Reputação em dois estágios: Construção social de padrões e de julgamentos
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Reputação em dois estágios - Fábio Da Silva Gomes
1. MUNDO VIVIDO: FONTE DAS PERCEPÇÕES
O leitor pode escolher a ordem da leitura dessa obra. Neste capítulo de abertura, apresentamos ao leitor as bases teóricas de nosso conceito de reputação. Com esse propósito, tivemos que acessar elementos mais densos que povoam discussões filosóficas e sociológicas. Caso o leitor queira acessar diretamente a nossa proposição sobre reputação, poderá iniciar a leitura pelo capítulo dois – isso não prejudicará a compreensão sobre o que propomos nesse livro.
O mundo que nos cerca é farto de experiências que forçam as portas de nossos sentidos. Se contabilizarmos os fatos que marcaram nossa vida em uma determinada semana, das mais comuns às que produziram dramas ou felicidades retumbantes, pensaremos nas causas das promoções de sensações e afetos relacionados à satisfação, insatisfação, gozo, raiva. Ao lembrarmo-nos das causas, avaliaremos circunstâncias, pessoas, ambientes, produtos que marcaram as nossas experiências. A visita de um parente, a qualidade de um vinho, o atendimento em uma clínica, a experimentação de um produto – para todos esses exemplos, dentre outros, a possibilidade da dicotomia satisfação/insatisfação está presente. De igual forma, o julgamento acerca do que produz essas sensações que experimentamos. Nossa tendência é avaliar bem o que produz bem-estar, assim como mal o que nos causa toda sorte de desprazer.
Este livro é uma adaptação da tese de doutoramento, defendida em 2022¹ e dedicada exatamente a refletir sobre os fatores que estimulam os julgamentos que fazemos, a Reputação que formamos sobre alguém ou alguma coisa que promove em nós bem-estar.
Diante dessas experimentações, apreendemos significados que estimulam as interpretações que fazemos, racional ou intuitivamente, a respeito dos fatos vividos. No decorrer de um dia, múltiplas experiências cotidianas podem estimular nossas interpretações. Ao acordarmos, por exemplo, podemos perceber uma postura ou reação incomum de um familiar. Essa breve experiência visita nossos sentidos, promove apreensão de significados, estimula interpretações. O conjunto desse processo de apreensão de qualidades em um evento pode promover reações a depender da interpretação que fazemos: preocupação, compaixão, desconforto, aborrecimento, fúria, desconfiança etc. Se já ao abrirmos os olhos nos deparamos com tão farta experimentação, imagine o número de situações durante todo o dia! Esses registros de atividades cotidianas são essenciais na formação das nossas opiniões e julgamentos.
Percepção: a peça central na formação dos julgamentos
Alguns temas são fundamentais para nossa abordagem de Reputação – o conceito de percepção é um dos mais importantes. O ponto de partida para a formação de opiniões, ordenamento de conteúdos das interações cotidianas, dos julgamentos que fazemos é a percepção. Iniciamos nossa relação com algo quando, ao forçar as portas de nossos sentidos, o percebemos. A percepção é um fenômeno muito estudado por diversas áreas do conhecimento e escolas do pensamento sociológico e filosófico, com abordagens e perspectivas que indicam diferenças e semelhanças entre si. Ao tratar de um tema com tanta complexidade, endereçamos nossa visada a uma abordagem que apresentamos a seguir.
O pensamento sociológico reconhecido como original dos norte-americanos é o pragmatismo – estaqueamos nossa proposição de Reputação nas cercanias dessa abordagem. Percursos históricos têm motivações e marcos que são centrais no entendimento sobre uma escola de pensamento. A gênese do pragmatismo foi objeto de exame de Donald Levine.² O autor destaca a obra do precursor do pragmatismo Charles Sanders Peirce, com enfoque epistemológico e profundas imbricações éticas - com influência do pensamento de Immanuel Kant. Peirce é o ponto de partida da exposição sobre origens e estrutura do pensamento pragmatista. Sem estudar na Alemanha, a exemplo de muitos pensadores norte-americanos contemporâneos, o autor interessou-se pelo conceito kantiano de sujeito cognitivo
, rejeitando, assim, o cartesianismo e aderindo à perspectiva do conhecimento enquanto dependente da lógica. Mas, segundo Levine (1997), diferente de Kant, Pierce entendia que lógica se desenvolve e, por isso, toda filosofia baseada nela também.³
A partir de Peirce, a perspectiva pragmatista passou a ser estudada e promovida por professores de Harvard, Michigan e Chicago. O conceito pragmatista, com variadas aplicações e adaptações, potencializou-se pela intensa produção e consequente promoção da sociologia norte-americana – assim, alcançou hegemonia nos EUA na denominada Era Progressiva
(1896-1914).
Antes de dar relevo às principais contribuições para a construção pragmatista, aplicamos nossa atenção ao exame dessa perspectiva à luz dos campos filosófico, social e político realizado por Thamy Pogrebinschi⁴, que propõe uma matriz filosófica pragmatista – o que é fundamental para esclarecer a nossa concepção de construção de Reputação. A partir dos eixos teóricos da significação e da verdade, essência da teoria pragmatista, a autora propõe a composição da matriz filosófica com três ideias principais, partindo das contribuições seminais de Peirce, James e Dewey: antifundacionalismo, consequencialismo e contextualismo. Com essa matriz, a autora descreve a contribuição do pragmatismo para o campo filosófico.
O antifundacionalismo se caracteriza pela negação de qualquer tipo de dogma, valor supremo
, autoridade última
e dualismos, e pela defesa da incerteza proveniente das experiências humanas mutáveis – rejeita-se a cognição prévia a favor da ação prática do homem enquanto fundamento para a filosofia. Já o consequencialismo, na reafirmação da rejeição à causalidade e da valorização das consequências oriundas da proposição de Dewey, traduz a vocação pragmatista de olhar para o futuro. Enquanto o antifundacionalismo renega as proposições fundamentadas pelo passado (dogmas edificados por análises precedentes), o consequencialismo, não obstante as diferenças entre os fundadores do pragmatismo, considera possibilidades de acontecimentos vindouros. A terceira ideia da matriz proposta por Pogrebinschi, o contextualismo, é apontada pela autora como a que mais contribui para a história da filosofia. Os fundadores do pragmatismo (Peirce; James; Dewey, 1927) centram suas argumentações, e diferenças, em três eixos principais: experiência, prática social e comunidade de investigação. Pogrebinschi indica que o pragmatismo denomina de experiência o conjunto de crenças e de elementos culturais de uma sociedade. Já a prática, presente nas outras duas ideias da matriz, apresenta-se como o conceito de ação, principal elemento constitutivo da experiência. A prática e a experiência são apresentadas como fatores principais na argumentação do contextualismo e devem orientar as investigações, o trabalho da comunidade de investigação. Embora com diferenças de perspectivas dos fundadores, o destaque do que os une, no conceito do contextualismo, está na experiência, na prática e na comunidade de investigação. De uma forma geral, o contextualismo celebra a relevância dos fatos e protagoniza a adaptação dos sujeitos (hábitos, crenças, práticas) a esses fatos.
A tríade formada pela matriz de Pogrebinschi nos move na investigação do conceito de Reputação. Entendemos que: 1) o processo de construção social dos padrões reputacionais não se fundamenta em dogmas, portanto é antifundacionalista; 2) a elaboração desses padrões refere-se ao futuro (consequencialista) – o julgamento de algo com base em padrões; e 3) os atributos que edificam os padrões reputacionais são relacionados a experiências e práticas em um contexto do mundo objetivo. Retomaremos a esses temas mais adiante. Antes, porém, vamos voltar ao nosso argumento sobre percepção.
Para compreendermos como formamos julgamentos que desaguam em Reputação, é essencial que tornemos claro o que é percepção. Na relação que temos com o mundo que nos cerca e com as experiências que visitam nossos sentidos, o conceito de percepção é