23 - Canizares-Esguerra, Jorge - Capítulo 1

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INTRODUÇÃO

A multidão que se reuniu no dia 19 de setembro de 1649 ao longo das estradas que ligavam
o convento franciscano à catedral da cidade de Lima para testemunhar a transferência da
mais sagrada das relíquias – uma lasca da cruz de Cristo, doada pelo papa Urbano VIII
(1568-1644) à Igreja peruana – assistiu também ao lançamento de uma nova campanha para
extirpar a idolatria no arcebispado da capital do vice-reino do Peru. Sete dos mais cultos
padres e missionários da capital foram encarregados por Pedro de Villagómez (1585-1671),
recentemente nomeado arcebispo de Lima, de conduzir esta campanha. Eles apenas esperavam
a ordem para marchar em direção ao interior, carregando flâmulas brancas marcadas com
uma cruz verde e tendo gravados, em letras de cor escarlate, os lemas “Levate signum in
gentibus” (Levantai um estandarte por entre as nações) e “Ecce Crucem Domini, fugite partes
adversae” (Observai a Cruz do Senhor, fugi, inimigos).1 Como Villagómez explicara em
sua pastoral endereçada a todo o clero de sua arquidiocese, estes visitadores eram soldados
de Cristo prestes a começar o segundo capítulo de uma batalha épica e contínua contra
o demônio no Peru. Baseando-se na epístola de Paulo aos efésios (6:10-17), o arcebispo
pedia tanto aos visitadores quanto aos padres paroquiais para que se transformassem em
cavaleiros do Senhor: “No mais, confortai-vos no Senhor e na força de seu poder. Revesti-
vos da armadura de Deus para poderdes resistir às ciladas do diabo. A nossa luta não é contra
forças humanas mas contra os principados, contra as autoridades, contra os dominadores
deste mundo tenebroso, contra os espíritos malévolos dos céus. Tomai, pois, a armadura
de Deus, para que possais resistir ao dia mau, e vitoriosos em tudo, vos manter inabaláveis.
Ficai alerta, cingidos com a verdade, o corpo revestido com a couraça da justiça e os pés
calçados, prontos para anunciar o evangelho da paz. Empunhai a todo momento o escudo da
fé, com o que podereis inutilizar os dardos inflamados do maligno. Tomai, enfim, o capacete
da salvação e a espada do espírito, que é a palavra de Deus”.2
Este espírito de cruzada era necessário, pensava Villagómez, porque o Novo Mundo
há muito estava sob o controle de Satã. Um trapaceiro e mestre dos disfarces, por séculos
o demônio gozara de domínio absoluto sobre os facilmente ludibriáveis nativos do Peru.
Esta soberania inconteste, contudo, havia sido desafiada com a chegada dos exércitos de
Francisco Pizarro. Os conquistadores haviam começado o processo de libertar os nativos do
comando brutal, implacável e tirânico de Satã, porém o demônio não ficara observando tudo
passivamente: ele reagira (fig. 1.).
Embora os nativos já tivessem recebido o evangelho, parecia claro que Satã ainda
estava bastante vivo nos vales costeiros e nos planaltos do Peru, nos quais os ameríndios
continuavam a venerar rios, montanhas, trovões, arco-íris e toda espécie de elementos
sagrados da natureza. Pablo José de Arriaga (1564-1622), jesuíta cujo trabalho sobre idolatrias,
publicado em 1621, era bastante admirado por Villagómez, havia já descrito a escala desta
satânica adoração. Tendo sido membro de uma de um total de três equipes,
Jorge Cañizares-Esguerra

Fig. 1.1. Anônimo, escola de pintura de Cuzco (século XVII), A conquista do Peru. Coleção Poli, Lima.
Tirada de José de Mesa e Teresa Gilbert, Historia de la pintura cuzqueña, 2: 507. A conquista do Peru é
apresentada aqui como uma batalha épica cósmica entre Deus e o demônio. No paraíso, essa batalha é
supervisionada pela Virgem Maria e por Santiago Matamoros, enquanto o arcanjo Miguel assassina Satã.
Na terra, duas legiões de espanhóis (uma laica, a outra religiosa) avançam para atacar os exércitos incas de
Atahualpa.

surgidas entre 1616 e 1618, que visavam debelar idolatrias, Arriaga reportou que, em menos
de dezoito meses, apenas o seu grupo havia conseguido arrancar 5694 confissões, identificar
cerca de 750 feiticeiros e reunir, destruir e queimar em autos-de-fé 603 huacas (objetos
sagrados venerados por uma comunidade), 3140 canopas (relíquias domésticas) e, ao menos,
1100 ancestrais mumificados, para não mencionar as dúzias de corpos de crianças gêmeas
mantidos em jarros e centenas de outras curiosidades sagradas.3
Em sua épica disputa pela soberania no Peru, os visitadores eram antes e acima de
tudo exorcistas. Villagómez, por exemplo, que condenava o uso da tortura e considerava o
exílio a mais dura punição aceitável para feiticeiros reincidentes, ordenou a seus guerreiros
espirituais que exorcizassem cada idólatra arrependido sobre solo sagrado após pregar e
obter confissões dele ou dela. Ele recomendava aos visitadores que reunissem a população na
igreja local e recitassem a seguinte invocação: “Em nome de Deus Todo Poderoso, de Jesus
Cristo seu filho e do Espírito Santo, eu exorcizo seus espíritos impuros. Abandonai [espíritos
impuros] estes servos de Deus, os quais Deus nosso Senhor [deseja] libertar de seu erro e de
seu feitiço”.4

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Introdução

Frente à atemorizante tarefa de extirpar o demônio do Peru, Villagómez se voltava


para a cruz (ver fig. 1.2). Ele programou, portanto, para que a partida dos sete cavaleiros
coincidisse com a transferência da relíquia, a qual fora dada originalmente pelo patriarca
Nicéforo (758-829) ao papa Leão III (795-816),5 pois acreditava que, no Peru, a cruz agiria
contra a idolatria da mesma maneira que a Arca dos israelitas havia destruído a imagem do
deus filisteu Dagon (1 Sam. 5: os filisteus derrotam os israelitas em batalha, capturam sua
Arca sagrada e a levam ao templo de Dagon). Assim como o templo de Dagon, o Peru era
um espaço simultaneamente habitado tanto pelo demônio quanto por Deus.6 Como explicara
Blas Dacosta, o erudito franciscano a quem Villagómez encarregara de recitar o sermão que
encerraria as atividades daquele dia, Deus concebera a cruz para ser “a navalha mortal de
todas as idolatrias”.7 Inspirando-se na leitura feita por Tommaso de Vio Cajetan (1469-1534)
de João 12:31-32 (“Agora é o julgamento deste mundo. Agora o príncipe deste mundo será
lançado fora. E quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim”), Dacosta argumentava
que o demônio era um príncipe tirânico e que Cristo viera para destituí-lo de sua posição por
meio da cruz.8
Villagómez, entretanto, exigia ainda mais do clero sob seu comando, pois ele pensava
que a disputa no Peru não se resumia a “extirpar, destruir, dispersar e dissipar” (ut evellas, et
destruas, et disperdas et dissipes) as forças de Satã no Peru tendo a cruz em mãos; tratava-
se também de “construir e plantar” (et aedifices et plantes).9 Ele pedia a seus subordinados
que fossem semeadores, “transformando em suaves colinas a acidentada paisagem que
era a selvageria nos corações e nos hábitos dos índios”.10 Párocos e visitadores estavam
destinados a “cultivar este oásis que Deus plantara em meio a um deserto estéril, seco e fora
de caminho”. Estes cultivadores precisam ser cautelosos, contudo, pois assim como Deus
agia como “a chuva que fertiliza”, Satã se comportava como “[o granizo e o vendaval],
abrasando, secando e destruindo o fruto da virtude que crescia nos corações e almas dos
índios”.11 Em sua primeira disputa contra o demônio no Peru, Villagómez explicava, a Igreja
havia extrapolado suas próprias forças, criando um vinhedo no qual as parreiras, por conta
de suas raízes superficiais, não conseguiam resistir à aniquiladora força da enregelante chuva
e ventania de Satã. Era tempo de criar uma robusta plantação no Peru.12 Ao manipular um
conjunto de tropos da primeira modernidade* europeia a respeito do demônio, os quais não
receberam a devida atenção por parte dos historiadores, Villagómez conectou a demonologia
do Novo Mundo à linguagem dos épicos, das cruzadas e do cultivo espiritual.
O episódio de 1649 em Lima resume em poucos traços os temas que procuro explorar
neste livro, nomeadamente, a crença de que os demônios gozavam de grande mobilidade
geográfica e de extraordinário poder sobre os povos e a natureza; a compreensão do diabo

* No original, “Early Modern History”. A expressão é muito comum na historiografia sobre História
Atlântica e foi cunhada ainda no século XIX, na universidade de Cambridge. Tradicionalmente, abarca
o período que vai de c. 1450 até c. 1750. Aqui ela foi traduzida como primeira modernidade, início da
modernidade ou apenas como Idade Moderna, de acordo com o contexto em que foi empregado e seguindo
sugestões do próprio autor.

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Jorge Cañizares-Esguerra

Fig. 1.2. A cruz protege os frades franciscanos dos demônios. Imagem retirada de Diego Muñoz Camargo
(1529-1599), Descripción de la ciudad y província de Tlaxcala. Muñoz Camargo era um mestiço. De acordo
com Fernando Cervantes (1994), os povos indígenas da América central rapidamente assumiram para si
as idéias européias acerca do diabo. Como os doze apóstolos de Cristo, os doze missionários franciscanos
foram designados para o México em 1523 de modo a expulsar o demônio. O ministro-geral dos franciscano,
Francisco de los Angeles, enviou os doze para formar uma vanguarda de um exército de cavaleiros,
afirmando: “Ide (...) e armados com o escudo da fé e com a armadura da justiça com a espada do espírito
da salvação, com o elmo e a lança da perseverança, lutai contra a antiga serpente que procura e tenta tomar
para si o domínio sobre as almas redimidas com o preciosíssimo Sangue de Cristo e lhes sede vitoriosos”
(Francisco Angelorum, “Ordens dadas aos Doze” [1523], in Colonial Spanish America: A Documentary
History, ed. Mills and Taylor, 64).

como um soberano tirânico, pois ele havia escolhido o Novo Mundo como seu feudo; a
percepção de que a colonização se desenvolvia como uma contínua batalha contra um Satã
teimosamente resistente; e a visão de que a América era ou um falso paraíso ou uma área
selvagem que precisava ser transformada num bem-cuidado jardim pelos heróis cristãos.
Embora paradigmaticamente presentes na história da campanha organizada por Villagómez
e protagonizada por guerreiros espirituais que tanto seguravam cruzes buscando sacrificar o
dragão da idolatria quanto se valiam de enxadas para remover as ervas daninhas e cultivar
pomares, não se deve pressupor que estes temas eram típicos apenas da colonização ibérica.
Os ibéricos, como nós frequentemente somos levados a crer, viam a si mesmos
como cruzados engajados numa campanha expansionista de reconquista, primeiro contra os

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Introdução

mouros, depois contra os ameríndios. Logo, a imagem mobilizada por Villagómez de padres
guerreiros combatendo Satã combina bem com este estereótipo do expansionismo ibérico.
Não se pode negar que a cruzada e a cavalaria tiveram um papel crucial na Península Ibérica
em inícios da Idade Moderna. Trabalhos recentes de Felipe Fernández-Armesto acerca de
Colombo, de Sanjay Subrahmanyam sobre Vasco da Gama e de Peter Russell a respeito do
Infante D. Henrique, o Navegador, demonstram em vívidos detalhes como estes elementos
atuaram como molas propulsoras da colonização hispânica e portuguesa no Novo Mundo,
na África e na Índia.13 Os conquistadores velejavam em direção ao desconhecido esperando
encontrar tesouros e aliados de modo a lançar, mais uma vez, uma cruzada para recapturar
Jerusalém. Da mesma forma, eles se lançavam aos mares buscando estabelecer seus próprios
domínios por meio de façanhas no campo de batalha. Nos séculos XIV e XV, as conquistas
das Ilhas Canárias, dos Açores, da Madeira e do arquipélago do Cabo Verde deram vassalos
e terras a aventureiros ibéricos, italianos e franceses que ostentavam nomes como Lancelot e
Gadifer (ver fig. 1.3).14
O ethos da cruzada e da cavalaria, contudo, tem sido utilizado para distinguir a
expansão colonial da Península Ibérica católica daquela da Grã-Bretanha protestante. William
Prescott, por exemplo, popularizou entre o público norte-americano oitocentista a imagem dos
conquistadores espanhóis enquanto simultaneamente sujeitos cheios de atavismos medievais
e heróis de cavalaria, explicando assim porque a América hispânica se desenvolvera de uma
maneira tão diferente da América anglo-saxã.15 Este livro procura superar tais distinções e
demonstrar que algumas justificativas para a colonização na Massachussets puritana colonial
não eram tão diferentes, na verdade, daquelas esposadas, digamos, pela Lima católica. Este
livro postula que os protestantes britânicos e os católicos espanhóis utilizaram discursos
religiosos semelhantes visando a explicar e justificar a conquista e a colonização: uma
interpretação da expansão territorial sancionada pela Bíblia, parte de uma duradoura tradição
cristã de violência sagrada dirigida contra inimigos demoníacos interiores ou exteriores.
Por volta da mesma época em que Villagómez mandara seus guerreiros espirituais
remover o demônio dos Andes peruanos, por exemplo, o clérigo puritano Edward Johnson
(1599-1672) publicou um épico notavelmente similar no qual heróis cristãos combatem o
demônio no Novo Mundo (fig. 1.4). A história das colônias da Nova Inglaterra de Johnson
(1654) se inicia com um apelo às armas endereçado a seus camaradas puritanos: “Vós sois
chamados os fiéis Soldados do Senhor (...) destruindo o Reino do Anticristo (...) tomai suas
Armas e marchai virilmente até que todos os opositores do Reino Cristão sejam abolidos (...)
não temei seu pequeno número, pois cada Soldado comum em Campo Cristão será como
Davi que assassinou o grande Golias”.16 Johnson desejava que seus guerreiros puritanos
estivessem armados e preparados para lutar contra Satã, pois “o povo de Cristo deve se
comportar com Disciplina militar (...) Guardai-vos com toda sorte de armas para a guerra,
azeitai vossas Espadas, Sabres e todas as outras armas brancas”.17

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Jorge Cañizares-Esguerra

Fig. 1.3. (lado oposto) Os doze trabalho de Hércules, a partir de Pietro Marire d’Anghiera, De orbe novo
(Alcalá de Hernares, 1530). Cortesia da Huntington Library, San Marino, Califórnia. Esta imagem apareceu
pela primeira vez em Heredoti libri nomen (Colônia, 1526). O frontispício supostamente representa todos
os trabalhos de Hércules. Este é o primeiro documento visual que explicitamente conecta a colonização
européia da América ao discurso que trata do épico e do demonológico. Na imaginação de Miguel de
Esguia, quem produziu esta edição póstuma da crônica de Anghiera (1457-1526), a conquista espanhola do
Novo Mundo promete trazer ao herói-conquistador riquezas inimagináveis (aqui representadas pelas maçãs
douradas das Hespérides). Porém para obter esta fortuna (material assim como espiritual), o herói necessita
primeiro vencer o dragão multicéfalo da idolatria, derrotar o gigante Anteu e enganar Atlas. Eu identifiquei
as seguintes cenas, dispostas em sentido horário a partir da esquerda no topo: Hércules e seu meio-irmão
Íficles brincam com serpentes em seu berço (não se trata de um dos doze trabalhos); primeiro trabalho,
o Leão de Nemeia; segundo trabalho, a Hidra de Lerna; décimo primeiro trabalho, Hércules derrotando
Anteu; ainda o décimo primeiro trabalho, Hércules nas Hespérides; décimo trabalho, o roubo ao gado de
Gerião; Hércules imolando a si mesmo em uma pira (também não se trata de um dos trabalhos); décimo
segundo trabalho, Cérbero; nono trabalho, o cinturão de Hipólito; terceiro trabalho, a corça de Cerineia;
décimo primeiro trabalho, Atlas e Hércules; oitavo trabalho, os cavalos antropófagos de Diomedes; quarto
trabalho, o javali de Erimanto. O quinto (os estábulos de Áugias), o sexto (as aves do Estínfalo) e o sétimo
(o touro de Creta) trabalhos não estão representados. É revelador que três das imagens deste frontispício
mostrem a busca de Hércules pelas maçãs douradas das Hespérides.

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Introdução

Fig. 1.4. Davi e Golias. Detalha do frontispício de Benjamin Tompson, Sad and Deplorable News from
New England. Cortesia da Huntington Library, San Marino, California. O livro de Tompson é um poema
épico a respeito da Guerra do Rei Felipe. Como Edward Johnson, Tompson apresenta os nativos como
lacaios de Satã, os quais, como demônios no Inferno, esquartejam os corpos. Os colonos, por seu turno,
aparecem como heróis épicos modelados a partir de Davi, que aniquilou o gigante filisteu Golias. Esta
ilustração demonstra a importância da leitura tipológica na colonização do Novo Mundo.

Este tom épico e marcial transparece por toda a narrativa de Johnson. Antes de partirem
para o Novo Mundo, seus puritanos têm de confrontar Satã sob a forma de papistas e
antinomianos.18 No mar, eles entram em ferrenhas disputas com o demônio. Logo após
levantar âncora em direção a Massachussetts, com sua carga puritana, a nau-capitânia Arbella
é ameaçada por tempestades induzidas pelo diabo. Deus, contudo, intervém: “muitas destas
pessoas encontram adversidades semelhantes na natureza (...) [e se enfastiam e se tornam
descrentes], mas aquele que é sensível às enfermidades de seu povo, rechaça os ventos e
os Mares em sua defesa”.19 Temendo a chegada do milênio, quando será acorrentado no

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Jorge Cañizares-Esguerra

Inferno, e “vendo como esses resolutos Soldados de Cristo na Nova Inglaterra labutaram
sob infatigáveis esforços não apenas para a ruína final do Anticristo, mas também para o
avanço do Reino de Deus”, Satã “trama uma nova maneira de interromper (como se isso
fosse possível) este trabalho de Reforma”, estimulando a emergência, entre os colonos, de
seitas como gortenistas, familistas, seekers, antinomianos, anabatistas, arminianos, arianos e
formalistas, cujas “cabeças de Hidra” serão felizmente “arrancadas” pelo “afiado gládio da
Palavra”.20
Satã, entretanto, possuía à sua disposição mais do que dissidentes protestantes para
ameaçar a sobrevivência dos novos israelitas na Canãa americana, pois seus verdadeiros
lacaios eram os ameríndios. Os puritanos, portanto, enfrentam primeiro os “Tarratinos”, os
quais, como os demônios dedicados a esquartejar corpos no Inferno, “comeriam estes Homens
vivos, amarrar-lhes-iam a Árvores, e roeriam a carne de seus ossos pedaço por pedaço”.21
Os inimigos mais formidáveis dos puritanos, entretanto, eram os Pequot, que, como os
Tarratinos, “se banqueteavam de seus corpos como corvos”. A guerra entre os puritanos e os
Pequot estourara nos anos de 1636-1637. A querela, pensava Johnson, era “tão antiga quanto
o tempo de Adão, ocasionada por aquela antiga inimizade entre a Semente da Mulher e o
Gérmen da Serpente, que era o grande senhorio desta guerra”.22 Claramente, os Pequot não
eram “apenas homens, mas também Demônios; pois certamente [Satã] estava mais do que
ordinariamente presente entre esta hoste Índia”.23 De acordo com Johnson, os inimigos mais
ameaçadores entre os Pequot eram os seus xamãs, que eram capazes de manipular a natureza
e de produzir “insólitos acontecimentos com a ajuda de Satã”.24
Johnson argumentava que Satã havia encurralado completamente os puritanos no
campo de batalha americano. De um lado (à direita), ele havia alinhado “as condenáveis
Doutrinas” dos antinomianos, “como outros dos amaldiçoados engenhos de Satã para
emboscar pobres almas”. Em frente às tropas puritanas, o demônio havia posicionado “as
bárbaras e sanguinolentas gentes chamadas Peaquods”. Na retaguarda, no oceano, o diabo
engendrara tempestades de forma a obstruir qualquer rota de fuga possível. Finalmente, do
lado oposto ao ocupado pelos colonos, à esquerda, Satã localizara “o Deserto e a terrível
Selvageria” da América.25 Junto com tempestades ao mar, Dissidentes* e ataques satânicos
dos ameríndios, a própria paisagem aliara-se ao demônio na disputa para dizimar os colonos
(ver fig. 1.5).26
Porque, então, alguém “passaria para além do precioso Oceano e lá ameaçaria sua
própria pessoa em batalhas contra milhares de Malignos Inimigos?”.27 Johnson respondia
esta pergunta apontando simplesmente para “a milagrosa providência”, pois na batalha
épica contra Satã, Deus estava do lado dos colonos. Para evitar que os puritanos morressem
afogados ou desnutridos, Deus enviava chuvas em tempo de estiagem e aplacava as

* O nome “Dissenters” refere-se aos Dissidentes ingleses, denominações religiosas que romperam com a
Igreja anglicana, rejeitavam a tutela estatal e fundaram suas próprias comunidades, como os presbiterianos,
os batistas e anabatistas, puritanos e quakers.

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Introdução

Fig. 1.5. A besta do Apocalipse representa nos lagos do vale central mexicano. De Gemelli Careri, Giro
del mondo (Nápoles, 1699-1700). Cortesia da John Carter Brown Library, Brown University, Providence,
Rhode Island. Esta imagem captura de modo admirável a afirmação de Edward Johnson de que a própria
paisagem americana era um dos quatro aliados de Satã no Novo Mundo (os outros sendo os ameríndios,
as tempestades no mar e os dissidentes protestantes). Gemelli Careri era um viajante italiano que visitou o
México na década de 1690 na última parte de uma viagem que também o levou para o Sião, a China e para o
Japão. No México, foi-lhe dado este mapa que apresentava o sistema de drenagem do vale central na época
da chegada dos europeus. Os rios do vale foram drenados numa série de lagos de variados tamanhos, um dos
quais, o Lago do México, frequentemente inundava Tenochtitlán, a capital asteca. Engenheiros flamengos
no começo do século XVII projetaram este mapa enquanto desenvolviam um sistema de comportas
abertas nas montanhas no entorno visando secar o vale e, dessa forma, encerrar as enchentes periódicas na
Cidade do México. Mais tarde no mesmo século, eruditos crioulos mexicanos concluíram que este mapa
hidrográfico do vale demonstrava acima de qualquer dúvida que o próprio Satanás havia esculpido o relevo
mexicano: os rios que afluíam para a parte superior do lago “Calco” (Chalco) representavam os chifres do
demônio; o alongado lago Calco, seu pescoço; o arredondado lago do México, sua barriga; os rios “San
Juan”, “Escoputulco” e “Taneplanda”, suas pernas e cascos; e os rios “St. Gioan” e “Papalo”, suas asas.
Confirmando esta visão da aliança do México com Satã como revelada pelo sistema de drenagem da bacia
hidrográfica, os eruditos crioulos ofereceram a Careri leituras cabalísticas dos nomes dos dez monarcas
astecas de “Acamapichtli” a “Quauhtimoc” (Cuauhtemoc), cujo valor numérico combinado resultava em
666, o número da Besta.

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Jorge Cañizares-Esguerra

tempestades lançadas no mar pelo diabo. Em suma, para cada obstáculo colocado por Satã no
caminho dos puritanos, Deus intervém para resgatar os colonos das dificuldades. Esta lógica
providencialista frequentemente é levada ao extremo. No esquema de Johnson, as pragas e a
fome que causavam o caos entre os ameríndios apareciam como os meios engendrados por
Deus para limpar a terra da qual os puritanos desfrutariam.28
O elemento épico na história de Johnson ultrapassa em muito o presente nas pastorais
de Villagómez. Enquanto os heróis deste são visitadores anônimos envergando a cruz como
uma espada e fazendo juramentos a Cristo, os heróis de Johnson transcendem Hércules,
Enéias ou Ulisses. Ao contrário destes heróis clássicos que sempre cediam ante as tentações
da carne, os guerreiros puritanos não se importam com “os doces encantos (...) e cantos
de sereias” da “dama dos Prazeres”. “Estes Soldados de Cristo, cujos alvos são elevados
por [Deus]”, concluía Johnson, “[estão] muito acima do bravo Guerreiro Ulisses”.29 John
Winthrop, “onze vezes governador” da Nova Inglaterra, aparece na história de Johnson na
forma de um cavaleiro empunhando espada a liderar os eleitos contra Babilônia.30
Até mesmo o espírito de cruzada típico da colonização ibérica faz sua aparição
na narrativa de Johnson. Em seu relato da guerra contra os Pequot, os Mohawks são
transformados em um inimigo satânico que os puritanos têm o dever de matar: os mourihawks
(Moorhawks).31 Os leitores podem ser levados a argumentar que Johnson era alguém
excêntrico, tão desorientado e perdido num mundo próprio de cruzadas e cavaleiros que
acabava por encontrar até mesmo mouros no Novo Mundo. Porém ele não estava sozinho.
Consideremos, por exemplo, o caso da relação anônima da Guerra do Rei Filipe (1675-
1676)* intitulada News from New England (1676). Após esboçar um retrato satânico dos
ameríndios, o autor calmamente acrescenta a seguinte entrada à sua contagem dos mortos
em batalha: “Em Woodcock, distante dez milhas de Secouch, no dia 16 de Maio, houve uma
pequena contenda envolvendo os mouros e os cristãos na qual três destes foram assassinados,
dois feridos e apenas dois Índios mortos”.32 Estes exemplos parecem desmentir a tradição
historiográfica que, desde Prescott, procurou exagerar as diferenças culturais entre os
discursos anglo-protestante e católico-ibérico que justificavam a expansão colonial no Novo
Mundo. Está claro que os protestantes também estavam dispostos a principiar a reconquista
contra o demônio na América e a resgatar o continente para Deus.
Conquanto típicas para sua época, as idéias esposadas por Villagómez e Johnson
nos confrontam com estruturas mentais que desafiam nossa sensibilidade moderna, pois eles
habitavam um mundo no qual demônios vagavam pela terra desencadeando tempestades
e possuindo populações inteiras.33 Em meados do século XVII, os colonos de ascendência

* Rei Filipe foi o nome dado ao líder da nação Wampanoag, Metacomet, pelos colonos. Embora tenha
feito alianças com os puritanos em 1671, acabou liderando um levante indígena (que envolveu outras etnias
indígenas) contra colonos em 1675. Conhecida como a Guerra do Rei Filipe, a rebelião atacou cerca de
50 assentamentos ingleses na Nova Inglaterra (mais da metade do total) e matou aproximadamente mil
puritanos. Ao serem derrotados pelos colonos, os Wampanoag foram dizimados e Metacomet foi executado
em agosto de 1676, tendo a cabeça exposta em praça pública..

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Introdução

europeia estavam inteiramente convencidos da esmagadora presença de demônios no Novo


Mundo. Satã aparecia para os colonos como um senhor tirânico, dono de castelos e fortes por
toda a América e cujos súditos estavam dispostos a lutar até o último homem (ver fig. 1.6).
Após ter dominado o continente por séculos, o diabo repentinamente enfrentava
uma inesperada investida feita por uma vanguarda de tenazes cavaleiros cristãos. Para os
povoadores, a colonização era uma batalha épica infindável. No mundo dos europeus, os
demônios eram verdadeiros, forças físicas cotidianas, e não frutos da imaginação ou metáforas
que assumiam o lugar das intempéries da colonização, como nós com muita condescendência
seríamos levados a assumir.34 Em outras palavras, aos olhos dos colonizadores europeus, a
colonização era um ato de remover à força o diabo daquele território. Seja desbaratando
armadilhas externas concebidas por Satã para enfraquecer os povoamentos coloniais (como,
digamos, piratas, hereges, recaídas idolátricas dos indígenas, guerras de fronteira, políticas
imperiais visando à diminuição da autonomia das colônias etc.), seja pela expulsão física
dos demônios, valendo-se de instrumentos como cruzes (católicos/anglicanos) ou bíblias
(puritanos), uma das maneiras pelas quais os europeus percebiam a colonização era sob a
forma de um confronto épico contra o demônio. Este simples, mas poderoso insight tem
sido frequentemente formulado, mas raramente foi explorado de maneira adequada, uma vez
que os historiadores têm se centrado mais na elucidação dos discursos jurídicos europeus
relativos à posse territorial.
Os historiadores estão apenas parcialmente corretos ao argumentar que os britânicos
eram mais “modernos” que os espanhóis quando justificavam o domínio do território. Tornou-
se ponto pacífico sustentar que os britânicos utilizavam teorias de propriedade derivadas
de John Locke. A terra e os objetos pertenciam àqueles que os haviam transformado por
intermédio do trabalho, e como os britânicos não encontraram vestígios de “trabalho” ou
“labuta” no Novo Mundo, eles consideraram as terras dos nativos vazias e prontas para o
cultivo. Os espanhóis, por outro lado, eram mais “medievais”. Eles justificavam a dominação
territorial reivindicando que o papa possuía dominium e imperium sobre os territórios pagãos.
Da mesma forma que o papa havia transmitido sua soberania aos reis espanhóis, os vassalos
destes se sentiam autorizados a controlar as regiões descobertas.35 Esta distinção não apenas
apaga diferenças cronológicas importantes (a colonização puritana se iniciara cerca de cento
e cinqüenta anos após a chegada dos espanhóis no Novo Mundo) como também deixa de lado
as muito mais importantes fundações bíblicas dos projetos europeus de expansão colonial.
Tanto para os puritanos quanto para os católicos, a colonização era um ato pré-ordenado
por Deus, prefigurado nos tribunais dos israelitas em Canaã. Assim como os israelitas
haviam combatido os filisteus, que formaram persistente resistência como vassalos de Satã,
puritanos e católicos se sentiam autorizados a conquistar a América à força, batalhando
seu caminho num continente infestado de demônios. Em última instância, o objetivo das
duas comunidades religiosas se tornou a transformação daquela “paisagem selvagem” em
verdejantes plantations espirituais.

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Jorge Cañizares-Esguerra

Fig. 1.6. Luis de Riaños, The Road to Hell (ca. 1618-1626). Igreja de Andahuailillas, Departamento de
Cuzco, Peru. A partir de José de Mesa e Teresa Gilbert, Historia de la pintura cuzqueña, 2: 399. O mural é
uma cópia de uma gravura de Jeronimus Wierix (1553-1619) ilustrando o Salmo 106 (que trata da corrupção
idólatra da nação de Israel entre os cananeus). Deve-se perceber que a estrada para o Inferno leva a um
castelo fortificado que inclui um fosso, uma ponte levadiça e arqueiros.

Este discurso demonológico compartilhado é o tema deste livro. Mas antes de


mergulhar nele, é preciso responder uma pergunta: porque comparar especificamente os
puritanos da Nova Inglaterra, e não qualquer outro grupo da América britânica, aos católicos
espanhóis? Dado que Jack Greene já demonstrou que a política, a cultura e a economia
da Nova Inglaterra não eram representativas do conjunto da experiência britânica no Novo
Mundo, pareceria mais razoável estudar as ideologias da colonização nas colônias localizadas
no meio e ao sul da América britânica.36 De fato, como o trabalho de Edward L. Bond
sugere, o discurso da colonização enquanto uma cruzada épica contra o demônio ressoa
tão profundamente na Virgínia seiscentista quanto o fizera na Nova Inglaterra puritana.37
Mas as descobertas de historiadores como Greene ainda não desalojaram os puritanos da
imaginação pública como os colonos quintessencialmente “americanos”. Apenas esta razão

12
Introdução

justifica minha escolha: eu quero alcançar e desafiar um público amplo. Além disso, há a
questão das fontes. Em termos simples, os puritanos legaram-nos um conjunto mais amplo
de fontes primárias que os outros colonos ingleses. Mesmo assim, eu não negligenciei as
outras colônias britânicas, especialmente a Virgínia.
À primeira vista, estabelecer semelhanças entre os clérigos puritanos e espanhóis
não parece fazer muito sentido, afinal a literatura sobre a Reforma nos familiarizou apenas
com as diferenças. Os puritanos eram seguidores de João Calvino (1509-1564), enquanto
os espanhóis eram ferrenhos defensores do papa e líderes da Contra-Reforma. Essas duas
comunidades, logo, desenvolveram duas visão bastante discordantes acerca de Deus, da
salvação, da organização eclesiástica e da conversão dos idólatras. Como seguidores de
Calvino, por exemplo, os puritanos acreditavam que Deus era um soberano todo-poderoso
cujos planos para a humanidade eram inescrutáveis. Na opinião deles, os católicos, os quais
acreditavam que cabia a si mesmos trabalharem por sua Salvação (seja pelo exercício da
virtude ou pela oração), estavam iludidos. Os puritanos consideravam que os católicos
tinham uma visão ridícula de Deus como um negociante mesquinho cuja vontade poderia
ser comprada – através da venda de indulgências, por exemplo – ou dobrada através de
confissões e orações. De acordo com os puritanos, porém, a salvação era um ato predestinado
por Deus e não havia nada que os homens pudessem fazer para mudá-lo. Para eles, os
católicos haviam se desviado da mensagem divina originalmente revelada pelo Antigo e
Novo Testamentos. Ao longo dos séculos, os católicos haviam adicionado instituições e
cerimônias nunca mencionadas na Bíblia. De fato, os puritanos eram assim chamados por
causa de seus esforços para “purificar” a Igreja dessas invenções e por procurarem viver de
acordo com as instituições religiosas, políticas e sociais encontradas na Bíblia. Para eles, as
“invencionices” católicas não eram, na verdade, produto da mente humana, mas sim fraudes
demoníacas: a Espanha da Contra-Reforma representava o papel do Anticristo.38
Essas diferenças teológicas se concretizam nas formas pelas quais estas duas
comunidades abordavam a colonização. Os católicos hispânicos, por exemplo, tinham uma
idéia mais inclusiva do pertencimento à Igreja, além de uma compreensão mais hierárquica de
como se comunicar com Deus. Os espanhóis, portanto, abordavam a conversão exigindo que
os povos indígenas se conformassem a certos rituais e costumes exteriores, mas permitiam
uma grande diversidade no âmbito da prática religiosa. Esta atitude perante a conversão levou
à multiplicação de diversos micro-catolicismos pelo império. Os puritanos, contudo, viam as
coisas diferentemente. Para eles, a conversão implicava a eleição divina: o indivíduo tinha de
ser tocado pela Graça de Deus após uma demorada “preparação”. Deus agia como um selo
sobre a cera do corpo e da alma (justificação), transformando-os eternamente (santificação).
De modo a pertencer a uma igreja puritana, os indivíduos precisavam provar, através de
longas entrevistas e testemunhos (os quais poderiam se dar ao longo de vários meses), que
eles haviam sido de fato tocados pela Graça divina. Quando os puritanos vieram ao Novo
Mundo, estabeleceram regras tão estritas para a conversão que nem mesmo aos filhos dos

13
Jorge Cañizares-Esguerra

anciãos da igreja fora garantido o pertencimento à congregação. Apesar de os protestantes


procurarem converter os ameríndios de forma a apressar a chegada do milênio, os nativos
conversos, na prática, foram poucos e esporádicos.39 De maneira mais simples, enquanto no
século XVII havia milhares, se não milhões, de ameríndios na América hispânica praticando
suas próprias versões do catolicismo, apenas um punhado de indígenas na Nova Inglaterra
podia servir de testemunha à Graça de Deus.
Está claro que havia importantes diferenças separando os puritanos dos hispano-
americanos. Porém também havia semelhanças relevantes – e a bibliografia sobre o
mundo atlântico tem prestado pouca atenção a elas, já que imagina este espaço em termos
amplamente nacionais. Nas páginas seguintes, eu exploro o discurso da demonologia e do
cultivo espiritual* assim como argumento que os puritanos anglo-americanos e os católicos
hispano-americanos viam, de fato, a prática da colonização segundo parâmetros notavelmente
similares.
Mas antes de mergulhar no conteúdo deste livro, é preciso que eu forneça alguns
esclarecimentos a respeito de minha abordagem. Apesar de os europeus confrontarem Satã
por milênios e pensarem que os demônios vagavam pelo mundo todo, a batalha travada
no Novo Mundo era considerada qualitativamente diferente. Não se tratava de pensar que
a América era mais afetada pelos demônios que a Eurásia. Os europeus acreditavam que
havia milhões de anjos bons e maus organizados como exércitos por todo o planeta. Era
um problema de defesa. O demônio e seus subordinados haviam exercido uma soberania
incontestável sobre o Novo Mundo ao longo de mil e quinhentos anos, desde o momento
em que Satã levara um grupo de citas, seu próprio povo eleito, para colonizar as ermas
paragens que era a América por volta da mesma época em que o Evangelho começara a ser
difundido pela Eurásia. O diabo, então, encontrara tempo para estabelecer “fortificações”
no Novo Mundo e criar raízes tanto na paisagem quanto entre os povos. Os europeus,
portanto, combatiam um inimigo externo e não apenas o demônio interior – um inimigo
que eles conheciam bem. Dor, pecado, tentação e possessão há muito eram vistos como
manifestações de um poder demoníaco cerceando a alma do indivíduo. Certamente a batalha
para superar a tentação satânica e evitar o pecado continuaria na América, e os avanços de
Satã sobre a alma individual se manifestavam abertamente como agressão física, em especial
quando ele mirava as mulheres.40 Também é verdade que, para os puritanos, como já notara
Richard Slotkin, o medo de inimigos externos satânicos, particularmente os ameríndios e a
paisagem selvagem, eram meras projeções de obscuras visões calvinistas da alma interior:
a corrupta natureza humana posterior à Queda.41 A luta individual para alcançar a Graça ou
a Salvação nas Índias é, em parte, o assunto deste livro, especialmente na medida em que
tanto puritanos quanto ibéricos procuraram transformar suas almas e colônias em vinhedos
espirituais. Porém eu também estou preocupado com as batalhas que opuseram os europeus a

* Cultivo aqui foi traduzido em seu sentido primeiro, de cultivar um jardim, por exemplo. Em inglês, a
expressão é gardening.

14
Introdução

poderosos inimigos “exteriores” – humanos ou inumanos – dedicados a destruir a comunidade


política: tempestades, terremotos, epidemias, piratas, inimigos externos, hereges, feiticeiros,
burocratas imperiais, ameríndios e escravos africanos.
A minha prioridade ao longo deste livro foi reconstruir a estrutura, a gramática, de
um discurso. Cada uma das miríades de fontes que eu discuto emergiu em contextos sociais e
políticos únicos, foi pensada para persuadir audiências particulares e se endereçava a agendas
específicas. Eu não procurei reconstruir estes variados contextos. Ao invés de historicizar
cada fonte, eu procurei reconstruir uma visão de mundo, a da demonologia no que esta diz
respeito à colonização. A cada momento, porém, eu busquei evitar leituras anacrônicas e
condenatórias do passado. Assim como na reconstrução magistral feita por Brad S. Gregory do
estranho mundo do martírio entre comunidades cristãs (protestantes, anabatistas e católicos)
na primeira modernidade, comunidades caracterizadas por uma disposição para matar e ser
morto que parece abjeta a nossas visões modernas de tolerância e “normalidade” psicológica,
eu tentei reconstruir uma visão de mundo que é igualmente violenta, alheia e ofensiva a nossa
atual sensibilidade acerca do que é fisicamente possível.42
Outro importante elemento a se manter em mente enquanto se lê este livro é que os
discursos da demonologia e do cultivo espiritual eram apenas duas das muitas concepções
à venda no bazar atlântico de idéias.43 Estou ciente de que trato primordialmente das idéias
de letrados, clérigos ou laicos. Nós não devemos, porém, desprezar o estudo do discurso
que identifiquei por ser, ao mesmo tempo, da elite e apenas um dentre muitos discursos
diversos. Ao término deste livro, terá se tornado claro, assim espero, que a demonologia
e o cultivo espiritual são elementos que os estudiosos precisam considerar seriamente se
queremos chegar a um entendimento mais profundo da colonização europeia na primeira
modernidade.
Em terceiro lugar, eu tenho consciência de que o uso de categorias como “ibéricos” e
“puritanos” representa uma postura reducionista frente a estes sujeitos históricos. Sabe-se que
existiam inúmeras variantes no interior da assim chamada tradição puritana (para não dizer
nada das diferentes tendências localizadas à margem deste movimento reformista), da mesma
forma que existia uma extraordinária gama de posições doutrinárias facilmente discerníveis
nas fontes “ibéricas”.44 No caso da demonologia, por exemplo, pode-se mencionar o debate
a respeito da tolerância travado entre os “puritanos” Roger Williams (1604?-1683) e John
Cotton (1584-1652) na década de 1630 em Massachussetts. Williams argumentara que os
hereges eram ervas daninhas no jardim da Igreja, porém a Bíblia não autorizava que eles
fossem extirpados. Além disso, ele acreditava que as armas com as quais se combateria o
diabo não eram físicas, mas espirituais. Logo, de acordo com Williams, a tolerância era a
posição ortodoxa a ser tomada. John Cotton, por seu turno, encontrara passagens bíblicas
que o autorizavam a defender a visão oposta, qual seja a de que os hereges eram, ao mesmo
tempo, ervas daninhas que deviam ser retiradas do jardim cercado da Igreja, e agentes de Satã
a serem removidos física e não espiritualmente.45 Apenas esta controvérsia já demonstra que

15
Jorge Cañizares-Esguerra

existiam importantes diferenças quando se tratava de pensar o demônio como um inimigo


externo da comunidade da Nova Inglaterra. Deve-se notar, porém, que Williams encontrava-
se tão marginalizado frente às opiniões de sua igreja que ele fora excomungado. Quando se
tratava da ameaça representada por Satã à comunidade política, havia de fato uma ortodoxia
“puritana”. Isso também é verdade para todos os outros grupos discutidos neste livro.
Quarto, eu assumo que a demonização do continente americano ganhou força no
século XVII. A maior parte das fontes por mim utilizadas foi produzida neste período.
Muitas explicações já foram levantadas para entender por que os europeus passaram a temer
mais o demônio ao longo dos Seiscentos. John Bossy, Fernando Cervantes e Stuart Clark
argumentaram que a Reforma alterou a concepção de pecado. Conforme a moralidade passou
a se organizar em torno dos Dez Mandamentos e não mais ao redor das virtudes cardeais (a
aversão aos pecados sociais), a sanção deuteronômica contra a falsa adoração transformou a
tríade “heresia, idolatria e feitiçaria” num contínuo de crimes dirigidos à religião. Este novo
foco alavancou o temor aos poderes de Satã. Cervantes e Clark também argumentam que
a ascensão do nominalismo contribuiu para reforçar a imagem de uma poderosa deidade
comandando um cosmos ilimitado pelas leis naturais. É preciso lembrar que o sobrenatural
era não apenas o palco dos fenômenos ocultos, mas também o domínio do diabo.46
Por último, eu me cerco constantemente de imagens como fontes primárias. Imagens
são normalmente utilizadas pelos historiadores como meras ilustrações para tornar suas
narrativas mais vivas. Minha intenção, ao contrário, foi apresentar as imagens como uma
evidência adicional às fontes escritas. Muitas delas, portanto, possuem longas legendas que
devem ser lidas como notas de rodapé expandidas. Em alguns casos, as ilustrações são a
única maneira disponível de se elucidar um argumento. Se tornará óbvio que, com algumas
poucas exceções, a maioria das imagens discutidas neste livro provêm de fontes ibéricas.
Este desequilíbrio poderia apontar para uma ampla diferença entre a América britânica e
a hispânica, sendo a última uma cultura que confessadamente privilegia o visual e o oral
enquanto a primeira se baseia mais na palavra impressa. Dicotomias como essas, entretanto,
simplificam demasiadamente o passado. Não apenas a América hispânica possuía uma
vibrante produção impressa, como também as áreas de colonização britânica detinham
uma agitada cultura manuscrita e oral, particularmente na região da Baía de Chesapeake.
Mais importante ainda, a recriação mental do imaginário bíblico era um elemento central
da piedade, da meditação e da oração puritanas. Sermões puritanos que sobreviveram até
nós estão repletos de representações impressionantes, marcadamente similares às imagens
discutidas neste livro.47
Eu estou preocupado tanto com as mudanças quanto com a persistência através do
tempo de um discurso demonológico e colonizatório. O Príncipe das Trevas, na forma de um
inimigo externo, transformou suas táticas ao longo do tempo. No caso das fontes hispano-
americanas que estudo, os ameríndios eram primeiramente vistos como os aliados mais
poderosos do demônio no Novo Mundo, mas assim que o regime colonial foi estabelecido

16
Introdução

em lugares como o Peru e o México, o principal inimigo demoníaco tornou-se outro. No


caso dos franciscanos espirituais no México, os doze “apóstolos” vieram a uma arruinada
Tenochtitlán carregando três séculos de predições apocalípticas joaquimitas.* Os frades
acreditavam que a prédica do Evangelho a povos até então desconhecidos – mantidos em
servidão pelo demônio – era um muito antecipado sinal do início do milênio. Para eles, os
astecas eram os eleitos de Satã. Satanás há muito era conhecido por suas paródias de Deus. Ao
longo da Idade Média, acreditava-se cada vez mais que o Anticristo era uma réplica invertida
de Cristo: um falso profeta, um prestidigitador, destinado a ter sua própria Anunciação ou
Ressurreição. No México, os franciscanos não encontraram nenhum Anticristo, mas sim
a mais perfeita zombaria de Deus feita por Satã, qual seja, uma sociedade cuja história e
instituições pareciam ser uma imagem no espelho daquela dos próprios israelitas. De acordo
com os franciscanos, Satã escolhera os astecas para recapitular cada um dos episódios da
história dos israelitas: o êxodo a uma Terra Prometida, o assentamento entre os cananeus,
monarquias como aquelas de Davi e Salomão, a construção de um templo, além de profecias
apocalípticas e de destruição iminente. A zombaria de Lúcifer a respeito da Eucaristia e
do milagre da transubstanciação, por outro lado, tomava lugar a cada semana nos degraus
do templo de Huitzilopochtli, onde se servia às massas os corações e corpos de guerreiros
sacrificados. Não causa surpresa, portanto, que os franciscanos considerassem Hernán Cortés
(1485-1547) como uma figura providencial, um “General de Cristo” que encetara a primeira
batalha do conflito épico para apressar o milênio. Os franciscanos viam a colonização como
uma guerra santa espiritual e construíram seus grandiosos conjuntos missioneiros no México
central com longas muralhas ameiadas servindo como fortificações contra o demônio (os
agostinianos, pregando aos otomi† em Ixmiquilpan, na província de Hidalgo, e procurando
representar as infindáveis lutas espirituais entre o Bem e o Mal, tinham murais com batalhas
sangrentas entre os exércitos otomi e seus vizinhos, os selvagens e demoníacos chichimecas,‡

* O autor refere-se a primeira missão franciscana que chegou à Nova Espanha, à pedido de Cortés, em 1524.
Liderados por Martín de Valência, tal grupo tornou-se paradigmático para as gerações futuras de seráficos
no continente. Desde os anos 1950, com a publicação de John Leddy Phelan sobre o milenarismo contido
nos textos dos franciscanos que vieram ao Novo Mundo, inaugurou-se uma forma de ler esses escritos,
associando-os às tradições que remetem ao monge Joaquin de Fiore, no século XIII, e sua interpretação
milenarista baseada nas três idades do mundo. Os franciscanos joaquimitas ficaram conhecidos como
Espirituais. Mas, quando a América foi descoberta, os Espirituais já haviam sido extintos, considerados
sacrílegos. Nominalmente, todos os seráficos que cruzaram o Atlântico eram da estrita observância da regra
(ou, simplesmente, observantes), fiéis ao voto de pobreza. Os observantes opunham-se aos franciscanos
Conventuais, para cujos monastérios não era ilícito o direito de propriedade. A sobreposição de Espirituais
e Observantes oblitera diferenças cruciais entre os dois ramos, mas, de qualquer forma, é inegável o
milenalismo em ambas. Há, contudo, intenso debate se são de fato apropriações de leituras joaquimitas,
agostinianas ou de profetas veterotestamentários as que fundamentavam os textos e ações observantes na
América.
† Grupo indígena sedentário que ocupava a região central do México.
‡ Nome genérico dado pelos próprios indígenas de língua nahuatle, como os astecas, aos grupos nômades
e semi-nômades que ocupavam o Norte do México. A etimologia da palavra “chichimeca” está relacionada
ao não reconhecimento da língua de tais povos: as nações nahuatle, ao ouvirem as línguas do Norte,
compreendiam apenas uma série de balbuciares (“chi”, “chi”), daí o nome que lhes empregaram.

17
Jorge Cañizares-Esguerra

incluindo decapitações, pintados na própria igreja da missão). Ainda assim, todos estes
conjuntos missioneiros eram construídos com a planta da Nova Jerusalém em mente (ver fig.
1.7). Esta mesma narrativa milenarista permitiu que os franciscanos abraçassem os nativos
como os novos eleitos de Deus. Ao criar esta imagem invertida da Igreja de Israel, Satã
escolhera os astecas por sua convicta devoção e piedade. Procurando ofuscar a legislação
sacerdotal do Levítico de Moisés, Satã se aproximara de um povo cujo voluntarismo em
aceder a regras de penitência e sacrifício superava em muito aquelas de um cristão médio.
Essas eram precisamente as virtudes que os primeiros franciscanos precisavam para criar uma
nova Jerusalém nas Índias: se catequizados adequadamente, os nativos podiam facilmente
se transformar em extensas comunidades de santos. Dessa forma, o franciscano Toribio de
Benavante, também conhecido como Motolínia (1482?-1569), argumentou em sua Historia
de los Indios de la Nueva España (c. 1550) que os nativos eram tão piedosos, tão espartanos
em suas necessidades, de tal forma desapegados da busca de riqueza, tão dóceis, humildes
e dispostos a suportar sofrimento e sacrifício que eles não tinham “quaisquer impedimentos
que os mantivessem longe de alcançar o paraíso, ao contrário dos muitos obstáculos que nós
espanhóis encontramos e que nos atrasam”.48 Curiosamente, assim que os frades abraçaram
os nativos como a argila modelável ideal com a qual construir a Igreja do milênio, da mesma
forma que começaram a disputar com os colonos pelos corpos (e não pelas almas) dos
nativos, os franciscanos se tornaram mais propensos a perceber as artimanhas de Satã no
Novo Mundo representadas nas ações dos próprios descendentes do “General de Cristo”, os
colonos leigos. Um franciscano, Frei Juan de Zumárraga (1468-1548), primeiro arcebispo
do México, denunciou os encomenderos como não-cristãos “repulsivos e desprezíveis”, que
exalavam um “odor infernal” que contrastava dramaticamente com a “divina fragrância destes
pobres indígenas”.49 Os franciscanos não estavam sozinhos quanto a isso. Bartolomé de las
Casas (1474-1566) argumentou incansavelmente que os conquistadores eram demônios e
que o regime colonial era o inferno. Pelo final do século XVI, conforme a Coroa hispânica
procurava fortalecer a Igreja secular (o clero que não pertencia às ordens religiosas) e diminuir
a hegemonia que as ordens religiosas tinham sobre o ministério espiritual dos ameríndios,
ficou mais fácil para os franciscanos encontrarem Satã encarnado na estrutura eclesiástica.50
Nos capítulos seguintes, se tornará mais claro que o principal inimigo satânico tanto
dos ibéricos quanto dos britânicos no Novo Mundo era um alvo móvel, constantemente
trocando de posição conforme o grupo envolvido e as circunstâncias de cada momento.
Os criollos* mexicanos, eu argumento, assumiram apaixonadamente o culto de Nossa
Senhora de Guadalupe porque eles encontraram em suas leituras tipológicas daquele ídolo o
cumprimento de Apocalipse 12:7-9, isto é, a realização de batalhas travadas entre o Dragão e
o arcanjo Miguel no Paraíso. Este texto, eles pensavam, era uma profecia da conquista dos

* Descendentes de espanhóis, mas nascidos no continente americano. A etimologia da palavra vem do


verbo “criar”, ou seja, criollos seriam os criados aqui. Os espanhóis nascidos na Europa eram chamados de
peninsulares ou chapetones.

18
Introdução

Fig. 1.7. “Emblema das coisas que os frades fazem nas Índias [tipus eorum que frates faciunt in Novo
Indiarum Orbe]”, de Diego Valadés, Rhetorica christiana (1579). Cortesia da John Carter Brown Library,
Brown University, Providence, Rhode Island. Liderados por Martin Valencia e pelo próprio São Francisco,
doze franciscanos carregam a Sagrada Igreja Romana para o Novo Mundo pela primeira vez (“primi
sanctae romane aeclesia [sic] in novo indiarum orbe portatores”). O Senhor havia pré-ordenado esta tarefa
em Gênesis 28: 14-15: “Tua descendência será como o pó da terra, e te espalharás para o ocidente e para
o oriente, para o norte e para o sul (...). Estou contigo e te guardarei aonde quer que vás” (dilatarebis ad
orientem, occidentem, septentrionem, ac meridien et ero custos tuus et tuorum). A Igreja carregada pelos
doze franciscanos é habitada pelo Espírito Santo (“spiritus santus abitat in ea”), correspondendo ao milênio,
a terceira era espiritual de Joachim de Fiore. A Igreja no Novo Orbe Indiarum é um jardim amuralhado, uma
Nova Jerusalém: suas muralhas se assentam sobre doze fundações de pedra que carregam o nome dos doze
apóstolos do Cordeiro (Apocalipse 21:14) (os doze pequenos retângulos espalhados pelo chão parecem
significar tanto os túmulos dos apóstolos franciscanos quanto as fundações da nova Igreja do milênio).
O Espírito Santo que desce do trono de Deus fertiliza um caminho de árvores onde os enfermos (infirmi)
são levados a fim de ser curados. As árvores no complexo franciscano parecem, então, corresponder à
Árvore da Vida da Nova Jerusalém cujas folhas “servem para curar as nações” (Apocalipse 22:2). Nesta
Nova Jerusalém, os frades administram a justiça, enterram os mortos, consagram os sacramentos (batismo,
confissão, Eucaristia, crisma, matrimônio, ordenação e a extrema unção) assim como ensinam aos Índios
música e a ler e escrever. O Evangelho também é ensinado através do uso de imagens. Além dos livros e das
imagens, contudo, deve-se notar que os frades usam a Natureza, sob a forma de uma árvore, para instruir
suas cobranças na doutrina (examen matrimonii). Acerca da arquitetura milenarística nos complexos
missioneiros construídos pelos franciscanos, augustinianos e dominicanos no México quinhentista, ver
Jaime Lara (2004) e Samuel Edgerton (2002).

19
Jorge Cañizares-Esguerra

astecas por Cortés. Mas os criollos estavam ainda mais fascinados por Apocalipse 12:13-17,
pois estas passagens descreviam as batalhas do Dragão contra a Mulher do Apocalipse e
seus descendentes na Terra. De acordo com o clero criollo, no Livro da Revelação, São João
antecipara os sofrimentos dos herdeiros dos conquistadores na América sob o jugo de seus
satânicos dominadores peninsulares. Os criollos hispano-americanos gostavam de imaginar
os que chegavam da Península Ibérica (incluindo conversos, mercadores e oficiais da Coroa)
como aliados de Satã.
Os peninsulares, por seu turno, demonizavam os criollos, apresentando-os como
ameríndios corruptos e degenerados. Mais importante ainda, os peninsulares identificavam
as batalhas contra o Príncipe das Trevas no Novo Mundo como parte de uma disputa
geopolítica muito mais ampla travada entre Deus e Lúcifer. O auto sacramental (um gênero
teatral representado durante o Corpus Christi) de Pedro Calderón de la Barca, La semilla
y la cizaña (O joio e o trigo) exemplifica a atitude dos intelectuais espanhóis em Madri.
Calderón interpreta o capítulo 13 do Evangelho de Mateus como uma prefiguração do destino
do Evangelho nos quatro continentes (cada um representando um tipo de solo) e mostra
Cristo vestido como um semeador e o diabo como uma erva daninha. Procurando evitar
que o trigo plantado por Cristo florescesse, o demônio (Cizaña) se cerca de um conjunto de
personagens dramáticas vestidas como demônios ou fúrias representando tormentas (Cierzo
[o vento norte]), uma nuvem de gafanhotos (Ira) e a neblina (Niebla) e que simbolizam cada
um dos continentes e suas principais religiões. Um dos quatro continentes onde o Cristo
semeador planta suas sementes é a “América” (com o solo revolto, no qual as sementes são
sufocadas por ervas), que aparece com um vestido de plumas, cavalgando um crocodilo e
acompanhada pela displicente “Idolatria”. Os outros três são a “Ásia” (solo rochoso onde
algumas plantas crescem, porém sem firmarem raízes profundas), que aparece vestida como
um judeu em cima de um elefante e sob a supervisão do “Judaísmo”; “África”, um solo
superficial cujas sementes são facilmente capturadas por pássaros e que aparece vestida
como um mouro, montada num leão e controlada pelo “Paganismo”; por fim, a “Europa”
– de bom solo, no qual as sementes se centuplicam – com vestimentas romanas, sentada
sobre um touro e guiada pelo “Gentilismo”. Conforme a peça se desenrola, o diabo consegue
ser bem-sucedido em eliminar a colheita em todos os cantos exceto na Europa. O diabo
também assinala expressamente para cada continente uma fúria: “Cierzo” elimina as plantas
da Ásia, “Ira” retira as sementes da África enquanto “Niebla” tenta acabar com a colheita
na Europa semeando neguilla (Agrostemma ghitago), uma erva daninha que cresce junto
ao cálice da flor do trigo, nos territórios dominados pelas confissões protestantes. O próprio
diabo, Cizaña, está encarregado da América e tem sob sua posse belíssimos campos; vistos
de perto, entretanto, os campos floridos revelam estar cerrados de ervas daninhas (869). Duas
coisas ficam claras da leitura feita por Calderón de Mateus 13. Primeiro, a luta entre Deus e
Satã diz respeito ao controle do mundo todo. Segundo, a América é o continente que pertence
de modo mais completo ao demônio, apesar de sua paisagem ilusoriamente paradisíaca.

20
Introdução

De modo claro, a peça exemplifica a imaginação demonológica global dos espanhóis no


alvorecer da modernidade. O épico satânico no Novo Mundo revela estas sensibilidades
globais particularmente nas personagens dos piratas e dos mouros.51
La Dragontea (1598) de Lope de Vega, um poema épico escrito por outro gigante do
Siglo de Oro espanhol, é representativo de como a intelligentsia espanhola se tornou capaz
de compreender as batalhas contra Lúcifer no Novo Mundo como episódios de um confronto
maior, no qual piratas muçulmanos no Mediterrâneo e corsários ingleses no Caribe tinham
papéis designados. Assim como Milton, posteriormente, faria com a figura de Satã, Lope
de Vega transforma Francis Drake (1542-1596) em um formidável herói satânico: Draco, o
próprio Dragão do Apocalipse (fig. 1.8). Drake é um criado de Satanás que malsucedidamente
procura incitar o caos e a desordem no Panamá e no Caribe, buscando enfraquecer o Império
espanhol da mesma forma que corsários mouros de nomes como “Chafer, Fuchel, Mamifali
e Morato” faziam no Mediterrâneo (1.23). O herói satânico eventualmente morre após ter
sido incapaz de capturar Nombre de Dios, o porto situado estrategicamente no Panamá, por
onde a prata do Peru era estocada para ser mandada à Espanha. Tendo comandado a morte do
próprio Anticristo, o monarca Filipe III acaba por se transformar em um núncio do milênio,
livre para esmagar a ameaça corsária muçulmana (10.689-91, 695, 719-32).52
O poema épico Vida de Santa Rosa de Lima, de Luis Antonio de Oviedo y Herrera
(1636-1717), publicado em 1711, também é representativo da maneira pela qual se pensava
que Satã operava em escala global, mobilizando não apenas terremotos e ameríndios, mas
também piratas protestantes. Com isso, a peruana Santa Rosa de Lima (1586-1617) é vista
como uma heroína divina que, para salvar Lima da destruição, participa de grandes batalhas
sobrenaturais contra terremotos causados por Lúcifer, contra as convocações de Yupanqui (no
poema, o aliado inca de Satã) para que os ameríndios se rebelassem ou para que os araucanos
passassem para o lado dos holandeses, além de atuar contra ataques de piratas protestantes.53
Demônios voam por toda a terra arregimentando ingleses, holandeses e ameríndios para
expulsar os ibéricos.54
Os ameríndios não eram, é claro, os únicos aliados do demônio no Novo Mundo. De
fato, a primeira grande batalha opondo a Inquisição contra o diabo no Peru, por exemplo, não
envolveu os nativos, mas sim figuras religiosas espanholas proeminentes em Quito, Lima,
Cuzco e Potosí. Em 1572, o recém-criado Tribunal da Inquisição de Lima prendeu um grupo
de frades liderado pelo prestigioso teólogo dominicano Francisco de la Cruz sob a acusação
de terem se comunicado com demônios por meio de reuniões que mascaravam encontros
para exorcizar a donzela María Pizarro. Uma investigação que durou seis anos forçou a fuga
do provincial dos dominicanos, causou a morte na prisão de outro religioso, Pedro Toro, e
levou Francisco de la Cruz à fogueira em 1578 em um auto-de-fé que também incluiu outros
acusados desfilando em sambenitos*.

* Vestimenta semelhante a um poncho que a Inquisição Espanhola forçava os condenados a usar em


público como forma de mostrar seus pecados ao público.

21
Jorge Cañizares-Esguerra

Fig. 1.8. “Tandem aquila vincit” (A águia vence finalmente), a partir de Lope de Veja, La Dragontea (1598).
Lope de Veja representa Francis Drake como a Besta do Apocalipse, a qual é finalmente assassinada pelo
arcanjo Miguel/Filipe II. Deus proteja o monarca habsburgo, permitindo-lhe “pisotear leões e serpentes
venenosas (...) destroçar ferozes leões e serpentes sob seus pés [conculcabis leonem et draconem]” (Vulgs.
Ps. 90). Engajado em uma batalha global contra as forças de Deus, Lúcifer encontra aliados não apenas
entre os ameríndios mas também entre os piratas e os protestantes.

O drama começou quando um grupo de letrados jesuítas, teatinos e dominicanos,


que eventualmente se espalharam por todo o vice-reinado, tentou expulsar o demônio que
possuía María. O clero, entretanto, encontrou evidências de que María era também visitada
por espíritos bons de santos e arcanjos. O arcanjo Gabriel gostava de conversar com de la
Cruz em particular, pois este era um mago que traçava horóscopos e lidava com talismãs.
Logo o arcanjo entregou amuletos ao dominicano para exorcizar demônios e proteger de
cometer pecados àquele que os usava. O arcanjo também deu a de la Cruz a planta de uma
nova Igreja milenária nas Índias. Repentinamente, o antes líder da ortodoxia teológica viu a
si mesmo advogando o fim do celibato para os padres; a disseminação da poligamia entre os
laicos; a inutilidade do sacramento da confissão e o caráter inofensivo da idolatria entre os
ameríndios; a restituição dos direitos feudais que Carlos V havia retirado dos conquistadores

22
Introdução

e seus herdeiros em meados do século XVI; o colapso irreparável da corrupta Igreja romana;
e a restauração da antiga Igreja de Israel no Novo Mundo. O próprio de la Cruz se tornaria
o próximo Davi, cabeça tanto da Igreja quanto do Estado, papa e imperador ao mesmo
tempo. A Inquisição insistiu que os padres que se comunicavam com o arcanjo Gabriel por
intermédio de María tinham falhado em “discernir” que os espíritos que a habitavam eram
todos demônios malignos buscando engendrar um golpe contra o novo vice-rei do Peru,
Francisco de Toledo, que governou entre 1569 e 1581. Satã estava determinado a extirpar
a autoridade da Espanha e da Igreja católica nas Índias, dessa vez exercendo sua atuação
através de um grupo de influentes clérigos liderados pelo luxurioso e orgulhoso de la Cruz,
que se revelou um sátiro, fazendo sexo interminavelmente tanto com mulheres quanto com
homens piedosos e engravidando vítimas desafortunadas como María. O demônio não se
impunha limites quanto a quem recrutava como aliados para minar o regime católico nas
Índias.55
Quando os puritanos desembarcaram na Nova Inglaterra, os colonos hispano-
americanos já haviam alterado drasticamente sua percepção acerca de quem eram os servos
de Satã na América. É revelador que o Santo Tribunal da Inquisição fora criado no Novo
Mundo em 1571, por ordens de Filipe II, não para perseguir os seguidores de Lúcifer entre
os ameríndios, mas sim para desbaratar os complôs engendrados por conversos (judeus
falsamente convertidos ao catolicismo), alumbrados (aqueles cuja ênfase na oração silenciosa
e comunicação direta com Deus os aproximava suspeitosamente das concepções religiosas
luteranas), assim como bruxas, blasfemos e sodomitas no interior das próprias comunidades
urbanas “hispânicas”. Embora os inquisidores nas Índias ocidentais tenham encontrado sua
parcela de conversos e alumbrados para perseguir e punir, eles agiam sob o pressuposto
de que o demônio privilegiava acima de tudo a promiscuidade, a blasfêmia e a feitiçaria
no Novo Mundo.56 Deve-se mencionar, porém, que no Império espanhol, grosso modo, as
bruxas não eram vistas como adoradoras do demônio próximas a necromantes como de la
Cruz, ou seja, como partícipes de uma seita herética ameaçadora, mas sim como praticantes
de simpatias amorosas ou de feitiços maléficos. Para os inquisidores, bigamia, sodomia,
blasfêmia e a feitiçaria irresponsável eram mais prevalentes no Novo Mundo devido às
influências contaminadoras dos nativos americanos e dos africanos.57 O diabo operava no
Novo Mundo pela erosão das hierarquias sociais e raciais da bem-ordenada comunidade
política que a administração espanhola tentava a duras penas estabelecer, fazendo os crentes
caírem facilmente em ciladas e armadilhas.
A mestiçagem era considerada uma das armas utilizadas pelo demônio em sua
tentativa de minar a difusão do cristianismo na América. A técnica de determinar se os
espíritos que visitavam as comunidades cada vez maiores de místicos entre os ermitãos,
frades, freiras e beatas nas Índias, eram bons ou maus, por exemplo, estava ligada à ameaça
da mestiçagem.58 Para além da ênfase tradicional em sondar a credibilidade teológica das
visões femininas, sempre intrinsecamente suspeitas, os inquisidores eram levados a avaliar

23
Jorge Cañizares-Esguerra

não apenas o status social e racial dos assim chamados místicos, mas também de seus
seguidores e confessores. Os que vivenciavam as manifestações sobrenaturais típicas dos
místicos, tais como visões, sonhos, estigmas, levitação, tortura por demônios e bilocação, e
cujas origens ou relações sociais estavam mais próximas dos pobres, castas,* ameríndios e
negros se tornavam imediatamente suspeitos de serem agentes do demônio, não de Deus.59
Negros e mulatos eram particularmente considerados potenciais adoradores do diabo. No
dia 6 de maio de 1612, por exemplo, sob os motivos de que estavam há muito planejando
uma rebelião, trinta e cinco negros e mulatos foram enforcados na Cidade do México, e seus
corpos foram ou esquartejados ou decapitados. A planejada revolta foi vista como parte de
um plano mais amplo organizado por Satã para incitar o caos. Grupos de negros e mulatos
urbanos queriam, afirmava-se, criar uma “monarquia africana” na América, envenenando e
assassinado todos os hispânicos homens e mantendo as mulheres espanholas e os ameríndios
como cativos. Segundo um dos relatos, o complô havia sido tramado por um velho escravo
negro, Sebastian, e seus discípulos: um bando de “bruxas” e “feiticeiros”, mestres da “magia
negra”.60
Está claro que o processo de colonização hispânica na América se desenvolveu em
meio a evidências de contínuas ameaças satânicas levadas a cabo por toda sorte de antagonistas,
incluindo ameríndios, piratas, heréticos, falsos magos e escravos africanos – e esse ataque
multiforme desencadeou entre os colonos uma mentalidade de cerco. Evidências desta
mentalidade também aparecem em versões protestantes do épico satânico, especialmente
entre os puritanos.
Os protestantes ingleses encontraram o diabo na América primeiramente sob a forma
dos espanhóis, não dos ameríndios. Posteriormente, contudo, o épico satânico, tal como
originalmente concebido pelos hispânicos, foi adotado pelos protestantes. O épico satânico
compunha uma tradição literária que se desenvolveu primeiro na América hispânica e
portuguesa. Ela exaltava a colonização ibérica como uma batalha opondo os heróis católicos
contra os lacaios de Satã, os indígenas, e contra Leviatã no mar. Embora o topos do épico
satânico tenha sido adotado rapidamente por toda a Europa, os protestantes (em especial
os holandeses), num primeiro momento, organizaram sua narrativa em torno a disputas
envolvendo protestantes e espanhóis.61 Na Inglaterra elisabetana, a figura do corsário – um
saqueador que, como o conquistador espanhol, buscava riquezas e a entrada nos círculos da
nobreza – se tornou o equivalente à imagem do conquistador hispânico combatendo Satã.
Fidalgos de baixa nobreza, implacáveis e agressivos, como Francis Drake, apareciam em
numerosos épicos satânicos como heróis destruindo o anticristo espanhol.62
Por volta da época em que os puritanos chegaram ao Novo Mundo, os ingleses
começaram a ver os ameríndios, e não mais os hispânicos, como os principais aliados

* Castas era como os espanhóis designavam as muitas formas de mestiçagem entre europeus, indígenas
e africanos. O termo mestizo referia-se apenas a indivíduos que eram filhos de uniões entre europeus e
indígenas. Por sua vez, sobre o nome “castas”, estavam os descendentes de todas as demais uniões.

24
Introdução

do demônio no Novo Mundo. Esta mudança coincidiu com o massacre dos colonos na
Virgínia em 1622 e com a guerra com os Pequot, ocorrida em 1637, eventos que mudaram
drasticamente a percepção britânica dos indígenas; a partir daí, os nativos se transformaram
em súditos de Satã. Estudiosos como Joyce Chaplin e Karen Ordahl Kupperman mostraram
que as fontes elisabetanas tendiam originalmente a se posicionar respeitosa e, até mesmo,
admiradamente com relação às sociedades americanas, todavia as visões posteriores dos
ameríndios na América do Norte se tornaram mais ácidas e negativas.63 Como Alfred A.
Cave persuasivamente demonstrou, a demonologia teve um papel preponderante em
transformar uma pequena disputa acerca do acesso a mercadorias (como peles e wampum)
*
e pela hegemonia regional no Rio Connecticut, envolvendo os holandeses, os ingleses, os
moneghan, os narragansett e os pequot, em uma grandiosa batalha maniqueísta colocando
em lados opostos os bem-aventurados puritanos e os demoníacos pequot. Vendo os pequot
como satânicos, os puritanos passaram a recolher “troféus” tais como escalpos e mãos
dos guerreiros inimigos, assim como a considerar “heróico” queimar crianças e mulheres
indígenas ainda vivas.64 Não é surpreendente, então, que o épico satânico esposado pelos
puritanos passou a se assemelhar àquele desenvolvido primeiramente pelos ibéricos. Os
espanhóis, é claro, não perderam seu estatuto de agentes do mal. A narrativa da conquista
hispânica como uma chacina satânica paradoxalmente se manteve na mente dos puritanos
conforme procuravam justificar por escrito suas próprias barbaridades contra seus recém-
encontrados inimigos demoníacos. Como Jill Lepore já demonstrou, as narrativas puritanas
da Guerra do Rei Felipe (1675-1676) foram motivadas pela busca de uma justificava para
atos de crueldade pouco usuais por meio da demonização dos Wampanoag e outros grupos
algonquinos, tudo isso enquanto procuravam eximir os puritanos de quaisquer acusações de
selvageria que os aproximassem dos espanhóis.65
Abordar os estudos puritanos a partir da perspectiva de um “cerco militar” contribui
para a historiografia mais ampla das visões puritanas do diabo como um inimigo externo que
ameaçava a comunidade política. Os estudos de Richard Godbeer e, mais recentemente, de
Mary Beth Norton acerca dos julgamentos por bruxaria em Salém mostraram que esse evento
só pode ser explicado se estivermos dispostos a expandir nossa visão de quem os puritanos
consideravam ser seus inimigos demoníacos. Godbeer demonstrou que os leigos puritanos
levavam frequentemente bruxas a julgamento, porém sem muito sucesso. Foi apenas em
1692 que eles conseguiram que magistrados e ministros condenassem bruxas em larga escala
(embora tenha havido, é claro, outros casos isolados antes). Este estranho comportamento
do clero puritano só pode ser compreendido, argumenta Godbeer, no contexto de uma
mentalidade de cerco que começou a se desenvolver no Condado de Essex ao término

* Wampum eram contas feitas de conchas de moluscos marinhos. Por serem consideradas sagradas pelas
tribos ameríndias da região nordeste do continente norte-americano (que as usavam como material para
confecção de adornos e adereços), os europeus passaram a utilizá-las como moeda em seu comércio com
os ameríndios.

25
Jorge Cañizares-Esguerra

da Guerra do Rei Filipe. Durante duas décadas, os puritanos vivenciaram toda espécie de
contratempos, incluindo epidemias, a perda de autonomia política frente à Coroa britânica,
a crescente presença dos quakers, campanhas militares desastrosas contra os franceses, além
de constantes conflitos com os indígenas. Os magistrados puritanos, pela primeira vez, se
propunham a considerar que Satã era um inimigo que agia não apenas a partir do mais íntimo
da alma, mas também atacava a comunidade a partir de fora. Logo o clero, durante a crise de
Salém, viu a si mesmo disposto a condenar sob a acusação de possuídos quaisquer pessoas
que pudessem ser consideradas como outsiders: mulheres, por exemplo, que já haviam
passado da idade de casar e que tinham ligação tanto com os quakers quanto com a fronteira
ameríndia.66 Norton buscou argumentar de modo semelhante mais recentemente. Segundo
a autora, as bruxas de Salém eram vistas pelos puritanos como aliadas dos indígenas ou dos
franceses e, portanto, como submissas a Satã no confronto mais amplo pelo controle da
região Norte da Costa Leste dos futuros Estados Unidos.67
Esta mentalidade persecutória era parte constituinte dos puritanos. Foi precisamente
este tipo de pensamento que os tornara tão inflexíveis em suas negociações com os pequot,
levando à guerra de 1637, guerra que aconteceu no contexto da controvérsia antinomiana
(na qual Anne Hutchinson e seus seguidores foram considerados agentes satânicos) e no
início das tentativas, lideradas por Sir Ferdinando Gorges, de remover os privilégios das
colônias*. Os puritanos leram estes três eventos como parte de uma trama diabólica para
expulsá-los da América.68 A versão puritana do épico satânico demonstra que os puritanos,
desde o começo, viam a si mesmos ameaçados por um Satã inclinado a atacá-los através da
atuação de espanhóis, de tempestades, da natureza selvagem, dos ameríndios, dos hereges,
das bruxas e dos funcionários reais.
O estudo da estrutura e do desenvolvimento do épico satânico mostra que, apesar
de diferenças nacionais (entre britânicos e espanhóis) e confessionais (entre católicos e
protestantes), as variações do gênero eram apenas superficiais. Um importante objetivo deste

* Hutchinson era seguidora do reverendo John Cotton, de Boston (Inglaterra), que pregava que a Salvação era
decidida apenas por Deus, e que sequer o cumprimento dos mandamentos ou de boas ações a asseguravam.
Mudou-se com sua família para Massachusetts em 1634, seguindo Cotton. Começou a organizar reuniões
semanais apenas para mulheres, com o intuito de debater os sermões de Cotton e outras questões espirituais.
Pouco tempo depois, homens juntaram-se aos encontros e Hutchinson tornou-se pregadora.
Em 1637, com a eleição de John Winthrop, forte opositor de Hutchinson, marcou o início de seus problemas:
ela foi acusada de antinomianismo (doutrina em que aspectos legalistas da religião são abolidos em favor
da espontaneidade da fé), agravada pelo fato de ser uma pastora mulher e de promover encontros mistos,
entre homens e mulheres. Vivendo em um regime de Igreja-Estado, Hutchinson foi acusada de sedição, na
medida em que desautoriza os demais clérigos da comunidade. Expulsa com sua família, retirou-se para
Rhode Island e, mais tarde, para Nova York, onde morreu em um ataque de indígenas.
Já Ferdinando Gorges (junto de John Mason) foi o responsável pelo primeiro assentamento europeu
permanente no Maine, estabelecido em 1623. A questão a qual o autor se refere no texto, refere-se a uma
ação movida pelos descendentes de Gorges, quando da morte deste. Em 1647 (ano de seu falecimento),
o Maine foi integrado a Massachusetts, deixando de ser propriedade da família Gorges. Os herdeiros
questionaram a fusão, pleiteando o controle de Maine de volta às mãos da família Gorges. O governo do
Reino Unido deu ganhou de causa à família Gorges em 1664. Estes venderam o Maine para o governo de
Massachusetts treze anos depois.

26
Introdução

livro é demonstrar as concepções religiosas comuns que davam forma a todos os discursos
imperiais europeus, particularmente os ingleses e espanhóis. Assim como John Bossy, eu
não compreendo a Reforma como uma quebra radical com o passado medieval.69 Apesar do
inegável impacto da Reforma e da formação do Estado moderno de natureza dinástica no que
toca à criação de crescentes diferenças nacionais, a Europa da Idade Moderna gozava de uma
longa história de valores culturais compartilhados que se estendia por milênios.
Esses aspectos comuns se estruturavam em grande parte em torno a uma cultura
cristã comum, pois a Cristandade desde o seu princípio percebia a história dos eleitos como
uma contínua batalha espiritual e secular contra hostis inimigos demoníacos, tais como
hereges, pagãos, judeus e muçulmanos, parte de um confronto cósmico entre o Bem e o Mal.
Inúmeros textos do Antigo e do Novo Testamento apresentam a vida religiosa em termos
militares. Estudos recentes sobre as Cruzadas, por exemplo, demonstraram que elas não foram
variações aberrantes da violência religiosa. Tradicionalmente se tem reduzido as Cruzadas
às cinco campanhas contra o Islã que tomaram lugar entre 1095 e 1229 com o objetivo de
recapturar Jerusalém; porém, agora, sabemos que as Cruzadas eram uma forma particular de
piedade religiosa, secundária apenas à vida monástica, e que sua violência era considerada
uma espécie de sacrifício e caridade. Vista como uma peregrinação, a guerra era considerada
uma forma de sacrifício e expiação direcionada a reviver e reatualizar os sofrimentos de
Cristo. Os guerreiros religiosos que morriam em batalha eram vistos como mártires e seus
corpos viravam relíquias. Todos os guerreiros cruzados – não apenas aqueles que pertenciam
às ordens religiosas militares – tomavam votos (ao receber a Cruz) e passavam a usufruir das
imunidades temporais e espirituais do clero. Também era mais comum que seus inimigos na
Terra Santa fossem pagãos, hereges e outros cristãos, e não muçulmanos. Foram as ordens
religiosas germânicas que lideraram a colonização e a conversão da zona do Báltico nos
séculos XIII e XIV ao combater os eslavos, aliados do demônio. Esta forma peculiar de
violência religiosa organizada entrou lentamente em desuso conforme o poder internacional
do papa diminuía, ainda que muitas “cruzadas” tenham continuado a ser lançadas durante os
séculos XVI e XVII.70
Ainda assim, as interpretações bíblicas da conversão, Salvação e da história de
eleição divina sob a forma de uma narrativa épica militar e espiritual composta de confrontos
entre o Bem e o Mal não foi abandonada. Desde ao menos o século XV, as guerras santas
deixaram de ser vividas como uma forma de penitência monacal, uma maneira de garantir
imunidades clericais. As novas guerras religiosas se transformaram em novas guerras entre
os israelitas e os cananeus. Os franceses e os espanhóis, assim como os seguidores de Jan
Hus (1369-1415), entre muitos outros, justificavam a violência contra inimigos externos em
termos providenciais e escatológicos, lançando guerras de escopo nacional como forma de
apressar a vinda do milênio. Conforme o faziam, eles transformavam imaginativamente suas
paisagens locais em terras santas, espaços sagrados, novas Jerusaléns.71 Este livro contribui
para a literatura acerca da violência religiosa medieval e dos princípios da modernidade

27
Jorge Cañizares-Esguerra

demonstrando como, a partir de exemplos concretos, os discursos da escatologia, da eleição


providencial-nacional e de paisagens sagradas agiam juntos para justificar a expansão
imperial e a colonização. E defendo que o diabo era a peça-chave que mantinha unidos todos
estes discursos no Novo Mundo.
Eu procuro destacar as semelhanças e não as diferenças. Mesmo em áreas onde grandes
contrastes seriam esperados, nós encontramos semelhanças. Pode-se tomar, por exemplo, o
caso da demonização dos espanhóis no épico protestante. Como eu já mencionei, esta inversão
era, na verdade, uma idéia primeiramente introduzida pelos próprios espanhóis. Considere-
se o caso dos referenciais milenaristas de caratér nacional que sustentam discursos como os
da “Cidade sobre a colina” ou a “mensagem às terras selvagens”.* O patriotismo criollo na
América hispânica, por exemplo, interpretava o milagre de Nossa Senhora de Guadalupe
segundo os mesmos termos épicos, providenciais e apocalípticos que os elisabetanos usaram
décadas antes para articular uma concepção de eleição nacional, ou da mesma maneira que
os puritanos usariam posteriormente para enunciar sua esperança de criar a primeira Igreja
de santos encarnados modelada somente em exemplos bíblicos. Dadas estas semelhanças,
eu também argumento que seria razoável estudar o Paraíso Perdido (1667), de John Milton,
com um olhar atento às semelhanças com o gênero ibérico.
Os europeus dos séculos XVI e XVII estavam obcecados por demônios e eles
pensavam que o diabo havia transformado o Novo Mundo em seu feudo. O capítulo 2,
intitulado “O épico satânico”, demonstra que tanto entre os protestantes ingleses (anglicanos
e puritanos) quanto entre os católicos ibéricos, a colonização foi compreendida sob a ótica de
uma infindável batalha épica para desalojar Satã do continente. Tanto os colonos protestantes
no Norte quanto os católicos no Sul do continente se sentiam ameaçados e cercados pelo
demônio, que supostamente atacava suas comunidades por meio de tempestades, terremotos
e epidemias assim como lançava hereges, burocratas imperiais tirânicos, inimigos externos
e ameríndios sobre eles. Em minha opinião, é preciso que nos voltemos para a rica tradição
do “épico satânico” ibérico no Novo Mundo de modo a compreender a mentalidade de cerco
que os historiadores estão usando cada vez mais para explicar eventos como a guerra com
os pequot, a Guerra do Rei Felipe e a irrupção da crise de bruxaria de Salém em 1692. Este
capítulo demonstra que uma perspectiva pan-americana mais ampla pode frustrar mesmo
as mais cativantes narrativas nacionais norte-americanas, pois sustento que a colonização
puritana da Nova Inglaterra foi tanto um épico, um ato de reconquista (contra o demônio)
quanto o foi a conquista espanhola da América. Minha ênfase sobre a história pan-atlântica

* John Winthrop, primeiro governador de Massachusetts, puritano, em um de seus escritos mais famosos,
no qual explicava a ideia de que eram um povo eleito, afirmou: “[...] nós perceberemos que o Deus de Israel
está entre nós, e dez de nós poderão resistir a mil de nossos inimigos. O Senhor fará de nosso nome exemplo
de glória e motivo de elogio [...] pois nós passaremos a ser como uma cidade no alto de uma colina; os
olhos de todos estarão voltados para nós”. A metáfora foi tirada da Bíblia, e está em Mateus 5:14, quando
Jesus pronuncia o Sermão da Montanha. Já a outra expressão refere-se ao título do sermão eleitoral de
Massachusetts, no ano de 1670, e expressa um conjunto de valores e regras puritanas que eram dirigidas à
correção dos pecadores e desregrados a quem Deus estava prestes a destruir.

28
Introdução

deste épico também lança luz sobre influências possíveis e pouco notadas do Paraíso Perdido,
de John Milton. Por fim, e de modo a não exagerar a centralidade da América hispânica
para qualquer narrativa sobre o Atlântico, eu situo o mais típico dos fenômenos culturais do
México colonial – a exegese do milagre de Nossa Senhora de Guadalupe, ele mesmo parte
de uma narrativa do épico satânico – no interior de tradições apocalípticas elisabetanas.
O capítulo três, “A estrutura de um discurso demonológico compartilhado”, refina
nosso entendimento do elemento demonológico na colonização prestando cuidadosa atenção
à estruturação deste discurso comum. Defendo que apenas ao se voltar às fontes ibéricas é
possível compreender como é organizado o discurso demonológico puritano – e vice-versa.
Eu me utilizo da crescente historiografia acerca da demonologia na Idade Moderna seja na
Europa, seja no Novo Mundo, para explorar os tijolos que construíam este discurso comum: a
mobilidade geográfica dos demônios; as batalhas geopolíticas opondo Deus contra Satã pelo
controle total ou parcial do planeta; a compreensão dos rituais antropofágicos dos ameríndios
como parte de uma teologia mais ampla sobre o Inferno (isto é, o esquartejamento dos
corpos); o domínio despótico, escravizador, feudal e tirânico de Satã; a corrupção demoníaca
coletiva dos indígenas como uma manifestação de degeneração coletiva; a colonização como
um ato de libertação; a zombaria e a inversão das instituições religiosas cristãs introduzidas
no Novo Mundo pelo demônio; os ameríndios como os eleitos de Satã; e o uso de leituras
“tipológicas” da Bíblia de modo a estruturar as narrativas de colonização.
Este capítulo também procura ligar as historiografias da América britânica e da America
hispânica visando a trazer uma nova luz a velhos assuntos. Utilizo a já bastante desenvolvida
bibliografia a respeito da leitura tipológica puritana (a compreensão da colonização como a
realização de eventos prefigurados na Bíblia) para entender as leituras tipológicas ibéricas da
colonização.72 O clero ibérico, por exemplo, supunha que Lúcifer havia se valido da tipologia
para organizar a história do continente. Os franciscanos, em particular, argumentavam que
Satã havia procurado imitar a narrativa do Pentateuco no Novo Mundo. Logo, de acordo
com esta visão, se os israelitas eram o povo escolhido de Deus, os astecas eram os eleitos
de Lúcifer. Franciscanos, como Juan de Torquemada, transformaram a história dos astecas
em uma versão invertida da história dos israelitas no Antigo Testamento. Segundo a visão
franciscana, os astecas passaram por um êxodo e tinham sua própria Arca, tabernáculo e
Moisés. Assim que chegaram à terra prometida, os astecas também sofreram uma época de
subordinação aos “cananeus”, seguida por uma era de monarquias (os astecas tinham seus
próprios reis Davi e Salomão, este último tendo construído um templo) e uma era de profetas.
Por fim, assim como os israelitas, os astecas viram seu templo ser destruído e sua capital
arrasada por forças exógenas. Esta narrativa é, ainda hoje, a maneira pela qual é contada a
história dos astecas: migração, assentamento, subordinação, monarquia e império, seguido
por colapso e destruição previamente determinados.
O quarto capítulo, “Demonologia e Natureza”, explora como o discurso da
demonologia e da colonização encorajou a percepção demonológica e providencialista da

29
Jorge Cañizares-Esguerra

paisagem e da natureza americanas. Novamente, argumento que para se entender a América


britânica, é preciso se voltar para sua contraparte hispânica, e vice-versa. Apesar de todas
as suas diferenças, letrados de ambos os lados viam Satã no controle do clima, das plantas,
dos animais e das paisagens do Novo Mundo. As visões demonológicas ibéricas da natureza
americana, desse modo, devem fornecer os elementos para qualquer interpretação de A
Tempestade, de William Shakespeare (representada pela primeira vez em 1611, impressa
em 1623) enquanto um texto colonial. Por último, sustento que essas visões demonológicas
da natureza e da colonização fortaleceram uma percepção particular da paisagem americana
entre os europeus: o Novo Mundo frequentemente passou a ser visto como um falso paraíso
que, para ser salvo, precisava ser destruído pelos heróis cristãos. Esta atitude heróica e
dominadora em relação à natureza constituía as formas europeias de obtenção do saber no
alvorecer da modernidade.
O capítulo cinco, “A colonização como cultivo espiritual”, mostra como o tropo
do cultivo e da semeadura permitia aos cleros puritano e espanhol transformar de forma
imaginativa a América de um continente satânico a uma terra santa. Os dois grupos se
engajaram na antiga tradição que interpretava a santificação como uma ligação amorosa com
Deus num jardim fechado. O Cântico dos Cânticos informava a maneira pela qual tanto os
puritanos quanto os espanhóis compreendiam o crescimento da alma individual e da Igreja
instituída. Ambos os grupos viam Deus como um semeador e a alma e a Igreja como seus
campos. As comunidades e os indivíduos lutavam para erradicar as ervas daninhas de suas
almas e da Igreja. Tanto de um como de outro lado, as pessoas estavam obcecadas em manter
seus jardins “cobertos”, salvos dos ataques demoníacos. Satã podia investir contra a alma
através de pecaminosas tentações ou por meio da possessão direta, mas ele também era um
inimigo que podia atacar a partir do exterior, castigando e destruindo a própria Igreja. Satã
fazia cerco às colônias católicas e puritanas ao comandar tempestades, terremotos, epidemias,
burocratas imperiais, hereges, inimigos externos e ameríndios. Este capítulo discute, então,
como os santos na América hispânica e na Nova Inglaterra aspiravam a serem flores na seara
da nova Igreja. Os católicos e os calvinistas no Novo Mundo viam a si mesmos posicionados
idealmente para produzir mais e melhores flores e jardins que seus antepassados europeus.
Os dois grupos procuravam estabelecer uma Nova Jerusalém nas Índias pela multiplicação
de frutos espirituais: almas individuais de extraordinária piedade e bem-cuidados vinhedos
espirituais coletivos. Santos coloniais na América espanhola assumiam o nome de flores
(Santa Rosa de Lima e Santa Mariana, o Lírio de Quito, para citar dois exemplos);
considerava-se que as relíquias e os corpos dos santos exalavam fragrâncias florais; igrejas
coloniais espanholas eram projetadas na forma de vinhedos. Seguindo a tradição da tipologia
bíblica, a própria Igreja colonial era visualizada como o complemento temporal do Jardim
do Éden. Os puritanos não tinham relíquias nem culto dos santos ou lugares sagrados, porém
eles também usaram extensivamente a tópica do cultivo espiritual. Este capítulo sugere,
portanto, que apesar da Reforma e da ascensão de Estados dinásticos centralizadores terem

30
Introdução

introduzido diferenças nacionais e confessionais significativas, séculos de uma cultura


medieval compartilhada conferiam uniformidade à maior parte das experiências européias
de colonização no alvorecer da modernidade.
O sexto e último capítulo, “Em busca de um Atlântico ‘pan-americano’” realiza
uma discussão historiográfica. Procura-se explicar porque as historiografias dos Atlânticos
espanhol e inglês assumiram seus distintos rumos. Este capítulo procura apontar a culpa de uma
tradição ideológica e acadêmica que buscou construir os Estados Unidos e a América Latina
como dois espaços ontologicamente diferentes. A narrativa da civilização “ocidental” tem
contribuído para destacar as diferenças mais que as semelhanças. As consequências políticas
deste jogo são enormes. Deve-se ler esta obra, Conquistadores puritanos, como uma resposta
ao influente livro de Samuel Huntington, Who Are We? The Challenges to America’s National
Identity (2004). Professor de ciência política em Harvard, Huntington é mais conhecido por
seu controverso The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (1996), no qual
ele argumenta que o cisma civilizacional que há muito separou o Ocidente cristão do Oriente
muçulmano se tornou tão profundo após a Guerra Fria que o conflito se tornara inevitável. O
declarado essencialismo de Huntington contribuiu para elevar a retórica militarista ocidental
e, na sequência do 11 de Setembro, suas profecias se tornaram auto-evidentes. Escrevendo
como um confesso patriota, Huntington encontrou um novo inimigo em Who Are We?: os
hispânicos pertencem cultural e linguisticamente a uma civilização radicalmente diferente,
uma que ameaça a unidade e a identidade norte-americana e corrói os valores e instituições
anglo-protestantes sobre os quais os Estados Unidos prosperaram. Concepções como as de
Huntington abastecem o debate contemporâneo a respeito da imigração ilegal mexicana.
Os hispânicos em nosso meio estão sendo cada vez mais retratados como uma ameaça à
integridade da nação, um perigo menor apenas que aquele representado pelos “terroristas
árabes”. Ao mostrar as raízes comuns dos discursos americano e espanhol de colonização, eu
procuro cortar pela raiz o celebradíssimo mito do caminho excepcional anglo-protestante de
Huntington.

____________________

1
Villagómez (1919 [1649]: cap. 67, p. 176). Ver também Dacosta (1649: 13). “Levate signuum in gentibus”
é tirada de Jeremias 51:27: “Levantai um estandarte na terra, tocai a trombeta entre as nações” (levate
signum in terra clangite bucina in gentibus). “Ecce Crucem Domini, fugite partes adversae” é baseada em
Salmos 68(67):1(2): “Deus se levanta, seus inimigos se dispersam,/e fogem diante dele os que o odeiam”
(exsurgat Deus et dissipentur inimici eius et fugiant qui oderun eum a facie eius). O Papa Sisto V (1585-
1590) gravou a exortação de Santo Antônio de Pádua sob a forma de um exorcismo na base do obelisco
egípcio que se encontra na Praça São Pedro, em Roma:

Ecce Crucem Domini!


Fugite partes adversae!
Vicit Leo de tribu Juda,
Radix David! Alleluia!
(Observai a Cruz do Senhor!
Fugi, inimigos!

31
Jorge Cañizares-Esguerra

O Leão da tribo de Judá [i.e., Cristo],


Venceu a raiz de Davi! Aleluia!)

Todas as citações da Bíblia em português foram tiradas da Bíblia de Jerusalém. As citações latinas de fontes
hispânicas provêm da Vulgata. Acerca das campanhas contra a idolatria no Peru, ver Mills (1997), Duviols
(1971) e Griffiths (1996).
2
Villagómez (1919 [1649]: cap. 27, pp. 90-91): “De cetero frates comfortamini in Domino, et in potentia
virtutis eius vos armaturam Dei, ut possitis stare adversus insidias Diaboli. Quoniam [sic] non est nobis
coluctatio adversus carnem, et sanguinem, sed adversus príncipes, et potestates, adversus mundi rectores
tenebrarum harum, contra spirituali [sic] nequitiae in caelestibus. Propterea accipite armaturam Dei, ut
possitis resistere in die malo et in omnibus perfectis stare. State ergo succinti lumbos vestros in veritate,
et induti loricam iustitiae, et calciati pedes in praeparatione Evangelii pacis: in omnibus sumentes scutum
fidei, in quo possitis omnia tela nequissimi ígnea extingere [sic], et galeam salutis adsumite, et gladium
spiritus quod est verbum Dei”.
3
Arriaga (1920 [1621]: 15-17).
4
Villagómez (1919 [1649]: cap. 65, p. 255): “Exorzizo te immunde spiritus per Deum Patrem omnipotentam
et per Iesum Christum filium eius, et per Spiritum sanctum, ut recedes ab his famulis Dei, quos Deus et,
Dominus noster ab erroribus, et deceptionibus tuis liberare”.
5
Dacosta (1649: 7).
6
Este era o tema da pastoral de Villagómez. A metáfora usada por Villagómez, assim como muito de seu
trabalho, se originava, na verdade, em Arriaga; ver Arriaga (1920 [1621]: 79-80).
7
Dacosta (1649: 13).
8
Dacosta (1649 12): “Ecce material iustitiae et iudicii, ecce ad quid ius dicitur huic mundo: ad hoc scilicet
ut Diabolus Princeps eijiciatur foras. Non dicit Diabolus, non tentator, non seductor mundi huius, sed
Princeps: quia non eijicitur aseducendo, atentando, acalumniando, sed a principatu, non particulari huius,
vel illius hominis, civitatis, aut patriae, sed mundi huius. Principabatur enim, & adorabatur, ut Princips
mundi huius Diabolus ante mortem Christi communiter a mundo; hoc est, colebatur in monibus diis
gentium. Et ab hoc principatu eijectus est, sublato per Christum cultu Deorum, ablata ex mundo (quamuis
non es singuli partibus simul) Idolatria”.
9
Villagómez (1919 [1649]: cap. 51, p. 187).
10
Villagómez (1919 [1649]: cap. 26, p. 87): “corrijan los yerros, convirtiendo em llanuras las asperezas de
los corazones montaraces y costumbres incultas, que hallaran em los Indios”.
11
Villagómez (1919 [1649]: cap. 29, p. 97): “para la cultura desta heredad, que Dios planto en el desierto
estéril, seco y fuera del camino”; “[para] helar, secar y destruir el jugo y la virtud de la santificación que
fertilizaba y debe fertilizar la tierra de los corazones y almas de nuestros Indios, donde se há sembrado la
semilla de la palabra divina”.
12
Villagómez (1919 [1649]: cap. 30, pp. 102-103).
13
Subrahmanyam (1997), Fernández-Armesto (1987), Russell (2000).
14
Goodman (1998: 104-133), Fernández-Armesto (1987: 11-12, 131, 155, 167, 221), acerca do genovês
Lanzarote Malo Cello, que liderou a colonização das Ilhas Canárias entre 1312 e 1355, ver Thornton (1992:
23) e, no mesmo autor, sobre Lanzarote de Lago, que fez incursões no Senegal em 1444, Thornton (1992:
37).
15
Kagan (1998).
16
Johnson (1654: 7).
17
Ibid., 10
18
Ibid., 8, 24. NT.: papista era como um católico costumava ser designado por protestantes, em função
de serem seguidores do papa. Antinomianos, por sua vez, são aqueles cristãos que afirmam não haver
necessidade de seguir qualquer doutrina ou padrão moral previstos na lei mosaica, bastando crer para ser
salvo
19
Ibid., 30-31;
20
Ibid., 24, 104; ver também p. 39.
21
Ibid., 50-51.
22
Ibid., 114.
23
Ibid., 112.
24
Ibid., 115.
25
Ibid., 113-114.
26
Ibid., 112.
27
Ibid., 26.

32
Introdução

28
Ibid., 14-17.
29
Ibid., 25.
30
“Forte e bem armado com a espada, ele marcha com os exércitos de Cristo,
Realiza bravas façanhas e defende o fraco com gentil benevolência,
Para liderar a caravana contra Babilônia, o valioso Winthrop chama,
A tentar o duelo sua descendência por meio da qual a prelazia cairá”.
(Well arm’d and strong with sword among, Christ armies marcheth He,
Doth valiant praise, and weak one raise, with kind benignity
To lead the Van, ‘gainst Babylon, doth worthy Winthrop call,
Thy Progeny, shall Battel try, when Prelacy shall fall), ibid., 48.
31
Ibid., 111.
32
News from England, 6 (grifos meus).
33
A respeito da demonologia da primeira modernidade, o inovador livro de Stuart Clark, Thinking with
Demons (1997), é indispensável. Eu também considero Pagels (1995) e Forsyth (2003) particularmente
esclarecedores.
34
Acerca de um discurso demonológico próprio ao Novo Mundo na medida em que ele se reporta à
colonização e às interações entre europeus e ameríndios, eu me beneficiei em grande medida de Pioffet
(1993), Goddard (1997), Reff (1995), Lovejoy (1994), McWilliams (1996), Norton (2002), Bond (2000),
Mello e Souza (1993), Cervantes (1994), MacCormack (1991), Pino (2002), Duviols (1971), Duviols,
Molinié-Bertrand (1996).
35
Ver, por exemplo, Seed (1995; 2001), Pagden (1995) e Muldoon (1994).
36
Greene (1988).
37
Bond (2000); agradeço a James Sidbury por esta referência.
38
Minha perspectiva a respeito da teologia seiscentista no Novo Mundo se baseiam nos excelentes estudos
de Bozeman (1988), Morgan (1963), Miller (1956), Winship (2002), Holifield (2003).
39
Morgan (1963).
40
“Possessão” se definia como uma violenta invasão do corpo, não do arbítrio, por um demônio. Este
fazia o corpo do possuído falar e se movimentar, às vezes violentamente. As bruxas, por sua vez, não
estavam possuídas, mas se rendiam voluntária e conscientemente ao diabo. Elizabeth Reis argumenta
que esta representação do demônio como uma força externa agressiva fez os puritanos considerarem os
corpos femininos – mais fracos – menos capazes de resistir aos avanços de Satã. As almas das mulheres
se inclinavam mais facilmente ao pecado assim como à tentação, já que a alma estava alocada no corpo.
Na sequência da crise de bruxaria de Salém, os puritanos sentiram a necessidade de diminuir a ênfase na
presença física externa do diabo e o transformaram em uma metáfora para a tentação. Ver Reis (1997).
41
Slotkin (1973).
42
Gregory (1999).
43
Eu tomo a noção de um mercado transatlântico de idéias de Bender (2002b).
44
Knight (1994), Winship (2002).
45
Holifield (2003: 51-52).
46
Cervantes (1994), Clark (1997: partes 2 e 4). Sobre essas transições, ver Bossy (1988), Daston e Park
(1998).
47
Para uma síntese dos trabalhos recentes sobre a história da imprensa na América hispânica, ver Calvo
(2003). A respeito da complexa interação do oral, do visual e do escrito na Europa da primeira modernidade,
em especial no caso espanhol, ver Bouza (2004). Sobre a cultura escrita e oral da Chesapeake colonial, ver
Hall (1996: 97-150). Sobre a centralidade das imagens para a fé puritana, ver Bozeman (1988: 32-49).
48
Benavente (2001 [ca. 1550]: livro I, cap. 4, par. 139, p. 128): “estos indios que em si no tienen estorbo
que lês impida para ganar el cielo, de los muchos que los españoles tenemos y nos tienen sumidos”.
49
Zumárraga apud Hanke (1949: 175).
50
Sobre o pensamento milenarista espanhol nas Índias, ver Colombo (1997 [ca. 1500]), Milhou (1983) e
Watts (1985). Sobre o milênio franciscano, ver Baudot (1995), Brading (1991: cap. 5), Phelan (1956). Acerca
do crescente desenvolvimento da figura do Anticristo como uma imagem invertida do próprio Cristo, ver
McGinn (1994). Sobre a lógica milenarista por trás dos complexos religiosos e murais franciscanos (assim
como dos dominicanos e agustinianos), ver Lara (2004) e Edgerton (2001).
51
Calderón de la Barca, La semilla y la cizaña (2002); agradeço a John Slater por ter apontado esta
referência para mim. Outro exemplo da imaginação global relacionada ao épico satânico aparece no Salão
dos Reinos (Salón de Reinos) do Palácio do Bom Retiro de Filipe IV, construído em Madri entre 1630 e
1640. Calderón de la Barca, que escreveu um auto comemorando a inauguração do palácio, provavelmente
apreciou as pinturas contidas no Salão. Construído como uma sala do trono, o salão estava coberto com os

33
Jorge Cañizares-Esguerra

prodígios e os brasões dos vinte e quatro reinos que compunham a monarquia hispânica, incluindo as terras
controladas pelos portugueses. Não é de se espantar, portanto, que Filipe IV fosse também chamado de “Rei
Planeta”. Penduradas nas paredes havia doze pinturas celebrando as batalhas recentes contra os protestantes
holandeses e britânicos, incluindo a recuperação da Bahia, Porto Rico e São Cristóvão no Novo Mundo.
Intercaladas entre estes doze quadros, estavam representados também dez dos doze trabalhos de Hércules,
incluindo a batalha do herói contra a Hidra de Lerna, o touro de Creta, o javali de Erimanto, o leão de
Nemeia, Cérbero e o gigante Anteu. O visitante era levado, em outra sala, para as pinturas das quatro Fúrias.
Percebe-se inequivocamente a existência de uma narrativa épica de batalhas travadas em escala planetária
contra inimigos demoníacos. Para uma história cultural do palácio, ver Brown, Elliott (2004).
52
Lope de Vega, La Dragontea (1935 [1558]; as referências são a canto e estrofe). Em Mimesis and
Empire, Barbara Fuchs (2001) demonstra com bastante sucesso a dimensão global do gênero épico na
Espanha. Ela expõe persuasivamente a importância dos mouros e turcos nas representações tanto hispânicas
quanto ameríndias da colonização espanhola no Novo Mundo.
53
Ataques perpetrados por Francis Drake (1542-1596), John Hawkins (Juan de Aquines) (1532-1595) e
Joris van Speilbergen (1568-1620), que atacou Callao em 1615.
54
Oviedo y Herrera (1729).
55
Os documentos relativos a este episódio estão no Arquivo Histórico Nacional (AHN), Madri, ramo
Inquisição, livro 1003 e Inquisição legajo 1650/1. Esta extensa documentação foi reproduzida em Huerga
(1986). Para apreciar as percepções da hostilidade de Satã nas Índias, talvez seja útil comparar o caso de
María e seus exorcistas com aquele de sua contemporânea Lucrecia de León. Lucrecia era uma jovem que
vivia em Madri e que, um dia, em 1987, surpreendeu a si mesma tendo sonhos anunciando a iminente
chegada do milênio em uma Espanha governada por um corrupto e inepto Filipe II. O poderoso Alonzo de
Mendoza, cônego da catedral de Toledo, membro de uma das mais proeminentes famílias da Península e,
como de la Cruz, um iniciado em alquimia, uso de talismãs e astrologia, travou conhecimento dos sonhos
de Lucrecia e, com a ajuda do titular do convento franciscano de Madri, Frei Lucas de Andrade, transcreveu
e interpretou todos os 415 sonhos ao longo de dois anos. A Inquisição reagiu conforme os seguidores –
fossem da elite ou do povo – do culto que surgiu em torno a Lucrecia começaram a antecipar e apressar
a chegada do milênio, que não deixava espaço para Filipe II ou para os Habsburgos. Como no caso de
María, a Inquisição determinou que os sonhos de Lucrecia foram inspirados pelo demônio, não por Deus,
como Mendoza e Allende foram levados a crer. Apesar da natureza abertamente subversiva deste engodo
satânico, a Inquisição demorou a persegui-lo, dispensando sanções relativamente benignas contra aqueles
envolvidos. Além disso, ela também não assumiu que o diabo tentara destruir a Coroa e o reino. Sobre
Lucrecia e o complô político em torno à interpretação de seus sonhos, ver Kagan (1990).
56
Alberro (1988); sobre o Peru, ver Millar (1998).
57
Lewis (2003). Sobre a Inquisição espanhola restringindo a atuação de reformadores demasiadamente
zelosos e que tendiam a perseguir bruxas, ver Henningsen (1980).
58
Sobre as origens da arte de discernir os espíritos que visitavam as mulheres ligadas ao misticismo, ver
Caciola (2003) e Elliott (2004).
59
Jaffary (2004).
60
Martínez (2004).
61
Schmidt (2001).
62
Ver, por exemplo, o épico satânico de FitzGeffrey, escrito em 1596 (referência completa na bibliografia).
Sobre a carreira de Drake, ver Cummins (1995).
63
Kupperman (2000); Chaplin (2001).
64
Cave (1996).
65
Lepore (1998).
66
Godbeer (1992).
67
Norton (2002).
68
Cave (1996: 6, 139 et passim).
69
Bossy (1985).
70
Sobre as cruzadas enquanto parte de uma tradição maior de guerras santas, ver Tyerman (2004), Riley-
Smith (2002). Sobre expansões coloniais na Idade Média, ver Barlett (1993).
71
Housley (2004); Swanson (2000). Agradeço a Robert Barlett por esta última referência.
72
Até onde eu sei a respeito, Brading, em Mexican Phoenix (2001), foi o primeiro a ter demonstrado
brilhantemente a importância da tipologia na teologia colonial de Nossa Senhora de Guadalupe.

34

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