Socioambientalismo e novos direitos - Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural
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Socioambientalismo e novos direitos - Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural - Juliana Santilli
SOCIOAMBIENTALISMO E NOVOS DIREITOS
SOCIOAMBIENTALISMO E NOVOS DIREITOS
Proteção jurídica à diversidade biológica e cultural
JULIANA SANTILLI
Copyright © 2005 by Juliana Santilli
Editora responsável
Renata Farhat Borges
Coordenação editorial
Noelma Brocanelli
Capa e ilustrações
Taisa Borges
Projeto gráfico e editoração eletrônica
Cia. Editorial
Revisão
Mineo Takatama
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Santilli, Juliana
Socioambientalismo e novos direitos [livro eletrônico] / Juliana
Santilli. -- São Paulo :Peirópolis, 2012.
1,4 Mb : PDF
Realização: IEB - Instituto Internacional de Educação do Brasil.
Apoio: ISA - Instituto Socioambiental
Bibliografia.
ISBN 978-85-7596-040-0
1. Ambientalismo - Brasil - Aspectos sociais
2. Paradigmas (Ciências sociais) I. Título.
12-02802CDD-363.706
Índices para catálogo sistemático:
1. 1. Brasil : Socioambientalismo : Proteção ambiental : Problemas sociais 363.706
9 8 7 6 5 4 3 2 1 07 0 6 0 5
▴ ▴
Editora Peirópolis Ltda.
Rua Girassol, 128 – Vila Madalena
05433-000 – São Paulo – SP
Tel.: (55 11) 3816-0699 e fax: (55 11) 3816-6718
www.editorapeiropolis.com.br
O Instituto Socioambiental (ISA) é uma associação sem fins lucrativos, qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), fundada em 22 de abril de 1994, por pessoas com formação e experiência marcante na luta por direitos sociais e ambientais. Tem como objetivo defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. O ISA produz estudos e pesquisas, implanta projetos e programas que promovam a sustentabilidade socioambiental, valorizando a diversidade cultural e biológica do país.
Para saber mais sobre o ISA consulte
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Conselho Diretor
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Diretor executivo adjunto: Nilto Tatto
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O Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) é uma associação civil brasileira sem fins lucrativos, que tem como missão educar e capacitar para o desenvolvimento sustentável.
As atividades desenvolvidas pelo IEB envolvem apoios técnico e científico por meio de programas e cursos de capacitação com abordagem multidisciplinar, que visam fortalecer instituições de todos os setores da sociedade e promover sua articulação na Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica e Cerrado. Os cursos são oferecidos a técnicos dos setores público e privado, bem como a membros de organizações acadêmicas e não-governamentais atuantes na área ambiental.
Para saber mais sobre o IEB consulte
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tel.: 0 xx 91 238-0144
As mães são eternas.
Dedico este livro à memória de minha mãe,
Helena Christina, de quem estarei sempre próxima.
Para meu pai, Pedro, um grande advogado,
que me transmitiu o amor pela profissão:
este livro é, em grande parte, fruto desse amor.
Para minha irmã Ariadna, pelas perdas e conquistas
sempre compartilhadas.
Para minha irmã Amaryllis, a quem
desejo a felicidade máxima.
Para Márcio, com amor e admiração infinita.
Para meu filho Lucas, que faz do mundo um lugar cheio de sentido.
Apresentação
Juntam-se o Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e o Instituto Socioambiental (ISA) para esta publicação: Socioambientalismo e novos direitos, de Juliana Santilli.
Com trajetórias e experiências distintas, as duas organizações comungam objetivos na promoção do desenvolvimento sustentável, tendo como fundamento comum a perspectiva socioambiental.
O ISA está completando dez anos. Foi fundado em 1994 e tem como objetivo principal defender bens e direitos coletivos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos, entendendo-os integrados e com um mesmo fundamento. Não é mera coincidência que Juliana, uma de suas fundadoras, publique este livro que analisa e aprofunda os conceitos do sociambientalismo.
Este livro, fruto de intensa e meritória pesquisa pessoal da autora, reflete o aprofundamento coletivo que a prática do ISA vem proporcionando. E por isso não é coincidência. O grupo de pessoas que o fundou estava naquele momento e lugar rompendo paradigmas. Até então parecia haver um imenso abismo entre as questões sociais e as ambientais. Foi a idéia de criar uma ponte, ou preencher o abismo, que juntou os seus fundadores. Aqueles pesquisadores e ativistas, teóricos e práticos, obstinados e militantes que se encontravam na assembléia de fundação já tinham um passado de trabalho em defesa de povos indígenas ou patrimônio histórico ou do meio ambiente, mas não estavam satisfeitos com a parcialidade de suas práticas: buscavam a integração das idéias e dos direitos. Queriam trocar o alternativo ou pelo aditivo e.
Realmente, o que havia de comum entre o ambientalismo e as práticas de defesa de direitos sociais eram os direitos coletivos, não individuais e que se contrapunham ao sistema que tem como paradigma e fundamento o individualismo proprietário. A questão social e a ambiental, assim, se juntavam nessa perspectiva de paradigma coletivo, desconhecido para o sistema jurídico ocidental, omitido pelo Estado, invisível para a sociedade.
E é nesse contexto que o IEB aporta a sua experiência de mais de seis anos de trabalho na formação e capacitação para o desenvolvimento sustentável de pessoas que atuam em organizações e movimentos sociais. Com atividade cada vez mais extensa e reconhecida, promove cursos e seminários que abrangem as várias interfaces temáticas ligadas ao desenvolvimento sustentável, inclusive na área do direito, para o que vem contando, já há anos, com a competente colaboração da autora como professora. Do mesmo modo, o IEB tem desenvolvido ações de apoio ao fortalecimento institucional de organizações locais, visando ao desenvolvimento de espaços públicos socioambientais que consolidem a gestão socioambiental de forma participativa. O IEB vem mantendo, ainda, em parceria com a Editora Peirópolis, uma interessantíssima linha editorial que já publicou vários títulos ligados a essa temática, aos quais este se soma.
O fato de ter ingressado no Ministério Público do Distrito Federal não afastou Juliana da pesquisa, estudo e prática do socioambientalismo. A sua escolha pelo Ministério Público foi, aliás, em função da possibilidade de atuar no âmbito das atribuições que a Constituição de 1988 deu a essa instituição, de promover a defesa dos direitos socioambientais, e para isso é fundamental que juristas com essa visão e mentalidade estejam integrados em suas fileiras.
Entretanto, além da sua atuação no ISA, no IEB e no Ministério Público, Juliana se dispôs a levar o pleito socioambiental para a academia e propôs um projeto de pesquisa para obter o título de Mestre em Direito, junto à Universidade de Brasília, aprovado com grau máximo, e que deu origem a este livro de leitura obrigatória a todos quantos se interessem pelas questões sociais e ambientais. Soma-se a essa sua história pessoal o talento da jornalista que domina a palavra escrita e nos conduz, com lógica precisa, aos intrincados caminhos dos paradigmas rompidos. É este, sem dúvida, um grande livro.
Todos os socioambientalistas podem se orgulhar dessa pesquisadora. O livro dispensa apresentações e explicações; quem o lê o entende e, mais do que isso, se convence de que a humanidade precisa repensar sua civilização, rever seus paradigmas, romper seus dogmas e voltar à vida. E, mais do que isso, se convence de que o Direito tem um papel a jogar nessa retomada. Mãos à obra socioambiental.
Brasília, agosto de 2004
Carlos Máres
Instituto Socioambiental (ISA)
Maria José Gontijo
Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB)
Prefácio
Na defesa do meio ambiente, como membro do Ministério Público Federal, logo deparei-me com os chamados conflitos socioambientais porque supostamente contrapostos aos interesses do meio ambiente ecologicamente equilibrado e da sociedade. Quando passei a trabalhar em Brasília, nos anos 90, ouvi falar do Instituto Socioambiental (ISA), que me interessou sobremaneira porque, ao nominar a ONG, a expressão socioambiental
traz uma conotação positiva e uma proposição de trabalho em que não há contraposição entre meio natural e o meio antrópico. Gostava de receber a revista Parabólicas, editada pelo ISA, que me mantinha informada dos fatos relevantes da questão socioambiental brasileira. E um dia tive o prazer de conhecer Juliana Santilli. Primeiro como militante ambientalista, depois como membro do Ministério Público do Distrito Federal e, finalmente, como aluna do curso de mestrado da Universidade de Brasília. Em todas as funções, percebi a postura ética e ponderada, o trabalho sério e respeitado.
É numa inversão na ordem das coisas, pois sempre considerei Juliana como autoridade no tema, e eu uma aprendiz, que apresento aos leitores o fruto de sua pesquisa de mestrado em que ela descreve o fundamento jurídico do socioambientalismo no Brasil. Participei da banca de defesa da dissertação como orientadora, ao lado de Carlos Frederico Marés de Souza Filho e Alejandra Leonor Pascual, em memorável momento acadêmico, em que o público também participou de rico debate.
O trabalho é relevante porque, apesar do que está expresso na Constituição, bem como em diversos instrumentos internacionais sobre direitos humanos, os agentes públicos teimam em tratar o meio ambiente como um conjunto de recursos naturais dissociado das pessoas que nele vivem.
Nessa perspectiva distorcida, instrumentos normativos qualificaram muitos espaços territoriais, de populações que vivem um modo de vida tradicional, como unidades de conservação onde a presença humana é proibida. No licenciamento ambiental, os estudos de impacto ambiental raramente analisam grupos socioculturais diferenciados presentes nas áreas de abrangência afetadas pelos empreendimentos. Mesmo aqueles que admitem a presença desses grupos não apresentam diagnósticos suficientes da organização sociocultural e dos impactos dos empreendimentos sobre os territórios e populações atingidas.
A invisibilidade dessas coletividades tradicionais, mesmo das indígenas, começou a diminuir a partir dos anos 80. Mas ainda é grande. A sociedade brasileira não se enxerga multicultural e pluriétnica, e o projeto de desenvolvimento que todos os governos tem assumido não dá lugar a outro modelo que não o da sociedade de consumo. No contexto do capitalismo, a política ambiental não raro é perversa com aqueles que conservaram, por meio do uso tradicional da terra e dos recursos naturais, as áreas naturais ainda existentes. Ao mesmo tempo que lhes nega o direito de manter o seu modo de vida, enxerga-os através de uma lente utilitarista e etnocêntrica que parece só admitir o direito à existência dos outros se estes servirem a algo para nós
¹.
Escrever sobre socioambientalismo significa tratar de questões que ensejam posicionamentos antagônicos e revelam concepções diferentes de mundo.
Escrever sobre socioambientalismo, como o faz Juliana Santilli, significa difundir a idéia de que o desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade de espécies, ecossistemas e processos ecológicos, mas também a sustentabilidade social. A primeira sustentabilidade baseia-se na biodiversidade e a segunda na sociodiversidade.
São duas faces de uma mesma moeda. Vale lembrar o alerta de Guattari: Menos que nunca a natureza pode ser separada da cultura, e precisamos aprender a pensar ‘transversalmente’ as interações entre ecossistemas, mecanosfera e Universos de referência sociais e individuais
².
Porque vincula-se a essa concepção, o trabalho merece ser louvado e consultado por todos os que se preocupam com o meio ambiente.
Brasília, 31 de agosto de 2004
Ela Wiecko V. de Castilho
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Apud ESTEVES, Bernardo. Jornal da Ciência, SBPC, ano XIX, no 534, 6 de agosto de 2004.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Trad. Maria C. F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. p. 25.
Introdução
Este livro procura analisar a influência do socioambientalismo sobre o sistema jurídico constitucional e infraconstitucional brasileiro, enfocando especificamente os dispositivos constitucionais referentes à cultura, ao meio ambiente, aos povos indígenas e quilombolas (minorias étnicas) e à função socioambiental da propriedade. No âmbito infraconstitucional, enfoca a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc), em especial as categorias essencialmente socioambientais que ela delineia (reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável), bem como esboça alguns elementos fundamentais à construção de um regime jurídico sui generis de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Este trabalho foi realizado com base na hipótese de que o socioambientalismo – movimento que nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas entre os movimentos sociais e ambientalista, no contexto da redemocratização do país – definiu conceitos, valores e paradigmas que irradiaram seus efeitos sobre o ordenamento jurídico.
A influência do socioambientalismo faz-se sentir tanto na Constituição, que estabeleceu sólidas bases para a consagração de direitos socioambientais, e para a interpretação sistêmica dos direitos ambientais, sociais e culturais, como na legislação infraconstitucional, que lhes deu maior concretude e eficácia.
Adotamos como referências teóricas importantes o multiculturalismo e o pluralismo jurídico. A abordagem essencialmente multidisciplinar foi uma opção metodológica clara, fundamental à compreensão de conceitos inseridos nas normas socioambientais. Apesar de o trabalho fazer uma análise de instrumentos normativos, procura se referenciar e se socorrer de conhecimentos produzidos por outras áreas, especialmente as ciências sociais e biológicas. Estudos antropológicos foram fundamentais à compreensão de conceitos como os de territorialidade e de conhecimentos tradicionais, e os estudos biológicos forneceram valiosos subsídios para entender a diversidade genética, de espécies e ecossistemas.
Ao consultarmos obras de Direito Ambiental, encontramos poucas abordagens interdisciplinares que incorporassem efetivamente conhecimentos de outras áreas, integrando-os aos da área jurídica, e não se limitassem a referências superficiais a conceitos de Biologia, Sociologia, etc. Há uma tendência, entre os juristas,de descartar as contribuições de outras áreas de conhecimento, o que, a nosso ver, é empobrecedor.
Este trabalho é também, em grande parte, resultado de reflexões acumuladas ao longo de mais de dez anos de experiências concretas e de militância em organizações não-governamentais: inicialmente como assessora jurídica do Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), posteriormente como sócia-fundadora, vice-presidente e assessora jurídica do Instituto Socioambiental (ISA), instituição dedicada à defesa de bens e direitos socioambientais.
Tais experiências foram enriquecidas com o exercício do cargo de promotora de Justiça, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, ao longo dos quase quatro anos em que oficiamos perante as promotorias de defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Cultural e do Consumidor. O exercício de atribuições funcionais no Ministério Público nos fez aprofundar reflexões em torno dos instrumentos jurídicos de proteção aos direitos coletivos, seus avanços e limitações, práticos e teóricos.
O trabalho se inicia com uma análise do desenvolvimento histórico e do contexto político e social do surgimento do movimento socioambientalista no Brasil. Discorremos sobre as origens do ambientalismo brasileiro e traçamos um breve panorama de sua evolução histórica e de seus principais marcos, essencial à compreensão da trajetória de alianças com os movimentos sociais, que culminou no socioambientalismo, movimento que desenhou a sua história e definiu os conceitos e paradigmas que lhe são próprios.
Posteriormente, analisamos o processo constituinte brasileiro e o seu significado para a democratização da América Latina. Refletimos sobre as grandes inovações em relação à tradição constitucional anterior, e a inserção, na Carta Magna, de capítulos e artigos que plantaram as sementes dos chamados novos direitos
, e lançaram as bases constitucionais dos direitos socioambientais
. Estes se inserem no contexto dos novos paradigmas jurídicos, com base nos quais discorremos sobre os dispositivos constitucionais dedicados ao meio ambiente, à cultura, aos povos indígenas e quilombolas e à função socioambiental da propriedade, interpretando-os de forma sistêmica e integrada.
Procuramos demonstrar que a orientação socioambiental presente na Constituição não se revela pela leitura fragmentada e compartimentalizada dos dispositivos referentes à cultura, ao meio ambiente, aos povos indígenas e quilombolas e à função socioambiental da propriedade, e sim por uma leitura sistêmica e integrada do todo: o que alguns chamariam de uma leitura holística
, que não percebe apenas as partes, mas a unidade axiológico-normativa presente no texto constitucional.
O socioambientalismo que permeia a Constituição brasileira privilegia e valoriza as dimensões materiais e imateriais dos bens e direitos socioambientais, a transversalidade das políticas públicas socioambientais e a consolidação de processos democráticos de participação social na gestão ambiental.
Analisamos a legislação infraconstitucional para demonstrar que a síntese socioambiental permeia todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociodiversidade, influenciada pelo multiculturalismo e pela plurietnicidade. Apesar de terem sido excluídas do sistema duas importantes unidades de conservação socioambiental – os territórios indígenas e de quilombolas –, o conceito de bens socioambientais está presente e consolidado em todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
Concluímos o trabalho abordando a proteção aos bens socioambientais intangíveis: os conhecimentos, inovações e práticas de povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais associados à biodiversidade. Consideramos que os componentes tangíveis e intangíveis da biodiversidade estão intimamente ligados, e não é possível dissociar o reconhecimento e a proteção dos conhecimentos tradicionais de um sistema jurídico que efetivamente assegure os direitos territoriais e culturais desses povos e populações tradicionais. Abordamos ainda o acesso aos recursos genéticos situados em territórios ocupados por tais populações e procuramos delinear alguns elementos fundamentais para a construção de um regime jurídico sui generis de proteção a tais conhecimentos tradicionais.
Destacamos, finalmente, o rompimento dos novos direitos socioambientais
com os paradigmas da dogmática jurídica tradicional, contaminada pelo excessivo apego ao formalismo, pela falsa neutralidade política e científica e pela excessiva ênfase nos direitos individuais, de conteúdo patrimonial e contratualista. Esses novos
direitos, conquistados a partir de lutas sociopolíticas democráticas, têm natureza emancipatória, pluralista, coletiva e indivisível, e impõem novos desafios à ciência jurídica.
Brasília, 28 de maio de 2004
Juliana Santilli
I
Desenvolvimento histórico e contexto político e social do surgimento do movimento socioambientalista no Brasil
Do ambientalismo ao socioambientalismo
Inicialmente, discorreremos sobre as origens do ambientalismo brasileiro e traçaremos um breve panorama de sua evolução histórica e de seus principais marcos, para compreendermos melhor a trajetória de alianças com os movimentos sociais, que culminou no socioambientalismo, movimento que desenhou a sua história e definiu os conceitos e paradigmas que lhe são próprios.
Estudos como o de José Augusto Pádua¹ demonstram, por meio de textos de autores como José Bonifácio de Andrada e Silva (primeiro ministro do Brasil independente, a partir de 1822) e Joaquim Nabuco (abolicionista, 1849-1910), que a crítica ambiental nasceu, no Brasil, nos séculos XVIII e XIX, especialmente entre 1786 e 1888, como reação contra o modelo de exploração colonial – caracterizada pelo latifúndio, pelo escravismo, pela monocultura e pelos maus-tratos à terra – e a intensa devastação ambiental provocada por esse modelo. Contrariamente à idéia de que o ambientalismo é um movimento importado
da Europa e dos Estados Unidos e nasceu nos países do Primeiro Mundo para depois se espalhar para as colônias tropicais do sul, Pádua aponta que os estudos mais recentes indicam que as críticas ao modelo predatório de exploração colonial, e ao impacto ambiental por ele provocado, surgiram, na verdade, em áreas coloniais, especialmente no Caribe, na Índia, na África do Sul e na América Latina. Para o referido autor, tais críticas partem de uma elite de pensadores, e não constituem propriamente um movimento social, mas o ideário
e os conceitos preconizados pelo ambientalismo encontram raízes históricas no pensamento social brasileiro.
No período posterior – entre 1920 e 1970 – ocorreram no Brasil algumas iniciativas de cunho conservacionista, dignas de registro no plano legislativo e institucional. José Augusto Drummond² aponta a assinatura, em 1921, de um tratado de proteção às aves úteis para a agricultura e a criação do primeiro parque nacional brasileiro, o Itatiaia, em 1937, no limite entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, seguido do Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, em 1939, e do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, também em 1939, e de uma dezena de outros parques nacionais, criados especialmente entre 1959 e 1961, de que são exemplos o Parque Nacional de Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul; Parque Nacional do Araguaia, em Tocantins; Parque Nacional de Brasília, no Distrito Federal; Parque Nacional de Monte Pascoal, na Bahia; e o Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí.
A criação de tais parques foi claramente inspirada no modelo de proteção de áreas naturais adotado nos Estados Unidos com a fundação do primeiro parque nacional do mundo, o Yellowstone, em 1872, cujo objetivo principal era garantir que os seus recursos naturais fossem preservados intactos, e sem interferência humana, e assegurar a preservação do hábitat de algumas espécies. O Krüger National Park, na África do Sul, também foi criado, em 1898, com o objetivo de proteger a população animal que vinha sendo dizimada pela caça predatória. Em ambos os casos, a idéia básica consistia em preservar algumas áreas naturais e ecossistemas da ação humana destrutiva e de atividades econômicas predatórias.
Na década de 30, surgiram ainda duas antecessoras do que chamamos de organização ambientalista
: a Sociedade Amigos de Alberto Torres, inspirada nesse jurista e pensador conservacionista carioca, que defendia o uso racional dos recursos naturais, e a Sociedade Amigos de Árvores, que ajudaram a semear algumas das primeiras idéias ambientalistas em solo brasileiro. Algumas das primeiras leis ambientais brasileiras também surgiram nesse período: o Código de Águas³ e o primeiro Código Florestal, ambos de 1934. O Decreto-Lei no 25/37, conhecido como a Lei do Tombamento
de bens culturais, foi a primeira lei a impor restrições ao exercício do direito de propriedade. Esse decreto já previa o tombamento de monumentos naturais, sítios e paisagens. Em 1965 foi editado um novo Código Florestal (Lei no 4.771), e, em 1967, a nova lei de proteção à fauna (Lei no 5.197)⁴.
O regime militar iniciado com o golpe de 1964 e a forte repressão política aos movimentos sociais geraram uma desmobilização da cidadania e, conseqüentemente, das iniciativas conservacionistas. De 1964 a 1984 não havia espaço político e democrático para discussão e avaliação de impactos ambientais provocados por obras e projetos de interesse do governo militar.
Entretanto, vale registrar a criação, em 1971, de uma das mais importantes organizações ambientalistas brasileiras: a Associação Gaúcha de Proteção do Ambiente Natural (Agapan), liderada por José Lutzenberger, ambientalista de fama internacional, que apresentou denúncias contra os riscos para o meio ambiente e a saúde humana da utilização excessiva de agrotóxicos na agricultura, que culminaram com a aprovação, no Rio Grande do Sul, em 1983, da primeira lei estadual que regulamenta o uso de agrotóxicos. (Um ano depois, em 1984, Santa Catarina, Paraná e São Paulo aprovaram leis estaduais semelhantes, mas a lei nacional de agrotóxicos só foi aprovada em 1989, seis anos após a lei gaúcha.)
Durante os anos 70, o regime militar promoveu a construção de inúmeras obras e projetos de grande impacto ambiental, sem qualquer consulta pública prévia ou avaliação ambiental: usinas hidrelétricas, pólos industriais, estradas, portos e refinarias de petróleo. Dois exemplos marcantes foram Itaipu e o acordo nuclear. Em 1973, Brasil e Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu, um acordo bilateral que viabilizou a construção da maior hidrelétrica do mundo. O reservatório de Itaipu inundou o Parque Nacional de Sete Quedas e acabou com os saltos de Sete Quedas, apesar dos protestos de ambientalistas.
Em 1975, o presidente Geisel assinou o acordo de cooperação nuclear entre Brasil e Alemanha, prevendo, inicialmente, a construção de oito usinas nucleares. Foi também durante os anos 70 que grande parte das indústrias poluentes se instalou em Cubatão, no Estado de São Paulo, provocando, nos anos 80, denúncias de ambientalistas, de cientistas e da comunidade local de que a poluição do ar, água e solo era responsável por anomalias congênitas e abortos involuntários ocorridos na região industrial dessa cidade⁵.
Entretanto, um dos grandes marcos na história do ambientalismo – internacional, mas com repercussões nacionais – foi a realização, em 1972, da Conferência de Meio Ambiente das Nações Unidas em Estocolmo, a primeira de uma série de três conferências ambientais realizadas pela ONU. A Conferência de Estocolmo reuniu representantes de 113 países e de 250 organizações não-governamentais. Os resultados formais foram a Declaração sobre o Ambiente Urbano
(mais conhecida como a Declaração de Estocolmo
) e a instauração do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Apesar da pouca participação brasileira na Conferência de Estocolmo, ela produziu conseqüências internas. O primeiro órgão brasileiro de meio ambiente, a Secretaria Especial de Meio Ambiente (Sema), foi criado logo após tal conferência, em 1973, pelo Decreto no 73.030, e o primeiro secretário foi Paulo Nogueira Neto. Em 1981, foi editada a Lei no 6.938, que, pela primeira vez na história do país, estabeleceu os princípios e objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente e instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), tratando o meio ambiente de forma sistêmica. Até então as leis tratavam os bens ambientais de forma isolada e desarticulada – águas, florestas, fauna: cada recurso ambiental era regulado em um instrumento jurídico separado: Código de Águas, Código Florestal, Lei de Proteção à Fauna, etc., e não havia um instrumento jurídico que considerasse a política ambiental como um todo articulado e sistêmico.
Foi só em 1981, com a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que a avaliação de impacto ambiental e o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras se tornaram legalmente obrigatórios. Foi também a primeira lei a conferir legitimidade ao Ministério Público para promover a responsabilidade civil e criminal por danos ambientais, embora só em 1985 o Ministério Público tenha passado a contar com um instrumento processual eficiente para responsabilizar civilmente os autores de danos ambientais, com a edição da Lei no 7.347/85, que cria a ação civil pública.
Ainda na década de 80 são editadas outras leis ambientais importantes, como a Lei no 6.803/80, que dispõe sobre o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição (inspirada em Cubatão); a Lei no 6.902/81, que dispõe sobre a criação de estações ecológicas e áreas de proteção ambiental⁶; a Lei no 7.643/87, que proíbe a pesca de cetáceos nas águas jurisdicionais brasileiras (estimulada por uma grande campanha, conhecida como SOS Baleias, contra a pesca de baleia jubarte e outras espécies ameaçadas de extinção no litoral brasileiro); a Lei no 7.679/88, que proíbe a pesca em períodos de reprodução; e a Lei no 7.802/89, que regula o uso de agrotóxicos.
Verifica-se nas leis ambientais editadas durante esse período histórico uma orientação conservacionista, voltada para a proteção de ecossistemas e espécies, mas sem uma dimensão social claramente incorporada. Percebe-se também que as leis aprovadas durante esse período davam grande ênfase ao controle e à repressão de práticas lesivas ao meio ambiente, proibindo a pesca de baleias, a pesca em períodos de reprodução, restringindo o uso de agrotóxicos, proibindo determinadas atividades em áreas críticas de poluição, etc. As leis socioambientais editadas nos anos 90 e a partir de 2000, especialmente a Lei no 9.433/97 (que institui o Sistema Nacional de Recursos Hídricos) e a Lei no 9.985/2000 (que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza), rompem com essa orientação e passam a prever mecanismos e instrumentos de gestão dos bens socioambientais, e não apenas de repressão a determinadas condutas e atividades.
Em 1989 é criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), com a transferência do patrimônio, recursos e cargos de quatro órgãos extintos no mesmo ano: a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe), a Superintendência da Borracha (Sudhevea) e o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), pela Lei no 7.735. No mesmo ano é instituído o Fundo Nacional do Meio Ambiente, pela Lei no 7.797/89. Boa parte das unidades de conservação brasileiras foi também criada nos anos 80. Em 1986, foi fundada uma das mais atuantes organizações ambientalistas: a Fundação SOS Mata Atlântica, com sede em São Paulo, por um grupo de ambientalistas paulistas liderado por Fábio Feldmann, João Paulo Capobianco, Rodrigo Mesquita e Roberto Klabin, entre outros. Esse grupo teve grande influência na criação do primeiro Conselho de Meio Ambiente (Consema) e da primeira Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, em 1986, exercendo papel importante na defesa desse ecossistema florestal.
Outro grande marco da história do ambientalismo mundial – com repercussões sobre o ambientalismo brasileiro – foi a divulgação, em 1987, do relatório das Nações Unidas intitulado Nosso futuro comum
, coordenado pela então primeira-ministra da Noruega (Gro Brundtland, hoje diretora da Organização Mundial de Saúde), razão pela qual ficou conhecido como Relatório Brundtland
. Foi o primeiro relatório internacional que utilizou e defendeu o conceito de desenvolvimento sustentável
, entendido como aquele que satisfaz as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer as suas próprias necessidades
. O relatório denuncia a rápida devastação ambiental e o risco de exaurimento dos recursos ambientais do planeta, caso tal modelo de desenvolvimento persista, e relaciona 109 recomendações dirigidas à implementação dos objetivos estabelecidos na Declaração de Estocolmo, de 1972, prevendo que o ritmo corrente de desenvolvimento impediria o acesso aos recursos naturais necessários