Recorrências Introdução
Recorrências Introdução
Recorrências Introdução
1
O termo consciência é empregado aqui em sua acepção original, extremamente arcaica, de conhecimento
compartilhado e não para designar, como soe atualmente, a invencionice moderna de um como que palco da
mente onde se desenrolaria a como que peça dos atos mentais num como que teatro em que a como que plateia
seria formada por um único assistente (hodiernamente chamado de sujeito).
2
Embora nos textos de língua inglesa e alemã predomine o emprego dos termos equivalentes ao vernaculares
indução e seus cognatos, prática que também é seguida por autores de língua portuguesa, o uso do equivalente de
recorrência é comum nos meios de língua francesa. A terminologia o aqui privilegiada, acompanhando a prática
francesa, conforma-se melhor com a generalidade do tema. Se a analogia com a indução nas ciências da natureza
é manifesta no caso das demonstrações por indução, fato reconhecido até mesmo por Poincaré (talvez o
originador da terminologia francesa), ela se perde no caso das ditas definições indutivas e por indução. Ademais,
a classe de funções aritméticas que hoje considera-se como calculáveis recebeu a denominação hoje corrente
(“funções recursivas”) porque é a classe das funções que podem ser definidas por recorrência a partir de
operações lógico-aritméticas elementares, Mais sobre esse ponto, pode ser lido em {hyperlink: achegas para aa
história de uma má palavra} e na bibliografia citada.
1
tese de Poincaré de que procedimentos por recorrência são próprios do espírito humano 3. O
primeiro exemplo é a demonstração de uma proposição matemática, a Proposição 31 do
Livro VII dos Elementos de Euclides que reza, em termos modernos, que todo número
composto é divisível por algum número primo.
PROPOSIÇÃO 31. Todo número composto é mensurado por algum número primo
Seja A um número composto; eu digo que A é mensurado por algum número primo.
Pois, como A é composto, algum número o mensura. Que um número o mensure, e
que seja B tal número. Ora, se B for primo, o resultado desejado terá sido alcançado.
Mas se for composto, algum número o mensura. Seja C um tal número. Então, C
mensura A, visto que que C mensura B e B mensura A; se C for primo, o resultado
desejado terá sido alcançado. Mas se for composto, algum número o mensura. Assim,
se a investigação for continuada dessa maneira, algum número primo será encontrado
que mensurará o número antes dele, que também mensurará A. Pois, se não for
encontrado, uma série infinita de números mensurará o número A, cada um dos quais
é menor que o outro: o que é impossível em números. Portanto, algum número primo
será encontrado que mensurara o anterior, que também mensurara A.
Portanto, qualquer número composto é mensurado por algum número primo.
[Que] era requerido mostrar
O segundo exemplo é a demonstração de uma proposição de cunho filosófico-teológico
tomada da obra Suma contra os Gentios, livro 1, capítulo 13, parágrafo 83, de Santo Tomás
de Aquino, a assim chamada primeira via para demonstrar a existência de Deus4.
Tudo o que se move é movido por outro. É manifesto aos sentidos que algo se move,
como, por exemplo, o Sol. Portanto, algo outro movente move. Ora esse algo outro
movente ou se move ou não. Se não se move, teremos, pois, nosso propósito, é
necessário por algo movente imóvel [....] Se, porém, move-se, então o é por outro
movente. Portanto, ou se prossegue infinitamente, ou se deve chegar a um movente
imóvel. Mas não é o caso de se prosseguir infinitamente. Portanto, é necessário por
algum primeiro movente imóvel
Apesar de diferenças notáveis, há certa semelhança formal nas estratégias
argumentativas do matemático e do teólogo, Ambos recorrem a certa forma de redução ao
absurdo da tese contraria que pretendem demonstrar. Seja no texto matemático, seja no
texto filosófico-teológico, é argumentado que: i) a negação da tese implicaria numa serie
infinita de objetos que satisfaz certas propriedades (ou uma série de números tais que cada
3
Bem como ilustram a grande diferença entre os gêneros de discursos que esses argumentos exemplificam. O
que pertence a um gênero e o que pertence ao outro é matéria de disputa, mas convém esclarecer que, ao
contrário do que pode parecer ao leitor hodierno, o texto tomásico ilustra antes o discurso filosófico (e, assim,
presuntivamente puramente racional) que o discurso religioso (ainda que tenha por tema último o principal
personagem do discurso de certas religiões, mais precisamente, as judaico, crista e islâmica). Na verdade,
conviria reconhecer que o grande divisor de águas não é entre discursos putativamente racionais (científicos) e
os discursos míticos (religiosos), mas sim, para empregar uma fórmula suscinta, entre empresas cognitivas
públicos e outras privadas Os produtos das primeiras transcendem seus autores, e formam corpos doutrinais mais
ou menos estáveis e intersubjetivos, consignados não em obras originais, mas em manuais que servem de
principal meio de transmissão e nos quais as referencias aos principais fautores da empresa servem antes de
homenagem que de indicação de propriedade ou mesmo de autoria. Um exemplo explica melhor o ponto. O
assim chamado algoritmo de Euclides não se encontra exposto na obra de Euclides e isso nada tem de absurdo;
todavia, seria absurdo afirma que uma tese kantiana não se encontra exposta, nem necessariamente pressuposta,
em textos do filósofo alemão Emanuel Kant.
4
Para uma análise logica mais detalhada desse argumento, veja-se {hpyrlink}
2
um deles, com exceção do primeiro, seria divisor daquele que o antecede ou uma série de
moventes tais que cada um deles, com exceção do primeiro, moveria o anterior) e ii) essa
série, acarretada pela negação da tese, seria absurda. Num caso, o fundamento da série é a
relação de divisibilidade e no outro, a relação de mover. O absurdo matemático seria o de
uma série infinita descendente de números naturais (pois, todo divisor próprio é menor que
o dividendo), o absurdo físico (metafísico) seria o de uma série infinita de causas do
movimento. A similaridade fica, destarte, patente pelo paralelismo entre noções e teses da
filosofia (física) aristotélica e teses e noções matemáticas 5. À noção de dividir (mensurar)
corresponde a de mover, à de número composto, a de movente móvel, à de número primo,
a de movente imóvel etc. À tese matemática trivial da impossibilidade matemática de uma
série infinita descendente de números naturais corresponde a polêmica tese metafísica
aristotélico-tomásica de que não é possível uma série infinita de causas 6. A tese matemática
de que numa divisão cujo quociente é maior que um o divisor é menor que o dividendo
corresponde a tese da filosofia (física) aristotélica de que tudo que se move é movido por
algo outro (distinto dele) etc. Empregam teses materialmente distintas, mas que apresentam
grande semelhança formal.
O matemático e o teólogo assemelham-se como estrategistas lógicos não apenas por
recorrem àquele método demonstrativo conhecido como “redução ao absurdo” 7, mas
também pela maneira como pretendem conduzir a tese contrário ao absurdo: recorrem à
possibilidade de repetir, uma quantidade finita, ainda que indeterminada, de vezes um
processo (aquele que geraria a série ou dos divisores ou dos moventes e que conduziria,
porque finito a entidade cuja existência é afirmada pela proposição a ser demonstrada, ou
seja, ou o divisor primo de um número ou o movente imóvel de algo móvel). E essa é a razão
pela qual suas demonstrações foram aqui introduzidas, exemplos de raciocínios por
recorrência.
Os procedimentos de raciocínio por recorrência são especialmente úteis também no
ramo da Matemática em que a Lógica (o estudo de sistemas formais) se tornou a partir do
século passado. E aqui, como na Teoria de Números contemporânea, eles servem não
apenas para demonstrar, mas também para definir o próprio domínio de coisas a serem
5
Aqui é significativa carência de adjetivo no caso da matemática (que seria o caso também se o tema fosse afeito
a outra ciência) e a necessidade de adjetivar no caso da filosofia (que seria o caso também se o tema fosse afeito
a outro discurso mítico). Um possível emprego do adjetivo “euclidiano” aqui significaria ou apenas uma
homenagem a um importante autor de manual matemático ou, se uma restrição, essa não afetaria o conteúdo,
mas apenas o modo de expressar (certamente, num manual hodierno de Teoria dos Números, não se empregaria
a expressão mensurar, mas dividir, nem se representaria números naturais por segmentos de retas).
6
Na verdade, a tese esposada pelo Santo é mais refinada e reza não ser possível uma serie infinita de causas
ordenadas essencialmente. Todavia seria muito complexo entrar aqui nesses subtis detalhes metafísicos
7
Para os detalhistas, um uso peculiar de tal método, através do qual se pretende demonstrar uma asserção
afirmativa existencial. A questão da legitimidade do emprego desse método foi, no final do milênio passado, em
especial, no período entre as assim chamadas Primeira e Segunda Grande Guerra um dos principais pomos de
discórdia entre matemáticos interessados em questões de método e de fundamentos, ou seja, entre aqueles
Matemáticos que levavam muito a sério “aquele dedinho de prosa|” que todos que labutam seriamente
necessitam nos seus momentos de descontração. Diatribes que se tornaram um conflito científico-acadêmico, a
assim chamada “Guerra dos Sapos e dos Ratos” (veja-se (Dick van Dalen, s.d.) O emprego irrestrito (amplo e
geral) do método de redução ao absurdo é essencial para a ereção do mundo algo rococó, com seus ordinais e
cardinais transfinitos, da Teoria dos Conjuntos. De maneira mais geral, procedimentos não construtivos – que
podemos descrever como procedimentos que “pretendem matar a cobra, mas não mostram o pau” --, como o
método de demonstração por redução ao absurdo, mesmo quando a conclusão pretendida é uma afirmação
existencial, o uso de funções de escolha mesmo em conjuntos infinitos etc. são peças do ferramental
imprescindíveis para a constituição da matemática moderna.
3
estudadas. Os sistemas formais propostos inicialmente como formalizações dos
predicamentos lógicos clássicos (consistência, verdade lógica, consequência lógica,
contradição etc.) fornecem bons exemplos. Eles são determinados por três domínios básicos
de entidades: o dos símbolos (distribuídos em diferentes categorias lexicais, formando os
ditos vocabulários das ditas linguagens), o das expressões (isto é, de sequências de símbolos)
e o das sequências (eventualmente, árvores) de expressões 8. De maneira mais precisa, no
tocante a cada um dos dois últimos domínios, isola-se uma parte deles: dentre as
expressões, aquelas que são expressões bem formadas (que no caso da Lógica Proposicional
Clássica é único e no caso da Lógica Quantificacional Clássica 9 é dividido em com seus dois
subdomínios: o dos termos e o das fórmulas) e dentre as sequências de expressões, mais
precisamente, dentre as sequências (eventualmente árvores) de fórmulas, as demonstrações
e as deduções. Manifestamente, cada um desses três domínios é constituído por uma
infinidade de elementos distintos, o que torna impossível listar seus elementos, ou seja,
indicar pelo nome cada um de seus elementos 10. Mas no caso do vocabulário, embora não
seja possível listar exaustivamente seus elementos, é fácil determinar, para cada uma das
categorias lexicais, propriedades satisfeitas exatamente pelos elementos da correspondente
categoria; por exemplo, no caso das variáveis individuais de uma linguagem formal (a razão
fundamental para introduzir infinitude no domínio dos símbolos), podemos fornecer uma
propriedade simples, satisfeita exatamente pelas entidades que queremos que sejam nossas
8
Na verdade, o termo expressão não é dos mais felizes, pois só uma parte delas (as bem formadas) serão
tomadas como expressões (n sentido estrito) de algo. Fórmulas e termos, como vimos, são certos tipos de
sequências de símbolos e demonstrações e deduções em sistemas axiomáticos, certos tipos de sequências de
fórmulas e, nesse sentido, esses domínios são formados a partir do domínio dos símbolos. Dado isso, talvez seja
exato dizer que se considera um único domínio de entidades, o dos símbolos. Mas não convém aqui nos
emaranharmos nas disputas ditas filosóficas sobre os critérios de existência e de distinção (às vezes chamados
de critérios de compromissos ontológicos: quando uma teoria esta comprometida com a existência de uma
entidade ou gênero de entidades e em particular, com a distinção entre duas os mais entidades ou tipos de
entidades). Para justificar a assertiva acima, basta observar que não podemos caracterizar a noção de seqüência
de elementos de um domínio a partir apenas das noções que caracterizam esse domínio, ou seja, que aquela é
logicamente (segundo a teoria lógica corrente) irredutível a essa. Para perceber essa irredutibilidade, basta
atentar para um fato notório (que pode ser demonstrado de diferentes maneiras): a irredutibilidade do cálculo de
predicados poliádico ao cálculo monádico, visto que relações podem ser caracterizadas como propriedades
(predicados monádicos) de sequências do domínio inicial. Ademais, é muito razoável crer que nesse contexto,
como de resto em toda a matemática, não estamos falando propriamente de existentes, mas de “criações”
humanas, posto nem serem arbitrárias, nem idiossincráticas, nem ídolos tribais, nem .... e posto terem um sólido
fundamento no real, não são propriamente reais (visto que cremos que atos de criaturas, exercidos sejam
individualmente, seja coletivamente, não conferem a existência a nada).
9
Os adjetivos empregados, clássico, quantificacional e proposicionais, remetem aos significados seguintes.
Clássico, porque se pauta pelos princípios da bivalência (toda sentença assume um e apenas um dos dois valores
de verdade possíveis: ou o verdadeiro ou o falso) e da funcionalidade (princípio que reza que o significado, de
uma expressão bem formada complexa é função do significado das expressões simples que a compõe, em
particular, o valor de verdade de uma asserção complexa é função do valor de verdade das asserções que a
compõem,). Proposicional, porque desconsidera as estruturas de asserções elementares – isto é, que não tem
como constituintes próprios outras asserções – dizendo de outro modo, considera-se apenas os casos de emprego
dos predicamentos lógicos que dependem apenas da modo como asserções mais complexas são formadas a partir
de asserções mais simples, desconsiderando a estrutura interna daquelas que não possuem partes próprias que
sejam asserções). E Quantificacional significa que se considera a decomposição das asserções simples em termos
singulares, que servem como designadores de indivíduos (isto é, coisas tidas por distintas de todas as outras e
indistintas em si mesmas – na formula latina indiviso in se e dividido ab alio, e termos gerais (designadores de
propriedades e relações, consideradas como conjuntos de indivíduos),
10
Esse é o caso em que, mesmo tendo na mente apenas os nomes das coisas, não seria possível guardar os nomes
de todas as “coisas”.
4
variáveis individuais (por exemplo, ser a letra x, afetada de um subscrito numérico 11). Mas o
mesmo não pode ser dito com respeito aos termos, às fórmulas ou ainda às demonstrações
e deduções de uma teoria de primeira ordem, no tocante a tais domínios, não parece
possível determinar propriedades simples que permitissem fornecer uma definição direta e
explícita de cada um deles, salvo em casos particulares 12. O que facilmente podemos dizer
dessas entidades (termos, fórmulas e demonstrações) é que são construídas a partir de
certos elementos, previamente determinados, por meio da aplicação reiterada de
determinados procedimentos, previamente especificados explicitamente. E essa
caracterização pode ser tomada como uma maneira especial de definir, nem listando os
elementos, nem dando uma propriedade comum a todos eles, mas sim, apresentando os
objetos tidos por simples do domínio (as constantes e variáveis, no caso dos termos; as
fórmulas atômicas, no caso das fórmulas; e os axiomas – alternativamente, suposições, no
caso das demonstrações) e oferecendo procedimentos para gerar novos elementos do
respectivo domínio a partir de elementos previamente gerados (a adjunção de um símbolo
funcional de grau n a uma sequência constituída por n termos previamente formados, no
caso dos termos; as operações sintáticas de conjunção, disjunção, condicionar e quantificar
universal ou existencialmente, no caso das fórmulas; e as regras de inferência, no caso das
demonstrações).
Por outro lado, se quisermos demonstrar que todos os elementos de um dos três
domínios, mencionados, têm uma determinada propriedade, não podemos demonstrar
inspecionando cada um dos elementos e mostrando que cada um deles tem a referida
propriedade. E às vezes não é possível oferecer um argumento explícito geral (nem direto,
nem por redução ao absurdo) para isso, ou seja, não somos capazes de mostrar que um
objeto qualquer tem a propriedade e daí inferir que qualquer um tem a propriedade. Por
exemplo, podemos facilmente oferecer um argumento geral explicito para o fato de que
toda fórmula é formada por ocorrências de símbolos da linguagem (pois uma fórmula
qualquer é uma expressão e toda expressão é, por definição, uma sequência de símbolos da
linguagem). Mas certamente o leitor encontrará grandes dificuldades (eventualmente
insuperáveis) para formular um argumento direto que demonstre a propriedade elementar
segundo a qual todas as fórmulas contêm um número par (eventualmente zero) de
ocorrências de parênteses. A melhor maneira de demonstrar isso seria mostrar que as
fórmulas atômicas contêm um número par (eventualmente zero) de ocorrências de
parênteses e que os procedimentos de construção de fórmulas, se introduzirem parênteses,
introduzem-nos aos pares.
11
Obviamente, nessa caracterização supomos previamente caracterizado um domínio infinito, qual seja, o dos
números naturais (na verdade, no caso particular da caracterização das variáveis, bastaria assumir o domínio dos
numerais como potencialmente infinito,).
12
Por exemplo, numa teoria inconsistente, podemos definir suas demonstrações explicitamente como o uma
sequência finita qualquer de fórmulas. A afirmação acima deve ser tomada com certa boa vontade, uma vez que
nela se recorre a uma noção de contornos um tanto quanto vagos: o de propriedade simples. Mas se suprimirmos
a noção de simplicidade envolvida aqui, a asserção seria falsa, uma vez que é possível oferecer uma definição
explícita (no sentido técnico desse termo) para cada um dos domínios considerados acima. Por exemplo, o
domínio dos termos de uma linguagem de primeira ordem pode ser definido, explicitamente, supondo
determinado o vocabulário da linguagem, como o menor conjunto de expressões que contem todas as variáveis,
todas as constantes e tal que, para qualquer símbolo funcional n-ário f da linguagem e quaisquer expressões u 1...
un , se elas pertencerem ao conjunto, então a expressão fu 1...un também pertence. Tanto a boa vontade para
compreender algo, quanto o engenho e arte para desenvolver dispositivos de operacionalização são talentos
inestimáveis, mas cada um tem o seu lugar e momento. Aqui é o momento antes da boa vontade.
5
Na verdade, não se faz necessário buscar nas obras da alta cultura, nem em manuais
matemáticos atuais, um exemplo de raciocínio recorrente, basta recordar os primeiros anos
da escola, quando a petizada trava seu primeiro contato com a noção de número natural. A
professora13 ensina que o sucessor de um é dois e o sucessor de dois é três e, assim por
diante, e para que o “assim por diante” seja bem aprendido, passava uma lista de exercícios,
laboriosamente14 executados em casa, que pedia para formar os sucessores de um dado
número (obviamente, o petiz ainda não era capaz de distinguir o número do numeral, talvez
uma imprecisão compartilhado com a alfabetizadora e aritmetizadora); mas tudo era feito
na esperança de que se aprendesse o modo de gerar os números naturais a partir de um
elemento inicial (o número um) pela reiteração de operação de formar o sucessor, de sorte
que, posto15 que infinitos, os números naturais eram bem caracterizados como exatamente
aqueles e apenas aqueles que podem ser gerados a partir do um pela reiteração finita da
operação de sucessor.
Certamente, o leitor não terá nenhuma dificuldade em recordar um outro domínio
no qual os procedimentos recorrentes desempenham um papel fundamental: o da
computação. Com efeito, procedimentos por recorrência são valiosos instrumentos para
demonstrar, definir e calcular. Todavia a maioria se porta, em certo sentido, como o M.
Jourdain, o personagem de Moliére, que falava prosa sem saber que falava prosa. Até o
século o século XX da Era Comum, todos, incluindo matemáticos ilustres, empregavam
procedimentos por recorrência para definir, demonstrar e também calcular sem dispor de
uma teoria de tais procedimentos e nem mesmo de um nome geral para eles. Se os gregos já
tinham uma agrimensura desenvolvida, foi preciso o gênio dos gregos para surgir a a
geometria. Se os homens sempre contaram e mediram, foi preciso esperar o século XIX da
Era Comum para surgirem boas teorizações acerca dos números (graças aos trabalhos de
matemáticos como Peano, Cauchy, Dedekind, Weierstrass e outros). Se os matemáticos
sempre calcularam, e até mesmo distinguiam problemas decidíeis de problemas não
decidíveis, foi apenas no século vinte que se desenvolve a teoria do calcular e se pode
desenvolver até uma aritmética da complexidade16, graças aos trabalhos de matemáticos
13
Se as razões da discriminação não fossem vis (fundamentalmente econômicas) e desprestigiassem as mulheres,
haveria algo de poético no fato de que aquelas que nos forneceram os primeiros alimentos do corpo, fornecessem
também os primeiro do intelecto.
14
A memória, evidentemente, sempre nos apresenta a versão de algum modo mais querida dos fatos.
15
Lembremos que no português castiço, “posto que” é uma locução conjuntiva adversativa e não como soe ser
empregada no português brasileiro atual, como locução conjuntiva explicativa. Certamente, “o Poetinha” (epíteto
do diplomata, poeta, cantor e compositor carioca Vinícius de Morais), ao contrário de muitos de seus leitores
(ou, antes, ouvintes de seus poemas posteriormente musicados) sabia disso quando escreveu o poema ‘Soneto da
fidelidade” que, como nos informa uma postagem em uma página séria e interessante do Facebook: “[...] talvez
tenha os versos mais famosos de toda a obra poética de Vinicius. Escrito em 1939 em Estoril (Portugal), foi
publicado somente em 1946, no livro "Poemas, sonetos e baladas" (Facebook). Essa postagem possivelmente se
refere ao verso do poema que, creio malgrado as intenções do autor, contribuiu para o mal uso da expressão
“posto que”: “Que não seja imortal, posto que é chama”.
Por sinal, páginas como essa que acaba de ser citada são exemplos de como as redes sociais podem ser bem
usadas, como meio de divulgação e de troca de informações da vida do espírito.
16
Uma teoria que tem alguns resultados a primeira vista paradoxais. Por exemplo, todos hão de convir que
números naturais são coisas (no sentido de que tudo são coisas) mais simples que os números reais, já porque
esses podem ser facilmente nomeáveis por expressões finitas (por exemplo, na notação decimal), já um sistema
de notação (nomeação) geral para os números reais exigiria a consideração, irreal, de expressões infinitas (por
exemplo, a expansão decimal infinita). Todavia, há um sentido em que a teoria dos números naturais é mais
complexa que a dos números reais, visto ser possível calcular. no sentido preciso que essa palavra adquire na
6
como Ackerman, von Neumann, Turing, Church, Post e muitos outros. E graças aos
desenvolvimentos da Lógica, principalmente no segundo e no início do terceiro quartel do
século XX EC, hoje é possível ter mais clareza, pelo menos em se tratando de contextos
circunscritos (matematizáveis) do que é demonstrar ou definir, inclusive por recorrência,
(temas clássicos da Lógica desde pelo menos os medievais), mas também reconhecer íntimas
conexões destes dois temas entre si, bem como deles com o tema da calculabilidade
(computação). Para tratar melhor dessas conexões, faz-se necessário abandonar o domínio
da mera prosa e estudar teorias rigorosas (isto é, matematizáveis)17.
moderna teoria da computação (um ramo da matemática que não deve ser confundido com a engenharia da
computação, ainda que seja aquela teoria seja a principal fonte teórica dessa engenharia), se uma asserção,
formulada numa jargão preciso, é o não verdadeira se tal asserção versar sobre números reais, mas não é possível
calcular as verdades aritméticas, se formulados no mesmo jargão preciso. Isso decorre de dois resultados
fundamentais da Lógica Contemporânea, demonstrados por aqueles que são indiscutivelmente os dois maiores
lógicos do século vinte: Kurt Gödel e Alfred Tarski—a disputa surge apenas quando se tenta definir aquele que
seria o maior dentre os dois. Ambos produziram trabalhos de grande relevância para o desenvolvimento da
Lógica (por conseguinte, de grande valor intelectual), mas também produziram outros de valor muito discutível.
Mas G:odel teve a felicidade de ser reconhecido por aquele que talvez seja o seu principal trabalho, em que
demonstra a incompletude essencial da aritmética formal, ao passo que Tarski é mais conhecido por seu
resultado mais discutível (uma esdrúxula definição do predicado ser verdadeiro) e não por seus principais
trabalhos em teoria de modelos, inclusive aquele em que apresenta a demonstração da completude dos corpos
fechados (nada a ver com espiritismo, corpos fechados são certas estruturas algébricas dos quais os números
reais são um caso paradigmático), Para a noção algébrica de corpos fechados pode-se ver . Na verdade, no
trabalho em que Tarski apresentou a irrelevante, ao ver dos matemáticos seus contemporâneos, definição de
verdade tem um resultado relevante, a saber, que o predicado de verdade é hiperaritmético (ou seja, não pode ser
representado na aritmética elementar), resultado que é a razão porque citado no primeiro grande manual de
Lógica, o de autoria de Bernays (mas que por razões politico-acadêmicas leva também o nome de Hilbert) cf
(David Hilbert e Paul Bernays 1970))
17
Sobre a tese, que fornece sentido a afirmação acima, de que apenas discursos passíveis de matematização estão
aptos ao tratamento racional humano ou, parafraseando Galileu, mas eliminando o seu tom soberbo, a razão
humana se expressa em caráter matemáticos (Galileu soberbamente queria estender isso para Deus e dizer que a
expressão de Deus, a saber o mundo, está escrito em caráteres matemáticos) veja-se {hyperlink}. A soberba de
Galileu consiste em querer ditar para Deus o modo como ele escreve, ou seja, em querer saber como o mundo é,
ou seja, como Deus fez o mundo)
Nos finais de oitenta, o inesquecível mestre Professor Andrés Raggio proferiu uma brilhante
conferência, como soíam ser suas falas, cujo título era Demonstrar, calcular, definir (IX Encontro Brasileiro de
Lógica, São Paulo, 1988). Infelizmente o texto dessa conferência se perdeu (pelo que sei, ele iria dar essa
conferência também em um encontro na Escandinávia no ano de 1991, quando se sentiu mal e teve que retornar
para a Argentina e faleceu alguns meses depois, vítima de câncer já generalizado). Mas recordo-me que ele
começou dizendo que se fosse professor de Oxford ele diria que demonstrar era fazer uma demonstração,
calcular era fazer um cálculo e definir era fornecer uma definição, mas como não era professor de Oxford,
esperava dizer coisas mais interessantes. E de fato disse, baseando-se num resultado de Teoria da Prova e do
Lambda Cálculo (o assim chamado isomorfismo de Howard-Curry) discorreu de maneira agradável e erudita
sobre esses três temas, mostrando as relações entre eles. Ainda que não me recorde de detalhes de sua
conferência, certamente devo muito a ela na análise das relações entre definir, demonstrar e calcular.
7