Miguel: o aluno surdo em processo de aquisição de linguagem
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Miguel - Janine Candeias Balbino Dias
1. PRIMÍCIAS
Figura 1 - Mente Surda
Nancy Rourke
Fonte: https://www.nancyrourke.com/deafmind.htm
Comungo com a autora do poema ao dizer que o silêncio é algo desconhecido para os surdos. Mas concordo em partes, não é para qualquer surdo, mas para aqueles que sinalizam e permitem significar e serem significados por meio da língua de sinais. Quando suas mãos não são utilizadas para sinalizar, nem tão pouco escrever e quando não se reconhece como surdo, o silêncio toma conta de si. Busco no dicionário, na letra S
, o significado da palavra silêncio
. Encontro condição de quem se cala ou prefere não falar
. No caso da surdez, talvez não seja uma preferência, melhor seria dizer uma impossibilidade de fala.
Impossibilidade por ser surdo? Creio que não! Impossibilidade por não terem ensinado suas mãos a falar, a escrever e a seus olhos ouvirem, assim como as mãos da autora surda, Marta Morgado, e a dos inúmeros surdos que sinalizam e escrevem. Sentada a sua frente falando-lhe com minhas mãos, aguardo o retorno das tuas e não as tenho; aguardo teu nome escrito em uma folha de papel e tenho-o inexato, faltando-lhe algumas letras, são tantas ausências de respostas que me coloco a pensar: Será apenas surdez?¹
Hoje analisando a linguagem dentro de uma perspectiva histórico-cultural entendo que o pensamento não é simplesmente expresso por palavras é por meio delas que ele passa a existir
(VYGOTSKI, 2008, p. 156-157).
Olhar para os surdos que não sinalizam e não escrevem é olhar para uma mente com poucas possibilidades de trocas de significações. Que palavras tu tens? Como é teu pensamento e este é permeado por elas? Essas e mais inúmeras outras interrogações me conduziram a tecitura do presente texto. Novamente retomo a fim de demarcar, não para dizer que estas questões são inerentes a surdez, mas que as mediações proporcionadas se transformaram em significações na vida de Miguel,² codinome adotado ao participante e protagonista da pesquisa.
Miguel é um jovem de 22 anos, com surdez profunda bilateral, que passou pela escola regular e demais instituições especializadas, sem ter tido acesso à Libras (Língua Brasileira de Sinais). Ouso dizer, em concordância com Coelho (2013), que Miguel faz parte dos surdos isolados
, não quero dizer que este se encontra restrito à sociedade ou geograficamente isolado, mas linguisticamente cerceado. Ele não teve um desenvolvimento/envolvimento adequado a sua condição de ser surdo, nem na família, e nem tão pouco no ambiente escolar.
A realidade dos surdos tem sido determinada pela diversidade de experiências aos quais estes são partícipes, sendo suas vidas chanceladas por um complexo acesso aos direitos de cidadania (COELHO & KLEIN, 2013).
As instituições escolares exercem um importante papel no acesso a esses direitos, por poderem possibilitar ao surdo um ambiente com ensino deliberado rico em experiências visuais, visto que a maioria dos surdos não comungam de um ambiente familiar assim. No entanto, ainda encontramos nas escolas muitos surdos isolados
, pois a sociedade e as práticas educacionais não são condizentes com suas singularidades de constituição humana e de aprendizagens.
A sociedade historicamente tem chancelado a educação dos surdos à incapacidade cognitiva, com concepções equivocadas pautadas na falta de audição, o que implicam diretamente em suas práticas com esses, esquecendo-se da importância da linguagem e a aquisição de uma língua para o processo de desenvolvimento destes. Vygotsky (2008), nos esclarece sobre a impossibilidade de desenvolvimento cognitivo de qualquer ser humano na ausência de uma língua, daí a importância de se atentar e entender como o percurso escolar desses surdos está sendo mediado.
As narrativas aqui descritas carregam partes de minhas memórias, dos inúmeros dias de estudos, leituras, idas e vindas à universidade, conversas e observações. Memórias construídas dentro de relações dialógicas, entendendo que minha memória
foi se constituindo dentro de uma arquitetônica³ de trocas entre o eu e o outro, minha voz e por fim minhas memórias, é um conjunto das inúmeras vozes que se entrelaçaram e passaram a constituir os meus dizeres. Unindo-me às palavras de Bakhtin digo que
O nosso discurso da vida prática está cheio de palavras de outros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós; por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas (BAKHTIN, 2006, p. 195).
É esse conjunto de vozes que se orquestram em mim e que agora sintetizo por meio do recurso mnemônico da escrita. Os fundamentos que delineio estão relacionados à surdez, Linguagem e Ensino de Biologia, percursos que nortearam meus passos até aqui. A partir destas perspectivas, realizei alguns apontamentos sobre a pessoa surda, tendo como base uma visão construída e fundamentada na teoria histórico-cultural formulada por Vygotsky e na teoria enunciativa-discursiva de Bakhtin, por ambos entenderem que a linguagem se constrói em um âmbito social, por meio das interações dialéticas com outro. Em sua perspectiva, Vigotski (2007), afirma que os processos humanos têm gênese nas relações sociais e devem ser compreendidos em seu caráter histórico-cultural.
Na tentativa de analisar as questões relacionadas ao ensino de Biologia de um surdo isolado
, olhando a surdez sob a ótica do campo histórico e social, ou melhor, imerso na cultura, é que me debrucei no estudo de caso de um aluno com surdez profunda, que se encontra em processo de aquisição de linguagem, matriculado em uma escola estadual de ensino médio, no município de Conceição da Barra/ES.
A discussão sobre surdez, língua de sinais e práticas de ensino vêm sendo ampliadas nos últimos anos por profissionais envolvidos com a educação de surdos, como também pela própria comunidade surda. Essa discussão é cada vez mais necessária, à medida que as políticas educacionais inclusivas e as políticas linguísticas para surdos vêm sendo consolidadas no Brasil.
Para o aprofundamento das propostas apresentadas, é importante abordar os termos relacionados à pessoa surda. A categoria deficiência auditiva refere-se à perda auditiva, enquanto a categoria pessoa surda, ao mesmo tempo em que faz menção a essa mesma perda, agrega à compreensão e à interação do mundo, por meio de experiências viso espaciais, caracterizadas pelo uso da Língua de Sinais, Aqui no Brasil, convencionada como Língua Brasileira de Sinais (Libras). No desenvolvimento desta dissertação, deter-me-ei à terminologia da pessoa surda ou surdo.
Essas terminologias fazem parte de um processo histórico-cultural e ao analisarmos a história dos surdos observamos estas modificações. Segundo Strobel (2008), no passado os surdos foram vistos como inferiores aos ouvintes, sub-humanos
como deficientes que precisavam se enquadrar e caminhar dentro dos padrões de normalidade, necessitando serem oralizados. Este paradigma marcou por muitos anos a comunidade surda, embora sejam uma minoria linguística, possuem uma língua própria não oral.
O reconhecimento legal desta língua foi garantido por meio da Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, regulamentada pelo decreto nº 5.626/05. Dentre as principais providências previstas na Lei, para área educacional, o decreto visa o acesso à escola regular para os alunos surdos; o ensino da Libras como língua de instrução; o ensino do Português como segunda língua para alunos surdos e a organização da educação bilíngue no ensino regular.
Esses documentos orientam que as escolas devem se organizar e incluir no seu quadro funcional o professor de Libras ou instrutor de Libras, além de tradutor ou intérprete de Libras, para auxiliarem no processo de apropriação de linguagem do surdo, professores regentes de classes com conhecimento da Libras, apoio em turno contrário ao da escolarização, assim como proporcionar à comunidade escolar cursos de formação. A escola deve adotar mecanismos de avaliação que respeitem as singularidades dos surdos, com caminhos indiretos/alternativos4 que facilitem o seu pleno desenvolvimento.
Entendendo que Miguel, o participante da pesquisa, encontra-se em processo de apropriação da língua de sinais e do português escrito, fui buscar instrumentos que alcançassem suas especificidades de aprendizagem. Atentei-me as suas singularidades, reconhecendo-o como um sujeito único, advindo de um isolamento linguístico, que necessita de recursos indiretos/alternativos para conseguir compreender o conhecimento científico.
O cotidiano inclusivo é sempre desafiador. Então, como alcançar tantas especificidades dentro do ambiente escolar? Recorri ao uso de diversos instrumentos que me auxiliaram no processo de mediação do conhecimento científico, que me permitiram contemplar as singularidades de Miguel, com recursos de visualização, tais como: mapas conceituais, questionário em Libras, aulas práticas e de campo, além do uso dos jogos, buscando possibilitar um rico reconhecimento visual para a apropriação da língua de sinais e formação de conceitos no campo da Biologia.
O ensino de Biologia tem seguido uma metodologia livresca, conteudista, sem levar em conta a real necessidade dos participantes. Trabalhamos com o estudo da vida e não damos sentido e significado a todos os seres que necessitam ser trabalhados, desconsiderando seus saberes, ao invés de nos apoiarmos neles para tentar ressignificá-los. Buscando indícios dos pensamentos de Miguel, podemos refletir sobre o que significou para ele a escrita, ou se ele passou 12 anos desenhando letras.
Eis que temos um problema. O que fazer? Desconsiderá-lo ou tentar ressignificá-lo? Como o ensino, e nos referimos aqui ao de Biologia, pode considerar todas essas questões e ainda assim tentar ressignificá-las? Se propomos uma educação para todos, temos que respeitar a singularidade de todos os partícipes deste processo, a não ser que façamos de conta que a educação é de todos, mas que somente seja constatada no papel.
Reconhecendo as dificuldades e desafios para se ministrar os conteúdos de Biologia no ensino médio, especificamente o conteúdo de botânica. Surge, assim, a ideia de incorporar o uso de caminhos indiretos que facilitem a compreensão do conteúdo de forma motivadora e divertida, tanto para o aluno surdo quanto para os demais.
É notória a necessidade de se rever as práticas pedagógicas relacionadas ao estudante surdo, a fim de alcançar suas especificidades, de forma a adotar práticas pedagógicas que atuem nos componentes internos da aprendizagem, já que estes não podem ser ignorados, quando o objetivo é a apropriação de conhecimento por parte do aluno (KISHIMOTO, 1996).
Hoje percebo o quão necessário é trabalhar com materiais diversificados, caminhos indiretos/alternativos no ensino de Biologia, entendo o processo de formação de conceitos teorizados por Vygotsky e percebo a importância deste no ambiente de ensino, para dar sentido ao conhecimento que se veicula na sala de aula e para que não seja apenas um ato de memorização e sim de aprendizado. Entendo que para cada nova palavra aprendida, exige-se que todo um caminho seja percorrido até conseguir se chegar ao conceito. A aprendizagem é processual e não condiz a um tempo de um ano escolar (VIGOTSKII, 2017).
O ser humano nasce com todos os aparatos biológicos passíveis de ser classificado como sendo da espécie Homo sapiens, mas junto com isso necessitamos de outros signos para emergirmos na cultura. Vivemos rodeados na e pela linguagem; ao falarmos dela estamos envoltos por vários signos linguísticos que nos diferenciam, mesmo compartilhando de uma mesma espécie. Alguns desenvolvem mecanismos de significações diferentes dos outros, a exemplo disso temos a língua oral e a língua de sinais, signos linguísticos que possibilitam a imersão à cultura ouvinte ou à cultura surda.
Vigotski (2011), em seus estudos relata que existem dois caminhos de desenvolvimento: um direto ligado aos aparatos biológicos e o indireto ligado aos aparatos culturais, sendo que ambos possibilitam o alcance ao desenvolvimento. Aqui neste trabalho, nos deteremos aos caminhos indiretos.
É este o caminho indireto, que burla o sentido de que tudo que é biológico é normal, somos seres constituídos de cultura, na e pela linguagem. A exemplo disso, temos os surdos que se envoltos por um ambiente favorável e rico linguisticamente, que comunga da língua de sinais, deixam de ter o aparato biológico como o único caminho de desenvolvimento.
Embora vários estudos apontem o ganho significativo da língua de sinais e os ganhos legais e reafirmem tal importância, ainda nos deparamos com surdos isolados
, assim como Miguel, com atraso no desenvolvimento da linguagem, mesmo tendo participado de um ambiente escolar.
1 Optei pela letra em itálico, para referir-me aos meus pensamentos, questionamentos, que surgiram pela observação participante, anotações de caderno de campo, no