A potencialidade narrativa do sintoma psicossomático
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Sobre este e-book
Neyza Prochet
Doutora em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ)
"Nataly Netchaeva Mariz defende, nesta obra, que na clínica com pacientes psicossomáticos o analista escute esse tipo de adoecimento para além da perspectiva de falhas simbólicas e que não o restrinja a processos de subjetivação oriundos de certa organização psíquica, mas o acolha justamente em sua potencialidade narrativa. Esse caminho se sustenta na medida em que é suposto ao sintoma psicossomático comportar uma mensagem potencial em busca de significação, um texto pictografado a ser traduzido e, assim, coconstruído, de modo a ganhar sentido metafórico. Essa é a aposta da autora. E apostamos também!"
Issa Damous
Professora adjunta do Departamento de Psiquiatria
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A potencialidade narrativa do sintoma psicossomático - Nataly Netchaeva Mariz
A potencialidade narrativa
do sintoma psicossomático
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 da autora
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Nataly Netchaeva Mariz
A potencialidade narrativa
do sintoma psicossomático
Dedico este livro à Irina, que com alegria contagiante me impulsiona a ser uma mãe, companheira e profissional suficientemente atenta e disponível
AGRADECIMENTOS
Esta obra é resultado da pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio na linha de pesquisa Casal e Família: estudos psicossociais e psicoterapia, de 2011 a 2015. Agradeço primeiramente aos órgãos federais de fomento de pesquisa, tão importantes naquela época e sempre necessários, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que pela concessão de bolsas de doutorado, taxa de bancada e doutorado-sanduíche viabilizaram a realização deste trabalho.
Aos professores da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio pela generosidade na transmissão do conhecimento, em especial a Silvia Zornig pela aposta, pelas oportunidades e pela orientação, que se iniciou ainda no período do mestrado. Cabe igualmente agradecimento à banca examinadora composta de Maria Inês Bittencourt, Flávia Sollero de Campos, Fernanda Pacheco Ferreira e Issa Leal Damous, bem como aos amigos e colegas de orientação: Sergio Cepelowicz (in memoriam), Ana Carolina Vieira, Natalia Guimarães, Natalia Cidade e Helena Aguiar.
A Sylvain Missonnier e Bernard Golse pelo acolhimento na Paris V, dando-me oportunidade de conhecer a pesquisa francesa e participar dos seminários, o que me possibilitou entrar em contato com novos olhares sobre o primeiro capítulo
da vida psíquica. Do mesmo modo, sou grata à generosidade de Franck Zigante, pela oportunidade de participar de seu grupo de trabalho, que abriu espaço para reflexões acerca da aquisição da narratividade. Do período no exterior, lembro com carinho de Roxane Dejours, Khaled, Veronique, Carla Cobra e Sabira, que tornaram minha estadia mais enriquecedora, assim como os amigos da Maison du Brésil.
Este trabalho também foi possível graças ao apoio de Marcia Azevedo, Vanuza Campos Postigo, no campo psicanalítico, e de Klaus Reis e Vera Lucia dos Reis, no campo pessoal. Da mesma forma, reconheço a importância de meus supervisores clínicos, que me acompanharam durante minha formação, contribuindo para ampliar minha escuta para além das palavras.
Cabe agradecer a Denise Kaiuca, que com sua escuta atenta e sensível contribuiu para que eu retomasse e avançasse em aspectos cruciais da vida.
Não poderia deixar de agradecer à querida Neyza Porchat pela cuidadosa leitura e preciosa contribuição na escrita do prefácio.
Agradeço, sobretudo, a minha família multicultural, que me propiciou um encontro com várias línguas. Cada um, em sua diferença, pôde me ensinar a riqueza do convívio com um outro. Do mesmo modo, sou grata aos amigos e companheiros de vida, em especial Lucas Travassos Telles, que, como um irmão, há mais de 30 anos, acompanha minha trajetória.
Por fim, não posso deixar de agradecer a Wagner Guimarães, que, como parceiro leal, tem mantido presença disponível e amorosa, que trouxe o incentivo e suporte necessários para a finalização desta obra.
PREFÁCIO
Entrar no mundo, existir é obra trabalhosa, requer delicadeza, timing e constância. Antes mesmo de nascer, somos envolvidos por um complexo sistema de sinais e significações verbais, impregnados pelos modos e signos da cultura na qual estamos inseridos e também, ao mesmo tempo, somos banhados por outra linguagem, sutil, mas tão poderosa quanto a herança transmitida oralmente — uma comunicação que é estabelecida pelo corpo da mãe com o corpo da criança e que deixa registros por toda a vida. A mãe, compreendida aqui com a figura humana responsável pelo cuidado devotado exigido para sustentar a existência do bebê, disponibiliza-se para ser plasticamente adaptada às necessidades do infante, condição sem a qual nenhum processo de saúde pode acontecer. A atividade continuada da mãe escutando
o que seu bebê precisa e realizando ações que atendem às necessidades dele inaugura a experiência de comunicação da criança — ela foi ouvida
.
É uma relação de devoção que precisa acontecer repetidamente e durante certo tempo. Dessa forma, a sucessão dos fenômenos corporais vividos oferece ao bebê a sedimentação das vivências, habilitando-o, com o tempo, a ser capaz de criar memórias e a organizá-las. O corpo é o início e o elemento central das primeiras formas de comunicação com o mundo, mesmo antes de haver um Eu; em outras palavras, o corpo preexiste ao Eu (PROCHET, 2011).
O poeta e compositor Arnaldo Antunes fala que o corpo tem alguém como recheio
. Sim, um corpo vivo só tem sentido se tem recheio
, se há alguém que o habite. Vemos atualmente, em nossa clínica, corpos em busca do que o poeta chamou de recheio
, e que nós, psicanalistas consideramos como a busca de um sentimento de existir enraizado corporalmente que ou não se constituiu ou se perdeu. Defrontamo-nos com sintomas corporais muito ruidosos, mas que se originam de um corpo silenciado, como a autora nos aponta, um corpo que parece não poder reconhecer sua existência como superfície expressiva e integrante do todo que compõe o Eu
(p. 22).
O modo de expressão como um indivíduo é construído psiquicamente dependerá de vários fatores e será profundamente influenciado pela cultura que o origina. Na modernidade, considerávamos o corpo uma realidade fixa e natural, uma referência estável, apresentado como a morada do ser, da razão e da consciência. A Psicanálise enriqueceu essa perspectiva, mostrando que o corpo também era um campo privilegiado do inconsciente.
Contemporaneamente, no entanto, a relativização da presença corporal na cybercultura e a consequente perda de objetividade e estabilidade conduziram à emergência de novos fenômenos no plano corporal. Distante dos mecanismos conversivos e do lugar de palco em que foram representados enredos e narrativas nos quadros histéricos, o corpo hoje se afasta de sua interioridade em direção ao exterior do sujeito, tornando-se cada vez mais expressivo daquilo que é pré-representacional, pré-simbólico. Mais do que o corpo anatômico funcionante da Medicina, mais do que o corpo imaginário da Psicanálise, o corpo da atualidade é, acima de tudo, um produtor/buscador de sentidos e de identidade.
A potencialidade narrativa do sintoma psicossomático, de Nataly Netchaeva Mariz, é leitura fundamental na clínica psicanalítica contemporânea. A autora realiza um trabalho de pesquisa extenso e aprofundado acerca da problemática psicossomática e nos convida a pensar essa sintomatologia como uma comunicação que é herdeira direta das vivências primitivas. É, assim, um espaço privilegiado de discussão da dimensão intersubjetiva dos fenômenos somáticos, inaugurados nos primórdios da vida e que se estendem no decorrer de nossa existência. Na sintomatologia psicossomática, o corpo retoma seu lugar de meio de contato e campo expressivo, em busca de uma experiência humana compartilhada. É uma forma singular de comunicação que será aqui compreendida como narrativa, ou seja, como fazendo parte da necessidade humana de expressar a própria história.
O primeiro terço desta obra é uma revisão minuciosa e articulada do lugar do corpo na teoria psicanalítica. Com base nos estudos iniciais sobre os sintomas histéricos, Freud transforma em teoria e técnica uma escuta diferenciada acerca do sofrimento nos sintomas histéricos e conversivos, provocado pelo estrangulamento de afetos que seriam silenciados e que usariam o corpo como forma de expressão. Nataly acompanha o desenvolvimento das formulações freudianas mantendo sempre a perspectiva da investigação daquilo que estaria aquém/além da representação.
É apresentada a evolução do conceito de pulsão, que abriga tanto o corpo-organismo como o corpo-sujeito. Ao mesmo tempo, observamos o desdobramento da teoria em direção ao corpo como base por onde o psiquismo é constituído, por meio do autoerotismo e do cuidado recebido pelo outro, que integra e erotiza esse corpo e se encaminha para a subjetivação e a sexualidade.
Os sintomas psicossomáticos são fios narrativos emaranhados sem palavras ou representações, aspectos secretos
até para si mesmos, mas organizados em direção de um encontro entre aquilo de que o sujeito necessita e seu entorno.
No terceiro capítulo, a autora mostra que houve certo silenciamento do valor de comunicação do corpo em si, do infans, do indivíduo antes da fala, como se a comunicação só começasse a acontecer a partir da representação, ou seja, como se já não houvesse ali uma comunicação dialógica sendo estabelecida. A subjetividade no corpo é ignorada ou não percebida, só aparecendo por meio da falha no psiquismo que conduz ao sintoma psicossomático. Decerto não encontramos (como nos quadros histéricos e conversivos) uma linguagem simbólica a emergir do sintoma psicossomático. Porém, tomar como ausentes no corpo outras formas de comunicação distintas do simbólico levou a clínica psicanalítica a obstruções e impasses. Existe, como pano de fundo no adoecer, uma ideia de que ficar doente é um fracasso e uma condição de passividade e impotência. O indivíduo doente, então, é alguém à mercê do cuidador.
Nataly aponta o sintoma psicossomático como um recurso narrativo e não como uma falha no desenvolvimento. O sintoma psicossomático se oferece, assim, como um espaço de procura de acontecimentos transformadores. Transforma-se em expectativa de comunicação, captador de um olhar atento e de cuidados necessários. A crise, com a emergência dos sintomas, exige atenção e soluções urgentes, e o indivíduo pode fazer uso dessas situações como possibilidade de ter assegurada sua existência, de receber os cuidados e atenção que não pôde receber anteriormente e que não receberia de outro modo. Ou seja, o adoecer é uma resposta adaptativa a uma situação insustentável de outra forma. É esperança do indivíduo adoentado e que sofre que certos aspectos do ambiente que falharam originalmente possam ser revividos, com o ambiente desta vez tendo êxito ao invés de falhar
(WINNICOTT, 1983d, p. 117).
Longe do sujeito apassivado, aquele que adoece é alguém que tem uma potência, pois busca ativamente, dentro dos recursos que pôde desenvolver, a possibilidade de modificar sua condição de sofrimento.
O sintoma psicossomático tem uma estreita relação com os primórdios da relação mãe-bebê, em que as diversas dimensões das manifestações corporais podem ser estudadas em suas múltiplas facetas.
A parte final desta obra é dedicada às construções das narrativas oriundas das relações precoces com a figura materna até o reconhecimento do potencial narrativo dos elementos sensoriais e corporais que emergem em uma sessão clínica, incorporando sentido ao que ficara encapsulado e não conectado, não como um sentido pronto e meramente oculto, mas como um acontecimento em devir, uma construção.
A leitura do vasto e preciso material cuidadosamente pesquisado pela autora indica a importância de, com base na escuta, buscarmos a (re)constituição de uma narrativa que, por sua ausência, impossibilita que novas narrativas sejam constituídas. O valor de verdade vai ser encontrado quando a narrativa adquirir plausibilidade para o paciente e quando determinados acontecimentos na vida, que se mantinham isolados e sem explicação, passarem a ter um sentido coerente. O lugar do analista é o de criar um espaço de acolhimento e de acontecimentos em que os movimentos regressivos podem ser experimentados em direção à construção e/ou interação de diferentes aspectos do self não apropriadamente desenvolvidos.
O que está em questão, o que sempre está em questão, é o humano, é a necessidade primordial de um indivíduo sentir-se encarnadamente vivo, relacionando-se com um outro, no mundo, com todas as alegrias e vicissitudes que isso acarreta.
Desejo aos leitores o mesmo prazer e estímulo que este trabalho me propiciou, convidando àqueles que se interessam pela clínica psicanalítica a buscar, para além da representação, a expressão humana em todas as suas possibilidades.
Rio de Janeiro, outubro de 2021.
Neyza Prochet
Doutora e mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP; especialista em Psicologia Clínica e Atendimento à Família pelo Centro de Orientação Juvenil do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz); especialista em Processos Motivacionais pela PUC-Rio. Ex-supervisora clínica do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) Mauricio de Souza (2012-2013). Professora do curso de Especialização em Psicologia Clínica na Abordagem Winnicottiana da Universidade Cruzeiro do Sul. Psicóloga, psicanalista e membro efetivo do CPRJ
APRESENTAÇÃO
Que o corpo traz uma potencialidade narrativa é algo que podemos intuir... o corpo fala! Representado ou apresentado, o corpo conta uma história, porta uma história, insere-se em uma história. Ensimesmado, fragmentado, unificado, assolado pelos excessos, o corpo conta de si, de desamparos, de júbilos, de ser objeto de desejo, de ser fonte desejante. O corpo conta também os jogos identificatórios dos quais faz parte, conta agruras e empoderamentos vividos nas andanças da existência, em si e em meio à alteridade.
De fato, desde que observamos um bebê prontamente percebemos as manifestações sensório-motoras, autoeróticas ou abrindo-se ao encontro com o objeto. O bebê silencia, aquieta-se, esperneia, choraminga, grita, movimenta-se para um lado e para o outro, pega na ponta dos pés, procura, espera, assusta-se, relaxa, ri, é alimentado, higienizado, ninado, brinca... e tem em tudo isso uma ritmicidade coreografada. Mais ou menos harmoniosa, essa ritmicidade perpassa a relação do bebê consigo e as trocas com o mundo na jornada rumo à independência. Há uma coreografia de encontro no berço do narcisismo primário, diria René Roussillon, e, em meio à dança que se desdobra no contexto de uma metapsicologia de presença do objeto primário, o bebê pode (re)encontrar a continuidade da trama narrativa transgeracional que o precede.
Na clínica psicanalítica aprendemos logo cedo a incluir em nossa escuta do funcionamento inconsciente a narrativa contada pelo corpo. Isso inclui todo o escopo mimo-gesto-postural de que se utiliza o humano no cotidiano, mais