Artigo - Alfabetização e Letramento - Magda Soares
Artigo - Alfabetização e Letramento - Magda Soares
Artigo - Alfabetização e Letramento - Magda Soares
Magda Soares
Caminhos e descaminhos
A aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de pesquisa e estudo de
várias ciências nas últimas décadas, cada uma delas privilegiando uma das facetas
dessa aprendizagem; para citar as mais salientes: a faceta fônica, que envolve o
desenvolvimento da consciência fonológica, imprescindível para que a criança tome
consciência da fala como um sistema de sons e compreenda o sistema de escrita
como um sistema de representação desses sons, e a aprendizagem das relações
fonema-grafema e demais convenções de transferência da forma sonora da fala
para a forma gráfica da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o
reconhecimento holístico de palavras e sentenças; a faceta da leitura
compreensiva, que supõe ampliação de vocabulário e desenvolvimento de
habilidades como interpretação, avaliação, inferência, entre outras; a faceta da
identificação e uso adequado das diferentes funções da escrita, dos diferentes
portadores de texto, dos diferentes tipos e gêneros de texto... Fundamentam cada
uma dessas facetas teorias de aprendizagem, princípios fonéticos e fonológicos,
lingüísticos, psicolingüísticos, sociolingüísticos, teorias da leitura, teorias da
produção textual, teorias do texto e do discurso... Conseqüentemente, cada uma
dessas facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua
natureza, algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e
explícito, como é o caso da faceta para a qual se volta a alfabetização, outras por
ensino muitas vezes incidental e indireto, porque dependente das possibilidades e
motivações das crianças, bem como das circunstâncias e contexto em que se
realize a aprendizagem, como é caso das facetas que se caracterizam como de
letramento.
A tendência, porém, tem sido privilegiar, na aprendizagem inicial da língua
escrita, apenas uma de suas várias facetas e, conseqüentemente, apenas uma
metodologia: assim fazem os métodos hoje considerados como “tradicionais” que,
como já foi dito, voltam-se predominantemente para a faceta fônica, isto é, para o
ensino e a aprendizagem do sistema de escrita; por outro lado, assim também tem
feito o chamado “construtivismo”, que se volta predominantemente para as facetas
referentes ao letramento, privilegiando o envolvimento da criança com a escrita em
suas diferentes funções, seus diferentes portadores, com os muitos tipos e gêneros
de texto. No entanto, os conhecimentos que atualmente esclarecem tanto os
processos de aprendizagem quanto os objetos da aprendizagem da língua escrita, e
as relações entre aqueles e estes, evidenciam que privilegiar uma ou algumas
facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho no
ensino e aprendizagem da língua escrita, mesmo em sua etapa inicial – talvez por
isso temos sempre fracassado nesse ensino e aprendizagem; o caminho para esse
ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimentos e metodologias
fundamentados em diferentes ciências, e sua tradução em uma prática docente que
integre as várias facetas, isto é, que articule a aquisição do sistema de escrita, que
é favorecida por ensino direto, explícito e ordenado, aqui compreendido como
sendo o processo de alfabetização, com o desenvolvimento de habilidades e
comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais de leitura
e de escrita, aqui compreendido como sendo o processo de letramento.
A utilização, acima, dos verbos integrar, articular retoma a afirmação
anteriormente feita de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no
estado atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita,
indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se, isto é,
constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em
situações de letramento, isto é, no contexto de e por meio de interação com
material escrito real, e não artificialmente construído, e de sua participação em
práticas sociais de leitura e de escrita; por outro lado, a criança desenvolve
habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas
sociais que a envolvem no contexto do, por meio do e em dependência do processo
de aquisição do sistema alfabético e ortográfico da escrita. Este alfabetizar
letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e articulação das várias facetas do
processo de aprendizagem inicial da língua escrita, é, sem dúvida, o caminho para
a superação dos problemas que vimos enfrentando nesta etapa da escolarização;
descaminhos serão tentativas de voltar a privilegiar esta ou aquela faceta, como se
fez no passado, como se faz hoje, sempre resultando em fracasso, este reiterado
fracasso da escola brasileira em dar às crianças acesso efetivo e competente ao
mundo da escrita.
(Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004)