Paradoxo Infinito
Paradoxo Infinito
Paradoxo Infinito
Em 1851 foi publicado, em lngua alem, um pequeno livro intitulado Paradoxos do infinito de autoria de Bernard Bolzano. A publicao foi feita trs anos depois de sua morte e trata-se de uma nova e original maneira de abordar o conceito de infinito. Conceito esse que trs consigo inmeros paradoxos como veremos. O primeiro infinito que nos deparamos tem sua origem no nosso princpio da contagem; todos ns contamos e ordenamos; um, dois, trs..., o primeiro, o segundo..., e a noo de cardinalidade ( quantidade) se confunde com a noo de ordinal. Apesar de no experimentarmos o infinito, podemos discerni-lo, pois ao contar, percebemos atravs do discernimento, que podemos sempre acrescentar mais um. Essa a primeira noo de infinito, o infinitamente grande. Quando no sculo XVII Pascal exclama: o silncio desses espaos infinitos me apavora. Pascal nos mostra a crise provocada pelo renascimento ao contrapor um espao infinito cosmologia finita de Aristteles. A outra noo o infinitamente pequeno: uma grandeza pode ser subdividida indefinidamente. Essa noo est relacionada ao conceito de continuidade do espao, por exemplo, um segmento de reta pode ser subdividido ao meio, cada metade subdividida ao meio e cada parte subdividida novamente ao meio, e assim indefinidamente. Portanto, bastante razovel e geometricamente intuitiva essa idia de subdiviso indefinida produzindo um processo infinito. Ligado a esse conceito est a teoria atomstica de Demcrito ( 410 a.c. ), segundo a qual uma grandeza formada por um nmero muito grande de partes atmicas indivisveis. Apesar de menos razovel que o conceito de subdiviso indefinida mencionado acima, ele ser muito til em termos prticos e ser utilizado por Arquimedes ( 287-212 a.c. ) , por Cavalieri na Itlia em 1635, por Kepler em seus clculos na astronomia e por Leibniz e Newton com a noo de infinitesimais. Os paradoxos relacionados com o infinito tornaram-se famosos na Grcia e foram muito estudados na Idade Mdia de modo especulativo e metafsico. Entre esses paradoxos esto os conhecidos paradoxos de Zeno de Elia (450 a.c.) que chama a ateno para as dificuldades lgicas que aparecem ao lidarmos com o conceito de infinito. Dois deles so: - A dicotomia : Se um segmento de reta pode ser subdividido indefinidamente, ento o movimento impossvel pois, para percorre-lo, preciso antes alcanar seu ponto mdio, antes ainda alcanar o ponto que estabelece a marca de um quarto do segmento, e assim por diante, ad infinitum. Segue-se ento, que o movimento jamais comear. - A flecha : Se o tempo formado de instantes atmicos indivisveis, ento uma flecha em movimento est sempre parada, posto que em cada instante ela est numa posio fixa. Sendo isso verdadeiro em cada instante, segue-se que a flecha jamais se move. Muitas explicaes foram dadas para os paradoxos de Zeno. Aristteles, por exemplo, fez vrias consideraes a respeito que foram utilizadas na Idade Mdia para grandes especulaes metafsicas sobre a natureza do infinito. A questo que falta uma linguagem
apropriada para falar do infinito, e o paradoxo causa desconforto porque sua linguagem lgica e coerente nega a realidade que observamos e experimentamos, ou seja, o movimento. Esse desconforto tamanho que os infinitsimos foram totalmente excludos da geometria demonstrativa grega. O tipo de racionalismo grego que na verdade promove os paradoxos. Mas, esse mesmo racionalismo que os responde. A resposta surge ento na escola Platnica em torno do ano 350 a.c. atravs do mtodo de exausto creditado a Eudoxo. Esse mtodo foi muitssimo utilizado por Arquimedes para calcular diversas reas e volumes. Os resultados de Arquimedes serviram de base na verificao da eficcia do clculo infinitesimal de Leibniz e Newton no sculo XVII. O mtodo de exausto admite que uma grandeza possa ser indefinidamente dividida e baseia-se no seguinte postulado : Se de uma grandeza qualquer subtrai-se uma parte no menor que sua metade, do restante subtrai-se tambm uma parte no menor que sua metade, e assim por diante, se chegar por fim a uma grandeza menor que qualquer outra predeterminada da mesma espcie. (ou seja, no sobra nada ) O postulado resolve o primeiro paradoxo de maneira brilhante, mas um tanto marota, pois o que se faz simplesmente postular que um determinado processo infinito tem fim e esgota a grandeza inicial. Esse tipo de procedimento era aceito pelo racionalismo grego que se caracteriza pela axiomatizao de verdades primeiras das quais todas as outras devem ser deduzidas. Esse o critrio de verdade iniciado por Tales ( 600 a.c. ) e desenvolvido pela escola pitagrica ( 500 a.c.). Temos como exemplo o famoso Teorema de Pitgoras que verdadeiro porque foi deduzido, demonstrado a partir de premissas axiomatizadas e tidas como verdades primeiras e indelveis. Esse mesmo teorema era conhecido experimentalmente por inmeros povos. Mas, para os gregos a verdade no vem da experincia e nem pode ser apreendida pelos nossos sentidos, digamos imperfeitos, que nos remetem apenas ao conhecimento de uma representao grotesca da realidade absoluta. Para ter acesso luz verdadeira somente pela deduo, ou mtodo axiomtico. Isso uma inveno grega, e nesse aspecto podemos falar que a matemtica uma inveno grega. Ressaltamos que a mesma coisa foi feita por Euclides quando postulou o quinto postulado das paralelas: j que no conseguimos demonstrar, que tal te-lo como postulado da geometria? Outro grande problema relacionado com o infinito foi a constatao pelos pitagricos da existncia de segmentos incomensurveis, isto , que no possuem comprimento, no podem ser medidos, como por exemplo a hipotenusa de um tringulo ( retngulo ) cujos catetos medem um centmetro cada um. Essa impossibilidade no acontece na prtica e parece mesmo uma questo improcedente, pois claro que podemos medir qualquer segmento, basta ter uma rgua. Mas, novamente, o tipo de racionalidade grega produzia esses questionamentos. A constatao foi essa: no existem nmeros suficientes para medir todos os segmentos. Os gregos tambm no encontraram nmeros para medir a rea de um crculo de raio unitrio. Assim, aparece o problema dos nmeros irracionais, incluindo a o lendrio nmero ? ( letra p em grego) que recebeu esse nome no sculo XVIII em homenagem a Pitgoras que foi o primeiro a perceber o fato absurdo e altamente angustiante que a insuficincia do sistema numrico, ou do princpio da contagem, mesmo sendo infinitamente grande. No
sculo XVIII descobriu-se que a suspeita dos gregos era procedente, ou seja, realmente no existe nmero para medir a rea de um crculo de raio igual a um. Por outro lado, intuitivamente e geometricamente bvio que deve existir tal nmero. Acreditando ento na existncia desse nmero, os matemticos do sculo XVIII o chamaram de ? , mesmo sem ter certeza de sua existncia. Assim tambm fizeram com todos os outros nmeros que no existiam, como raiz quadrada de 2 por exemplo, e denominaram esses nmeros de irracionais. (A razo da denominao o fato de que esses nmeros, se existirem claro, no so fraes, isto , no so razes de dois inteiros, da o nome irracional). Cabe aqui lembrar que os nmeros irracionais, existindo ou no, so totalmente dispensveis na produo de tecnologia, mesmo as mais avanadas e modernas. O que deve ser analisado portanto, e isso cabe s cincias sociais, se o tipo de racionalidade que produz o questionamento dos irracionais realmente necessria para gerar desenvolvimento tecnolgico avanado, (tecnologia posterior ao sculo XVII). Como isso muito duvidoso, v-se que meio ridculo colocar referncias ao nmero ? em sondas espaciais que procuram por vidas inteligentes fora do planeta. A no ser que estejam procurando gregos no espao. A insuficincia do sistema numrico perturbou a racionalidade grega. A escola platnica contornou o problema com a teoria das propores de Endoxo para tratar os segmentos incomensurveis descobertos por Pitgoras. Mas no conseguiu resolver a questo, principalmente o da rea de crculos. Na Idade Mdia, inmeras abordagens metafsicas foram feitas com relao natureza do infinito. Mas todas elas incuas. No Renascimento, Cavalieri retoma o velho conceito das partes atmicas indivisveis abandonado pelos gregos para construir um princpio muito til no clculo de reas e volumes, o conhecido princpio de Cavalieri ensinado nas aulas de geometria da escola bsica. Esse princpio foi muito utilizado por Kepler em sua pesquisa do movimento dos corpos celestes .Cavalieri era aluno de Galileu, que expressava claramente a dificuldade de entender ontologicamente o infinito devido aos inmeros paradoxos. Galileu concluiu que infinito e indivisibilidade so em sua prpria natureza incompreensveis para ns e piorou ainda mais a situao ao observar que os atributos maior, menor e igual no fazem nenhum sentido quando utilizados para comparar quantidades infinitas. Por exemplo, pode-se construir uma correspondncia um a um entre os nmeros pares e o conjunto de todos os nmeros inteiros da seguinte forma: a cada nmero inteiro n associe o nmero par 2n. Verifica-se facilmente que essa correspondncia um a um, de modo que no podemos afirmar que temos uma quantidade de nmeros pares menor do que a quantidade total de nmeros. Isso contradiz um axioma bsico da racionalidade grega, a saber, o todo maior que a parte. Temos ento outro paradoxo com relao ao infinito e refere-se agora aos conjuntos com infinitos elementos, como o conjunto dos nmeros inteiros. Estamos portanto no sculo XVII ps renascentista e incio da cincia moderna, com seu mtodo pragmtico visando previsibilidade e tecnologia, que a aliana entre a cincia e a tcnica, aliana indispensvel para atuar na natureza sujeitando-a. O conhecimento deve agora prioritariamente proporcionar um completo controle dos fenmenos naturais. Os novos mecanismos de dominao apoiam-se nesse controle atravs da tecnologia. A viso antropocntrica e o ser humano senhor do mundo, o explica e o entende por completo, no depende mais da natureza, mas tem total controle dela. O iluminismo ser o pice desse estado de sentimento. O mercantilismo e a revoluo industrial se impem. Como o saber
deve atender a essa demanda, assistiremos a uma grande atividade do conhecimento matemtico a partir do sculo XVI. O avano da matemtica se deve necessidade de se obter relaes quantitativas entre os diversos conceitos e grandezas emergentes, como fora e acelerao, temperatura e presso, velocidade e tempo, velocidade e distncia etc.. Essas relaes faziam parte principalmente da mecnica newtoniana recm inventada para dar uma nova interpretao do novo mundo revelado por Galileu. Essa mecnica foi muito bem aceita, pois atendia ao anseio de previsibilidade. Com ela podia calcular o momento e o local exatos da passagem de corpos celestes como cometas, e lembre que nesse paradigma, conhecer ser capaz de prever. Dentro desse contexto histrico, a matemtica se torna operacional, e o infinito passa a ser tratado de maneira intuitiva tendo como justificativa a funcionalidade. Foi uma poca em que os resultados justificavam qualquer procedimento. Quer dizer, qualquer raciocnio vlido, desde que funcione e os resultados possam ser verificados. Com isso, durante trs sculos, (XVI, XVII e XVIII ) o mtodo dedutivo grego foi atropelado, ou seja, a racionalidade grega foi atropelada. Newton e Leibniz oficializaram esse atropelo com a teoria dos infinitesimais que culminou no Teorema Fundamental do Clculo, a grande ferramenta para calcular reas, volumes e resolver equaes diferenciais ( fundamentais para se obter previsibilidade e determinismo, baseiam-se na segunda lei de Newton e na noo de velocidade instantnea. ) Newton e Leibniz lidam com partes atmicas indivisveis ( infinitsimos) sem nenhum escrpulo em relao fundamentao de sua natureza. Em outras palavras, ningum sabia o que era exatamente um infinitsimo indivisvel, mas como o mtodo e o raciocnio funcionavam bem, no se pedia uma fundamentao. Mas, Newton sofreu grande ataque do filsofo e bispo ingls chamado Berkeley que criticava os infinitsimos denominando-os de fantasmas de quantidades que expiraram. Outra coisa, o problema dos irracionais no fora ainda resolvido, mas obviamente foi tambm atropelado. Esse tipo de comportamento no de todo ruim, pois alavancou o conhecimento grego que estava estagnado por excesso de zelo com os fundamentos lgicos. ( Era tpico dos gregos.) Mas, por outro lado perigoso, j que no oferece uma segurana lgica quando as situaes a serem estudadas ficam mais complexas e os resultados j no so suficientes para justificar procedimentos, muitas vezes inadequados levando a contradies tericas desconfortveis. bom ressaltar que apesar de tudo no se cometeu nenhum erro por falta de fundamentao lgica, e muita coisa foi feita no sculo XVIII sem essa fundamentao. O primeiro intelectual a se sentir incomodado com essa falta de rigor foi o enciclopedista D Alembert , mas ele limitou-se a alertar seus contemporneos em 1754. Outro matemtico preocupado com a falta de rigor foi Gauss no princpio do sculo XIX.( 1801) Mas tambm no teve nenhuma iniciativa nesse sentido. No sculo XIX essa insegurana causada pela falta de rigor comea realmente a incomodar, e por volta de 1850 j um consenso a necessidade de uma reviso completa dos fundamentos da matemtica. Muitos fatos contriburam para isso, um dos mais importantes foi o aparecimento das geometrias no euclidianas por volta de 1830 introduzidas pelo matemtico hngaro Bolyai e pelo russo Lobashevsky. Essas geometrias colocaram em
dvida a prpria noo de axioma e o sistema hipottico dedutivo caracterstico da racionalidade grega. A reviso consistia em demonstrar os resultados sem apelar para intuies geomtricas espaciais. Para isso seria necessrio definir todos os conceitos aritmeticamente, encontrar uma linguagem adequada para lidar com o infinito e definir precisamente o conceito de limite. Essa tarefa comea a ser feita por Cauchy na Frana e foi levada a cabo pela escola alem na segunda metade do sculo XIX. A questo dos irracionais levantada pelos pitagricos s foi resolvida em 1872 por Cantor e Dedekind independentemente e de duas maneiras diferentes. Esse movimento ficou conhecido como aritmetizao da anlise. Toda a intuio geomtrica foi abolida e as demonstraes eram puramente analticas, formais e rigorosas, dentro dos princpios do mtodo hipottico dedutivo dos gregos. O problemtico infinito tratado agora com uma linguagem aritmtica finitista e a teoria dos conjuntos comea a se impor para formar depois a base dos fundamentos da matemtica do sculo XX. nesse cenrio que vamos apresentar nosso personagem Bernard Bolzano. Nasceu em Praga no ano de 1781. Filho de imigrante italiano, tornou-se padre e foi professor de religio na Universidade de Praga. Tinha forte inclinao para a lgica e a matemtica. Sempre viveu nessa cidade inexpressiva e longe de qualquer centro cultural importante da poca. Foi um homem de cultura e lngua alems e possua um vasto conhecimento em vrias reas do saber. Faleceu em 1848 e pode ser considerado um precursor da aritmetizao da anlise, movimento descrito no pargrafo anterior. Em 1817 ele j tinha plena certeza da necessidade de rigor na anlise matemtica e Felix Klein o chamou posteriormente de O Pai da Aritmetizao. Infelizmente o trabalho matemtico de Bolzano foi grandemente ignorado por seus contemporneos e vrios resultados seus aguardaram ser redescoberto posteriormente. Bolzano estudou vrios exemplos anlogos ao paradoxo de Galileu. Parece ter percebido que o infinito dos possveis nmeros irracionais era de um tipo diferente do infinito dos nmeros naturais, noo primordial que caracteriza a teoria dos nmeros transfinitos criada por Cantor no final do sculo XIX. No seu trabalho Paradoxien des Unendlichen (Paradoxos do Infinito) publicado postumamente em 1851, Bolzano percebe, num verdadeiro lance de gnio, que o paradoxo de Galileu pode ser interpretado como uma propriedade ou caracterstica genuna dos conjuntos infinitos; e exatamente essa caracterstica que foi fundamental para o estabelecimento do clculo sobre uma teoria de conjuntos infinitos rigorosamente desenvolvida no final do sculo XIX. Finalmente, Bolzano foi um gnio abandonado que sozinho desafiou o pavoroso e aterrorizador infinito. Desafiou o Clculo, cuja gnese encontra-se no passado distante, quando os pitagricos reconheceram a dificuldade envolvida em tentar substituir consideraes numricas por magnitudes geomtricas supostamente contnuas. Antnio Zumpano