Merleau-Ponty, M. Conversas
Merleau-Ponty, M. Conversas
Merleau-Ponty, M. Conversas
1
!
;
I
CAPfTuLON
EXPLORAQ,.O DO MUNDO PERCEBIDO:
AANIMALIDADE
Quando se-passa da ciencia, da pintura e da
filosofia .classicas aciencia, apintura e afilosofia
modernas observa-se, como diziamos nas tres con-
versas anteriores, uma especie de despertar do
mundo percebido. Reaprendemos aver 0 mundo
ao nosso redor do qual nos havfamos desviado,
convictos de que nossos sentidos niio nos ensi-
namnada de relevante e que apenas 0 saber rigo-
rosamente objetivo merece ser lembrado.Voltamos
a ficar atentos ao onde nos situamos e que
s6 e considerado segundo uma perspeqiva limi-
tada, a nossa, mas que e tambem nossa residen-
cia e com 0 qual mantemos carnais - re-
descobrimos em cada coisa urn certo estilo de ser
que a torna urn espelho das condutas humanas-,
30
CONVERSAS -1948 EXPLORA<;:AO DO MUNDO PERCEBIDO: A ANIMAUDADE 31
I:
!
I
,
/
enfim, entre nos e as coisas estabelecem-se, nao
mais puras rela<;5es entre um pensamento domi-
nador e um objeto ou um espa<;o completamente
expostos a esse pensamento, mas a rela<;ao ambf-
gua de urn ser encamado e limitado comum mun-
do enigmatico que ele entreve, que ele nem mes-
mo para de freqiientar, mas sempre por meio de
perspectivas que the escondem tanto quanto Ihe
revelam, por meio do aspecto humano que qual-
quer coisa adquire perante urn olhar humano
a
cada vez mais honestamente comas obscuridades
e as elificuldades da vida hurnana, que nao perea
contato com as raizes irracionais dessa vida e fi-
nalmente que a razao reconhe<;a que seu mundo
tambern e inacabado, nao finja ter ultrapassado 0
que se limitou a mascarar e nao tome por incon-
testaveis uma civiliza<;ao e urn conhecimento que
ela tern como fun<;ao mais elevada, pelo contrfuio,
contestar
a
a 0 texto que vai de "quero dizer que, ao tentar saber 0 que e0 ho-
mem are -nao sendo finalmente'do que urn ser que se recolhe e se rel1-
ne infalivelmente, que conhece a si mesmo'" foi suprimido par ocasiao da
gravao. Merleau-Ponty prossegue: "Descartes, por exemplo, desvia-se
do exterior e 56 chega a definir-se clararnente quando descobre urn espi-
rita em si mesmo, ou seja.. uma esptkie de ser que nao 901pa nenhum es-
nao se espalha pelas coisas, e nao enada a1em de \un puro conheci-
mento de si mesmo, e entao retoma a leitura.
Chegava-se assim a uma no<;ao pura do esplrito e
a urna no<;ao pura da materia ou das coisas. Porem,
e claro que s6 encontro esse espfrito completa-
mente puro e, par assim dizer, s6 0 toco em mim
mesmo. Os oUtros homens nunca sao puro espf-
rito para mim: 56 os conhe<;o atraves de seus olha-
res, de seus gestos, de suas palavras, em suma,
atraves de seus corpos. Certamente, para mim, urn
outro esta bern longe de reduzir-se a seu corpo.
Urn outro e esse corpo animado de todos os tipos
de inten<;6es, sujeito de a<;6es ou afinna<;6es das
quais me lembro e que contribuem para 0 esbo-
<;0 de sua figura moral para mim. Por fim, eu nao
conseguiria dissociar alguem de sua silhueta, de
seu estilo, de seu jeito de falar. Observando-o por
urn minuto, apreendo-o de imediato, bern melhar
do que enumerando tudo 0 que sei sobre ele por
experiencia e por ouvir dizer. Os outros sao para
n6s esplritos que habitarri urn corpo, e a aparencia
total desse corpo parece-nos conter todo urn con-
junto de possibilidades das quais 0 corpo e a pre-
sen<;a propriamente dita
a
Assim, ao considerar 0
homem de fora, isto e, no outro, e.provavel que eu
(
a. 0 trecho que vai de uCertamente, urn outro
M
ate -das quais 0 cor-
po ea propriamente dita" foi suprimido por ocasiao da
Merleau-Ponty conserva apenas: H eu nao conseguiria dissociar alguem de
sua silhueta, de seu eslilo, de seu jeito de falar". Ee retoma a leiluIa a par-
tir daqui.
.....
seja levado a reexaminar certas distin<;oes que, no
entanto, parecem impor-se, cQmo a distin<;ao en-
tre 0 espfrito e 0 corpo.
Observemos, entao, do que se trata essa dis-
tin<;ao e vamos raciocinar a partir de urn exem-
ploa. Suponhamos que eu me encontre diante de
alguem que, por qualquer motivo, esteja violenta-
mente irritado comigo. Meu interlocutor fica com
raiva, e eu digo que ele exprime sua raiva por meio
de palavras violentas, de gestos, de gritos... Po-
rem, onde se encontra essa raiva? Alguem pode-
ra responder: esta no espfrito do meu interlocu-
tor. 15so nao e muito daro. Porque, afinal, essa
maldade, essa crueldade que leio nos olhares de
meu adversario, nao consigo imagina-Ias separa-
das de seus gest?s, de suas palavras, de seu corpo.
Tudo isso nao acontece fora do mundo e como que
num santuano distante do COrpOb do homem com
iaiva. Esta bern daramente aqui, a raiva explode
nesta sala e neste lugar da sala, e neste espa<;o en-
tre mim e ele que ela ocorre. Concordo que a ipiva
de meu adversano nao acontece em seu rosto; no
mesmo sentido em que talvez, daqui as
lagrimas vao escorrer de seus ollios, uma contra-
, '. '
<;ao vai marcar sua boca
a
. Porem, enfim, a raiva
habita nelee aflora asuperficie de suas boche-
chas palidas ou violaceas, de seus ollios injetados
de sangue, dessa voz esgani<;ada... Ese, por urn
instante, deixo meu ponto de vista de observador
exterior da raiva, se tento lembrar-me de como
ela aparece a mim quando estou com raiva, sou
obrigado a confessar que as coisas nao ocorrem
de forma diferente: a reflexao sobre minha pr6-
pria raiva nada me mostra que seja separavel ou
que possa, por assim dizer, ser descolado de meu
corpo. Quando me lembro de minha raiva de Pau-
lo, encontro-a nao em meu espfrito ou em meu
pensamento, mas inteiramente entre mim que vo-
ciferava e esse detestavel Paulo, tranqililamente
sentado ali me escutando com ironia. Minha raiva .
era somente uma tentativa de destrui<;ao de Paulo,
que perrnanece verbal, se sou pacifico, ate cortes,
se soueducado, mas afinal ela acontecia no espa-
<;0 comum em que trocavamos argumentos em
vez de golpes, e nao em mim. S6 posteriorrnente,
refletindo sobre 0 que ea raiva observando que
ela encerra uma certa avaliaS;ao (negativa),da ou-
tro, que canduo: afinal, a nllva eurn pensamen-
\
44 CONVERSAS - 1948 oHOMEMVISTa DE FORA 45
,a. Essa rase foi suprimida por ocasiao da gravar;ao. ,
b. Segundo a gravar;ao: U um santUano retirado por tnis do corpal(.
a Essa rase oi suprirnida por ocasiao da Merle.u-Ponty re-
toma em: Ita raiva habita nele e aflora I...]n
46 CONVERSAS - 1948
o HOMEMVISTO DE FORA
47
to, estar com raiva e pensar que 0 outro e detes-
tavel e, como mostrou DescaJj:es, esse pensamen-
to, como todos os outros, nao pode residir em
nenhum fragmento de materia. Eia e, portanto,
espfrito. Posso perfeitamente refletir assim, mas a
partir do momento em que me volto para a expe-
riencia propriamente dita da raiva
a
que motiva mi-
nha reflexao devo confessar que eia nao estava
fora de meu corpo, nao era anirnada de fora, mas
estava inexplicavelmente nele.
Encontramos tudo emDescartes, como em to-
dos os grandes fil6sofos, e e assim que eIe, que ha-
via distinguido rigorosamente 0 espfrito do cor-
po, chegou a afirmar que a alma era nao apenas 0
chefe e 0 comandante do corpo, como 0 piloto em
seu navio
1
, e sim tao estreitamente unida a ele que
a. Segundo a "a raiva".
1. Rene Descartes, Discours de /a mitlwde (1637), parte V. In: CEuvres,
. ed.AT., op. cit., voLVI, p.59,1.10-12; in CEuvres et lettres, op. cit., p.166: "Eu
havia [...1demonstrado [...1como MO basta que [a almal esteja a10jada no
corpo hwnano, como urn piloto em seu navio, se mo talvez apenas para
mOver seus membros, mas que enecessaria que ela esteja e unida
mais estreitamente com ele. pan. ter aJem disso sentimentos e ape/ites se-
melhantes aos nossos [...1"; MeditatiDnes de prima philDsophiil ed. 1641),
[trad. bras. Meditaes scmfilosofill primeim, Campinas, Cemodecon IFOi-
Unicamp, 1999J, VI, In: CEuures, ed. AT., voLVII, p. 81,1. 2-3;
MMitatlans mitaphysiques (1647), in CEuures, ed. AT., voL lX,. p. 64; in:
CEuvres et lettres, op. cit., p. 326: "A natureza me ensina tambem, por esses
sentimentos de dor, de fome, de sede etc., que eU mo estOll apenas aloja-
do em meu corpo, como urn piloto em seu navio, mas que, alem dissa, es-
tall muito estreitamente unido a ele e tao confundido e mescladQ que
componho COm ele como que urn sO todo.'" .
nele sofre, como observamos quando dizemos que
temos dor de dente.
S6 que, segundo Descartes, quase nao pode-
mos falar dessa uniao da alma e do corpo, podemos
apenas experimenta-Ia peia pratica da vida; para
eIe, qualquer que seja nossa de fato e
mesmo se de fato vivemos, segundo seus pr6prios
termos, uma verdadeira "mescla" do espirito com
o corpo, isso nao nos tira 0 direito de distinguir ab-
solutamente 0 que esta unido em nossa experien-
cia, de manter em direito a separa<;ao radical do es-
pirito e do corpo, que e negada pelo fato de sua
uniao e, finalmente, de definir 0 homem sem se
preocupar com sua estrutura imediata e tal como
ele aparece a si mesmo na reflexao: como urn pen-
samento esquisitamente vinculado a urn aparelho
corporal, sem que a medinica do corpo ou a trans-
parencia do pensamento sejam comprometidas
peia sua mescla. Pode-se dizer que, a partir de Des-
cartes, exatamente aqueles que seguiram commais
fidelidade seu ensinamento nunca deixaram de
perguntar-se, precisamente, como pode nossa re-
flexao, que e reflexao sobre urn determinado ho-
mem livrar-se das as quaiseste parece
sujeito em sua iniclal
a
60
CONVERSAS -1948 A ARTE E 0 MUNDO PERCEB/DO 61
\
a eonstatar a evideneia de acordo com a qual, se
eonsigo imaginar satisfatorial1}ente, segundo sua
fun<;:ao, um objeto ou urn utensflio que nunca vi,
pelo menos em suas linhas gerais, as melhores ana-
lises, em compensa<;:ao, nao podem me fomecer 0
menor indfcio do que e uma pinrura da qual jamais
vi nenhum exemplar. Nao se trata, pois, diante de
urn quadro, de multiplicar as refereneias ao tema,
acircunstancia hist6rica, se e que existe alguma,
que esta na origem do c;uadro; trata-se, como na
percep<;:ao, das pr6prias coisas, de eontemplar
e pereeber 0 quadro segundo as indiea<;:6es silen-
ciosas de todas as partes que me sao fomecidas
pelos tra<;:osde pinrura depositados na tela, ate que
todas, sem discurso e sem raciocinio, componham-
se em uma organiza<;:ao rigorosa em que se sente
de fato que nada e arbitrario, mesmo se nao tiver-
mos eopdi<;:6es de dizer a razao disso.
. Embora 0 cinema ainda nao tenha produzido
muitas obras que sejam do come<;:o ao tim obras
un'.J\')"'Q. de arte, embora a admira<;:ao pelas estrelas, o as-
pecto sensacional das mudan<;:as de plano oudas
peripecias, a interven<;:ao de belas fotografias ou de
um dialogo espiritual sejam para 0 filme tenta<;:6es,
em que ele pode fiear aprisionado e eneontrar 0
sucesso omitindo os meios de expressao mais pro-
priamente cinematograficos - apesar, portanto, de
todas essas circunstiineias que fazem com que qua-
se nao tenhamos visto ate agora umfilme que seja
plenamente filme, podemos entrever 0 que seria
esta obra, e veremos que, como toda obra de arte,
seria ainda alguma coisa que percebemos. Por-
que, finalmente, 0 que pode eonstituir a beleza ci-
nematografica nao e nem a hist6ria em si, que a
prosa contaria muito bern, nem, por uma razao
muito maior, as ideias que ela pode sugerir, nem
por fim os tiques, as manias, esses procedimentos
pelos quais urn diretor de cinema e reconhecido e
que nao tern mais importiincia decisiva do que as
palavras favoritas de um escritor. 0 que conta e a '
escblha dos epis6dios representados e, em cada (-
um deles, a escolha das cenas que figurarao no fil-
me, a extensao dada respectivamente a cada urn
desses elementos, a ordem na qual se eseolhe apre- .
senta-Ios, 0 som ou as palavras com as quais se
quer ou nao associa-Ios, tudo isso constituindo
urn certo ritrno cinematografieo global. Quando
nossa experiencia do cinema for maior, poderemos
elaborar uma especie de 16gica do cinema, ou ate
uma gramatiea e estilistiea do cinema que nos in-
dicarao, a partir de nossa experiencia disobras, 0
valor a se atribuir a cada elemento numa estrutu-
a. Segundo a g r v ~ o "pelos quais 50 apta",
ra de conjunto tipica, para que cada um deles pos-
sa ai se inserir sem problema, Porem, como todas
as regras em materia de arte, estas so servirao para
explicitar as rela<;:6es ja existentes nas obras bem-
sucedidas e para inspirar outras obras honestas.
Entao, como agora, os criadores sempre terao de
encontrar novas conjuntos sem orienta<;:ao. Entao,
como agora, 0 espectador, sem formar uma ideia
clara, experimentara a unidade e a necessidade do
desenvolvimento temporal em uma bela obra. En-
tao, como agora, a obra deixara em seu espIrito,
nao uma soma de receitas, mas uma imagem irra-
diante, um ritmo. Entao, como agora, a experien-
cia cinematograica sera percep<;:ao.
A musica poderia fomecer-nos um exemplo
demasiado facil e, justamente por essa razao, nao
gostarfamos de nos deter nele. Evidentemente, fica
impassIvel aqui imaginar que a arte remeta a ou-
tta coisa que nao a si mesma. A musica em tomo
de um tema que nos descreve urna tempestade,
ou mesmo urna tristeza, constitui uma
Aqui; estamos incontestavelmente diante de uma
arteque nao fala. E, contudo, urna rhusica esta
longe de ser apenas urn agregado de sensa<;:6es 50-
noras: attaves'dos sons, vemos aparecer urna frase
e, de frase em frase, urn conjunto e,por fim, como
dizia Proust, urn mundo que e, no donUruo da mu-
63
3. Stephane Mallarme, passim (versua obra poetical e,por exempl?,
Rtponses ades enquiles (pesquisa de luies Huret, 1891). In: CEuvn:s cmnple-
les, Paris, Gallimard, coL "La PI"iade", 1945.
a. Segundo a "um genero de expressao que nos a
estrutura essencial da coisa sem nos dar seu nome e nos assun a en-
trar nela".
A ARTE E 0 MUNDO PERCEBIDO
sica possIve!, a regiao Debussy ou 0 reino Bach. So
nos resta neste caso escutar, sem nos voltarmos
para nos mesmos, para nossas lembran<;:as, para
nossos sentimentos, semmencionar 0 homem que
criou isso, como a percep<;:ao observa as proprias
coisas sem nelas mesclar nossos sonhos,
Para terminar, podemos dizer algo de analogo
com rela<;:ao aliteratura, ainda que isso tenha sido
frequentemente contestado porque a literatura em-
prega as palavras, que tambem sao feitas para ex-
primir as coisas naturais. Ja ha muito tempo, Mal-
larme
3
distinguiu a tagarelice cotidiana da utiliza-
<;:ao poetica da linguagem. 0 tagarela so diz 0 nome
das coisas para indica-las brevemente, para expri-
mir "do que se ttata".Ao conttano, 0 poeta, segun-
do Mallarme, substitui a designa<;:ao corrente das
coisas, que as da como "bem conhecidas", por um
genero'de expressao que nos descreve a esttutura
essencial da coisa enos for<;:aassim a enttar nela.a
Falar poeticamente do mundo e quase calar-se,
se consideramos a palavra no sentido tla palavra
,.
.'
CONVERSAS - 1948
62
64
CONVERSAS - 1948 A ARTE E0 MUNDO PERCEBIDO 65
/
cotidiana, e sabemos que Mallarme nao escreveu
muito. Porem, no pouco que nos deixou, encon-
tramos pelo menos a consciencia mais clara da
poesia como inteiramente transportada pela lin-
guagem, sem reerencia direta ao proprio mundo,
nem averdade prosaica, nem arazao, e, conse-
qiientemente, como uma da palavra que
nao poderia ser completamente traduzida para
ideias; e porque a poesia, como dirao mais tarde
Henri Bremond
4
eValery5, nao e em principio sig-
de ideias ou significante que Mallarme
e, posteriormente, Valery6 se recusavam a aprovar
ou a desaprovar qualquer comentario prosaico de
seus poemas: tanto no poema como na coisa per-
cebida', nao podemos separar 0 conteudo da or-
4. Henri Bremond, La Poesie pure na sessao publica das cinco
Academias, em 24 de outubro de 1925), Paris, Grasset, 1926.
5. Paul Valery, passim e, por exemplo, "Avant-propos" (1920), Va-
. riele, Paris, Gallimard, 1924; "Je disais quelquefois a Stephane Mallar-
me... (1931), 1923), Variete ill, Paris, Gallimard, 1936; "Demiere visite a
Mallarme", 1923, Vamte II, Paris, GaIlimar<L 1930; "Propos sur I, poesie"
(1927), "Poesie et pensee abstraite" (1939), Vamlt V. Thris, Gallimard,
1944 [trad. bras. Variedades, Sao Paulo, lluminuras, 1991jVer tambem
Frederic Lefevre, Entretiens avec Paul Valhy, prefacio de Henri Bremon<L
Paris, Le Livre. 1926.' .
6. Paul Yalery, passim (etudes litteraires, prefaces, ecrits tMoriques,
cours) e por exemplo, "Questions de poOsie" (1935), "Au sujet du Cimetie-
, re marin" (1933) e "Commentaires de Channes" (1929), Variete III,. Thris,
GaIlimar<L 1936; "Propos sur la poesie" (1927), "L'homme et la coquille"
(1937) e "Le,on inaugurale du cours de poetique du College de France"
(1937), Varietev. Paris, Gallimard, 1944.
a Segundo a Duma coisa percebida
N
. - .
rna, aquilo que e apresentado da maneira como
se apresenta ao olhar. Hoje, autores como Mauri-
ce Blanchot perguntam-se se nao seria necessario
estender ao romance e aliteratura em geral 0 que
Mallarme dizia da poesia
7
; urn romance bem-su-
cedido existe nao como soma de ideias ou de teses,
mas como uma coisa sensfvel e comourna coisa
em movimento que se trata de perceber em seu
desenvolvimento temporal, a cujo ritmo se trata de
nOs associarmos e que deixa na nao urn
conjunto de ideias, mas antes urn emblema e 0 mo-
nograma dessas ideias.
Se essas sao corretas e se conse-
guimos mostrar que urna obra de arte e percebi-
da', uma filosofia da encontra-se ime-
diatamente liberada dos mal-entendidos que po-
deriamos opor a ela como 0 mundo
percebido nao e apenas 0 conjunto de coisas na-
turais, e tambem os quadros, as mlisicas, os livros,
tudo 0 que os alemaes chamam de urn "mundo
cultural". Ao mergulhar no mundo percebido, lon-
ge de termos estreitado nosso horizonte e de nos
7. Maurice Blanchot Faux pas, Paris, GaIlimarcL 1943; principalmen-
te "Comment la litteralure est-elle possible?" 1942)
e "'La poesie de Mallarme est-eile obsc.ure?".
a. Segundo a grava,;ao: lie se everdade que a obra de arte eperce-
bida".
66 CONVERSAS - 1948
\
.'
terrnos limitado ao pedregulho ou a agua, encon-
tramos.os meios de contemplar-as obras de arte da
palavra e da cultura em sua autonomia e em sua
riqueza originais.
I
,
;
,
CAPfruLo VII
MUNDO CLASSICO E MUNDO MODERNO
Nesta ultima conversa, gostariamos de apre-
dar 0 do pensamento moderno
tal como 0 descrevemos, bem ou mal, nas conver-
sas anteriores. Esse retorno ao mundo percebido
que constatamos nos pintores, nos escritores, em .
certos fil6sofos enos criadores da ffsica moderna,
se comparado as ambi<;6es da da arte e da
filosofia classicas, nao poderia ser considerado um
sinal de declinio? Por urn lado, temos a seguran<;a
de urn pensamento que nao duvida deestar des-
tinado ao conhecimento integral da natureza, nem
de eliminar todo misterio dOconhecimento do ho-
memo Por outro, entre os modernos, no lugar des-
se universo radonal, aberto por princfpio aos em-
preendimentos do conhecimento e da a<;ao, temos
68 CONVERSAS - 1948
MUNDO CulSSICO EMUNDO MODERNO 69
urn saber e uma arte dificeis, cheios de reservas
e de uma do mundo que
nao exclui nem fissuras nem lacunas, uma
que duvida de si mesma e, em todo caso, nao se
vangloria de obter 0 assentimento de todos os
homens....
Efetivamente, e preciso reconhecer que os mo-
demos (de urna vez por todas, desculpo-me peIo
que ha de vago nesse tipo de expressao) nao tern
nem 0 dogmatismo nem a dos classi-
cos, quer se trate da arte, quer do conhecimento,
quer da 0 pensamento modemo oferece urn
carater duplo de incompletude e de ambigilidade
que permite falar, se quisermos, de declinio ou de
decadencia. Concebemos todas as obras da ciencia
como provisorias e aproximativas, enquanto Des-
cartes acreditava poder deduzir de uma vez por
todas as leis do choque dos corpos a partir dos
atributos de Deus
l
. Os museus estao repletos de
obras as quais parece que nada pode ser acrescen-
tado,enquanto nossospintores Ievam ao publico
obras que parecem, por vezes, ser meros
E essas mesmas obras sao tema de interminaveis
1. Rene Descartes, Les Principes de la philosophie (1647), Parte II, art.
36-42, [trad. bras. Prindpios do fikJsofia, Sao Paulo, Hemus, 1968J. In: CEuvres
ed. AT., op. cit., vol. IX. pp. 83-7; in: CEuvres et lettres, op. cit., pp. 632-7.
I
!
,
, .
comentanos, porque seu sentido nao e univoco.
Quantas obras sabre 0 silencio de Rimbaud, apos
a dounico livro que ele proprio entre-
gou aos seus contemporaneos, e como, ao con-
trario, 0 silencio de Racine apos Phedre [Fedra] pa-
rece ser pouco problematico! Parece que 0 artista
de hoje multiplica ao seu redor enigmas e fulgu-
Mesmo quando, como Proust, 0 artista e,
sob muitos aspectos, tao claro quanto os classi-
cos, 0 mundo que ele nos descreve nao e, em todo
caso, nem acabado nem unlVOCO. EmAndromaque
[Andromaca], sabemos que Hermione ama Pirro e,
exatamente no momento em que ela envia Oreste
para mataclo, nenhum espectador se confunde:
essa ambigilidade do amor e do odio, que faz com
que urn dos amantes prefira perder 0 amado a dei-
xa-Io a urn outro, nao e uma ambigilidade unda':
mental; fica imediatamente evidente que, se Pirro
se afastasse de Andromaca e se. voltasse para
Hermione, Hermione seria apenas aseus
pes. Ao contrano, quem pode afirmar se 0 narra-
. dor, na obra de Proust, ama realmente Albertine
2
?
o narrador constata que so quer estar perto de
Albertine quando ela se afasta, e disso c,onclui que
2.' Proust, MarceLA la recherche du temps perdu, t. 6: La Prisormiere, Pa-
ris, Gallimard, 1923 [trad. bras. Em busca do tempo perdiJkJ, t. 6, furtoAlegre,
Globo, 1957]. .'
7C CONVERSAS - 1948 MUNDO CLAsSICO E MUNDO MODERNO
71
i,
nao a ama. Porem, depois de seu desaparecimen-
to e da noticia de sua morte, entao, na evidencia
afastamento semvolta, 0 narrador pensa que
tinha necessidade dela e que a amava
3
Porem, 0
leitor continua: se Albertine the fosse devolvida -
como ele sonha algumas vezes -, 0 narrador de
Proust ainda a amaria? Deve-se dizer que 0 amor
e essa necessidade ciumenta ou que nunca ha
amor, mas apenas chimes e 0 sentimento de ser
exclufdo?" Essas quest6es nao nascem de urna
exegese minuciosa
b
, e 0 proprio Proust que as co-
loca, sao, para ele, constitutivas do que chama-
mos de amor. 0 coraC;ao dos modemos e portan-
to urn coraC;ao intermitente e que nem mesmo
consegue se conhecer. Entre os modemos, nao sao
apenas as obras que permaneceminacabadas, mas
o mundo mesmo, tal como elas 0 exprimem, e co-
mo se fosse urna obra sem conclusao, da qual nao
.sabemos se jamais comportara uma. A partir do
momenta em que nao se trata mais apenas da na-
tureza, mas do homem, a incompletude do conhe-
. \
,
\
, 3. Marcel Proust, Ala recherche du temps perdu, t. 7: Albertine dls"arue,
,
a. Segundo a "Deve-se dizer que 0 amor eessa necessida-
de ciumenta.. ou melbor, que 0 amor nao existe, que existem apenas ci.li-
mes e 0 sentimento de ser excluido?" .
, b. Segundo a uEssas quest5es e essas. dUvidas nao nCem
de uma exegese demasiado minudosa [...]."
I
I
I
cimento, que se deve a complexidade das coisas,
reitera-se comurna incompletude de principia: por
exemplo, ha dez anos, urn filosofo mostrava que
nao conseguirfamos conceber urn conhecimen-
to historico rigorosamente objetivo, porque a in-
terpretac;ao e a colocaC;ao em perspectiva do pas-
sado dependem das escolhas morais e politicas que
o historiador fez por sua conta (como, alias, estas
e aquelas escolhas) e que a existencia hurnana, nes-
.se mOOo em que esta encerrada, jamais pode fazer
abstrac;ao de si mesma para chegar a uma verdade
nua, comp0rtando apenas urn progresso na obje-
tivaC;ao, nao urna objetividade plena".
Se deix<issemos a regiao do conhecimento para
considerar a da vida e da aC;ao, encontrarfamos os e,J ."!
homens modemos as voltas com ambigilidades
talvez ate mais importantes. Nao existe mais uma
50 palavra de nosso vocabulano politico que nao
tenha servido para designar realidades completa-
mente diferentes, ou mesmo diametralmente opos-
tas. Liberdade, socialismo, democracia, reconstru-,
C;ao, renascimento, liberdade sindical
b
, cada uma
. dessas palavras foi, pelo menos urna yez, reivin-
dicada por algum dos grandes partidos existen-
a. !'or ocasiao da Merleau-funty nOo Ie esta. Ultima frase.
b. Segundo a Runidade sindical
R
.
72 CONVERSAS -1948 MUNDO cLASS/CO EMUNDO MODERlvO 73
a. Par ocasiao da Merleau-Ponty nao diz "regimes liberais",
e sUn Nliberalismo", e, conseqiientemente, faz a concordancia cia rase no
singular ("'ele pode", "sua conduta").
Porem, precisamente, se a ambigliidade e a in-
completude estao inscritas na propria textura de
nossa vida coletiva e nao somente nas obras dos
intelectuais, seria irrisorio querer reagir a isso por
uma restaurac;:ao da razao, no sentido em que se
fala de restaurac;:ao a respeito do regime de 1815.
Podemos e devemos analisar as ambigliidades de
nosso tempo e tentar, par meio delas, trac;:ar urn
caminho que possa ser mantido com consciencia e
dentro da verdade. Sabemos porem demais a esse
respeito para retomar pura e simplesmente a ra-
cionalismo de nossos pais. Sabemos, par exemplo, .
que nao se deve acreditar nas promessas dos re-
gimes liberais
a
, que estes podem ter par divisa a
igualdade e a fraternidade sem exprimi-las emsua
conduta, e que as ideologias nobres sao, par vezes,
cilibis. Sabemos, ademais, que, para realizar a igual-
dade,nao basta transferir a propriedade dos ins-
trumentos de produc;:ao para 0 Estado. Nem nos-
so exame do socialismo, nem nosso exame do libe-
ralismo podem deixar de ter reservas au
e permanecemos sabre esta base instavel enquan-
to a cursa das coisas e a conscienciados homens
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