, Lenda dos três
(detalhe de mural). Pisa, Camposanto.
90. Giovanni Francesco Guercino. Et in Arcadia
Roma, Galleria Corsini. ego.
Arcádia". Isto é, presumimos que o et signifique
"também" e diga respeito ao ego; além disso, presu-
mimos que o verbo oculto esteja no passado; assim,
atribuímos a frase toda a um defunto habitante da
Arcádia. Todas essas hipóteses são incompatíveis
com as regras gramaticais latinas. A sentença Et in
Arcadia ego é uma dessas frases eIípticas como Sum-
mum jus summa iniuria, E pluribus unum, Nequid
nimis ou Sic semper tyrannis, nas quais incumbe ao
leitor suplementar o verbo. Esse verbo oculto deve,
portanto, ser sugerido inequivocamente pelas palavras
expressas, e isso significa que não pode nunca estar
no pretérito. ~ possível sugerir um subjuntivo, como
em Nequid nimis ("Que nunca se faça demais") ou
Sic semper tyrannis ("Que essa seja a sorte de todos
os tiranos"); também é possível, embora bastante in-
comum, sugerir um futuro, como na famosa frase de
Netuno "Quos ego" ("Desses me encarregarei"); mas
não é possível sugerir um tempo passado. Ainda mais
importante: o et adverbial refere-se invariavelmente ao

fora "sugerido pelo Papa Clemente IX, quando ainda prelado"


e continua dizendo que o pintor fez plena [ustiça à sublimità
deU'Autore che aggiunse le due seguenti invenzioni, a saber,
"La 'ventá scoperta deI Tempo" (provavelmente não idêntica à
pintura que hoje estã no Louvre, mas a uma outra versão,
transmitida através das gravuras citadas em Nicolaus Poussin,
de A. ANDRESEN; Verzeichnis der nach seinen Gemiilden gefer-
tigten Kupferstiche, Leípzíg, 1863,n. 407 e 408, o último dedica-
do a Clemente IX, e "La. Felicitá soggetta a Ia Morte", ou seja,
a composição Et in Arcadia ego. Salvo erro tipográfico (omis-
são de um si antes de che aggiunse), o "sublime" Autore men-
cionado só pode ser Giulio Rospigliosi (pois Poussin é citado
no começo da sentença como Niccolõ): segundo Bellori, foi
ele, Rospigliosi, "que juntou as duas seguintes invenções", ou
seja, acrescentou ao Ba!!o de lia vita humana, a Ventá scoperta
deI Tempo e o tema da Arcádia.
A dificuldade é que - como sabemos agora, enquanto que
Bellori provavelmente não o sabia - esse tema já fora trata-
do por Guercino, entre 1621 e 1623, quando trabalhava no seu
afresco da Aurora, no Casíno Ludovisi. O rápido relato de
Bellori talvez tenha simplificado uma situação que podemos
tentar reconstruir da seguinte maneira: Bellori sabia, por Pous-
sin, que Rospigliosi tinha encomendado a versão do Louvre do
Et in Arcadia ego e dito a Poussin que ele, Rospíghosi, era o
verdadeiro inventor do tema. Bellori entendeu que isto signi-
ficava que Rospigliosi havia "inventado" o tema quando orde-
nara a versão do Louvre; porém, o que Rospigliosi quisera
dizer era que sugerira o tema ao próprio Guercino (sem dúvida
um freqüentador habitual da Aurora de Guido Reni) e subse-
qüentemente pedira a Poussin que o repetisse numa versão me-
lhorada.

391
nome ou pronome que o seguem imediatamente (co-
mo em Et tu, Brute); isso significa que, no nosso
caso, se refere a Arcadia, e não a ego. É divertido
observar que alguns autores modernos, acostumados
com a interpretação agora familiar, mas abençoados
com uma percepção inata do bom latim - como, por
exemplo, Balzac 30, o romancista alemão C. J. We-
ber 31 e a excelente Miss Dorothy Sayers 32 - tro-
cavam, instintivamente, a citação Et in Arcadia ego
para Et ego in Arcadia. A tradução correta da frase
em sua forma ortodoxa não é, portanto, "Eu, tam-
bém, vivi ou nasci na Arcádia", mas sim "Até na
Arcádia eu estou", da qual devemos concluir que
quem fala não é um pastor ou pastora da Arcádia,
já morto, mas a própria Morte. Resumindo, a inter-
pretação de Jorge III é absolutamente correta do
ponto de vista gramatical; e, com relação ao quadro
de Guercino, também é absolutamente certa, do ponto
de vista visual.
Nessa pintura, dois pastores árcades são confron-
tados em suas perambulações pela súbita visão, não
de. um monumento fúnebre, mas de uma enorme ca-
veira humana, que se encontra sobre uma pequena
construção esboroada e recebe as atenções de uma
mosca e um rato, símbolos populares da decadência
e do tempo que tudo devora 33. Incisas na alvenaria
estão as palavras Et in Arcadia ego, e a sugestão é,
30. BALzAc,Madame Firmiani: ";r 'ai aussi aímé, ct ego tn
Areadia".
31. C. ;r. WEBER,Demokritos oãer hintertassene Papiere
eines taehenden PhUosophen, s.d., XII, 20, p. 253 e ss.: "Grãber
und Urnen in englischen Gãrten verbreiten die nâmlíche sanfte
Wehmut wie ein Gottesacker oder ein 'Et ego in Arcadia', in
einer Landschaft von Poussin", e a mesma interpretação er-
rônea, agora já explicada, aparece nas primeiras edições do
GefWgette Worte, de Büchmann (na 16. edição, por exemplo,
p. 582).
32. DOROTHY SAYERS,"The Bone of Contention", em Lord Peter
Views the Body (Harcourt Brace and Co., N. Y.) p. 139. Este
gosto pela gramática latina parece muito difundido entre os
escritores ingleses de estórias de mistério. No Livro de NICHOLAS
BLAKE,Thou SheU ot Death, XII (Continental Albatross Edition,
1937), p. 219, um velho nobre diz: "Et ego, Superintendent, in
Areadia vixi - what?"
33. O rato como um símbolo do tempo devorador já é
apontado na Hierogtyphica de HORAPOLO, I, 50 (hoje facilmente
acessível na obra de G. BOAS,The Hierogtyphics ot HorapoUo
[Bollingen Series, XXIIIl, Nova York, 1950, p. 80) e assim con-

392
sem dúvida, que a própria caveira as pronuncia. Uma
velha descrição do quadro, erroneamente, mas co~..j
preensivelmente, chega a inscrevê-Ias num pergann-
nho saindo da boca da caveira 34. Ora, a caveira em
e é o símbolo aceito da Morte personificada, como é.
corroborado pelo fato de a língua inglesa se lhe reíe-
rir não como "a cabeça de um morto", mas como "a
cabeça da Morte". A caveira falante era assim uma ca-
racterística comum da arte e literatura dos séculos XVI
e XVII 35, e até Falstaff a ela alude (Henrique IV, se-
tinuou durante séculos (cf. a alegoria medieval da vida huma~a
conhecida como "A Arvore de Barlaam"; segundo C~NDIVI.' Vtta
di Miehetangeto, Capo XLV, Michelangelo pretend:a mclu~r um
rato na iconografia da Capela Mediei). Visto poy mero da
"ironia romântica", o motivo do ~uadro. de Guercmo. ,as~ume
a seguinte feição: "Ein gar herrhch.~s Memento m.on 1St...
ein hübscher gebleiehter Menschenschadet auf der TOll~tte. So
ein leerer Hirnkasten... müsste Wunder tun. wenn .. díe Macht
der Gewohnheit nícht noch stãrker wãre ... Man wur.de zutetzt
das Dasein des Totenschãdels ganz vergessen, wenn ntcnt S~hO;!
zu Zeiten eine Maus ihn wieder Ieberidrg gemacht... hatte
(C. J. WEBER,loco cít.) .
34. LESLIEe TAYLOR, Ioc. cít., com r~speito ao re!rato das
Sr."' Bouverie e Crewe: "O tema é extraI do de uma pintura de
Guercino onde alegres passantes tropeçam ~uma <;avelra de
cuja boca sai um pergaminho onde está escrtto Et tn Arcadta
ego". O "pergaminho" que supostamente sal da .boca da ca-
veira se deve, obviamente, a um modo mexato d~ mt.erpretar o
rabo do rato. Entretanto, como não conheço,. mfellzmente, o
esboço de Reynolds (não foi possível .locahzar o Roman
Sketchbook que antes pertencia a R. Gwatkm, cf, LESLIE e TAYLOR,
op. cit., I, p. 51), não posso dizer se foi Reynolds que entendeu
mal o quadro ou se Tom Taylor entendeu mal o esboço. De
qualquer modo, essa interpretação errônea serve para. most~ar
que, em época relativamente r.ecente,. um observador írrrpar'cíal
da obra de Guercino presumiu. muito naturalmente, que. as
palavras Et ir. Arcadia ego fossem p~onunciadas pela caverra,
35. Quanto à Significação de cayeuas e e~queletos em co-
nexão com a concepção geral de VIda e destmo, cf. R. ZAHN,
81. Ber!iner Wincketmanns-Programm, 1923; T.. CREIZENACH,
"Gaudeamus igitur" Verhand!ungen der 28. VersammLttng
Deustcher PhitotOge,{ und Schu!miínner, Leipzig, 1872;.. C. H.
BECKER, "Ubi sunt qui ante nos in mundo. fuere?", Aufsatze zur
KuUur- und Sprachgeschichte, vornehmhch des Istam, Ernst
. Kuhn zum 70. Geburtstage gewidmet, 1916, P; 8? e ss. Parece
que o significado original desses símbolos mórbidos, 9.ue apa-
reciam em taças e decorações de mesa antes. ~e sur grrem n.Qs
monumentos fúnebres, era puramente hedonístíco, um c.onvl~e
para se gozar os prazeres da vida enquanto d~rassem, e ~o m~ls
tarde passaram a ter uma significação moralísta, de .reSlgnaç~~
e penitência. Essa evolução se deu no Egl~O. antigo, .as:;!
como nas civilizações que derivaram da An~lgUld::dedclas.s~~~~
tanto oc'dentais como orientais. Nessas, a. mversac:: . a 1 ~
original 'se deveu principalmente aOS eSCrItos patrrstícos. ba
verdade a idéia da Vita brevis caracteriza-se por uma aI? 1-
valênci; intrínseca, in;'p.licando tant°st o C:~i:s ~;r~ãod~r~~~CIcf~
como o surge, surge, v'l.gtla, semp~r ~ o pa . i
um hino de 1267). A artir da últíma fase da Idade. Média, .?S
esqu';letos e 'caveiras falantes se tornaram um slmbolo. tao
comum da idéia do memento mori (r:o sentido camaldulenslano
dessa frase) que estes motivos ínvadíram quase todas as esfe-

393
gunda parte, II, 4), ao responder às. bem intenciona-
das admoestações de DoU Tearsheet, quanto à sua
conduta: "Paz, boa DoU, não me fale como uma
caveira (deaih's head); não me obrigue a lembrar
meu fim" *.
Esse "lembrar meu fim" é exatamente a mensa-
:;em do quadro de Guercino. Transmite mais a idéia
de um aviso que de doces e tristes lembranças. Tem
pouco, ou quase nada de elegíaco, e quando tentamos
determinar seus antecedentes iconográficos, encontra-
mo-los em representações moralistas tais como as
interpretações pictóricas da Lenda dos três vivos e
dos três mortos ( conhecidas de todos devido ao
Camposanto de Pisa), em que três jovens cavalheiros,
saindo para uma caçada, se defrontam com três ca-
dáveres que se levantam de seus caixões e advertem
os elegantes jovens contra o gozo impensado da vida
(Fig. 89). Assim como esses jovens nobres medie-
vais são detidos pelos caixões, também os pastores da
Arcádia o são pela caveira, no quadro de Guercino;
a antiga descrição, que mencionamos acima, se refere
a eles como "dois brincalhões tropeçando numa ca-
veira" 36. Em ambos os casos, a Morte pega os jovens
de surpresa "fazendo-os se lembrarem do fim". As-
sim, o quadro de Guercino se revela como um me-
mento mori medieval, sob um disfarce humanístico
-- um conceito favorito da teologia moral cristã trans-
portado para o ambiente ideal das pastorais clássicas.

ras da vida cotidiana. Inúmeros exemplos podem encontrar-se.


não apenas na arte sepulcral ou fúnebre (principalmente em
inser-ções como Vixi ut vivis, moriem ut sum rnortuus ou Tales
vos eritis, [uerarn. quandoque quod estis) como também em
retratos, relógios, medalhas e especialmente em anéis (muitos
exemplos citados na ed.ção londrina de Shakespeare, de 1785,
com referência ao notório diálogo entre Falstaff e Doll
Tearsheet) . Por outro lado, a ameaça da "caveira falante"
também podia ser interpretada como uma perspectiva feliz de
vida futura, como é o caso de uma breve estância de um poeta
alemão do século XVI, D. C. Lohenstein, na qual o Redender
Todtenkopff des Herrri Matthiius Machners diz: Ja/ wenn der
Hochste wird vom Kircti-Hoj erndten ·ein/ So werd ich Todten-
-Kopff ein Englisch Antliz seyn (citado em W. BENJAMIN, Ursprung
des deutschen Trauerspieis, 1928, p. 115).
• "Peace, good Doll, do not speak like a death's head; do not
bid me remember my end". (N. da T.)
36. Ver a passagem citada na nota 34.

394
91 Nicolas poussin. Et in Arcadia ego, <?h~tsworth, De-
vo~shire Collection. Reproduzida com permlssao dos Trus-
tees of the Chatsworth Settlement.
92. Nicolas Poussin. Et in Arcadia ego, Paris, Louvre.
93. Giovanni Battista Cipriani. Morte mesmo lia Arcâdia.
Gravura.

94. Georg Wilhelm Kolbe. Também eu, estive lia Arcádia,


Gravura.
Ac~nte~e que, ~omo sabemos, Sir Joshua Rey-
nolds nao so conhecia, como também chegou a fazer
alguns esboços do, quadro de Guercino (atribuindo-o
corretamente ao seu verdadeiro autor, e não a Bar-
tolommeo Schidone) 37. :f; uma suposição razoável a
de que tenha se lembrado dessa pintura ao incluir o
moiivo. do Et in Areadia ego no seu retrato das Sr.8S
B~uvene e Crewe; e essa ligação direta com a pró-
pna fonte _da frase talvez se deva ao fato de que a
interpretação gramatical correta (como "Mesmo na
Arcá~ia, e~, a Morte, mantenho o poder"), embora,
de.. ha mUI~o esquecida na Europa, continuasse fa-
miliar ao CIrculo de Reynolds e, mais tarde, se tor-
nas~ parte do. que é possível chamar de tradição es-
pecificamente inglesa ou "insular" - uma tradição
q.ue tendia a reter a idéia de um memento mori. Já
VImos que o próprio Reynolds seguiu a interpretação
correta da frase latina, e que o Rei Jorge lU compreen-
deu-a .prontamente. Além disso, dispomos de uma
composição Et in Areadia ego, de Giovanni Battista
Cipriani (Fig. 93), nascido em Florença mas residen-
te na Inglaterra desde o final de seu aprendizado até
sua morte em 178538, que mostra o emblema da
Morte, a caveira e os ossos, encimado pela inscrição
Ancora in Arcadia Morte, que significa "Até na Ar-
cádia ~xiste. a Morte", precisamente como o Rei Jorge
III a traduzira. Mesmo 9 iconoclasmo irônico de nos-
so próprio século ainda se baseia, na Inglaterra, na
concepção original e sinistra do tema do Et in A rca-
dia ego. Augustus John, que gosta de chamar os
retratos de jovens negras com nomes arcádicos como
"Dáfnis", "Fílis" ou mesmo "Aminta", fixou o título
Atque in Arcadia ego (o atque inortodoxo expressan-
do o "mesmo" ou "até" ainda mais enfaticamente
37. Ver LESLIEe TAYLOR.op. cít., p. 260: "Encontro um
esboço do quadro de Guercino no caderno romano de Rey-
nolds". Foi, obviamente, deste esboço, trazendo provavelmen-
te a nota explícatíva habitual que Tom Taylor soube do qua-
dro de. Corsini e de seu autor, e tão surpreendente foi este seu
conhecímento que um seu biógrafo, ulterior, ignorando com-
pletarnente a existência do quadro de Guerclno, se aventurou a
afírmar que Reynolds fora Inspirado por Poussin (W. ARMS-
TRONG, Joshua Reynolds, übersetzt von E. von Kraatz, s.d., p. 89).
38. Cipriani realizou. entre outras coisas, as ilustrações da
fa~osa edição de Ariosto, feita pela Baskerville Press, em Bir-
mingham, 1773.

398
que o et ortodoxo) a uma cena mórbida. em que a
Morte assume a forma de um horrível músico 39; e
no Brideshead Revisited de Evelyn Waugh, o narra-
dor, um sofisticado estudante de Oxford, enfeita seu
quarto na Universidade com uma "caveira humana,
comprada na Escola de Medicina, que, descansando
num vaso de rosas, constituía no momento a princi-
pal decoração da minha mesa. Trazia, inscrito na tes-
ta, o mote Et in Areadia ego",
Entretanto, Cipriani, embora fiel à tradição "in-
sular" na tradução da frase latina, foi buscar noutra
fonte elementos para sua composição pictórica. In-
teiramente eclético, expandiu a paisagem e acrescen-
tou ovelhas, cães e fragmentos de edificações clássi-
cas; introduziu mais sete figuras de um caráter que,
em termos gerais, podemos considerar rafaelesco
(cinco delas mulheres); e substituiu a alvenaria sem
arte e a "cabeça da morte" de Guercino por um tú-
mulo elaboradamente clássico, com a caveira e ossos
entalhados na própria peça.
Assim procedendo, esse artista quase medíocre
mostra-se conhecedor das inovações do homem cujos
quadros assinalam o ponto de conversão na história
do tema Et in Arcadia ego: o grande pintor francês,
Nicolas Poussin.

TV
Poussin chegou a Roma em 1624 ou 1625, um
ou dois anos depois que Guercino a deixara. Alguns
anos mais tarde, presumivelmente em 1630, produ-
ziu a primeira das suas duas composições sobre o'
tema Et in Arcadia ego, hoje na Devonshire Collec-
tion, em Chatsworth (Fig. 91). Sendo clássico (embo-
ra num sentido muito especial) e provavelmente
conhecedor de Virgílio, Poussin modificou a compo-
sição de Guercino, acrescentando o deus-rio arcádico,
Arfeu, e transformando a alvenaria em ruínas num
39. 3". ROTHENSTEIN,Augustus John, Oxford, s.d., Fig. 71.
Os retratos de negros a que nos referimos são ilustrados ali,
nas Figs. 66, 67 e 69. Segundo uma carta de Sir 3"ohn Rothens-
tein, os títulos dados às obras de Augustus John em seu livro
foram-lhe fornecidos, oralmente, pelo artista.

399
sarcófago clássico onde aparecem inscritas as pala-·
vras Et in Arcadia ego; além disso, enfatizou as im-
plicações amorosas do ambiente da Arcádia adicio-
nando uma pastora ao lado dos dois pastores. Mas,
apesar dessas melhorias, o quadro de Poussin não
esconde a sua dívida para com a obra de Guercino.
Em primeiro lugar, mantém, até certo ponto, o ele-
mento de surpresa e drama: os pastores se aproxi-
mam em grupo, vindo da esquerda, e são inespera-
damente detidos pelo túmulo. Em segundo lugar, ain-
da existe uma caveira, colocada sobre o sarcófago,
logo acima da palavra Arcadia, embora esta tenha se
tornado tão pequena e inconspícua a ponto de não
chamar a atenção dos pastores que - um sintoma
revelador das inclinações intelectuais de Poussin _
parecem estar bem mais interessados na inscrição do
que chocados com o símbolo da Morte. Em terceiro
lugar, o quadro também transmite, embora de um
modo menos importuno que o de Guercino, uma men-
sagem admoestadora ou moral. Era, oríginalmente, uma
réplica do Midas Lavando o Rosto no Rio Pactolo
(hoje no Metropolitan Museum de Nova York), cuja
figura iconograficamente essencial do deus-rio Pac-
tolo explica a inclusão no quadro da Arcádia do seu
correspondente, o deus-rio Alfeu, aqui muito menos
necessária 40.
Assim, as duas' composições, em conjunto, ensi-
nam uma dupla lição, uma advertindo contra a louca
procura da riqueza, a expensas de valores maiores
da vida; a outra, contra o gozo irrefletido dos praze-
res que logo terão fim. A frase Et in, Arcadia ego
ainda pode aqui ser entendida como sendo pronun-
dada pela Morte personificada, e continua podendo
ser traduzida como "Também na Arcádia, eu, Morte,
tenho poder", sem entrar em desacordo com o que
.a pintura mostra.

40. A ligação entre a primeira composição Et in Arcadia


ego de Poussín, ou seja, o quadro que pertencia ao Duque de
Devonshire, e o quadro nova-iorquino de Midas foi reconhecida
e analisada cabalmente por A. BLUNT,na Poussin's "Et in Arcadia
ego", Art Bu!!etin, XX, 1938, p. 96 e SS. Blunt data a versão do
Duque de Devonshrre de cerca de 1630, opinião com a qual
estou agora inclinado a concordar.

400
Passados uns cinco ou seis anos, entretanto,
Poussín produziu outra versão, esta final, do ten;ta
Et in Arcadia ego, o famoso quadro do Louvre (Fig.
92) . E nessa obra - não mais um memento mort
investido de garbo clássico, .acompanhado de um cave
avaritiam, também em pompa clássica, mas ,:alendo
por si mesmo - podemos observar Un;trompimento
radical com a tradição moralizante medieval, Os ele-
mentos do drama e da surpresa desapareceram. Em
lugar de dois ou três árcades que .se a~roximam ~m
grupo, da esquerda, temos 'quatro, slmetncam~nte dIS-
postos nos dois lados de um monumento sepulcral.
Em vez de confrontados, em seu caminho por um
fenômeno aterrador, encontram-se ~bs~rvidos numa
.discussão calma e contemplação medltat.1Va. Um dos
pastores 'ajoelha-se no chão, como se estivesse .relen~o
a inscrição para si mesmo. O segundo pa~ece dIS-
cutir o texto com uma bela jovem que med~ta sobre
ele numa atitude pensativa, calma. O t~rceHo, p~e-
ce imerso em melancolia. A forma do tumulo, e ~Im-
plificada num simples bloco retangular, que e Visto,
não mais em perspectiva, porém paralelamente a.o pla-
no do quadro, e a caveira é completamente elimina-
da.
Aqui, portanto, temos uma mudança básica de
interpretação. Os árcades não parecem tanto estar
sendo advertidos sobre um futuro implacável quanto
estar imersos numa doce meditação acerca .da beleza
do passado. Parecem pensar menos em SI mesmos
que no ser humano enterrado no túmulo - um ser
que desfrutara outrora dos mesmos prazeres que eles
agora e cujo monumento "os força a se lembrarem
do próprio fim" apenas até. o ponto em _que evoca
a lembrança daquele que fOI o que eles sao. Resu-
mindo: o quadro de Poussin que, ~stá no Louvre
não mostra mais um encontro dramático com a Mor-
te e sim uma absorção contemplatíva na idéia da
imortalidade. Confrontamo-nos com a mudança de
um moralismo finamente velado para um sentimento
elegíaco evidente.
Esta mudança geral no conteúdo - levada a
cabo por todas essas mudanças individuais de formas

401
e motivos já mencionados e básicos demais para se-
rem atribuídos ao hábito de Poussin de estabilizar e,
até certo ponto, tranqüilizar a segunda versão de uma
obra anterior sobre o mesmo tema 41 - pode expli-
car-se . por um grande número de razões. Concorda
com o espírito mais descontraído e menos atemori-
zado de um período que havia emergido, triunfante-
mente, dos espasmos da Contra-Reforma. É condi-
zente com a teoria de arte classicísta que rejeitava
l~s objets bizarres, principalmente objetos tão repul-
SIVOS como uma caveira 42. E foi facilitada, se não
causada, pela familiaridade de Poussin com a Iitera-
.tura arcádica, já 'evidente ITlO'quadro de Chatsworth,
onde a substituição de simples edificação de Guercino
P?r um sarcófago clássico pode bem ter sidO' suge-
rIda, pelo túmulo de páf.nis 'na Quinta Ecloga de
Vlrgíljo. Mas, a impressão reverente e melancólica
da obra. do Louvre, e mesmo um detalhe como a
form~ simples, retangular do túmulo, parecem evi-
I I denciar um contacto recente com Sannazzaro. Sua
descrição do "Túmulo da Arcádia" - que, caracte-
nstícamente, não mais encerra o corpo do relutante
Dáfnís, mas sim o de 'uma .pastora, -não menos relu-
tante, chamada Fílis - prenuncia a situação visua-
lizada na última composição de Poussin:

.................. faro fra questi rustici


La sepoltura tua famosa e celebre.
Et da' monti Thoscaní et da' Ligustici
Verran pastori ad venerar questo angulo
Sol per cagion che alcuna volta fustici
Et leggeran nel bel sasso quadrangulo
11 titol che ad tutt'hore il cor m'infrigida,
Per cui tanto dolor nel petto strangulo:
"Quella che ad Meliseo si altera et rigida
Si mostro sempre, hor mansueta et humile
Si sta sepolta in questa pietra frigida" 43.

41. A importância desse hábito é, na minha opinião, um


tanto superestImado, em J. KLEIN, An Analysis of Poussin's
"Et in Arcadia ego", Art Bul!etin, XIX, 1937, p. 314 e ss.
42. Ver, por exemplo, H. JOUIN, Conférences de ('Académie
Royale de Peinture et de Sculpture, Paris, 1883, p. 94.
43. SANNAZZARO, ATeadia (Scherillo, ed.,) p. 306, linhas 257-67.
Outros túmulos aparecem no poema de Sannazzaro na p. 70,
linha 49 e ss. e p. 145, linha 246 e ss. (uma tradução literal de
VIRGfr.IO,ÉClogas, X, 31 e 5S.).

402
"Farei teu túrnulo renomado e célebre entre esta
gente rústica. Pastores virão das colinas da Toscana
e Ligúria para adorar este canto do mundo somente
porque tu aqui viveste. E lerão no belo monumento
quadrado a inscrição que me enregela o 'coraçãO' a
todas as horas, que me faz estrangular tanta dor den-
tro do peito: 'Aquela que sempre se mostrou tão
altiva e fria para com Meliseu, agora jaz aqui, mansa
e humilde, nesta fria pedra'''.
Estes versos não antecipavam apenas a forma
simples e retangular do túmulo pintado por Poussin
no quadro do Louvre, que chama a nossa atenção
como ilustração direta do bel sasso quadrangulo de
Sannazzaro; concordam, engraçadamente, com O' hu-
mor estranho, ambíguo do quadro - com essa me-
ditação sobre a mensagem silenciosa de um ser que
já foi: "Eu, também, vivi na Arcádia, onde hoje
vives; eu, também, gozei dos mesmos prazeres que
gozas hoje; eu, também, fui duro e impassível quando
deveria mostrar compaixão, Agora estou morto e
enterrado". Parafraseando, assim, segundo Sannazza-
ro, o significado do Et in A rcadia ego, como aparece
nO' quadro de Poussin que hoje está no Louvre, fiz O'
que quase todos os outros intérpretes continentais
fizeram: distorci o sentido original da inscrição para
adaptá-Ia à nova. aparência e conteúdo do quadro;
pois não há dúvida de que esta frase, traduzida corre-
tamente, não se harmoniza mais com o que vemos
com nossos olhos.
Se lida de acordo com as regras da gramática
latina ("Mesmo na Arcádia, também estou") a frase
só é coerente e facilmente inteligível enquanto as pa-
lavras puderem ser atribuídas a uma caveira e os pas-
tores forem súbita e assustadoramente detidos em
seu caminho. Isso acontece no quadro de Guercino,
onde aocaveira é a figura mais proeminente da oom-
posição e onde o impacto psicológico ainda não foi
amortecido pela concorrência de um belo sarcófago
ou tumba. Também se aplica, embora em grau con-
sideravelmente menor, ao quadro anterior de Poussin,
onde a caveira, conquanto menor e subordinada ao
recém-introduzido sarcófago, continua em evidência,
e onde se conserva a idéia de uma interrupção súbita.

403
Entretanto, ao observar a obra da, Louvre, oes-
pectador acha difícil aceitar a inscrição em sua sig-
nificação literal, gramaticalmente carreta. Na ausên-
cia da caveira, cumpre considerar o ego do Et in Ar-
cádia ego como referindo-se ao próprio túmulo. Em-
bora a imagem de um "túmulo falante" ocorresse na
poesia funer~ria da época, era coisa tão pouco co-
mum que Michelangeln, que a usou em três dos seus
cinqüenta epitáfios de um bela jovem, achou neces-
sár~io 'es:cIarecer .0 leitor com uma observação expli-
cativa dizendo que, nesse caso, era, excepcianalmente,
"o túmulo que se dirige ao Ieitor desses versos'?«.
É muito mais natural atribuir as palavras não ao
túmulo, mas à pessoaencerrada nele. É o caso de
nov~nta e nove por cento de todos os epitáfios, in-
clusive o das inscrições do túmulo de Dáfnis em
Virgílio, e as da de Fílis, em Sannazzaro: e a obra de
Poussin do Louvre sugere essa interpretação familiar
-. que, por assim dizer, projeta a mensagem da frase
latina do presente para a passado - tanto mais obri-
gatoriamente quanto o comportamento das persona-
gens não dá mais a idéia de surpresa e temor e sim
de meditação serena e reminiscente. '
Assim, o próprio Poussin, sem efetuar qualquer
mudança verbal na inscrição, convida, quase compele,
a espectador a traduzir de maneira errônea, relacio-
nando o ego a uma pessoa morta e não ao túmulo
ligando o et. ao ego, em lugar de Arcadia, e suprindo
a verba omisso na forma de vixi ou fui, em vez de
sumo O desenvolvimento dessa visão pictórica ultra-
passou a significado da fórmula literária e podemos
dizer que aqueles que, sob o impacto da obra do Lou-
vre, decidiram interpretar a frase Et in Arcadia ego
como "Eu, também, vivi na Arcádia" em vez de
"Mesmo na Arcádia, também estou", violentaram a
gramática latina, mas fizeram justiça ao novo signifi-
cada da composição de Poussin.

44. Ver a discussão entre W. WElSBAeH, "Et in Arcadia ego"


Gazette a..~sBeaux-Arts! série 6. XVIII, 1937, p. 237 e ss., e est~
e~c~Itor, Et m Arcadia ego ' et le tombeau parlant", ibidem,
serre 6, XIX, 1938, p. 305. Sobre os três epitáfios de Miche-
langelo nos quais o próprio túmulo se dirige ao espectador
(':La sepoltura paria a chi leg~e questi versi"). ver K. FREY,
Dte D,chtungen des M,ehelangmolo Buonaroti Berlim 1897 n.
LXXVII, 34, 38, 40. " ,

404
Na verdade, pode-se provar que esta [elix culpa
foi cometida no próprio círculo de Poussin. Seu amigo
e primeiro biógrafa, Giovanni Pietro Bellori, fizera,
em 1672, uma interpretação perfeitamente exata e COf-
reta da inscrição quando escreveu: "Et in Arcadia
ego cioê, che il sepolcro si trova ancora in Arcadia,
e Ia Morte a luogo in mezzo le felicità" 45 ("Et in
Arcadia ego, o que significa que se encontram túmulos
(tempo presente!) mesmo na Arcádia e que a morte
ocorre em meio à felicidade"). Porém, foi somente
alguns anos mais tarde (1685) que a segundo biógra-
fo de Poussin, André Félibien, que também o conhe-
cia, deu o primeiro ,e decisivo passo no caminho do
mau latim e boa análise artística: "Par cette inscrip-
tion", diz ele, "on a voulu marquer que celui qui est
dans cette sépoulture a vécu en Arcadie et 'que Ia mort
se rencontre parmi les plus grandes félicités" 46 ("Com
esta inscrição quis-se eníatizar que aquele que está
dentro desta sepultura viveu na Arcádia e que a mor-
te é encontrada no meio 'das maiores felicidades").
Aqui, portanto, temos o ocupante do túmulo substi-
tuído pelo próprio sepulcro e a frase toda projetada
para o passado: o que era uma ameaça tornou-se
uma recordação. Daí em diante a evolução continuou
para sua conclusão lógica. Félibien não dera atenção
ao et; deixara-o simplesmente de lado, e essa versão
abreviada, singularmente retraduzida para o latim, so-
brevive na inscrição de um quadro de Richard Wil-
son, pintado em 1755, em Roma: "Ego fui in Arca-
dia". Cerca de trinta anos depois de Félibien (1719),
o Abbé du Bos interpretou o et como o advérbio
"cependant": "Je vivais cependant en Arcadie" 47, que
sizuifica "E no entanto eu vivia na Arcádia". O
toque final foi dado pelo grande Diderot que, em
1758, ligou firmemente o et ao ego, 'interpretando-o
por aussi: "Je vivais aussi dans Ia délicieuse Arca-
45. BELLORI, G. P. Loc. cito
46. .N.. FÉLIBIEN, Entretiens SUT les vies et les oW~Tages des
peintres, Paris. 1666-1685 (na edição de 1705,. IV. p. 71); cf.,
também. a inscrição da gravura de Bernar~ Picart baseada no
quadro do Louvre de Poussin tal como CItada por ANDRESEN,
op. cit., n. 417.
47. ABBÉ DU Bos, Réflexions critiques sur Ia poésie et sur
ta peinture (primeira publicação em 1719), I, secção VII, p. 353;
na edição de Dresden de 1760, p. 48 e ss.

405
díe" 48, "Eu VIVIa, também, ma deliciosa Arcádia".
Sua tradução deve ser considerada como a fonte
literária de todas as variações posteriores hoje em
uso, inclusive' as de Jacques DelilIe, Johann Georg
Jacobi, Goethe, Schiller e Srl!-Felicia Hemans 49.
Assim, enquanto - como vimos - o signifi-
cado original do Et in Arcadia ego sobreviveu preca-
riamente nas Ilhas Britânicas, a evolução geral fora
da Inglaterra resultou na aceitação quase universal
do que se pode chamar de interpretação elegíaca in-
troduzida pelo quadro do Louvre de Poussin. E na
própria pátria de Poussin, a França, a 'tradição hu-
manística havia decaído tanto durante o século XIX
que Gustave Flaubert, o grande contemporâneo dos
48. DIDEROT, "De. Ia poésle dramatlque", Oeuvres completes,
J. Assézat, ed., Paris. 1875-1877,VII, p. 353. A descrição de
Dlderot da pintura em si é significativamente inexata: "Tl y a
un paysage de Poussin ou 1'0n voit des jeunes bergéres qui
dansent au son du chalumeau(!); et à I'écart, un tombeau
avec cette inscription 'Je vivais aussi dans !a dé!icieuse Arcadie'.
Le prestíge de style dont il s'agit, tient quelquefois à un mot
qui detourne ma vue du sujet principal, et qui me montre de
cõté, comme dans le paysage du Poussin, I'espace, le temps,
Ia vle, Ia mort ou quelque autre idée grande et mélancholique
jetée toute au travers des imagens de Ia galeté" (cf. também
outr,~ referência ao quadro de Poussln em Diderot, "Salon de
1767 , Oeuvres, XI, p. 161; mais tarde o aussi deslocado tornou-
-se tão comum na literatura francesa quanto o auch, na Alema-
nha: como O Et moi, aussi, je fus pasteur dans !' Arcadie de
DellIle bem ilustra). O quadro descrito por Diderot parecia
concordar com sua conhecida teoria dos' contrastes dramatiques
porque Imaginava que apresentasse os pastores dançando ad
som de uma flauta. Esse erro é devido, ou a uma' confusão
com outras obras de Poussln, tais como a Bacana!. da National
GaIlery de Londres, ou à Festa de Pá, da Cook Collectlon, de
Rlchmond. ou à Influência de uma pintura posterior tratando
do mesmo tema. Angelica Kauffmann. por exemplo, exibiu
em 1766 um quadro descrito da seguinte forma: "um pastor e
lima pastora da Arcãdla meditando ao lado de um sepulcro
enquanto outros dançam a distância" (cf. LADY VICTORIA
MANNE1IS e DR. W. C. WILLIAMSON, Ange!ica Kauffmann Lon-
dres, 1924, p. 239; também LzsLIE e TAYLOR, p.
op. clt .. I, 260).
49. Sobre Jacques Delille, Goethe e Schiller, ver acima.
notas 5 e 6. Quanto à Sr.- Felicia Hemans (d. nota 7). a
divisa, que surge no seu poema parece confundir o quadro
do LOuvre de Poussln com uma ou mais de suas futuras va-
rlações: "Um célebre quadro de Poussln representa um bando
de jovens pastores e pastoras repent.namente surpreendidos
em meio a suas perambu1ações e afetados por emoções vArias à
vista de um túmulo que traz a Inscrição 'Et In Arcadla ego'''.
No poema propriamente dito a Sr.- Hemans segue as pegadas
de Sannazzaro e Diderot presumindo que o ocupante do túmulo
seja uma jovem:.
Was some gentle klndred mald
In that grave wlth dlrges 1aid?
Some falr creature. wlth the tone
Df whOle volee a joy Is ,one?

406
primeiros impressionistas, não mais compreendia a
frase famosa. Em sua bela descrição' do Bois de Ia
Garenne - "pare três beau malgré ses beautés Iacti-
ces" _ menciona, juntamente com um Templo de
Vesta, um Templo da Amizade e gra~de numero de
ruínas artificiais: "sur une pierre taillée en forme
de tombe, In Arcadia ego, non sens dont je n'ai pu
découvrir l'intention" 50 ("numa pedra' talhada em
forma' de túmulo lê-se a inscrição In Arcadia ego, fra-
se sem sentido cujo significado não pude descobrir").
Vemos facilmente que essa nova concepção do
Túmulo na Arcádia, iniciada pelo quadro do Louvre
de Poussin e sancionada pela má interpretação da sua
inscrição, podia levar a reflexões de ordem quase
inversa, depressivas e melancólicas, de um lado, con-
fortantes e encorajadoras, de outro; e, bastante fre-
qüentemente, a uma verdadeira fusão "romântica" das
duas. No óleo de Richard Wilson, que acabamos de
mencionar, os pastores e o monumento fúnebre -
aqui uma stela um pouco mutilada - são reduzidos
a um staffage (acessório ou figura humana subordina-
dos a uma paisagem); acentuando a serenidade do cam-
po romano ao pôr-do-sol. No Winterreise de Johann
Georg Jacobi, de 1769 - contendo o que parece ser
um dos primeiros "Túmulo na Arcádia" da lit~ratura
alemã _ lemos:' "Sempre que numa bela paisagem
encontro um túmulo com a inscrição Aucb iCh war in
Arkadien , aponto-a aos meus amigos;
_.
paramos • por " um
111
momento apertamo-nos as maos e prosseguImos .
E, numa ~ravura estranhamente atraente, ?e autoria de
um romântico alemão chamado Carl Wilhelm Kolbe
(Fig. 94) que costumava construir selvas e florestas
admiráveis, aumentando relvas e folhas ao tamanho de
arbustos e árvores, o túmulo e sua inscrição (aqui, cor-
retamente, Et in Arcadia ego, embora a legenda da
gravura seja errônea, "Auch ich war in Arkadien")
servem apenas para enfatizar o alheamento .completo
de dois amantes, absorvidos um no outro. No uso da
frase Et in Arcadia ego por Goethe, a idéia da morte
50. GUSTAVZ FLAUBE\I'l',
"Par les champs et par les grêves",
Oeuvres completes. Paris, 1910, p. 'lO; foi Georg Swarzenskl
quem chamou minha atenção amavelmente para esta passagem.
. 51. Ver BttCBMA!Of. loc. clt.

407
95, Honoré Fragonard, O túIII11U,O
1 (d esenho). Viena..., AI-
bertína,
foi totalmente eliminada 52. Usa-se, numa versão abre-
viada ("Auch ich in Arkadien") como uma legenda
para sua famosa descrição de sua feliz viagem à
Itália, de modo que significa, simplesmente, "Eu, tam-
bém, estive na terra da alegria e da beleza",
Fragonard, por outro lado, reteve a idéia da
morte; mas modificou a moral original. Pintou dois
cupidos, provavelmente espíritos dos falecidos amantes,
abraçando-se longamente dentro de um sepulcro aberto,
enquanto que cupidos menores esvoaçam em volta e
um gênio benfazejo ilumina a cena com a luz de uma
tacha nupcial (Fig. 95). Aqui a evolução completa
o ciclo. A frase de Guercino "Mesmo na Arcádia,
existe a morte", o desenho de Fragonard responde:
"Mesmo na morte, pode haver a Arcádia".

52, Cf, também o Fausto de GoETHE,


lU, 3:
Gelockt, auf sel'gem Grund zu wohnen
Du flUchtetest ins heiterste Geschick!
Zur Laube wandeln sich die Thronen,
Arcadish frei sei unser Gli,ickl
Na literatura alemã posterior essa interpretação puramente he-
donistica da felicidade arcá dica degeneraria numa concepção
trivial de "divertir-se", Na tradução 'alemã do Orphée aux
Enfers, que Offenbach, o herói canta, portanto, "AIs ich noch
Prinz war von Arkadien". em vez de "Quand j'étais prínce de
Béotie".

409
EPíLOGO: ,T~S Dl~CADAS DE HIS'i'ÓRIA DA
ARTE NOS ESTADOS UNIDOS

Impressões de um europeu transplantado

Mesmo quando lida com o passado remoto, o


historiador não pode ser inteiramente objetivo. E
numa descrição de suas próprias experiências e reações
o fator pessoal torna-se tão importante que tem de ser
extrapolado por um esforço deliberado da parte do
leitor. Devo, portanto, começar com algumas infor-
mações autobiográficas, por mais difícil que seja falar
sobre si mesmo sem dar a impressão de falsa modéstia
ou de convencimento.

411
I~

Cheguei a este país * na primavera de 1931 a con-


vite da Universidade de Nova York. Era, então, pro-
fessor de História da Arte em Hamburgo; e já que
esta cidade hanseática muito se orgulha da sua tradi-
ção cosmopolita, as autoridades não somente me de-
ram licença para ausentar-me por um semestre como,
posteriormente, concordaram com um arranjo segundo
o qual eu poderia passar períodos alternados em
Hamburgo e em Nova York. Assim, durante três
anos sucessivos cruzei várias vezes o Atlântico. E,
quando os nazistas despediram todos os funcionários
judeus na primavera de 1933, eu estava em Nova
York enquanto minha família continuava na Europa.
Lembro-me claramente de haver recebido da Alemanha
um longo telegrama informando-me da minha demissão,
mas selado por uma tarja de papel verde com estas
palavras: "Cordiais saudações de Páscoa, Western
Union".
Esses votos provaram ser um bom presságio. Voltei
a Hamburgo apenas para resolver alguns negócios par-
ticulares e assistir à defesa de tese de doutoramento
de alguns alunos leais (o que, curiosamente, era permi-
tido nos primeiros tempos do regime nazista); e, gra-
ças aos esforços desinteressados de meus amigos e
colegas americanos, inesquecíveis e inesquecidos, pude-
mos nos estabelecer em Princeton já em 1934. Du-
rante um ano ministrei cursos e conferências nas uni-
versidades de Nova York e Princeton e, em 1935,
fui convidado a fazer parte da nova Faculdade Huma-
nística do Instituto de Estudos Avançados, que deve
sua reputação ao fato de seus membros fazerem suas
pesquisas abertamente e ensinarem sub-repticiamente,
enquanto ocorre o inverso na maioria das outras insti-
tuições de ensino. Continuei, também, a lecionar em
vários outros lugares, especialmente em Nova York e
Princeton.
Digo tudo isto para deixar bem claro que minhas
experiências neste país são um tanto atípicas no que
diz respeito a oportunidades e limitações. Quanto às
oportunidades: ao contrário da maioria dos meus
• o autor refere-se aos Estados Unidos da Améric.a do Norte.
(N. da T.)

412
colegas, inclusive os americanos de nascença, nunca
fui incomodado por obrigações letivas excessivas como
também nunca me faltou apoio para as pesquisas; em
contraste com tantos estudiosos imigrantes, tive a sorte
de chegar aos Estados Unidos como convidado, e não
refugiado; e, que isto seja dito com a mais profunda
gratidão, ninguém nunca me fez sentir qualquer dife-
rença desde que meu status mudou, em 1933. Quanto
às limitações: não conheço o Sul, além de Asheville,
nem o Oeste, além de Chicago; além disso, para grande
tristeza minha, nunca tive um contacto profissional,
durante certo período de tempo, com estudantes dos
cursos de graduação.

Embora enraizada numa tradição cujo passado


pode ser seguido até a Renascença italiana e, além
dela até a Antiguidade clássica, a História da Arte
- ou seja, a análise e interpretação histórica de obje-
tos feitos pelo homem e aos quais atribuímos um valor
mais que utilitário, em oposição à estética, à crítica,
à arte do connoisseur e à "apreciação", de um lado,
e do estudo puramente arqueológico de ~utro -. é
um membro relativamente recente da família das dIS-
ciplinas acadêmicas. E, ac~ntece qu~, co~o disse _u?,l
estudioso americano, "sua hngua natíva e o alemao .
Foi nos países de língua germânica que, pela primeira
vez foi reconhecida como um Fach plenamente desen-
volvido que foi cultivada com particular intensidade
, d •
e exerceu influência visivelmente crescente sobre omi-
nios adjacentes, inclusive sobre ~ irm~ ~ais velha. e
mais conservadora, a arqueologia clássica. O pn-
meiro livro a ostentar a frase "história da arte" na
página de rosto foi a Geschichte der Kunst des Altertuns,
de Winckelmann, de 1764, e os fundamentos metodo-
lógicos dessa nova disciplina fora~ l.ançados no
ltalienische Forschungen, de Karl Friedrich von Ru-
mohr, em 1827. Uma cátedra já fora estabelecida em
1813, em Gõttingen, sendo seu primeiro regente o
excelente Johann Domínic Fiorillo (nascido em Ham-

413
burgo, apesar do nome). E, no correr dos anos, as
cátedras universitárias que rapidamente se multiplica-
ram na Alemanha, Suíça e Áustria, foram agraciadas
com nomes que nunca perderam sua magia: Jakob
Burckhardt, Julius von Schlosser, Franz Wickhoff, Carl
Justi, Alois Riegl, Max Dvorák, Georg Dehio, Heinrich
Wõlfflin, Aby Warburg, Adolph Golschmidt, Wilhelm
Võge. Outro fato digno de nota é que as principais
coleções públicas foram dirigidas por homens não
menos proeminentes como estudiosos do que como
administradores e peritos de arte, de Adam Bartsch e
Johann David Passavant a Wilhelm Bode, Friedrich
Lippmann, Max J. Friedlander e Georg Swarzenski.
Ao enfatizar estes fatos sinto-me isento de qual-
quer suspeita de patriotismo alemão retroativo. Sei
dos perigos inerentes ao que tem sido chamado de
"métodos teutônicos" na história da arte; também sei
que os resultados da rápida, talvez rápida demais,
institucionalização da disciplina nem sempre foram
desejáveis. Estou convencido de que qualquer página
de Leopold Delisle, e Paul Durrieu, Louis Courajod e
os irmãos Goncourt, Montague Rhodes James (que
queria ser conhecido como "antiquário") e Campbell
Dodgson, Cornelis Hofstede de Groot e Georges Hulin
de Loo, vale mais que uma tonelada de teses doutorais
alemãs. E posso compreender que, do ponto de vista
de um cavalheiro inglês, o historiador de arte tenda a
assemelhar-se a um sujeito que compara e analisa os
encantos de suas amizades femininas em público em
vez de namorá-Ias em particular ou escrever suas árvo-
res genealógicas 1; até hoje não existem cátedras per-
manentes de História da Arte em Oxford ou Cam-
bridge 2. Mas, permanece o fato de que na época do
1. Como me foi amavelmente mostrado. por um antigo alu-
no que residia em Oxford na época. cerca de oito meses de-
pois de proferida esta conferência na Universidade da Pen-
silvânia, a British Broadcasting Company levou ao ar duas pa-
lestras em defesa da história da arte: N. PEVSNER, Reflections
on Not Teaching Art History (The Listener, XLVllI, 1952,
n. 1235, 30 de outubro, p. 715 e ss.) : e E. WATERHOUSE, Art
as a Piece of Hlstory (ibidem, n. 1236, 6 de novembro, p. 761
e SS.). Estas palestras, ambas multo informativas e a segunda
extremamente sagaz, foram ao ar sob o titulo: "An Un-Engllsh
Activity?" (Uma atividade Não-Inglesa?).
2. Ouço, em junho de 1955, que tal cátedra acaba de ser
estabelecida em Oxford. Hosanna in e=elsis.

414
Grande Exodo, por volta de 1930, os países' de língua
germânica ainda ocupavam a posição dominante em
questões de História da Arte, com exceção, talvez, dos
Estados Unidos da América do Norte.

11

Aqui, a História da Arte recapitulara, em poucas


décadas, toda a evolução, desde Bellori e Baldinucci
até RiegÍ e Goldschmidt, do mesmo modo que as ativi-
dades de colecionador de J. P. Morgan - começando
com pequenos objetos de valor incalculável em termos
de material e horas de trabalho e terminando com
. desenhos dos velhos mestres - recapitulara toda a
evolução desde o Duque de Berry até Mariette e
Crozat. A História da Arte, originalmente o passa-
tempo particular de homens de negócios e de letras
como Henry Adams e Charles Eliot Norton (cujas
conferências em Harvard foram descritas por seu filho
como "Lectures on modem morals illustrated by the
arts of the ancients" ("Preleções sobre morais moder-
nas ilustradas pelas artes dos antigos"), desenvolveu-se
numa disciplina autônoma desde o começo do século
XX, e a partir da Primeira Guerra Mundial (cujo
terminus post quem é obviamente da maior importân-
cia) começou a ameaçar a supremacia, não apenas dos
países de língua germânica, mas também de toda a
Europa. Isso foi possível, não apesar, mas por causa
do fato de seus fundadores - homens como Allan
Marquand, Charles Rufus .Morey, Frank J. Macher,
A. Kingsley Porter, Howard C. Butler, Paul J. Sachs
~ não serem o produto de uma tradição estabelecida
mas terem chegado à História da Arte através da Filo-
logia clássica, Teologia e Filosofia, Literatura, Arqui-
tetura ou apenas como colecionadores. Estabeleceram
uma profissão seguindo uma inclinação pessoal.
No começo, a nova disciplina teve de abrir ca-
minho através de um emaranhado que compreendia
instrução prática para as artes, apreciação e crítica de
arte e esse monstro amorfo chamado "conhecimentos
gerais". As primeiras tiragens do Art Bulletin, fun-

415
d~d? .em 1913 e hoje reconhecido como periódico de
história da arte de maior importância no mundo inteiro
tratavam, principalmente, de tópicos como "O VaIo;
da Ar~e num Curso Universitário", "O que as Pessoas
Apreciam nos Quadros", "Preparação da Criança para
um Curso Universitário de Arte". A História da Arte
como a conhecemos, esgueirou-se pela porta dos fun-
dos, sob o disfarce de arqueologia clássica ("The
Meleager in the Fogg Museum and Related Works in
America" ("O Meleagro rio Museu Fogg e Obras Afins
na América"), avaliação dos fenômenos contemporâ-
neos ("A Arte de Auguste Rodin") e, caracteristica-
mente, revistas literárias. Foi somente a partir de
1919, um ano depois do armistício, que apareceu em
caract~res de imprensa. Mas, em 1923, quando o Art
~u~letm apresentava, abertamente, dez artigos de His-
tona da Arte contra apenas um de apreciação de arte,
e. quando Ase julgou necessário lançar um periódico
nval, o efemero Art Studies, a batalha estava ganha
(e~bora ainda hoje ocorram escaramuças ocasionais).
FOi por essa mesma época que os estudiosos europeus,
apenas um punhado dos quais havia atravessado o
Atlântico até então, começaram a tomar consciência
do fato. .
Sabiam, é claro, que magníficas coleções e acervos
de todos os tipos tinham se formado nos Estados
Unidos e que vários livros, muito bons, sobre História
da arte - basta mencionar os numerosos ensaios de
AlIan Marquand sobre a família :DelIa Robbia (1912-
-22), a ~onografia de E. Baldwin Smith sobre objetos
provençais de marfim dos primórdios do Cristianismo
(1918) e os dois livros de Frederick Mortimer Clapp
sobre Pontormo (1914 e 1916) - haviam sido escri-
tos na América do Norte. Também tinham ouvido ru-
mores de que importantes estudos de natureza técnica
eram feitos em vários museus americanos e numa uni-
versidade chamada Harvard; que uma milionária de
Nova York havia fundado uma biblioteca de referên-
cias contendo milhares de fotografias e que, desde
1917, outra universidade, chamada Princeton, estava
trabalhando num amplo índice da Iconografia Cristã.
Esses fatos eram em parte acolhidos sem comentários

416
e em parte considerados bem peculiares. Mas, em
1923 e 1924, três obras apareceram, quase simulta-
neamente: Romanesque Sculpture oi lhe Pilgrimage
Roads (Escultura Românica das Estradas de Pere-
grinação) , de A. Kingsley Porter, que com uma
penada revolucionou todas as idéias até então aceitas
quanto à cronologia e difusão das esculturas do século
XII em todo o continente europeu; o famoso ensaio de
Albert M. Friend que propunha localizar as mais fa-
mosas e enigmáticas escolas caroIíngias na Abadia Real
de Saint-Denis; e Sources oi Mediaeval Style (Fontes
do Estilo Medieval) de Charles Rufus Morey, que
ousou reduzir a complexidade da arte medieval a três
grandes correntes, à semelhança de Johannes Kepler,
que reduziu a complexidade do sistema solar a três
grandes leis. Nenhum estudioso europeu - sobre-
tudo os alemães e austríacos que, por mais que se diga
contra eles, temiam menos a literatura estrangeira que
os italianos e franceses - poderia permanecer indi-
ferente ao fato de que os Estados Unidos tinham sur-
gido como uma força maior na História da Arte; e
que, inversamente, a História da Arte havia assumido
uma fisionomia nova e distinta nos Estados Unidos.
A década seguinte - de 1923 a 1933 - assistiu
ao que em retrospecto parece uma Era de Ouro.
Princeton, além de fazer escavações na Ásia Menor e
na França, e de lançar extenso programa de publicações
de manuscritos, cimentou uma tradição duradoura de
estudos exaustivos sobre arte dos primôrdios do Cris-
tianismo, medieval e bizantina. Harvard treinou uma
multidão de jovens sofisticados e entusiastas que guar-
neceu um número sempre crescente de novos museus.
Chandler R. Post e Walter W. S. Cook firmaram
a história da arte espanhola, longamente negligenciada,
como um campo de direito próprio. Fiske Kimball
encetou seus estudos que marcaram época sobre os
estilos Luís XIV, Regência, Luís XV e Rococó.
William M. Ivins abriu novas perspectivas na interpre-
tação e avaliação das artes gráficas. Richard Offner
desenvolveu a connaissance especializada no campo
dos primitivos italianos até esta se apr.iximar o mais
possível de uma ciência exata. Uma geração mais

417
nova, hoje brilhantemente representada por estudiosos
como Rensselaer Lee, Meyer Schapiro e Millard
Meiss, deram as primeiras provas de seu talento
extraordinário. O New York Museum of Modern
Art, concebido por Alfred Barr, começou sua subida
meteórica. E foi no auge desses acontecimentos que
Hitler se tomou o poder supremo da Alemanha.

lU

Em Nova York do começo da década de 1930-


principalmente se chegasse a tempo de testemunhar a
fase final da era da proibição e se encontrasse rodeado
por uma atmosfera de confortável dissipação que é di-
fícil de descrever e mais difícil ainda de lembrar sem
uma certa nostalgia - o historiador de arte europeu
sentia-se imediatamente perplexo, eletrizado e em
êxtase. Banqueteava-se nos tesouros reunidos nos
museus, bibliotecas, coleções particulares e galerias de
arte comerciais. Descobria que certos aspectos da
pintura medieval e da iluminura de livros podiam ser
estudados mais cabalmente neste país que na Europa,
porque, graças a uma série de acidentes históricos, a
maioria do material pertinente de uma maneira ou de
outra transpusera o oceano. Espantava-se de poder
pedir um livro na Biblioteca Pública de Nova York
sem precisar ser apresentado por uma embaixada ou
por dois cidadãos responsáveis; que as bibliotecas fi-
cassem abertas à noite, algumas até meia-noite; e que
as pessoas parecessem quase ansiosas por lhe tomar o
material acessível. Mesmo. o Museu de Arte Mo-
derna, sediado originalmente no décimo segundo andar
do Heckscher Building, e mais tarde transferido para
um prédio modesto onde está atualmente, tratava os
visitantes com muito maior consideração do que hoje
em dia. Bibliotecários e curadores se consideravam
muito mais como órgãos de transmissão e comunica-
ção do que como "guardiães" ou conservateurs. Ainda
mais surpreendente era a incessante atividade do mun-
do do historiador de arte - atividade essa não total-
mente livre de esnobismo intelectual e social mas
sempre estimulante: incontáveis exposições e discussões

418
intermináveis; projetos de pesquisas financiados por
particulares, começados hoje e abandonados amanhã;
conferências dadas não apenas nos centros de estudo,
mas também nas residências dos abastados, com a au-
diência chegando em Cadillacs de doze cilindros, Rolls-
Royces último tipo, Pierce-Arrows, e Locomobiles. E,
sob essa superfície cintilante, era possível sentir o espí-
rito de pesquisa e descoberta que, controlado pela
consciência dos estudiosos, vivia na obra dos Kingsley
Porters e Charles Rufus Moreys.
Ganhando sua independência após a Primeira
Guerra, a história da arte americana tirou forças do
que seria considerado uma fraqueza vinte ou trinta
anos antes: da distância cultural e geográfica da
Europa. Foi, por certo, importante o fato de os Es-
tados Unidos emergirem do conflito como a única
potência beligerante a contar com uma economia
ilesa, de modo que havia fundos disponíveis para
viagens, pesquisas e publicações. Porém, mais impor-
tante, ainda, foi que os Estados Unidos haviam entrado,
pela primeira vez, em contacto ativo e não passivo
com o Velho Mundo e estavam mantendo este con-
tacto dentro de um espírito tanto de posse como de
observação imparcial.
Enquanto que as comunicações entre os países
europeus, próximos demais para uma rápida reconci-
liação e pobres demais para uma rápida retomada do
intercâmbio cultural, ficaram interrompidas por muitos
anos, as comunicações entre os Estados Unidos e a
Europa permaneceram intactas ou foram rapidamente
restauradas. Nova York era uma gigantesca estação
de rádio capaz de captar e transmitir para um grande
número de postos que não podiam se comunicar entre
si. Porém, o que mais impressionava o estrangeiro
ao tomar consciência, pela primeira vez, com o que
sucedia na América era o seguinte: enquanto os histo-
riadores de arte europeus eram condicionados a pensar
em termos de fronteiras regionais e nacionais, tais li-
mitações não 'existiam para os americanos.
Os eruditos europeus, ou entregavam-se inconscien-
temente, ou lutavam conscientemente contra emoções

419
muito arraigadas, que eram tradicionalmente ligadas a
questões, como saber se a letra maiúscula cubiforme
fora inventada na Alemanha, França ou Itália, se
Reger van der Weyden era flamengo ou valão ou se
os primeiros arcobotantes tinham sido construidos em
Milão, Morienval, Caên ou Durham; e a discussão de
tais problemas tendia a cingir-se a áreas e períodos
que era~ foco de .atenção havia gerações ou, pelo
menos, decadas. VIsta do outro lado do Atlântico a
Europa inteira, da Espanha até o leste do Mediterrâneo
fundia-se num único panorama cujos planos apareciam
em intervalos apropriados e em uma luz interna.
Assim como os historiadores de arte americanos
podiam ver o passado numa perspectiva não distorcida
por preconceitos nacionais e regionais, também podiam
enxergar o presente num quadro em perspectiva sem
distorções devido a parti pris pessoais e institucionais,
Na Europa - onde surgiram todos os "movimentos"
significativos da arte contemporânea, do impressionis-
mo francês ao surrealismo internacional, do Palácio de
Cristal à Bauhaus, do Morris Chair a Aalto Chair _
não havia, via de regra, lugar para discussão objetiva,
para não falar em análise histórica. O impacto direto
dos fatos forçava os literatos à defesa ou ao ataque,
e os historiadores de arte mais inteligentes, ao silên-
cio. Nos Estados Unidos, homens como Alfred Barr
e Henry-Russell Hitchcock, para mencionar apenas
dois pioneiros neste campo, podiam encarar a cena
contemporânea com a mesma mistura de entusiasmo e
desligamento, e escrever sobre ela com o mesmo res-
peito pelos métodos históricos e com o mesmo cuidado
pela documentação meticulosa que requeria um estudo
sobre os objetos de marfim do século XIV ou sobre
as gravuras do século XV. Provou-se que a "distân-
cia histórica" (normalmente são necessários sessenta
ou oitenta anos) era substituível pela distância cultu-
ralou geográfica.
Talvez o maior lucro que o erudito estrangeiro
poderia colher com sua transplantação era estar per-
manente e diretamente exposto a uma história da arte
sem limitações provinciais no tempo e no espaço e
poder tomar parte na evolução de uma disciplina ainda

420
animada por um espírito jovem de aventura. Além
disso, era uma bênção para ele entrar em contacto -
é, às vezes, em conflito - com um positivismo anglo-
-saxão que, por princípio, repudiava a especulação abs-
trata; tomar maior consciência dos problemas materiais
(colocados, por exemplo, pelas diversas técnicas de
pintura e gravação e os fatores estáticos na arquite-
tura) que na Europa tendiam a ser considerados como
concernentes mais aos museus e escolas de tecnologia
que às universidades; e, finalmente, mas não menos
importante, ser forçado a se expressar, de qualquer
modo, em inglês. Á
Em vista do que tem sido dito sobre a história da
nossa disciplina, era inevitável que o vocabulário dos
trabalhos de História da Arte se tornasse mais comple-
xo e elaborado nos países de língua germânica do que
em qualquer outro e, por fim, evoluísse para uma lin-
guagem técnica que - mesmo muito antes de os nazistas
tornarem a literatura alemã iniri.eligível para os
alemães incontaminados - era difícil de penetrar. Há
mais palavras na nossa filosofia do que se pode sonhar
no céu ou na Terra e todo historiador de arte de for-
mação germânica que tente fazer-se entender em inglês
vê-se obrigado a compor seu próprio dicionário. Ao
proceder assim compreende que sua terminologia na-
tiva era muitas vezes ou desnecessariamente misteriosa
ou totalmente imprecisa; infelizmente, a Iíngua alemã
permite que um pensamento bastante trivial se esconda
atrás de uma cortina de aparente profundidade e,
inversamente, que grande número de significados
espreitem sob um único termo. A palavra taktisch,
por exemplo, que normalmente significa "tático" em
oposição a "estratégico" é usada no vocabulário de'
história da arte alemã como equivalente de "tátil" ou
mesmo "textural", assim como "tangível" ou "palpável".
E o adjetivo ambíguo maleriscli pode ter sete ou oito
significações diferentes conforme o contexto: "pintu-
resco" ou "pitoresco"; "pictórico" em oposição a
"plástico"; "dissolvido", sjumato ou "não-linear" em
oposição a "linear" e "definido"; "solto", em oposição
a "cerrado"; impasto (empastado) em oposição a

421
"suave". Resumindo, ao se expressar em inglês, seja
falando, seja escrevendo, até um historiador de arte
precisa saber mais ou menos o que quer dizer e dizer
aquilo que quer dizer, e esse imperativo foi sobrema-
neira benéfico para todos nós. Na verdade esse
mes~o imperativo, ~crescido do fato de o pr~fessor
amencano ver-se obngado a enfrentar, muito mais fre-
qüentemente que seu colega europeu, uma audiência
não-profissional e desfamiliar, contribui muito para
soltar nossas línguas, se assim posso dizer. Forçados
a nos expre~sar de maneira inteligível e precisa, e per-
cebendo, nao s~m surpresa, que isso era possível,
encontramos subitamente a coragem para redigir livros
so?re um determinado autor ou período, em vez ou
alem de escrevermos uns tantos artigos especializados,
e ousamos tratar do problema da mitologia clássica na
arte medieval na sua totalidade, em lugar de - ou
além de - investigarmos apenas as transformações de
Hércules e Vênus,
. .Essas foram, portanto, algumas das bênçãos espi-
rituais com que este país agraciou os historiadores de
arte imi~rantes. Não cabe a mim dizer se ou de que
modo tais favores foram retribuídos. Gostaria porém
de esclarecer que, de um ponto de vista puramente
temporal, seu. Influxo contribuiu inquestionavelmente
para o maior desenvolvimento da História da Arte
como disciplina acadêmica, assim como objeto de inte-
resse público. Que eu saiba, nenhum historiador de
arte estrangeiro tomou o lugar de um americano. Os
imigrantes, ou foram acrescidos ao corpo docente de
faculdades ou departamentos universitários já existen-
te (por razões compreensíveis, mas um tanto delicadas,
os museus não estavam tão ansiosos por recebê-los)
ou lhes foi dado o encargo de instituir o ensino da
História da Arte onde ele não existia antes.. Em
ambos os casos, as oportunidades dos professores e
estudantes americanos foram aumentadas, e não dimi-
nuídas. E, certa ocasião, um grupo de eruditos refu-
giados teve o privilégio de desempenhar um papel cons-
trutivo num desenvolvimento que pode ser chamado de
espetacular: o do Instituto de Belas-Artes da Univer-
. sidade de Nova York.

422
Surgiu de um pequeno departamento no qual tive
a boa sorte de ingressar em 1931, e que na época
contava com uma dúzia de alunos, três ou quatro pro-
fessores, nenhuma sala própria, para não se falar em
prédio, e nenhum equipamento. Tanto as preleções
quanto os seminários eram ministrados nas salas infe-
riores do Metropolitan Museum, conhecidas comu-
mente como "as salas funerárias", onde era proibido
fumar sob pena de morte e funcionários mal-encarados
nos punham para fora às 8 horas e 55 minutos da
noite, mesmo que estivéssemos em meio a 'um relatório
ou discussão. A única solução encontrada foi mudar
para um simpático speakeasy * na Rua 52. Esse
arranjo, lançando as bases de muitas amizades dura-
douras, funcionou muito bem por um semestre ou
dois. Porém, os dias dos speakeasies estavam conta-
dos e achou-se que os estudantes de uma universidade
de uma grande metrópole precisavam de um lugar, por
menor que fosse, onde pudessem se encontrar, fumar,
falar sobre seu trabalho durante o dia sem bebidas ou
supervisão alheia, nas proximidades do Metropolitan
Museum. Assim, foi alugado um pequeno aparta-
mento na esquina da Rua 83 com a Avenida Madison,
que passou a abrigar os slides que foram acumulados
pelos conferencistas individualmente e uma dessas co-
leções-padrão de livros de arte que se podia obter,
sob encomenda, da Camegie Corporation.
Durante os anos seguintes, nada menos que cinco
importantes refugiados alemães foram convidados a
ocupar posições permanentes naquilo que agora se
tomara o Instituto de Belas-Artes.: Fundos conside-
ráveis foram levantados de modo misterioso. E hoje,
este Instituto, que eu saiba, é o único órgão univer-
sitário independente dedicado exclusivamente ao ensino
da História da Arte em nível superior, que não apenas
é a maior como a mais animada e versátil escola do
gênero, ocupando um edifício de seis andares na Rua
80 Este, contando com uma ótima biblioteca e uma
das melhores coleções de slides, sendo freqüentada por
mais de cem alunos ao nível de graduação bastante
• Locais onde se vendiam bebidas alcoólicas clandestina-
mente na época da proibição. (N. da T.)

423
ativos e adiantados para publicarem um periódico es-
pecializado próprio, e entre cujos formados figuram
alguns dos mais proeminentes professores universitá-
rios e curadores de museus. Entretanto, nada disso
seria possível se o diretor da escola, Walter Cook, não
mostrasse uma inigualável combinação de previdência,
persistência, senso comercial, devoção desinteressada
e ausência de preconceitos ("Hitler é meu melhor
amigo", costumava dizer, "sacode a árvore e eu colho
os frutos") e não lhe fosse dada também a sorte de
ocorrer um sincronismo providencial entre o advento
do fascismo e nazismo na Europa e o florescimento
espontâneo da História da Arte nos Estados Unidos.

IV

Acabei de dizer que o erudito americano enfrenta,


muito mais freqüentemente que o europeu, uma platéia
desfamiliar e não-profissional. . Por um lado, isto pode
explicar-se por considerações gerais. Devido a razões
ainda não suficientemente estudadas pelos antropólo-
gos, os americanos parecem ter uma verdadeira paixão
por debates (paixão esta encorajada e explorada por
nossos museus que, ao contrário das instituições euro-
péias análogas, se consideram como centros culturais
e não apenas como coleções), conferências e simpó-
sios. E a "torre de marfim" na qual o professor deve
supostamente passar a vida - uma figura de lingua-
gem cuja origem reside numa fusão feita no século
XIX do Cântico dos Cânticos com a torre de Danae
em Horácio - apresenta, comparativamente, muito
mais janelas na sociedade fluida deste país que na
de outros. Por outro lado, o maior raio de alcance
das atividades profissionais resulta, até certo ponto,
das condições específicas da vida acadêmica nos Es-
tados Unidos. E isso me leva a uma breve discussão
sobre o que se pode chamar de questões de organiza-
ção - discussão que transcenderá um pouco o meu
tema, já que o que se aplica à História da Arte se
aplica, mutatis mutandis, a todos os outros ramos das
disciplinas humanísticas.

424
Uma diferença básica entre a vida acadêmica dos
Estados Unidos e da Alemanha (pretendo me limitar
a experiências diretas) 3 é que nesta última os profes-
sores são fixos e os alunos móveis, enquanto que acon-
tece o oposto nos Estados Unidos. Um professor
universitário alemão, ou permanece em Tübingen até
a morte, ou é chamado para Heidelberg, e daí, talvez,
para Munique ou Berlim; mas, seja onde for seu cargo,
este é vitalício. Faz parte de seu dever ministrar, a
intervalos predeterminados, além dos seminários, cursos
e preleções especializados, o que é chamado de
collegium publicum 4, ou seja, uma série de aulas
semanais sobre um tema de interesse geral, grátis e
aberto a todos os estudantes, membros da faculdade
e, via de regra, ao grande público; raramente, porém,
enfrenta uma platéia fora de seu habitat permanente,
a não ser em reuniões profissionais ou congressos. O
estudante alemão, por outro lado, cujo abiturium (di-
ploma final de escola de nível superior reconhecida)
permite que se matricule em qualquer universidade que
queira, passa um semestre aqui e outro ali, até encon-
3. Meus comentários sobre a organização das universidades
alemãs (na maioria idênticas às universidades austríacas e suí-
ças) dizem respeito. é claro, ao período anterior a Hitler, cujo
regime destruiu as próprias bases da vida acadêmica na Ale-
manha e Austria. Entretanto, com algumas ressalvas, parecem
valer também para a época subseqüente a 1945 quando. tanto
quanto sei, o status quo foi mais ou menos restaurado; algumas
mudanças que chamaram minha atenção são mencionadas nas
notas 4 e 6. Para maiores informações, ver a obra fundamen-
tal de A. FLEXNER, Universities, American, Eng!ish, German,
Nova York, Londres, Toronto, 1930; e o interessante relato fie
E. H. KANTOROWl:CZ, "How the Pre-Hitler German Universities
Were Run", Western CoHege Association; Addresses on the Pro-
b!em of Administrative Overhead and the Harvard Report: Ge-
nera! Education in a Free Society, FalI Meet!ng, 10 de novembro
de 1945, Mills College, Cahfórriía, p. 3 e ss.
4. Cursos especializados são dados privatim, ou seja, os
alunos precisam matricular-se e pagar uma taxa moderada (cer-
ca de 60 cents) por hora semanal em cada semestre. Seminá-
rios de pesquisa, por outro lado, costumavam ser ministrados
privatissime et gratis, ou seja, os alunos não pagavam nada
enquanto o instrutor se reservava o direito de escolher os
participantes de acordo com um nível preestabelecido. Ouço,
agora, que os seminários (exceto OSmais avançados, dados para
beneficio apenas dos candidatos ao Ph. D. (doutoramento» estão
sujeitos às mesmas taxas que os cursos privatim; mas o ins-
trutor continua dispondo do privilégio da seleção. Além das
taxas dos cursos individuais, dos quais deve seguir pelo menos
um número determinado, embora a escolha caiba apenas a ele,
o estudante alemão de uma disciplina humanlstlca paga apenas
uma taxa de matricula para cada semestre e mais uma "taxa
de admissão" que inclui a permissão para usar a biblioteca,
participar de seminários de pesquisa e receber cuidados mé-
dicos etc.

425
trar um professor sob cuja tutela queira preparar a
tese de doutoramento (nas universidades alemãs não
há bacharelado nem mestrado) e que o aceite, por
assim dizer, como discípulo pessoal. Pode estudar por
quanto tempo desejar e, mesmo depois de haver deter-
minado sua tese de doutoramento, pode desaparecer
por qualquer período de tempo.
Aqui, como bem se sabe, a situação é inversa.
Nossas mais antigas universidades e faculdades, todas
particulares e dependentes pois da lealdade dos forma-
dos que neste país é uma força tão poderosa quanto
a lealdade às escolas públicas o é na Inglaterra, reser-
vam-se o direito de decidir sobre a admissão e conser-
vam os estudantes durante quatro anos de graduação.
As instituições públicas, embora obrigadas por lei a
aceitar todo aluno legalmente creditado e oriundo do
seu próprio Estado, mantêm, pelo menos, o princípio da
permanência, As transferências são vistas com total
desaprovação. Mesmo os alunos já formados perma-
necem, se possível, numa mesma escola, até adquirirem
o diploma de mestrado*. Porém, para contrabalançar,
até certo ponto, os problemas que podem advir por
se assegurar uma uniformidade de ambiente e instru-
ção, tanto as faculdades como as universida?~s cos-
tumam convidar conferencistas e professores VISItantes,
às vezes por uma noite ou uma semana, e mesmo por
um semestre inteiro e até um ano.
Do ponto de vista do conferencista convidado,
esse sistema oferece muitas vantagens. Alarga seus
horizontes, põe-no em contacto com inúmeros colegas
e alunos de tipos completamente diversos e, depois de
alguns anos, pode lhe dar uma deliciosa sensação de
sentir-se à vontade em diversos campus universitários,
assim como os humanistas itinerantes da Renascença
sentiam-se em casa em várias cidades e cortes euro-
péias. Mas, do ponto de vista do estudante - do
estudante que pretende abraçar os estudos humanís-
ticos como profissão - apresenta várias falhas. Na
maioria dos casos, ele se matricula numa determinada
faculdade por razões familiares ou econômicas e, num
• Hoje em dia existe, em várias faculdade~ brasileiras. u!!,
curso de pós-graduação chamado mestrado, cUJO díploma equi-
vale ao Master americar:o. (N. da T.)

426
curso de pós-graduação, apenas porque este o aceita.
Mesmo se estiver satisfeito com sua escolha, a imprati-
cabilidade de explorar outras possibilidades diminuirá
sua perspectiva e atrapalhará sua iniciativa, e, na hi-
pótese de haver cometido um erro, a situação poderá
redundar numa tragédia real. Nesse caso, o contato
temporário com professores visitantes dificilmente será
suficiente para contrabalançar o efeito paralisante e
mutilante de um meio ambiente inadequado e pode até
aumentar a sensação de frustração do aluno.
Nenhuma pessoa de bom senso proporia a mu-
dança de um sistema que surgiu devido a razões con-
sideráveis de ordem histórica e econômica e que não
poderia ser alterado sem uma revisão básica das
idéias e ideais americanos. Quis apenas mostrar que,
como todas as instituições criadas pelo homem, tem os
defeitos de suas qualidades. Isso também se aplica
às outras características de organização em que nossa
vida acadêmica difere da européia.
Uma das diferenças mais importantes é a divisão
de nossas faculdades e universidades em departamentos
autônomos, sistema este estranho à concepção euro-
péia. Segundo a tradição medieval, as universidades
do continente europeu em geral, e dos países germâ-
nicos em particular, são formadas por quatro ou cinco
"faculdades": Teologia, Direito, Medicina e Filosofia
(a última subdivindo-se, normalmente, em Matemática
(Ciências Exatas) e Ciências Naturais, de um lado, e
Humanidades (Letras, Comunicações), de outro). Em
.cada uma dessas faculdades existe uma cátedra - só
em casos excepcionais mais que uma - devotada a
disciplinas especiais, tais como, para nos limitarmos à
área de Humanidades, Grego, Latim, Inglês, Línguas
Árabes, Arqueologia Clássica ou, também, a História
da Arte; a direção dessas faculdades é composta, em
princípio, apenas pelos regentes dessas cadeiras, nor-
malmente professores catedráticos (ordinarii) 5. O
5. Depois da Primeira Guerra Mundial os Privatdozenten e
extraordinarii alemães (cf. nota seguinte) obtiveram o díreíto
de representação dentro da faculdade [Sempre que fala em
"faculdade" o autor refere-se à cúpula administrativa da mesma.
Não tem a mesma conotação que uma faculdade br asíleira.
N. da T.] por delegados que, é claro, ocupam suas cade!ras
como representantes do grupo e não da disciplina, sendo eleitos
pelo período de um ano; quando eu estava em Hamburgo,

427
professor catedrático é o centro de um grupo que cor-
responde, mais ou menos, aos livre-docentes (extraor-
dinarii) e professores assistentes (Privatdozenten) 6
sobre os quais não possui, entretanto, nenhuma auto-
ridade formal quanto às atividades acadêmicas. É res-
ponsável pela administração de seu seminário ou insti-
tuto; mas a atribuição de graus não é de sua alçada,
assim como o convite ou admissão de novos profes-
sores, que, não importando campo ou cargo, compete
apenas à cúpula administrativa da faculdade.
Para quem está acostumado ao nosso sistema de
departamentos autônomos que operam diretamente se-
gundo a vontade das "divindades",· esta organização
tinham até que sair da sala quando assuntos pertinentes à sua
disciplina eram ventilados. Quanto aos etatsméissige extraordi-
narii (cf. outra vez a nota seguinte), o costume varia. A
maioria das universidades possuem uma cadeira na faculdade
apenas se sua disciplina não estiver representada por um
ordinarius.
6. Essa comparação é, realmente, muito grosseira. Por um
lado, o status acadêmico de um Privatdozent (nosso "instrutor"
não tem equivalente nas universidades alemãs) era e é mais asse-
gurado e dignificado que mesmo o dos nossos livre-docentes, pois
lhe é dado total liberdade para ensinar e é irremovível do cargo,
assim como o catedrático. Por outro lado, seu cargo não é
remunerado (até bem recentemente em diversas universidades).
Tendo recebido sua venia legendi (permissão para ensinar) com
base em seus méritos (documentados por um Habilitationschrift
e um documento lido para a faculdade) e não sendo "contratado"
para preencher uma vaga, o P·rivatdozent só pode perceber as
taxas pagas pelos alunos por seus cursos privatim e seminários
(cf. nota 4). Receberá um salário fixo se obtiver uma Lehrauftrag
(comissão para ensinar) numa matéria específica ou aceitar um
cargo de assistente, caso em que terá de arcar com boa parte
do trabalho administrativo do seminário de pesquisas ou insti-
tuto. Pode, também, depender de verbas e subvenções de fora,
como as obtidas através de fundações oficiais e semi-oficiais. A
natureza um. tanto paradoxal deste arranjo tornou-se particular-
mente visível no difícil período após a Primeira Guerra e ela
pode ser ilustrada por minha experiência pessoal. Eu viera a
ser (a convite), em 1921, Privatdozent da Universidade de Ham-
burgo, fundada em 1920; já que era o único professor de "tempo
integral" em minha disciplina (outras preleções e seminários
eram dados pelos diretores e curadores dos museus locais) coube
a mim a direção do departamento de pesquisas de História de
Arte que acabava de nascer assim como o grande privilégio de
aceitar e examinar os candidatos a doutoramento. Entretanto,
não recebia nenhum salário. Quando, por volta de 1923, minha
fortuna pessoal desapareceu com a inflação, deram-me o cargo
de assistente pago no mesmo departamento do qual era, ante-
riormente, diretor não .assalariado. Conservei esta posição, muito
interessante para mim, de assistente, criada por um Senado bene-
volente, pois era mais bem paga que a de Lehrauftrag, até ser
nomeado professor catedrático, em 1926, pulando o estádio de
extraordinarius. Hoje, pelo que me contam, os Privatdozenten
de algumas universidades da Alemanha Ocidental recebem um
estipêndio ex offido; mas, isso traz uma limitação em seu nú-
mero, antes ilimitado, a extensão do intervalo mínimo entre o
doutoramento e Privatdozentur de dois para três anos e a
instituição de um exame tntermedtãrío 'depois do qual o candi-

428
imposta pela tradição parece quase absurda. Quando
um candidato submete sua tese de doutoramento sobre
a evolução dos sinais diacríticos em árabe, o catedrá-
tico de História da Arte tem voto no assunto, enquanto
que os professores livre-docentes e assistentes de Lín-
guas Árabes não têm. Entretanto, nenhum catedrá-
tico, ainda que não possua jeito algum para os assuntos
administrativos, pode escapar ao dever de dirigir ele
próprio os negócios do seminário ou instituto a seu
cargo. Nenhum Privatdozent, por mais inepto que
seja, pode ser demitido a não ser por ação disciplinar.
O catedrático não é obrigado a ministrar determinadas
aulas ou seminários (a menos que tenha aceito um
Lehrauitrag especial, comparável ao contrato de visiting
lecturer, conferencista visitante aqui), nem pode ser
impedido, legalmente, de dar o curso ou seminário que
quiser, independentemente da satisfação do professor
titular, desde que se mantenha dentro dos limites de
sua venta legendi (permissão de ensinar) 7.
Aqui, outra vez, o sistema americano tem as
falhas de suas virtudes (entre as últimas, incidental-
mente, uma elasticidade muito saudável, que permite
aos alunos formados ministrarem algumas aulas, seja
na própria universidade ou numa instituição vizinha).
O professor livre-docente ou assistente americano pos-
sui voz ativa nos conselhos departamentais; mas é
obrigado a dar os cursos que o departamento lhe
atribuir. Os assuntos do departamento de Francês
não podem sofrer a menor interferência nem mesmo
do maior catedrático de História Moderna e vice-
-versa; porém, esta autonomia perfeita dos departa-
mentos gera dois perigos graves: isolamento e consan-
güinidade.
O historiador de arte pode não saber nada sobre
os sinais diacríticos em árabe, do mesmo modo que
o catedrático de Línguas Árabes pode desconhecer
dato recebe o belo titulo de Doctor habi!(itandus). Os extraor-
dinarit caem em duas classes diferentes. Ou são Privatdozenten
mais velhos aos quais foi dado um título de professor mais ele-
vado apenas por cortesia e sem modificação de status, ou são
etatsméissige extraordinarii cuja posição é semelhante à do pro-
fessor titular, a não ser pelo fato de seus salários serem infe-
riores e de não terem, via de regra, voto ou cadeira na facur-
dade (cf. nota precedente).
7. Cf. nota precedente.

429
completamente Caravaggio. Mas é ótimo para os
dois poderem se encontrar, a cada quinze dias, numa
reunião universitária, pois podem ter ou desenvolver
um interesse comum pelo neoplatonismo ou ilustrações
astrológicas; e é conveniente para a universidade por-
que podem esposar opiniões divergentes, porém bem
fundadas, em assuntos de interesse geral que são mais
vantajosos se discutidos in pleno. O professor de
Greg? pode não saber nada de Chaucer ou Lydgate;
mas e útil que lhe seja dado o direito de inquirir se o
r~sponsável pela cátedra de Inglês, ao propor um jovem
SImpático para uma Iivre-docência, não se esqueceu de
um outro, talvez menos simpático, porém mais capaz.
De fato, nossas instituições de ensino estão tomando
cada vez mais, consciência desses dois perigos, isola-
mento e consangüinidade. A Universidade de Chicago
tentou coordenar os departamentos humanísticos reu-
nindo-os numa "divisão"; outras universidades pro-
curam criar comissões e/ ou cursos interdepartamentais;
Harvard chega a ponto de não dar nenhum cargo
permanente, digamos no departamento de Letras Clás-
sicas, sem antes convocar uma "comissão ad hoc"
composta de professores de Harvard que não os do
departamento de Letras Clássicas, e classicistas de
outras instituições que não Harvard. Porém, coorde-
nar departamentos autônomos numa "divisão" é quase
tão difícil quanto coordenar Estados soberanos numa
organização internacional, e a formação de comissões
parece mais indicar a existência de um problema que
solucioná-lo.

v
Nem é preciso dizer que essa diferença entre o
"sistema de departamentos" e "sistema de cátedras" ,
como podemos chamá-lo, reflete não apenas uma diver-
gência nas condições econômicas e políticas mas tam-
bém uma divergência no conceito de "educação supe-
~ior" como taL Idealmente (e sei muito bem que o
ideal europeu tem sofrido e ainda está sofrendo uma
modificação não menos significativa do que a realidade
americana), a universidade européia, universitas .na-

430
gistrorum et scholarium, é um corpo de estudiosos
eruditos, cada qual rodeado por uma falange de fa-
muli; já a americana é um corpo de estudantes con-
fiados a um corpo docente. O aluno europeu não é
supervisionado, a não ser pelas críticas e assistência
que possa receber durante seminários ou conversas
particulares, e deve aprender tudo o que quiser e puder,
sendo que a responsabilidade por seu êxito ou fracasso
cabe inteiramente a ele próprio. O estudante ameri-
cano, posto à prova e promovido sem cessar, é pro-
gramado para aprender o necessário, sendo que a res-
ponsabilidade por seu êxito ou fracasso cabe, em
grande parte, aos seus instrutores (daí as eternas
discussões nos nossos jornais universitários para se
saber até que ponto os membros do corpo docente
violam seus deveres ao dedicar tempo às pesquisas).
E o problema mais básico que tenho encontrado e
observado na nossa vida acadêmica é como conseguir
uma transição orgânica da atitude do estudante que
acha: "você é pago para me educar; ora, então me
eduque", para a do jovem estudioso e interessado que
pensa: "supõe-se que saiba resolver um problema;
agora, por favor, me explique como fazer"; e, da parte
do instrutor, da atitude do tirano que prepara e dá
nota aos exames e provas, produzindo as médias ofi-
cialmente necessárias de aprovações, reprovações e
méritos, para a do jardineiro que tenta fazer com que
as plantas cresçam e floresçam.
Presume-se que essa transformação se dê na gra-
duação, atingindo sua perfeição no período seguinte,
mas a triste verdade é que a média dos alunos já for-
mados (um talento realmente superior se afirmará em
quaisquer sistemas) se encontra numa posição que
toma ainda mais difícil conseguir uma independência
intelectual do que um certo grupo de estudantes ainda
universitários que, devido ao seu alto nível escolar,
são dispensados das aulas obrigatórias durante o últi-
mo ano.
É o diretor do departamento que d si 'li l 1(1111
os cursos e seminários de pesquisa qu () l' llUllIll .I'
formado precisa seguir a cada s m xtr ( plll V II
são por demais numerosos), m qu I 11I li lul \I I' \I ,

431
conseguir notas altas. O tema de sua tese de mes-
trado é, na maioria das vezes, determinado por um de
seus instrutores que também supervisiona o andamento
desta. No final tem de enfrentar um exame planejado
pelo departamento inteiro, exame que nenhum membro
isolado do dito departamento poderia vencer de maneira
honrosa.
Há, entretanto, grande soma de boa vontade de
ambas as partes: bondade e solicitude da parte do .
professor e - falo por experiência própria - lealdade
e responsabilidade da parte do aluno. Mas, dentro
da estrutura de nosso sistema, essas mesmas quali-
dades parecem tornar ainda mais difícil a transforma-
ção dos estudantes em estudiosos. A maioria dos alu-
nos formados em Ciências Humanas não são indepen-
dentes financeiramente. Numa sociedade que, por
boas e suficientes razões, classifica o erudito e o cien-
tista bem abaixo do advogado, médico e, curiosamente,
do homem de negócios bem sucedido, é necessário
uma grande força de vontade e algo que raia à obses-
são, para que o rebento de uma família rica quebre
a resistência dos pais, tios e amigos quando se propõe
a seguir um caminho cuja maior recompensa possível
é uma cátedra com um ganho equivalente de oito a dez
mil dólares por ano. A média dos estudantes já for-
mados, portanto, não vem de famílias ricas e precisa
preparar-se para o trabalho o mais depressa possível,
de modo que aceita as primeiras ofertas que apare-
cerem. Se for um historiador de arte, espera que seus
professores lhe proporcionem a possibilidade de entrar
em qualquer departamento de qualquer museu ou de
ministrar qualquer curso em qualquer universidade; e
os professores fazem o máximo para conseguir isto.
Como resultado, tanto o aluno de pós-graduação como
o professor de pás-graduação, vivem assombrados pelo
que chamo de espectro da perfeição.
Nas universidades alemãs, este espectro da per-
feição ~ ou para ser mais delicado, a preocupação
com um "currículo equilibrado" - não existe. Em
primeiro lugar, a liberdade de movimentos de que
gozam os alunos torna essa sede de aperfeiçoamento

432
desnecessária. Os professores discorrem sobre qual-
quer tema que os absorva no momento, repartindo
assim com os alunos os prazeres da descoberta; e, se
porventura um jovem se interessar por um determinado
assunto sobre o qual não existam aulas ou cursos na
sua universidade, simplesmente muda para outra. Em
segundo lugar, a meta do processo acadêmico como tal
não é dar ao estudante um máximo de conhecimentos,
e sim um máximo de adaptabilidade - não tanto
ensinar-lhe assuntos mas métodos. Quando o histo-
riador de arte europeu deixa a universidade seu bem
mais precioso não ti tanto o conhecimento bastante
desigual sobre o desenvolvimento geral da Arte que
se espera que tenha obtido através dos cursos, pes:
quisas e estudos particulares, nem ~ampouco a Iami-
liaridade maior com o campo escolhido para sua tese,
mas uma habilidade para se tornar um especialista em
qualquer domínio que venha a interessá-lo mais tarde.
Com o passar do ternpo, o mundo do historiador de
arte alemão, - e este escritor não é exceção - tende
a assemelhar-se a um arquipélago de pequenas ilhas
que formam, talvez, um desenho c~erente s: vist~s de
um avião, mas separadas por canais que sao abismos
de ignorância, enquanto que o mundo de seu col~ga
americano pode ser comparado a um planalto maciço
de conhecimentos especializados dominando um deserto
de informações gerais.
Depois dos exames finais - e essa é outra dife-
rença importante - o historiador de arte alemão, se
quiser ingressar na carreira universitária, tem que ficar
de lado durante um certo tempo. Não pode ocupar
um cargo de docente antes que decorram pelo menos
dois ou três anos e que haja produzido uma obra de
peso, cujo tema pode ou não possuir .qualquer ligação
com sua tese de doutoramento. DepOIS de receber sua
venia legendi, como já dissemos antes, tem toda a li-
berdade de ensinar pouco ou muito, como queira. O
jovem master oi arts (mestre em Artes) ou master o!
fine arts (mestre em Belas-Artes), entretanto, podera,
via de regra, aceitar imediatamente um c~rg~ ~e ins-
trutor ou assistente o que, em geral, signiíica um
grande número de 'horas de aula e além disso -

433
devido a uma, mudança recente que pessoalmente
acho desaconselhável - lhe impõe a obrigação tácita
de preparar-se, o mais rápido possível, para o douto-
rame?to que é um pré-requisito para a promoção.
Continua sendo uma peça da máquina, com a diferença
de que agora dá notas em vez de receber, e é dificílimo
para ele achar um meio-termo entre a docência e a
pesquisa que talvez seja a melhor coisa da vida aca-
dêmica.
. Freq~entemente sobrecarregado com uma exces-
siva teaching load (carga letiva) - expressão desa-
gradável que é em si mesma um sintoma da doença
que estou tentando descrever - e não menos fre-
qüentemente privado das facilidades necessárias o
jovem instrutor ou assistente raramente pode pesqui-
sar os problemas que surgem no decurso das aulas de
~?d~ que ta~to ele como os alunos perdem a e~pe-
nencia agradavel e instrutiva que decorre do estudo
comum do inexplorado. E, durante os anos de for-
mação, nunca lhe foi dada a oportunidade de "flanar"
ou '.'perder tempo", por assim dizer. Entretanto, é
precisamente esta possibilidade que faz o humanista.
H??Ianistas não podem ser "treinados"; deve-se per-
mIt~r que. amadureçam O?, se posso usar uma compa-
raçao mais caseira, que fiquem de molho. Não é todo
o mat~rial de leitura que faz parte do Curso 301, mas
uma linha de Erasmo de Roterdã, de Spenser, Dante
ou de algum escritor obscuro que "acenderá a cha-
ma"; e é sempre onde nada temos a procurar que
encontr.amos as melhores coisas. Liber non est qui
no,! ah~~a,!d;, .nihil agit, diz um delicioso provérbio
latino: So e livre aquele que não faz nada de vez
em quando".
Também a esse respeito foram envidados nos
ú.ltimos anos consideráveis esforços para melhorar a
situação. A maioria dos departamentos de Arte não
insistem mais na absoluta 'onisciência de seus M. A.,
M. F. A. * ou mesmo Ph. D., mas permitem uma ou
duas "áreas de concentração". Em alguns casos
dá-se ao aluno uma pausa para "tomar fôlego" entre
• M.A. ,ou M.F.A., grau que corresponde ao "mestrado em
artes ou belas-artes". O primeiro grau universitário americano
é o B.A., Bachelor of Arts. (N. da T.) ,

434
sua formatura e o início da carreira, isso através das
FuIlbright Fellowships (que se limitam, no entanto, a
estudos fora do país e são administradas, pelo menos
quanto às decisões finais, por poderes políticos e não
acadêmicos). As mesmas bolsas da Fundação Fullbright
também estão abertas àqueles que já estão no cabresto
do trabalho, se posso dizer assim, os quais podem, além
do mais, obter ainda um ano ou dois de pesquisa
livre se ganharem prêmios como uma bolsa da Funda-
ção Guggenheim 00 uma admissão temporária no Ins-
tituto de Estudos Avançados, que considera esta espé-
cie de serviço como uma de suas funções primordiais.
Subvenções deste tipo, é claro, desviam o beneficiado
totalmente da docência. Felizmente, hoje em dia, esse
problema de um balanceamento entre o ensino e a
pesquisa começou a chamar alguma atenção. Algumas
universidades, sobretudo Yale e Princeton, usam fun-
dos especiais para desobrigar completamente do' ensino
os membros promissores da faculdade ou, numa abor-
dagem mais natural, cortam pela metade as suas obri-
gações letivas durante um certo período, sem diminuir-
-lhes a paga.

VI
No entanto, ainda há muito a fazer. E nada, a
não ser um milagre, pode alcançar o que considero
como a raiz de todos os nossos problemas, a falta de
preparo adequado no nível do ciclo secundário. Nos-
sas escolas secundárias públicas ~ e mesmo um nú-
mero sempre crescente de escolas particulares caras e
da moda - liberam o futuro humanista com deficiên-
cias que em muitos casos nunca são completamente
sanadas ou que só podem ser minoradas à custa de
muito mais energia e tempo do que é dado a uma
faculdade ou universidade gastar razoavelmente. Pri-
meiro de tudo, acho que é um erro forçar rapazes e
moças a decidirem entre currículos diferentes, sendo
que uns não têm Matemática e Ciências Exatas· e
outros Línguas Clássicas, numa idade em que ainda
não podem saber o que necessitarão mais tarde na
vida. Ainda não encontrei um humanista que lamente

435
o fato de haver aprendido Matemática, Física e Quí-
mica nos seus tempos de ginásio. Inversamente, Robert
Bunsen, um dos maiores cientistas da História, afirmou
que um garoto que só aprende Matemática e nada
mais, não se tornará um matenaático, mas um burro e
que a melhor maneira de educar um cérebro jovem é
ministrar-lhe um curso de Gramática Latina 8.
Entretanto, mesmo se presumirmos que o futuro
humanista teve a sorte de escolher o currículo certo'
quando contava treze ou quatorze anos (numa pes-
quisa recente revelou-se que de cada milhão de estu-
dantes pré-universitários da cidade de Nova York
apenas mil escolhem Latim e somente quatorze têm
a~da de Grego), mesmo assim não terá, via de regra,
sido exposto a esse espírito científico peculiar e índe-
finível que Gilbert Murray chama de religio gramma-
tici - esta estranha religião que torna seus adeptos
tanto inquietos como serenos, entusiastas e pedantes,
escrupulosamente honestos e um tanto presunçosos. A
teoria americana de educação requer que aqueles que
lidem com os jovens - em grande maioria, mulheres
'- saibam muito sobre os "padrões de comporta-
mento", "integração de grupo" e "controle de impulsos
agressivos", mas não se interessa em saber se conhe-
cem a fundo sua matéria ou se nutrem um interesse
genuíno ou ativo por ela. O Gymnasial-professor ale-
mão típico é ~ ou pelo menos era, no meu tempo, _
um homem de muitas falhas, ora pomposo, ora tímido,
quase sempre negligente com a aparência e totalmente
ignorante da psicologia juvenil. Porém, embora se
contentasse em ensinar garotos em vez de rapazes uni-
versitários, era quase sempre um erudito. O homem
que me ensinou Latim era amigo de Theodor
8. Talvez caiba citar por extenso a frase de Bunsen. trans-
mitida por uma testemunha que 'era um biólogo: "Im Anschluss
an Gauss kam Bunsen auf die Frage zu sprechen, in welcher
Weise man einem für Mathematik besonders begabten Jungen
erziehen sole. 'Wenn Sie ihm nur Mathematik beibringen, glau-
ben Sie, dass er ein Mathematiker werden wird? - Nein, ein
Esel', Für besonders wichtig erklãrte er die Denkerziehung
durch die lateinlsche Grammatik. In ihr lernen die Kinder mit
Gedankendinger umgehen, die sie nicht mit Hãnden greifen
kõnnen, die jedoch einer Gesetzmãssigkeit unterliegen. Nur so
lernen sie es, mit Begriffen sicher umzugehen". Ver J. VON
UEXKÜLL, Niegeschaute Welten; Die Umwelten meiner Freunde
Berhm, 1936, p. 142. '

436
Momrnsen e um dos mais acatados especialistas em
Cícero. O homem que me ensinou Grego era editor
do Berliner Philologische W ochenschrijt, e nunca me
esquecerei da impressão que esse adorável pedante
deixou em nós, meninos de quinze anos, ao se des-
culpar por não haver percebido a colocação errada
de uma vírgula numa passagem de Platão. "A falta
foi minha", disse ele, "e no entanto escrevi um artigo
sobre esta mesma vírgula há vinte anos atrás; agora
teremos de refazer a tradução". Como também não
esquecerei seu antípoda, um homem de inteligência e
erudição erasmiana, que se tornou nosso professor de
História no primeiro ano do curso colegial e que se
apresentou com estas palavras: "Senhores,este ano
tentaremos compreender o que aconteceu durante a
assim chamada Idade Média. Fatos serão pressupos-
tos; já têm idade bastante para fazerem uso dos
livros".
É a soma total de pequenas experiências como
estas que fazem uma educação. Tal educação deve
iniciar-se o mais cedo possível, quando os pequenos
cérebros têm maior capacidade de retenção que mais
tarde. E o que vale para o método também vale,
acho eu, para o tema ou matéria. Não acredito que
só se deva ensinar a uma críanç., ou adolescente aqui-
lo que este possa compreender. Na verdade, é a
frase meio digerida, o nome próprio que soa conhe-
cido, o verso meio compreendido, lembrado mais pelo
som e ritmo que pelo significado, que persiste na
memória, captura a imaginação e emerge subitamente,
trinta ou quarenta anos mais tarde, quando nos depa-
ramos com uma pintura baseada no Fasti de Ovídio
ou com uma gravura cujo motivo foi sugerido pela
Ilíada - assim como uma solução saturada de hipos-
sulfito se cristaliza, repentinamente, quando agitada.
Se alguma das nossas fundações estivesse seria-
mente interessada em fazer algo pelas Ciências Hu-
manas poderia estabelecer, experimenti causa, certo
número de escolas de nível médio-modelo dotadas de
fundos e prestígio suficientes para atraírem lentes do
mesmo calibre que os das boas universidades, e estu-
dantes preparados a se submeterem a um programa

437
de estudo que seria considerado por nossos educado-
res progressistas como exorbitante e ineficaz. Porém
as probabilidades a favor de tal aventura são admiti-
damente pequenas. .
Entretanto, a não ser pelo problema aparente-
mente insolúvel da. educação de nível médio o imi-
g.rante humanista, ao olhar para trás, para os' últimos
vinte ano~ passados, não tem motivos para sentir-se
de.senco,raJa~o. Tr.adições enraizadas no solo do pró- ,
pno, pais nao podem e não devem ser transplantadas.
Porem, podem ter uma fertilização cruzada e esta
já é sensível, foi iniciada e está 'em pleno progresso:
Há apenas um ponto no qual devemos tocar em-
bora possa parecer indelicado Iazê-Io: o impressionante
e horrível aumento dessas mesmas forças que nos ex-
pulsaram da Europa em 1930 - nacionalismo e in-
tolerância. Cumpre-nos, é claro, tomar cuidado de
não tirarmos conclusões apressadas. O estrangeiro
tende a ~squ~cer que a história nunca se repete, pelo
me?os n.ao literalmente. ?
mesmo vírus produzirá
efeitos diferentes em orgamsmos diversos e uma das
diferenças que traz maiores esperanças é que os pro-
fessores universitários americanos parecem contender
com os poderes das trevas em lugar de se aliarem a
eles. Pelo menos numa ocasião memorável encontra-
ram apoio numa comissão de ex-alunos cuja voz não
~óde ser ignorada neste país 9. Mas, não devemos
ficar cegos diante do fato de que os americanos podem
a.gora ser le~almente punid?s, não pelo que fazem ou
fizeram, e sim pelo que dizem ou disseram, pensam
o~ pensa~am. E, embora os métodos de castigo não
~eJam hoje os mesmos empregados na Inquisição, são
mconfortavelmente parecidos: estrangulação econômi-
~a, em vez de física, e o pelourinho, em lugar da
impalação,
Dado que a diferença de opinião é considerada
uma heresia, tanto as bases aparentemente inócuas das
Ciências Humanas quanto as das Ciências Sociais e
Naturais ficam seriamente ameaçadas. Da perseguição
9. Ver o relatório do Yale Alumni Committee: "On the
Intellectual and Spiritual Welfare of the Uníversíty Its Students
and Its Faculty", reeditado, na íntegra, e.g., no Prin'ceton AZumni
WeekZy, LU, n, 18, 29 de março de 1952,p. 3.

438
ao biólogo que esposa um ponto de vista heterodoxo
quanto à hereditariedade ou ao economista que duvida
da natureza divina do sistema de empresas livres, até
a perseguição ao diretor de museu que exibe quadros
que fogem ao padrão estabelecido pelo Congressista
Dondero ou ao historiador de Arte que se esqueça de
pronunciar o nome de Rembrandt Peale com a mesma
reverência que o Rembrandt van Rijn.
O professor universitário deve adquirir a confian-
ça de seus alunos. Estes devem ter a-certeza de que,
como profissional, o lente nunca afirmará uma coisa
da qual duvide nem deixará por dizer aquilo que acha
ser seu dever ventilar. Um professor que, como indi-
víduo particular, permita ser forçado a assinar uma
declaração contrária ao seu senso moral ou ao seu
intelecto, ou, ainda pior, a permanecer calado quando
sabe que devia ter falado, sente em seu coração que
perdeu o direito de exigir essa confiança. Enfrenta
seus alunos com a consciência pesada, e um homem
com a consciência pesada é um indivíduo doente. Ou-
çamos Sebastian Castellio, o bravo humanista e teó-
logo, que rompeu com Calvino porque não podia fin-
gir; que, por muitos anos, sustentou a família como
trabalhador braçal para não cometer deslealdade com
o que acreditava ser verdadeiro; e que, pela força de
sua indignação, forçou a posteridade a lembrar do que
Calvino fez a Miguel Servetus. "Forçar uma consciên-
cia", diz CasteIlio, "é pior que matar cruelmente um
homem; pois, o ato de negar suas próprias convicções
destrói a alma" 10.

!O, R. H. BAINTON, "Sebastian Castellio, Champion of Reli-


gious Liberty. 1515-1563",CasteZZioniana; Quatre études sur Sebüs-
tien CasteZZion et !'idée de Za toZérance, Leiden, 1941,p. 25 e ss.

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