O Desafio de saber ensinar
De Lucia Moysés
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Sobre este e-book
Afastando-nos da vasta bibliografia que debate a crise no ensino brasileiro, suas implicações, causas, fracasso escolar, decadência da qualidade etc., encontramos esse livro de Lucia Moysés que procura apontar os aspectos positivos da atuação dos professores.
Ao se inserir no movimento que se volta para o cotidiano escolar, ela procura trazer de lá as contribuições que apresenta. - Papirus Editora
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O Desafio de saber ensinar - Lucia Moysés
delas.
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O DESAFIO DE SABER ENSINAR
Saber ensinar... a quem? O quê? Como? Eis algumas questões que nos assaltam quando deparamos com essa temática. Somam-se a essas muitas outras, uma vez que não é tão simples assim estabelecer o significado do que seja esse saber. Portanto, é preciso que façamos alguns esclarecimentos.
Comecemos pelo quem. Trata-se da clientela básica da escola pública de ensino fundamental e médio, ou seja, de alunos oriundos das camadas populares.
Ensinar o quê? Seriam todos aqueles saberes que lhes permitirão atuar no mundo em que vivem de forma crítica e consciente. Desde as habilidades básicas como saber ler, escrever, fazer as operações matemáticas, até as tecnicamente mais elaboradas, os conhecimentos sistematizados, as artes etc.
Porém, quando falamos em saber ensinar, estamos pensando em algo que é mais do que uma simples habilidade expressa pela competência do professor diante do processo de ensino/aprendizagem. É muito mais. Tarefa complexa, requer preparo e compromisso; envolvimento e responsabilidade. É algo que se define pelo engajamento do educador com a causa democrática e se expressa pelo seu desejo de instrumentalizar política e tecnicamente o seu aluno, ajudando-o a construir-se como sujeito social.
Queremos, pois, desde já, deixar claro que ao fazermos uso da palavra competência ou da expressão professor competente não lhes atribuímos nenhuma conotação que possa identificá-las com o enfoque tecnicista que durante tanto tempo as marcou.
É óbvio que ele, o professor, por si só, não é capaz de transformar a realidade que extrapola a própria escola e tem suas raízes no econômico e no sociopolítico. Mas sua competência, como profissional da educação, é, sem dúvida, um dos fatores de maior peso quando se pensa na melhoria da qualidade do ensino.
E o ensino vai mal. Isso é, por exemplo, a conclusão a que chegaram Fletcher e Ribeiro (1987) em pesquisa feita a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 1982, e confirmada pelos últimos levantamentos feitos em 1992 pelo mesmo instituto. Nela se constatam os alarmantes índices de retenção do aluno no sistema: 8,4 anos, em média, nos bancos escolares para completar, no máximo, cinco séries, sendo o índice de retenção na primeira série igual a 54%. Percebendo que ao longo de várias décadas esses resultados vêm se impondo com grande força, Ribeiro denuncia a naturalização que acaba sendo feita desse fenômeno. Usa a expressão pedagogia da repetência
para se referir à crença, bastante difundida entre os professores das séries iniciais, de que só uns poucos alunos conseguem passar de ano.[1] Ou seja, a escola, concebida da forma em que está, traz em si os fatores que propiciam o fracasso. Faltam-lhe recursos materiais e humanos para fornecer um ensino de qualidade. Há quem pense que o magistério é algo que se improvise; no entanto, é uma atividade profissional que exige preparo especializado para atingir bons resultados. Requer formação com sólidas bases teóricas. Exige, por outro lado, que se conheça a realidade na qual e sobre a qual se atua.
Hoje já começa a se avolumar entre nós um número considerável de estudos preocupados com a transformação técnico-pedagógica da escola de tal forma que esta seja, de fato, o local de acesso ao saber socializado, garantido a todos indiscriminadamente.
Engrossando essas fileiras, apresentamos o resultado de uma pesquisa que desenvolvemos com dez professoras da rede pública de ensino fundamental e que teve como objeto de estudo a questão da competência pedagógica.
O nosso primeiro passo foi o de deixar claro para nós mesmos o que entendíamos por professor competente. Concluímos que para isso seria necessário estabelecer critérios (cf. pp. 53-55). Foi por meio deles que chegamos aos bons professores
da pesquisa. Foi-nos um instrumento útil, apesar de reconhecermos que estava impregnado pela nossa própria subjetividade. Hoje, com o estudo concluído, podemos afirmar que, do nosso ponto de vista, competente é o professor que, sentindo-se politicamente comprometido com seu aluno, conhece e utiliza adequadamente os recursos capazes de lhes propiciar uma aprendizagem real e plena de sentido. Competente é o professor que tudo faz para tornar seu aluno um cidadão crítico e bem informado, em condições de compreender e atuar no mundo em que vive.
Queremos insistir que, embora nos restringindo à figura do professor, não nos escapa que o problema da competência pedagógica tem sua raiz na questão política da educação. Não temos dúvida de que a grave crise por que passa a escola pública brasileira é fruto do descaso com que os governantes a vêm encarando. Se no discurso oficial pode-se captar uma certa intenção manifesta de melhorar o ensino básico – a maioria dos governantes tem insistido nesse ponto nos últimos anos – a realidade, no entanto, nos mostra quão vazio é esse discurso. E, em função dessa política de aviltamento do magistério, a escola passou a ter, em seus quadros, profissionais mal preparados, desmotivados e, o que é pior, descompromissados com o seu papel de agentes de mudança.
A esse respeito, Patto (1990) afirma que dentre os fatores que concorrem para o fracasso escolar está o alto nível de insatisfação demonstrado pelos professores com as suas condições de trabalho, insatisfação essa que é extravasada nos seus próprios alunos. Após entrevistar professoras, dirigentes e pais de alunos de uma escola pública de ensino fundamental, observar o seu dia a dia e analisar as inúmeras dificuldades que o próprio sistema cria, concluiu que
as conseqüências deste estado de coisas sobre a qualidade do ensino não podem ser desprezadas; [...] o que torna a precária situação da professora, enquanto mulher trabalhadora, parte do processo de produção do fracasso escolar. (Patto 1990, p. 194)
Por outro lado, vale lembrar que até mesmo o professor mais bem preparado, consciente de seu papel de mediador entre o aluno e o saber historicamente acumulado, viu sua função ser reduzida a mero executor de determinações que lhe são atribuídas pelos especialistas. A eles cabe a tarefa de conceber, planejar e avaliar o processo pedagógico. A subtração da grande parcela de responsabilidade que lhe cabia pelo ensino e a submissão da sua autonomia a instâncias superiores de poder foram algumas das perversas consequências impostas por uma política educacional que intencionou dividir e burocratizar o trabalho, separando e diversificando os discursos dos envolvidos na educação.
Percebe-se, sem grande esforço, que falta clareza nas representações que o professor tem de muitos aspectos básicos da educação. Normalmente, ignora quais são as concepções teóricas que subjazem ao seu trabalho. Assim, misturando concepções, orientando-se ora pelos livros didáticos e guias do professor
, ora pelo seu bom senso, ele o vai realizando. Falta-lhe sobretudo coerência.[2]
Além dos problemas relativos à formação do professor ou à pouca autonomia que ele passou a ter com a presença dos especialistas na escola, há ainda muitos outros que a esses vêm se somar, comprometendo a qualidade do ensino. A falta de material didático-pedagógico e de condições físicas adequadas, o pouco tempo que o professor dispõe para realizar as atividades que são específicas da escola – atividades envolvendo o ensino e a aprendizagem – são alguns exemplos.
Mas, apesar desses fatores adversos, há alguns estudos ou depoimentos que atestam que ainda há professores que conseguem fazer bem feita a sua tarefa básica que é a de ensinar.[3] Porque aliam competência técnico-pedagógica a um grande empenho em dar o melhor de si, conseguem fazer com que seus alunos aprendam de uma forma rica e significativa. Sentem-se desafiados, sobretudo quando têm de ensinar àqueles rotulados como os que não têm jeito
.
A visão negativa que a escola tem do aluno
Não se pode ignorar que nas últimas décadas foi ocorrendo uma paulatina mudança no perfil da clientela que procura a escola pública de ensino fundamental. Hoje ela é formada basicamente por alunos provenientes dos setores economicamente mais desfavorecidos da população. Não se pode ignorar, tampouco, o frequente despreparo dos profissionais da educação – em especial do professor – para lidar com essa nova clientela. Se isso em si já constitui uma situação problemática, problema ainda mais grave ocorre quando tais profissionais têm dessa clientela uma visão negativa. Essa atitude os leva a depreciar a cultura das crianças que constituem tal clientela – quando não, a própria criança –, depreciação essa que é fruto dos seus próprios preconceitos ou informações anteriores.
A esse respeito, Brandão e outros (1983), na resenha que fizeram sobre pesquisas relacionadas à evasão e à repetência nas nossas escolas de ensino fundamental, reuniram diferentes estudos atestando que uma das variáveis que mais contribuem para esses fenômenos diz respeito às expectativas negativas que o professor tem do aluno pobre.
Patto (1984), por sua vez, havia não só afirmado o peso dessa profecia autorrealizadora
, como também detectado que a culpa pelo fracasso escolar acabava sendo assumida pelo aluno e seus pais. Uma pesquisa posterior (Penin 1989), no entanto, mostra estar havendo uma mudança em relação aos pais, que estão passando a ver na professora a causa para o fracasso de seus filhos na escola. É claro que grande parte das famílias não está indiferente ao processo de deterioração da escola pública e, assim sendo, atribui o fracasso escolar à falta de interesse da professora e, de uma forma mais vaga, à própria escola. Essa pesquisa apontou ainda que as diretoras compartilham da mesma opinião dos pais, embora por outros motivos: reconhecem o despreparo das professoras para ensinar, e afirmam que isso se deve às más condições de trabalho e aos baixos salários a que estão submetidas.
Não podemos admitir, porém, que sejam apenas tais fatores os que respondem pelo despreparo dos professores. Há falhas na sua formação que não podem ser esquecidas. Os movimentos organizados que hoje se fazem presentes em todo o Brasil em torno da questão da formação do educador dão testemunho não só