Miscellanea: Escritos diversos
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Miscellanea - Léon Bonaventure
Apresentação
É com muita satisfação que a Editora Paulus publica o presente livro.
Léon e Jette Bonaventure fazem parte da história de Jung em nosso país, principalmente ao cuidar da publicação da obra completa de C. G. Jung com a editora Vozes, ao lado de Leonardo Boff e da poetisa e tradutora Dora Ferreira da Silva.
Doutor em Psicologia, formado pela École Pratique des Hautes Études de Paris e pelo Instituto de Filosofia e Psicologia de Louvain, frequentou o Instituto C. G. Jung de Zurique. Léon, o menino da guerra
, como gosta de se intitular, tornou-se então membro da Sociedade Internacional de Psicologia Analítica e fez doutorado na Sorbonne. Nos seus anos de doutorado, conheceu Jette (Ronning), uma jovem dinamarquesa formada em Filologia Românica pela Universidade de Copenhague e Psicologia pela Sorbonne, onde foi assistente de Jean Piaget.
Casaram-se e em 1967 vieram para o Brasil, onde já moravam os pais de Jette.
Desde que aqui chegaram, foram incansáveis incentivadores, tradutores e pesquisadores da obra de Jung, promovendo grupos de estudos, escrevendo artigos, atendendo em consultório, além de colocar Jung no mundo editorial brasileiro.
Em 1972, foram responsáveis pela publicação do livro (talvez a primeira obra junguiana publicada no Brasil) Fundamentos de psicologia analítica – as conferências de Tavistock, pela Editora Vozes, cujo prefácio assinaram e que aqui está reproduzido.
Em 1975, Léon coordenou o evento em comemoração dos cem anos de nascimento de C. G. Jung, congregando inúmeros palestrantes e uma plateia atenta e curiosa no auditório do Museu de Arte de São Paulo (MASP), evento que se tornou um marco na história da psicologia analítica no Brasil.
Depois de uma estada na Europa com a família, mais precisamente em Annency, na França, Léon voltou ao Brasil com dois propósitos. O primeiro era realizar sua alma de jardineiro, seu amor à natureza. Para isso, comprou um sítio e iniciou o plantio e cultivo (com as próprias mãos) de algumas espécies pouco conhecidas no Brasil – primeiro o kiwi, depois a atemoia, além das berries: morango, framboesa, mirtilo –, no que foi e é até hoje muito bem-sucedido.
Seu outro propósito era plantar novos livros. Era o início dos anos 1980, e Léon propôs à Editora Paulus a ideia de criar uma coleção que contemplasse autores da psicologia analítica de Jung. Foi então que me convidou para participar desse projeto, juntamente com Pe. Ivo Storniolo. Em 1984, tivemos a primeira publicação da coleção Amor e Psique: Uma busca interior em psicologia e religião, de James Hillman, com tradução de Araceli Elman.
Hoje, orgulha-nos ter uma coleção que tem mais de cem títulos publicados, de diferentes autores junguianos, sempre com o objetivo de alimentar a alma de pessoas das mais diversas áreas de interesse e conhecimento, dentro da psicologia analítica.
Durante toda a sua vida, Léon buscou viver a sua vocação de curador de almas
, e Jette, sua vocação de educadora, ensinando e contando contos para inúmeras plateias. Foram muitos os grupos de estudos coordenados por ela, tanto no consultório como nas salas de casas da comunidade do bairro de Jaguaré, e até mesmo nos bancos da praça, em frente à sua casa.
É impossível separar o crescimento e a história da formação junguiana no Brasil da influência de Léon e Jette nesse caminho. Por isso, esta obra se fazia necessária. Era fundamental reunir, ainda que parcialmente, o conhecimento, a sabedoria e a experiência contida nesse casal que escolheu este país para viver e criar seus filhos.
Miscellanea congrega escritos tanto de Jette como de Léon. São escritos de muitos anos – antigos e novos. Em tempos que se misturam, assim como os espaços geográficos – de Zurique a São Paulo. Estilos e pensamentos que se mesclam em suas autorias.
Léon reconhece e sinaliza a própria maturidade, como se pode observar em suas reflexões com o passar do tempo. O fascinante, no entanto, é perceber que, em toda a sua vida, esteve presente a estrutura que o define como um homem cristão, buscando sempre aproximar a psicologia analítica dos fundamentos do cristianismo, onde analistas possam ser como os antigos mestres espirituais, os maîtres de vie. Como ele ainda é para muitos de nós.
Suas palavras e mensagens, algumas com mais de cinquenta anos, soam atuais como nunca!
Nós, admiradores e seguidores do pensamento junguiano, queremos crer que esta é uma obra importante por muitos motivos, mas, sobretudo, porque nos provoca reflexões através de olhares experientes para esse tema tão pungente que é a alma humana.
É com orgulho que trazemos Miscellanea ao público da coleção Amor e Psique.
Maria Elci Spaccaquerche
São Paulo, junho de 2021
Agradecimentos
Gostaria de dizer que sou muito grato à Editora Paulus por publicar este livro na coleção Amor e Psique. Esse ato é também uma homenagem que a Editora faz a Jette Bonaventure.
Outro importante agradecimento é dirigido a todos os amigos e amigas que acompanham essa coleção. Desde 1984, com a publicação do primeiro livro – Uma busca interior em psicologia e religião, de James Hillman –, sabemos que é o apoio, o estímulo contínuo dos leitores que contribui para manter viva a coleção, com seus mais de cem títulos publicados e em pleno crescimento.
Um agradecimento especial dirijo a estas seis pessoas queridas e amigas, por terem trabalhado para tornar vivo o texto deste livro.
A Patricia Alcovér Hadlich, minha secretária há 24 anos, que nesse tempo formou-se e hoje trabalha como psicóloga e arteterapeuta em seu consultório, e me auxilia com meus escritos, agenda e correspondências.
A Teresa Cristina Brandão, amiga e incentivadora, que conheci junto com Jette em uma conferência que fiz em Brasília, para o Instituto Junguiano.
A Maria Paula Perrone, analista do Instituto Junguiano de São Paulo, IJUSP/AJB.
A Aurea Helena de Moura Pinheiro Roitman, fundadora do Instituto Junguiano de Brasília, IJBsb/AJB.
A Maria Elci Spaccaquerche, amiga e parceira na coordenação, organização e realização desta jornada chamada coleção Amor e Psique.
À minha querida neta Beatriz Bonaventure Pizolio, que revisou minha entrevista no texto Ser terapeuta.
Léon Bonaventure
São Paulo, maio de 2021
Prefácio
Miscellanea
Em homenagem a Jette Bonaventure,
por Léon Bonaventure
No terraço de nossa casa, todas as tardes, durante o último ano de sua vida, Jette amava receber amigos. Ela não os considerava mais como pacientes, mas amigas e amigos.
Para traduzir em uma imagem, onde estaria Jette em sua caminhada interior, seria no Ícone da amizade do século XVI, onde dois amigos, Jônatas e Davi, ou Jesus e João, se apoiam com as mãos no ombro um do outro, felizes da vida.
Jette estudou nos melhores colégios da Europa, assim como em duas universidades. Uma em Copenhague, onde recebeu, depois de dois anos na faculdade de filologia, a licenciatura com menção de excelência em quinze línguas. Depois, estudou na Sorbonne, na faculdade de pedagogia, e, ao mesmo tempo, frequentava o Instituto de Pesquisa de Saint-Cloud.
Cursava também as aulas de Jean Piaget e gostava tanto dele que, durante dois anos, aos sábados, trabalhou como sua assistente, algumas vezes até substituindo-o nos cursos na Sorbonne. Havia uma amizade espontânea e respeitosa entre eles. Durante esses dois anos, no bar da esquina da rua da Sorbonne, cumpriam um ritual: às 8h40 tomavam um café juntos. Caso Piaget não viesse para o café, isso significava que Jette estaria encarregada de fazer a conferência em seu lugar, às nove, como ele costumava fazer. Ela sempre obtinha o texto de seu curso uma semana antes. Assim aconteceu várias vezes com aquela menina de 23, 24 anos.
No Instituto C. G. Jung de Zurique, nos anos 1970, que frequentamos juntos, por várias vezes ela contestou a famosa Jolande Jacobi a respeito da relação com a mãe interior, e foi radicalmente refutada pela professora Jacobi, o que fez com que se tornasse bastante conhecida nessa época.
Apesar de ser uma mulher dinamarquesa, sua filosofia de vida como mulher era primeiro a realização como mãe, depois a realização profissional. Por isso, Jette não quis fazer parte oficialmente da criação da coleção Amor e Psique. Além disso, ela já tinha trabalho mais do que suficiente com a revisão da tradução para o português da obra completa de Jung.
Como terapeuta, sua atitude era muito clara: eu não sou da escola junguiana, porque não tenho meus diplomas junguianos, não tenho uma formação clássica
. Ela se considerava obediente a Jung, educadora em linguagem simbólica, e tinha um forte sentido da alma. Procurava sempre o que é humano. De fato, ela tinha enorme respeito pelo ser humano e sem dúvida não era doutora sabe-tudo
.
Na Universidade de Copenhague, além do tempo normal, ficou mais seis meses para frequentar e estudar a própria dinâmica e estrutura da Universidade Popular da Dinamarca.
Quando voltou ao Brasil, ensinou Piaget por um ou dois anos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, antes de ir novamente a Paris para preparar o doutorado na área de humanas. Também nesse período, começou a praticar de forma não oficial o que havia aprendido na Universidade Popular da Dinamarca. Considerava esse o seu trabalho. Foi, uma vez por semana, à comunidade existente ao lado do CEASA, das 15 às 17h, durante sete anos ou mais.
O sentido pedagógico lhe era inato. Nesse trabalho, por exemplo, foi concebido um belo artigo sobre o ciclo lunar e o ciclo menstrual, aqui reeditado.
Nunca me esquecerei de um dia em que, voltando um pouco mais tarde que o previsto, me disse quanto era bonito ver essas mulheres simples compreenderem e entenderem com a barriga...
Ela foi muito feliz nesse trabalho e ficaria também muito feliz ao ver esse artigo reeditado agora, assim como o que publicamos juntos sobre a importância dos contos na prática da psicoterapia, analisando o conto Chapeuzinho Vermelho
. Esse artigo foi escrito por nós dois, quando estávamos vindo para o Brasil, em 1967, no navio Eugênio C.
Ele tem um sabor especial, porque foi ali, naquele momento, que ela descobriu o valor pedagógico e psicológico dos contos de fada, ou melhor, o valor das imagens dos contos de fadas – ideia que nunca mais abandonou durante cinquenta anos. Como se sabe, Jette sempre tinha um conto para comentar qualquer situação psicológica da vida.
Sabe-se que Jette era uma especialista no assunto, no Brasil e no mundo, tendo dois livros publicados nesta coleção: O que conta o conto? e O que conta o conto? – II: variações sobre o tema mulher.
Na bagagem trazida da Europa, um grande volume de livros, durante meses e meses, esperou no chão para encontrar prateleiras numa biblioteca. Um belo dia, voltando da favela, de sua universidade popular
, Jette me disse: o grande problema do Brasil é a educação. Depois de um certo tempo, ela disse: tenho vontade de dar a nossa biblioteca particular para o Brasil. O brasileiro precisa e tem que aprender a amar ler, e ler
.
Algum tempo depois, o primeiro livro de Jung era traduzido e publicado: As conferências de Tavistock. Em seguida, pela Vozes, ela assinaria o contrato para a tradução da obra completa de Jung. Naquele momento, Jette já era conhecida e considerada pela família Jung. O contrato da tradução do alemão para o português especificava que Jette seria a revisora oficial da obra completa de Jung no Brasil. Foi um trabalho imenso, mais para ela do que para mim. Eu não poderia jamais imaginar o que seria. Mas a tradução da obra completa de C. G. Jung está aí, e é isso que importa.
Depois, com o tempo, na Editora Paulus, eu, o padre Ivo Storniollo e Maria Elci assumimos a coordenação da Amor e Psique, em 1982, criada como uma grande e bela coleção junguiana.
Jette não quis fazer parte oficialmente desse projeto, mas teve aí sua discreta importância. O mérito do sucesso pertence principalmente a Maria Elci.
Graças às editoras católicas, Vozes e Paulus, além de outras, o mundo junguiano brasileiro tem hoje uma vasta biblioteca, com inúmeros títulos publicados.
Os textos aqui apresentados são uma homenagem a Jette, uma grande dama que é, ao mesmo tempo, a pequena menina dinamarquesa brasileira.
Esses textos foram pensados e escritos a duas mãos, o anel no dedo, nossa aliança.
Quando algumas vezes nos perguntávamos o que nos permeava, juntos havia já cinquenta anos, tínhamos uma única resposta: um grande amor, um grande mistério, nosso mito.
Comecei minha vida profissional sendo o doutor Léon, e Jette, a esposa. Termino sendo o marido de dona Jette.
Um belo título.
Léon
1
A importância dos contos e das lendas na psicologia analítica
Léon e Jette Bonaventure
No período de agosto a novembro de 1967, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo realizou uma série de seis conferências sobre psicologia analítica. Durante esse período, referi-me várias vezes a mitos e lendas, mostrando o paralelo existente entre estes e a psicologia.
Na época, apresentei (Léon) o conto da Chapeuzinho Vermelho, em relação a um caso que tratei em psicoterapia.
Antes, entretanto, expus algumas ideias gerais sobre os estudos científicos que estavam sendo feitos sobre as lendas e os contos de fada.
Desde o século XVIII, Winckelmann, Hamann e Herder realizaram estudos científicos sobre os contos de fada, considerando que estes tinham as reminiscências de crenças antigas e soterradas, expressas em símbolos.
No inverno de 1963, uma série de conferências realizadas no Instituto C. G. Jung de Zurique (Uma introdução à psicologia dos contos de fada) resultou na obra de Marie-Louise von Franz A interpretação dos contos de fada, que, na primeira parte, reviu e publicou um resumo dessas conferências. Aí, vamos encontrar várias referências sobre as pesquisas científicas realizadas no campo das lendas e dos mitos. Nosso trabalho foi inspirado nessa obra e no livro Archetypal Patterns in Fairy Tales, da mesma autora.
Principalmente as pesquisas de Herder têm suas raízes numa preocupação filosófica filiada ao neopaganismo do seu século. Ele procurava algo que parecia faltar à religião cristã. Foi essa mesma ideia que levou os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm a recolher contos populares. Podemos também constatar, nos textos originais de Perrault (1967), como esse autor considerava inerente aos contos a existência de uma moral, de uma religião.
Etnólogos, arqueólogos, especialistas em história das religiões também realizaram os mais diversos estudos nesse campo. Entre eles, podemos citar Lévi-
-Strauss, Roger Bastide, Mircea Eliade e, no Brasil, Luís da Câmara Cascudo e, ultimamente, Zora A. O. Seljan.
Frequentemente, esses e outros autores citam ou se servem das ideias de Jung, embora não levando em consideração suas hipóteses de trabalho e esquecendo os postulados fundamentais da psicologia analítica, isto é, o estabelecimento do ponto de partida na observação dos processos energéticos da psique. Ignoram, em geral, o aspecto existencial de um símbolo ou de um conto, seu aspecto emocional ou antropológico. Entretanto, fornecem-nos abundante informação; material de que o psicólogo pode se servir com proveito em suas pesquisas.
Existe, por outro lado, uma escola que procura estudar, do ponto de vista literário, as diferenças existentes entre os vários tipos de contos de fada, mitos, lendas, histórias de animais, histórias cômicas e contos propriamente ditos. Comparam, por exemplo, a maneira de ser do herói nos diversos textos, os variados temas em que aparecem e o seu estilo literário. A escola da Finlândia, representada por Kaarle Krohn e Antti Aarne, procurou a origem dos contos, pensando que podiam ter origem em diversos países. Segundo esse critério, reuniram uma coleção de um mesmo tipo de conto de fada, com todas as suas variantes, em todos os países, considerando a melhor e mais rica versão, sob o prisma da poesia, como sendo a original. As outras seriam simples derivações. Inútil dizer que essa concepção está atualmente superada. Sabemos, pelas experiências no campo das comunicações, que uma comunicação pode ser alterada tanto a favor como contra seu enriquecimento. Não há, pois, fundamento em pensar que a melhor versão de um conto de fada é necessariamente a original.
Depois dessa rápida introdução, entremos no cerne do assunto: abordemos a origem das sagas, mitos e contos de fada e sua interpretação. Evidentemente, esta pode ser feita nas mais diversas direções. Basta estabelecermos uma hipótese de trabalho diante do material recolhido e, com um método adequado de abordá-lo, procurar apreender o conteúdo do conto. É óbvio que existem muitas escolas de interpretação dos contos de fada.
Parece-nos, além disso, que existem contos a ser compreendidos de um ponto de vista religioso, e outros que melhor se enquadram numa interpretação psicológica, sociológica ou etnológica. Finalmente, outros contos podem ser interpretados sob diversos pontos de vista.
Vários psicólogos têm se dedicado à interpretação dos contos de fada. Foi Wundt, no século XIX, que primeiro se interessou como psicólogo pelo estudo dos mitos em sua obra Völkerpsychologie. Infelizmente, ele só tinha à disposição o conhecimento da psicologia do consciente para interpretá-los. Outro psicólogo da escola junguiana que estudou os contos de fada, especialmente os de Andersen, de um ponto de vista psicológico, foi o dinamarquês Eigil Nyborg (1962).
Como dissemos, a grande especialista nesse campo é Marie-Louise von Franz, discípula e colaboradora direta de Jung, autora de diversos trabalhos, seguida por numerosos discípulos da escola da psicologia analítica. Obedeci à orientação dela neste estudo.
Mas o que é que os contos de fada podem ensinar aos psicólogos? Diz ela: "O estudo dos contos de fada é essencial para nós, pois eles delineiam a base humana universal" (FRANZ, 1990, p. 34, grifo nosso).
Mircea Eliade, na introdução ao livro de Gaster (1963), exprime a mesma ideia, se bem que mais reservadamente quanto à origem:
Existe um vasto fundo de ideias primitivas e de superstições que formam a herança comum da humanidade. [...] Esse fenômeno é devido à migração dos povos e à difusão das ideias? Ou proviria unicamente do fato de que todos os povos chegados ao mesmo nível de cultura têm tendência a pensar da mesma maneira? Esse é um ponto que ainda está por ser determinado; provavelmente todos esses fatores entrem em jogo, e um não exclua o outro (GASTER, 1963, Introdução).
Luís da Câmara Cascudo, por seu lado, afirma:
Nenhuma ciência como o folclore possui maior espaço de pesquisa e de aproximação humana. Ciência da psicologia coletiva, cultura do geral no homem, da tradição e do milênio na atualidade, do heroico no cotidiano, é uma verdadeira história normal do povo (CÂMARA CASCUDO, 1986, p. 15).
Talvez esclarecer as origens dos contos de fada seja a maneira mais fácil de compreender como os contos de fada falam da psique humana.
Conforme a hipótese de M.-L. von Franz, a forma mais original dos contos populares não são os contos de fada, mas o que ela chama de sagas locais
, essas histórias miraculosas que surgem quando algo de estranho acontece a uma pessoa de uma cidade. Uma vez que o aspecto pessoal e local acaba eliminado pelo tempo, surge o conto cortado das raízes locais. Podemos notar, aliás, que o herói e os personagens dos contos são muito mais abstratos do que os das sagas locais. Nesse último caso, os personagens ainda são providos de sentimentos humanos: tremem, os caboclos se eriçam na cabeça diante do desconhecido, de um fantasma etc. Segundo a mesma autora, o conto seria semelhante ao esqueleto que permanece, mesmo depois de destruída a carne.
O mito, por sua vez, difere do conto de fada porquanto tem sempre algo de nacional: assim, o mito de Hércules e o de Ulisses só podem pertencer à Grécia Antiga. Está, pois, ligado à consciência cultural coletiva de uma nação; e como se depreende logicamente, fica mais perto da consciência
(FRANZ, 1990, p. 32).
Quanto à prioridade do mito sobre o conto de fada ou vice-versa, os autores divergem. Para alguns, como E. Schwizer, o mito provém de motivos dos contos de fada, tal como no mito de Hércules. Para M.-L. von Franz,
Isto me convenceu de que os grandes mitos podem decair com a civilização a que pertencem, e que os temas básicos podem sobreviver como temas de conto de fada, migrando ou então permanecendo no mesmo país. [...] Os contos de fada são como o mar, e as sagas e os mitos são como as ondas desse mar; um conto surge como um mito, e depois afunda novamente para ser um conto de fada (FRANZ, 1990, p. 33).
A maioria dos contos de fada não tem autor. Quando falamos dos contos de Grimm, isso não significa que foram os irmãos Grimm os autores desses contos, mas sim os compiladores de grande número de contos populares que, através deles, foram publicados. Inclusive, eles sempre declaravam honestamente as modificações que introduziam nos contos por eles ouvidos e colecionados. Em geral, é um contador de histórias primitivo, um medicine man ou um profeta que transmite as histórias que ouviu. Nas tribos, por exemplo, é o xamã que recebe o encargo de contar histórias.
Já em 1889, Ludwig Laistner publicara em Berlim o seu livro Das Rätsel der Sphinx, em que sustentou a seguinte hipótese: a base dos contos de fada e os motivos dos contos populares derivam dos sonhos e, sobretudo, dos pesadelos.
Foi também no fim do século XIX que o etnólogo Karl von den Steinen escreveu sobre os índios do Brasil Central, explicando como a maioria das crenças sobrenaturais dos primitivos derivam de suas experiências oníricas, uma vez que eles consideram os sonhos como atuais e reais.
Outro autor dessa mesma época, Adolf Sebastian, desenvolveu uma teoria sobre os fundamentos de