HUSSERL, Edmund. A Crise Da Humanidade Européia e A Filosofia

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INTRODUC;AO E TRADUC;AO DE URBANO ZILLES

~
e d i P U C
EDIPUCRS
I ~edi'Yao: 1996; 2~edi'Yao: 2002; 3~edi'Yao:2008
Capa: J ose Fernando Fagundes de Azevedo / AGEXPP
Finaliza9iio: Vinicius Xavier
Revisiio: do tradutor
Editora9iio e composi9iio: Suliani Editografia Uda.
lmpressiio: Gnifica EPECE
Coordenador da Cole9iio: Urbano Zilles
A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA
(;OMO METODO RADICAL / 11
Husserl; Edmund.
A crise da humanidade europeia e a filosofia / Edmund
Husserl ; introd. etrad. Urbano Zilles. - 3. ed. Porto Alegre:
EDlPUCRS, 2008.
88 p. - (Cole'YaoFilosofia ; 41)
ISBN: 978-85-7430-716-9
I. Filosofia Alema 2. Fenomenologia 1. ZiJ les, Urbano
n. Titulo. III. Serie.
CDD 193
142.7
Como chegar asubjetividade transcendental? /18
3.1 Ausencia depressupostos / 20
3.2 Caniter a priori / 20
3.3 Evidencia apoditica / 22
A intencionalidade daconsciencia / 25
Ficha Catalogratica elaborada pelo
Setor de Processamento Tecnico da BC-PUCRS
Redu9ao ou epoque / 31
() A intersubjetividade transcendental / 34
Proibida areprodu'Yao total ou parcial desta obra
sem autoriza'Yao express ada Editora.
~
e d i P U C RS
www.pucrs.br/e d i pu ers
H A crise dahumanidade europeia eafenomenologia /38
8.1 Nova perspectiva fenomenol6gica / 40
8.2 Lebenswelt ou "mundo davida" / 43
8.3 A teleologia / 49
8.4 A perspectiva filos6fica / 51
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INTRODUGAO
Etimologicamente a palavrajenomenologia significa"cien-
'ia" ou"teoria" dos fenomenos.
o termo jenomenologia, a partir de seu etimo, tambem foi
lIsado em contexto nao-filosofico. 0filosofo positivista Ernst
Mach(1838-1916), predecessor do "Circulo deViena", postulou
lima"fenomenologia fisicageral". No secul0XX PierreTeilhard
dc Chardin (1881-1955) designa dejenomenologia ao estudo de
lima dialetica da natureza centrada no homem (Le phenomene
Itumain), estabelecendo emtorno dele uma ordemcoerente entre
osdiversos elementos douniverso.
Na filosofia, antes deHusserl, Lambert utilizou apalavra, no
..6culo XVIII, na quarta parte do Neues Organon (1764), que
intitulou "fenomenologia ou teoria da aparencia ilusoria e suas
variedades", para fundamentar 0 saber empirico. Numa carta a
Marcus Hertz (25-2-1772) Emmanuel Kant anuncia seuproposi-
10deescrever uma obra sobre os limites darazao eda sensibili-
dade. Pretendia escrever uma "fenomenologia geral" como pro-
pcdeutica it metafisica, mostrando os limites entre 0mundo sen-
sivel e 0 mundo inteligivel, prop6sito que realiza na "estetica
transcendental" daCritica da raziio pura (1781).
G. W. F. Hegel (1770-1831) na sua obraFenomenologia do
espirito (1807) define a fenomenologia como "0 saber da expe-
riencia que faz a consciencia". Mas hoje 0 sentido vigente e 0
daborado por E. Husserl desde as Logische Untersuchungen
(1900-1901) etrabalhos posteriores. Designajenomeno tudo que
intencionalmente esta presente it consciencia, sendo para esta
limasignificayao. 0conjunto das significayoes chama de "mun-
do". Portanto, a fenomenologia husserliana deve ser distinguida
do fenomenismo.
Como Husserl chegou afenomenologia?
Buscando na filosofia 0 fundamento para a matematica e a
16gica, nas Investigaroes Logicas primeiro refuta 0 psicologis-
mo. Desenvolve afenomenologia como ciencia fundamentadora,
baseando-se na analise reflexa do conteudo do ate de pensar
enquanto manifesta a realidade (fenomeno). Para encontrar 0
fundamento, segundo ele, e precise colocar-se acima da mera
experiencia pratica e despir-se de todos os preconceitos, orien-
tando-se apenas por umaevidencia apoditica, ou seja, destituida
detodaapossibilidade doseucontradit6rio. Paraisso distingue a
atitude transcendental da atitude natural. Esta ultima e aquela
emque espontaneamente vivemos, acreditando na existencia do
mundo exterior. Caracteristica da atividade filos6fica eaatitude
transcendental na qual eevidente 0 mundo enquanto consciente
(transcendental ).
A influencia da fenomenologia de Husserl sobre pensadores
posteriores e marcante. Mas seu influxo extrapola 0 campo da
filosofia estendendo-se ao campo da etica, da psicologia, da so-
ciologia, do direito, etc. Entretanto restaurnaspecto fundamental
nao esclarecido. Trata-se do fenomeno ou "objeto intencional".
Nao exigira este nele implicadas tanto arealidade existencial do
sujeito cognoscente como arealidade exterior?
Neste sentido parece que Husserl deu urn passe importante
emsuas ultimas obras que, depois de 1930, giram emtome da
"crise das ciencias europeias e da fenomenologia transcenden-
tal". Nessa fase critica 0 objetivismo ou a pretensao de que "a
verdade do mundo apenas se encontra naquilo que eenunciavel
no sistema de proposiyoes da ciencia objetiva". Na Krisis Hus-
serl indaga 0 porque do fracasso das ciencias, perguntando pe1a
origemdessa crise, redescrevendo atraj et6riadarazao ocidental
e constata que as ciencias se afastaram, pela matematizayao do
mundo da vida, substituindo-o pela natureza idealizada. Elabora
umaontologia do mundo davidano qual tentasuperar 0 antago-
nismo entre 0 objetivo-naturalista e 0 subjetivo-transcendental
dopensamento modemo. Enraiza tanto aexplicayao das ciencias
naturais como acompreensao dos saberes culturais, lutando con-
tra a absolutizayao do paradigma cientifico, que empobrece os
problemas humanos.
J ulgando que essa fase, na obra de Husserl, efecunda eque
seus textos dessa fase ainda nao foramtraduzidos para 0 portu-
gues, sendo nossos estudantes muitas vezes privados do acesso
aos mesmos, neste trabalho, depois de uma introduyao geral a
fenomenologia husserliana, anexamos atraduyao dotexto desua
palestra proferida em 1935 no Kulturbund de Viena na versao
mais breve como foi publicada por Paul Ricoeur emediyao bi-
lingiie, em 1977. 0texto alemao, no qual nos baseamos, e 0
apresentado pelo Dr. Stephan Strasser do Arquivo Husserl de
Lovaina.
Foram as categorias do mundo da vida e de horizonte que,
reelaboradas, ao queparece, constituem araiz dafenomenologia
doDasein emM. Heidegger, na fenomenologia dapercepyao de
M. Merleau-Ponty, no pensamento deH. G. Gadamer, 1. Haber-
mas eK. O. Appel ena hermeneutica deP. Ricoeur. Dessa ma-
neira julgamos contribuir para que nossos estudantes tenham
acesso ao que ha de mais rico e vivo nos varios caminhos da
filosofia contemporanea.
Porto Alegre, 15de marro de 1996.
Urbano biles
A FENOMENOLOGIA
HUSSERLIANA
COMO METODO RADICAL
E m 1938 faleceu Edmund HusserI (1859-1938), pai do movi-
mento fenomenologico contemporaneo. A fenomenologia hus-
serliana e, emprimeiro lugar, uma atitude oupostura filosofica
e, em segundo, urn movimento de ideias com metodo proprio,
visando sempre 0rigor radical do conhecimento.
Edmund Husserl foi, semduvida, urn dos filosofos mais fe-
cundos denosso seculo. Esta fecundidade mede-se par uma du-
pIa razao. Primeiro, pela sua gigantesca producyaofilosofica e
pela qualidade de grande numero de pensadores que teve como
discipulos. Em segundo lugar, destacou-se como 0 criador da
fenomenologia, sendo reconhecido como urndos grandes chissi-
cos dopensamento ocidental.
Husserl procurou descrever acuradamente 0 mundo como
aparece na consciencia, em todos os seus aspectos, buscando
insaciavelmente rigor absoluto, apaixonado pela ideia cartesia-
nada fundamentacyaoradical dafilosofia e, comela, detodas as
ciencias. Perseguiu uma renovacyaoradical da filosofia, no seu
conjunto.
1 Dados biognificos e obra de Husserl
Edmund HusserI nasceu em 1859emProsnitz (Moravia), de
familiajudia, mas indiferente no campo religioso. No periodo de
1868-1876 estudou emViena e Olmutz. De 1876-1878 estudou
Matematica, Fisica e Astronomia na Universidade de Leipzig.
No periodo de 1878-1881 prosseguiu seus estudos na Universi-
dade de Berlim. Durante 1881estudou na Universidade de Vie-
na, periodo no qual tambem se dedicou ao Novo Testamento.
Em 1883doutorou-se emViena comatese Sobre 0calculo das
variar;:oes. A seguir, foi nomeado professor auxiliar de Weiers-
trass, emBerIim, tendo que suspender suas atividades por moti-
vos desaude.
Depois derealizado 0 servicyomilitar, dedicou-se aleitura de
Aristoteles eaFenomenologia do Espirito deHegel. No periodo
de 1884-1886 freqiientou cursos de F. Brentano, emViena. Em
1886 batizou-se na Igreja Luterana. Durante 1886-1887, par
recomendacyoesdeBrentano, preparou sualivre-docencia comC.
Stumpf, emHalle.
No periodo de 1887a 1901foi professor naUniversidade de
Halle, anos do descobrimento da fenomenologia (Investigar;:oes
16gicas). Em 1901 foi nomeado professor na Universidade de
G6ttingen. Neste periodo amadureceu a elaboracyaoda fenome-
nologia (Ideias relativas a uma fenomenologia pura e uma filo-
sofiafenomenoI6gica). Em1916foi nomeado professor emFrei-
burg, funcyaoque exerceu ate 1929. Em 1935 fez sua palestra
sobre "a filosofia na crise da humanidade europeia" emViena;
em novembro do mesmo ana falou na Universidade de Praga
sobre "a crise das ciencias europeias e a fenomenologia". Mor-
reuem27deabril de 1938.
Os interpretes costumam distinguir tres etapas no pensamen-
to deHusserl, relacionadas atres das suas principais obras. Fala-
se do HusserI das Investigar;:oes 16gicas caracterizadas por urn
10gicismo essencialista; das Ideias como 0 idealismo transcen-
dental; daCrise com0vitalismo historicista.
Em 1938, coma ameaya destruidora do nazismo, 0francis-
cano Hermann Leo van Breda transportou c1andestinamente
cerca de40.000 paginas demanuscritos estenografados (emsua
maioria na taquigrafia deGabelsberg) eineditos deHusser! para
aUniversidade Catolica de Lovaina (Belgica), onde foi fundado
o Arquivo-Husserl, que publica suas obras na coleyao chamada
Husserliana e estudos sobre a fenomenologia na coleyao Phae-
nomenologica. Ate fins de 1992 forampublicadas as seguintes
obras na Husserliana pela editora Martinus Nijhoff, Haia (Ho-
landa) eemDordrecht:
1. Medita(:oes cartesianas eConferencias de Paris;
2. A ideia dafenomenologia;
3. Ideias diretrizes para uma fenomenologia pura e Uma filo-
sofiafenomenol6gica I;
4. Ideias diretrizes para umafenomenologia pura II, (1913);
5. Ideias diretrizes para umafenomenologia pura III;
6. A crise das ciencias europeias e a fenomenologia transcen-
dental;
7. Filosofia primeira 1(1923-1924);
8. Filosofia primeira II (1923-1924);
9. Psicologia fenomenol6gica (1925);
10. Por uma fenomenologia da consciencia do tempo imanente
(1893-1917);
11. Analise de uma sintese passiva (1918-1926);
12. Filosofia da aritmetica (1890-1901);
13. Sobre a fenomenologia da intersubjetividade I (textos de
1905-1920);
14. Sobre afenomenologia da intersubjetividade II (1921-1928);
15. Sobre afenomenologia da intersubjetividade 111(1929-1935);
16. Coisa e espa(:o (1907);
17. L6gica formal e transcendental;
18. Investiga(:oes 16gicasI;
19. Investiga(:oes 16gicasII;
20. Investiga(:oes 16gicas (volume complementar);
21. Estudos sobre aritmetica e geometria (1886-1901);
22. Ensaios e recensoes (1890-1910);
23. Fantasia, consciencia imaginativa e recorda(:iio(1898-1925);
24. Introdu(:iioa 16gicae a teoria do conhecimento (1906-1907);
25. Ensaios e conferencias (1911-1921);
26. Li(:oes sobre teoria da signijica(:iio (1908);
27. Ensaios e conferencias (1922-1937);
28. Li(:oes sobre etica e teoria dos valores (1908-1914);
29. A crise das ciencias europeias e a fenomenologia transcen-
dental (volume complementar) (1934-1937).
Husser! nunca foi nem sera urn filosofo popular. Sua obra e
demui dificil interpretayao. Entretanto sua atitude eseu metodo
fenomenologico impuseram-se em amplas esferas do conheci-
mento. Exerceu influencia nao so sobre as filosofias da existen-
cia(Heidegger, Sartre) mas tambemsobre0 neotomismo esobre
a filosofia em geral, sobre 0 direito, as ciencias da linguagem,
como sobre aestetica, asociologia eapsicologia. Suacontribui-
yaOmais importante consiste na elaborayao rigorosa esistemati-
ca do metodo fenomenol6gico ena descriyao rigorosa da atitude
fenomenol6gica.
2 0 quecaracteriza afenomenologiahusserliana?
A palavra "fenomeno" e antiga na historia da filosofia oci-
dental. A palavra "fenomenologia" agrupa apalavra "fenomeno"
e "logos", significando etimologicamente 0 estudo ou a ciencia
do fenomeno. Por fenomeno, no sentido originario emais amplo,
entende-se tudo 0 que aparece, que se manifesta ou se revela.
Originariamente a palavra "fenomeno" refere-se ao que existe
exteriormente, ou seja, fenomenos fisicos. Primeiro os gregos
usaram 0 termo para amanifestayao do ser numa intima unidade
entre 0 ser e aparecer. Com 0 tempo passou a entender-se por
fenomeno a aparencia enganosa, oposta it realidade. Assim Pla-
tao usa 0 termo para designar 0 mundo sensivel, emoposiyao ao
mundo inteligivel. Nesta perspectiva, Protagoras ja afirma que
podemos conhecer 0 que aparece, 0 fenomeno, mas nao 0 que
esta atras dele, 0 que se oculta. Embora tal dissociayao entre'
aparencia e ser nao tenha sido aceita por Aristoteles, nem por
Tomas deAquino, passou avigorar na filosofia modema, sobre-
tudo no fenomenismo deD. Hume, para quem0 fenomeno, uni-
co objeto denosso conhecimento, estaseparado dacoisa emsi.
I. Kant canonizoutal separayaoentre0fen6meno eacoisa em
si sem, todavia, indicar como ea"coisaemsi" queproduz 0 feno-
meno. Este e 0queaparececomo objeto denossaexperienciaem
oposiyao a coisa em si (noumenon). Assim a fenomenologia de
Kant concebe0 ser como 0 limitedapretensao do fenomeno, per-
manecendo 0proprio ser foradoalcancedarazaopura. Distinguin-
do entre "objetos da experiencia" (fenomenos) e "coisas emsi",
transcendentes aexperienciaeincognosciveis, contudo admiteurn
postulado metafisico, fazendo coincidir 0 campo-limite do conhe-
cimentocomoslimitesdaexperiencianotempo eno espayo. Com
opostulado da"coisaemsi" quer mostrar umarealidade indepen-
dentedenossa mente. Hegel, emsuaFenomenologia do Espirito,
reabsorve0 fenomenonoconhecimento sistematicodoser.
Parece que foi 1. H. Lambert quemusou pela primeira vez 0
termo "fenomenologia" em seu Novo organon (1764) para de-
signar ateoria da ilusao sob suas diferentes formas. Kant usa 0
termo "phaenomenologia generalis" numa carta aMarcus Hertz
(1772) para designar adisciplina propedeutica que, segundo ele,
devepreceder ametafisica. ComHegel, atraves daFenomenolo-
gia do Espirito (1807) 0 termo entrou definitivamente na tradi-
yaofilosofica, tomando-se deuso corrente.
Kant eHegel, todavia, concebem demaneira diferente as re-
layoes entre 0 fenomeno e 0 ser ou 0 absoluto. Como, para He-
gel, e cognoscivel 0absoluto, este pode ser qualificado como
Espirito e a fenomenologia e, entao, uma filosofia do absoluto
ou do Espirito. Cabe afilosofia mostrar como este esta presente
em cada momenta da experiencia humana, seja ela religiosa,
estetica, juridica, politica oupratica.
Edmund HusserI considera inaceitavel 0 postulado de que
aquilo queaparece na experiencia atual nao eaverdadeira coisa.
Deu novo significado a fenomenologia, encerrando 0 fenomeno
no campo imanente da consciencia. HusserI nao nega a relayao
do fenomeno com0 mundo exterior, mas prescinde dessa rela-
yao. Propoe a "volta as coisas mesmas ", interessando-se pelo
puro fenomeno tal como se toma presente e se mostra a cons-
ciencia. Sob este aspecto, deu urn sentido mais subjetivo apala-
vra fenomeno, elaborando uma fenomenologia que faya ela
mesma as vezes deontologia. Segundo ele, 0 sentido do ser edo
fenomeno sao inseparaveis. A fenomenologia husserIiana pre-
tende estudar, pois, nao puramente 0 ser, nempuramente a re-
presentayao ou aparencia do ser, mas 0 ser tal como seapresenta
noproprio fenomeno. E fenomeno etudo aquilo dequepodemos
ter consciencia, de qualquer modo que seja. Fenomenologia, no
sentido husserliano, serapois 0 estudo dos fenomenos puros, ou
seja, umafenomenologia pura.
Segundo HusserI, fenomenologia nao e sinonimo de feno-
menismo no sentido de que tudo que existe seja apenas urn fe-
nomeno daconsciencia. A reflexao sobreos fenomenos dacons-
ciencia e, entretanto, 0 ponto de partida para examinar os dife-
rentes sentidos ou significados do ser e do existente a luz das
funyoes daconsciencia. Atraves deste metoda pretende chegar a
urn fundamento certo e evidente do ser e de suas apariyoes.
A tarefa da fenomenologia e, pois, estudar a significayao das
vivencias daconsciencia.
HusserI colocou-se como tarefa detodaasuavida, aomenos
a partir de 1908, a fundamentayao ultima da filosofia, decisiva
para 0 futuro, na forma deumaciencia derigor. A particularida-
dedafilosofia, segundo ele, estano fato denao ser uma discipli-
na especifica entre outras, mas abrange "os problemas funda-
mentais emetodicos detodas asciencias positivas" como ciencia
dos fundamentos. Portanto, a renovayao da filosofia tambem
significara uma reorientayao detodas as ciencias. Essas, por sua
vez, nao sao simples teorias logicamente estruturadas mas de-
sembocam em tecnicas e possuem uma relevancia de vida ao
menos indireta namedida emque sao destinadas acontribuir ao
bem-estar eafelicidade dohomematraves damelhoria daquali-
dadedevida.
Como filosofos, segundo Husser!, devemos orientar-nos para
o mundo interior, quechama de transcendental enquanto chama
o mundo exterior de transcendente. Deste modo 0 ser transcen-
dentee0 ser real ouempirico enquanto 0transcendental e0 irre-
al ou ideal, mas nao ficticio. Propoe-se explorar as riquezas da
consciencia transcendental, pois, segundo ele, 0 filosofo nao
precisa recorrer ao mundo transcendente. Cabe-Ihe buscar aevi-
dencia apoditica ou indubitavel na subjetividade transcendental
atraves da descriyao dos fenomenos puros. So na volta "as coi-
sas mesmas" 0 filosofo encontrara a realidade de maneira ple-
namente originaria e comevidencia plena. Portanto, a fenome-
nologia nao sepropoe estudar puramente 0 ser, nempuramente a
representayao do ser, mas 0ser tal como eenquanto seapresenta
aconsciencia como "fenomeno".
A fenomenologia ternpor vocayao ser prima philosophia e,
por isso, a radicalidade do pensamento cartesiano. 0 caminho
genuino daatividade filos6fica eareflexao. Parte do cogito ede
suas cogitata, do eu, das vivencias do ego. Por isso 0 metodo
fenomenol6gico consiste no acesso ao campo da consciencia
para submete-Io aanalise. Ego cogito cogitatum e0 esquema do
ambito daanalise fenomenol6gica. Como todo cogitare seorien-
ta para algo - intentio - na fenomenologia fala-se de analise
intencional como seumetodo proprio deinvestigayao.
discurso filosofico sempre deve manter contato coma intui{:iio.
Do contrario redunda em conversa vazia. 0 retorno a intuiyao
originaria e a fonte de verdadeiro conhecimento. Por isso nao
convem que aimpulsao filosofica parta das filosofias feitas, das
opinioes degrandes pensadores, mas das coisas edos problemas,
tendo urnponto departida imediato.
Segundo Husser!, quando urn fato se nos apresenta a cons-
ciencia, juntamente com ele captamos uma essencia (Wesen,
eidos). Se, por exemplo, ouvimos diferentes sons, neles reconhe-
cemos algo de comum, uma essencia comum. No fato, portanto,
captamos sempre uma essencia. As essencias sao as maneiras
caracteristicas do aparecer dos fenomenos. Nao saoresultados de
uma abstrayao ou comparayao de varios fatos. Para poder com-
parar varios fatos singulares, ja epreciso ter captado uma essen-
cia, ou seja, urn aspecto pelo qual eles sao semelhantes. 0 co-
nhecimento das essencias e intui90-o,uma intuiyao diferente da-
quela que nos permite captar fatos singulares. As essencias sao
conceitos, isto e, objetos ideais que nos permitem distinguir e
classificar os fatos.
A fenomenologia pretende ser ciencia das essencias e nao
dos fatos. E ciencia de experiencia, que descreve os universais
que aconsciencia intui quando setheapresentamos fenomenos.
As essencias nao existemapenas no interior do mundo percepti-
yo. Recordayoes edesejos tambemtern a sua essencia, apresen-
tando-se de modo tipico a consciencia. Assim as proposiyoes
logicas ematematicas saojuizos universais enecessarios porque
sao relayoes entre essencias. Pela referencia as essencias ideais
,
afenomenologia possibilita 0 que Husser! chama as "ontologias
regionais". Regioes sao anatureza, asociedade, amoral eareli-
giao. Estudar essas ontologias regionais entao significa captar e
descrever as essencias ou modalidades tipicas comque os feno-
menos sociais, morais ou religiosos aparecem a consciencia.
Husser! contrapoe a essas ontologias regionais a ontologia for-
mal oualogica.
3 Com o chegar it subjet ividade t ranscendent al?
J a nas Investiga90es 16gicas (Torno 2, 1<\parte) Husserl di-
zia: "Significayoes que nao fossem vivificadas senao por intui-
yoes longinquas e imprecisas, inautenticas - se e que isto acon-
teceatraves deintuiyoes quaisquer - nao nos puderam satisfazer.
Nos queremos voltar as coisas mesmas". Segundo Husserl, 0
Para fundamentar uma filosofia como ciencia de rigor, se-
gundo Husserl, exigem-se tres condiyoes: a) ausencia de pressu-
postos; b) caniter apriori; c) evidencia apoditica.
evidencia intelectual - intui{:iioeidetica - queservedebase para
as ciencias eideticas. Como a intuiyao empirica do individual e
urndar-se do objeto individual originariamente, tambem aintui-
yaoeidetica eurndar-sedoeidos ouessencia- objeto universal.
Para tomar a filosofia ciencia derigor, elanao sedeve fun-
damentar em dados empiricos, ou seja, nos fatos, mas num a
priori universal. Husserl parte deidealidades porque soessas sao
validas, independentemente da contingencia dos fatos, para
constituirem aprioridade radical para todas as ciencias. Parte das
"coisas mesmas" (nao dos fatos) como se apresentam em sua
pureza aconsciencia. Segundo ele, aconsciencia, ao ser estuda-
daemsuaestrutura imanente, mostra-se como algo queultrapas-
sa0plano empirico eemergecomo condiyao a priori depossibi-
lidade do proprio conhecimento, ou seja, como consciencia
transcendental. Cabe, entao, a fenomenologia descrever a estru-
tura do fenomeno como fluxo imanente devivencias que consti-
tuem a consciencia (estrutura constituinte). Enquanto a cons-
ciencia transcendental constitui as significayoes e a priori de
possibilidades de conhecimento. Nesta perspectiva, alogica tern
carater normativo a priori enao deve ser confundida com0psi-
cologismo, pois aempilia eincapaz de fomecer as condiyoes da
apodicidade, condiyoes que se encontram numa regiao a priori
da pura idealidade de carater universal, necessario e normativo
que fundamenta todo 0verdadeiro conhecimento. Assim a fe-
nomenologia toma-se elamesma 0a priori dasciencias.
o postulado da fenomenologia e que 0fenomeno seja ao
mesmo tempo logos. 0sentido do fenomeno the e imanente e
pode ser percebido. Em outras palavras, todo 0 fenomeno tern
uma essencia, que nao sereduz ao fato. A intuiyao da essencia
distingue-se dapercepyao do fato, pois eavisao do sentido ideal
queatribuimos ao fato materialmente percebido quenos permite
identifica-Io. Se, por exemplo, uma crianya trabalhar semcom-
passo, dira que a forma vagamente oval, que desenhou em seu
cademo, e urn circulo. A essencia persiste como pura possibili-
dade, como necessidade que se opoe ao fato. Por isso ha tantas
3.1 Ausencia de pressupostos
Husserl tenta filosofar apartir dos problemas davivencia da
consciencia, prescindindo do mundo exterior ou do que outros
grandes pensadores ja disseram, pois teorias podem ser nao so
uma ajuda mas tambem urn obstacul0 para chegar "as coisas
mesmas" (fenomenos). A fenomenologia deve ser ciencia dos
fundamentos e das raizes, ou seja, uma ciencia radical, uma ci-
encia dos fundamentos originarios: "Nao e das filosofias que
devepartir 0impulso deinvestigayao, mas, sim, das coisas edos
problemas" (A filosofia como ciencia de rigor, p. 72). EmAs
ideias I escreve que "emnossas afirmayoes fundamentais nada
pressuporemos, nemsequer 0conceito deFilosofia, eassimque-
remos ir fazendo adiante. A epoque filosofica, que nos propuse-
mos praticar, deve consistir, formulando-o expressamente, em
nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de
qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas
descriyoes no ambito destaabstenyao" ( 18).
Husserl constatou que nos congressos encontram-se os filo-
sofos mas nao as filosofias. Incansavelmente tenta submeter a
filosofia a uma revoluyao cartesiana para liberta-Ia de todo 0
preconceito possivel e fazer dela uma ciencia verdadeiramente
autonoma eradical atraves do metodo fenomenologico. A unica
fonte do conhecimento, para 0 fenomenologo, eaevidencia que
caracteriza os dados imanentes daconsciencia.
3.2 Carater a priori
Hadois campos deexperiencia ou conhecimento evidente: a
experiencia ouevidencia empirica - intui{:iiodefatos individuais
- que serve de base para as ciencias empiricas ou dos fatos e a
essencias quantas significa<;oesnosso espirito ecapaz deprodu-
zir. As essencias constituemuma especie dearmadura inteligivel
do ser, tendo suaestrutura esuas leis proprias. Elas san0 sentido
a priori no qual deve entrar todo mundo real ou possivel. Assim
pode-se obter uma compreensao a priori do ser, independente-
mente da experiencia efetiva porque a intui<;aode essencias e
intui<;aodepossibilidades puras.
Veremos que, nafasecaracterizada pelacrise, Husserl desen-
volvea fenomenologia nao apartir do a priori eidetico, nemfor-
mal-kantiano, mas apartir deurna priori concreto material origi-
nariamente vivido equenos edado previamente atoda interven-
<;ao.E 0Lebensumwelt ouLebenswelt enquanto conjunto estrutu-
ral daexperiencia imediataefundamento origimiriodo sentido.
Emsintese, a fenomenologia nao podeni recorrer a qualquer
resultado cientifico comourndado disponivel. Neste sentidoHus-
serI critica Kant por partir do fato das ciencias positivas para de-
pois formular a pergunta pela possibilidade do conhecimento. E
para nao pressupor aquilo que esta em questao retoma, contra
Kant, 0espirito mais radical do cartesianismo, eliminando 0re-
curso aqualquer saberja dado. E HusserI vai mais longe, critican-
do Descartes por estabelecer uma continuidade entre 0 discurso
filosofico e 0 discurso cientifico na concep<;aode uma filosofia
que deve proceder more geometrico. Para que seja preservada a
autonomia dafenomenologia frenteas ciencias epreciso ter cons-
ciencia dequenao falados mesmos objetos sobre os quais falaa
ciencia, nao utilizani seusresultados nemseumetodo.
3.3 Evidencia apoditica
Emgeral entende-sepor evidencia urn saber certo eindubita-
vel. Entre os antigos, a evidencia costuma ser considerada como
urn fato objetivo, como 0 manifestar-se de urn objeto qualquer
como tal. Significa 0 aparecimento do que everdadeiramente ee
por issota~manifesto queexclui apossibilidade deduvidae, por-
tanto, deerro. A evidenciaeurncriterio deverdadeedecerteza.
Descartes afirma "nao aceitar nunca alguma coisa como ver-
dadeira a nao ser que ela se reconhe<;aevidentemente como tal,
isto e, evitar diligentemente aprecipita<;aoeapreven<;ao;enao
compreender nos proprios juizos senao 0 que se apresenta tao
clara e distintamente ao proprio espirito, que nao se tenha ne-
nhuma ocasiao de po-Io em duvida" (Discurso do Mhodo,
2!!parte). Descartes reduz a evidencia a clareza e distin9ao de
ideias, vinculando-a aintui<;ao.Para ele, evidencia eaquilo "que
eupercebo clara edistintamente".
HusserI trata muitas vezes da evidencia. Nas Investiga90es
descreve-a como "preenchimento dainten<;ao"(II, 39). Devol-
veu-Ihe 0 carater objetivo enquanto designa 0 manifestar-se de
urn "objeto" como tal a consciencia. Afirma que a evidencia
surge quando ha uma equa<;aocompleta entre 0 pensado e 0
imediatamente dado.
HusserI adverte que a evidencia nao pode ser considerada
"uma voz mistica quenos gritadeurnmundo melhar: aqui estaa
verdade". Nas Investiga90es 16gicas diz quehaevidencia sempre
que haja adequa<;aocompleta entre 0 intencionado e 0 dado,
quando se de urn preenchimento da inten9ao, i. e, a inten<;ao
receba a absoluta plenitude do conteudo, aplenitude do proprio
objeto. Esta evidencia nao esimplesmente adapercep<;ao.Refe-
re-se a algo imediatamente dado, anterior a toda a teoria, cons-
tru<;aoouhipotese, situado aonivel davivencia fenomenologica.
A fenomenologia toma-se "filosofia primeira" pela auto-
reflexao radical e, par isso, universal. Na atitude plenamente
reflexa, 0 filosofo observani as "coisas" na suapureza original e
imediata, deixando-se orientar exclusivamente por elas. Nesta
atitude de eVidencia<;aopodera descrever 0 imediatamente dado
a consciencia: "0 fundamental enao passar por alto que a evi-
dencia e esta consciencia que efetivamente ve, que apreende
(0 seu objeto) direta eadequadamente, que evidencia nada mais
significa que 0adequado dar-se emsi mesmo" (A ideia de feno-
menologia, p. 88). Pouco mais adiante conclui: "Com0 emprego
do conceito de evidencia, podemos agora dizer tambem e, por-
que a temos, ela nao implica enigma algum; portanto, tambem
~ao 0 ~ni~a da transcendencia; vale para nos como algo de
mquestlOnavel de que nos e permitido dispor. Nao menos temos
evidencia do universal; objectalidades e estados de coisas uni-
versais surgem-nos em auto-apresentayao e estao dados no
mesmo sentido, portanto, inquestionavelmente; e estao autoda-
dos adequadamente no senti do mais rigoroso" (ibidem, p. 90).
Para c~~struir, pois, uma filosofia como ciencia de rigor so
~osso adm~tIr como validos juizos hauridos da evidencia apodi-
tIca. Tal so posso obter mediante vivencias da consciencia em
que as. coisas se me apresentam por si mesmas. Nas Meditar;oes
carteszanas estabelece como primeiro principio: "Tomando
como filosofo, meu ponto de partida, tenho para 0 fim presumi~
do uma ciencia verdadeira. Por isso, eu nao poderia evidente-
mente nem ter nem admitir como wilido juizo algum, se eu niio
os tomar na evidencia, isto e, em experiencias onde as coisas e
os fatos em questao me sao presentes, eles mesmos" ( 5).
Sem a evidencia, segundo HusserI, nao podemos falar de
~ndam~ntayao radical. Para isso nao satisfaz qualquer eviden-
CIa. EXIge-se uma evidencia apoditica, ou seja, com ausencia
total de duvida. 0caminho para chegar a este fundamento radi-
cal da filosofia eda ciencia e, segundo HusserI, a fenomenologia
como metodo de evidenciayao.
Para chegar ao fenomeno puro, Husserl suspende 0juizo em
relayao a existencia do mundo exterior (transcendente). Descre-
ve ap~na~ 0 mu~~o ~omo se apresenta na consciencia, ou seja,
reduzldo a conSClenCla. Tal suspensao ou colocayao entre paren-
teses chamou epoque. Portanto, nao duvida da existencia do
~un~o exterior, mas simplesmente 0 poe "entre parenteses" ou 0
Ide~hza ou 0 reduz ao fenomeno: a redur;iiojenomenol6gica. No
fenomeno, por sua vez, procede a sucessivas reduyoes em busca
da essen~i~: a redu~~o eidetica. Assim entende a fenomenologia
como anahse descntIva das vivencias da consciencia depuradas
de seus elementos empiricos para descobrir e apreender as es-
sencias diretamente na intuiyao.
o efeito da epoque e a reduyao a esfera transcendental: as vi-
vencias puras, a consciencia pura com seus correlatos puros e seu
eu puro. 0dado imediato resultante da reduyao transcendental ea
vivencia pura, cujos elementos noetico enoematico sao objeto da
analise intencional fenomenologica. Alcanyada a esfera transcen-
dental, pela epoque, como dado de evidencia apoditica, 0 fenome-
n610go procedera em sua tarefa especifica, que consiste na analise
dessa esfera edaquilo que nela efetivamente se da.
o idealismo fenomenol6gico de HusserI nao nega a existen-
cia do mundo real. Quer deixar claro que 0 mundo e sempre
conteudo de meu saber, conteudo de experiencia, conteudo de
meu pensar, em sintese, conteudo de minha consciencia. Neste
ponto aatitude fenomenol6gica se distingue da atitude natural.
4 A int encionalidade da consciencia
A consciencia, segundo HusserI, e intencionalidade, ou seja,
s6 existe como consciencia de algo. A analise da consciencia
abrange a descriyao de todos os modos possiveis como alguma
"coisa" ideal ou real e dada imediatamente a consciencia. Nesse
sentido tomou-se celebre 0 lema husserliano da "volta as coisas
mesmas" (Zu den Sachen selbstf). Entende por "coisa" (Sache)
nao objetos fisicos, mas 0 fenomeno como 0 imediatamente da-
do a consciencia, isto e, como se apresenta ou manifesta a cons-
ciencia. Trata-se de prescindir do empirico, de preconceitos e
pressupostos, do singular edo acidental, para chegar as essencias
dadas, as quais sao 0 objeto inteligivel do fenomeno, captado
numa visao imediata da intuiyao.
A fenomenologia husserliana parte, pois, da vivencia ime-
diata da consciencia: "Toda a vivencia inteletiva e toda a vi-
vencia em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objeto de
urn puro ver e captar e, neste ver, e urn dado absoluto. Esta
dada como urn ente, como urn isto-aqui (Dies-da), de cuja exis-
tencia nao tern sentido algum duvidar" (A ideia da jenomeno-
logia, p. 55-56).
A fenomenologia propoe partir deuma situayao sempI' 'Sllll-
postos para esc1arecer as condiyoes das quais depende nOflflO
conhecimento. Nas ciencias empiricas fazemos todo 0 tipo I
pressuposiyoes. 0 fisico, p. ex., pressupoe a validade da mate-
matica; 0 matematico pressupoe avalidade da 16gica, etc. A fe-
nomenologia nao pretende fazer pressuposiyoes que tenham que
serjustificadas emoutro campo.
Galileu possibilitou 0 conhecimento domundo objetivo, em-
pregando urn metoda que se tomou 0modelo de racionalidade
nos tempos modemos. Mas, segundo Husserl, a objetivayao da
natureza, obtida pOI Galileu, nao conduz ao ser das coisas e,
assim, a objetividades ideais. A natureza idealizada passou a
substituir anatureza pre-cientifica. A matematizayao danatureza
violentou 0 ser natural. Deacordo comHusserl, as ciencias posi-
tivas saDingenuas enquanto pre-fenomenol6gicas como a vida
cotidiana e ingenua. Viver consiste emcomprometer-se com0
mundo que nos da a experiencia atraves do pensar. Mas viver e
tambem agir e valorar. Enquanto toda a ciencia e, de certa for-
ma, uma ciencia do ser no mundo, "do ser perdido no mundo",
s6afenomenologia, atraves daanalise radical daintencionalida-
de, podera ser a ciencia das ciencias, justamente por "perder 0
mundo" atraves da reduyao fenomenol6gica para encontra-Io
pela analise da intencionalidade da consciencia. Para isso epre-
ciso passar de uma atitude ingenua auma atitude transcendental
naqual aconsciencia constitui 0 mundo como fenomeno puro.
No seculo XIX houve uma redescoberta dadoutrina c1assica
da intencionalidade por Brentano, Husserl e M. Scheler. Este
conceito da escolastica medieval, tanto daarabe como da latina,
baseia-se numa observayao deArist6teles no livro daMetafisica.
Ao descrever 0 que eumarelayao, Arist6teles exemplificou com
o saber. Toda a ideia, inclusive amais simples, comeya por ser
umarelayao entre urnobjeto enquanto tal eenquanto nosso obje-
to. Mas 0 saber terncomo caracteristica queurnde seus elemen-
tos, 0 objeto, nao necessariamente tern que ser real: a ideia en-
quanta nossa ideia, ou seja, por parte dosujeito.
Husserl desenvolve 0 metoda de mostrayao das estruturas
implicitas da experiencia, definindo 0 conceito de intencionali-
dade como: a) consciencia de algo; b) consciencia de si mesmo.
A partir de Descartes explica-se 0 conhecimento como relayao
entre duas coisas: acoisa que estana consciencia (ideia) eaque
esta fora. A primeira earepresentayao da segunda. Ora, Husserl
abandona aideia derepresentayao, distinguindo, na consciencia,
oato queconhece (noese), queao configurar os dados os dota de
sentido, e a coisa conhecida (noema). 0 "objeto" (noema) e in-
tencional, ou seja, esta presente na consciencia sem ser parte
dela. E esta"coisa" queinteressa it fenomenologia.
Husserl, emIdbas 1, expoe urn exemplo: "Nosso olhar, su-
ponhamos, volta-se comurn sentimento deprazer para uma ma-
cieira emflor numjardim..." ( 88). Na atitude comumou natu-
ral, tal percepyao consiste emcolocar primeiro a existencia da
macieira no jardim, depois em relayao a essa macieira real a
macieira representada na consciencia correspondente it real.
Como conseqiiencia haveria duas macieiras: uma no jardim e
outra na consciencia. Para Husserl, as coisas nao acontecem
assim. Recorrendo it analise intencional, nao partimos damaciei-
ra emsi, porque dela nada sabemos, nemda macieira represen-
tada, porque tambem dela nada sabemos. E preciso partir das
"coisas mesmas", isto e, da macieira-enquanto-percebida, ou
seja, do ato de percepyao da macieira no jardim, pois essa e a
vivencia originaria. Atraves da epoque s6 atendemos it percep-
yao como vivencia, prescindindo de suas relayoes reais. A unica
"coisa" quepermanece eapercepyao e0 percebido, 0 visto des-
de urnponto devista eidetico na "pura imanencia" da conscien-
cia deminhas vivencias. A vivencia depercepyao, fenomenolo-
gicamente reduzida, tambem epercepyao da"macieira emflor",
vivencia que nela conserva todos os matizes comque aparecia
realmente. Assim a "macieira em flor", como objeto de minha
vivencia depercepyao, e0 correlato intencional davivencia, seu
conteudo noematico, resultante danoese, do ato de consciencia,
pelo qual sereduz it unidade de sentido amultiplicidade de da-
dos dasensa9ao (hyle). Enquanto anoese eahyle sao elementos
da propria vivencia, 0 noema e seu correlato intencional ou
componente intencional.
A radicalidade euniversalidade do saber fenomenologico si-
tua-se, pois, no plano daconsciencia, da subjetividade transcen-
dental. Dada a bipolaridade imamentelintencional de toda a vi-
vencia, distinguem-se dois modos correlativos da investiga9ao
fenomenologica, embora defato nao haja separa9ao real entre os
mesmos: a) urn, orientado para apura subjetividade (fenomeno-
logia noetica) e b) outro, orientado para aquilo que pertence a
constitui9ao daobjetividade para asubjetividade (fenomenologia
noematica).
Para Husserl, uma coisa e a indubitavel existencia real do
mundo eoutra coisa ecompreender efundamentar essa existen-
cia. a mundo existepara nos como produto intencional. A unica
tarefa e fun9ao da fenomenologia husserliana e salvar 0 sentido
deste mundo, 0 sentido emque este mundo vale para qualquer
homem como realmente existe. A fenomenologia e, pois, uma
tomada radical da consciencia do que e0 homememsi mesmo.
Deste modo, 0 sentido do oraculo delfico "conhece-te a ti mes-
mo" significa, antes de tudo, apenetra9ao do homem dentro de
si mesmo. Tal penetra9ao so epossivel enquanto ecapaz deter
consciencia de algo. Neste sentido conclui as Medita{:oes carte-
sianas comaideia deS. Agostinho: "Noli foras ire, in te redi, in
interiore hominis habitat veritas" .
A partir deurnponto devista objetivo, poderia perguntar-se,
seHusserI nao reduz 0ser apropria consciencia, abrindo-se esta,
pela intencionalidade, nao ao outro como era entendida a inten-
cionalidade na filosofia medieval mas soasi mesma. Neste caso
a fenomenologia, no fundo, nao passaria de auto-conhecimento
(Selbstauslegung), separando 0 ser intencional do real. au volta,
demaneira sutil, aideiadeque0 conhecimento erepresenta9ao?
A intencionalidade husserliana corresponde a correla<;ao
consciencia-mundo, sujeito-objeto, mais originaria que 0 sujeito
ou 0objeto, pois esses so sedefinem nessa correla9ao. A inten-
cionalidade fenomenologica evisada de consciencia eprodu{:iio
de um sentido que permite perceber os fenomenos humanos em
seuteor vivido.
HusserI definiu a fenomenologia como ateoria dos fenome-
nos puros, dos fenomenos da consciencia pura. Mas 0 que en-
tende por "consciencia"? Da, sobretudo, tres sentidos: a) acons-
ciencia como conjunto de todas as vivencias, ou seja, a cons-
ciencia como unidade; b) a consciencia como percep9ao intema
das vivencias psiquicas, ou seja, 0 ser consciente; c) aconscien-
cia como vivencia intencional. a ultimo e 0mais importante e
HusserI dedicou-Ihe longo capitulo ja nas Investiga{:oes logicas.
Para ele, aconsciencia e"uma corrente deexperiencias vividas",
numrio heraclitiano, quesecolheasi mesma. Por isso interessa-
o mais apercep9ao imanente, que eado cogito cartesiano, cujo
objetivo sao as experiencias vividas (recordar, imaginar, desejar,
etc.), ou seja, 0 cogitatum, pois tais experiencias sao dadas dire-
tamente aconsciencia, uma vez que "apercep9ao daexperiencia
vivida e a visao direta de alguma coisa que se da ou que pode
dar-se na percep9ao como absoluta enao mais como identidade
das aparencias queaesfumam" (Ideias I, 44).
Enfim, a estrutura da consciencia como intencionalidade e
uma das grandes descobertas deHusserl. Dizer que"a conscien-
ciaeintencional" significa: "toda aconsciencia econsciencia de
algo". Portanto, aconsciencia nao euma substancia (alma), mas
uma atividade constituida por atos (percep9ao, imagina9ao, voli-
9ao, paixao, etc.) comos quais visa algo. HusserI vale-se dano-
9ao de intencionalidade para esclarecer anatureza das experien-
cias vividas da consciencia. A intencionalidade e de natureza
logico-transcendental, significando umapossibilidade quedefine
o modo de ser da consciencia como urn transcender, como 0
dirigir-se a outra coisa que nao e 0proprio ato de consciencia.
Distingue duas especies de intencionalidade: a) uma intenciona-
lidade tematica, quee0 saber do objeto esaber destesaber sobre
o objeto; b) uma intencionalidade operante, que e a visada do
objeto emato, ainda nao refletida. A primeira tenta alcan<;ara
segunda, que a precede, semnunca consegui-Io. 0 saber cons-
ciente so se exerce sobre este fundo de irreflexao nessa dimen-
sac devida queja esentido porque visadadeobjeto, mas sentido
aindanao formulado.
E 0 que e a vivencia (Erlebnis) da consciencia? E tudo que
encontramos na consciencia. As vivencias intencionais orientam
ou impulsionam 0sujeito para seu objeto. A intencionalidade
"nada mais significa que esta particularidade que tern a cons-
ciencia de ser consciencia de algo, de trazer, em sua qualidade
decogito, seu cogitatum emsi mesmo" (Medita90es cartesianas,
14). A intencionalidade "representa uma caracteristica essen-
cial da esfera das experiencias vividas porquanto todas as expe-
riencias tern, de uma forma ou de outra, intencionalidade...
A intencionalidade e aquilo que caracteriza a consciencia em
sentido grave econcordante emindicar acorrente daexperiencia
vivida como corrente de consciencia e como unidade de cons-
ciencia" (Ideias 1, 84).
Por urn lado, intencionalidade significa que aconsciencia so
existe como consciencia dealgo. Por outro, 0objeto so podeser
definido emsuarelayao comaconsciencia por ser sempre obje-
to-para-um-sujeito. 0 "objeto" so tern sentido para uma cons-
ciencia que0 visa. Assimas essencias nao existemforado atode
consciencia. Nesse sentido, afenomenologia husserliana busca a
descriyao dos atos intencionais da consciencia edos objetos por
elavisados, ou seja, pelaanalise noetico-noematica.
Se a consciencia e intencionalidade, so pode ser analisada
emtermos de sentido. E aqui sentido e, emprimeiro lugar, os
sentidos; depois direyao; enfim, significayao. A consciencia nao
ecoisa, mas eaquilo queda sentido as coisas. 0 sentido nao se
constata a maneira de uma coisa, mas se interpreta. E a cons-
ciencia intencional que faz 0 mundo aparecer como fenomeno,
como significayao, pelo fato de ser urn cogitatum intencionado
pelo sujeito.
Podemos dizer queafilosofia grega, como aantiga emedie-
val, voltam-se para os principios objetivos do mundo, numa
ideayao essencialmente eidetica. Tais principios eram concebi-
dos como essencias subsistentes em si e por si. 0 cristianismo
introduz aconsciencia como insta-nciafundamental e, afilosofia
modema, refugiou-se reflexivamente nela e, a partir dela, ve 0
mundo e seus principios objetivos. HusserI reassume a tensao
entre aeidetica dafilosofia antiga eaconsciencia crista no sen-
tido filosofico medieval, numa atitude deequilibrio. Na fenome-
nologia eidetica assume a filosofia eidetica antiga emedieval e,
na fenomenologia transcendental, assume 0 idealismo modemo,
ou seja, a modema filosofia da consciencia. Assim, a partir de
HusserI, renascem, por urn lado, 0 movimento da filosofia dos
objetos ideais edos valores da filosofia antiga emedieval e, por
outro, afilosofia daexistencia do cristianismo edafilosofia mo-
dema.
A fenomenologia deHusserI nao pretende ser urnmetoda ou
sistema filosofico definitivamente estruturado. Com Heidegger,
seu aluno, podemos dizer que "compreender a fenomenologia e
captar suas possibilidades". Por isso fecundou e ainda fecunda
novos dominios do conhecimento humano. A fenomenologia
descreve a essencia do homem como quesffiode sentido, como
ser presente, capaz deintegrar ciencia efilosofia no mundo con-
creto da vida, sem desconhecer que a tomada de consciencia
critica darealidade epressuposto desuatransformayao historica.
5 Redu~ao ou epoque
A intencionalidade conduz a reduyao, ou seja, a colocayao
entre parenteses da realidade como a concebe 0 senso comum.
HusserI chama a concepyao do senso comumde atitude natural
aqual opoe aatitude jenomenol6gica, segundo aqual 0 mundo e
nada mais do que 0 que ele epara a consciencia, ou seja, feno-
meno. Nao eque 0 filosofo duvide das coisas existentes, mas as
poe entre parenteses nao as utilizando como fundamento de sua
filosofia. Para fazer dafilosofia umaciencia derigor devera fun-
damentar-se em algo que e indubitavelmente evidente. 0 pro-
blema da epoque nao ea existencia do mundo, mas seu signifi-
cado. Assim, ao contnirio deDescartes, arelayao fenomenologi-
ca de Husser! deixa 0ego cogito cogitatum, pois a unica coisa
queeabsolutamente evidente e0 cogito comseus cogitata.
A fenomenologia propoe-se como tarefa analisar as viven-
cias intencionais da consciencia para ai perceber 0 sentido dos
fenomenos. 0 proprio da estrutura noetico-noematica ou inten-
cional daconsciencia efazer-me descobrir, naconsciencia ouno
sujeito e somente ai, urnobjeto (fenomeno). No citado exemplo
da macieira, a macieira real permanece no jardim, pois nao e
transplantada para 0 sujeito. Na verdade amacieira percebida so
existeenquanto percebida.
Na atitude natural, a consciencia ingenua ve 0 objeto como
exterior ereal. Na atitude fenomenologica 0 objeto econstituido
na consciencia. E a fenomenologia toma-se 0estudo da consti-
tuiyao do mundo na consciencia. Constituir significa remontar
pela intuiyao ate a origem, na consciencia, do sentido de tudo
que e, origemabsoluta. Mas nao so 0mundo econstituido, rece-
be seu sentido na consciencia ou no sujeito, mas 0 proprio sujei-
to se constitui pela reflexao sobre sua propria vida irrefletida.
A reduyao fenomenologica faz, assim, 0 mundo aparecer como
fenomeno. Embora a genese de seu sentido eperceptivel na vi-
vencia da consciencia, nemtudo esta dito sobre 0 sentido dessa
vivencia. Na fase da fenomenologia transcendental, que vai des-
deIdeias diretrizes (1913) eculmina nasMeditar;i5es cartesianas
(1929), Husser! coloca 0 acento sobre 0 sujeito ao qual epreciso
ligar aconsciencia na qual seconstitui todo 0 sentido. A viven-
cia da consciencia e0 unico irredutivel. Mas esta vivencia evi-
vidapor urn sujeito ao qual sereferem os objetos do mundo real
ou ideal edeonde adquiremsignificayoes. Este sujeito constitui-
se continuamente e a fenomenologia toma-se "exegese de si
proprio" (Selbstauslegung), ciencia do eu ou egologia. Esse su-
jeito e0 eu transcendental, nao 0 euempirico.
Para alcanyar as essencias epreciso purificar 0 fenomeno de
tudo que nao e essencial, ou seja, epreciso reduzir (reduyao ei-
detica). A essencia se definira, segundo Husserl, pela analise
mental como uma "consciencia da impossibilidade", ou seja,
como aquilo que eimpossivel aconsciencia pensar deoutro mo-
do. Identifica-se esteinvariante atraves das diferenyas, definindo
a essencia dos objetos dessa especie, ou seja, definindo aquilo
sem0que seria impensavel. Este processo Husserl chamou de
variar;iio eidetica. A essencia e, pois, 0 sentido ideal do "objeto"
produzido pela atividade daconsciencia.
Para chegar a fenomenologia transcendental pura, Husserl
introduz a redur;iio ea epoque. Assimcoloca entre parenteses a
existencia do mundo, nao para duvidar de sua existencia, mas
suspender apenas 0juizo emrelayao a esta existencia. A essa
suspensao de juizo designou-a com 0 termo epoque, ja usado
pelos ceticos pironicos gregos para significar a suspensao ou
abstenyao de qualquer assentimento por nao reconhecerem ra-
zoes suficientes para eliminar a incerteza. Husser! introduz a
epoque como instrumento dedepurayao parachegar aurnradica-
lismo reflexo naprocura das evidencias apoditicas. Portanto, nao
pretende duvidar daexistencia domundo, nemsuprimi-Ia. Quer,
isto sim, encarar 0 mundo apenas sob0 aspecto defenomeno, ou
seja, como seapresenta aconsciencia. E areduyao aconsciencia.
Como a epoque ja significa redur;iio, os dois termos saDempre-
gados, geralmente, pelo proprio Husserl como equivalentes.
o filosofo deve buscar a evidencia apoditica: "Se a apreen-
saDreflexiva se dirige para a minha vivencia, apreendo alguma
coisa emsi mesmadecarater absoluto, cujaexistencia nao pode,
emprincipio, ser negada; ou seja, einteiramente impossivel ver
que essa coisa nao e. Muito embora seja uma ficyao aquilo que
se apresenta, a propria apresentayao, a consciencia que finge,
nao pode ser ficticia" (Ideias 1, 46). Portanto, para chegar a
evidencia apoditica epreciso colocar "entre parenteses" tudo que
me e exterior: outras pessoas e 0 proprio Deus. Devemos partir
do mundo reduzido as vivencias da consciencia. A decisao de
praticar aepoque resulta deurnatolivre, inteiramente dependen-
tedavontade.
Na consciencia, muitas vezes, as vivencias se apresentam na
singularidade concreta. Refletindo sobre esses fenomenos singula-
res, posso sujeiti-Ios auma serie de variayoes arbitrarias embusca
do invariante ou da essencia. Desta forma pratico a reduyao eide-
tica. Surge, enta~, urn fenomeno novo, uma essencia purificada.
Se eu quiser atingir 0terreno firme das evidencias apoditicas
devo ir alem da reduyao eidetica. Terei que por "entre parenteses"
a propria existencia do eu e dos seus atos. So assim alcanyarei 0
eu absoluto, 0 eu transcendental e com ele 0 ambito da experien-
cia genuinamente filosofica. Esta e a reduyao transcendental.
Atraves dela chegamos ao contato imediato com as "coisas" que
se nos apresentam na sua evidencia originaria na consciencia.
Agora nao possuimos simplesmente 0mundo, mas apenas a cons-
ciencia do mundo. 0 filosofo devera reduzir sua atenyao para esse
novo mundo da "consciencia pura".
6 A int ersubjet ividade t ranscendent al
Se tudo 0que eu posso entender como verdadeiro ser nao e
outra coisa que urn acontecimento intencional de minha propria
vida cognoscente, para Husser!, isso nao significa que apercepyao
seja 0 unico modo de conhecer a realidade. Existe outro modo
valido de experiencia: a experiencia mediata, ou seja, atraves do
corpo animado que tenho do outro. A isso chama de EinjUhlung.
o que se me apresenta atraves do corpo animado (Leib) eoutra
subjetividade que eirredutivel a mero polo intencional da minha
subjetividade. Dessarte, 0 idealismo transcendental situa-se no
plano da intersubjetividade transcendental. Assim a reduyao fe-
nomenologica conduz a duas estruturas universais da vida reci-
procamente fundadas: minha vida eado outro.
Husser! distingue entre minha esfera originaria ou primordial e
uma esfera primordial alheia, assunto que desenvolve na 51\ Medita-
yao cartesiana e em muitos outros textos. Diz Husserl que eu sou
para mim, etodo outro eu 0 epara mim, sujeito de sua primordiali-
dade edas intracepyoes (EinjUhlungen) por elemotivadas.
Embora Husser! distinga avida imanente do proprio eu, nela
encontra-se implicita a imanente vida dos "outros", sem confun-
dir-se com a propria esfera primordial. Ha uma reciproca aper-
cepyao intersubjetiva do "eu e de seu oposto" (sein G?geniiber).
o oposto do eu tern que ser outro eu. Ao ego so pode opor-se,
propriamente, urn alter ego. Na experiencia do meu proprio cor-
po radica a experiencia que tenho de corpos alheios e, por sua
mediayao, tenho experiencia da subjetividade alheia, de uma
segunda vida transcendental distinta da minha.
A sintese da coexistencia monadologica de todos os eu emre-
ciproca autoapercepyao e, por sua vez, uma sintese que constitui a
natureza (0 mundo) comum para todos. Eu, como monada mo-
dalmente originaria, tenho como valida meu horizonte de autoes-
tranhamentos, de outras monadas, constituido eu nele como mo-
nada singular de urn "nos", como universo de equivalentes mona-
das existentes, que se implicam em reciproca validade e segundo
urn total sentido ontologico. Este "nos" e a intersubjetividade
transcendental na qual se constitui 0mundo com validade "objeti-
va" para todos. Existe, assim, com fundamento na experiencia
transcendental, uma pluralidade de seres que sao "em si epara si"
eque para mim so sedao no modo de "outro", como alteridade.
Nas Meditaf;oes cartesianas Husserl afirma, no 56, a iden-
tidade entre intersubjetividade e comunidade de monadas. Par-
tindo de mim mesmo como monada original (Urmonade), chego
a outros enquanto sujeitos psicofisicos. Mas numa compenetra-
yao inteletual do horizonte original do outro, descubro que a
percepyao de nossos corpos e a vivencia da alteridade e recipro-
ca. A partir desta vivencia de homogenea alteridade reciproca se
constitui a comunidade humana, apercebendo-me, simultanea-
mente, de minha propria humanidade.
A comunidade human a nao e fechada, mas esta aberta a co-
munidade universal cosmica. Esta intersubjetividade transcenden-
tal ou comunidade universal de monadas apresenta as seguintes
caracteristicas: a) Constitui-se puramente em mim, no ego que
medita; b) constitui-se para mim a partir de minha pura intencio-
nalidade; c) mas e tal que, ao constituir-se emcada modificayao
de outros, e a mesma, apenas num modo subjetivo de diferente
apresentayao; d) constitui-se, por suavez, como portadora neces-
sariamente do mesmo mundo objetivo; e) epropriedade essencial
destemundo transcendental constituido emmim, por necessidade
eidetica, ade ser tambemurnmundo humano; f) esta constituido
commaior ou menor perfeiyao na interioridadepsiquica de cada
urndoshornens emvivencias intencionais, emsistemas potenciais
daintencionalidade; g) estesistema potencial daintencionalidade
implicaurnhorizonteindefinidamente aberto.
7 E m que consist e 0m et odo fenom enol6gico?
A fenomenologia consiste na tentativa de descrever 0 fun-
damento da filosofia na consciencia na qual a reflexao emerge
da vida irrefletida do comeyo ao fim. Podemos resumir os se-
guintes aspetos dafenomenologia husserliana:
a) e urn metodo derivado de uma atitude, que presume ser
absolutamente sem pressupostos, tendo como objetivo propor-
cionar ao conhecimento filosofico as bases solidas de uma cien-
ciaderigor, comevidencia apoditica;
b) analisa dados inerentes a consciencia enao especula so-
bre cosmovisoes, isto e, funda-se na essencia dos fenomenos e
na subjetividade transcendental, pois, as essencias so existemna
consciencia;
c) e descritivo, conduzindo aresultados especificos ecumu-
lativos, como no caso de investigayoes cientificas; nao faz infe-
rencias nemconduz ateorias metafisicas;
d) como conhecimento fundado nas essencias eurn saber ab-
solutamente necessario, emoposiyao ao conhecimento fundado
naexperiencia empirica dos fatos contingentes;
e) conduz a certeza e, por conseguinte, e uma disciplina a
priori;
f) e uma atividade cientifica no melhor sentido da palavra,
sem ser, ao mesmo tempo, esmagada pelas pressuposic;oes da
ciencia esofter suas limitayoes. Busca araiz detoda aatividade
filosofica ecientifica.
Hussed distingue ciencias daatitude natural eciencias daa-
titude fenomenol6gica. 0 objeto dafenomenologia eaconscien-
ciamesmacomo residuo daepoque praticada, aconsciencia pura
no se~tido eidetico transcendental enao psicologico, pois apsi-
cologIa, como ciencia dos fatos, tambem fica entre parenteses.
",?-s. ciencias daatitude natural oudogmatica partemdeuma obje-
t~vldadedada, semquestiona-Ia. A fenomenologia parte do ques-
tlOnamento de qualquer objetividade dada e a reduz a mera vi-
vencia emque se da, para torna-Ia objeto de analise. Por isso a
fenomenologia eaciencia critica fundamental esitua-se no pla-
no da evidencia apoditica. 0 objeto proprio da fenomenologia
nao e, diretamente, 0 campo das essencias, mas da essencia da
vidadaconsciencia.
Hussed busca urn fundamento solido para a filosofia e a
ciencia, uma ciencia do radical. Tenta estabelecer umafilosofia
primeira, criando uma ciencia fundamental da subjetividade
pura. A consciencia atuante eeste fundamento primeiro detoda
a objetividade. Tal filosofia primeira e a fenomenologia como
"a ciencia descritiva eidetica da consciencia pura transcenden-
tal" ou "doutrina pura descritiva das essencias das estruturas
imanentes da consciencia". A filosofia tornar-se-a ciencia de
rigor quando nos fizer tomar consciencia deque as construyoes
t~oricas do espirito nao podem restringir-se a descriyao objeti-
vIsta dos fatos individuais e subsistentes emsi mesmos. Como
ciencia rigorosa, exigira de nos uma postura fenomenologica
que nos conduzirci as raizes ultimas de todas as coisas. E ver-
dade que, na fase da crise, Husserl busca este fundamento de
alguma forma, no mundo davida (Lebenswelt). '
8 A crise da hum anidade europeia eafenom enologia
o pensamento de Husserl passou por longa eprofunda ~vo-
luyao. No periodo de Halle (1887-1901) escreveu as Investlga-
9
0es
; no periodo de Goettingen (1901-1916) elaborou su~feno-
menologia pura e produziu as Ideias; mais tarde, emF~burgo,
naFloresta Negra (1916-1928), produziu afenomenologla como
novo transcendentalismo ou idealismo caracterizado nas Medita-
9
0es
cartesianas. Nos ultimos anos, ja aposentado n~univer~i-
dade refletiu sobre acrise das ciencias como expressao dacnse
,
dacultura contemporfmea.
No periodo de 1934-1937, Husserl dedicou-se ao tema da
"Crise das ciencias europeias eafenomenologia transcendental".
Nesse periodo aborda problemas que, a seu ver, conduzira~ a
crise. Persegue a origemdessa crise ate amodema matematIza-
yao das ciencias para abordar a divisao ou ruptura surgida entre
o objetivismo fisicalista e0 subjetivismo transcendental. Estuda
a historia da filosofia modema desde Descartes, Locke, Berke-
ley, Hume ate Kant. Propoe-se a superar esse abis~o atraves ~a
fenomenologia, buscando 0 fundamento do sentIdo, oculto as
ciencias. Nesse periodo elaborou 0texto sobre "A crise da hu-
manidade europeia e afilosofia ", indicando 0 acesso ou 0 cami-
nho afenomenologia transcendental apartir do mundo davida e
dapsicologia. ~ .
o texto apresentado originou-se de uma conferencla. que
Husserl fez no dia 7 demaio de 1935no Kulturbund de Vlena.
Essa conferencia Husserl pronunciou numa situayao determina-
da. Em 1928foi aposentado (emeritiert), ou seja, foi dispensado
desuaatividade deensino nauniversidade. Em1930reconheceu
que M. Heidegger, seu ex-aluno e sucessor na catedra, assumira
posiyao diferente da sua. Em 1933, os nazistas cheg~ram.ao p.o-
der, na Alemanha, e ai comeyou a ascensao de urn l.rraclOnahs-
mo queprovocou uma crisepolitica ecultural. ComIS:0 en~en-
tou urnproblema pessoal por ter sanguehebreu. Mas nao delxou
defazer uma analise profunda dessa nova situayao, detectando 0
perigo que ameayava a humanidade europeia, esta humanidade
que esquecera sua tradiyao espiritual vinda desde a antigiiidade
grega, embora estivesse proibido de manifestar-se publicamente
em seu proprio pais. Husserl responsabilizou os filosofos e os
cientistas pela crisepor teremdeixado de servir arazao. Segun-
do ele, 0 seculo dacienciadesviou-se darazao.
Na oportunidade quethefoi dada emViena, Husserl evoca a
heranya cultural que constitui abase comum da civilizayao oci-
dental. Posiciona-se contra 0 desvio racionalista, e, ao mesmo
tempo, contra certo irracionalismo, expondo suapropria concep-
yao. Opoe-se ao racionalismo ingenuo dos seculos 17-18 com
suaconcepyao das tarefas infinitas darazao humana; eao objeti-
vismo reinante nas ciencias positivas, de modo especial na psi-
cologia objetivista, pela consciencia cientifica do espirito en-
quanta espirito. Suas palavras ecoamcomo umaprofissao de fe:
"e, portanto, as ideias siio mais fortes que todas asfor9as empi-
ricas" (Husserliana VI, p. 335). Stefan Strasser, profunda co-
nhecedor dafenomenologia deHusserl, noprefacio queescreveu
a ediyao francesa (bilingiie: alemao e frances) chama este texto
de"urn manifesto no verdadeiro sentido dapalavra" (E. Husserl.
La crise de l 'humanite europeenne et la philosophie. Paris, Au-
bier Montaigne, 1987, p. 5). Poderia chamar-se esse texto tam-
hemde"testamento politico" deHusserl.
Para Husserl, aexistencia dacrise eurn fato do qual sedeve
tomar consciencia. Estacrise refere-se as ciencias europeias eao
homem europeu; refere-se aEuropa como maneira espiritual de
ser, ou seja, aEuropa como entecultural: "Emsentido espiritual,
a Europa engloba manifestamente os dominios ingleses, os
U.S.A., etc. Trata-se aqui deumaunidade devida, deuma ayao,
deuma criayao deordemespiritual, incluindo todos os objetivos,
os interesses, aspreocupayoes eos esforyos comasinstituiyoes e
as organizayoes. Nelas atuam os individuos dentro das socieda-
des multiplas de diferentes complexidades, em familias, rayas,
nayoes, nas quais todos parecem estar interior e espiritualmente
vinculados uns aos outros e, como disse, na unidade de uma
estrutura espiritual". Hussed nao compartilha a resignac;ao nem
o pessimismo do existencialismo, na epoca, pois cre no poder da
razao humana e tenta urn diagnostico das causas dessa crise para
so depois receitar 0remedio. Constata: hi uma heranc;a da histo-
ria que e 0 objetivismo cientifico; urn esquecimento tnigico: 0
Lebenswelt ou 0 mundo da vida; a fenomenologia podeni enca-
minhar para uma soluc;ao ou superac;ao dessa crise:
"Nesta conferencia quero tentar suscitar um novo interesse
para 0 tilo frequentemente tratado tema da crise europeia, de-
senvolvendoa ideia historico-filosofica (ou 0 sentido teleologi-
co) da humanidade europeia. Ao expor a fun9ilo essencial que,
neste sentido, tem a exercer afilosofia e suas ramifica90es, que
silo nossas ciencias, a crise europeia tambem ganhara uma nova
elucida9ilo" (Husserliana VI, p. 314).
Confusoes espirituais e politicas nas primeiras decadas do
seculo XX haviam despertado, no continente europeu, a cons-
ciencia de uma crise, que Hussed compartilhou com muitos con-
temporaneos. De maneira mais acurada que outros, viu a ameac;a
a cultura europeia condicionada pela crise da filosofia. Essa ul-
tima, para ele, consistia essencialmente na ameac;a da cientifici-
dade da filosofia. Depois de 1910 nao faltam ponderac;oes nesse
sentido em seus escritos. Este dado e importante para entender a
obra tardia caracterizada como "crise das ciencias europeias".
8.1 Nova perspectiva fenomenologica
Na obra fenomenologica de Husserl salientamos dois aspectos
diversos apartir de 1913. Comec;a com as Ideias (1913), obra que
foi caracterizada de idealismo transcendental. Esta etapa estende-
se ate as Medita90es cartesianas (1931). Em grandes linhas, pode
dizer-se que, nesta etapa, centra a analise fenomenologica sobre 0
sujeito como suporte do ato de consciencia einstancia constituinte
do sentido do mundo. Sob certo aspecto ate se pode dizer que a
fenomenologia assume a forma de egologia. 0ego transcendental
age como suporte das vivencias da consciencia.
Posteriormente, no final de sua vida, na fase caracterizada
pela crise (1930-1938), busca urn novo acesso a fenomenologia
atraves da historia. Depois de 1920, Hussed preocupa-se com 0
comec;o da fenomenologia. Pela primeira vez posiciona-se, ex-
plicitamente, na questao da historia etematiza a historicidade da
filosofia. Na conferencia de Viena (1935) ja trabalha com de-
terminado conceito de historia. Concebe-a como transcender da
atitude natural, que permanece nos simples dados, para desen-
volver uma teoria filosofica, que, em sua nova perspectiva, sig-
nifica uma certa epoque do interesse originario, para captar 0
ente em sua globalidade. Com essa reivindicac;ao da totalidade,
segundo 0 interprete Walter Biemel, emerge a ideia de infinito,
que e decisiva para a humanidade ocidental (Husserliana, VI, p.
XVIII). Essa nova perspectiva nao significa urn rompimento
com a fase anterior, mas urn enriquecimento de seu programa
fenomenologico pela perspectiva da historia e da vida. Nesta
segunda fase Hussed preocupa-se com as evidencias pre-logicas,
com 0 mundo dos valores, com 0 sentido da existencia pessoal e
coletiva, etc. Entretanto, como na primeira fase, continua em
busca de urn saber apoditico euniversal ede seus fundamentos.
Husserl denuncia a crise da civilizac;ao do nosso tempo, in-
terpretando-a como uma crise das ciencias europeias. Situa essa
crise nao nos fundamentos teoreticos, mas no fracas so das cien-
cias na compreensao do homem. A origem da crise e a convic-
c;ao de que "a verdade do mundo apenas se encontra no que e
enunciavel no sistema de proposic;oes da ciencia objetiva", ou
seja, no objetivismo. Este poe de lado as questoes decisivas para
uma autentica humanidade. Com isso a ciencia perde importan-
cia para avida e0 mundo.
Em a crise, Hussed e1abora uma reconstruc;ao da tradiyao Ii
losofica na perspectiva fenomenologica tomando a tel ologl(/ Ii ,
razao historico-critica como ponto de referencia. Na< " plllil
cupa com detalhes de erudic;ao historico-critica. 010" I 11"
tao: qual a caracteristica essencial, ou seja, 0 'ido,\', do 11111111II
dessa forma espiritual de ser? Trac;a urn esqu 'l11il 11'1 1111dill t III
que interessa a fenomenologia para mostrar a ideia-fim ou 0
telos-intrinseco que preside a atividade filos6fica no Ocidente
atraves dos seculos. 0 modo de ser pr6prio, estemodo espiritual
deser realizou-se, pela primeira vez, na Grecia, entre os seculos
VII-VI a.c. com0 aparecimento de uma nova atitude diante do
mundo. Dessa atitude emergiram novas formas do espirito, que
constituiram urn sistema cultural novo, asaber, afilosofia como
aentenderam os antigos gregos: "como cienciauniversal, ciencia
do universo, ciencia da unidade total de todo ente". Foi 0 inte-
resse pela totalidade, pelo universal queproduziu 0 desenvolvi-
mento das diferentes ciencias particulares, ramificando-se a "fi-
losofia, a ciencia una, emmultiplas ciencias particulares". Cen-
tra sua reflexao sobre os seguintes momentos: 0 fundamento
originario do filosofar na Grecia antiga como forma de saber
universal eunico sobreatotalidade do ser; reabilitayao durante 0
Renascimento do ideal originario, modificado agorapelo recurso
a matematica como instrumento formalizante; volta deDescartes
e do empirismo Ingles para a consciencia, embora com a ambi-
valencia da racionalidade matematica; giro radical de Kant para
a subjetividade como fundamento da ciencia, semtodavia con-
seguir realizar uma filosofia transcendental. Esses momentos da
hist6ria do pensamento sao destacados por Husser] como tentati-
vas precursoras da fenomenologia, mas insuficientes. A fenome-
nologia, enfim, assume aideiaoriginaria dafilosofia como reali-
zayao consequente de urn saber fundamental, apoditico e trans-
cendental. Ate certo ponto, Husser] aplica aepoque as filosofias
dopassado enquanto sistemas que ignoraram0Lebenswelt como
lugar daexperiencia absoluta.
A questao fundamental, quecoloca, easeguinte: Como 0 de-
senvolvimento gigantesco das ciencias modernas pode conduzir a
umacrisedas ciencias que, simultaneamente, representaumacrise
da humanidade europeia? Constata que 0 telos, que emergiu da
filosofia grega para a humanidade europeia, de querer ser uma
humanidade apartir darazao filos6fica, foi perdido com0 desen-
volvimento das ciencias. Estudaporqueasciencias fracassaram.
ParaHusserl, acrisedas cienciasmanifestaacrisedahumani-
dadecomo projeto racional. 0 projeto do homemeuropeu, consti-
tuido na antiga Grecia, trayou urn projeto politico racional para
configurar avidahumanaapartir darazao. A guerrade 1914mos-
trou0 fracassocomopossibilidadeinerenteaculturamoderna. Suas
analisesvaodesdeaconsidera<;aodacriseepistemol6gicadopsico-
logismoateacrisegeneralizadadas ciencias europeiasquesignifi-
couumacriseantropol6gica. Parasuperar essacriseepreciso res-
taurar afenoprojeto te6rico, pnitico epoliticooriginario, corrigin-
do os erros implicitos na epistemologia. Desta formaafenomeno-
logiarecuperaraumaconcepyaodohomemqueterncomocentro0
sujeito racional, fundado nao nos fatos, mas na razao. 0 homem
nao eurnmero fatomundano, mas 0lugar darazaoedaverdade, a
subjetividadetranscendental. A razao nao ecausadapelas circuns-
tanciasdomundo, mase0queepor si mesma.
A fasedacrise deHusser] caracteriza-sepelo conceito doLe-
benswelt (mundo da vida). Opoe 0 Lebenswelt ao mundo das ci-
encias. Tenta fundamentar 0ultimo no primeiro, no mundo pre-
cientifico. Segundo ele, apr6pria ciencia emergedealgo anterior
a ela mesma, do campo das experiencias pre-cientificas e pre-
categoriais, ou seja, de urn a priori concreto, que chama de Le-
benswelt ou Lebensumwelt. Em outras palavras, pergunta pelas
condiyoes a priori depossibilidade das ciencias aonivel hist6rico
eexistencial.
oLebenswelt eurn tema presenteno pensamento de Husser]
desde 0 comeyo. Em Gottingen denomina-o Erfahrungswelt ou
mundo da experiencia. A reconduyao daciencia asuaorigemno
mundo da vida, como a critica da psicologia cientifica, exige a
constituiyao da ciencia do mundo da vida eumapsicologia feno-
menol6gica. 0 mundo davida eafonte do sentido dos conceitos
cientificos. Seesses nao puderemreferir-seaomesmo carecemde
sentido.
Husser! considera 0mundo da vidacomo origem(Ursprung)
efundamento (Boden) dasciencias objetivas. Se0mundo davida,
por urn lado, era a origemdas ciencias objetivas, por outro, era-
Iheclaroquetinhamesquecido essaorigem. Esteera, para ele, urn
momenta da crise das ciencias. Considerava 0mundo da vida
comournnovo ponto departidanocaminhoparaafenomenologia
transcendental, sobretudo para a subjetividade transcendental, da
qual brotam, emultimaanalise, nao soasciencias objetivas mas 0
proprio mundo davida. Dessamaneira, nafenomenologia husser-
liana, 0mundo da vida exerce uma dupla fun<;ao:a) a fun<;aode
fundamento (Bodenfunktion) emrela<;aoas ciencias eb) afun<;ao
de fio condutor (Leitfadenfunktion) para 0retorno da fenomeno-
logiaasubjetividade constitutivadomundo.
oqueHusser! entendepor Lebenswelt?
A redu<;aoaomundo davida quer dizer "colocar entreparen-
teses" 0que serefere aele. Entretanto aepoque nao e0recurso
de urnrealista escrupuloso, mas 0metodo para 0acesso aexpe-
riencia transcendental por voca<;aorigorosamente filosofica. Por
mundo da vida Husser! nao entende, pois, 0mundo de nossa
atitude natural, na qual todos os nossos interesses teoricos e
praticos sao dirigidos aos entes do mundo. Na atitude fenomeno-
16gica trata-se de suspender nossa aten<;aonesse horizonte para
ocupar-nos exclusivamente com 0proprio mundo da vida, ou
seja, como ternlugar paranos apermanente consciencia daexis-
tencia universal, do horizonte universal de objetos reais, efeti-
vamente existentes. 0 objeto da investiga<;ao fenomenologica
sobre 0mundo nao e tanto 0ser do mundo quanta seu sentido.
ointeresse teorico da atitude fenomenologica dirige-se exclusi-
vamente ao universo dasubjetividade no qual senos da0mundo
como existente. A ciencia do mundo davida eaciencia da sub-
jetividade, a ciencia do universal como dapreexistencia (Vorge-
gebenheit) do mundo como fundamento detoda equalquer obje-
tividade. Contemplar 0mundo apartir danossa atitude fenome-
nologica significa ve-lo pura e exclusivamente do modo como
adquire sentido e validade existencial emnossa vida de cons-
ciencia e emconfigurayoes sempre novas. A ciencia do mundo
da vida tern, pois, por objeto 0estudo da vida transcendental e
desuaatividade constituinte.
E 0mundo historico-cultural concreto, sedimentado inter-
subjetivamente emusos e costumes, saberes e valores, entre os
quais se encontra aimagemdo mundo elaborada pelas ciencias.
o Lebenswelt e 0ambito de nossas originarias "forma<;oesde
sentido", do qual nascemas ciencias. Para Husser!, 0mundo da
vida e urn a priori dado com a subjetividade transcendental.
o erro do objetivismo foi esquece-lo ou desvaloriza-lo como
subjetivo. As teorias logico-matematicas substituiram 0mundo
da vida pela natureza idealizada na linguagem dos simbolos.
Cabe a fenomenologia recupera-lo, tira-lo do anonimato, pois 0
humano pertence, semduvida, ao universo dos fatos objetivos;
mas, enquanto pessoas, enquanto eu, os homens ternfins, perse-
guem metas, referem-se as normas da tradi<;ao, as normas da
verdade; normas eternas.
Husser!, nessa fasedesuafenomenologia, coloca atonica no
mundo davida, na experiencia pura eno a priori pre-categorial,
embora mantenha 0sujeito transcendental como urn polo de
referencia. Na crise, vincula 0eu e 0Lebenswelt na correla<;ao
consciencia-mundo. Comisso consegue novas perspectivas para
a intencionalidade e a intersubjetividade, pois agora aplica am-
bos os conceitos ao mundo como historia ecomo teleologia. Em
sintese, tenta recuperar 0mundo da vida atraves deumregresso
ao mundo queprecede toda aconceitualiza<;aometafisica ecien-
tifica, ao mundo pressuposto ouLebenswelt.
Segundo Husserl, e preciso recolocar a subjetividade trans-
cendental no centro dareflexao para recuperar 0mundo da vida,
das experiencias pre-cientificas originarias sobre as quais histori-
camente SaDconstituidas as proprias ciencias. A propria raiz das
evidencias logico-matematicas encontra-se, pois, no mundo da
vida. 0 universo de idealidade das ciencias modernas nasce no
proprio mundo davida, pois econstituido apartir das formas scn-
siveis das coisas na experiencia cotidiana. Pela imaginayao, II
partir delas sedesenhamas formas geometricas ideais puras, que
nao sac asreais mas decorpos idealizados. Erroneamente passou-
seaconsiderar tais idealidades como objetivas. Desta formaidea-
lizou-se a natureza pensando-a de acordo com 0paradigma das
idealidades matematicas. Esqueceu-se que0processo deidealiza-
yao feito pel a matematizayao galileana da natureza e, antes de
tudo, produto da subjetividade pensante. Que re1ayaoainda per-
manece entre0mundo doqual fala0fisicoeaqueledo qual fala0
poetaoudoqual todos falamosnalinguagemcotidiana?
Quando Husserl seocupa da funyao domundo davidacomo
fundamento das ciencias objetivas costuma relacionar comessas
a concepyao galileana de natureza. Com esta associayao quer
mostrar que, desde Galileu, a ciencia emergente desconhece 0
carater metodologico desuaatividade comapretensao decaptar
comseus instrumentos 0mundo tal como ena verdade, por de-
tn1sdo veu de nossa experiencia cotidiana subjetiva e relativa.
Tal pretensao ontologica, para ele, foi deconseqiiencias equivo-
cadas tanto no racionalismo c1assicocomo no empirismo.
Mundo da vida, no sentido de mundo experimentado pelo
homem, significa uma realidade rica, polivalente e complexa,
que 0proprio homem constroi. Mas, ao mesmo tempo, 0Le-
benswelt e constituido pela historia, linguagem, cultura, valo-
res... Quando sefala deexperiencia eingenuo querer reduzi-Ia a
empiria sensivel do mundo fisico. A experiencia, semduvida, e
urn ato da consciencia. Vinculando a experiencia ao mundo da
vida, ou seja, ao mundo pre-cientifico, pode falar-se de experi-
encia estetica ou religiosa, enfim, de experiencia da subjetivida-
de. De modo algum a experiencia pode ser reduzida ao mundo
das ciencias fisico-objetivas. HusserI busca, pois, a experiencia
alemdaexperiencia danatureza das ciencias objetivas enquanto
vinculada acategoria doLebenswelt. Assim0Lebenswelt eurna
priori das ciencias, cujos resultados passarao a integrar 0mes-
mo, que traduz as condiyoes de possibilidade de urn mundo co-
mo mundo historico, com suas tradiyoes, com seu presente e
horizonte aberto ao futuro. A ciencia nao so emerge do mundo
da vida, mas tambemrepercute sobre ele, convertendo-o emurn
mundo impregnado cientificamente. Assim pode dizer-se que a
constituiyao das ciencias implica uma constituiyao cientifica do
mundo davida.
Na fase da crise, Husserl integra apolaridade sujeito-objeto
no mundo da vida como horizonte deconhecimento e como su-
porte das ciencias. Dessa forma toda experiencia encontra-se
condicionada e determinada por urn horizonte pre-dado. Sujeito
eobjeto encontram-se englobados pelo mundo epela historia: 0
mundo da vida. Este atua como fator mediador do que se da no
objeto ena consciencia. 0Lebenswelt nao euma soma de obje-
tos mas 0mundo do subjetivo do qual emerge toda a atividade
humana. 0homem exerce sua funyao de criar fatos culturais no
mundo da vida. Entre esses fatos esta 0mundo objetivo das
ciencias edos instrumentos tecnicos. Tambem esses sac produto
historico com finalidades eprocedimentos que mudam. A cate-
goria de "horizonte" supoe que cada experiencia, cada dado ou
cadapalavra, seencontra numnexo global desentido provenien-
teda intencionalidade subjetiva. Os dados eas experiencias sin-
gulares compartilham ser e sentido coma totalidade na qual se
inserem. 0horizonte, entretanto, constitui uma totalidade aberta
eVIva.
As ciencias apresentam umavisao do mundo na qual predo-
mina 0objetivismo, aquantificayao, aformalizayao, atecnifica-
yao, etc. 0mundo davida, pelo contrario, apresenta-se como urn
mundo de experiencias subjetivas imediatas, dotado emsi mes-
mo desentido efinalidade, pre-dado para explicitayao conceptu-
al. Entre ambos, entre 0mundo da ciencia e 0mundo da vida,
instaura-se urn processo dialetico de maior ou menor distancia-
mento. 0mundo expresso no modelo cientifico, interpretado por
uma ideologia ou cosmovisao, permanece mundo, mas e urn
mundo mutilado ou parcial. E urn empobrecimento da realidade
rica do mundo davidado qual nao deixadeser urnate derivado.
o sentido da ciencia legitima-se, emultima instancia, no mundo
da vida. So este confere fundamentay~o axiologica, estrutura
intencional edoayao origimiria de sentido apropria ciencia. E 0
mundo da vida tern urn indice temporal ou hist6rico. 0mundo
da vida representa a dimensao interior do sujeito e da historia.
A critica de Husserl ao objetivismo da ciencia gira, pois, em
tomo de dois aspectos: a) 0esquecimento do sujeito e de seu
mundo vital; b) aperda dadimensao etica, pois 0metodo mate-
matico objetivista renuncia explicitamente atomar posiyao sobre
o mundo do dever-ser. 0mundo da vida e, para Husserl, urn
mundo que tern 0homemcomo centro. Por isso, so 0retomo a
subjetividade transcendental podeni recuperar 0sentido do hu-
manismo esuperar 0desvio objetivista. Ser sujeito transcenden-
tal, no entanto, nao significa outra coisa queurnmodo particular
de existencia do proprio sujeito humano enquanto esse desen-
volve, ao maximo, suaspossibilidades reflexivas.
o mundo da vida conota os componentes cotidianos da exis-
tenciapessoal anteriores aatividade cientifica, significando asitu-
ayao do sujeito narelayao intencional comurn contexto historico
social que envolve 0sujeito cognoscente e 0objeto conhecido.
E 0mundo gerado anonimamente pela colaborayao humana que
secristaliza empraxis humanaconvencionada. Estee0mundo do
qual ascoisas easpalavras saemdeencontro imediato aohomem;
e 0mundo no qual parece, aHusserl, possivel restabelecer aco-
nexao entreciencia, 6ticaevida, pois aciencia eapenas umamo-
dalidadeparticular decondutapnitica, compartilhando as orienta-
yoespre-cientificas existentes no mundo da vida. Husserl desco-
bre que 0erro do objetivismo comeya onde arazao modema es-
quece0mundo ordinario ecotidiano doshomens.
Enfim, analisando 0mundo davida, afilosofia conquista ho-
rizontes sempre novos, pois, detras das concretizayoes descobre
a atividade e a criatividade intencional da subjetividade. Para
Husserl, autentica analise de consciencia e, pois, hermeneutica
da vida da consciencia. Resta mostrar que a fenomenologia e 0
telos, 0fim, ou seja, 0movimento latente para 0qual tende a
propria fundayao dacultura filosofica. A cosmovisao de Husserl
estacentrada no conceito deteleologia.
8.3 A teleologia
Quando Husserl fala da crise das ciencias nao questiona sua
cientificidade, em suas aplicayoes tecnicas, nem seus metodos.
Questiona, isto sim, opyoes subjacentes a atividade cientifica
como tal e ao seu desenvolvimento. Atraves dessa analise pode
mostrar que a historia do pensamento modemo euma busca do
sentido da vida humana (teleologia). A crise das ciencias e, em
ultima analise, crise desentido. Quando Husserl faladecrise das
ciencias refere-se, pois, ao seu significado para a vida humana.
Emoutras palavras, 0lugar dacrise e0projeto devida, 0mundo
etico-politico porque 0mundo daciencia foi separado do mundo
da vida concreta. Da mesma forma, atecnica desinteressa-se de
seus fins para concentrar-se nos meios. Por isso, arazao ultima
da crise da humanidade europeia eaperda de teleologia e, con-
seqiientemente, do sentido da vida. Cabera a fenomenologia
reconciliar 0mundo da ciencia e da tecnica com 0mundo da
vidaapartir dateleologia inerente aoultimo.
ohumanismo ocidental caracteriza-se, desdesuaorigem, pe-
la presenya de uma ideia filosofica e de uma intencionalidade
teleologica. Mas 0mundo cientifico contemporaneo eurndesvio
desta teleologia, urn desvio do ideal da filosofiacomo tarefa
infinita. A consciencia dacrise euma oportunidade para superar
a ingenuidade da ciencia modema, fundamentando-a no mundo
davida enas intencionalidades queaorientam.
Para Husserl, aracionalidade fenomenologica estavinculada
ahistoria eateleologia. As possibilidades que ateleologia ofe-
recenao saopossibilidades do "ser emsi", mas possibilidades da
liberdade. A condiyao temporal eteleologica do mundo da vida
pode expressar-se com a palavra intencionalidade. A subjetivi-
dade realiza-se na medida emque setranscende asi mesma por
opyoes daliberdade.
Refletir sobre ahistoria, para Husserl, equivale ameditar so-
bre seu sentido. Desta maneira afilosofia husserliana dahistoria
sustenta-se pela ideia de finalidade ou telos. E 0telos ou 0fim,
que orienta ahistoria dahumanidade europeia, consiste nareali-
zayao da razao mediante aelaborayao deuma filosofia concebi-
da como saber fundamental, uno euniversal: "0teZos espiritual
dahumanidade europeia, no qual estacompreendido 0teZos par-
ticular das nayoes singulares e dos homens individuais, situa-se
num infinito, e uma ideia infinita, para a qual tende, por assim
dizer, 0vir-a-ser espiritual global" (Husserliana VI, p. 320-321).
Por meio daanalise dahistoria, HusserI quer deixar manifes-
to 0sentido que orienta os acontecimentos filosoficos ecientifi-
cos damodernidade. Para consegui-Io, precisa retornar ao mun-
do da vida e redescobrir 0teZos subjacente ao mesmo, 0teZos
esquecido pela ciencia e pela tecnica modernas. A recuperayao
do sentido da ciencia passa por urn retorno aestrutura teleologi-
ca do mundo davida. A teleologia coincide comaestrutura ten-
dencial e intencional de todo 0ser. Ter teleologia equivale a
estar orientado para aautorealizayao de si mesmo, para averda-
de de si mesmo, para a propria evidencia. Assim a teleologia
expressa 0dinamismo das coisas enquanto tendem a perfeiyao
numprogresso infinito. A realidade manifesta uma intencionali-
dade universal, significando uma teleologia universal: "Creio
que nos sentimos que a nossa humanidade europeia esta inata
uma enteZequia que domina todas as mudanyas de formas euro-
peias elheconfere 0sentido deuma evoluyao emdireyao auma
forma de vida e de ser para urn polo eterno" (Husserliana VI,
p.320).
HusserI pergunta pela Europa: que eEuropa? Enquanto nao
e urn marco geografico, mas urn espayo humano, urn modo de
vida, uma possibilidade humana surge a pergunta: que e 0ho-
mem europeu? E 0projeto de humanidade esboyado na antiga
Grecia, do qual a Europa se sente herdeira, apenas urn igual a
outros?
HusserI centra suas reflexoes no projeto Europa, vinculado
ao comeyo da fenomenologia e, ao mesmo tempo, apresenta a
fenomenologia como 0teZos ecumprimento daintenyao filosofi-
ca. Esta convencido de que aEuropa eurnprojeto de racionali-
dade universal, da qual europeus tomaram consciencia reflexa.
Europa eurn projeto de configurar-se apartir darazao, a partir
do exercicio racionallivre decomunidade, expresso emsuafilo-
sofia. Estarepresenta umanovaetapanahistoria dahumanidade,
uma etapanecessaria para continuar 0desenvolvimento humano.
A etapa daracionalidade autoconsciente desi mesma supoe uma
racionalidade implicita emetapas anteriores. Os filosofos devem
colocar-se a serviyo dos fins da filosofia, ou seja, a serviyo de
umanovahumanidade.
8.4 A perspectiva fiZos6fica
A crise atual terncomo causa principal 0objetivismo cienti-
fico reinante, pois este esqueceu 0mundo davida ea subjetivi-
dade transcendental. As ciencias reduziram-se a puro conheci-
mento dos fatos, reduzindo 0saber e 0homem ameras coisas.
Por isso "0objetivismo ou ainterpretayao psicofisica do mundo,
apesar de sua evidencia aparente, nao passa de uma unilaterali-
dade ingenua". E preciso, segundo HusserI, superar aingenuida-
de do racionalismo objetivista para recuperar urn racionalismo
autentico, "capaz de compreender os problemas do espirito".
Ora, a experiencia do mundo da vida ocorre a niveis pre-cien-
tificos. A ciencia, ao contrario, procede deurn mundo ja consti-
tuido, pre-dado. HusserI quer recuperar esta esferapre-cientifica
davida ecriar consciencia de que 0saber eapenas uma dimen-
saDparcial do mundo davida. Este emuito mais amplo emuito
mais rico que0mundo daciencia. A fundamentayao das ciencias
remete, pois, aurncampo deevidencias primeiras as quais cons-
tituem0mundo davida. Desta forma as ciencias manifestam-se
como meras construyoes de outras evidencias mais origimlrias,
ouseja, as evidencias doLebensweZt. Comisso 0saber cientifico
define-se como mero processo de idealizayao da realidade con-
creta, cuja consciencia se verifica no mundo da vida. A crise
consiste, pois, no fato de areduyao objetivista do saber ter des-
vinculado a atividade cientifica do mundo concreto do homem.
A ciencia assim fonnalizada nada tern a dizer ao homem sobre
suas necessidades vitais, perdendo 0sujeito como suporte de
experiencias pessoais e das intencionalidades que motivam os
atos humanos.
Para Husser!, asupera<;aoda crise aconteceni quando afilo-
sofiaseinteressar denovo pelo homemesuas cria<;oesculturais,
pela sociedade e seus sistemas de valores. Sera preciso que a
filosofia se distancie do fonnalismo cientifico e seaproxime do
mundo davida, ou seja, dosproblemas concementes it existencia
humana. A matematiza<;aoe fonnaliza<;ao da ciencia modema,
segundo ele, produzem efeitos desconcertantes nas "humanida-
des" ena filosofia. As pretensoes de urnmetodo unico, de uma
linguagem unificada eunivoca conduzem auma redu<;aofisico-
matematica do ser, daracionalidade edaverdade. Aplica-se uma
fisica ao psiquico, submetendo-a aurnprocesso deobjetiva<;aoe
idealiza<;ao, que perde as dimensoes subjetivas da vida espiri-
tual. A redu<;aodo psiquico ao fisico implica uma total depen-
dencia do primeiro emrela<;aoao segundo. Comisso aliena-se 0
mundo do sujeito no mundo do objeto. 0psic610goconverte-se
emfisico daalma (psique).
Husser! quer recuperar ainstancia transcendental para supe-
rar a crise das ciencias e da civiliza<;aomodema. Para tanto e
preciso desenvolver urn saber que interprete a realidade como
autoexegese do eu (Selbsfauslegung) a partir das vivencias ori-
ginarias do sujeito, deseuLebenswelt. S6reconhecendo arazao
e a liberdade como atributos da subjetividade podera libertar-se
o homem de processos objetivantes que esquecem 0mundo da
vidaconcreta.
Ser homem e, na concep<;aohusser!iana, urn processo cons-
tante in fieri, sempre perfectivel, commaior ou menor aproxi-
ma<;aode urn ideal. Esteprocesso eregido pelo eidos do huma-
no, ou seja, pela razao. Ser homem e, antes detudo, possibilida-
de, pois todo 0homemencontra-se orientado pela racionalidade.
Tomar consciencia dessa orienta<;aopara arazao constitui outro
processo hist6rico. Na teoria como na pr<itica,0homem desen-
volve sua orienta<;aoteleol6gica tomando consclencia de sua
entelequia racional. Emqualquer situa<;ao0homemtranscende 0
plano dos fatos ao exercer a critica dos mesmos e fonnular no-
vosprojetos quethepennitam supera-Ios.
A cultura ocidental, desde 0pensamento grego, realiza-se
sobre ateleologia. 0sentido dahist6ria coincide comarealiza-
<;aodarazao eisso significa: "A razao e0especifico do homem,
enquanto essencia, que plasma sua vida ematividades ehabitos
pessoais". A vida e urn vir-a-ser continuo, penetrado por uma
intencionalidade a desenvolver-se. Nao e 0metoda nem 0uni-
verso de idealidades que conferem sentido as ciencias modemas
mas 0mundo davida enquanto suporte detoda atividade te6rica
epratica. 0mundo da vida do sujeito e0lugar queda sentido e
finalidade ao agir eser.
Husser! constata a crise como urn fato pre-hist6rico ebusca
nahist6ria suas causas esolu<;oes.Nisso estaumanovaperspec-
tiva da fenomenologia. 0ego transcendental agora aparece co-
mo razao hist6rica. Husser! enfrenta a hist6ria nas tres dimen-
soes constituintes da temporalidade: a) 0presente enquanto si-
tua<;aode crise; b) 0passado filos6fico e cientifico enquanto
genese do presente; c) 0futuro enquanto felos que orientara a
supera<;aodacrise mediante arecupera<;aodeumaracionalidade
universal.
Os pensadores, inseridos numa tradi<;aomovida pel a ideia-
fim, compartilham a racionalidade teleol6gica, que preside 0
acontecer hist6rico econtribuem para arealiza<;aodo felos para
o qual a hist6ria se encaminha. 0felos encontra-se no presente
como 0"intendido" e "antecipado". Os projetos filos6ficos en-
camam uma intencionalidade legada pela tradi<;aoe assumida
pelos pensadores. A reflexao sobre 0passado ajuda a esclarecer
o que os fil6sofos ea filosofia intencionam ou pretendem. Cada
fil6sofo nutre-se da hist6ria. A medita<;aohist6rica de Husser!
pennite descobrir que tipos de racionalidade e sentido presidem
o acontecer europeu. Para isso, todavia, precisa transcender a
mera narra<;aode fatos hist6ricos para penetrar no sentido illl 'I'_
no dos mesmos, nateleologia intema queos orienta. 0pensador
recorre a historia nao como ingenuo compilador de dados ou
critico de documentos, mas como leitor de urnpassado desde a
perspectiva de urn presente constituido por seu proprio mundo
espiritual. 0filosofo busca averdade interior que escapa ao po-
sitivismo historicista: "Pelo fato de conceber ideias, 0homem
toma-se urn homem novo, que, vivendo na finitude, se orienta
para0polo do infinito".
Segundo HusserI, ateleologia conduz necessariamente para
ahumanidade verdadeira eautentica na praxis humanado futu-
ro. A garantia para tal realizayao encontra-se, no seu principio,
emDeus. Afirma Husserl que, se0homem eurn ser racional, 0
e somente na medida emque toda sua humanidade e humani-
dade racional, orientada de urn modo latente para a razao ou
abertamente orientada para a entelequia que orienta 0processo
humano conscientemente para 0futuro.
Na pratica ena teoria, 0homem desenvolve sua orientayao
teleologica, tomando consciencia de sua entelequia racional.
Deus e0fundamento ultimo da teleologia. HusserI pensa Deus
como urn conceito-limite. Inclusive para 0ateu, diz emIdeias
1, a ideia de Deus e urn conceito limite. Mas, a teleologia
tambem tern suas condiyoes de possibilidade. POI isso a redu-
yao transcendental deve dar 0passo para 0absoluto incondi-
cionado.
Na logica formal etranscendental, HusserI sehavia referido
a Deus como Leisfung, resultado da atividade constituinte da
consciencia, que, adverte ele, nao significa "que eu invente ou
produza a suprema transcendencia". Tambem 0 alter ego e
transcendente, nao sendo produto daconsciencia. E este carater
detranscendencia que faz HusserI falar da id6ia de Deus como
conceito-limite.
Entretanto Deus e, para Husserl, nao apenas urn conceito-
limite nem apenas urn ideal regulador da razao, mas a "subs-
tancia absoluta" que se da no fim da reduyao transcendental.
Situa 0tema de Deus num plano claramente ontologico, real.
Diz que "Deus fala emnos, fala na evidencia de nossas deci-
soes, que, atraves detoda afinita mundanidade, apontam para a
infinitude". Esta minha orientayao ao infinito e meu criterio,
segundo HusserI, demoralidade, avoz deminha consciencia, a
voz de Deus. Todos os caminhos retos conduzem aDeus. E os
caminhos orientados ao infinito sao retos e me conduzem a
Deus emsolidariedade comos outros "eus".
A filosofia husserIiana descobre Deus como 0principio te-
leologico daracionalidade do curso pratico dahistoria humana.
Neste senti do afirma que "a filosofia fenomenologica como
ideia que jaz no infinito e naturalmente feologia n. Assim a
fenomenologia cientifica e seu "caminho a-religioso a reli-
giao", seu "caminho a-teu para Deus". 0 problema de Deus
pertence ao dominio da cosmovisao de Husserl. Se como filo-
sofo cala a respeito, interiormente dele se ocupa pelo fato de
experimentar aDeus como 0poder do amor que opera tanto em
sua existencia puramente pessoal quanta no destino dahumani-
dade, amor que, atravessando toda a contrariedade, converte
tudo emultima instancia, emalgo born etoda contrariedade em
benyao.
Husserl nao so diagnostica a crise, mas apresenta a feno-
menologia como metodo para supera-Ia. Com ela pretende re-
tomar do mundo artificial e abstrato do objetivismo cientifico
ao mundo davida, buscando 0saber fundamental no campo das
experiencias pre-cientificas e originarias. Pretende restituir 0
sentido originario as ciencias a partir da "funyao fundante" do
"mundo da vida", que e 0problema anterior e universal pan
todas as clencias. A fenomenologia propoe-se ser urn metoda
no qual todo 0conhecimento seconstr6i emreferencia asubje-
tividade. Desta forma afenomenologia entende-se na funyao de
"filosofia primeira", paradigma detodo 0saber, que tendo sen-
tido em si mesma 0confere as demais ciencias. Tematiza a
subjetividade transcendental enquanto origem e raiz de toda a
intencionalidade esentido, pois aciencia eurnproduto humano
que parte de uma intuiyao pertencente ao mundo da vida, fun-
damento ultimo das ciencias. A fenomenologia assume, pois, a
tarefa de urn filosofar radical como novo comeyO absoluto:
"0 maior perigo que amear;a a Europa e 0 cansar;o. Lutemos
contra este perigo como bons europeus com aquela valentia
que nao se rende nem ante uma luta infinita. Entao ressuscita-
ra do incendio destruidor da incredulidade, do fogo no qual se
consome toda a esperanr;a na missao humana do Ocidente, das
cinzas do enorme cansar;o, 0fenix de uma nova interioridade
de vida e de espiritualizar;ao, como garantia de umfuturo hu-
mana grande e duradouro pois s6 0espirito e imortal".
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A CRISE DA HUMANIDADE
EUROPEIA E A FILOSOFIA*
o texto A crise da humanidade europeia e a filosofia tern diversas versoes. No
Arquivo Husserl deLovaina ha dois textos datilografados de E. Fink. Na Husserlia-
naVI (p. 314-348) foi publieada aversao a), que emais ampla que ab). Nos tradu-
zimos 0texto b), publieado na ediyao bilingiie (alemao e franees) por Paul Ricoeur
sob 0titulo La crise de l'humanite europeenne et la philosophie (Paris: Aubier,
1987,2. ed.).
Nesta conferencia quero ousar atentativa de suscitar urnno-
vo interesse para 0tao frequentemente tratado tema da crise eu-
ropeia, desenvolvendo a ideia historico-filosofica (ou 0sentido
teleologico) da humanidade europeia. Ao expor a funyao essen-
cial que, neste sentido, ternaexercer afilosofia esuas ramifica-
yoes, que sao nossas ciencias, a crise europeia tambem ganhani
umanova elucidayao.
Partamos dealgo bemconhecido, dadiferenya entre amedi-
cina cientifico-natural e a chamada "medicina naturalista". En-
quanta esta se origina na vida comum do povo, da empiria e
tradiyao ingenuas, a medicina cientifico-natural nasce do apro-
veitamento de conhecimentos de ciencias puramente teoricas,
das ciencias do corpo humano, emprimeiro lugar da anatomia e
da fisiologia. Mas estas, por sua vez, baseiam-se nas ciencias
fundamentais, universal mente explicatorias, da natureza emge-
ral, nafisica enaquimica.
Voltemos agora nosso olhar da corporeidade humana para a
espiritualidade humana, para as chamadas ciencias do espirito.
Nelas 0interesse teorico dirige-se exclusivamente aos homens
como pessoas epara suavida eagir pessoais. Vida pessoal eurn
viver em comunidade, como eu enos, dentro de urn horizonte
comunitario. E precisamente emcomunidades de diferentes es-
truturas, simples ou complexas, tais como familia, nayao e su-
per-nayao. A palavra vida aqui nao tern sentido fisiologico, e
uma vida cuja atividade possui fins, que cria formas espirituais:
vida criadora de cultura, emsentido mais amplo, numa unidade
historica. Tudo isso e tema das diversas ciencias do espirito.
Evidentemente ha diferenya entre prosperar vigorosamente e
degenerar, ou, como tambem sepoderia dizer, entre saude edo-
enya, tambempara as comunidades, ospovos, os estados. Surge,
pois, sem dificuldade, a pergunta: Como se explica que, neste
plano, nunca sechegou auma medicina cientifica, auma medi-
cina das nayoes e das comunidades supra-nacionais? As nayoes
europeias estao enfermas. Diz-se que a propria Europa esta em
uma crise. Nao faltam os curandeiros. Estamos submersos num
verdadeiro diluvio depropostas ingenuas eexaltadas dereforma.
Mas por que aqui as ciencias do espirito, tao ricamente desen-
volvidas, nao prestam 0 serviyo que as ciencias da natureza
cumpremexcelentemente emsuaesfera?
Aqueles que estao familiarizados com0espirito das ciencias
modemas poderao responder sem dificuldade: a grandeza das
ciencias da natureza consiste emelas nao se conformarem com
umaempiria sensivel porque, paraelas, todaadescriyao danatu-
reza so e uma passagem metodica para a explicayao exata, em
ultimo lugar, fisico-quimica. Os mesmos opinamqueas ciencias
"meramente descritivas" nos prendem as finitudes do mundo
circundante terreno. Mas aciencia danatureza matematico-exata
abrange, com seu metodo, as infinitudes em suas efetividades
(in ihrer Wirklichkeiten) e possibilidades reais (und realen
Moglichkeiten). Entende 0sensivelmente dado como mero fe-
nameno subjetivamente relativo eensina ainvestigar os elemen-
tos eas leis damesma natureza supra-subjetiva (anatureza "ob-
jetiva") comaproximayao sistematica naquilo que tern de abso-
lutamente universal. Ao mesmo tempo ensina aexplicar todas as
concreyoes sensivelmente dadas, sejam homens, sejam animais
"ou" corpos celestes apartir do existente, emultima instancia, a
saber, antecipando, a partir dos respectivos fenomenos fatica-
mente dados, as futuras possibilidades eprobabilidades, emuma
extensao e comuma precisao que excede toda a empiria sensi-
velmente determinada. 0 resultado do desenvolvimento das
ciencias exatas tern sido uma verdadeira revoluyao na domina-
yaoU:cnicadanatureza.
Infelizmente e muito diferente, pOl'razoes intemas, a situa-
yao metodologica nas ciencias do espirito. A ordem do espirito
humane esta baseada na physis humana; toda a vida psiquica
individual humana estafundada nacorporeidade, pOl'conseguin-
te, tambemtoda acomunidade, nos corpos dos hornens individu-
ais que sac membros desta comunidade. Se, pois, se quiser tor-
nar possivel, para os fenomenos cientifico-espirituais, uma ex-
plicayao real mente exata e, emconseqiiencia, uma praxis cienti-
ficamoabrangente como naesfera danatureza, entao os homens
daciencia do espirito nao deveriam soconsiderar 0espirito, mas
retomar ao suporte material eelaborar suas explicayoes pOl'meio
da fisica e da quimica exatas. Mas tal intento fracassa (e nada
mudara nisso num futuro proximo) diante da complicayao da
necessaria investigayao psico- fisica exata, ja emvista do hornem
individual e mais ainda com respeito as grandes comunidades
historicas. Se 0mundo fosse urn edificio de dois andares de -
realidades natureza e espirito - com igualdade de direito, nc-
nhuma dependente metodologica e objetivamente emrelayao a
outra, enmo a situayao seria diferente. Mas so a natureza pode
ser tratada como mundo fechado pOl'si, so aciencia danatureza
pode, cominquebrantada conseqiiencia, abstrair detodo 0espiri-
tual e investigar a natureza puramente como natureza e eia e 0
suportecausal do espirito. Compreende-se, assim, que0especia-
lista das ciencias do espirito, que se interessa puramente pelo
espiritual como tal, nao ultrapasse uma historia do espirito; fica
presQ as realidades finitas de ordem intuitiva. Cada exemplo
atesta: e impossivel fazer abstrayao demaneira coerente do ele-
mento corporal, se se quiser cercar teoricamente, de maneira
analoga como na natureza, urn mundo concreto fechado, urn
mundo puro do espirito. POI'exemplo, urn historiador nao pode
tratar da historia da Grecia antiga semconsiderar sua geografia
fisica, sua arquitetura, e sem considerar, outrossim, 0aspecto
material dos edificios, etc., etc. Tudo isso parece claro.
Mas, setodo 0modo depensar, que semanifesta emtal in-
terpretayao, estivesse baseado empre-juizos funestos epOl'suas
repercussoes fosse corresponsavel pela enfermidade europeia?
Comefeito, esta eaminha convicyao eainda veremos que aqui
ha tambem uma fonte essencial da cegueira dos cientistas mo-
demos para apossibilidade defundamental' umaciencia rigorosa
euniversal do espirito (euma ciencia quenao soconcorre coma
ciencia danatureza, mas ateestaacimadela).
E do interesse de nosso problema-Europa penetrar aqui urn
pouco mais ~desarraigar a argumentayao a primeira vista con-
vincente. 0historiador, 0investigador do espirito edacultura de
toda ordem, encontra, pOl'certo, entre seus fenomenos constan-
temente tambemanatureza fisica, emnosso exemplo, anatureza
da Grecia antiga. Mas esta natureza nao eanatureza no sentido
cientifico-natural, senao aquilo queos antigos gregos considera-
yamcomo natureza, 0que tinham presente como 0mundo cir-
cundante da realidade natural. De maneira mais completa, 0
mundo circundante historico dos gregos nao e0mundo objetivo,
emnosso sentido atual, mas suarepresentayao do mundo, isto e,
suaconcepyao subjetiva domundo, comtodas as realidades para
eles vigentes destemundo, p. ex., os deuses, os demonios, etc.
Mundo circundante (Umwelt) eurnconceito que tern seu lu-
gar exclusivamente na esfera espiritual. Que nos vivemos em
nosso respectivo mundo circundante, ao qual estao dirigidas
todas as nossas preocupayoes e esforyos, designa urn fate qu'
sucede puramente no plano espiritual. Nosso circum-mulldo '
uma formayao espiritual (ein geistiges Gebilde) em nos . ('III
nossa vida historica. Para quem toma 0 espirito c m< ..p 11111,
nao encontra aqui nenhuma razao para exigir oulra plic u; II
que nao seja a puramente espiritual. Assim pode finnll l, Il(
maneira geral: e urn absurdo considerar a natureza do mundo
circundante como algo por si alheio ao espirito e entao querer
fundamentar, em conseqtiencia, a ciencia do espirito sobre a
ciencia danatureza efaze-la, assim, pretensamente exata.
Evidentemente esqueceu-sepor completo queciencia danatu-
reza (como todaacienciaemgeral) designauma atividadehuma-
na (menschliche Leistungen), a saber, ados cientistas quecoope-
ramentre si; sob esteaspecto, pertence, como todos os processos
espirituais, ao circulo dos fatos que devem ser explicados pelas
ciencias do espirito. Masnao eabsurdo enao constitui urncirculo
querer explicar deurnmodo cientifico-natural 0sucesso hist6rico
"ciencia da natureza", recorrendo a pr6pria ciencia da natureza e
explicando atraves de leis naturais que, como criayao espiritual,
pertencemelasmesmas, aoproblema aresolver?
Ofuscados pelo naturalismo (embora 0combatam verbal-
mente), os cientistas do espirito tern descuidado completamente
ate acolocayao do problema de uma ciencia pura euniversal do
espirito, indagando por uma ciencia eideica (Wesenslehre) do
espirito puramente como espirito, que investigue os elementos e
as leis absolutamente universais que regem a espiritualidade,
com0fimde obter explicayoes cientificas emsentido absoluta-
mente conc1usivo.
As reflexoes dedicadas ate aqui a filosofia do espirito ofere-
cern-nos aperspectiva adequada (rechte Einstellung) para tratar 0
temadasituayao espiritual daEuropa como urnproblema deuma
ciencia pura do espirito (rein geisteswissenschaftliches Problem),
ou seja, primeiro emseu aspecto deumahist6ria do espirito. Co-
mo ja foi dito, por antecipayao, nas palavras introdut6rias, este
metodo deve fazer aparecer uma teleologia singular, inata (ange-
borene) somente anossa Europa, ejustamente emintima relayao
comaorigemou airrupyaodafilosofiaedesuasramificayoes, as
ciencias, no sentido dos antigos gregos. Desde ja pressentimos
que setratara de elucidar as razoes mais profundas da origemdo
funesto naturalismo e, finalmente, devera descobrir-se assim 0
sentido especifico dacrisequeafetaahumanidade europeia.
Colocamos a seguinte questao: 0que caracteriza a estrutura
espiritual (gestige Gestalt) da Europa? Portanto nao a Europa
compreendida geografica ou cartograficamente como se se pre-
tendesse delimitar 0circulo dos hornens que vivemjuntos sobre
omesmo territ6rio como sendo ahumanidade europeia. Emsen-
tido espiritual, a Europa engloba manifestamente os domini os
ingleses, os EE.UU., etc. Trata-se aqui de uma unidade de vida,
de uma ayao, de uma criayao de ordem espiritual, inc1uindoto-
dos os objetivos, os interesses, as preocupayoes eos esforyos, as
obras feitas comumaintenyao, as instituiyoes eas organizayoes.
Nelas atuam os individuos dentro de sociedades multiplas de
diferentes graus de complexidade, em familias, rayas, nayoes,
nas quais todos parecem estar interior eespiritualmente vincula-
dos uns aos outros e, como disse, na unidade de uma estrutura
espiritual.
Cada estrutura espiritual, por natureza, situa-seno espayo da
hist6ria universal, ou seja, tern suahist6ria. Seacompanharmos,
pois, asrelayoes hist6ricas, partindo, como enecessario, den6s e
denossas nayoes, acontinuidade hist6rica nos conduzira sempre
mais longe, denayao emnayao, deepocas emepocas. Enfim, na
Antigtiidade, os romanos remetem-nos aos gregos, aos persas e
aos egipcios, etc. E evidente que, neste caminho, nao ha fim.
Retrocedemos aos tempos primitivos (Urzeit) enao poderiamos
deixar de considerar aobra notivel erica emideias deMenghin
(A hist6ria universal da idade da pedra). Este procedimento
(metodo) faz aparecer a humanidade como uma linica vida de
individuos epovos, unida por relayoes somente espirituais, COI11
uma diversidade de tipos de humanidade e de cultura, ma qtl',
por transiyoes insensiveis, se prendem uns aos outros. I~'(1111)
urnmar, no qual os hornens eos povos sao as ondas qu I \ lill
mam, setransformam elogo desaparecem, encrespando .l 1111111
de maneira mais rica e complicada e outras de 111111l! II t 111111
primitiva.
Entretanto, numexame posterior mais ri oro. I), lllllldll IIIII
o interior, percebemos novas e singulares :11ndill 1111 t
diferenyas tipicas. Por mais hostilizadas queas nayoes europeias
estejam entre si, conservam urn peculiar parentesco interior no
plano espiritual, que as penetra atodas etranscende as diferen-
yas nacionais. E como urn layo que une irmaos e nos da, nesta
esfera, uma consciencia patria (das Bewusstsein einer Heimatli-
chkeit). 1sto salta aos olhos tao logo queiramos penetrar, por
exemplo, na historia daindia, comsuamultidao depovos efor-
mayoes culturais. Neste conjunto existe, por sua vez, a unidade
de urn parentesco familiar, mas e incompreensivelmente estra-
nho para nos. Por seu lade, os povos da india nos sentemcomo
estranhos e so a si entre si como procedentes de urn lugar co-
mum. Contudo agentenao sepode contentar comesta diferenya
deessencia relativizada, sobmuitos aspectos - entre comunidade
de origem (Heimatlickeit) erelayoes de estranheza (Fremdheit),
embora seja uma categoria fundamental detoda ahistoricidade.
A humanidade historica nao searticula demaneira invariavel de
acordo comesta categoria. Isto sentimos precisamente emnossa
Europa. Nela ha alguma coisa singular, que tambem todos os
outros grupos dahumanidade percebem como algo que, prescin-
dindo de todas as considerayoes de utilidade, se converte para
eles num motive de maior ou menor europeizayao, apesar da
vontade inquebrantavel da autoconservayao espiritual, enquanto
nos, senos compreendemos retamente, jamais, p. ex., nos india-
nizaremos. Creio que nos sentimos (e apesar'de toda obscurida-
de, este sentimento provavelmente tern sua razao) que a nossa
humanidade europeia esta inata uma entelequia que domina to-
das as mudanyas de formas europeias etheconfere 0sentido de
umaevoluyao emdireyao aurnpolo etemo. Nao como seaqui se
tratasse de uma das conhecidas finalidades que conferem seu
carater ao reino fisico dos seres organicos; ou seja, aqui nao se
trata de algo como uma evoluyao biologica que, apartir deuma
forma embrional, conduz emgraus sucessivos, ate amaturidade,
o envelhecimento e amorte. Por essencia, nao ha uma zoologia
dos povos. Estes constituem unidades de ordem espiritual que
nao tern - e sobretudo nao a tern a supra-nayao Europa - ne-
nhuma forma madura, ja alguma vez alcanyada ejamais alcan-
yavel como forma. A humanidade psiquica nunca foi acabada e
nunca0sera. 0telos espiritual dahumanidade europeia, no qual
estacompreendido 0telos particular das nayoes singulares edos
homens individuais, situa-se num infinito, e uma ideia infinita,
para a qual tende, por assim dizer, 0vir-a-ser espiritual global.
A medida que, no proprio desenvolvimento, setoma consciente
como telos, toma-se tambem meta pratica da vontade (Willens-
ziel), iniciando comisso uma nova forma de evoluyao, colocada
sobdireyao denormas eideias normativas.
Tudo isso nao pretende ser uma interpretayao especulativa
de nossa historicidade, mas expressao de urn pre-sentimento
vivo, que emerge numa reflexao imparcial. Este pre-sentimento
serve-nos de guia intencional (intentionale Leitung) para discer-
nir, nahistoria daEuropa, relayoes sumamente significativas, em
cuja perseguiyao 0 pre-sentido se toma certeza controlada.
opre-sentimento e, emtodas as ordens dedescoberta, 0detector
(Wegweiser) afetivo.
Vamos a explicayao. A Europa (nao designa uma onda pas-
sageira, mas) tern urn nascimento precise e urn lugar de nasci-
mento, natural mente espirituais. Encontra-se empessoas indivi-
duais como membros deuma nayao singular. A Europa tern urn
lugar denascimento. Comisso nao pense numterritorio geogra-
fico, embora tambem tenha tal, mas no lugar espiritual de nas-
cimento, emuma nayao, ou emindividuos ou grupos humanos
destanayao. Tal nayao eaGrecia antiga do seculo VII eVI a.C.
Nela surge uma nova atitude de individuos para com0mundo
circundante. E, como conseqiiencia, irrompe urn tipo totalmente
novo de criayoes espirituais, que rapidamente assumiu as pro-
poryoes de uma forma cultural bem delimitada. Os gregos cha-
maram-nafilosofia. Corretamente traduzido, conforme 0sentido
original, este termo e urn outro nome para ciencia universal, a
ciencia datotalidade do mundo, daunidade total detodo 0exis-
tente. Bern depressa corneya0interesse pelo universo ecomele
aindagayao pelo devir que engloba todas as coisas epelo ser no
devir, especifica-se segundo as formas eregioes gerais do ser e,
desta maneira, a filosofia, a cii.~nciauna, se ramifica emmulti-
plas ciencias particulares.
Na irrupyao dafilosofia tomada neste sentido, incluindo nela
todas as ciencias, por paradoxal que pareya, vejo 0fen6meno
original (Urphiinomen) que caracteriza a Europa sob 0aspecto
espiritual. Mediante as explicayoes mais detalhadas, apesar de
sua inevitavel brevi dade, logo sera dissipada a aparencia do pa-
radoxo.
As palavras filosofia, ciencia, designam uma classe especial
de criayoes culturais (Kulturgebilde). 0 movimento historico,
que ternpor estilo a forma supra-nacional, quechamamos Euro-
pa, tende para uma estrutura normativa situada no infinito, mas
quenao sepode constatar atraves de umamera observayao con-
siderando somente a evoluyao de formas sucessivas. 0perma-
nente estar-dirigido aumanorma einerente avidaintencional de
pessoas singulares, eapartir dai denayoes ede suas sociedades
particulares e, finalmente, do organismo das nayoes unidas da
Europa. Semduvida, nemtodas as pessoas estao dirigidas para
estanorma: nas personalidades deelite (estaorientayao) nao esta
plenamente desenvolvida, mas encontra-se numprocesso neces-
sario econstante depropagayao. Ao mesmo tempo, esse proces-
so significa uma transformayao progressiva detoda ahumanida-
de apartir da formayao deideias, que adquiremeficacia emcir-
culos pequenos e muito reduzidos. Ideias, formas significativas
nascidas empessoas singulares comamaravilhosa maneira nova
deabrigar emsi infinitudes intencionais, nao sao como as coisas
reais no espayo, que nao mudam 0proprio homem, que seinte-
ressa ou nao por elas. Pelo fato de conceber ideias, 0homem se
toma urnhomemnovo, que, vivendo na finitude, seorienta para
o polo do infinito. Tudo isso tomar-se-a compreensivel, quando
voltarmos as origens historicas da humanidade europeia e dis-
cemirmos 0novo tipo de historicidade que a destaca sobre 0
fundodahistoria universal.
Para comeyar, esclareyamos primeiro a nomvel peculiaridade
da filosofia, ramificada emciencias sistematicas, contrastando-as
com outras formas culturais ja existentes na humanidade pre-
cientifica, como0artesanato, aagriculturae0cultivodocomercio,
etc. Todas elas designamclasses deprodutos culturais, commeto-
dos adequados paraassegurar amelhor produyao (Erzeugung). De
resto, esses produtos tern existenciatransitoriano mundo circun-
dante. Ao contrario, asaquisiyoescientificas, depois deadquirido0
metodo eficaz deproduyao para elas, ternurnmodo de ser euma
temporalidadetotalmentediferentes. Nao seconsomem, nao pere-
cern. Uma produyao reiterada nao cria coisas identicas, quando
muito coisas igualmente utilizaveis. Urn numero qualquer de ope-
rayoesdamesmapessoaedeurnnumero qualquer depessoaspro-
duz identicamente0mesmo, identicosegundo0sentidoeavalida-
de. Pessoas ligadas entre si emcompreensao reciproca atual nao
podemsenao experimentar 0produzido emigual formapelos res-
pectivos companheiros como identicamente 0mesmo comapro-
pria produyao. Numa palavra: 0que a atividade (Tun) cientifica
adquire(erwirbt) nao ealgoreal, mas ideal; mais ainda, 0queas-
sime adquirido, comseu valor e suaverdade, toma-se a materia
paraapossivel criayaodeidealidadesdenivel superior eassimpor
diante. Doponto devistateorico, cadadegrauatingidotoma-seurn
termo puramente relativo, uma passagemtransitoria emdireyao a
finssemprenovos dedegraus, sempremais elevados, conformeurn
processoprevistopara0infinito; essafinalidadeconstitui umatare-
fainfinitaque suscita 0esforyo teorico da consciencia. A ciencia
designa, pois, aideiadeumainfinitudedetarefas. A cadainstante,
umapartelimitadadessastarefas eexecutadae, ao mesmo tempo,
estaconstitui 0fundodepremissasparaurnnovohorizonteinfinito
detarefas como unidadedeumatarefainfinita. Antes dafilosofia,
no horizonte historico, nenhuma outra forma cultural e cultura
comparavel deideias, nemconhecetarefas infinitas etais idealida-
des, cujosmetodos deproduyaopossuemelesmesmos aproprieda-
de ideal de poderem ser repetidos ao infinito e superamtodas as
infinitudesdepessoasreaisoupossiveis.
A cultura extra-cientifica, que a ciencia ainda nao tocou, e
uma tarefa euma atividade do homem na finitude. ahorizonte
aberto einfinito, no qual vive, nao estafechado; os fins quevisa
e as obras que realiza, seu comercio e suas modifica90es, sua
motiva9ao pessoal, coletiva, nacional e mitica, tudo se move
nummundo circundante que pode ser abrangido com urn olhar
finito. Ai nao ha tarefas infinitas, nem aquisi90es ideais cuja
infinitude seja ela mesma 0campo de a9ao do hornem e lhe
apresente as caracteristicas detal campo detrabalho.
Ao contrario, as ideias, os ideais detodo genero, entendidos
no espiritoque, pelaprimeiravez, encontrouurnsentido nafiloso-
fia, carregamtodos emsi mesmo 0infinito. Para nos ainda exis-
tern, fora da esfera filosofico-cientifica, muitos ideais e finitudes
queso adquiriram0carater deinfinitude, detarefas infinitas, pela
transforma9ao dahumanidade atraves da filosofia. A cultura, sob
aideiada infinitude, significaumarevolu9ao do conceito decul-
tura, umarevolu9ao detodo 0modo deser dahumanidade como
criadora de cultura. Significa, outrossim, umarevolu9ao dahisto-
ricidade, que de historia da humanidade finita passou a ser uma
humanidade capaz detarefas infinitas. Estamudan9a primeiro se
produziu nopequeno circulo dos filosofos edapropria filosofia.
Aqui gostaria deresponder auma obje9ao, que logo secolo-
ca, de que a filosofia, a ciencia dos gregos, nao e uma cria9ao
especifica sua, que eles apenas a difundiram no mundo. Eles
mesmos se referem aos sabios egipcios, babilonios, etc. e efeti-
vamente aprenderam muito daqueles. Hoje possuimos numero-
sos trabalhos sobre a filosofia indiana, chinesa, etc. filosofias
que demodo algumsao semelhantes aquela dos gregos. Portan-
to, nao sedeve querer suprimir as diferen9as deprincipio eigno-
rar 0mais essencial. A maneira de colocar metas e, consequen-
temente, 0sentido dos resultados efundamentalmente diferente.
So a filosofia grega conduz, atraves de urn desenvolvimento
proprio, a uma ciencia emforma de teorias infinitas, dentro da
qual ageometria grega, durante milenios, foi urnexemplo emo-
delo. A matematica - a ideia do infinito, das tarefas infinitas -
e como uma torre babilonica, que, apesar de seu inacabamento,
permanece uma tarefa cheia de sentido, aberta ao infinito; este
infinito ternpor correlato 0hornemnovo, demetas infinitas.
Mas, anova humanidade demetas infinitas primeiro so apa-
rece em filosofos singulares no meio de urn universo que con-
serva sua forma antiga. Prometeu traz 0logos divino a alguns
individuos isolados que levam avante a tarefa do espirito que
algum dia iluminara e transformara todo 0universo humano.
Apelaremos aalgummilagre? Naturalmente todo 0conhecimen-
to historico novo ternsuamotiva9ao eeumatarefaespecial ade
esclarecer como seoriginou aquele tipo dehumanidade gregano
seculo VII eVI a.c., no contato comas na90es vizinhas e com
as culturas nacionais, como seproduziu aquela grande mudan9a
de atitude que conduziu ao famoso thaumatzein, que os mestres
do primeiro periodo deapogeu da filosofia, Platao eAristoteles,
consideram aorigemdafilosofia.
Na verdade, so entre os gregos realiza-se, no homemdafini-
tude, umamudan9a radical deatitudepara com0mundo circun-
dante, atitude na qual reconhecemos urn puro interesse pelo co-
nhecimento e, por antecipa9ao, designamos urn interesse pura-
mente teorico. Nao se trata de mera curiosidade desviada da
seriedade davida, comsuapreocupa9ao eesfor90, quevemaser
puro interesse casual pelo puro e simples Ser e pelo Ser-assim
(So-Sein) dos dados do mundo circundante emesmo de todo 0
circum-mundo vital (Lebensumwelt). Este interesse e essencial-
mente analogo aos interesses profissionais e as atitudes profis-
sionais que suscita. Emrela9ao atodos os outros interesses tern
o caniter de urn interesse absolutamente nao-pratico e que en-
volve todo 0universo. ahomem dispoe antecipadamente sobre
toda a vida voluntaria futura e tra9a, em consequencia, 0hori-
zonte que conscientemente sera seu campo de trabalho. Apode-
ra-se, pois, do homemapaixao por urnconhecimento que trans-
cende todapraxis natural davida comseus esfor90s esuas preo-
cupa90es diarias e transforma 0filosofo emespectador desintc-
ressado, emurncontemplador domundo.
Nesta atitude, 0homem contempla primeiro a diversidade
das na90es, apropria eas outras, cada qual comseu mundo cir-
cundante proprio, envolvendo suas tradi90es, seus deuses, seus
demonios, suas potencias miticas, considerando cada na9ao este
mundo simplesmente evidente e real. Neste surpreendente con-
traste surge a diferen9a entre a representa9ao do mundo e 0
mundo real e a nova pergunta pela verdade; nao pela verdade
cotidiana, vinculada a tradi9ao, mas pela verdade unitiria, uni-
versalmente valida para todos aqueles que nao mais estejam
ofuscados pela tradi9ao, uma verdade emsi. :E pr6prio, pois, da
atitude teorica do fi16sofoa decisao constante epredeterminada
deconsagrar toda asuavida futura atarefa dateoria, adar asua
vidaurncarater universal, eaconstruir in infinitum conhecimen-
to te6rico sobreconhecimento te6rico.
Desse modo nasce emalgumas personalidades isoladas, co-
mo Tales, etc. umanovahumanidade; saohomens que, criando a
vida filosofica, a filosofia, sao, por profissao criadores de uma
forma cultural de novo genero. :E compreensivel que, emsegui-
da, surja uma correspondente nova rela9ao de convivencia co-
munitaria. Essas forma90es ideais da teoria, gra9as auma com-
preensao e cria9ao renovadas, de imediato tornam-se objeto de
urn amor comum e de uma ad09ao comum. Conduzem, sem
mais, ao trabalho em comum, a colabora9ao mutua atraves da
critica. Tambem os que estao de fora, os nao-fiI6sofos, voltam-
se atentos a este trabalho ins6lito. Por sua vez, se 0compreen-
dem, convertem-se tambem eles em fi16sofos; se estao muito
absorvidos por suaprofissao, tornam-se aprendizes. Desse modo
a filosofia se propaga de dupla maneira, como uma crescente
comunidade profissional dos filosofos e como urn movimento
comunitario crescente dedicado aeduca9ao. Mas aqui origina-se
a fatal divisao interior daunidade do povo emgente culta e in-
culta. Evidentemente estatendencia depropaga9ao nao tern seus
limites na na9ao patria. Ao contrario de todas as outras obras
culturais, elanao eurnmovimento deinteresse vinculado aosolo
da tradi9ao nacional. Tambem os estrangeiros iniciam-se no
saber eparticipam, emgeral, napoderosa transforma9ao cultural
que irradia dafilosofia. :E precisamente isto que sedeve caracte-
rizar melhor.
Da filosofia, que se propaga sob a forma de investiga9ao e
dea9ao educativa, parte urnduplo efeito espiritual. Por urnlado,
o mais essencial da atitude teorica do hornemque filosofa e a
peculiar universalidade dapostura critica, decidida a nao admi-
tir, semquestionar, nenhuma opiniao aceita, nenhuma tradi9ao,
mas questionar todo 0universo tradicional pre-dado por sua
verdade em si, por sua idealidade. Mas isso nao e apenas uma
nova postura de conhecimento. Emvirtude da exigencia desub-
meter toda aempiria anormas ideais, as da verdade incondicio-
nal, aparece, de imediato, uma mudan9a de grande alcance em
toda apraxis da existencia humana, portanto, detodaavida cul-
tural. Estaja nao sedeve reger pela ingenua empiria cotidiana e
pela tradi9ao, mas pela verdade objetiva. Dessa maneira, a ver-
dade ideal converte-se em urn valor absoluto que traz consigo
uma praxis universalmente transformada no movimento de for-
ma9ao cultural e sua constante repercussao na educa9ao dos jo-
Yens. Se considerarmos mais atentamente a indole desta trans-
forma9ao, compreenderemos imediatamente 0que e inevitavel:
seaideiageral deverdade emsi seconverte emnorma universal
detodas as realidades edetodas as verdades relativas, que apa-
recem na vida humana, isso afeta tambem a todas as normas
tradicionais, as do direito, da beleza, da finalidade, dos valores
humanos dominantes, valores decarater pessoal.
Surge, assim, umahumanidade especial eumaprofissao espe-
cial comanovacria9ao(Leistung) deumacultura. 0conhecimen-
to filosofico do mundo origina nao so esses resultados especiais,
mas urn comportamento que repercute de imediato em todo 0
resto da vida pratica, comtodos os seus fins e sua atividadc, 011
seja, os fins da tradi9ao historica, na qual somos engendrados
dai adquiremseuvalor. Forma-se uma comunidade nova' . pIj
tual (innige), poderiamos dizer, uma comunidade pura I' illl I
ses ideais entre os homens que sededicam a filosolill\ IIl1illo lit
dedica9
ao
as ideias quenao sosaDllteisparatodos, mas s.aoiden-
ticamente patrimonio de todos. Constitui-se, necessanamente,
umacomunidade detipo especial, naqual cadaurntrabalha com.
0
outro epelo outro, exercendouma criticaconstru~ivae~~ene~clO
mutuo, ena qual secultivamos valores puros emcondlclona;s ~a
verdade como urnbemcomum. A isso seacrescenta atendencla
necessaria da transmissao desse tipo de interesse, fazendo com-
preender aoutros 0quesequis eobteveeatendencia de.incorpo-
rar pessoas semprenovas, aindanao-filosofos, nacom~m~ade~os
quefilosofam. Issoprimeiramente ocorredentr? da?r?pna ~a9a~.
A propaga9ao nao pode obter exito, seserestnnge amvestlga9
ao
cientificaprofissional, mas ocorre para alemdo circulo deprofis-
sionaiscomo movimento deeduca9aocultural.
Que ocorre se estemovimento cultural se estende a.c~rculos
do povo cada vez mais amplos e, naturalmente, aos dmgentes
superiores menos absorvidos comapreocupa9ao da vid~? E evi-
dentequenao seproduz simplesmente umatransform
a
9
ao
homo-
geneadavida no quadro do Estado nacional, mas.eprovave~que
originegrandes tensoes intemas, quelevamestavIdae0conJ unto
daculturanacional aurnestado subversivo. Combater-se-ao entre
si os conservadores satisfeitos comatradi9ao e0circulo dos filo-
sofos numa luta que, certamente, se travara na esfera do poder
politico. J anaauroradafilosofiacome9aapersegui9~0, 0despre-
zo dos filosofos. E, apesar disso, as ideias saDmms fortes que
todas as foW
as
empiricas. Deve levar-se emconta tambemque.a
filosofia surge de uma atitude criticauniversal contra tudo tradl-
cionalmente pre-estabelecido e nao e detida em sua propag.a9ao
pelas barreiras nacionais. So que a capacidade para uma atltude
criticauniversal que, na verdade, tambemtern seus pressupostos,
ja deve estar presente aurn certo estado dacultura pre-cientifica.
Desse modo, a subversao da cultura nacional pode estender-se,
primeiro na medida emque a ciencia universal, ela mes~a .e~
vias de progresso, se toma urn bem comumpara as na90es m~-
cialmente estranhas umas as outras, eaunidade deuma comum-
dadecientifica ecultural penetraamaioriadasna90es.
Ainda devemos acrescentar algo importante no que serefere
aatitude dafilosofiapara comastradi90es. Devemconsiderar-se
duas possibilidades: ou os valores tradicionais sao totalmente
rejeitados ou se assume seu conteudo a urn nivel filosofico e,
assim, recebe uma forma nova no espirito daidealidade filosofi-
ca. Urn caso singular e0da religiao. Aqui quero deixar de lado
as "religioes politeistas". as deuses no plural, as potencias miti-
cas detoda indole, sao objetos do mundo circundante damesma
realidade que 0animal ou 0homem. Na n09ao deDeus eessen-
cial 0singular. Visto do lado humano, implica quesuaqualidade
de ser ede valor seja experimentada pelo homemcomo vinculo
interior absoluto. E aqui facilmente se confunde esse absoluto
comaquele daidealidade filosofica. No processo geral deideali-
za9ao que procede da filosofia, Deus, por assim dizer, e logici-
zado e inclusive toma-se portador do logos absoluto. Estou in-
clinado aver, alemdisso, 0logicoja no fato dequeareligiao se
apoia teologicamente na evidencia dafecomo umamaneira sin-
gular e profunda de fundamenta9ao do verdadeiro ser. Mas os
deuses nacionais estao ai inquestionavelmente como fatos reais
do mundo circundante. Antes da filosofia nao se formulam per-
guntas gnosiologico-criticas, nemquestoes deevidencia.
Agoraja delineamos, no essencial, aindaqueesquematicamen-
te, amotiva9aohistorica, quetomacompreensivel como, apartir de
algunshomens isoladosnaGrecia, podedesenvolver-seumatrans-
formac;aoda existenciahumana ede todaa suavidacultural, pri-
meiro emsua propria na9ao e depois nas na90es mais proximas.
Mas, aomesmo tempo, tambemsepodever comopodesurgir uma
supra-nacionalidade de indole totalmente nova. Refiro-me, natu-
ralmente, aestruturaespiritual daEuropa. J anao setratadesimpl ~
justaposi9ao dediferentes na90es, que so influenciamumas as 011
traspelafilia9ao,pelocomercioounos camposdebatalha, mnH 11111
novo espirito de livre critica e de normas orientadas )):.lnl t 11\ II
infinitas, oriundas da filosofiae das ciencias particular'. II II 11\
pendentes, govema a humanidade e cria ideais n vos 1111111\1
Existemtais para os homens individuais denbo c1', \I' II1\
Tambem eu estou convencido de que acrise europeia se ar-
raiga emuma aberrayao doracionalismo. Mas isto nao me auto-
riza a crer que aracionalidade como tal e prejudicial ou que na
totalidade da existencia humana so possua uma significayao su-
balterna. Certamente a racionalidade naquele sentido elevado e
autentico (e so falamos deste), no sentido origimirio que the de-
ram os gregos e que se converteu emideal do periodo chissico
dafilosofia grega, necessitava todavia demuitas reflexoes escla-
recedoras, mas ela eachamada adirigir, demodo seguro, 0de-
senvolvimento da humanidade. De outra parte, concedemos de
born grado (enisto 0idealismo alemao ja nos precedeu ha mui-
to) que a forma evolutiva que tomou a ratio como racionalismo
do periodo do iluminismo (Aujkliirung) foi uma aberrayao, em-
bora umaaberrayao compreensivel.
Razao eurn titulo muito amplo. 0homem, segundo aboa e
velha definiyao, e 0ser vivente racional, e neste sentido amplo
tambem 0papua e urn homem e nao urn animal. Tambem ele
persegue seus fins e procede reflexivamente, submetendo as
possibilidades praticas a reflexao. As obras e os mdodos, na
medida emque sedesenvolvem, formamatradiyao esempre de
novo podem ser compreendidos emsua racionalidade. Mas co-
mo 0homem, e inclusive 0papua, representa urn novo estadio
zoologico frente ao animal, assim tambem a razao filosofica
representa urn novo estadio nahumanidade eemsuarazao. Mas
o estadio da existencia humana edas normas ideais para tarefas
infinitas, 0estadio daexistencia sub specie aeterni, so epossivel
na universalidade absoluta, precisamente na universalidade
compreendida, desde 0principio, na ideia de filosofia. A filoso-
fia universal com todas as ciencias particulares, constitui, pOl'
certo, urnaspecto parcial dacultura europeia. Mas toda a minhu
interpretayao implica que esta parte exerce, por assim diz'r, ()
papel de cerebro, de cujo funcionamento normal dependc a v'1'-
dadeira saude espiritual da Europa. 0 humano da humanidu Ie
superior ouarazao exige, pois, uma filosofia autentica.
para as proprias nayoes. Enfim, existemtambem ideais infinitos
para a sintesecada vez mais ampla das nayoes, na qual cadauma
delas, precisamente, por tender, no espirito da infinitude, ao seu
proprio ideal, da 0melhor de si as nayoes aelaassociadas. Neste
dar e receber eleva-se a totalidade supra-nacional com toda sua
hierarquia de estruturas sociais; 0espirito, que ahabita, nasce de
uma tarefa infinita, que ela mesma articula superabundante em
multiplos infinitos, permanecendo, unica. Nesta sociedade total,
regidapelo ideal, a filosofiae1amesma .conservasuafunyao diri-
genteesuapeculiar tarefainfinita; afunyaodereflexao livre, uni-
versal, teorica que abrange igualmente todos os ideais e 0ideal
total, portanto 0sistema de todas as normas. A filosofia devera
exercer, constantemente, no seiodahumanidadeeuropeia, suafun-
yaodiretriz(die archontische) sobretodaahumanidade.
Mas agora devemos prestar atenyao aos mal-entendidos ees-
crupulos que senutremdaforyasugestiva dos pre-juizos damo-
daedesuas fraseologias.
oqueaqui foi expostonao eumatentativamui pouco oportu-
na de reabilitar, em nosso tempo, a honra do racionalismo, do
iluminismo (Aujkliirerei), do inte1ectualismo perdido em teorias
alheias ao mundo real, comsuas conseqiiencias inevitavelmente
desastrosas, damaniadaculturavazia, doesnobismo intelectualis-
ta? Nao significa isso querer retomar aquela ilusao fatal de quea
ciencia torna 0homem sabio, de que e chamada acriar uma hu-
manidade autentica, senhoradeseu destino? Quemainda levaraa
seriotaispensamentos hoje?
Tal opiniao certamenteternurngraozinho deverdade esejus-
tifica parcialmente para a fase de desenvolvimento europeu do
seculo 17ao seculo 19. Mas nao atinge 0sentido proprio demi-
nha interpretayao. Parece-me que eu, 0pretenso reacionario, sou
mais radical emais revolucionario que aque1esquehoje semani-
festamta~radicais emsuaspalavras.
E aqui reside 0perigo. Ao dizer "filosofia" devemos distin-
guir entre a filosofia como fato historico deumarespectiva epo-
ca e a filosofia como ideia de uma tarefa infinita. A filosofia
efetiva em cada caso historicamente real e 0intento, mais ou
menos sucedido, de realizar a ideia condutora da infinitude e,
comisso, do conjunto total das verdades. Ideais pnHicos, intui-
dos como polos etemos, dos quais ninguem sepode afastar em
toda a sua vida sem arrependimento, sem tomar-se infiel a si
mesmo e, comisso, infeliz, demaneira alguma namera intuiyao
ja sao claros e precisos, mas se antecipam numa generalidade
vaga. Sua determinayao somente emerge no agir concreto e no
exito, ao menos relativo, doproceder. Por isso correm0constan-
teperigo de serematraiyoados por interpretayoes unilaterais que
satisfazem prematuramente; mas a sanyao vem em forma de
contradiyoes subseqiientes. Dai 0contraste entre as grandes pre-
tensoes dos sistemas filosoficos que, semduvida, sao incompati-
veis entre si. A isso se acrescenta a necessidade, e tambem 0
perigo, daespecializayao.
Assim, por certo, pode uma racionalidade unilateral vir aser
urnmal. Isto tambem sepodeexpressar deoutra forma: pertence
it essencia da razao que os filosofos somente podem compreen-
der e elaborar sua tarefa infinita primeiramente numa unilatera-
lidade absolutamente inevitavel. Nisso, em principio, nao ha
nenhum absurdo, nenhum erro; mas, como ja disse, 0caminho
que, para eles, e direto enecessario, nao lhes permite abranger
mais que urn aspecto da tarefa, semdeixar de ver, a principio,
queatarefa infinita emseuconjunto, adeconhecer teoricamente
a totalidade daquilo que e, ainda tern outras faces. Se a insufi-
ciencia seanuncia emobscuridades econtradiyoes, isto damoti-
vo para uma reflexao universal. Por conseguinte, 0filosofo sem-
pre deve tentar assenhorar-se do verdadeiro e pleno sentido da
filosofia, da totalidade de seus horizontes de infinitude. Nenhu-
ma linha de conhecimento, nenhuma verdade particular deve ser
absolutizada e isolada. So nessa consciencia suprema de si, que
por suavez seconverte emurnramo datarefainfinita, afilosofia
pode cumprir suafunyaodepromover-se asi mesma e, comisso,
a humanidade autentica. Mas, que isso seja assim, tambem per-
tence it esfera do conhecimento filosofico no grau de suprema
reflexao sobre si mesmo (hOchster Selbstbesinnung). So emvir-
tude desta constante atividade dereflexao (stiindige Rejlexivitiit)
umafilosofia eurnconhecimento universal.
Eu disse que 0caminho da filosofia passa pela ingenuidade.
Este e 0comeyo para criticar 0tao altamente celebrado irracio-
nalismo e, ao mesmo tempo, 0lugar para denunciar aingenuida-
dedaquele racionalismo queeconsiderado como aracionalidade
filosofica pura esimples mas que, arigor, caracteriza afilosofia
de toda a Idade modema, a partir do Renascimento, e que se
considera 0racionalismo verdadeiro, portanto, universal. Esta
ingenuidade, inevitavel no comeyo, envolve a todas as ciencias
e, no inicio, tambem as ciencias que, ja na Antigiiidade, conse-
guiram desenvolver-se. Dito mais exatamente: a denominayao
mais geral que convem a esta ingenuidade e 0objetivismo, que
se configura nos diferentes tipos de naturalismo, na naturaliza-
yao do espirito. Filosofias antigas e modemas eram e seguem
sendo ingenuamente objetivistas. Mas, para ser mais justo, deve
acrescentar-se que0idealismo alemao, procedente deKant, ja se
esforyou apaixonadamente por superar a ingenuidade percebida,
semque pudesse alcanyar realmente 0grau de reflexividade su-
perior decisivo para a nova forma da filosofia e dahumanidade
europeia.
So posso apresentar algumas indicayoes rudes para tomar
compreensivel 0que foi dito. 0homem natural (digamos 0do
periodo pre-filosofico) estavoltado comtodas as suas preocupa-
yoes esuaatividade para0mundo. 0dominio noqual viveeage
e 0mundo circundante, que se estende espacio-temporalmente
ao seu redor, no qual ele proprio se inclui. Esta caracteristica
permanece na atitude teorica que, em seu primeiro momento,
nao pode ser senao ado espectador desinteressado emrelayao ao
mundo que, comisso, se despoja de seus mitos. A filosofia ve,
no mundo, 0universo do ser e 0mundo converte-se no mundo
objetivo frente as representayoes demundo, que variam deacor-
do comanacionalidade eos sujeitos individuais: averdade con-
verte-se, pois, em verdade objetiva. Assim a filosofia comeya
como cosmologia, dirigida, primeiramente, como e 6bvio, em
seu interesse te6rico, para a natureza corp6rea e, precisamente
porque tudo que edado no espayOeno tempo, tern, pelo menos
em sua base, a forma existencial da corporeidade. Homens e
animais nao SaDapenas corpos, mas, naperspectiva deurn olhar
para 0mundo circundante, aparecem como algo que existe cor-
poralmente, e por isso, como realidades integrantes da espacio-
temporalidade universal. Dessarte todos os processos psiquicos,
os de cada eu, como 0experimentar, pensar, querer, tern certa
objetividade. A vidacomunitaria das familias, dospovos eseme-
Ihantes, parece entao dissolver-se na dos individuos singulares,
considerados como objetos psico-fisicos; avinculayao espiritual
por meio deuma causalidade psico-fisica prescinde deuma con-
tinuidade puramente espiritual, e emtoda aparte impera anatu-
reza fisica.
o curso do desenvolvimento hist6rico e determinado, com
precisao, por esta atitude para com 0mundo circundante. J a 0
olhar mais fugaz as coisas corporeas, no mundo circundante,
mostra que a natureza eurn todo homogeneo, que une todas as
coisas, urn mundo para si, digamos, cativo da ordem espacio-
temporal, homogeneo, dividido em objetos particulares, todos
iguais entre si como res extensae e que se determinam causal-
mente uns aos outros. Muito rapido da-se 0primeiro passo para
uma descoberta importantissima: eadasuperayao da finitude da
natureza ja pensada como urn emsi objetivo, uma finitude sub-
sistente, apesar do carater aberto e indefinido da natureza. Des-
cobre-se ainfinitude, primeiro emforma deidealizayao dagran-
deza, da massa, dos numeros, das figuras, das retas, dos polos,
das superficies, etc. A natureza, 0espayO, 0tempo tomam-se
idealmente prolongaveis e idealmente divisiveis ao infinito. Da
agrimensura nasce ageometria, daartedosnumeros aaritmetica,
da medmica cotidiana amedinica matematica, etc. Agora ana-
tureza e 0mundo intuitivos se transformam, sem que disso se
faya uma hipotese explicita, nummundo matematico, 0mundo
das ciencias matematicas danatureza. A antigiiidade progrediu e
comsua matematica descobriu, pela primeira vez, ideais infini-
tos etarefas infinitas. Isto toma-se estrela que guiara as ciencias
para todos os tempos posteriores.
Como repercutiu 0exito embriagador destadescoberta dain-
finitude fisica sobre0dominio cientifico naesfera espiritual? Na
atitude para com0mundo circundante, naatitude constantemen-
teobjetivista, todo 0espiritual aparece como superposto acorpo-
reidade fisica. Dessa maneira tendia-se para uma adoyao do mo-
do de pensar cientifico-natural. Por isso, ja no inicio, encontra-
mos 0materialismo e 0determinismo de Democrito. Mas os
espiritos maiores retrocediam ante tais doutrinas, assim como
ante toda apsico-fisica deestilo mais modemo. Desde Socrates,
areflexao toma par tema0homememsuahumanidade especifi-
ca, 0homem como pessoa, 0homemna vida espiritual comuni-
taria. 0 homem permanece inserido no mundo objetivo, mas
esseja setoma 0grande temapara Platao eAristoteles. Percebe-
seai uma cisao notavel, pois 0humano pertence ao universo dos
fatos objetivos; mas enquanto pessoas, enquanto "eu", os ho-
mens tern fins, perseguem metas, referem-se as normas datradi-
yao, as normas da verdade; normas etemas. Se este desenvolvi-
mento separalisou naantigiiidade, elecontudo nao seextinguiu.
Demos urn salto a chamada Idade Modema. Com urn entu-
siasmo ardente e acolhida a tarefa infinita de urn conhecimento
matematicodanaturezaedomundo emgeral. Osprogressosgigan-
tescos, no conhecimento da natureza, agora devemser estendidos
ao conhecimento do espirito. A razao demonstrou suaforyanana-
tureza. "Como 0sol e 0unico sol que ilumina e aquece todas as
coisas, assimtambemarazao eaunicarazao" (Descartes). 0me-
todo tambemdevercipenetrar os segredos do espirito. 0espirito e
umarealidadenatural, urnobjetono mundo ecomo tal fundadona
corporeidade. Por conseguinte, a compreensao do mundo adota
imediatamente e emtodos os dominios a forma de urn dualismo,
mais exatamente de urn dualismo psico-fisico. A mesma causalida-
de, apenas dividida em duas, abrange 0unico mundo; a explicayao
racional tern 0mesmo sentido em toda a parte, entendendo-se que
toda explicayao do espirito, sedeve ser unica eter urn alcance filo-
sofico universal, ha deconduzir para 0plano fisico. Nao pode haver
uma investigayao explicativa pura e fechada em si do espirito, uma
psicologia ou teoria do espirito voltada totalmente para 0interior,
que va diretamente desde 0eu, desde 0psiquico imediatamente
vivido, a psique do outro; e preciso tomar 0caminho exterior, 0
caminho da fisica e da quimica. Todos os discursos em yoga sobre
o espirito coletivo, sobre avontade do povo, sobre fins ideais, poli-
ticos das nayoes e semelhantes, nao passam de romantismo emito-
logia, originados numa transposiyao analogica de conceitos que so
possuem sentido proprio na esfera pessoal do individuo. 0ser espi-
ritual efragmentario. Indagando, agora, pela fonte detodas as tribu-
layoes pode-se responder: este objetivismo ou esta concepyao psi-
co- fisica do mundo e, apesar de sua aparente evidencia, uma unila-
teralidade ingenua que, como tal, permanecia incompreendida.
E urn absurdo conferir ao espirito uma realidade natural, como se
fosse urn anexo real dos corpos e pretender atribuir-Ihe urn ser es-
pacio-temporal dentro danatureza.
Mas aqui e necessario, para 0nosso problema da crise, mos-
trar como e possivel que a epoca moderna, durante seculos tao
orgulhosa de seus exitos teoricos e praticos, tenha caido ela
mesma numa crescente insatisfayao eque ainda deve experimen-
tar sua situayao como situayao de penuria. Em todas as ciencias
se insinua essa penuria, em ultima analise, como penuria do me-
todo. Mas nossa penuria europeia, embora nao compreendida,
conceme a grande numero de ciencias.
Trata-se de problemas procedentes da ingenuidade, em virtude
da qual a ciencia objetivista toma 0que ela chama 0mundo objeti-
vo como sendo 0universo detodo 0existente, semconsiderar que a
subjetividade criadora daciencia nao pode ter seu lugar legitimo em
nenhuma ciencia objetiva. Aquele que eformado nas ciencias natu-
rais julga evidente que todos os fatores puramente subjetivos devem
ser exc1uidos e que 0metodo cientifico-natural determina, em ter-
mos objetivos, 0que tern sua figurayao nos modos subjetivos da
representayao. Por isso busca 0objetivamente verdadeiro tambem
no plano psiquico. Ao mesmo tempo admite-se, com isso, que os
fatores subjetivos exc1uidos pelo fisico serao investigados pela psi-
cologia precisamente como algo psiquico e naturalmente por uma
psicologia psico-fisica. Mas 0investigador da natureza nao se da
conta de que 0fundamento permanente de seu trabalho mental,
subjetivo, e 0mundo circundante (Lebensumwelt) vital, que cons-
tantemente epressuposto como base, como 0terreno da atividade,
sobre 0qual suas perguntas eseus metodos de pensar adquirem urn
sentido. Onde se submete a critica e a elucidayao a enorme aquisi-
yao metodologica, que conduz desde 0mundo circundante (Leben-
sumwelt) intuitivo ate as idealizayoes da matematica e a interpreta-
yao do mundo como ser objetivo? A revoluyao de Einstein concer-
ne as formulas que tratam da physis idealizada e ingenuamente
objetivada. Mas nada se nos diz sobre como as formulas em geral,
como aobjetivayao matematica emgeral, adquire 0sentido sobre a
base da vida e do mundo circundante intuitivo; assim Einstein nao
reforma 0espayo e0tempo, nos quais se desenrola nossa vida real
econcreta (unser lebendiges Leben).
A ciencia matematica da natureza e uma tecnica maravilhosa
que permite efetuar induyoes de uma fecundidade, de uma proba-
bilidade, de uma precisao e de uma facilidade de calculo, que
antes sequer se teria podido suspeitar. Como criayao (Leistung), e
urn triunfo do esphito humano. Mas naquilo que conceme a ra-
cionalidade de seus metodos e de suas teorias, etotalmente relati-
va. J a pressupoe uma disposiyao fundamental previa que, em si
mesma, carece por completo de uma racionalidade efetiva. A me-
dida que se esquece, na tematica cientifica do mundo circundant '
intuitivo, 0fator meramente subjetivo, esquece-se tambem 0pr )-
prio sujeito atuante, e 0cientista nao se toma tema de ren Xl 0,
(Com isso aracionalidade das ciencias exatas permanece, fiob I
ponto de vista, na mesma linha da racionalidade que ilustrulll I
pirflmides egipcias).
E verdade que, desdeKant, possuimos umateoria do conhe-
cimento propria e, deoutro lado, existe umapsicologia que quer
ser, com suas pretensoes a uma exatidao cientifico-natural, a
ciencia geral e fundamental do espirito. Mas nossa esperan9a
numa racionalidade genuina, isto e, deurn conhecimento genui-
no, aqui e emtoda parte e decepcionada. as psicologos sequer
percebem que, emsuas coloca90es, como homens criadores de
ciencia, nao tern acesso asi mesmos easeu mundo circundante.
Nao percebem que, de antemao, se pressupoem a si mesmos
necessariamente como seres humanos vivendo emcomunidade
de seu mundo circundante e de sua epoca historica, e que que-
rem alcan9ar a verdade emsi, valida para todos. Por causa de
seu objetivismo, apsicologia nao consegue incluir emseu tema
dereflexao aalma, ou seja, 0eu, que ageesofre, emseu sentido
mais proprio emais essencial. Supondo queelapossa objetivar e
tratar indutivamente a vivencia valorante, a vivencia volitiva,
repartida nos corpos vivos sera elacapaz defazer 0mesmo com
os fins, os valores eas normas? Pode ela converter emternade
reflexao apropria razao, digamos como "disposi9ao"? Esquece-
setotal menteque0objetivismo, emseucarater decria9ao auten-
tica do investigador embusca de verdadeiras normas, ja pressu-
poe essas normas, e este objetivismo, portanto, nao pode ser
derivado de fatos ai ja saopensados como verdades enao como
fic90es. Percebem-se logo as dificuldades aqui subjacentes: 0
conflito suscitado pelo psicologismo 0atesta. Mas ainda nao se
lucrou nada com a rejei9ao de uma fundamenta9ao psicologica
das normas, sobretudo das normas que presidem a verdade em
si. Toma-se cada vez mais palpavel, emgeral, anecessidade de
reformar toda a psicologia modema, mas ainda nao se entende
que ela tenha fracassado por causa de seu objetivismo, que ela
nao tern nenhum acesso a essencia propria do espirito, que e
absurdo 0isolamento da psique concebida objetivamente e sua
interpreta9ao psicofisica do ser-em-comunidade. E certo que 0
trabalho da psicologia modema nao foi emvao: tern elaborado
numerosas regras empiricas quetambempossuemurn valor pra-
tico. Mas ela etao pouco uma autentica psicologia como aesta-
tfstica moral, com seus conhecimentos nao menos valiosos, e
umaciencia moral.
Mas emnosso tempo anuncia-se, emtoda aparte, apremen-
tenecessidade deuma compreensao do espirito esetomou qua-
seinsuportavel aconfusao que afeta as rela90es demetodo ede
conteudo entre as ciencias da natureza eas ciencias do espirito.
Dilthey, urn dos maiores cientistas do espirito, dedicou toda a
energia de suavida ao esclarecimento das rela90es entre anatu-
rezae0espirito, ao esclarecimento dacontribui9ao dapsicologia
de tipo psico-fisica, a qual, como ele acreditava, deveria ser
completada por uma psicologia nova, descritiva e analitica. as
esfowos de Windelband eRickert infelizmente nao trouxeram a
desejada evidencia. Tambem eles, como todos, permaneceram
vitimas do objetivismo. Mais ainda, os novos psicologos refor-
madores, que creemquetodaaculpa sereduz ao preconceito do
atomismo reinante, ha muito tempo, e que se inaugurou uma
novaepoca comapsicologia datotalidade. Mas asitua9ao nunca
melhorara enquanto nao se colocar emevidencia a ingenuidade
do objetivismo, surgido de uma atitude natural em rela9ao ao
mundo circundante enao se estiver convencido da absurdidade
daconcep9ao dualista domundo, segundo aqual natureza eespi-
rito devem ser considerados como realidades de sentido homo-
geneo, embora uma edificada sobre a outra de maneira causal.
J ulgo, comtoda aseriedade, quenunca existiu nemexistira uma
ciencia objetiva acerca do espirito, uma doutrina objetiva da
alma, objetiva no sentido de atribuir as almas, as comunidades
pessoais, uma inexistencia, submetendo-as as formas espacio-
temporais.
aespirito, e so 0espirito e 0que existe em si mesmo e para
si mesmo, so 0espirito e autonomo e pode ser tratado nesta
autonomia, e so nesta, emforma verdadeiramente racional, de
um modo verdadeira e radicalmente cientijico. Quanto anature-
za, considerada na verdade que lhe conferem as ciencias natu-
rais, ela so tern uma autonomia aparente, e so aparentemente
ofereceurnconhecimento racional desi nas ciencias danatureza.
Pois averdadeira natureza, no sentido das ciencias danatureza, e
obrado espirito queaexplora epressup6e, por isso, aciencia do
espirito. 0espirito e, por essencia, capaz de exercer 0conheci-
mento desi mesmo, ecomo espirito cientifico ecapaz deexercer
o conhecimento cientifico de si, e isto reiteradamente. S6 no
puro conhecimento cientifico-espiritual 0cientista escapa a ob-
jeyao de que se encobre a si mesmo em seu saber. Por isso e
erroneo, de parte das ciencias do espirito, lutarem comas cien-
cias danatureza por umaigualdade dedireitos. Logo queaquelas
reconhecem as ultimas uma objetividade que sebasta a si mes-
ma, elas mesmas sucumbemno objetivismo. Mas tais como hoje
estao divididas emsuas multiplas disciplinas, as ciencias do es-
pirito carecem da racionalidade ultima, autentica, possibilitada
por umacosmovisao espiritual. Precisamente, esta falta generali-
zada de uma genuina racionalidade e a fonte da obscuridade ja
insuportavel do homem sobre suapr6pria existencia e suas tare-
fas infinitas. Estas encontram-se inseparavelmente unidas numa
unica tarefa: S6 quando 0espirito deixar a ingenua orientar;:iio
para 0exterior e retornar a si mesmo e permanecer consigo
mesmo e puramente consigo mesmo, podera bastar-se a sf.
Como sechegou aurncomeyo deumatal reflexao sobre si?
Tal comeyo era impossivel enquanto dominava 0sensualismo,
oumelhor dito, 0psicologismo dos dados, apsicologia databula
rasa. S6quando Brentano postulou umapsicologia como ciencia
das vivencias intencionais deu-se urn impulso que podera levar
adiante, embora 0pr6prio Brentano ainda nao tenha superado 0
objetivismo, nem0naturalismo psicol6gico. A elaborayao deurn
metodo efetivo para compreender a essencia fundamental do
espirito em sua intencionalidade, e, a partir dai, construir uma
teoria analitica do espirito que se desenvolve de modo coerente
ao infinito, conduziu afenomenologia transcendental. Esta supe-
ra0objetivismo naturalista etodo objetivismo emgeral daunica
maneira possivel: 0sujeito filosofante parte do seu eu, mais pre-
cisamente, ele se considera apenas como executor (Vollzieher)
detodos os atos dotados devalidade, tomando-se urn espectador
puramente te6rico. Nesta atitude consegue-se construir uma ci-
encia do espirito absolutamente autonoma, no modo de uma
conseqiiente compreensao de si mesmo ecompreensao do mun-
do como obradoespirito. Ai 0espirito nao eespirito nanatureza
ou aseu lado, mas apr6pria natureza entra na esfera do espirito.
o eu entao ja nao mais e uma coisa isolada ao lado de outrai'
coisas similares dentro de urn mundo dado de antemao; a ext -
rioridade e a justaposiyao dos eus pessoais cede lugar a uml:l
relayao intima entre os seres que sao urn no outro e urnpara {)
outro.
Mas nao epossivel estender-me sobre este ponto aqlli, poifj
nenhuma conferencia poderia exauri-Io. Contudo, espero t I'
mostrado que aqui nao setrata de restaurar 0antigo raciona1ill-
mo, que era urnnaturalismo absurdo eincapaz de compreend 1',
emsuma, os problemas do espirito quenos tocammais dep 1'10,
A ratio de que agora se trata nao e senao a compreensao r 'ul-
mente universal e realmente radical de si do espirito, na fOrJ lw
de uma ciencia universal responsavel, na qual se instaura 11111
modo completamente novo de cientificidade, na qual tem i' II
lugar todas as quest6es do ser, as quest6es danorma, assill1 '0-
mo as quest6es do que se designa como existencia. E ll1inllll
convicyao deque afenomenologia intencional fez, pela prim'ir'lI
vez, 0 espirito como emcampo deexperiencia eciencia sist '111(1
ticas, determinando assim a reorientayao total da tarefa do '0
nhecimento. A universalidade do espirito absoluto abranr lollo
o ser numa historicidade absoluta, dentro daqual sesitua a11111\1
reza como obra do espirito. S6 a fenomenologia intencionlli.
precisamente atranscendental, trouxe clareza grayas as UpOllio
departida easeusmetodos. S6elapermite compreender, 'I II
raz6es mais profundas, 0que e objetivismo naturalistu III
particular, mostra que apsicologia, condenada devido a fl'll 1111
tllralisll1o, a carecer da atividade criadora do espirito, '-I"' ' 0
problema radical eespecifico davida espiritual.
Sintetizemos a ideia fundamental de nossa expos19ao. A
"crise daexistencia europeia", tao discutida atualmente eatesta-
da em inumeros sintomas de desintegrayao da vida, nao e urn
destino obscuro, nao euma fatalidade impenetnivel, mas setoma
compreensivel epenetnlvel ao olhar sobre 0fundo dateleologia
da historia europeia queafilosofia ecapaz depar adescoberto.
Mas esta compreensao depende de previamente se apreender 0
fenameno "Europa" emseu nucleo essencial. Para poder enten-
der a anormalidade da "crise" atual foi necessario elaborar 0
conceito de Europa como ateleologia historica defins de raziio
infinitos; foi necessario mostrar como 0"mundo" europeu nas-
ceu de ideias darazao, isto e, do espirito da filosofia. A "crise"
entao pode ser esclarecida como 0fracasso aparente do raciona-
lismo. 0motivo do fracasso de uma cultura racional nao seen-
contra - comoja sedisse- na essencia doproprio racionalismo,
mas so emsuaalienayao, no fato desuaabsoryao dentro do "na-
turalismo" edo "objetivismo".
A "crise" da existencia europeia so tern duas saidas: ou 0
ocaso da Europa num distanciamento de seu proprio sentido
racional da vida, 0afundamento na hostilidade ao espirito e na
barbarie, ou 0renascimento da Europa a partir do espirito da
filosofia mediante urn heroismo da razao que triunfe definitiva-
mente sobre0naturalismo. 0maior perigo queameayaaEuropa
e 0cansayo. Lutemos contra este maior perigo como "bons eu-
ropeus" comaquela valentia quenao serende nemanteumaluta
infinita. Entao ressuscitara do incendio destruidor da increduli-
dade, do fogo no qual se consome toda a esperanya na missao
humana do Ocidente, das cinzas do enorme cansayO, 0renix de
uma nova interioridade de vida e de uma nova espiritualidade,
como garantia de urn futuro humano grande e duradouro, pois
unicamente 0espirito eimortal.
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